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36 REVISTA O GLOBO 23 DE NOVEMBRO DE 2008 CAPA O Maria Amélia Arruda Francisco no terraço, onde os moradores lavam roupas: ela se mudou para o prédio porque não conseguia mais pagar aluguel a Um dia, Nete esbarrou com uma co- nhecida que falou sobre o prédio. — Catei madeira na rua e fiz meu barraco aqui dentro — ela conta. — Isso já tem dez anos, e só saio se ganhar casa. Não quero voltar pra rua, mas também não quero ir pra abrigo. Lá tem hora de entrar e sair, você não pode ir garimpar. Aqui, a gente tem as nossas coisas, faz a nossa comida, vai vivendo. A pensionista Maria Amélia Arruda Francisco, de 65 anos, vizinha de porta, já pensa em se render ao abrigo. Ar- rumou uma ferida na perna, caminha com dificuldade e não consegue se cu- rar. Maria Amélia é viúva e foi parar ali com o filho porque não podia mais pagar aluguel. Comprou seu primeiro espaço por R$ 180, no quarto andar. Depois, mudou-se para o terceiro piso e pagou R$ 100. Agora, mora no segundo, num “quarto-e-sala” que custou R$ 240. Entre as quase cem famílias que vivem ali, muitas fugiram da rua, como Nete, ou do aluguel, como Maria Amélia. Mas não é raro encontrar pessoas que têm casa própria em algum lugar distante. Fazem do prédio um dormitório durante a semana, quando correm atrás de trabalho. E, no fim de semana, voltam pra casa. Também há viciados que perderam tudo e gente que morava em alguma comunidade, mas fu- giu, acuada pelo tráfico ou pelas milícias. E há várias outras histórias, claro. Darcy Nunes dos Santos, a tia Russa, foi parar ali, três anos atrás, por causa de um amor. Ela morava no Morro do Fogueteiro, no Ca- tumbi, quando o homem por quem era apaixonada na adolescência reapareceu. Foi para o prédio atrás dele. O romance não deu certo, ela mudou de andar, mas continua lá. Aos 43 anos, com os filhos criados, Darcy faz faxina, mas gostaria mesmo de ganhar dinheiro cozinhando. Na dinâmica do prédio, ganha-se di- nheiro carregando galão de água, lavando roupa para outros moradores, cuidando de criança, erguendo barraco, vendendo barraco. José Nivaldo, de 49 anos, faz mais: vende biscoito, refrigerante, fósforo e outras miudezas numa pequena barraca no pátio do prédio. Grande, como os vizinhos o chamam, também encomenda botijões de gás e garrafões de água. — Quando a comunidade tem uma condição mais ou menos, dá pra fazer obra, cuidar do lugar. Aqui vive todo mundo na conta — ele diz. Dos inquilinos atuais, poucos conhe- ceram o prédio em seu tempo de glória. Sede da Bloch Editores, foi ali que nasceu a revista “Manchete”, em 1952. Depois, quando a empresa se mudou para a Rua do Russel, na Glória, em 1968, o prédio chegou a abrigar uma central de pro- duções da TV Manchete, equipada com ateliês de costura, adereços, carpintaria e moda. Pelos corredores da Frei Caneca, que ainda estavam cobertos por carpete quando os primeiros moradores chega- ram, circularam modelos, atores e vi- sitantes ilustres, como o trompetista Dizzi Gillespie, que até arriscou uns passos de samba por ali. Passados 50 anos, o des- tino do prédio é uma incógnita. E en- quanto o Banco do Brasil estuda o que fazer, Cristina — cansada de esperar — continua juntando dinheiro pra comprar a cerveja que venderá no réveillon. l O GLOBO NA INTERNET VÍDEO Conheça o prédio por dentro oglobo.com.br/rio

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OGLOBO NA INTERNET MariaAmélia Arruda Francisco no terraço, onde os moradores lavam roupas: ela se mudou para o prédio porque não conseguia mais pagar aluguel VÍDEO Conheça o prédio por dentro 36 • REVISTA O GLOBO • 23 DE NOVEMBRO DE 2008 • oglobo.com.br/rio

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MariaAmélia ArrudaFrancisco no terraço,onde os moradoreslavam roupas: ela semudou para o prédioporque não conseguiamais pagar aluguel

a Um dia, Nete esbarrou com uma co-nhecida que falou sobre o prédio.

— Catei madeira na rua e fiz meubarraco aqui dentro — ela conta. — Issojá tem dez anos, e só saio se ganhar casa.Não quero voltar pra rua, mas tambémnão quero ir pra abrigo. Lá tem hora deentrar e sair, você não pode ir garimpar.Aqui, a gente tem as nossas coisas, faz anossa comida, vai vivendo.

A pensionista Maria Amélia ArrudaFrancisco, de 65 anos, vizinha de porta,já pensa em se render ao abrigo. Ar-rumou uma ferida na perna, caminhacom dificuldade e não consegue se cu-rar. Maria Amélia é viúva e foi parar alicom o filho porque não podia mais pagaraluguel. Comprou seu primeiro espaçopor R$ 180, no quarto andar. Depois,mudou-se para o terceiro piso e pagouR$ 100. Agora, mora no segundo, num

“quarto-e-sala” que custou R$ 240.Entre as quase cem famílias que vivem

ali, muitas fugiram da rua, como Nete, oudo aluguel, como Maria Amélia. Mas não éraro encontrar pessoas que têm casaprópria em algum lugar distante. Fazem doprédio um dormitório durante a semana,quando correm atrás de trabalho. E, no fimde semana, voltam pra casa. Também háviciados que perderam tudo e gente quemorava em alguma comunidade, mas fu-giu, acuada pelo tráfico ou pelas milícias. Ehá várias outras histórias, claro. DarcyNunes dos Santos, a tia Russa, foi parar ali,três anos atrás, por causa de um amor. Elamorava no Morro do Fogueteiro, no Ca-tumbi, quando o homem por quem eraapaixonada na adolescência reapareceu.Foi para o prédio atrás dele. O romancenão deu certo, ela mudou de andar, mascontinua lá. Aos 43 anos, com os filhoscriados, Darcy faz faxina, mas gostariamesmo de ganhar dinheiro cozinhando.

Na dinâmica do prédio, ganha-se di-nheiro carregando galão de água, lavandoroupa para outros moradores, cuidandode criança, erguendo barraco, vendendobarraco. José Nivaldo, de 49 anos, fazmais: vende biscoito, refrigerante, fósforoe outras miudezas numa pequena barracano pátio do prédio. Grande, como os

vizinhos o chamam, também encomendabotijões de gás e garrafões de água.

— Quando a comunidade tem umacondição mais ou menos, dá pra fazerobra, cuidar do lugar. Aqui vive todomundo na conta — ele diz.

Dos inquilinos atuais, poucos conhe-ceram o prédio em seu tempo de glória.Sede da Bloch Editores, foi ali que nasceua revista “Manchete”, em 1952. Depois,quando a empresa se mudou para a Ruado Russel, na Glória, em 1968, o prédiochegou a abrigar uma central de pro-duções da TV Manchete, equipada comateliês de costura, adereços, carpintaria emoda. Pelos corredores da Frei Caneca,que ainda estavam cobertos por carpetequando os primeiros moradores chega-ram, circularam modelos, atores e vi-sitantes ilustres, como o trompetista DizziGillespie, que até arriscou uns passos desamba por ali. Passados 50 anos, o des-tino do prédio é uma incógnita. E en-quanto o Banco do Brasil estuda o quefazer, Cristina — cansada de esperar —continua juntando dinheiro pra comprar acerveja que venderá no réveillon.l

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