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VOLUME 1

PHD Marco Hovnanian Volume 1 (Thesis)

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The objective of this work is the construction of an artistic view on rythms and way of living of the homeless population. In academic point of view, the conception of “valid performance” from Cloke works as an important element of the textual argumentation here represented on the sense that the homeless stage actions as sleep, eat and share similarly as the population that has fixed residence. However, as the first group is seen as declassed and excluded,the second is as central and included, perceptions discussed on thisthesis is thesis discusses the connotation of stranger, generally assigned tothe homeless population throw the sociological discussion bias, based mainlyon Zygmunt Bauman and Michel Foucault thoughts about the strangerand the ways of lead and control of this population. The artistic view is atthe systematic work of construction of light, time and of the photographicregister in sequence using the stop motion technique. the nightly light ofthe exposures as light that not exist, or, in other words, is built from the fleetingand irregular of cars headlights that were going by. The light of each carheadlight is different, the angle which it focus too. The camera setup needsconstantly to be readjusted. In this process the time assumes a protagonistrole. An important aspect as the way this thesis was conducted focus on theshared experiences conducted as essential manner of the research, both inthe speculative role as in the moments it was employed systematically. Therapprochement and the entrance on the habitual of those persons are oneof the results of this manner of living, The settlement of empathy, of dynamicscompatibility of experiences – sometimes based on language, sometimeswithout it, only by the gestural or the emotional observant presence andintellectually relaxed. The domain of the technique guided some intuitivesteps, but conducted, at the end, the construction of this language.

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VOLUME 1

Universidade Presbiteriana Mackenzie

SÃO PAULO | 2013

Volume 1

R EPR ESENTAÇÕES ARTÍSTICAS COM OS MOR ADOR ES DE RUA POR MEIO DA LUZ E DO MOVIMENTO

Marco Antonio Dresler Hovnanian

Universidade Presbiteriana Mackenzie

SÃO PAULO | 2013

Volume 1

R EPR ESENTAÇÕES ARTÍSTICAS COM OS MOR ADOR ES DE RUA POR MEIO DA LUZ E DO MOVIMENTO

Marco Antonio Dresler Hovnanian

Tese apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Arquitetura, Urbanismo e Design.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Egídio Alonso

Aprovada em: ______/______/______

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________Prof. Dr. Carlos Egídio AlonsoUniversidade Presbiteriana Mackenzie

___________________________________________________Profa. Dra. Ana Gabriela Godinho LimaUniversidade Presbiteriana Mackenzie

___________________________________________________Profa. Dra. Maria Cecília Loschiavo dos SantosUniversidade de São Paulo

___________________________________________________Profa. Dra. Angélica Benatti AlvimUniversidade Presbiteriana Mackenzie

___________________________________________________Prof. Dr. Fernando Agrasar QuirogaUniversidade da Coruña

Tese apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Arquitetura, Urbanismo e Design.

R EPR ESENTAÇÕES ARTÍSTICAS COM OS MOR ADOR ES DE RUA POR MEIO DA LUZ E DO MOVIMENTO

Marco Antonio Hovnanian

Dedico esse trabalho aoSeu Marcos, Seu Roberto, Custódio, Severino, Jailson, Hippie e Aguinaldo

AGRADECIMENTOS

Ao Instituto Presbiteriano Mackenzie e ao Banco Santander pelo suporte para desenvolvimento e finalização dessa pesquisa.

A minhã mãe Ruth Dresler e meu irmão André Hovnanian por todo amor e suporte.

Ao professor orientador Carlos Egídio Alonso pela orientação.

Aos professores Michael Biggs pelas contribuições na banca de qualificação, Evandro Carlos Jardim pela inspiração criativa, Mauro Claro pela discussão metodológica, Renata Gomes e a Universitat Politecnica Catalunya por toda interlocução e intercâmbio em Barcelona, Nara Marcondes pela oportunida-de dada como docente e dicente, a professora Angélica Alvim pela coopera-ção para o doutorado sandwich.

A Eleni e Lilian por toda cooperação e carinho.

Ao !obias Daneluz pelo infográfico e ao Emiliano pela finalização do video.

A Flavia Okumura pela revisão e preparação do texto.

A Nathalie e família Nopakun por toda cooperação em Boston.

Aos meus amigos Leandro Berce e Vitor Bellon pelo suporte.

Ao meu amigo professor Alex Mazzini por todo projeto gráfico dos quatro primeiros capítulos, finalização e encadernação dessa pesquisa.

A minha amiga professora Ana Gabriela Godinho Lima, por toda interlocu-ção e cooperação na parte conceitual.

A todos moradores de rua que ao longo de doze anos compartilharam sua sabedoria com humildade e resignação.

Laroyê!

RESUMO

Palavras-chave: Moradores de rua, stop motion, estranho

O objetivo deste trabalho é a construção de um olhar artístico sobre os rit-mos e os modos de vida da população moradora de rua. Do ponto de vis-ta acadêmico, o conceito de “performance válida” de Cloke funciona como importante elemento da argumentação textual aqui apresentada, no sentido de que os moradores de rua encenam ações como dormir, comer, comparti-lhar, de modo semelhante à população que tem residência fixa. Entretanto, enquanto o primeiro grupo é visto como marginal e excluído, o segundo o é como central e incluído, percepções discutidas neste trabalho. O trabalho aborda a conotação de estranho, comumente atribuída à população morado-ra de rua pelo viés da discussão sociológica, fundamentada principalmente no pensamento de Zygmunt Bauman e Michel Foucault ao abordar o estra-nho e os modos de governo e controle dessa população. O ponto de vista artístico situa-se no trabalho sistemático de construção da luz, do tempo e do movimento no registro fotográfico em sequência por meio da técnica de stop motion. A luz noturna dos registros fotográficos é uma luz que não existe, ou, em outras palavras, constrói-se a partir da iluminação fugidia e irregular dos faróis dos carros que passam. A luz de cada farol é diferente, o ângulo em que ela incide também. A regulagem da câmera precisa ser constantemente reajustada. Neste processo, o tempo assume um papel protagonista. Um as-pecto importante do modo como esse trabalho foi conduzido centra-se na vivência compartilhada, conduzida como prática essencial da pesquisa, tanto no seu papel especulativo como nos momentos em que foi empregada mais sistematicamente. A aproximação e a entrada no cotidiano destas pessoas é um dos resultados dessa prática de vivência, do estabelecimento de empatia, de dinâmicas de compatibilidade na convivência – às vezes por meio da lin-guagem, às vezes sem ela, apenas pelo gestual ou a presença emocionalmente atenta e intelectualmente relaxada. O domínio da técnica guiou certos passos intuitivos, mas conduziu, ao final, a construção desta linguagem.

ABSTRACT

Keywords: Homeless, stop motion, stranger

!e objective of this work is the construction of an artistic view on rythms and way of living of the homeless population. In academic point of view, the conception of “valid performance” from Cloke works as an important element of the textual argumentation here represented on the sense that the homeless stage actions as sleep, eat and share similarly as the population that has fixed residence. However, as the first group is seen as declassed and ex-cluded, the second is as central and included, perceptions discussed on this thesis. !is thesis discusses the connotation of stranger, generally assigned to the homeless population throw the sociological discussion bias, based main-ly on Zygmunt Bauman and Michel Foucault thoughts about the stranger and the ways of lead and control of this population. !e artistic view is at the systematic work of construction of light, time and of the photographic register in sequence using the stop motion technique. !e nightly light of the exposures as light that not exist, or, in other words, is built from the fleet-ing and irregular of cars headlights that were going by. !e light of each car headlight is di"erent, the angle which it focus too. !e camera setup needs constantly to be readjusted. In this process the time assumes a protagonist role. An important aspect as the way this thesis was conducted focus on the shared experiences conducted as essential manner of the research, both in the speculative role as in the moments it was employed systematically. !e rapprochement and the entrance on the habitual of those persons are one of the results of this manner of living, the settlement of empathy, of dynam-ics compatibility of experiences – sometimes based on language, sometimes without it, only by the gestural or the emotional observant presence and intellectually relaxed. !e domain of the technique guided some intuitive steps, but conducted, at the end, the construction of this language.

SUMÁRIO

!"#$%&'( ) – *+, -+*!",%./+'

#$% &'()'*+, -,.&' , )#/%& 0, '-1&%23,

A produção de estranhos: os diferentes períodos históricos 12

A conceituação do estranho 20

A reflexão de Zygmunt Bauman sobre o estranho 30

O estranho que se transforma em refugo humano 36

!"#$%&'( 0 – *+, +'1213./+'

% 421'&045+, ' % %2#)%5+, 0, 6,&7,

A representação textual e não textual do corpo dos moradores de rua 48

A subcidadania dos moradores de rua 56

Formas de controle por meio da biopolítica e bio-poder 63

Controle, confinamento e repressão: a depêndencia do serviço social 67

Higienismo 72

As políticas de re-desenvolvimento do espaço público e privado 76

Diferentes paradigmas de circulação 86

A arquitetura antimendigo aliada às políticas de higienismo 88

A eliminação física dos moradores de rua 97

!"#$%&'( 4 – *+, 5(%(6,"5"-(

% 8#)2'&%.4)40%0' -,64%) 7,& $'4, 0% 4$%/'$

Uma breve introdução à fotografia de retrato 105

O retrato sociológico de August Sander 110

Relações de poder 114

Os mecanismos disciplinares pelo uso do retrato fotográfico 116

A fotografia documental como meio de representação social 123

Os primórdios da fotografia documental nos estados unidos pelas lentes do jornalista Jacob Riis 126

A profissionalização da fotografia documental com a documentação do sociólogo Lewis Hine 132

O farm security administration 141

Sebastião Salgado 148

Lista de imagens e links para referência 158

S+, /.'1-( – !"#$%&'( 7

N,8%- %.,&0%/'2- -,.&' ,- $,&%0,&'- 0' &#%

O bricoleiro útil à sociedade 164

Uma outra perspectiva sobre o morador de rua 178

A discussão e inclusão dos ‘destituídos de voz’ por meio da prática projetual de Wodiczko 182

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representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento

INTRODUÇÃO

% 6,21&4.#45+, ,('&'640% por esta tese de doutorado é construída em parte pela reflexão que a bibliografia especializada enseja e em parte pela perspectiva construída através do trabalho artístico. Uma parte não fun-ciona de forma autônoma em relação à outra, mas antes, somente revelam seu sentido de modo associado. O objetivo deste trabalho, portanto, não pretende assumir qualquer viés de julgamento, positivo ou negativo, em relação às populações às quais se refere. Decorre daí que nenhuma das afir-mações feitas aqui ou posicionamentos apresentados possuem qualquer teor prescritivo. Na condição de trabalho que emerge e se fundamenta em grande parte nos procedimentos do trabalho artístico, a argumentação su-gere a construção de olhar peculiar para os moradores de rua: a perfor-mance válida1 e a prática artística do pesquisador. Ao buscar refletir sobre como os moradores de rua se apropriam e transformam os objetos descartados para seu uso e sobrevivência, buscamos adotar um ponto de vista fundamentado essencialmente nos registros fotográficos. Partimos do pressuposto de que por meio da documentação fotográfica podemos trazer à tona novos elementos que não seriam perceptíveis por meio da argumen-tação textual. As fotografias sugerem que os moradores de rua criam uma organização social no espaço público onde intimidade, pertencimento e dignidade são compartilhados dentro de nossa sociedade. A funda-mentação no trabalho artístico emergiu inicialmente na intenção do pes-quisador de explorar por meio da fotografia duas dimensões da vida na cidade separadas entre si por diferentes ritmos existenciais: por um lado o ritmo da vida dos que fazem uso de veículos motorizados, os assim cha-mados ‘incluídos’ – população consumidora que possui documentos, renda etc.; por outro lado, o modo de viver daqueles que apenas se locomovem a pé – uma população não consumidora, os assim chamados ‘excluídos’, que não possuem renda fixa, documentação etc.. A inteligência dos moradores de rua, para Cloke, reside na ideia do conhecimento prático das ‘microarquiteturas’ da cidade diante das rotinas de movimento e pausa. Tais rotinas revelam “a possibilidade de contra inscrição – de traçar en-tendimentos formais sobre o espaço da cidade e registrar marcas e sinais alternativos. Elas também apontam mundos afetivos dos moradores de rua, enquanto eles ocupam lugares onde existe o cuidado, a generosidade, a es-perança, a caridade, a diversão e raiva [...]”2. Cloke aponta a importância em mapear às ‘homeless city’, procurando identificar nessas ‘microarquite-

1 Cloke et al., 2010

2 Cloke et al., 2010, p. 8

representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento

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| introdução

turas’ as práticas que transcendem a negociação do território com o poder público. É importante reconhecer os moradores de rua como ‘eles’ mesmos e “explorar os mapas da ‘homeless city’, desenhado pelos próprios morado-res de rua. Cloke se refere às performances válidas dos moradores de rua na assimilação de seus ‘lugares’ para dormir, comer, ganhar etc. Os mapas dos moradores de rua são significativos pela integração e interação emo-cional que Cloke chama de ‘geografias de performance’. Essas geografias podem ser permanentes e transitórias; algumas visíveis, outras invisíveis aos olhos do público3. As fotografias apresentadas nessa pesquisa foram produzidas entre 2002 e 2013 e constituem-se em uma discussão sobre a ação dos moradores de rua, que envolve a coleta e reutilização de objetos descartados, que são transformados em objetos para seu uso co-tidiano nas ruas. Esses indivíduos produzem, entre outros, artefatos para coleta de água, armazenamento de alimentos e até veículos para transpor-tar seus pertences. Sob essa perspectiva, suas atividades, ao invés de serem associadas ao cenário tradicional de carência e limitação, são vistas aqui antes como fonte de conhecimento – por meio de fotografias em sequên-cia – e encaradas como forma de vida possível, ao invés de indesejável e problemática. Alinha-se ainda com a perspectiva de Willis (2005) e Kasper (2004), de acordo com os quais os modos de vida dos moradores de rua podem ser abordados como opção válida, cujas práticas têm o potencial de inspirar sociólogos, urbanistas, arquitetos e designers de diversas áreas de pesquisa e prática profissional. Entre as definições sobre moradores de rua, destacamos uma mais ampla feita pela pesquisadora da Fundação Ins-tituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), Silvia Schor, responsável pelo cen-so da população em situação de rua em São Paulo, e outra mais específica feita pelo pesquisador e arquiteto José Geraldo Simões Junior. Para Schor4,

a população moradora de rua pode ser definida de forma abrangente ou de maneira restrita. Quando definida de maneira ampla, inclui as pessoas que, sem moradia, pernoitam nos logradouros da cidade, nos albergues ou qual-quer outro lugar não destinado à habitação. Pode compreender, também, pessoas ou famílias que tendo perdido sua moradia por despejo encontram-se alojadas provisoriamente em abrigos públicos, privados ou morando em domicílios de terceiros. É possível incluir, ademais, as famílias residindo em habitações precárias de qualquer espécie.

Para Simões Jr5,

um segmento de população de baixíssima renda que, por contingência tem-porária ou de forma permanente, estão habitando em logradouros públicos

3 Ibid, p. 62; 66

4 2001, p. 2

5 1992, p. 17

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da cidade (praças, calçadas, marquises, jardins, baixos de viaduto), áreas de-gradadas (galpões e residências abandonadas, edifícios em ruínas, carcaças de veículos, etc.) ou ainda, eventualmente, pernoitam em albergues públicos ou privados em´camas quentes´, alugadas.

As características da população de rua em São Paulo, de acordo com o úl-timo censo realizado em 2010, mostra a predominância de uma população adulta e masculina (77,9% são adultos e 79,7% são homens). A maioria vive sozinha na rua, apesar de grande parte dessa população possuir filhos (60%) e terem em algum momento de sua vida uma companheira(o) ou esposa(o). Para Giorgetti, o tratamento que é dado a essa população depende substan-cialmente da forma que a sociedade o representa, um dos cernes da discus-são proposta nesta tese. Como a autora sintetiza:

A responsabilização individual inibe a elaboração de tais políticas, pois trans-fere para o morador de rua o dever de encontrar sozinho soluções para seu problema. Além disso, o conteúdo dos preconceitos veiculados pela socieda-de podem caracterizar as ações realizadas em sua direção. O modo como ele é visto participa da construção de políticas públicas e das ações praticadas pelo conjunto da sociedade. Se houver um consenso na sociedade de que essa questão merece atenção, haverá pressão para que o Poder Público se encar-regue desse problema. Por outro lado, não podemos ignorar que o poder pú-blico também tem um importante papel enquanto formador de opinião, par-ticipando da construção das representações sociais dos objetos das políticas públicas que elabora para a sociedade6.

Como será possível perceber, o escopo das discussões do primeiro capítulo é constituído pela análise de autores que se debruçam sobre as características de “estranhamento”, “perigo”, “refugo”, “anomalia”, comumente atribuídos aos moradores de rua. O segundo capítulo dedica atenção à esfera das prescri-ções, das definições das condutas e dos procedimentos adotados por instân-cias governamentais e promovidos pela mídia em relação a essa população. O terceiro capítulo discute as representações que são instrumentalizadas como suporte para julgamentos e prescrições. O quarto capítulo volta-se para as abordagens projetuais e artísticas, que se distanciam das abordagens de julgamento e prescrição propondo visões alternativas. Por fim, o quinto capítulo consuma o objetivo da tese, descrevendo e apresentando o olhar artístico sobre os moradores de rua. 6 Giorgetti, 2004, p. 25

*Todas as fotos do presente volume foram realizadas pelo autor com exceção das imagens assinaladas nas próprias legendas das figuras.

CAPÍTULO 1

SER DESCARTÁVELUma reflexão sobre o lugar do estranho

representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento

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capitúlo 1 ser descartável | uma reflexão sobre o lugar do estranho

!"#$" $%&'&()*, caracterizam-se como estranhos aqueles que estão va-gando nas cidades sem uma moradia fixa. Nessa precária situação, a proximi-dade e visibilidade que o estranho traz podem oferecer incômodo e repulsa à sociedade dos incluídos {Fig. 1}. A ideia de estranho será discutida através da interlocução de Zygmunt Bauman e de autores que pesquisaram sua obra e trajetória1, pois os consideramos importantes para estabelecer uma refle-xão com base em uma perspectiva contemporânea com as pessoas excluídas. Para Bauman, os estranhos de alguma maneira se definem como deslocados. Assim, procurar-se-á refletir sobre como a desterritorialização dos mora-dores de rua pode causar uma sensação de estranheza. Assim, o presente capítulo busca demonstrar que o estranho vive em um estado contínuo de exterioridade e ausência {Fig. 2}. A pesquisa discute os diferentes conceitos pelos quais um indivíduo pode ser classificado como estranho. Para tanto, destaca-se os seguintes tópicos:

refletir sobre os processos de estranhamento humano não somente como ne-gação da situação dos moradores de rua, tornando-os indivíduos vulneráveis e desprovidos de direitos como cidadãos (pelo preconceito, intolerância e per-seguição), mas como possibilidade de reconhecer sua situação adversa e sua possível contribuição para as comunidades com as quais se relacionam. Sendo assim, apresenta-se a negação do lugar {Fig. 3} ao estranho na sociedade pré-moderna, moderna e pós-moderna, conduzindo-os à condição de subcidadãos;

a proximidade e visibilidade que o estranho traz podem oferecer incômodo e repulsa à sociedade dos incluídos

{Fig. 1 Paris 2012

Fig. 2} São Paulo 2003

Fig. 3} São Paulo 2003

1 Frey, 2003; Tester, 2004; Marotta, 2005

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capitúlo 1 ser descartável | uma reflexão sobre o lugar do estranho

discutir as formulações ou noções de estranho inauguradas pelas leituras de Georg Simmel2 e explorar seus conceitos de proximidade e distanciamento por meio de seus interlocutores3 para refletir sobre o conceito do estado de exceção4 que está enraizado em nosso desenvolvimento histórico, social e cultural;

considerar que a posição de indefinição faz do estranho uma ameaça5, por-que o faz não pertencer a nenhum grupo6 ou comunidade e ter seus direitos suprimidos7. Dessa maneira, será discutido como os moradores de rua têm sua condição existencial prejudicada pela incerteza de sua situação {Fig. 4}, sendo ‘repelidos’ e ‘descartados’ no espaço público {Fig. 5}; indivíduos fora do lugar porque transgridem a noção de ordem e organização8 e que podem oferecer perigo à sociedade9.

2 1983

3 Rogers, 1999; Frey, 2003; Rundell, 2004

4 Agambem, 2002

5 Bauman, 1990; 2001; 2009

6 Bauman, 1999

7 Bauman, 1998; 2004b

8 Cresswell, 1996

9 Douglas, 1991; Bauman, 2009

Fig. 4} São Paulo 2002

Fig. 5 São Paulo 2003

}

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Para Bauman, procura-se aniquilar e banir pessoas que não apresentam um comportamento adequado

{Fig. 6} São Paulo 2002

Para Bauman, procura-se aniquilar e banir pessoas que não apresentam um comportamento adequado {Fig. 6}. Isso se deve, em primeiro lugar, ao fato de certas pessoas serem estranhas. Essa sensação de estranheza é seguida de consequências negativas como a superfluidade, o refugo, a anomalia e o perigo. Poder-se-ia sugerir, seguindo a reflexão de autores como Zygmunt Bauman10 e Mary Douglas11 sobre os processos de estranhamento e de uma sociedade pura e ordenada, que o ciclo de utilidade dos moradores de rua na sociedade pode ser comparado ao ciclo de utilidade de objetos que manipu-lamos no dia a dia: ambos são descartáveis. A ideia de que os moradores de rua são descartáveis tem ressonância com a discussão de Bauman, no livro Vidas Desperdiçadas, de que onde há um projeto de convívio humano que evoca a desordem juntamente com a visão da ordem há refugo. A consequên-cia de tal projeto, as sociedades calcadas em modelos de consumo transfor-mam consumidores falhos, incompletos e imperfeitos12 em dejetos humanos (o autor cita, por exemplo, os desempregados e excluídos). Para o sociólogo, a existência desses indivíduos é negada, transformando-os em indesejáveis, redundantes e inúteis, pois

“para qualquer um que tenha sido excluído e marcado como refugo, não exis-tem trilhas óbvias para retornar ao quadro dos integrantes”13.

As considerações de Bauman14 fazem relação direta com a situação dos mo-radores de rua em São Paulo: segundo o pesquisador, a remoção radical dos dejetos humanos torna-se efetiva pela invisibilidade, por não olhar, pensar e entender o problema dos sem-teto social, ou seja, pode-se refletir que a população de rua se torna redundante pois

“compartilha o espaço semântico de ‘rejeitos’, ‘dejetos’, ‘lixo’ – com refugo. O destino dos desempregados, do ‘exército de reserva da mão de obra’, era serem chamados de volta ao serviço ativo. O destino de refugo é o depósito de deje-tos, o monte de lixo”15.

Portanto, os conceitos desenvolvidos por Simmel, Bauman, Douglas e Agam-bem são relevantes para esta pesquisa para que possamos discutir mais adiante as formas de representação, por meio da fotografia, desses estranhos. O esforço, nesse trabalho, reside na construção de modos de representação das rotinas e rituais que esses estranhos estabelecem em sua vida diária, apresentando suas similaridades com as rotinas e rituais das comunidades consumidoras ditas normais. Nesse trabalho fotográfico, que será descrito em detalhe no capítulo quatro, traz-se como conceito subjacente a noção de performances válidas, de Cloke16.

10 1998, 2004b, 2009

11 1991

12 Bauman, 2004b , p. 22

13 Ibid., p. 25

14 2004b

15 Ibid., p. 20

16 2010

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A PRODUÇÃO DE ESTRANHOS: OS DIFERENTES PERÍODOS HISTÓRICOS

+ ,!$"%"##&!$" refletir que todas as sociedades produzem seus estranhos e cada uma produz seus estranhos de uma maneira específica17. As cidades, por definição, são lugares onde os estranhos se encontram:

“a problemática do estranho se origina, portanto, das situações de contato – desejado, passivo ou renegado – com as quais os indivíduos modernos se confrontam”18.

Apesar da proximidade e da interação por um longo tempo nas cidades, to-dos permanecem estranhos uns aos outros19. Segundo Vince Marotta20, os estranhos podem ser divididos em três momentos históricos: pré-moderno, moderno e pós-moderno. Os estranhos pré-modernos estão distantes social e culturalmente devido à distância física. Portanto, a distância preva-lece sobre o nível físico, social e simbólico. A sensação de proximidade física é compartilhada por grupos pequenos com estilos de vida similares, crenças etc. A construção das cidades medievais muradas, por exemplo, simbolizava os processos de exclusão e inclusão. Os estranhos nessas comunidades eram os fora da lei pela sua situação de não pertencimento e interação com gru-pos aglutinados. Para Bauman21, os estranhos, muitas vezes, não conseguiam permissão para entrar nas cidades pré-modernas e aldeias e, quando con-seguiam, se ficassem por muito tempo eram expulsos. Alguns conseguiam entrar e permanecer por mais tempo e eram familiarizados, domesticados e submetidos a interrogatórios. Nesse sentido, Bauman apresenta um exemplo de como as cidades muradas pré-modernas têm relação com as comunida-des fortificadas pós-modernas, o que será discutido mais adiante:

as invenções arquitetônicas-urbanísticas reconhecidas, enumeradas e espe-cificadas por Flusty são os equivalentes tecnicamente atualizados dos fossos, torreões e canhoneiras das muralhas que cercavam as cidadelas pré-moder-nas. Mas, em vez de defender a cidade e todos os seus habitantes do inimigo externo, foram erigidas para separá-los e defendê-los uns dos outros, agora na condição de adversários22.

Tim Cresswell23, no artigo “-e Vagrant/Vagabond: -e Curious Career of a Mobile Subject”, aponta para a relação dos andarilhos, vagabundos ou men-digos e a mobilidade encontrada na sociedade ocidental diante da separação espacial. Na Idade Média a vadiagem era caracterizada por indivíduos que

17 Mansson in Jacobsen, 2008, p. 157

18 Frey, 2003, p. 10

19 Bauman, 2004a, p. 127

20 2005

21 2004a, p. 128

22 Ibid., p. 132

23 2011

não possuíam casa e vagavam de lugar para lugar sem meios legais para se sustentar. O autor traz o exemplo da preocupação que o Conselho de Berna tinha diante dos pobres que perambulavam pela cidade. Para o conselho, estava excluído de permanecer nos limites da cidade o indivíduo pobre que não fosse cidadão de Berna, caso contrário, a punição era severa. Os decretos de 1483 a 1515 exigiam a expulsão dos errantes, entretanto

em 1527 o Conselho de Berna exigiu de todos pobres merecedores (aqueles pobres que pertenciam a Berna) a vestir insígnias identificando-os como me-recedores de caridade. As autoridades mantinham listas de todos aqueles que vestiam essas insígnias. Em meados do século dezesseis decretos similares poderiam ser encontrados em toda Europa. Em 1530, por exemplo, todos que praticavam a mendicância na Inglaterra deviam carregar um bilhete quando mendigando por caridade24.

Sendo assim, o estranho pré-moderno era frequentemente associado ao desviante, doente, perigoso e indesejável. Tais indivíduos estavam sujeitos a medidas punitivas e legislativas contrárias à sua circulação, limitando e eliminando sua presença nas cidades. A reflexão de Cresswell ajuda a enten-der as raízes históricas da construção de leis particulares contra imigrantes, pessoas pobres etc. A semelhança pode ser verificada hoje nas tecnologias de vigilância contra os pobres globais por meio do passaporte biométrico, da identificação da íris e da impressão digital, e de medidas regulatórias a fim de policiar e separar geograficamente. Retomando à época da Idade Média, os mecanismos de separação e expurgo dos estranhos vinham desde o tempo da lepra. A lepra era uma “figura insistente e temida que não se põe de lado sem se traçar à sua volta um círculo sagrado”25. Segundo Foucault, mesmo quando a lepra foi eliminada das cidades, permaneceram os valores e imagens associados à exclusão e ao isolamento. O lugar abandonado pelo leproso foi ocupado por pobres, vagabundos, presidiários, insanos e pessoas com doenças venéreas. Todos têm o mesmo destino no sistema de punição. A loucura, uma forma de ser estranho, divide espaço com o desvio social. A percepção é de que falta razão às pessoas categorizadas como estranhas – pela rejeição de seu Outro, supostamente normal – pois esses indivíduos vivem de uma maneira errante. É a partir da noção de desrazão (a loucura é a negação da razão), da ruptura de não fazer mais parte de um grupo, que a falta de obediência pode levar à revolta. Para Foucault, a ameaça diante da possível desobediência somada à sensação de desordem fazia com que os indivíduos considerados loucos fossem confiados aos marinheiros; assim evitava-se que seus corpos errantes perambulassem indefinidamente pelos

24 Ibid., p. 240

25 Foucault, 1972, p. 6

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limites da cidade: «é ter a certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisio-neiro de sua própria partida26. Para Pessotti27,

a reclusão de loucos, ou a chamada institucionalização, teve, no curso da his-tória, várias modalidades. A mais antiga era a prática de recolher os loucos, junto com outras minorias sociais, em edifícios mantidos pelo poder público ou por grupos religiosos. Frequentemente tais edifícios eram os antigos le-prosários, antes usados para segregar o leproso em defesa da saúde pública, agora, para abrigar e dar alguma assistência aos marginalizados de todo tipo.

Os mendigos e vagabundos, seguindo o mesmo tipo de tratamento, eram iso-lados e tinham sua identidade negada; sua condição miserável e a prática da mendicância eram imputadas como crime. As teorias jurídicas da época as-sociavam a indigência a delitos que deveriam ser punidos pelo castigo físico:

“tais medidas legislativas fundamentam-se numa concepção da responsabi-lidade do vagabundo que equivale, na realidade, a uma pré-conceituação do indivíduo pobre ocioso como perigo para a ordem social”28.

Os estranhos modernos estão inseridos nas cidades globais que começam a emergir, e também em suas colônias. Para Bauman29, a modernidade “é uma condição da produção compulsiva e viciosa de projetos”. A distância física entre o eu e o outro é reduzida. As distâncias se encurtam pelo desenvolvi-mento capitalista e consequentemente a sensação de estranheza se acentua, sobretudo, frente ao deslocamento de trabalhadores que buscam vagas de trabalho nos grandes centros. Os movimentos migratórios que ocorrem na modernidade fazem com que determinadas populações saiam de seus lu-gares de origem e não retornem mais. Esse fluxo, para Frey30, resulta em um duplo estranhamento, sentido tanto pelo migrante com a falta de familia-ridade em seu novo local de permanência, como para a população nativa que se sente incomodada pela presença de estranhos. Aqueles que são so-cial e culturalmente distantes agora estão próximos: “o estranho moderno, em contraste com o tipo pré-moderno, desestabiliza o limite entre próximo e distante e se torna o paradigmático símbolo da cidade moderna”31. Assim, a proximidade dos indivíduos modernos pode desencadear situações de contato desejadas ou renegadas. Para Frey32 “a modernidade é contraditó-ria, ao mesmo tempo que avança, retrocede”. A incerteza e a diferença crescem diante da percepção do Outro devido à falta de familiaridade e compartilhamento de laços comuns. Os estranhos em comunidades pe-quenas eram a exceção ao invés da regra, fato que nas cidades modernas se torna o oposto pela quantidade e diversidade da população: “a proximi-

26 Ibid., p. 11

27 1996, p. 151

28 Sto!els, 1977, p. 35

29 2004b, p. 41

30 2003, p. 9.

31 Ibid., p. 3

32 Ibid., p.121.

dade, presente na diversidade cultural e social metropolitana, caracteriza a cidade moderna e a ideia de que o estranho moderno se resume neste novo relacionamento espacial”33. David Sibley34 assinala que no século XVIII a separação socioespacial se tornava um traço característico de cidades como Londres, Dublin e Filadélfia. A manutenção de limites ordeiros era susten-tada pelas camadas ricas que temiam a doença e a poluição moral. No sé-culo XIX, as cidades capitalistas evidenciaram tais distâncias “assegurando a persistência em concepções estereotipadas do outro demarcando áreas de pobreza ocupadas por populações ‘desviantes’ e ‘ameaçadoras’”. Para o autor isso acarreta “uma falta de conhecimento refletida em mitos sobre as condições de moradia e o comportamento da classe operária”35. Ainda no século XIX, processos de remodelação das cidades eram desenhados para excluir grupos identificados como poluidores. Esses processos consistiam em criar espaços elegantes para a burguesia, distanciando os pobres das propriedades de valor. Tal progresso econômico impulsionado pela indús-tria moderna produziu e liquidou gente supérflua, pois

se querem que as coisas estejam em ordem, se querem substituir a situação atual por uma ordem nova, melhor e mais racional – vocês acabaram por descobrir que certas pessoas não podem fazer parte dela, e, portanto, é preciso excluí-las, cortá-las fora36.

Portanto, os estranhos são tipos de pessoas, consideradas inferiores e são produzidos em excesso pelas sociedades modernas; espalham-se e ocupam locais onde só deveriam estar pessoas certas, que por sua vez precisam ser protegidas contra os medos e perigos oferecidos por pessoas fora do lugar37

{Fig. 7}. Os estranhos pós-modernos não somente desestabilizam o limi-te entre distante e próximo, mas também reforçam essa fronteira38 {Fig. 8}, porque nas cidades contemporâneas eles experimentam formas de margina-lização e segregação das novas elites globais39 por meio de opressão, controle, vigilância e segurança. Assim, são excluídos de espaços fragmentados como, por exemplo, das comunidades fortificadas e dos shopping centers:

a distância crescente entre os espaços onde vivem os separatistas e o espaço onde habitam os que foram deixados para trás; estas são provavelmente as mais significativas das tendências sociais, culturais e políticas associadas à passagem da fase sólida para a fase líquida da modernidade40.

A tentativa é a de manter esses estranhos afastados dos limites físicos permi-tidos, no entanto,

33 Marotta, 2005, p. 3

34 1995, p. 53

35 Ibid., p. 55

36 Bauman, 2009, p. 80

37 Bauman, 2004a, p. 130

38 Marotta, 2005

39 Bauman, 2009

40 Ibid., p. 28

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capitúlo 1 ser descartável | uma reflexão sobre o lugar do estranho representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento

Portanto, os estranhos são tipos de pessoas, consideradas inferiores e são produzidos em excesso pelas sociedades modernas; espalham-se e ocupam locais onde só deveriam estar pessoas certas, que por sua vez precisam ser protegidas contra os medos e perigos oferecidos por pessoas fora do lugar37

Fig. 7} São Paulo 2003

Fig. 8} Londres 2012

os cidadãos da última fila estão ‘condenados a permanecer no lugar’. Portanto, espera-se que sua atenção – cheia de insatisfações, sonhos e esperanças – di-rija-se inteiramente para as questões locais. Para eles, é dentro da cidade em que moram que se declara e se combate a luta – às vezes vencida, mas com maior frequência perdida – para sobreviver e conquistar um lugar decente no mundo41.

Nesse contexto42, estranho refere-se a todo aquele que não pertence aos modos tradicionalmente aceitos de viver {Fig. 9}. O estranho pode se tor-nar uma variável desconhecida e ameaçadora entre equações calculadas e ordenadas. Para Bauman, isso é possível quando se tomam decisões sobre os modelos de como se comportar, o que fazer e como viver nas grandes cidades. No entanto, apesar dos esforços em expulsar os estranhos dos li-mites da cidade se acentuar cada vez mais, observa-se que os estranhos pós-modernos se recusam a permanecer em ‘terras distantes’ e desafiam a segregação espaço-temporal: “eles extrapolam a inconveniência tempo-rária em ‘não saber como se mover’ em uma paralisia terminal. [Por isso] Eles devem ser interditados, desarmados, suprimidos, exilados fisicamente e mentalmente [...]”43 {Fig. 10}. Pretendeu-se, com essa pontuação his-tórica, destacar alguns pontos que caracterizam as relações de proximidade e distância do estranho em relação ao local que ocupam e às comunidades com que se relacionam. Esse é um cenário a partir do qual se pode refletir sobre como o exercício da cidadania moderna e pós-moderna pode negar os direitos dos moradores de rua, reduzindo-os a subcidadãos44. Serão dis-cutidas no capítulo dois as questões relacionadas aos processos de gentrifi-cação, higienismo, re-desenvolvimento e revanchismo urbano e suas con-sequências em populações excluídas ou estranhas. Por fim, é interessante a reflexão de Bauman45 sobre a segregação espacial como cura para o perigo representado pelos estranhos:

a homogeneidade social do espaço, enfatizada e fortalecida pela segregação espacial, reduz a tolerância de seus moradores à diferença e assim multiplica as possibilidades de reações mixofóbicas, fazendo a vida urbana parecer mais ‘propensa ao risco’ e, portanto, mais angustiante, em lugar de mais segura, agradável e fácil de levar46.

41 Ibid., p. 28

42 Bauman, 2004a, p. 130

43 Bauman, 1990, p. 149

44 Arnold, 2004, p. 54

45 Bauman, 2004a, p. 137

46 Bauman, 2004a, p. 137

os estranhos pós-modernos se recusam a permanecer em ‘terras distantes’ e desafiam a segregação espaço-temporal

Fig. 9 São Paulo 2013

Fig. 10} São Paulo 2002

}

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capitúlo 1 ser descartável | uma reflexão sobre o lugar do estranho

A CONCEITUAÇÃO DO ESTRANHO

“[...] o termo ‘estranho’ poderia significar um indivíduo adulto de nossos tem-pos e civilização que tenta ser permanentemente aceito ou ao menos tolerado pelo grupo do qual ele se aproxima”47.

& ,.&/". do estranho atuou como peça fundamental para entender a di-nâmica da modernidade pela simultaneidade de seus habitantes estarem próximos e distantes48. Segundo Niclas Mansson49, trabalhos acadêmicos sobre estranhos frequentemente dedicam seu conhecimento a Georg Sim-mel, cujos estudos estão baseados nas análises das novas condições espa-ço-tempo apresentadas nas grandes cidades. O estranho surge dentro desta ordem como uma forma social por meio de sua inter-relação ambivalente de pertencimento e não pertencimento. Essa ambivalência ocorre porque um indivíduo pode ser membro de um sistema no sentido espacial, mas não no sentido social50. A análise de Simmel51 enfatiza aspectos positivos do estranho como, por exemplo, a possibilidade de convivência, participação (mesmo que parcial) e cooperação (mesmo fazendo ou não parte do grupo).

o estranho não se apresenta como uma ameaça ao grupo. Ao contrário, a con-frontação com a diferença fortalece o grupo e produz coesão social. É justa-mente o que o estranho tem de diferente o que lhe possibilita distanciamento e objetividade, mostrando-se útil para o grupo52.

No entanto, para Frey, Simmel não abordou os problemas de exclusão social vividos pelos estranhos53, além de não discutir “os desejos individuais, nem necessidades humanas dos estranhos, como, por exemplo, a necessidade co-mum de ser aceito”54. O indivíduo estaria excluído sob um aspecto, mas não sob todos os aspectos. A preocupação de Simmel pode ser sintetizada na defi-nição de estranho e de sua função para a sociedade, apontando que, apesar de ser ambivalente, existe a possibilidade de convívio harmônico55. Seguin-do a definição de Simmel, Rodgers pondera que o estranho é um indivíduo que é membro de um sistema, apesar de não estar fortemente ligado a ele: “os relacionamentos interpessoais dos estranhos com os outros no sistema são caracterizados pela distância social”56 {Fig. 11}. O estranho busca “a liberta-ção de qualquer ponto definido no espaço”57 e surge não somente na figura daquele que chega hoje e parte amanhã, mas também no sentido da pessoa que chega hoje e amanhã fica. Assim pode-se dizer que o turista, o viajante, o imigrante, o refugiado, o vagabundo, o morador de rua são estranhos. Todos possuem a característica de estar sempre em trânsito porque não permane-

Fig. 11} São Paulo 2003

47 Schutz, 1944, p. 499

48 Rundell, 2004

49 apud Jacob-sen, 2008, p. 155

50 Ver Rogers, 1999, p. 61

51 1983, p. 44; 48

52 Frey, 2003, p. 65

53 Ibid., p. 6; 38

54 Ibid., p. 50

55 Ibid., p. 6

56 Rogers, 1999, p. 61

57 Simmel, 1983, p. 182

O estranho surge dentro desta ordem como uma forma social por meio de sua inter-relação ambivalente de pertencimento e não pertencimento. Essa ambivalência ocorre porque um indivíduo pode ser membro de um sistema no sentido espacial, mas não no sentido social.50

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cem no local de sua origem {Fig. 12}. É interessante traçar um paralelo entre a reflexão de Simmel de chegar, partir e ficar com as diversas modalidades de estranhos atuais. O estranho que fica pode compartilhar e dar continui-dade a sua biografia com o grupo ao qual pretende pertencer. O estranho que chega hoje e parte amanhã, por exemplo, pode ser um visitante ou turista. Ele controla o tempo de sua permanência. O turista pode provocar certo desconforto em sua breve passagem de um ponto a outro. O desconforto ini-cial de sua presença é amenizado com sua partida. Não há pertencimento e enraizamento na comunidade. O turista, dessa maneira, é um viajante e pode retornar a sua casa quando desejar. Além disso, o turista é livre para viajar, com algumas restrições, e é frequentemente bem recebido na data de regres-so58. No caso dos moradores de rua – imigrantes ou não (para citar um exemplo, ver a discussão de Marcel Burzrtyn59 de Brasília sobre migração e exclusão) – existe um problema evidente: o fato dessa população fazer parte do grupo de que chega e fica no mesmo local por tempo indeterminado. Os moradores de rua, o vagabundo, o refugiado são obrigados a vagar, viajar e a se deslocar não por sua escolha ou divertimento, mas devido à pobreza, à perseguição, à guerra, à eliminação etc. O tempo para o vagabundo é redun-dante e inútil porque não há nada a fazer com ele60. Para Bauman61:

{Fig. 12 São Paulo 2003

58 Peterson apud Davis e Tester, 2010, p. 16

59 1997

60 Peterson, apud Davis e Tester, 2010, p. 16

61 1999, p. 101

Os estranhos absolutos não possuem casa para a qual retornar. Existe a desconexão com sua casa e seu passado, o estranho absoluto tem a sensação de que sua existência é orientada e definida pelo grupo que o abriga; grupo ao qual ele deseja pertencer.

Fig. 13} São Paulo 2003

Os turistas ficam ou se vão a seu bel-prazer. Deixam um lugar quando novas oportunidades ainda não experimentadas acenam de outra parte. Os vaga-bundos sabem que não ficarão muito tempo num lugar, por mais que o de-sejem, pois provavelmente em nenhum lugar onde pousem serão bem rece-bidos. Os turistas se movem porque acham o mundo a seu alcance (global) irresistivelmente atraente. Os vagabundos se movem porque acham o mundo a seu alcance (local) insuportavelmente inóspito. Os turistas viajam porque querem; os vagabundos porque não têm outra opção suportável.

Na mesma linha de raciocínio, John Rundell62 aponta para a possibilidade de existirem os estranhos condicionais e absolutos. Para o autor, isso se deve à condição existencial de cada um. Os estranhos condicionais podem ser encontrados fora de sua casa ou país, no entanto, seu retorno é poten-cialmente garantido. Sua identidade própria é mantida, pois existe “uma viagem existencial em direção a sua casa, até mesmo se eles são percebidos como estranhos por outros que não os entendem, ou que não participam de sua viagem”63. É a certeza de retorno a sua casa que dá a segurança das próprias percepções como estranho condicional. Os estranhos absolutos não possuem casa para a qual retornar {Fig. 13}. Existe a desconexão com sua casa e seu passado, o estranho absoluto tem a sensação de que sua

62 Rundell, 2004

63 Ibid, 2004, p. 87

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capitúlo 1 ser descartável | uma reflexão sobre o lugar do estranho

existência é orientada e definida pelo grupo que o abriga; grupo ao qual ele deseja pertencer. Retomando a reflexão de Simmel64, o estranho

fixou-se em um grupo espacial particular, ou em um grupo cujos limites são semelhantes aos limites espaciais. Mas sua posição no grupo é determinada, essencialmente, pelo fato de ter introduzido qualidades que não se origina-ram nem poderiam se originar no próprio grupo.

O relacionamento entre o estranho – seja na forma individual ou grupal – e seus arredores é abstrato. Para Rundell65, essas qualidades são abstrações colocadas como base de diferenciação entre nós e eles, pois não são características co-muns do grupo ou do habitus. Arnold66 explica que os modelos binários entre Eu e Outro foram politizados nos tempos modernos e demonstram a repressão em diferenciar ao invés de se erradicar o preconceito que envolve o problema. Tal diferenciação, concentrando a atenção no Outro, pode se transformar na

ocultação do ‘Eu’, da qual as pessoas não têm uma consciência espontânea; não existe senso de pertencimento para um grupo específico, dessa maneira, este grupo sempre permanece fora do esquema de referência, e nunca é refe-rido como parte de um grupo67 {Fig. 14}.

O morador de rua, seguindo esse esquema, é o Outro que falha em incorporar as normas político-econômicas de identidade; pois dentro de um sistema capitalista procura-se reduzir ou construir o Outro nos moldes do Igual ou Idêntico68. A au-tora enfatiza que a representação do Outro morador de rua como familiar é as-sociada a alguém sujo, incontrolável e um fantasma à parte da sociedade: {Fig. 15}

a redução do outro para o igual está implícita na lógica capitalista-econômica de rentabilidade, portanto, de eficiência, e o tratamento dos outros [...] como imigrantes ou moradores de rua são inseparáveis de seu predominante con-texto [...]69.

Os limites espaciais entre os cidadãos incluídos e excluídos ou nós e eles, a priori, são os mesmos. No entanto, os critérios normativos que formam o tipo ideal de indivíduo não permitem a diferença70. Essa diferença é, sobretudo, percebida pela falta de tolerância diante dos mais pobres. Segundo Marotta71, a visão de pessoas diferentes pode levantar o medo e a ansiedade. A diferen-ça é vista como “devastadora e perigosa, a ser excluída e segregada quando possível – de fato, algo a se temer”72. No que se refere a algo a ser contestado, Simmel faz uma possível relação entre o estranho, os indigentes e as variadas espécies de inimigos internos: “são elementos que se, de um lado, são ima-nentes e têm uma posição de membros, por outro lado estão fora dele e o

64 1983, p. 182

65 2004

66 2004, p. 52

67 Colette Guillaumin apud Arnold, 2004, p. 3

68 Arnold, 2004, p. 8

69 Samuel Weber apud Arnold, 2004, p. 8

70 Arnold, 2004, p. 6

71 2005

72 Bannister e Fyfe apud Marotta, 2005, p. 1

{Fig. 15 São Paulo 2002

Fig. 14 São Paulo 2003

}

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capitúlo 1 ser descartável | uma reflexão sobre o lugar do estranho

confrontam”73. Para o sociólogo, o estranho não é proprietário de terra não apenas no sentido físico mas também no figurado (num ponto ideal no am-biente social). Essa pessoa está em constante mobilidade num grupo fechado e “entra em contato ocasionalmente com todos os elementos do grupo, mas não está organicamente ligada com qualquer deles por laços estabelecidos de parentesco, localidade e ocupação”74. Assim, pode-se associar a ideia trazida por Bauman75 do vagabundo como um indivíduo distante e fora do lugar:

é um peregrino sem destino; um nômade sem itinerário. O vagabundo viaja por um espaço não estruturado; como um viajante no deserto, que sabe somente que suas trilhas são marcadas pelas suas próprias pegadas, e que saem voando de novo pelo vento no momento que ele passa, o vagabundo estrutura o lugar que ele passa a ocupar no momento, somente para desmontar a estrutura quan-do ele novamente parte. Cada espaço sucessivo é local e temporário – episódico.

Sendo objeto de distanciamento, os estranhos não são tratados como indiví-duos, mas abstraídos como estranhos de certo tipo. A distância objetiva per-cebida nas metrópoles toma o lugar da empatia subjetiva76. Simmel pondera que o homem que vive na metrópole desenvolve um órgão que o protege de possíveis ameaças e discrepâncias do ambiente externo77. As atitudes blasé pelo excesso de estímulos provocam a alteração dos nervos.

A essência da atitude blasé consiste em discriminar bruscamente. Isto não significa que os objetos não são percebidos, como no caso de uma meio-tes-temunha, mas, ao invés, que o significado e os diferentes valores das coisas, e o resultado das próprias coisas, são experimentados como insubstanciais78.

O estado de indiferença e antipatia faz as estruturas contemporâneas sociais se encerrarem em pequenos círculos “firmemente contra as pessoas próximas, estranhas, ou de alguma maneira de círculos antagonistas”79. A raciona-lidade, o intelecto e a economia monetária acentuam o caráter individual na vida metropolitana em que

todas as relações emocionais entre pessoas são fundadas em sua individuali-dade, uma vez que, em relacionamentos racionais, o homem é contado como um número, como um elemento que é nele mesmo indiferente. Somente o feito objetivo individual é de interesse. Portanto, o homem metropolitano re-conhece sua influência com seus comerciantes e clientes, seus servos domés-ticos e muitas vezes até com pessoas cujo é obrigado a ter uma troca social80.

Assim, as novas configurações espaciais e temporais das grandes cidades de pontualidade, calculabilidade e exatidão provocam uma ansiedade urbana

73 Simmel, 1983, p. 183

74 Ibid., p. 184

75 apud Amster, 2004 p. 44

76 Vidler, 1991, p. 38

77 Simmel apud Wollf, 1950, p. 410

78 Ibid., p. 414

79 Ibid., p. 416

80 Ibid., p.411

estabelecendo relações extremamente complexas e variadas, podendo levar ao caos inextricável81 {Fig. 16}.Os traços de impulso irracional são impossí-veis dentro da cidade “eles são, sobretudo, contrários à vida típica da cida-de”82. Essa nova condição urbana foi definida por Carl Otto Westphal como Agoraphobia e tem como sintomas a palpitação, a tontura, o medo da

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81 Ibid., p. 412

82 Ibid., p. 413

{Fig. 16 São Paulo 2003

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rua83. Para Anthony Vidler84, a “Agoraphobia era identificada não simples-mente como uma aflição do habitante da cidade moderna, mas como uma prova de que as cidades contemporâneas eram em sua forma ruins para a saúde”; verificando que as pessoas experimentavam desconforto e ansieda-de sempre que tinham que andar por espaços amplos vazios, como grandes praças. O autor também faz uma análise da Agoraphobia seguindo a reflexão de Simmel, de que os distúrbios sentidos pelos habitantes das metrópoles são exacerbados pelos efeitos das atividades humanas:

espaços são, portanto, importantes indicações dos processos sociais, da in-teração entre seres humanos concebidos e experimentados como o espaço preenchido. O espaço entre indivíduos, concebido como espaço vazio, tor-na-se imediatamente preenchido e animado pelas relações recíprocas entre indivíduos. Dessa forma um conceito tal como ‘entre’ torna-se um conceito tanto espacial como funcional85.

Diante de relações blasé entre indivíduos pode-se trazer o conceito de esta-do de exceção, de Giorgio Agambem86. Para o filósofo, o processo de exceção “se torna em todos os lugares a regra, o espaço da vida nua, situado origina-riamente à margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espaço político, a exclusão e inclusão, externo e interno”. Ou ainda,

a exceção é uma espécie da exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é excluído não está, por causa disto, absolutamente fora de relação com a norma; ao contrário, esta se mantém em relação com aquela na forma da sus-pensão. A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão87.

O foco no estranho, dessa maneira, recai sobre o que ele não é e o que ele não compartilha dentro da sociedade à qual pertence88, tendo sua exis-tência não conectada e vivendo em permanente exílio89. {Fig. 17} Se-guindo com a reflexão de Agambem, o estado de exceção é ilocalizável e “resulta em uma situação de não poder ser definida nem como uma si-tuação de fato, nem como uma situação de direito, mas institui entre estas um paradoxal limiar de indiferença”90. A partir desses conceitos é possível considerar que os moradores de rua fazem parte de um grupo de estranhos que estão fora do lugar:

é aquilo que não pode ser incluído no todo ao qual pertence e não pode per-tencer ao conjunto no qual está desde sempre incluído. O que emerge nesta

83 ver Vidler, 1991, p. 34

84 1991, p. 35

85 Ibid, p. 39

86 2002, p. 16

87 Ibid., p. 25

88 Mansson apud Jacob-sen, 2008, p. 156

89 Rundell, 2004, p. 87

90 Agambem, 2002, p. 27

figura-limite é a crise radical de toda possibilidade de distinguir com clareza entre pertencimento e inclusão, entre o que está fora e o que está dentro, entre exceção e norma91.

Essa sensação de indiferença é acentuada pela proximidade espacial visível nas comunidades muradas isoladas das metrópoles onde se busca “cada vez mais avidamente a companhia de seus semelhantes”92. Tais ambientes não são capazes de lidar e tratar os estrangeiros pelo medo que eles suscitam.

a exceção é uma espécie da exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da

norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é

excluído não está, por causa disto, absolutamente fora

de relação com a norma; ao contrário, esta se mantém em relação com aquela na

forma da suspensão. figura 40 A norma se aplica à

exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é, portanto,

o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta

da sua suspensão87

91 Ibid., p. 32

92 Bauman, 2009, p. 85

Fig. 17 São Paulo 2002

}

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A REFLEXÃO DE ZYGMUNT BAUMAN SOBRE O ESTRANHO

#"/0!1* $"#$"%93, a sociologia desenvolvida por Bauman não se preocu-pa somente com as abstrações chamadas homem e humanidade, mas com o homem e a mulher ordinários {Figs. 18, 19}. Com tal posicionamento a sociologia ajuda a mostrar que aspectos aparentemente familiares da vida poderiam ser interpretados de uma nova maneira e sob uma diferente luz94. Para Tester, uma das preocupações de Bauman é:

como as estórias e biografias pessoais são modeladas por forças de estrutu-ração social, e em particular como homens e mulheres convivem cara a cara com as contradições em suas próprias vidas e permanecem completamente distantes de uma resolução pessoal ou biográfica95.

A possibilidade do ser humano estaria em transcender essas limitações cria-das por instituições, organizações e estruturas sociais e olhar o mundo como um local onde o exílio poderia ser algo natural96. Seguindo a reflexão de Tes-ter, Bauman não busca recuperar as raízes sociais das circunstâncias con-temporâneas de necessidade no mundo. As vozes silenciadas e excluídas do passado são possíveis na atualidade porque podem criar uma nova maneira de pensar e de existir: “sua recuperação está preocupada em examinar o que no passado poderia dificultar – ou ajudar – na busca pela possibilidade no futuro [...] a sociologia de Bauman está engajada num projeto de criação da possibilidade”97. Sendo assim, a palavra possibilidade deveria ser entendida como uma categoria de um evento que ainda não aconteceu, transcendendo os limites do atual, uma recusa da obrigação dos limites do ser:

possibilidade, dessa maneira, é uma categoria que se aplica exclusivamente ao mundo dos humanos, isto é, ao mundo de eventos denunciados em que a vontade humana pode exercer uma determinada influência98.

A preocupação de Bauman em trazer a discussão do estranho tem, segundo Mansson99,

uma ativa postura contra a injustiça social e o sofrimento humano. Uma das principais contribuições de Bauman para o sociologia do estranho é a de que seu trabalho demonstra a atenção para uma diferente relação estranha não observada na literatura clássica e contemporânea100.

De acordo com o pesquisador, as populações denominadas estranhas com-partilham três características: estranhamento humano, marginalização so-

93 2004

94 Ibid., p. 5

95 Ibid., p. 6

96 Ibid., p. 9

97 Ibid., p. 19

98 Bauman apud Tester, 2004, p. 20

99 2008

100 apud Jacob-sen, 2008, p. 168

cial e exclusão cultural. Essas características se encontram na sociologia de Bauman, que coloca o estranho em um lugar isolado. Para Frey101, o proble-ma com os estranhos na reflexão de Bauman se deve

à formação da identidade. A oposição entre ‘nós’ e ‘eles’ é a base sobre a qual é possível desenvolver o significado da identidade. As delimitações estabelecidas entre o ‘in group’ e o ‘out group’ são fundamentais para a preservação da iden-tidade dos grupos, sobretudo quando existe uma reciprocidade de utilidade.

Tal discussão aponta a dificuldade de adaptação ao que não somos capazes. Tendo em vista o que foi exposto até aqui, considera-se relevante trazer

a definição de desviante criada pelo sociólogo Howard Becker102 diante da oposição entre nós e eles. Segundo tal definição, as regras sociais determinam tipos de comportamentos e situações apropriadas entre o certo e o errado.

Quando uma regra é respeitada, a pessoa que supostamente a transgride pode ser vista como um tipo especial de pessoa, que não pode viver sob as regras definidas pelo grupo. É vista como uma outsider. Mas a pessoa que é rotulada

Figs. 18, 19São Paulo2003

}

101 2003, p. 130

102 1973

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representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento

como um outsider pode ter uma diferente visão do problema, podendo não aceitar a regra pela qual ela está sendo julgada e não concordar com aqueles que a julgam103.

Dessa maneira, Becker propõe uma nova categoria: os desviantes. Esse des-vio, segundo o autor, é uma falência em obedecer às regras de certos grupos:

uma vez postuladas às regras de um grupo a seus membros, pode-se dizer com alguma precisão se alguém violou ou não as regras, e [...] O termo out-sider se refere às pessoas julgadas desviantes e que ficam fora do círculo con-siderado normal por outros membros do grupo: desvio não é uma qualidade de um ato que a pessoa pratica, mas ao invés, uma consequência da aplicação de sanções e regras a um ‘ofensor’. Portanto, desvio é, entre outras coisas, uma consequência de respostas de outros para o ato de uma pessoa104.

Becker questiona que a ideia de desvio pode ser ambígua, “uma pessoa que pode quebrar as regras de um grupo pelo ato de respeitar as regras de outro grupo”105, ou seja, uma regra peculiar a um grupo pode não servir a outro na sociedade, o certo e o errado acabam sendo relativos. Os estranhos são identificados em sociedades multiculturais pelo contraste que estabelecem com a homogeneida-de dos seus habitantes; a diferença do Outro é o que faz a divergência {Fig. 20}. Para explicar tal divergência, Bauman106 usa as formas de associação, por exem-plo, entre amigo e inimigo: “sendo um amigo, e sendo um inimigo, são duas formas com que o outro pode ser reconhecido como outro sujeito”107. A impos-sibilidade de pertencimento com os ‘outros’ faz o estranho estar à parte. Isso se deve ao fato de que o estranho não é amigo e pode carregar maior ameaça que o inimigo. Bauman explica que todos os grupos supraindividuais são processos de coletivização entre amigos e inimigos. A distinção é tão explícita que “os in-divíduos que compartilham um grupo comum ou uma categoria de inimigos tratam uns aos outros como amigos”108 Portanto, os estranhos se encaixam no grupo dos não decididos e tal estado de indeterminação é o que os mantém paralisados “porque eles não são nada, eles podem ser tudo”109. Os não decididos expõem a fragilidade que a separação pode oferecer: “eles trazem o de ‘fora’ para o de ‘dentro’ e contaminam o conforto da ordem com a ameaça do caos”110. A co-municação com o estranho é incoerente porque demonstra a incompatibilidade das regras e o status de confusão. É aconselhável evitar o espaço que os estranhos ocupam ou compartilham por meio do desencontro. “A arte do desencontro é antes de tudo uma série de técnicas de ‘of-ethicalizing’ o relacionamento com o outro. Seu efeito geral é a negação do outro como objeto moral e como sujeito moral”111. Retomando a ideia de proximidade e distância de Simmel, Bauman pondera que a presença do estranho é associada à ameaça porque:

{Fig. 20 São Paulo 2003

103 Becker, 1973, p. 1

104 Ibid., p. 9

105 Ibid., p. 15

106 1990

107 Bauman, 1990, p. 149

108 Ibid., p. 152

109 Ibid., p. 146

110 Ibid., p. 146

111 Ibid., p. 152

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o estranho enfraquece a ordem espacial do mundo: ele trava a coordenação entre a proximidade topográfica e moral, o ‘estar junto’ dos amigos e o iso-lamento dos inimigos. O estranho perturba a ressonância entre a distância física e psíquica – ele está fisicamente perto enquanto distante espiritual-mente. Ele traz dentro do círculo da proximidade um tipo de diferença e estranheza que são antecipados e tolerados somente à distância – onde eles podem ser rejeitados como irrelevantes ou repelidos como desfavoráveis. O estranho representa uma incongruência e, portanto, remarca a ‘síntese de proximidade e distância’112.

Sendo um terceiro elemento, o estranho pode requerer o direito de ser ob-jeto de responsabilidade, atributo do qual os amigos compartilham113. Se-guindo tais ideias de rejeição e responsabilidade – discutidas por Bauman – é relevante trazer a noção de responsabilidade individual pela condição de pobreza. Sobretudo a responsabilidade individual pode ser associada à noção de culpabilidade atribuída aos moradores de rua. Arnold114 explica que a noção de responsabilidade “foi imposta sobre o individual apesar do fato de que tantos elementos importantes da vida são de natureza social ou global. Entretanto, a responsabilidade coletiva e a humanidade foram esquecidas”. A sensação de que o morador de rua é responsável por tal con-dição de pobreza o faz ter o status de culpado. Os moradores de rua são objeto de análise e culpados pelos problemas da sociedade115. Isso se deve pela instabilidade na qual os moradores de rua vivem, pela crença de sua fa-lência moral116. Segundo Giorgetti117, a instabilidade no comportamento dos moradores de rua também está presente no comportamento dos homens comuns. A preguiça e o parasitismo não são características exclusivas na população de rua; elas também podem ser verificadas na população consi-derada normal. Arnold118 pondera que a discussão de que a falta de moradia é um problema individual devido à preguiça, irresponsabilidade ou a um problema patológico é não trazer à discussão e reflexão as mudanças nas políticas de habitação e os efeitos da globalização na economia. Para Camila Giorgetti119, o morador de rua pode estar imbuído da ideia de que ele é o bode expiatório da sociedade. Isso se deve pela condição de fracassa-do e culpado por tal situação; dessa maneira os moradores de rua podem vir a absorver todos os ódios e frustrações da sociedade. Eles estão em débito com a sociedade porque na figura deste Outro político o morador de rua pode se tornar o parasita do sistema e deve permanecer desprovido de assis-tência; tal ideia se relaciona à “responsabilidade individual e à noção de que essa população supérflua é o sanguessuga da sociedade”120 {Fig. 21}. Abby Peterson121 pondera que a sociologia de Bauman se preocupa em trazer à

112 Ibid., p. 150

113 Ibid., p. 148; 149

114 2004, p. 16

115 Ibid., p. 120

116 Ibid., p. 2

117 2004

118 2004, p. 99

119 2004, p. 107

120 Arnold, 2004, p. 54; 165

121 2010

tona a questão moral ‘perturbadora’ da responsabilidade pelo lixo humano. A autora traz algumas perguntas que se consideram relevantes sobre o pro-blema de quem vive na rua: “Mas quem os quer? Quem aceita responsabi-lidade por eles? Se nós não precisamos deles, se seu trabalho não é exigido, por que nós deveríamos assumir o fardo de cuidar deles?”122 {Fig. 22}.

o estranho enfraquece a ordem espacial do mundo: ele trava a coordenação entre a proximidade topográfica e moral, o ‘estar junto’ dos amigos e o isolamento dos inimigos. O estranho perturba a ressonância entre a distância física e psíquica – ele está fisicamente perto enquanto distante espiritualmente. Ele traz dentro do círculo da proximidade um tipo de diferença e estranheza que são antecipados e tolerados somente à distância – onde eles podem ser rejeitados como irrelevantes ou repelidos como desfavoráveis. O estranho representa uma incongruência e, portanto, remarca a ‘síntese de proximidade e distância’112.

122 Peterson apud Davis e Tester, 2010 p. 19

Fig. 21} Walker Evans, Havana 1933

Fig. 22} São Paulo 2003

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O ESTRANHO QUE SE TRANSFORMA EM REFUGO HUMANO

Ser ‘redundante’ significa ser extranumerário, desnecessário, sem uso – quais-quer que sejam os usos e necessidades responsáveis pelo estabelecimento dos padrões de utilidade e de indispensabilidade. Os outros não necessitam de você. Podem passar muito bem, e até melhor, sem você. Não há uma razão autoevidente para você existir nem qualquer justificativa óbvia para que você reivindique o direito à existência. Ser declarado redundante significa ter sido dispensado pelo fato de ser dispensável123.

&!&(,#&!1* * pensamento de Claude Lévi-Strauss, Bauman explica que existem duas estratégias no que se refere à necessidade de enfrentar a al-teridade dos outros: antropoêmica e antropofágica. Segundo o sociólogo, a sociedade moderna tende a: “vomitar os estranhos, bani-los dos limites do mundo ordeiro e impedi-los de toda comunicação com os do lado de dentro”124 {Fig. 23}. Para Peter Beilharz125, essas duas estratégias são com-binadas pelos regimes políticos ao invés de escolher uma entre elas. As variáveis extremistas da estratégia antropoêmica para Bauman são o en-carceramento, a deportação e o assassinato, além das formas refinadas de segregação do outro por meio da separação, do acesso espacial e do impe-dimento seletivo ao seu uso, temas que serão discutidos no capítulo dois. A estratégia antropofágica consiste na aniquilação ou na suspensão do outro

123 Bauman, 2004b, p. 20

124 Bauman, 1998, p. 29

125 apud Davis e Tester, 2010, p. 66

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através da desalienação: “´ingerir´, ´devorar´ corpos e espíritos estranhos de modo a fazê-los, pelo metabolismo, idênticos aos corpos que os inge-rem, e portanto não distinguíveis deles”126. Essa estratégia pode ser possível transformando o desconhecido em conhecido e eliminando a diferença entre eles e nós127. Isso se deve, para Samuel Weber, à tendência capitalista de reduzir ou construir o Outro nos termos do Igual ou do Idêntico128. Portanto, para Bauman, a modernidade tentou criar um mundo livre dos estranhos pelas estratégias antropoêmica de exclusão e antropofágica de assimilação. A criação dos estranhos também é feita pela sociedade por meio das normas e regras, e transgredir os limites do aceitável faz do transgressor uma anomalia – “os estranhos eram uma anomalia a ser reti-ficada”129. A palavra ordem impera a fim de eliminar o mal-estar provoca-do por pessoas que rompem os costumes tradicionais agindo de maneira não regular. Essas pessoas desajustadas não podem ser reparadas, o autor conclui que: “não se pode livrá-las de seus defeitos: só se pode deixá-las livres delas próprias, acabadas, com suas inatas e eternas esquisitices e seus males”130 {Fig. 24}. Em suma, dentro desta ótica, o morador de rua poderia ser visto como um problema a ser eliminado. Bauman vai adiante em suas considerações sobre a produção de estranhos como pessoas passíveis de serem descartáveis pela sociedade moderna: tratam-se de pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo. Para o soció-logo: “eles obscurecem e tornam tênues as linhas de fronteira que devem

126 Bauman, 2001, p. 118

127 Mansson apud Jacobsen, 2008, p. 165

128 Arnold, 2004, p. 8

129 Bauman, 1998, p. 30

130 Ibid., p. 29

Fig. 24} São Paulo 2003

{Fig. 23 São Paulo 2003

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capitúlo 1 ser descartável | uma reflexão sobre o lugar do estranho representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento

ser claramente vistas; se, tendo feito tudo isso, geram a incerteza, que por sua vez dá origem ao mal-estar de se sentir perdido”131. O sociólogo aponta uma reflexão interessante que pode ser associada aos moradores de rua. Segundo o autor, onde existe projeto existe refugo, ou seja, o que sobra da construção ou de uma reforma são dejetos indesejáveis que necessitariam ser banidos e varridos do local {Fig. 25}. Seguindo a mesma linha de pensa-mento, o autor observa que:

[...] quando se trata de projetar as formas do convívio humano, o refugo são os seres humanos. Alguns não se ajustam à forma projetada nem podem ser ajustados a ela, ou sua impureza é adulterada, e sua transparência, turva [...] Seres inválidos, cuja ausência ou obliteração só poderia beneficiar a forma projetada, tornando-a mais uniforme, mais harmoniosa, mais segura e ao mesmo tempo mais em paz consigo mesma132.

Por sua vez, Douglas133 defende o uso das palavras anomalia e ambiguidade como sinônimos. A anomalia para autora: “é um elemento que não se insere numa dada série ou num dado conjunto; ambiguidade caracteriza os enun-ciados que se podem interpretar de duas maneiras”. Segundo a autora, qual-quer cultura deveria confrontar-se com as anomalias que transitam em seu sistema. Quanto mais compatíveis são essas ideias com o passado, maior resis-tência em modificar as estruturas de nossas suposições. Para Douglas, nossa percepção já têm registradas classificações de maneira ordenada, refutando o que não pertence ao nosso esquema de ideias já construídas. “Negativamente, podemos ignorá-las, percebê-las, ou ainda percebê-las e condená-las. Positi-vamente, podemos enfrentar deliberadamente a anomalia e tentar criar uma nova ordem do real onde a anomalia se possa inserir”134. A autora tam-bém traz a noção de desordem relacionada à de impureza e enfatiza que a im-pureza absoluta só existe aos olhos do observador, sendo uma ideia relativa. Douglas prossegue sua discussão apontando que a impureza é uma ofensa contra “a ordem: eliminando-a, não fazemos um gesto negativo; pelo contrá-rio, esforçamo-nos positivamente por organizar nosso meio”135. Sendo assim, a impureza faz parte de um sistema, sendo passível de uma organização e de uma classificação da matéria. Se por um lado existe um conjunto de relações ordenadas, por outro, existe a subversão desta ordem; a transgressão. A sujeira faz relação direta com a impureza porque é algo que vai contra a ideia de or-ganização, está ‘fora do lugar’ {Fig. 26}. Para Douglas:

no processo de imposição de uma ordem qualquer, seja ao pensamento, seja ao mundo exterior, a atitude perante os fragmentos e as parcelas rejeitadas passa

131 Ibid., p. 27

132 Bauman, 2004b, p. 42

133 1991, p. 52

134 Ibid., p. 53

135 Ibid., p. 14

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{Fig. 25 São Paulo 2002

Fig. 26 São Paulo 2013

}A sujeira faz relação direta com a impureza porque é algo que vai contra a ideia de organização, está ‘fora do lugar’

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por duas fases; primeiro consideram-se fora do seu lugar; ameaçam a boa or-dem das coisas e, portanto, são repreensíveis e vigorosamente repelidos. Nesse estado ainda possuem um resto de identidade: são fragmentos indesejáveis da coisa a que pertenciam; cabelos, alimentos; invólucros. É nestes estados que são perigosos; a sua semi-identidade agarra-se a eles e a sua presença compro-mete a pureza dos lugares onde são intrusos. Mas um longo processo de pulve-rização, de dissolução e de empobrecimento aguarda todas as físicas impuras. No fim, toda a identidade sumiu. As origens esquecidas reúnem-se à massa dos dejetos comuns. Ninguém quer vasculhar nestes desperdícios em busca de alguma coisa, o que equivaleria a ressuscitar a identidade. Desprovidos de identidade, os dejetos não são perigosos e nem sequer são objetos de percep-ções ambíguas. Ocupam um lugar bem definido em um monte de lixo136.

Cresswell137, apoiando-se na reflexão de Douglas – no que se refere ao resíduo do lixo, poluição etc. – aponta que seu significado muda mediante sua locali-zação. A sujeira fica suscetível ao próprio desencontro de significados “que são erroneamente posicionados em relação a outras coisas. Coisas que transgri-dem se transformam em sujeira, elas estão no lugar errado. Se não houvesse ‘lugar errado’, não poderia existir transgressão”138. Portanto, o indivíduo passa a ser transgressor por que está ‘fora do lugar’, sujeito à preexistência de um sis-tema, de um modo de classificação. A ideia da palavra lugar se remete ao cor-reto: “alguma coisa ou alguém pertence a um lugar e não pertence a um outro [...]”139, esse lugar para Cresswell está associado às expectativas de comporta-mento na relação de um com o outro. Assim os comportamentos considera-dos inapropriados em uma locação particular se tornam ações ‘fora do lugar’ e evidenciam a existência de uma geografia ‘normativa’140. “Uma posição na estrutura social para ações ‘No’ lugar. Nesse sentido ‘lugar’ combina o espacial com o social – é o ‘espaço social’”141. Os moradores de rua podem ser vistos como transgressores no espaço público ‘social’, no momento em que suas ati-vidades consideradas ‘impróprias’ de ocupação e permanência são visíveis em locais ‘apropriados’ somente para circulação: “claramente diferentes grupos de pessoas têm diferentes ideias sobre o que é e o que não é apropriado, e estas diferentes ideias são traduzidas dentro de diferentes geografias normativas”142.

Pode-se dizer, seguindo a ideia de impureza e de estar fora do lugar, que os moradores de rua passam a ser um contingente de pessoas rejeitadas que se tornam supérfluas e excluídas de maneira permanente, são descartáveis:

como todos sabem, conceito de superfluidade não implica qualquer promessa de melhora, de remédio, de indenização. Não, nada disso. Uma vez supérfluo, sempre supérfluo {Fig. 27}. Há uma palavra cruel, desumana, que foi inven-

136 Ibid., p. 186

137 1996

138 1996, p. 38

139 Ibid., p. 3

140 Ibid., p. 10

141 Ibid, p. 3

142 Ibid., p. 10

{Fig. 27 São Paulo 2003

143 Bauman, 2009, p. 83

144 Ibid., p. 22

145 Ibid., p. 23

146 Douglas, 1991, p. 118

tada nos Estados Unidos, mas difunde-se pela Europa como um violento in-cêndio: ‘subclasse’, ou subclasse. Ser ‘subclasse’ significa estar definitivamente fora do sistema de classes; portanto, não é alguém de uma classe inferior, al-guém que está lá embaixo, para quem – observem – ainda existe uma escada, e podemos acreditar que conseguirá subi-la, se receber ajuda. Ser ‘subclasse’ significa estar fora, excluído143.

Prosseguindo com a reflexão de Bauman, isso se deve ao fato de que essas pes-soas não saberiam tornar-se úteis à sociedade nem depois de reabilitadas. Os moradores de rua excluídos do mercado de trabalho enfrentam a condição de superfluidade e des-emprego: “(termo que implica um desvio da regra, um inconveniente temporário que se pode – e se poderá – remediar); equivale a ser recusado, marcado como supérfluo, inútil, inábil para o trabalho e conde-nado a permanecer ‘economicamente inativo’” {Fig. 28}. O autor categoriza essas populações pela percepção que a sociedade tem da existência de ‘classes perigosas’144. Esse contingente de pessoas em excesso tende a ser excluída em uma “via de mão única [...] É pouco provável que se reconstruam as pontes queimadas no passado. E são justamente a irrevogabilidade desse ‘despejo’ e as escassas possibilidades de recorrer contra essa sentença que transformam os excluídos de hoje em ‘classes perigosas’”145. Douglas também pondera que o perigo pode haver “quando o indivíduo não tem lugar no sistema social, quando é, em uma palavra, marginal, cabe aos outros, parece, tomarem as de-vidas precauções, precaverem-se contra o perigo. O indivíduo marginal nada pode fazer para mudar a sua situação”146. Seguindo com a reflexão de Dou-glas, os fenômenos anômalos podem ser qualificados como perigosos, ou seja, aquele que não está em seu lugar se torna um indivíduo impuro: “o impuro,

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capitúlo 1 ser descartável | uma reflexão sobre o lugar do estranho

o poluente, é aquilo que não pode ser incluído se se quiser manter esta ou aquela ordem”147. Ordenar dessa maneira significa repelir os elementos impu-ros, banir qualquer coisa que não está no seu lugar: “concebemos a impureza como uma espécie de compêndio de elementos repelidos pelos nossos siste-mas ordenados. A impureza é uma ideia relativa”. Bauman também discute o caráter obsessivo da noção do conceito de ordem:

A luta pela ordem não é a luta de uma definição contra a outra, de uma ma-neira de articular a realidade contra uma proposta concorrente. É a luta da determinação contra a ambiguidade, da precisão semântica contra a ambiva-lência, da transparência contra a obscuridade, da clareza contra a confusão. A ordem como conceito, como visão, como propósito, só poderia ser concebida para o discernimento da ambivalência total, do acaso do caos. A ordem está continuamente engajada na guerra pela sobrevivência. O outro da ordem não é uma outra ordem: sua única alternativa é o caos. O outro da ordem é o mias-ma do indeterminado e do imprevisível. O outro é a incerteza, essa fonte e ar-quétipo de todo medo. Os tropos do ‘outro da ordem’ são: a indefinibilidade, a incoerência, a incongruência, a incompatibilidade, a ilogicidade, a irracionali-dade, a ambiguidade, a confusão, a incapacidade de decidir, a ambivalência148.

As nossas impressões, portanto, são organizadas por meio daquilo que nos interessa e pelo acúmulo de experiências, ordenando nossas suposições em categorias preestabelecidas. Selecionamos fragmentos do que vemos e jul-gamos o que é certo e errado. Segundo Douglas149, é dentro desse caos de impressões efêmeras que construímos “um universo no qual os objetos têm uma forma reconhecível, uma permanência e se situam numa perspectiva bem definida”. Portanto, pode-se sugerir que a condição de incerteza que emerge dentro de novas configurações espaciais nas grandes cidades en-volve indivíduos próximos e distantes. Esses indivíduos estão submetidos a seguir maneiras corretas de viver. O rigor e a inflexibilidade no julgamento do que seja viver corretamente produzem uma população estranha, exce-dente, supérflua e descartável. Essa condição de incerteza segundo Bauman, é permanente e irredutível. Sendo assim, não é interessante aceitar modos de vida cultivados pelos estranhos em nossa volta porque essa ‘diferença’ destoa dos modelos uniformes e homogêneos culturalmente aceitos, é mais fácil abandonar essas pessoas e deixá-las resolver seus próprios problemas:

cada vez mais, ser pobre é encarado como um crime; empobrecer, como um produto de predisposições ou intenções criminosas – abuso do álcool, jogos de azar, drogas, vadiagem e vagabundagem. Os pobres, longe de fazer jus a cuidado e assistência, merecem o ódio e condenação – como a própria encar-nação do pecado150.

147 Ibid., p. 55

148 Bauman, 1999, p. 14

149 1991, p. 51

150 Bauman, 1998, p. 59

Fig. 28 São Paulo 2001

equivale a ser recusado, marcado como supérfluo, inútil, inábil para o trabalho e condenado a permanecer ‘economicamente inativo’

}

CAPÍTULO 2

SER ELIMINÁVELA interdição e a anulação do corpo

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capitúlo 2 ser eliminável | a interdição e a anulação do corpo representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento

Fig. 3 São Paulo 2012

}

Fig. 2 São Paulo 2012

}

!"#! $%&'#()* +%)% sobre os aspectos de eliminação que cercam os mora-dores de rua: eliminação de direitos, eliminação política e por fim a própria eliminação física, fatores que viabilizam ou facilitam a negação do espaço e consequentemente a eliminação do corpo do morador de rua nas grandes cidades {Fig. 1} . Os principais pontos que destacamos são:

como o poder é ativado por meio da interação entre estruturas sociais, ins-tituições e indivíduos reprimindo as minorias ‘destituídas de voz e de ação’1. Os moradores de rua podem ser submetidos a viver desprovidos de direitos dado que são reconhecidos apenas por representações e modelos de discur-sos que reforçam estereótipos ligados à exclusão dos meios de comunicação (jornal e televisão) e da sociedade2. O corpo do morador de rua é frequen-temente representado como degenerado, sendo associado a adjetivos como ‘doente’, ‘sujo’, ‘assustador’3. Procuraremos discorrer sobre como tais repre-sentações reiteram a distância social, a miséria, o perigo, a culpa e a falência individual dos moradores de rua. Além disso, a falta de cidadania reconheci-da pode conduzir os moradores de rua ao nível de ‘subcidadãos’4 desprovidos de efetivos direitos, tornando-se pessoas extremamente vulneráveis; diante desses processos de negação da condição em viver na rua podemos refletir sobre a possível ameaça de eliminação física e moral, e no direito dos mora-dores de rua que ocupam os espaços públicos;

como as práticas de controle e de organização por meio da normatização so-cial administram a vida das pessoas e criam padrões de comportamento e de produção por meio da ‘ortopedia do corpo social’5. Procuraremos investigar como ações por meio da biopolítica (política e social) – conceito desenvol-vido pelo filósofo Michel Foucault em História da Sexualidade6 – interagem favorecendo a interdição e o controle do corpo por meio da vigilância e da repressão dos moradores de rua em albergues. Vivendo nos espaços públicos alguns moradores de rua tornam-se extremamente vulneráveis e estão sujei-tos a formas diretas de exclusão, perseguição e eliminação {Fig. 2}; analisaremos a negação dos direitos dos moradores de rua pela separação ou extinção geográfica, por meio da criação de políticas públicas de anula-ção de sua atividade e de seu corpo. Para demonstrar tais medidas repres-sivas, discutimos os conceitos de higienismo, gentrificação, NIMBY (not in my backward)7, revanchismo urbano e arquitetura ‘antimendigo’ {Fig. 3}. As análises de leituras de Davis8, Smith9, Mitchell10, Dear e Flusty11 sugerem que desde a década de 1990 até os dias de hoje ações punitivas e controla-doras tanto do Estado como da sociedade acumulam-se sobre a vida dos moradores de rua.

O corpo do morador de rua é frequentemente representado como degenerado, sendo associado a adjetivos como ‘doente’, ‘sujo’, ‘assustador’3. Procuraremos discorrer sobre como tais representações reiteram a distância social, a miséria, o perigo, a culpa e a falência individual dos moradores de rua

1 Arnold, 2004; Giorgetti, 2004

2 Giorgetti, 2004

3 Arnold, 2004; Giorgetti, 2004

4 Arnold, 2004; Giorgetti, 2004

5 Foucault, 1978

6 1978, p. 139-145

7 A síndrome NIMBY é a abreviação de Not in My Backward (Não no meu jardim) e será discutida no decorrer do capítulo.

8 1990

9 1996

10 1997, 2003

11 1998

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capitúlo 2 ser eliminável | a interdição e a anulação do corpo representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento

A REPRESENTAÇÃO TEXTUAL E NÃO TEXTUAL DO CORPO DOS MORADORES DE RUA

Os discursos são as lentes através das quais, a cada época, os homens percebe-ram todas as coisas, pensaram e agiram; elas se impõem tanto aos dominantes quanto aos dominados, não são mentiras inventadas pelos primeiros para do-minar os últimos e justificar sua dominação12.

Em contraste, o ‘morador de rua problema’ como ele aparece hoje no domi-nante discurso da mídia e da política não é visto como um problema econô-mico ou que a sociedade que produz a falta de abrigo; ao invés, é visto como um problema que o morador de rua cria para a economia e para a sociedade em que ele vive13.

* ,*-%.*- .! -(% tem sua vida exposta constantemente diante da ne-cessidade de sobreviver nos espaços públicos. Pela constante exposição e permanência nos logradouros públicos podemos dizer que interações são criadas com a cidade, com as estruturas sociais e instituições. Dessas in-terações são produzidas imagens e representações. Stuart Hall14conceitua a representação como a produção de significado dos conceitos em nossas mentes através da linguagem. É o link entre conceito e linguagens que nos permite falar sobre o mundo ‘real’ dos objetos, pessoas e eventos, ou mun-dos imaginários de objetos, pessoas e eventos fictícios [...]. Segundo o pes-quisador, os ‘sistemas de representações15’ formam conceitos de coisas que percebemos, ainda que nunca as tenhamos visto, podendo transformar as práticas representacionais em ‘estereótipos’16. A mídia, dessa maneira, pode contribuir para perpetuar imagens estereotipadas e imprecisas das pessoas mais pobres17. Assim, discutiremos como morador de rua é representado como parasita, perigoso e um cidadão destituído de direitos. A não ob-servância de seus direitos faz do morador de rua ser eliminado fisicamente e moralmente dentro das metrópoles. Diante desse quadro de vulnerabili-dade, Martin Gilens18 aponta em seu estudo que as distorções cometidas por revistas e programas de televisão americanos coincidem com mal en-tendidos que refletem negativamente sobre a população pobre negra. Em estudo sobre a representação fotográfica dos pobres em revistas america-nas, Clawson e Trice19 descrevem que termos como criminosos, alcoólatras e drogados são utilizados por diversas mídias e que os pobres são asso-ciados a comportamentos patológicos nos centros urbanos . Sendo assim, é importante refletir sobre como os repertórios de representação trazem discursos sobre a ‘diferença’ e o ‘Outro’ nas sociedades contemporâneas de

maneira equivocada, “envolvendo sentimentos, atitudes e emoções e como ela mobiliza medos e ansiedades no espectador [...]”20. Dentro desse contexto, é interessante trazer a tese de doutorado da socióloga Camila Giorgetti21 sobre as representações do problema do morador de rua em São Paulo. Buscaremos entender a maneira institucional e individual com que esses indivíduos são tratados e vistos dentro da sociedade de maneira pre-conceituosa. Giorgetti faz uma análise das representações dos moradores de rua no Brasil e na França por meio dos jornais22, das leis e dos valores associados a essa população. Os instrumentos de análise foram realizados por meio de entrevistas com médicos, políticos, policiais, agentes de casas de convivência, albergues e transeuntes. Para Giorgetti23, “ao privilegiarmos a opinião da sociedade sobre o problema do morador de rua, procuramos mudar o enfoque do problema, atribuindo maior peso ao papel da socie-dade no processo de exclusão social”. A tese buscou trazer a intensidade e o conteúdo das representações em relação ao preconceito – uma mediação da exclusão social – tanto negativo como positivo com relação à população de rua. Os moradores de rua estão em interação com a cidade, a sociedade e o poder público. Dessas interações são produzidas imagens e pré-concei-tos; essas imagens orientam as ações e atitudes da sociedade acerca de tal população, em sua maior parte de maneira negativa. Giorgetti destaca que pode haver um julgamento antecipado sobre os moradores de rua, que se desdobra em características excludentes dependendo do grau de afetivida-de do processo, e que essa discriminação tem relação direta com o poder. Para Martine Xiberras24 o excluído não é banido apenas das riquezas ma-teriais, mas também das espirituais pela falta de reconhecimento de seu valor, “ele possui um daqueles atributos negativos que, de toda a maneira, o classifica na categoria do estigma, a categoria negativa”. O excluído ocupa um espaço em falta ou negativo, um ‘mau lugar’. {Fig. 4} É importante neste momento apresentar uma breve descrição de representação social para entendermos como o morador de rua é visto de maneira ‘negativa’ e ‘equivocada’. A representação social pode ser constituída pelas relações das condições econômicas, históricas e sociais com os clichês, julgamentos, expressões prontas, etc. Segundo Moscovovi25:

uma representação social é uma ‘preparação para a ação’, não somente por-que guia o comportamento, mas sobretudo porque remodela e reconstitui os elementos do meio no qual o comportamento se manifesta’. Atribuindo um sentido ao comportamento, consegue integrá-lo numa rede de relações [...]. Fornecendo ao mesmo tempo as noções, as teorias e as observações que tornam essas relações estáveis e eficazes.

12 Veyne, 2011, p. 50.

13 Kawash, 1998, p. 320

14 1997, p. 17

15 Para Hall esses sistemas não são sistemas indivi-duais, “mas dife-rentes maneiras de organizar, colocar junto em grupos e classificar conceitos, e estabelecer relações complexas entre eles”. (1997, p. 17)

16 Ver Hall, 1997, p. 225

17 Para Sibley, “as representações da mídia são em sua maioria fictícias, construções ima-ginárias, mas elas são motivadas pelas mesmas imagens estereotipadas de pessoas e lugares que emergem em conflitos sociais envolvendo comu-nidades dominantes e minorias ‘desvian-tes’”. (1995, p. 60)

18 1996

19 2000, p. 54

20 Hall, 1997, p. 226

21 2004

22 Folha de São Paulo e Le Monde

23 2004, p. 32

24 1996, p. 17

25 apud Giorgetti, 2004, p. 49

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Fig. 4 São Paulo 2012

}

No caso dos moradores de rua, verifica-se uma representação preconceituo-sa caracterizada pelas oposições: ‘vagabundo-trabalhador’, ‘perigoso-inofen-sivo’ etc.. O preconceito para a autora é um mediador para exclusão social supondo um julgamento antecipado e prematuro resultando em atitudes excludentes26. Xiberras27 pondera que certas formas de representações cole-tivas não detêm assim, no próprio seio da sua sociedade, nenhum estatuto, nenhum reconhecimento, tal como se não existissem. No Brasil, segun-do Giorgetti, os veículos de comunicação de massa constituem o meio mais poderoso para dar visibilidade às representações, “a ponto de modificar tal forma de se tratar os moradores, muitas vezes enraizada na estrutura da so-ciedade”28. A autora acredita que as mídias selecionadas exerçam influência na opinião principalmente das classes média e alta29. Assim, sua pesquisa abordou notícias que ilustrassem as duas grandes tendências apontadas em sua tese: “a visão higienista e repressiva e a visão baseada na afirmação da cidadania e dos direitos da população de rua”30. Em sua pesquisa (feita com o levantamento de notícias pelo jornal Folha de São Paulo) assinala que os moradores de rua são denominados como mendigo desde 1963 e que esse termo não desapareceu até os dias de hoje (pesquisa de 2004): os termos revelam como essa população é representada no imaginário da sociedade brasileira, já que denominar é tornar tangível os elementos que participam das representações31. A pesquisadora faz uma análise da evolução dos termos mais usados pelo jornal e assinala que de mendigo, catador para os termos de morador de rua e sem-teto observa-se uma importante transformação:

1. O problema habitacional passa então a ser identificado como o maior problema do indivíduo que está nas ruas.

2. O fato de estar nas ruas deixa de ser, no nível das representações, um problema de ordem individual para se tornar um problema coletivo”32.

A análise das notícias levou Giorgetti a concluir que não há preocupação entre os artigos do jornal em dissociar o morador de rua dos antigos cli-chês de parasita e responsável pela sua própria situação33. Há uma ênfase em demonstrar o morador de rua e seu estilo de vida como algo exótico: “nota-se em um número considerável de notícias publicadas pela Folha que os jornalistas, autores de tais matérias, deixaram transparecer em seus textos o sentimento de estranhamento provocado pela sua presença nos espaços públicos34. A autora considera que os problemas sociais dos moradores de rua aparecem com ‘pano de fundo’ nas notícias e que, ao invés de denunciar o desrespeito a seus direitos, exalta-se a aspecto exótico da vida quem levam, “exagerando traços de sua personalidade e transformando-o num ser que

Os moradores de rua estão em interação com a cidade, a sociedade e o poder público. Dessas interações são produzidas imagens e pré-conceitos; essas imagens orientam as ações e atitudes da sociedade acerca de tal população, em sua maior parte de maneira negativa.

26 Giorgetti, 2004; Arnold, 2004

27 1996, p. 20

28 2004, p. 104

29 Ibid., p. 88

30 Ibid., p. 105

31 Ibid., p. 100

32 Ibid., p. 101

33 Ibid., p. 137

34 Ibid., p. 151

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se difere dos demais segmentos da sociedade sobretudo por causa de suas características individuais”35. Segundo Giorgetti, o jornal Folha de São Paulo difundiu dois tipos de representação social sobre os moradores de rua ao en-fatizar esse lado ‘exótico’ e citar o alcoolismo, por exemplo, como o principal fator pelas mortes ocorridas no inverno:

1. O morador de rua é um individuo à parte da sociedade; 2. O morador de rua é responsável pela sua situação36.

Costa37, assinala que no Rio de Janeiro o imaginário social, quando se reflete sobre a condição de se morar na rua, é o de que essas pessoas são culpadas e inúteis para a sociedade. A autora chega a essa conclusão baseada na aná-lise das cartas dos leitores do jornal O Globo no período de 2006 a 2010. O morador de rua é representado por meio dos comentários dos leitores como sendo o responsável por sua situação ociosa e que consequentemente vem a perder seus direitos quando se recusa a procurar uma ocupação no mercado de trabalho38. A pesquisadora constata que:

[...] a expectativa dos leitores com relação à responsabilidade e a uma solução pelo Estado é uma separação nítida entre o indivíduo e o Estado como di-mensões distantes. Acerca das soluções, pôde-se verificar a não relação entre indivíduos e moradores de rua, entendidos estes como um grupo diferen-ciado e não necessariamente digno de direitos. As soluções sugeridas para o Estado revelam explicitamente – e muitas vezes implicitamente – a falta de autonomia atribuída a estas pessoas e a subsequente subumanidade com que são definidas. São seres passíveis de migração forçada, internação, esteriliza-ção e até mesmo morte. São considerados incômodos, bandidos ou futuros bandidos e representam um perigo em termos de convivência social39.

Essa representação do Outro de forma negativa como fraco, vagabundo, peri-goso, e um problema individual também é discutida por Arnold40, Anderson e Snow41 e Amster42. As representações em direção aos moradores de rua não mostram a complexidade da situação e a diversidade da população de rua, “focando em patologias individuais que servem para classificar indivíduos e transformá-los em casos burocráticos”43. A imagem do morador de rua na cultura americana pode ser frequentemente associada ao modelo do sujeito bêbado ou de pessoas de idade falando sozinhas. Para Arnold44, esse tipo de representação está enraizada desde o início do século pela mídia, literatura e pelas leis. Essa visão paradigmática pode originar mitos e estereótipos que podem refletir no medo do desconhecido. Segundo a autora este retrato da população de rua pode levar a:

1. uma imprecisa imagem de quem são realmente os moradores de rua, desta maneira, essencializando suas identidades;

2. uma amostra de pequena porcentagem da população de rua atual;3. criminalização dos moradores de rua por meio da retórica e política, jus-

tificada pelas suas alegadas patologias45.

Em uma pesquisa relacionada à imagem dos moradores de rua na mídia televisiva, Min46 discute que a representação dos moradores de rua não é precisa. Para o pesquisador eles são retratados como drogados, loucos, doen-tes etc., essa é uma perspectiva de ‘culpa da vítima’. As imagens são tão típi-cas que os telespectadores podem se perder diante de tal significação: “estas imagens são de fato obstáculos para melhor compreender os moradores de rua, é essencial permitir que os moradores de rua descrevam suas próprias condições e discursos para fornecer uma precisa e equilibrada descrição dos moradores de rua”47. Kramer e Lee descrevem o morador de rua moderno como um ser invisível, pois ele não aparece na memória coletiva como uma entidade burocrática. Ninguém se importa ou se responsabiliza por eles48. O estudo feito por Lind e Danowski revela que os noticiários e os programas informativos na televisão tratam o morador de rua de forma ‘extensivamente estigmatizada’:

a apresentação do morador de rua como doente mental e/ou usuários de substâncias, envolvido em atividades criminais e sendo um pobre de saúde (frequentemente com doenças contagiosas) é comum [...] os moradores de rua dessa maneira se passam como estranhos, assustadores, sujos, criaturas necessitadas, que não parecem merecer nossa simpatia, mas que estão sempre buscando alguma coisa49.

A imagem do morador de rua sempre está competindo com uma realidade questionável. Dentro desse paradigma, a mídia e as políticas governamen-tais participam na construção de quem merece assistência (ou não) e res-ponsabilidade (ou não): “aqueles estão desabrigados por desastres naturais, por exemplo, são geralmente considerados merecedores e responsáveis, enquanto aqueles que estão desempregados ou fugitivos caem sobre a ir-responsabilidade e o não merecimento”50. Existe a ideia de que o morador de rua é um fenômeno e um problema individual51. Portanto, não são os moradores de rua que evocam essa imagem de ameaça, perigo, loucura e sujeira, isso se deve à incompreensão da mídia e da política em construir uma imagem equivocada de quem vive na rua52. Para Lind e Danowski, é difícil encontrar formas de resolver os problemas dos moradores de rua enquanto mitos e estereótipos forem difundidos53. Clair e Wasserman54

35 Ibid., p. 163

36 Ibid., p. 179

37 2010, p. 19

38 Ibid., 2010, p. 24

39 Ibid., p. 106

40 2004

41 1998

42 2004

43 Arnold, 2004, p. 12

44 Ibid., p. 87

45 Ibid., p. 87

46 1999, p. 121; 124; 126

47 Ibid., p. X; 95; 121

48 apud Min, 1999, p. 136

49 apud Min, 1999, p. 118

50 Arnold, 2004, p.89. Ver também Anderson e Snow, 1998, p. 9

51 Arnold, 2004, p. 126

52 Ibid., p. 54

53 apud Min, 1999, p. 119

54 2010, p.145

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Fig. 5 São Paulo 2012

}apontam que o conceito de falta de moradia claramente tem ‘conotações negativas’. Para os pesquisadores, as representações da palavra “‘homeless’ enunciam noções de problemas mentais e pessoas drogadas sem esperança que vagam pelas cidades empurrando carrinhos e dormindo nos bancos de parques ao invés de conseguir um emprego”. A influência dos estigmas que recaem sobre os moradores de rua faz essa população se tornar ainda mais problemática. Isso reflete na própria consciência que o morador de rua tem em como a sociedade o representa. Os moradores de rua têm consciência da imagem equivocada que o público tem sobre eles, como exemplo, de que eles são pessoas que se recusam a trabalhar55. A representação entre os moradores de rua ocorrem também de acordo com sua constituição. Anderson e Snow56 observam que famílias que vivem na rua, crianças e mulheres são tratadas de maneira mais simpática do que moradores de rua do sexo masculino com idade mais avançada: “os moradores de rua homens tendem a ser tratados como menos merecedores que os outros”. Sendo assim, através de imagens verbais e visuais enraizadas em nossa cul-tura, os moradores de rua – sendo indivíduos ou seres sociais – são repre-sentados de forma negativa; passam a ser pessoas ameaçadoras e perigosas, culpadas pela sua própria situação. Os moradores de rua permanecem em um ‘limbo’ social. A falta de políticas assistenciais para tratar e reintegrar essa população e a ausência de equipamentos urbanos para manutenção de sua higiene pessoal e moral os faz entrar em um processo de degradação física e moral cada vez mais presente pela sujeira, o mau cheiro, a agres-sividade, a loucura etc. O sociólogo Julien Damon – um dos principais pesquisadores de moradores de rua na França – discute a aquilo que ele chama de visão equivocada e ignorante que se pode ter dos moradores de rua. Sendo uma população heterogênea e em constante deslocamento, Da-mon57 enfatiza que “os conhecimentos ainda são frágeis e, sobretudo, eles permanecem relativamente confinados dentro de círculos especializados”, ou seja, não se sabe exatamente quem são os moradores de rua: “a varie-dade de discursos, atitudes, crenças e representações são elevadas”58, e em como descrever com exatidão as ações relacionadas às políticas públicas. Damon aponta para variedade dos discursos: para alguns o problema dos moradores de rua é evidente e emergencial, para outros sem nenhuma im-portância. Dentro desse contexto, é visível que o abandono de moradores de rua nas cidades contemporâneas cresce cada vez mais pelo esforço de organizar e repelir comportamentos considerados ‘estranhos’ em espaços públicos. Os moradores de rua ficam fadados a conviverem com o ‘status’ de subcidadãos desprovidos de direitos.

é visível que o abandono de moradores de rua nas cidades contemporâneas cresce cada vez mais pelo esforço de organizar e repelir comportamentos considerados ‘estranhos’ em espaços públicos. Os moradores de rua ficam fadados a conviverem com o ‘status’ de subcidadãos desprovidos de direitos.

55 Ibid., p. 118

56 1998, p. 9

57 apud Xiberras, 1996, p. 4

58 Ibid., p. 5

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A SUBCIDADANIA DOS MORADORES DE RUA

A condição de subcidadania é importante para fundamentar uma forma de controle social pela vistoria privada da vida das pessoas. O mundo da desor-dem, o imaginário social que constrói um discurso que esquadrinha a mistu-ra de sexos e idades, a desorganização familiar, a moralidade duvidosa, os há-bitos perniciosos, olhando estes locais como focos que fermentam os germes da degenerescência e da vadiagem e daí o passo para a criminalidade. Ou seja: a condição de subcidadania como morador das cidades constitui forte matriz que serve para construir o diagnóstico da periculosidade59.

% ./0!-"/.%.! ! complexidade em se tratando de moradores de rua pode abranger: albergados, andarilhos, carroceiros, mendigos, nômades, moradores de rua temporários, pedintes profissionais etc. Como vimos na seção anterior, a sociedade tem uma postura predominantemente negativa no que se refere ao problema de quem vive na rua: subjaz a ideia de que morador de rua bus-cou o seu próprio fracasso, dessa maneira, ele deve encontrar caminhos por si próprio para sair dessa situação. Tais tipos de atitudes negativas reforçam a posição de subcidadão ocupada pelos moradores de rua. A reação excludente da sociedade confronta-se com a afirmação de Bauman de que não é possível reparar pessoas que já estão desajustadas e que desenvolveram diversas ano-malias: é mais fácil deixá-las nessa condição. O tempo de rua é outro fator agravante na vida dessas pessoas. Para a pesquisadora Maria Vieira60 existem três momentos na vida de quem vive na rua: 1º ficar na rua – situação cir-cunstancial em que o indivíduo não possui nenhum vínculo com a rua, reflete um estado de precariedade de quem, além de estar sem recursos para pensão, não consegue vaga em albergue. Nesse momento a rua oferece medo e vergo-nha; 2º estar na rua – situação recente, os vínculos com a rua começam a se estreitar, o indivíduo reconhece pontos de distribuição de comida e melhores locais para dormir e expressa a situação daqueles que, desalentados, adotam a rua como local de pernoite e já não a consideram tão ameaçadora. Começam a estabelecer relações com pessoas da rua e conhecer novas alternativas de sobrevivência; 3º ser da rua – situação permanente, pois muitos moradores de rua podem desenvolver um estilo de vida considerado ‘estranho’ quando estabelece vínculos e cria novos costumes no espaço público, a rua ser tor-na espaço de moradia de forma praticamente definitiva, ainda que ocasio-nalmente possa haver alternância com outros lugares de alojamento, como pensões baratas, albergues, depósitos de papelão e casas de parentes. Neste contexto a rua ganha cada vez mais importância. Segundo Borin61, quanto

mais tempo na rua maior a inserção nas redes sociais que a própria rua ofe-rece: “novos hábitos passam a ser incorporados, os códigos são decodificados e até mesmo o medo e a vergonha que existem inicialmente se enfraquecem ou mesmo deixam de existir {Figs. 6 e 7}. Outro aspecto que torna ainda mais difícil a vida de quem vive na rua é a perda do documento de identificação. A ausência desse documento resulta, na prática, na anulação de direitos, e na negação de sua identidade como cidadão; há um distanciamento do mundo oficial. A pesquisa da FIPE realizada em 2010 aponta que mais da metade da população de rua não possui nenhum tipo de documento: o que as exclui da vida civil, deixando de ter direitos e de serem reconhecidas como cidadãos. Outros têm alguns documentos, mas é alta a proporção dos que não têm do-cumentos essenciais como a carteira de identidade, o CPF, título de eleitor e carteira de trabalho62. O morador de rua não possui endereço fixo e para conseguir uma vaga de trabalho é exigido o comprovante de residência e um documento de identificação. O processo de pedido de segunda via é custoso (para quem não possui renda), longo e em alguns casos leva-se meses para encontrar o registro de nascimento dessas pessoas em suas cidades natais63.O fato dos moradores de rua não alcançarem os critérios econômicos vigentes os fazem se tornar inimigos da sociedade e “uma potencial ameaça à unidade doméstica e a segurança nacional”64. Arnold pondera que os moradores de rua são deslocados para o status de não cidadãos e destituídos de poder. Para Giorgetti65, quanto maior o fosso entre as classes sociais, mais difícil fica a conquista de privilégios. Esse fosso social contribui para uma maior discri-minação em direção aos moradores de rua, no aumento do preconceito de forma negativa, além da pouca possibilidade dos moradores de rua possuírem a sua cidadania reconhecida. Segundo Arnold66, o paradigma dominan-te pelo qual os moradores de rua são representados é atribuído à negação em reconhecê-los como cidadãos. Fazendo uma relação entre a cidadania e a representação, Arnold67 aponta que é impossível os moradores de rua ob-terem direitos igualitários como cidadãos plenos. Isso se deve ao fato de que o morador de rua é percebido como predominantemente dependente e não faz nenhuma contribuição econômica para a sociedade. A situação comum de dependência de serviços de assistência social em que vivem os moradores de rua leva à perda dos direitos e à entrada em um espaço ‘não democrático’. Outra autora que explica o problema da universalidade da condição da cida-dania e da responsabilidade social do Estado em relação à população excluída é a assistente social Aldaíza Sposati. Para Sposati68, a exclusão é a negação à cidadania. É relevante trazer a definição de cidadania que Sposati cunhou no mapa da exclusão/inclusão social69 como sendo: [...] a possibilidade do reco-

59 Kowarick, 2009, p. 85

60 1992, p. 92-94

61 2003, p. 50

62 Ver: Principais resultados do perfil socioeconômico da população de moradores de rua da área central da cidade de São Paulo. Silvia Maria Schor e Maria Antonieta da Costa Vieira. Facul-dade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FIPE), 2010, p. 10.

63 Essas observações são feitas baseadas no trabalho volun-tário realizado por 4 anos do autor. A organização não go-vernamental “Asso-ciação Beneficente Benedito Pacheco” trabalha de segunda a quinta-feira no Viaduto Condessa de São Joaquim em São Paulo. O trabalho da ONG visa reintegrar o morador de rua por meio da retirada de documentos e de internações em clínicas de desintoxicação e reabilitação, enca-minhamentos para serviços odontológi-cos e médicos, além de oferecer refeições e cobertores para população em situação de rua. Dis-ponível em: <www.turmadasopa.org.br> Acesso em: 20 ago.2011.

64 Arnold, 2004, p. 9

65 2004, p. 53

66 2004, p. 12

67 Ibid., p. 46

68 1998, p. 3

representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento

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Fig. 6 São Paulo 2012

} Fig. 7 São Paulo 2012

}

Fig. 8 São Paulo 2012

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nhecimento do direito ao acesso a um conjunto de condições e usufruto de bens e serviços como parte do padrão de dignidade humana e vida coletiva solidária a todos os membros de uma sociedade70 {Fig. 8}. O patamar de uni-versalidade da cidadania no Brasil não foi atingido nem pela sociedade – que a autora destaca em primeiro lugar – tampouco pelo Estado. Sposati defende a tese de que enquanto a sociedade civil não elaborar um projeto solidário na consolidação das garantias sociais não se avançará as garantias mínimas de padrões de dignidade entre seus pares: sem dúvida, o Estado e o gover-no, enquanto sua forma de administração, devem consolidar e regular tais garantias. Todavia sua efetivação é decorrência da exigência da sociedade71.

Giorgetti entende que o conceito de cidadania plena é dividido por dois momentos: “a consciência dos direitos e a capacidade de reivindicá-los”72. É extremamente importante a reivindicação dos direitos pelos moradores de rua para obter a liberdade para agir e pensar. No Brasil, a questão da cidadania é marcada por extremos. Segundo Giorgetti, ou as pessoas são extremamente a favor dos moradores de rua e de sua cidadania ou são radicalmente contra73. A socióloga chegou a essa conclusão baseada na construção dos conceitos de cidadania absoluta e cidadania relativa:

quanto maior o fosso entre as classes sociais, mais difícil fica a conquista de privilégios. Esse fosso social contribui para uma maior discriminação em direção aos moradores de rua, no aumento do preconceito de forma negativa, além da pouca possibilidade dos moradores de rua possuírem a sua cidadania reconhecida

69 De acordo com Sposati o mapa consistia em uma “metodologia de análise georeferen-ciada dos territórios de uma cidade através de variáveis que medem o grau de desenvolvimento humano, equidade, qualidade de vida, autonomia, demo-cracia e cidadania”. (1998, p. 7)

70 2000, p. 30

71 1998, p. 6

72 2004, p. 267

73 Ibid., p. 391

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ser descartado, ser elimidado, ser válido: novas abordagens sobre os moradores de rua

Fig. 10 Polônia, Krakóvia 2012

}Fig. 9 Marrocos, Moulay Idris, 2013

}

1. Cidadania absoluta: a capacidade de se sensibilizar e de interpretar as necessidades do outro, e de se colocar à disposição dele, mobilizando todo tipo de recurso para que tenha maior visibilidade e participe da vida pública, alcançando a autonomia para lutar por tudo aquilo que considera justo.

2. Cidadania relativa: que não se realiza de modo efetivo, serve como ins-trumento ora para legitimar uma ordem desigual, ora para camuflar o desejo de higienismo, que elevado no seu mais alto grau, contradiz o ‘politicamente correto’, ou o socialmente admissível nas sociedades con-temporâneas. Assim, admite-se o ‘direito a ter direitos’, mas sob determi-nadas condições74.

A noção de cidadania relativa é apresentada na análise que a socióloga faz sobre as notícias publicadas sobre moradores de rua no jornal Folha de São Paulo que mencionamos anteriormente. O jornal publica notícias sobre hi-gienismo individual (atitudes de extermínio e de intolerância) e coletivo (as medidas repressoras da Prefeitura de São Paulo como a projetos e arquitetu-ra antimendigo)75. Nas já referidas entrevistas realizadas com médicos, a au-tora chega à conclusão de que a noção de cidadania entre esses profissionais não atingiu sua plenitude. Essa situação é evidente por atitudes antagônicas extremistas entre a cidadania absoluta e a ‘subcidadania’76. Os médicos re-presentam os moradores de rua como um problema pessoal e os associam ao álcool e a criminalidade, reduzindo os moradores de rua ao conceito de cidadania relativa. A violência exercida pelos policiais também serve de in-dicador de cidadania relativa além da “ideia de que os moradores de rua perturbam a sociedade expressa sobretudo a opinião dos policiais e revela a sua tendência em associar o morador de rua à uma imagem negativa”77. As instituições sociais pesquisadas também se afastam do conceito de cidadania absoluta, submetendo os moradores de rua à condição permanente de de-pendência, controle excessivo e inferioridade:

as noções de liberdade e autonomia, que constituem o fulcro para o exercício da cidadania plena permanecem, em algumas instituições, destituídas de sen-tido. Entendemos por autonomia a capacidade de tomar decisões de acordo com o próprio arbítrio, assumindo todas as consequências dos seus atos. À ideia de autonomia contrapõe-se a ideia de dependência. A fim de exercer plenamente a sua cidadania, o indivíduo não deve depender de nenhuma ins-tituição ou pessoa78 {Figs. 9 e 10}.

Dentro das normas e critérios estabelecidos pela sociedade como o tipo ideal de cidadão não há espaço para diferença. Assim, os moradores de rua são su-

74 Ibid., p. 54

75 Ver Giorgetti, 2004, p. 105-119

76 A subcidadania é notada quando os médicos se recusam a atender os mora-dores de rua.

77 Ibid., p.210

78 Ibid., p. 266

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jeitos destituídos de poder democrático79. Justamente pela ‘indiferença’ é que os moradores de rua são representados como não cidadãos. Xiberras80 apon-ta que a indiferença é em boa medida devida ao ritmo das situações da vida urbana possuírem uma diversidade de maneiras de viver, de concentração de imagens mutáveis, além do afastamento do olhar: desta atomização interior e desta indiferença generalizada pode nascer facilmente um sentimento de desconfiança, que se transforma rapidamente em aversão, repulsão, conflito e ódio. Essas situações resultam numa incapacidade de reagir e numa indife-rença face às coisas e às pessoas. Os valores são vãos, as cores da cidade e dos seus habitantes são baças e cinzentas.

FORMAS DE CONTROLE POR MEIO DA BIOPOLÍTICA E BIO-PODER

[...] verificamos que a maior parte das sociedades históricas estabeleceram uma distinção entre os membros de pleno direito e os membros com um esta-tuto à parte. A exclusão fazia então parte da normalidade das sociedades, sem levantar casos de consciência moral ou política, a não ser quando suscitasse a misericórdia sob o signo da virtude da caridade. As sociedades modernas, desde o momento em que foram sacudidas pela ideologia revolucionária, al-teraram completamente as antigas estruturas mas, sob o pretexto de pôr fim às exclusões, reabilitaram-nas de uma outra maneira81.

[...] os membros de um grupo dominante que têm um maior poder econômico deterão o poder de traduzir seus prejulgamentos em uma discriminação em relação aos membros dos grupos minoritários que, concomitantemente, terão menos poder para resistir a ela [...] Assim as questões de preconceito e de discri-minação deveriam escapar das considerações puramente psicológicas para con-duzir a uma análise do poder, em particular do poder político e econômico82.

"!1(2.* .%2%3!- !# %).83, o biopoder “analisa, regula, controla, explica e define o sujeito humano, seu corpo e comportamento”, ou seja, o biopoder procura dominar as ideias e regular o pensamento das pessoas tornando-as ‘dóceis’. Revel84 explica que o termo biopolítica pode significar:

[...] a maneira que o poder tende a se transformar, entre o fim do século XVIII e o início do século XIX, a fim de governar não somente os indivíduos através de um certo número de procedimentos disciplinares, mas os grupos de seres vivos constituídos em populações. A biopolítica – através dos biopoderes lo-cais – se ocupa da gestão da saúde, da higiene, da alimentação, da sexualidade, da natalidade etc.

Por meio da biopolítica existe um processo de governar os indivíduos atra-vés de uma ‘ortopedia social do corpo’, de ordenar a distribuição de corpos individuais dentro do espaço social por dispositivos disciplinares. Segundo Danaher et al.85, os dispositivos disciplinares – prisões, manicômios, fábricas, escolas etc. – são instituições europeias que emergem no século XIX para manter e modelar corpos e mentes dos habitantes por meio da disciplina. É importante distribuir esses corpos em um espaço que seja possível iso-lar e/ou reparar dentro de um aparelho de produção de exigências próprias. O indivíduo passa a ser um produto dos procedimentos disciplinares:

79 Arnold, 2004, p. 1; 6

80 1996, p. 72-73

81 Xiberras, 1996, p. 7

82 Billig apud Giorgetti, 2004, p. 52

83 2000, p. IX

84 2005, p. 164

85 2000

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[...] mas podemos sem dúvida ressaltar esse tema geral de que, em nossas sociedades, os sistemas punitivos devem ser recolocados em uma certa ‘eco-nomia política’ do corpo: ainda que não recorram a castigos violentos ou san-grentos, mesmo quando utilizam métodos ‘suaves’ de trancar ou corrigir, é sempre do corpo que se trata – do corpo e de suas forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua repartição e de sua submissão. Mas o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais86.

Cada norma corresponde à aparição de biopoderes sobre a vida particular dos indivíduos e estão ligadas às formas de governar populações pela ges-tão política, econômica e às tecnologias de comportamento. Nesse sentido, a vulnerabilidade dos moradores de rua não é apenas física, mas sobretudo política. Na direção contrária da cidadania absoluta discutida anteriormen-te, os moradores de rua estão sujeitos aos regimes de poder por meio de medidas disciplinares e punitivas, como: vigilância, coerção, encarceramen-to, expulsão e eliminação. Dessa maneira, consideramos relevante trazer o conceito de biopoder criado pelo filósofo Michel Foucault, que evidencia os esforços por controlar determinadas populações. Dentro deste contexto é importante trazer a reflexão dos modelos do discurso e dominação apre-sentados por Michel Foucault por meio da interlocução de Kathleen Arnold sobre os moradores de rua. A noção de biopoder, para Arnold87, “é um poder normativo que foi desenvolvido enquanto as populações e territórios cres-ceram – captura a dupla noção destas dinâmicas de poder no estado liberal capitalista”. De acordo com a pesquisadora, as intervenções governamentais por meio do assistencialismo aos moradores de rua (albergues) e a literatura científica dedicada à população de rua podem ser formas de biopoder88. As medidas autoritárias, as leis, e as políticas punitivas que giram em torno dos moradores de rua nos Estados Unidos levam essas populações a ‘um limbo político e legal’89. Com isso os moradores de rua ficam em situação de extre-ma vulnerabilidade não apenas pela negação de seus direitos, mas também pela separação e extinção geográfica {Fig. 11}: “quanto menos dinheiro uma pessoa pode ganhar, mais ela é percebida como alguém que tem a necessi-dade de direcionamento, punição, reforma, ou aniquilação. As disciplinas – a mídia e as forças acadêmicas e sociais – reforçam este espaço do outro para aqueles que estão deslocados”90. Kasper apresenta a hipótese de que a biopolítica contemporânea é exclusiva e privilegia apenas uma pequena elite. Os que não têm a possibilidade de contribuir e ingressar no sistema capita-lista transformam-se em ‘peso morto’ {Fig. 12}:

Fig. 12 São Paulo 2012

}Fig. 11 São Paulo 2012

}

86 Foucault, 1975/1999, p. 25

87 2004, p. 6

88 Ibid., p. 107

89 Ibid., p. 127

90 Ibid., p. 163

Na direção contrária da cidadania absoluta discutida anteriormente, os moradores de rua estão sujeitos aos regimes de poder por meio de medidas disciplinares e punitivas, como: vigilância, coerção, encarceramento, expulsão e eliminação.

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é sua própria vida que incomoda, acusada de consumir recursos (sociais ou naturais conforme a escala, da cidade ao continente) sem acrescentar nada à riqueza dos ricos. Para arriscar uma metáfora animal, a multidão deixou de ser rebanho para se tornar enxame. E o trato preconizado passa assim da cria-ção ao extermínio, na medida em que a preocupação vem se voltando para o excesso de população91.

Assim, a biopolítica resulta no direito de punir aquele que não segue o mo-delo estabelecido como ‘padrão’ seguido por cidadãos ‘normais’92. Para de-monstrar as experiências que o Outro excluído experimenta dentro de insti-tuições ‘não democráticas’ de poder, Arnold examina a forma arquitetônica do panóptico criada por Jeremy Bentham. A autora faz possíveis relações com o tratamento dos pobres e a falta de liberdade entre os moradores de rua que convivem dentro de instituições sociais quando: “a síntese do poder social e burocrático se converte em uma estrutura como um panóptico, um centro de vigilância. Esta síntese leva a um espaço que permite um controle detalhado e próximo [...] um albergue é construído de maneira similar93. O ‘panopticismo’ pode ser entendido pelo esforço em reprimir, moldar, refor-mar e até destruir o ‘indesejável’ Outro94 ‘estranho’. No Brasil, as instituições que deveriam reabilitar os moradores de rua tratam o problema de forma assistencialista com práticas higienistas e sanitaristas, como discutiremos abaixo. Assim, busca-se remover essas pessoas das ruas pelo possível risco de ameaça e perigo que elas podem oferecer.

CONTROLE, CONFINAMENTO E REPRESSÃO: A DEPÊNDENCIA DO SERVIÇO SOCIAL

A miséria material, e todas as privações que dela decorrem, reduz os seres humanos a uma condição aviltante e produz um mal-estar inigualável. A es-sas sensações terríveis somam-se as humilhações que algumas instituições sociais tendem a incentivar, estabelecendo um sistema rígido de regras que apenas serve para lembrar ao morador de rua a sua inferioridade. Ao tolher a sua liberdade, controlando e reprovando suas iniciativas, agem como se ele tivesse cometido uma falta irreparável. Famintos, sujos e cheirando mal, são vistos como dignos de seu próprio labéu. Nesse sentido, a aplicação de regras nas instituições sociais parece uma forma de punição e de legitimação da sua condenação moral e física. Além disso, as regras geram uma sensação de apri-sionamento que leva invariavelmente ao sufocamento e à revolta95.

% $*2./45* .! ser pobre é vista como um problema a ser resolvido in-dividualmente. Podemos dizer com essa afirmação que os moradores de rua são vistos como responsáveis por viver em uma condição de miséria e marginalidade. Arnold explica em seu estudo que a sociedade tem uma ideia de que se essas pessoas tentassem realmente procurar um emprego elas obteriam êxito de alguma maneira. Estas atitudes também estão espa-lhadas em diversas instâncias do poder político abordando o problema em ser morador de rua como “natural ao invés de político ou econômico”96. Isso traz consequências que levam os moradores de rua a serem ignorados e despolitizados, levando a um modelo binário reducionista entre limpo/sujo, responsável/irresponsável, e independente/ dependente. Nesse senti-do, Arnold explica que este modelo binário expõe uma estrutura de poder que “criou uma relação assimétrica entre o mainstream e os moradores de rua e dessa forma, cidadão e não cidadão. Em efeito, eles são um Outro familiar: um sujo, incontrolável, e entre a média da maiora dos cidadãos, um fantasma falido”97. Graham98 observa que grupos marginalizados fre-quentemente dependem de instituições e serviços sociais, no entanto, pon-dera que tais instituições acentuam a estigmatização e isolamento dos seus usuários. Muitos moradores de rua procuram e tentam viver em albergues. Para Arnold99, o ambiente para o morador de rua que escolhe viver no sistema de albergamento é hostil. O tipo de ajuda do qual os mo-radores de rua são submetidos nas instituições sociais americanas pode ser autoritária e punitiva sendo representada por características disciplinares. Arnold enfatiza que, como uma instituição penal, o albergue é um local de

91 2004, p. 194

92 Arnold, 2004, p. 128

93 Ibid., p. 115

94 Ibid., p. 128

95 Giorgetti, 2004, p. 270

96 2004, p. 270

97 Ibid., p. 7

98 2001, p. 289

99 2004, p.1;114

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documentação, controle e vigilância, onde os indivíduos devem ser mol-dados e confinados como em prisões ou hospitais para doentes mentais.

Seguindo a crítica linha de raciocínio de Arnold nos Estados Unidos, Giorgetti descreve que nas instituições brasileiras se reproduz a rigidez das prisões e de que nada “escapa ao seu controle”100. Esse fato colabora para que os moradores de rua se sintam ainda mais oprimidos. O número de moradores de rua que vivem nos albergues de São Paulo é de 7.079 pessoas, essa população denominada como ‘acolhida’ conta com 51,8% de ocupação em instituições públicas contra 48,2% de moradores preferem pernoitar na rua101. O esquema de controle e opressão pode ser observado pelo núme-ro de regras e horários impostos aos moradores de rua. Muitos albergues permitem que os moradores de rua somente fiquem em determinados ho-rários no período noturno. Durante o dia, seja no inverno ou com tempo chuvoso, o morador de rua deve encontrar ocupação e proteção por conta própria fora do albergue. Arnold relata que os moradores de rua nos Es-tados Unidos são acordados diariamente com as palavras: “levante, é hora de sair; por favor, não deixe nenhum de seus pertences ou fiquem na fren-te da instituição”. Os moradores de rua também recebem ‘ultimatos’ para conseguir um trabalho ou arrumar outro espaço para dormir102. “De fato, os sistemas que ajudam os moradores de rua (albergues) podem ser fre-quentemente erráticos, desorganizados, e patológicos”103. Alguns albergues seguem como regra geral a obrigação do banho para ser aceito dentro da instituição. Frangella104 aponta casos em que os funcionários de albergues forçam os moradores de rua a tomarem banho. Segundo Giorgetti:

as noções e liberdade e autonomia, que constituem o fulcro para o exercício da cidadania plena permanecem, em algumas instituições, destituídas de sen-tido. Entendemos por autonomia a capacidade de tomar decisões de acordo com o próprio arbítrio, assumindo todas as consequências dos seus atos. À ideia de autonomia contrapõe-se a ideia de dependência. A fim de exercer plenamente a sua cidadania, o individuo não deve depender de nenhuma ins-tituição ou pessoa105.

Isso pode nos trazer como contraponto à imagem de que Michel Foucault106 discutia em Vigiar e Punir quando se tratava o corpo como superfície de ins-crição de suplícios e penas. O corpo deve ser reformado e punido. Segundo Revel107, os exemplos de controle que aparecem no século XIX tem o intuito de gerir renda pela racionalização do trabalho industrial, pela vigilância do corpo na força de trabalho:

o corpo deve ser corrigido e vigiado porque eles abruptamente se torna-ram úteis, porque eles entraram diretamente no processo de produção da riqueza ou ainda no sistema de encarceramento onde [...] a prisão existe dentro de uma sociedade que visa à formação de ‘ indivíduos submissos’. A sociedade disciplinar funciona sobre o principio da reclusão [...] Mas não basta encarcerar, é preciso enquadrar por meio de um esquadrinhamento do espaço real e simbólico: um lugar exato para cada indivíduo, um codi-ficação funcional das células, uma classificação dos indivíduos segundo a categoria [...]108.

O sistema e a rigidez de regulamentos que são impostos aos moradores de rua podem transformar esses espaços de convivência ‘em verdadeiros cárceres’ {Fig. 13} “ao estimularem a dependência em relação aos serviços sociais e ao adotarem uma metodologia que leva invariavelmente à in-fantilização, [negando] ao morador de rua a possibilidade de desenvolver sua autonomia”109. Giorgetti explica que a função da instituição social é a de dar um tratamento institucional que não abale a autoestima seja na instituição, seja em qualquer outro lugar ou na circunstância em que ele se encontrar110. No entanto, no contexto paulistano, ao menos, observa-se que muitas instituições em São Paulo se afastam do conceito de cidadania, submetendo os moradores de rua pela negação de sua participação na sociedade, colocando-os em uma condição de permanente dependência:

A dependência contribui para difundir entre os moradores de rua sentimen-tos de opressão e a diminuição da autoestima, que pouco tem a ver com o respeito e a solidariedade, ou a capacidade de interpretar as necessidades do outro coletivo; o apego excessivo às regras pode constituir em muitos casos um empecilho para o trabalho social – desviando-se de seus obje-tivos iniciais, a saber, relembrar os moradores de rua as regras básicas de convivência, tal apego pode se tornar um meio para aplacá-los ainda mais, pasteurizando seus hábitos e a sua personalidade. Nesse caso, a cidadania, enquanto “o direito a ter direitos” é gradativamente substituída pela apatia, pela passividade e submissão111.

Arnold112 explica que a representação do morador de rua dentro do al-bergue é a de que eles são culpados pela própria situação de falência e ociosidade, como já foi mencionado anteriormente. O morador de rua é ameaçado de ser ‘despejado’ por funcionários de albergues caso não dê pro-vas de que está buscando um emprego ou de que ao menos vai tentar mu-dar a sua situação113. Os funcionários de instituições sociais demonstram comportamentos que despertam nos moradores de rua um sentimento de

100 2004, p. 271

101 Ver: Principais resultados do censo da população em situação de rua da cidade de São Paulo. Silvia Maria Schor e Maria Antonieta da Costa Vieira. Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FIPE), 2009, p. 4.

102 Giorgetti, 2004; Nogueira, 2008

103 Arnold, 2004, p. 2

104 2004, p. 180

105 Ibid., p. 266

106 1975/1999

107 2005, p. 149

108 Billouet, 2003, p. 134

109 Giorgetti, 2004, p. 244

110 Ibid., p. 242

111 Ibid, p. 267

112 2004, p. 2

113 Giorgetti, 2004, p. 269

representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento

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{Fig. 13 São Paulo 2003

inferioridade, “prevalece a ideia de que ele (o morador de rua) não é um valor ameaçado, mas uma ameaça aos valores instituídos ou, até mesmo, à integridade física de seus funcionários”114. Clair e Wasserman115 verificam que os funcionários de albergue estigmatizam os moradores de rua que ‘vivem na rua’ “eles tendem a repetir e a reforçar estigmas em direção àque-les que vivem na rua. De acordo com eles, os que vivem nos albergues não possuem problemas mentais e dependência química, mas aqueles que vi-vem na rua (provavelmente) têm”. Em sua pesquisa com moradores de rua nos Estados Unidos, Clair e Wasserman (2010) também apontam que muitos moradores optam por viver na rua pela ‘paz de espírito’. Quando não confrontados com as restrições dos albergues, muitos sentem um re-laxamento mental por não terem regras e responsabilidades: “eles odiavam os albergues porque se sentiam sujos, inseguros, confinados, e degradados [...]”116. Dentro desse ambiente de hostilidade, verifica-se nos albergues a opção pelo assistencialismo e a ausência de vínculos117 ao invés de ser um espaço de integração, convivência, reabilitação. O controle excessivo res-tringe a liberdade individual e pode se constituir pela invasão da priva-cidade118. Dessa maneira muitos moradores de rua não suportam a vida dentro dos albergues – pois são aceitos por curtos períodos de tempo além de serem alvo de expulsão –, optando por viver nos logradouros públicos diante de tais restrições119.

O controle excessivo restringe a liberdade individual e pode se constituir pela invasão da privacidade118. Dessa maneira muitos moradores de rua não suportam a vida dentro dos albergues – pois são aceitos por curtos períodos de tempo além de serem alvo de expulsão –, optando por viver nos logradouros públicos diante de tais restrições119

114 Ibid., p. 392

115 2010, p. 61

116 Ibid., p. 4

117 Giorgetti, 2004, p. 249

118 Ibid., p. 268

119 Kawash, 1998, p. 327

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Fig. 14 São Paulo 2012

HIGIENISMO

quando estes políticos Outros [os moradores de rua] falham em se incorpo-rar nas normas político-econômicas de identidade, eles se deparam com duas reações similares: a demanda por assimilação ou criminalização. No caso dos moradores de rua, eles nem são integrados dentro do bem-estar social para se tornarem reabilitados (uma tentativa de subordinar o Outro dentro do Igual) ou sujeitá-los a detenção ou perseguição policial. Quando isto não funciona, eles são enviados para outra cidade, forçados a sair dos acampamentos urba-nos ou simplesmente obrigados a mover-se120.

O cenário de ‘extermínio’ nunca está muito longe da superfície da experiência dos moradores de rua [...] Constrangidos a existirem em espaços públicos, os moradores de rua são alvos constantes de regulamentação, criminalização, expulsão e de apagamento121.

*" ,*-%.*-!" .! -(% que buscam um lugar para viver nos centros ur-banos frequentemente se deparam com um problema: o higienismo. Esse problema não ocorre apenas nas capitais brasileiras, mas em metrópoles de todo mundo. No Brasil a palavra higienismo é frequentemente citada em recentes estudos sobre moradores de rua. Nos Estados Unidos e países eu-ropeus, diversos autores usam termos como ‘gentrificação, ‘revanchismo ur-bano’ e ‘NIMYB’ (not in my backyard/não no meu quintal) que utilizaremos aqui para relacionar as ações higienistas realizadas no Brasil. Esses termos se referem às medidas emergenciais de controle espacial dos excluídos. Smith122 define ‘gentrificação’ como “uma rediferenciação do ambiente cultural, social e econômico, e que nessa medida poder ser claramente verificado pelos mo-delos de consumo que buscam a diferenciação social” e ‘revanchismo urbano’ como: “a negligência benigna da ‘outra metade’, tão dominante na retórica liberal dos anos cinquenta e sessenta [...] substituída por um vício mais ativo que tenta criminalizar um conjunto de ‘comportamentos’, definido indivi-dualmente, e culpar o fracasso da política urbana do pós-1968 para as po-pulações que era suposta a ajudar”. Para Smith, a revanche vem da burguesia contra os pobres, ou seja, a mudança não é apenas social e econômica, mas físico-espacial {Fig. 14}. A síndrome de NIMBY, segundo Dear123, é

a motivação de residentes que querem proteger seu território. Mais formal-mente, NIMBY se refere a atitudes protecionistas e táticas de oposição adota-das por grupos da comunidade que se confrontam com um indesejável de-senvolvimento no seu bairro. Tais desenvolvimentos controversos envolvem

uma ampla gama do uso do terreno, incluindo muitas facilidades de serviço humano, casas de baixa renda [...] os residentes comumente entendem que estas facilidades ‘nocivas’ são necessárias, mas não perto de suas casas, daí o termo ‘não no meu quintal’.

Os efeitos de tais restrições por meio de medidas repressivas podem ser observados quando os moradores de rua são criminalizados e submetidos a leis e ações de ‘tolerância zero’124 quando tentam ocupar o espaço público.

A preocupação com a preservação da cidade e a submissão às necessi-dades e aos desafios – como que seguindo um esquema empresarial – faz das cidades conglomerados urbanos em constante busca por trabalhado-res qualificados, infraestrutura e serviços de ponta125. Os investimentos são aplicados em áreas já beneficiadas da cidade com o intuito de embelezá-las. Já as áreas mais pobres carecem de investimentos em serviços básicos, pro-vocando a exclusão urbana e a separação social126. A lógica adotada repousa em criar bairros centrais mais seguros e preservados que demonstrem a or-ganização, a higiene e beleza. A nova configuração urbana está ligada à evo-lução tecnológica e comercial. Seguindo tais configurações, comerciantes e poder público podem atrair mais consumidores, turistas, residentes das classes média e alta, e investimentos para áreas degradadas127. Soma-se a

124 Segundo Smith and Low, o espaço público foi feito o palco central da bata-lha revanchista da política de tolerância zero pelo prefeito Rudy Giuliani. Essa política chamada ‘Reclai-ming os espaços públicos em New York’ foi globalizada para cidades em todo mundo. (p. 2)

125 !omasz, 2010, p. 16 ; Cloke, et al., 2010, p. 1

126 Ver Davis, 2006, p. 105

127 Ver Mitchell e Staeheli apud Low e Smith, 2006, p. 144

}

120 Arnold, 2004, p. 7

121 Amster apud Cloke et al., 2010, p. 214

122 1996, p. 222

123 1992, p. 288

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{Fig. 15 São Paulo 2012

{Fig. 16 São Paulo 2012

{Fig. 17 São Paulo 2012

isso a especulação imobiliária em transformar os centros urbanos – que em um primeiro momento estavam desvalorizados – em locais de ocupação e investimento de uma ‘nova classe média’ e alta128. Dentro desse cenário os moradores de rua estão sujeitos a desapropriações e expulsões para bairros mais afastados por meio de medidas de gerenciamento na maioria das ve-zes punitivas129 {Fig. 15}. Para Mitchell130, a ‘limpeza’ dos moradores de rua se deve ao definir padrões para uma cidade ‘sanitizada’ com uma política de importância ‘estética’ ao invés humana e social131. As consequências de tais políticas discutiremos mais adiante com as políticas de re-desenvolvimen-to dos centros urbanos. Diversos autores apontam medidas contra a ocupação que os moradores de rua fazem nas grandes cidades132. Essas me-didas são eficazes por meio de políticas e estratégias de higienismo visando ao afastamento de quem ocupa o espaço público de forma temporária ou permanente133. Segundo Mitchell134, “para os moradores rua a liberdade ci-vil e o direito ao uso total do espaço público foi eliminado pelos interesses de aumentar a qualidade de vida urbana e a segurança para residentes abri-gados e visitantes”. Essa situação é possível, pois os moradores de rua vivem em uma constante condição de vulnerabilidade e imobilidade135 {Fig. 16}. A repressão e perseguição que os moradores de rua sofrem podem ser veri-ficadas por ações do poder público confiscando os objetos dos moradores de rua, pela instalação de equipamentos antimendigos136, pela proibição da ocupação/circulação e expulsão dos centros econômicos, praças, calçadas etc., que discutiremos mais adiante137. As atitudes higienistas negam os sentimentos de solidariedade e respeito, revelando uma preocupação pela preservação da cidade e da ordem social138. Para Giorgetti, o higienismo se comporta como a anulação total do sentimento de bem comum e é guiado por interesses privados sobre o coletivo (no caso desta pesquisa, sobre o espaço público). Tais interesses ajudam a entender o preconceito da socie-dade paulistana diante dos moradores de rua, pois Giorgetti139 observa “a eliminação total do outro, isto é, o não reconhecimento da sua existência e de seus direitos e a valorização máxima dos interesses privados”. O re-sultado do não reconhecimento como cidadão é que o morador de rua não apenas pode ser excluído da construção de políticas públicas140 que os beneficiem mas também tais políticas têm o intuito de controlar e proteger a sociedade contra o desconforto que o morador de rua pode provocar {Fig. 17}. Cabe aqui mencionar que as tentativas de políticas higienistas no Brasil por meio de projetos de lei antimendigo não obtiveram aprovação. Nestes projetos proibiam-se, por exemplo, o trânsito e o pedido de esmola de moradores de rua pela cidade de São Paulo141. No que se refere à discus-

são de políticas sociais, Giorgetti142 propõe dois conceitos de higienismo: relativo e absoluto (que discutiremos mais adiante):

Higienismo relativo exclui a possibilidade de qualquer tipo de política so-cial para essa população, privilegiando o controle máximo das suas atitudes e infringindo, de modo violento, a sua liberdade individual. Uma concepção autoritária orienta projetos de lei por eles apresentados cuja principal finali-dade é controlar, inspecionar, averiguar e disciplinar a vida dos moradores de rua. Nesses projetos de lei estão contidos sentimentos de periculosidade e de suspeição generalizada e a ideia do bom e do mau pobre.

A preocupação com a preservação da cidade e a submissão às necessidades e aos desafios – como que seguindo um esquema empresarial – faz das cidades conglomerados urbanos em constante busca por trabalhadores qualificados, infraestrutura e serviços de ponta125. Os investimentos são aplicados em áreas já beneficiadas da cidade com o intuito de embelezá-las. Já as áreas mais pobres carecem de investimentos em serviços básicos, provocando a exclusão urbana e a separação social126

128 Rousseau, 2010

129 Cloke,et al., p. 2; Low e Smith, 2006

130 2003

131 Mitchell, 2003, p. 9

132 Frangella, 2004; Kasper, 2004; Kawash, 1998; Giorgetti, 2004; !omasz, 2010; Arnold, 2004; Smith,1996; Mitchell, 2003

133 Mitchell, 1997, p. 8

134 2003, p.4

135 Graham, 2001, p. 292

136 Tais equipamentos serão discutidos mais adiante.

137 Kawash, 1998, p. 322, Kasper, 2004, p. 193

138 Para Davis (2006, p. 105), a segregação urbana é uma guer-ra social na qual “o Estado intervém regularmente em nome do ‘progresso’, do ‘embelezamento’ e até da ‘justiça so-cial para os pobres’, para redesenhar as fronteiras espaciais em prol de proprie-tários de terrenos, investidores estran-geiros, a elite com suas casas próprias e trabalhadores de classe média”.

139 2004, p. 84

140 Bursztyn, 1997, p. 44

141 Giorgetti, 2004, p. 108

142 Ibid., p. 330

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AS POLÍTICAS DE RE-DESENVOLVIMENTO DO ESPAÇO PÚBLICO E PRIVADO

O espaço público tem diferentes significados em diferentes sociedades, lu-gares e tempos. O espaço público é tradicionalmente diferenciado do espaço privado em termos de regras de acesso, a natureza e a fonte de controle sobre a entrada em um espaço, os comportamentos individuais e coletivos sancio-nados em espaços específicos, e a regras de uso143.

% "!1-!1%45* socioespacial é visível pelas tecnologias de vigilância e ações repressivas criadas para conter, afastar e eliminar as pessoas pobres dos es-paços coletivos e logradouros públicos nos centros urbanos. É importante salientar, nesse contexto, que a sensação de insegurança faz com que as ca-madas mais ricas busquem intervenções urbanísticas e arquitetônicas de-senvolvendo um ‘apartheid espacial’. Tais medidas buscam criar fronteiras sociais no meio construído. Um dos primeiros autores a trazer a discussão da reconstrução urbana pelo controle arquitetônico é Mike Davis no livro Cida-des de Quartzo. O autor sustenta que a cidade de Los Angeles se tornou, na década de 1990, uma fortaleza aparelhada pela obsessão da segurança como símbolo de prestígio144. Para Davis145,

os pseudoespaços públicos para consumidores ricos de nossos dias – suntuo-sos shoppings, centros de escritórios, acrópoles culturais, e assim sucessiva-mente – estão repletos de sinais invisíveis que impedem a entrada do ‘Outro’ da subclasse. Embora os críticos de arquitetura não prestem em geral atenção a como um ambiente construído contribui para a segregação, os grupos de párias – sejam famílias latinas pobres, jovens rapazes negros ou velhas senho-ras brancas sem-teto – leem o sentido imediatamente.

Da mesma forma que Los Angeles, a cidade de São Paulo também é de-marcada pelo isolamento social, sendo eficaz na ‘requalificação’ dos espaços públicos. Segundo Teresa Caldeira146, desde os anos 1980, transformações espaciais estão ocorrendo entre grupos sociais diferentes que habitam es-paços muito próximos. Isso se deve às tecnologias de segurança utilizadas e a separação espacial por muros com o objetivo de repelir e afastar pessoas ‘indesejadas’. Segundo a pesquisadora, esses ‘enclaves fortificados’ podem ser definidos como “[...] espaços privatizados, fechados e monitorados para re-sidência, consumo, lazer e trabalho. A sua principal justificação é o medo do crime violento. Esses novos espaços atraem aqueles que estão abandonando a esfera pública tradicional das ruas para os pobres, os marginalizados e os

‘sem-teto’”147. Dessa maneira, tais espaços dificultam a acessibilidade e a livre circulação, promovendo a separação e o isolamento diante da obsessão pela segurança e a discriminação social {Fig. 18}. Para Caldeira148:

[São Paulo] é uma cidade de muros em que a qualidade do espaço público está mudando imensamente e de maneiras opostas àquilo que se poderia esperar de uma sociedade que foi capaz de consolidar uma democracia po-lítica. De fato, a segregação e o processo de ostensiva separação social cris-talizado nas últimas décadas pode ser visto como uma reação à ampliação desse processo de democratização, uma vez que funciona para estigmati-zar, controlar e excluir aqueles que acabaram de forçar seu reconhecimento como cidadãos, com plenos direitos de se envolver na construção do futuro e da paisagem da cidade.

Após anos de degradação e abandono nas áreas centrais de grandes cida-des, verifica-se uma mudança de direção no seu planejamento e conserva-ção. A busca de uma readequação desses espaços, no entanto, tem propósitos e interesses políticos distintos149. Os interesses envolvem a recuperação do patrimônio histórico e arquitetônico desses bairros por meio da revitaliza-ção. A proposta de recuperação visa o re-desenvolvimento das cidades para públicos específicos. A revitalização dos bairros pode ter uma função segre-gadora, como discutiremos adiante, na qual os processos de gentrificação podem ser encontrados como mecanismos para expulsar populações mais pobres150. É importante enfatizar a discussão das políticas de re-desenvolvi-mento, uma vez que elas podem afetar, pela expulsão, a vida dos moradores de rua que exercem alguma atividade econômica e ocupam o espaço público dessas áreas. A recuperação de áreas degradadas são processos conhe-cidos como revitalização, renovação ou reabilitação urbana. A revitalização pode vir a expulsar pequenos negócios e a população moradora de baixa renda pela forte valorização imobiliária. Esses tipos de ações são cada vez mais frequentes em diversas capitais brasileiras. Segundo Pezoti151, “busca-se, também, a revitalização da atividade econômica e social, no sentido de tornar a área mais atrativa e dinâmica, com boas condições de habitabilidade onde ganha-se visibilidade e importância os interesses privados e o capital imobiliário. Jeudy, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo152, discute que no mundo inteiro os centros urbanos históricos estão se transformando em museus para turistas, petrificando a cidade por meio da reconstituição:

o problema é que o processo de conservação patrimonial torna as cidades cada vez mais parecidas. No fundo, há sempre um centro histórico, onde tudo

143 Low e Smith, 2006, p. 3

144 Ver Davis, 1990, p. 206

145 1990, p. 207

146 2000

147 Ibid., p. 211

148 Ibid., p. 255

149 Pezoti, 2012, p. 190

150 Low e Smith, 2006, p. 11

151 2012, p.33

152 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/"0606200509.htm>. Acesso em: 18 nov. 2012.

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é refeito da mesma forma. Normalmente o início desse processo é uma busca de identidade da cidade que leva a cidades patrimonializadas, onde o centro é colocado como a vitrine de uma loja.

O pesquisador se refere aos processos de revitalização como síndrome de morte das cidades e cita como exemplo a capital Salvador: “as pessoas que moravam no Pelourinho foram expulsas, isso quer dizer que o aspecto vivo da cidade desaparece com a patrimonialização. Havia uma mistura da população, a região era partilhada por todos”, com isso muda-se a configuração do lugar para atrair um público com maior poder aquisitivo; primeiro se expulsa as populações pobres e depois restaura e estetiza para ocupação dos mais ricos.

Seguindo o modelo de empreendedorismo urbano adotado na década de 1990 na cidade de Barcelona, Oliveira153 demonstra que os processos de inter-venção urbana na cidade do Rio de Janeiro tiveram êxito com o “Projeto Rio Cidade” entre os anos de 1995 e 2000. Para o pesquisador o projeto “teve como pano de fundo uma concepção de racionalidade empresarial da administra-ção dos negócios públicos, visando à participação do setor privado na gestão de serviços e equipamentos públicos, com base em estratégias econômicas de investimentos e políticas de controle e exclusão social. O controle social foi enérgico contra a população de rua e os vendedores ambulantes pela Guarda Municipal carioca restringindo o uso do espaço público, segregando camadas desfavorecidas. Tais medidas foram efetivas por meio da reformulação do sis-tema de iluminação e pela renovação e embelezamento do mobiliário urbano, disciplinando seus usuários pelo direito de ‘ir e vir’154. É interessante a análise que Oliveira faz, principalmente pelo uso de palavras frequentemente citadas no projeto, como: revitalização, reconstituição, recuperação, revalorização, re-qualificação, reequilíbrio etc. O embelezamento foi possível pela reordenação dos fios da rede elétrica e telefônica e dos postes de iluminação com maior claridade; pela redução das calçadas dando espaço a vagas de táxi e estaciona-mento ou por sua ampliação visando facilitar a circulação de pessoas em lojas ou prédios, causando a sensação de ordem e limpeza.

Essas mudanças aparecem associadas à racionalização e disciplinarização do uso das ruas. Procurou-se reordenar a circulação de pessoas através da insta-lação de cercas e jardineiras ou obstáculos nos limites das calçadas – sobre-tudo nas esquinas –, da recomposição de faixas de pedestres, da realocação de pontos de ônibus e de táxis e da disciplinarização dos estacionamentos de automóveis, evitando paradas nos eixos principais do projeto155.

A ausência de bancos e coberturas em pontos de ônibus foi verificada pelo pesquisador com o intuito de eliminar a possibilidade de abrigo para mora-

{Fig. 18 São Paulo 2012

153 2008, p. 2

154 Ibid., p. 7

155 Ibid., p. 18

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dores de rua, camelôs etc., evitando a presença de pessoas ‘indesejadas’. Tal atitude também é reforçada pela presença da Guarda Municipal e da seguran-ça privada financiada por lojistas coibindo e expulsando frequentadores que possam provocar a ‘desordem’ ao longo desses ambientes. Dentro dessa dinâmica de requalificação das áreas urbanas podemos também mencionar o exemplo do “Projeto Nova Luz” em São Paulo. Para Pezoti, esse projeto “in-sere-se em um contexto de mudanças na sociedade de São Paulo, decorrentes da necessidade de reurbanização de áreas que permitam a expansão imobi-liária, especialmente, com requalificação da região central” visando reprimir os usuários de ‘crack’ da região conhecida como cracolândia156. Esse modelo de reurbanização empreendido pelo poder público e a iniciativa privada tem sido desenvolvido para que a cidade de São Paulo faça parte do circuito das cidades globais157. Em 2005, as polícias militar, civil e federal fizeram uma ação intitulada de ‘operação limpa’ na cracolândia. Segundo o subprefeito da região Sé, Andrea Matarazzo, a ‘operação limpa’ visava recuperar o centro de São Paulo e intensificar a limpeza desta área: “nosso trabalho é integrar as ações de segurança, com a ordenação do local para iniciar esse processo de revitalização”. 158 Diversas ações foram adotadas reprimindo a ocupação do espaço público pelos dependentes químicos, mas sem eficácia. Pezoti159 pon-dera que a proposta de tal projeto não contempla os requisitos de revitaliza-ção e que, ao contrário, existe um processo de renovação com gentrificação:

esta proposta reafirma o caráter segregador que acompanhou todo o processo de urbanização no Brasil, onde as elites instalaram-se em bairros centrais, ex-pulsando a população de baixa renda para as periferias, distantes dos serviços públicos e das oportunidades de trabalho, de lazer etc. Especialmente na re-gião central, denunciam-se ações higienistas, com a expulsão, principalmente, da população em situação de rua e dos moradores de cortiços e de ocupações.

No ano de 2013, foi possível verificar a ocupação e permanência de vários moradores de rua no centro de São Paulo com barracas de camping. De acor-do com o jornal Estado de São Paulo, a prefeitura da gestão de Fernando Had-dad sinalizou para a Guarda Civil Metropolitana da cidade deixar de recolher à força tais equipamentos de abrigo160. No entanto, algumas barracas na Pra-ça de Sé foram confiscadas de maneira repressiva pelos policiais “os cerca de 200 moradores de rua que haviam montado acampamento na Praça da Sé acordaram nesta quinta-feira, 26, com a presença da Guarda Civil Metropo-litana (GCM) e equipes de limpeza da Prefeitura de São Paulo. A ordem era desmontar as barracas e liberar a área”161. Kawash162 aponta que a ‘guerra contra os moradores de rua’ revela mecanismos de constituir e assegurar a

um público específico os limites de inclusão. Em entrevistas realizadas sobre o re-desenvolvimento do centro de San Diego, Low e Smith163, identificaram que para este plano obter sucesso, a cidade deveria encontrar maneiras de remover os moradores de rua. Os autores trazem como exemplo a construção do shopping Center Horton Plaza que levou ao re-desenvolvimento do par-que Horton Park (ocupado por pessoas pobres e moradores de rua). Na mes-ma direção de remoção de populações pobres de áreas nobres, 6omasz164, em estudo realizado em Buenos Aires, também observa que o poder público adotou um planejamento estratégico especificamente orientado para abrigar seres humanos ‘supérfluos’ em espaços que a autora chama de ‘residuais’ {Fig. 19}. Nos Estados Unidos, as leis anti moradores de rua definem quais são os comportamentos permitidos no espaço público165. Essas leis visam aniqui-lar não somente o espaço do qual eles ocupam, mas também o corpo do ex-cluído, criminalizando a pobreza urbana. Para Mitchell166,essas leis reiteram o senso de exclusão da cidadania moderna. Davis167 critica que o próprio termo ‘pessoa da rua’ é um indicador da desvalorização dos espaços públicos, acar-retando a destruição de espaços ‘democráticos’. “Para reduzir o contato com os intocáveis, a reincorporação urbana converteu ruas de pedestres antes vitais em canais de tráfego e transformou parques públicos em receptáculos tem-porários para os sem-teto e os miseráveis”. O corpo do morador de rua como possível ameaça à sociedade e sujeito à eliminação é discutido no texto

156 Segundo o jornal Folha de São Paulo, “a área conhecida como cracolândia abrange o ‘pentágo-no’ formado pelas ruas Santa Efigênia, Aurora, General Couto de Maga-lhães e Mauá e pela avenida Duque de Caxias”. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u106577.shtml>. Acesso em: 18 nov. 2012.

157 Oliveira, 2008, p. 190

158 “Polícia deve ocupar a região da ’cracolândia’ até sexta-feira”. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u106577.shtml>. Acesso em: 18 nov. 2012.

159 2012, p. 191

160 Ver: “Moradores de rua fazem ‘camping’ em SP” Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,-moradores-de-rua-fazem-camping-em-sp-,1040366,0.htm>. Acesso em: 18 nov. 2012.

161 “GCM tira barracas da Sé cedo e mora-dores de rua voltam à noite” Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,gcm-ti-ra-barracas-da-se-cedo-e-moradores-de-rua-voltam-a-noite,1079208,0.htm>. Acesso em: 26 set. 2013.

162 1998, p. 330

163 2006, p. 145

164 2010

165 Em San Francis-co e San Diego existiam leis como “mendi-cância antiagres-siva” para coibir certos tipos de comportamento relacionados ao pedido de esmo-la, sendo ilegal “qualquer pessoa, na rua, calçada, ou outro, espaço público ou propriedade pri-vada, em coibir agressivamente, ameaçar, des-prezar, molestar, intimidar outra pessoa solicitan-do dinheiro ou bens”. (Mitchell e Staeheli apud Low e Smith, 2006, p. 160; 161)

166 1997, p. 8

167 1990, p. 207

Fig. 19 São Paulo 2003

}

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‘Homeless Body’ (1998) pela pesquisadora Samira Kawash. Segundo a autora, o espaço público – representado pela burguesia – é contra a ocupação amea-çadora dos moradores de rua, pois estes são parasitas ou vítimas da sociedade. Ao invés de eliminar o problema da falta de moradia procura-se eliminar o corpo do morador de rua168. Seguindo a reflexão da autora, a sociedade tem uma representação imaginária excludente do morador de rua que passa a ser concreta à medida que este se torna um problema visível. A visibilidade faz com que seu lugar no espaço público seja negado. Os moradores de rua na ci-dade de São Paulo têm maior visibilidade em ruas do centro histórico da cida-de e nos percursos de ligação ao centro expandido {Fig. 20}. Como Escorel169 observa em sua pesquisa com moradores de rua no Rio de Janeiro, a presença deles “aumenta com a limitação dos espaços, com a magnitude numérica e com a tendência à fixação do grupo”. Santos170 também analisa a visibilidade do habitat dos moradores de rua, que “carregam a imagem e o estigma de sua marginalidade, o que os tornou extraordinariamente visíveis e significativos”. Resta ao morador de rua ocupar o espaço público, mas daí surge uma ques-tão: quem tem o direito de usar o espaço público e de que maneira ele deve ser utilizado?171 Segundo Deutsche172, o que pode se reconhecer sobre o espaço público é a preocupação em estabelecer o que é legítimo e o que não é legítimo: “como nós definimos o espaço público está intimamente ligado com a noção de o que significa ser humano, a natureza da sociedade, e que tipo de comunidade política nos desejamos [...] apoiar coisas que são públicas pro-movem a sobrevivência e a extensão da democracia173. Para Deutsche, o corpo do morador de rua é suprimido e portador de conflito dentro do contexto do desenvolvimento de políticas urbanas, assim a eliminação de sua presença restabelece a ordem social {Fig. 21}. Arnold174 também pontua a dificuldade que o morador de rua encontra em ocupar o espaço público por forças con-trárias à sua existência. A criação de espaços ‘semiprivados’ em zonas comer-ciais e de negócios são seguidas de restrições contra de circulação, ocupação etc. Isso se deve, sobretudo, à mudança geográfica dos grandes centros e aos regimes de tolerância zero de muitas cidades americanas com o intuito criar centros ‘premium’175

relativamente estáveis e toleráveis zonas urbanas que fornecem abrigo, negócios, e atividades que abrangem as necessidades dos pobres urbanos – áreas em que largas comunidades poderiam se desenvolver – estão dan-do lugar para gentrificação enquanto previamente desvalorizados centros urbanos estão se transformando em lugares atrativos para investimento e novas construções176.

Fig. 21 São Paulo 2012

}Fig. 20 São Paulo 2012

}

168 Kawash, 1998, p. 326

169 1998, p. 260

170 1999, p.30

171 Kawash, 1998, p.320, Mitchell, 2003, p. 4

172 1998, p. 273

173 Ibid., p. 269

174 2004, p. 64

175 Mitchel, 1997, p. 305

176 Kawash, 1998, p. 326

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Fig. 22} São Paulo 2012

Don Mitchell pondera que os moradores de rua não podem existir se não existir espaço para eles habitarem. O espaço público deve permanecer pú-blico ao invés de ser ‘sequestrado’ por usuários indesejados177. Mitchell afir-ma que “o capitalismo urbano avança de maneira excludente, destruindo as condições de sobrevivência para ‘cidadãos desnecessários na nova econo-mia das cidades’. O morador de rua deveria ter o direito não apenas de dor-mir na rua, mas também de habitar e de se apropriar da cidade: “a neoliberal reforma urbana apela para o constante aumento da ordem urbana. A luta pela justiça social na cidade – pelo direito à cidade – deve portanto procu-rar estabelecer um diferente tipo de ordem, construído não nos medos da burguesia mas nas necessidades dos residentes mais pobres e marginaliza-dos”178 {Fig. 22}. Dessa maneira é possível observar que o espaço público está sendo reorganizado de acordo com as ‘necessidades’ dos poderosos que usam o sistema a seu favor com o intuito de ‘decantar’ os pobres para zonas mais afastadas. Essas zonas são destituídas de infraestrutura e trabalho179 ‘varrendo’ os moradores de rua dos já mencionados espaços ‘premium’ das cidades180. Os moradores de rua sobrevivem num limiar socialmente e espa-cialmente de encarceramento.

177 Mitchell, 2003, p. 2

178 Mitchell, 2003, p.9

179 Cloke et al., 2010, p. 3

180 Cloke et al., 2010

O morador de rua deveria ter o direito não apenas de dormir na rua, mas também de habitar e de se apropriar da cidade: “a neoliberal reforma urbana apela para o constante aumento da ordem urbana. A luta pela justiça social na cidade – pelo direito à cidade – deve portanto procurar estabelecer um diferente tipo de ordem, construído não nos medos da burguesia mas nas necessidades dos residentes mais pobres e marginalizados”178

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DIFERENTES PARADIGMAS DE CIRCULAÇÃO

% &-*.(45* .! -/7(!8% nas grandes cidades também traz mudanças efetivas no que se refere ao comportamento das pessoas e a circulação no espaço público. Tendo isso em vista, é interessante refletir sobre ideia de que a oposição ‘transitar e caminhar’ traduz, em alguma medida, diferentes para-digmas de presença e apropriação do espaço público. Na cidade de São Paulo, especificamente, podemos sugerir dois paradigmas de convivência com o es-paço. Sob vários aspectos, esses paradigmas identificam populações distintas. A assim chamada ‘população incluída’, circula pela cidade utilizando meios de transporte públicos ou particulares. A população excluída – especifica-mente a de moradores de rua – caminha e, ao caminhar, não apenas convive com o espaço da cidade de maneira diferente, mas também com o universo dos objetos da vida cotidiana de modo muito peculiar. Se a população que “transita” por São Paulo utilizando meios de transporte coincide de certo modo com a população de ‘consumidores’, aqueles a quem só resta ‘caminhar’ por São Paulo constituem uma população de não consumidores. Uma parte da ‘população incluída’ transita em carros particulares ou táxis, que funcionam como uma espécie de blindagem do ambiente externo. Pode-se propor uma analogia com Bachelard, que coloca, sobre o espaço poético as seguintes representações da casa: “[...] veremos a imaginação contruir ‘pare-des’ com sombras impalpáveis, reconfortar-se com ilusões de proteção.181” Podemos dizer que a sensação de proteção e o isolamento através dos vidros do carro inibem o contato com a cidade. Outra parte da população se des-loca em ônibus e trens superlotados, ou em vagões de metrôs subterrâneos, impossibilitados de ver a cidade pelo estresse do rush. A percepção do tempo em excesso que o advento do motor e da tecnologia nos proporciona é aliada à ociosidade: “tudo é máquina e a vida íntima foge por todos os lados”182. Também para Michel de Certeau183, a organização do cotidiano se efetiva de duas maneiras: “por comportamentos do vestuário, saudações ou códigos de cortesia e pelo nosso ritmo de andar que evita ou valoriza determinados espaços públicos”. As pessoas utilizam as avenidas e as ruas de São Paulo, na maioria das vezes, dentro de veículos: “as ruas são como tubos onde os ho-mens são aspirados184. Percebe-se que o espaço público se reduz ao longo de vias que mais parecem artérias entupidas que não fluem para lugar algum. Em contrapartida, os moradores de rua dificilmente são encontrados utili-zando os transportes públicos, por não apresentarem os comportamentos de vestuário e higiene determinados pelos incluídos, pela falta de dinheiro e

pela repressão e proibição por funcionários e motoristas. A única alternativa que lhes resta é andar. Muitos andam o dia todo e aproveitam todos os recur-sos que ruas e avenidas oferecem. O vínculo que o morador de rua tem com o espaço público é permanente. As caminhadas são essenciais para que essa população continue sobrevivendo. Sendo assim, as ações de comercian-tes, como a implementação de grades e vasos de jardinagem em marquises, além de sensores de presença são utilizados para evitar a presença, circula-ção e ocupação dos moradores de rua {Fig. 23}. É perceptível o aumento do controle e restrição sobre o espaço público no que se refere ao problema ao uso, circulação ou instalação de quem vive na rua. O espaço onde os mora-dores de rua habitam entra em colapso185. A liberdade dos moradores de rua é obstruída por medidas ameaçadoras de coerção e violência. A mobilidade dessa população é reduzida186 e a permanência dos moradores de rua divide espaço com ações do rapa para sanitizar a imagem da cidade187. Aliadas a es-sas práticas também apontamos a construção dos já mencionados artefatos antimendigo que discutiremos adiante.

181 1993, p. 25

182 Bachelard, 1993, p. 45

183 1999, p.38

184 Picard apud Bachelard, 1993, p. 45

185 Cloke et al., 2010, p. 6

186 Arnold, 2004, p.47

187 Wasserman, e Clais, 2010, p. 103

É perceptível o aumento do controle e restrição sobre o espaço público no que se refere ao problema ao uso, circulação ou instalação de quem vive na rua. O espaço onde os moradores de rua habitam entra em colapso185. A liberdade dos moradores de rua é obstruída por medidas ameaçadoras de coerção e violência. A mobilidade dessa população é reduzida186 e a permanência dos moradores de rua divide espaço com ações do rapa para sanitizar a imagem da cidade187

{Fig. 23 São Paulo 2012

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capitúlo 2 ser eliminável | a interdição e a anulação do corpo representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento

A ARQUITETURA ANTIMENDIGO ALIADA ÀS POLÍTICAS DE HIGIENISMO

% +*-,% $*,* os moradores de rua inserem-se no cenário urbano, pode-mos dizer, é encarada tradicionalmente pelo viés das disposições históricas e culturais segundo as quais esta porção da população é vista como indesejável e inadequada. Esta visão é, inclusive, assumida por alguns moradores de rua que passam então a comportar-se deste modo, entendendo a si mesmos como in-desejáveis e inadequados e assumindo comportamentos compatíveis com essa visão de si. Por um lado, trata-se do mecanismo que Bourdieu descreve como a adoção, pelo dominado, do discurso do dominador. O autor pondera que

as diferentes posições no espaço social correspondem a estilos de vida, sis-temas de desvios diferenciais que são a re-tradução simbólica de diferenças objetivamente inscritas nas condições de existência (aquilo que chamamos de estilo de vida) porque são o produto do mesmo operador prático, o habitus, sistema de disposições duráveis e transponíveis que exprimem, sob a forma de preferências sistemáticas, as necessidades objetivas das quais ele é o produto188.

Anteriormente nos referimos ao conceito do higienismo sob uma perspectiva política, para apontar uma forma de fragilização do morador de rua. Aqui, tais ‘práticas’ higienistas assumem uma conotação diferente, mais efetiva, em que se aborda a sua materialidade. Sendo assim, o poder é ativado pela apropria-ção dos espaços públicos por agentes privados, como discutimos anterior-mente, contra minorias mais fracas que são deslocadas para ambientes mais afastados. O sintoma de distanciamento é devido à suposta ameaça que os excluídos oferecem à sociedade, fazendo com que a pureza local dos grandes centros seja contaminada. Faz sentido remediar esse mal-estar diminuindo a zero a tolerância e ou expulsando esses sem-teto dos lugares não somente que eles poderiam habitar, mas também onde eles se fariam notar. Esses espaços definidos por Bauman189 como ‘espaços escabrosos’ contam com “borrifado-res instalados nos muros, úteis para expulsar os vagabundos, ou bordas incli-nadas que impedem que as pessoas se sentem [...]”. Para Dear e Flusty190, os ‘espaços interditados’ são espaços desenhados para excluir os mais pobres por meio da combinação de sua função e de suas sensibilidades cognitivas:

Alguns espaços são passivamente agressivos: o espaço concebido pela inter-venção de objetos ou por mudanças graduais é ‘furtivo’; o espaço que pode

ser alcançado somente pelas maneiras de interrupção ou por tentativas de ofuscamento é ‘escorregadio’. Outras configurações espaciais são assertiva-mente de confrontação: deliberadamente obstruído, o espaço ‘duro’ é cercado por muros e postos de controle; inóspitos espaços ‘espinhosos’ equipados com bancos unsuitable em áreas sem interesse; ou espaços ‘nervosos’ ostensiva-mente saturados com aparatos de vigilância.

Assim, a solução efetiva é de empurrar essas pessoas para os espaços mar-ginais das cidades ‘o9-limits’, locais onde não se pode viver nem se fazer ver. Segundo o sociólogo Marcel Bursztyn191,

as políticas públicas, paralelamente à valorização das áreas centrais, resultan-te das melhorias de infraestrutura urbana, operaram como força centrífuga, empurrando a miséria para a periferia. Por outro lado, a própria precariedade das condições de vida nas periferias, juntamente com as também precárias perspectivas nas zonas rurais de economia tradicional e estagnada, funcio-nam como força centrípeta, ‘atraindo’ a miséria para os núcleos centrais das grandes cidades. Em grande medida, o confronto entre forças centrífugas e centrípetas, num contexto de estrangulamento do mercado de trabalho, ex-plica a existência de um crescente contingente de moradores de rua e de po-pulações perambulantes.

O aumento da proibição da circulação feita pelos moradores de rua pode ser verificado com a criação de ambientes reguladores e controladores con-tra seus corpos. Tais ambientes possuem várias restrições ao corpo do mo-rador de rua, punindo a sua ocupação e permanência no espaço público por meio da arquitetura antimendigo {Fig. 24}. Assim, a revitalização dos centros urbanos busca extinguir os espaços públicos democráticos como, por exemplo, extinguindo as malhas destinadas à circulação e permanência de pedestres. Segundo Davis192, os ambientes urbanos deveriam possuir a qualidade de oferecer equipamentos adequados e confortáveis para pedes-tres ao menos sentarem. Prosseguindo com a reflexão de Davis, as cidades estão engajadas em

tornar as instalações e os espaços públicos tão ‘invisíveis’ quanto possível para os sem-teto e os pobres [...] com crescente intervenção da polícia e com o engenhoso design urbano de vocação dissuasiva. Um dos mais comuns, mas embrutecedor, destes estorvos é o banco de ponto de ônibus em forma de bar-ril, que oferece uma superfície mínima para um sentar confortável, enquanto torna completamente impossível dormir sobre ele. Tais bancos ‘à prova de vagabundos’ estão sendo introduzidos na periferia do submundo193.

188 1994, p. 83

189 2009, p.42

190 1998, p. 57

191 2000, p. 49

192 1990

193 1990, p. 213

capitúlo 2 ser eliminável | a interdição e a anulação do corpo

A ‘exclusão do lugar’ provocada pela ausência de políticas públicas traz uma população ‘perambulante’194. Para Bursztyn195, esse fenômeno não é recente e esse indivíduo perambulante perde seu referencial. A situação é preocupante porque existe um aumento frequente no número de moradores de rua e o risco de estranhamento com a população ‘situada’: “os perambulantes convi-vem com o mundo oficial, sobretudo quando transitam nas cidades. Os elos entre as duas categorias são tênues e tensos. Relações formais são pratica-mente inexistentes...”196. É interessante mencionar essa reflexão de Bursztyn, pois os moradores de rua vivem em trânsito, perambulando para sobreviver. O espaço doméstico do morador de rua é o espaço público. Os hábitos e atividades do dia a dia realizados no espaço público, como dormir, lavar rou-pas, higienizar-se etc. violam as regras e a conduta imposta pela burguesia197 {Figs. 25, 26 e 27} pois, segundo Frangella, “sua especificidade está em sub-verter, de forma radical, o sentido homogeneizador do espaço da rua, ao con-densar cotidianamente neste as dimensões pública e privada de sua vida”198. Ao morador de rua resta conviver com um espaço público cujas mensagens reforçam a inconveniência ou inadequação de sua presença ali. Segundo Frangella, a resposta que o poder público encontra ao seu modo de vida são “mecanismos e materiais que tornam e mantêm o corpo do morador de rua

Fig. 24 São Paulo 2012

}

194 Bursztyn apud Diniz, 2007, p. 95

195 2000

196 p. 96

197 Magni, 2006, p.13

198 2004, p. 33

Fig. 25} São Paulo 2002

representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento

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limitado e despossuído, como é o caso da eliminação crescente de banheiros públicos gratuitos”199. Santos também observa que “nas entrevistas, foi possí-vel apurar que o maior problema desses habitats é relativo à impossibilidade de atender às demandas de higiene física do morador de rua: o banho diário e a satisfação das necessidades fisiológicas”200. Bógus discute que existe uma diferenciação no que se refere à higiene pessoal entre os moradores de rua que vivem há menos e mais de 6 meses na rua. No primeiro grupo,

[...]34% se utilizam de albergues para tomar banho, enquanto 26,8% decla-ram usar a rua como espaço para sua higiene (bicas, chafarizes, torneiras, banheiros das estações de metrô etc.). Por outro lado, relativamente às pes-soas que se encontram na cidade há mais de 6 meses, verificou-se que a maior parte (43%) toma banho na rua”201.

Assim, a manutenção da higiene pessoal se torna extremamente difícil para os moradores de rua. Somam-se a isso outros aspectos: além da escassez de alimentos, um dos maiores desafios e problemas de quem vive na rua é como coletar e armazenar água para a higiene pessoal, {Figs. 28, 29 e 30} se alimentar etc. Importa, nesse cenário de políticas higienistas, lembrar a reflexão de Kawash202:

banheiros fornecem um exemplo paradigmático dos problemas de constan-temente negociar o lugar do corpo. Por causa da ausência virtual de toaletes, os habitantes de rua são frequentemente forçados a se aliviar de qualquer maneira onde eles puderem. Eliminação torna-se um foco crítico das ativida-des dos habitantes de rua [...] o corpo do morador de rua deve se acomodar à recusa da cidade em fornecer lugares aonde ir. Ao limite que é fisicamente capaz, o corpo do morador de rua é reconfigurado em adaptar-se com a con-figuração de uma geografia urbana desenhada para excluí-lo.

Com tamanha exposição e visibilidade, a população de rua é alvo de pro-cessos de gentrificação. Para Kasper203, essas atitudes ‘repelentes’ afetam os processos vitais de sobrevivência dos moradores de rua criando condições adversas à sua ocupação. Giorgetti observa que a arquitetura excludente demarca as diferenças sociais por meio da reorganização do espaço onde “locais inusitados são cercados, calçadas são privatizadas, objetos utilizados para enfeitar são pouco a pouco substituídos por armas pontiagudas, cuja única finalidade é afugentar”204. Diversos tipos de tecnologia são utilizados como ‘espaços proibitivos’205. Dentre eles, podemos destacar que as interven-ções urbanísticas alteram a circulação e forçam os moradores de rua a des-viar dos lugares de passagem, bloqueando sua permanência206. Isso se deve

Fig. 27 São Paulo 2003

}Fig. 26 São Paulo 2003

}

199 2004, p. 63

200 2003, p. 96

201 1992, p. 137

202 1998, p. 332

203 2004, p. 196

204 2004, p. 108

205 Kasper, 2004

206 Frangella, 2004, p. 250

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representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento

pela sobreposição do direito à segurança e à privacidade de uma minoria sobre a livre circulação e ocupação que o morador de rua faz207. O corpo dos moradores de rua se transforma em um objeto que deve ser removido208. É importante dentro do contexto da eliminação do ‘Outro’ o conceito de higie-nismo absoluto, que se define

sobretudo, por seu alto grau de radicalismo. É a negação total do outro e de tudo o que ele contém de diferente pelo recurso à violência. O principal obje-tivo dos adeptos desse tipo de comportamento é a eliminação a qualquer cus-to daquele(s) que, transformando o espaço público em moradia, destrói(em) a harmonia natural da cidade, sujando, enfeando e contaminando tais espaços como todo tipo de doença. Como solução para esse atentado à moral e aos bons costumes e a essa inversão da ordem natural das coisas, os políticos de São Paulo elaboraram leis propondo a expulsão dos moradores de rua dos locais que frequentam, a fim de preservar o público209.

Em São Paulo, essa fixação dentro de um território tem sido realizada pelos assistentes sociais e pela polícia militar por meio da retirada desses moradores de rua e de seus objetos. As ações de ‘varredura’ pelo poder público tratam de recolher os objetos coletados que os moradores de rua utilizam para sobrevi-ver. A apreensão envolve colchões, papelões, compensados e restos de madeira, móveis, utensílios de cozinha, material reciclado etc. Tudo o que o morador de rua acumula e constrói é confiscado e destruído. Essas ações de varredura em São Paulo são notoriamente conhecidas como ‘O Rapa’. Segundo Frangella210,

O Rapa funciona como uma espécie de ritual que reitera a demarcação fron-teiriça entre o sujeito poluidor e a imagem asséptica da cidade. E traz à tona de modo conflituoso o embate entre percepções ordenadoras que se consti-tuíram historicamente nas cidades e as condições materiais e simbólicas de vivência do morador de rua, conformadoras do estigma da abjeção que man-cha a assepsia pretendida do espaço urbano.

A frequência da ação do ‘Rapa’ em São Paulo é

relativamente regular, quinzenal ou semanal, mas ocorre sem dia certo, na intenção de surpreender. A operação, no momento da pesquisa, era organi-zada pelas subprefeituras da cidade, muitas vezes contrariando diretrizes da Secretaria de Assistência Social, que, no entanto, não chegava a bloquear a operação211.

Para Giorgetti212, existe abuso de poder quando os moradores de rua são ex-pulsos dos vãos de viadutos ou deportados para outras cidades por meio do

Fig. 28} São Paulo 2003

Fig. 29} São Paulo 2003

Fig. 30} São Paulo 2003

207 Giorgetti, 2004, p. 109

208 Arnold, 2004, p. 11

209 Giorgetti, 2004, p. 327

210 2004, p. 268

211 Frangella, 2004, p. 266

212 2004, p. 108

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representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento

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uso da força em prol da limpeza urbana. O ‘Rapa’ busca varrer, lavar e re-tirar tudo de impuro que se encontra no caminho, como discutido com Mary Douglas no primeiro capítulo juntamente com o conceito de ‘impureza’. A acumulação de objetos que compõem o habitat informal dos moradores de rua transforma as cidades contemporâneas em lugares inóspitos {Fig. 31}. Se por um lado o morador de rua procura reproduzir uma configuração de ‘casa’ com objetos reciclados embaixo de viadutos, de outro a Guarda Civil Metropolitana no centro de São Paulo recebe ordens de esvaziamento desses locais por meio da limpeza pública e do ‘Rapa’. Wasserman213 aponta que es-ses processos imediatos cometidos contra os moradores de rua retirando os poucos objetos que eles carregam são lutas dos ‘sem-poder’ contra a polícia, os comerciantes e os residentes abastados, que levam aos processos de gen-trificação e eliminação. Para Davis214,

esta repressão cínica transformou a maioria dos sem-teto em beduínos urba-nos. Eles são visíveis em todos os lugares do centro, empurrando seus poucos e patéticos pertences em carrinhos de supermercado roubados, sempre fu-gitivos e em movimento, espremidos entre a política oficial de contenção e sadismo progressivo das ruas do centro.

A ELIMINAÇÃO FÍSICA DOS MORADORES DE RUA

(, .*" ,%/*-!" fatores de medo e risco entre a população que vive na rua é ser alvo de ataque de grupos de extermínio. Essas pessoas se tornam extre-mamente vulneráveis e sujeitas a alvo de todo tipo de agressão. De acordo com Arnold215, a noção de ‘integridade corporal’ é a de que alguns indivíduos não têm a proteção garantida pela lei quando sua segurança é comprometida. Segundo a pesquisadora, a violência é aceitável contra certos indivíduos como moradores de rua, gays e lésbicas, mulheres etc. e pode permanecer impune

se um indivíduo que faz parte deste grupo é atacado por outro cidadão ou por um oficial de polícia, social mores e a lei frequentemente deixam esse infrator fora das ‘grades’. Pelo contrário, um cidadão pleno pode receber a proteção da lei quando sua integridade corporal é ameaçada. Além disso, não é cultural-mente aceitável atacar esses indivíduos. Para todos os outros, a justiça é uma incerta e a violência é frequentemente aceitável ou até mesmo encorajada216.

Refletindo a respeito da figura do ‘estranho’, Frey217 pondera que as persegui-ções violentas e o extermínio não são acontecimentos eventuais, existindo a possibilidade de se repetirem, “pois estão no campo de ação das possibilidades humanas”. Retomando a ideia do morador de rua como ‘bode expiatório’ da sociedade, pode-se associar a culpabilidade e responsabilidade negativa pela sua condição ao conceito de ‘Bando’. Os moradores de rua, da mesma maneira que o ‘Bando’, estão excluídos da comunidade218, sendo mantidos em sua própria privação pela lei do ‘Abandono’. De acordo com Agambem219,

a relação de exceção é uma relação de bando. Aquele que foi banido não é, na verdade simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas é aban-donado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em que a vida e direito, externo e interno, se confundem. A relação originária da lei com a vida não é a aplicação, mas o Abandono. A potência insuperável do nómos, a sua originária ‘força da lei’, é que ele mantém a vida em seu bando abandonan-do-a. O bando é uma forma de relação. Mas de que relação propriamente se trata, a partir do momento em que ele não possui nenhum conteúdo positivo, e os termos em relação parecem excluir-se [...] O nómos soberano é o poder que opera ‘com mão mais forte’; a união paradoxal que conjuga violência e direito: neste sentido, o fragmento pindárico sobre o nómos basileús contém o paradigma oculto que orienta toda sucessiva definição da soberania: o so-berano é o ponto de indiferença entre violência e direito, o limiar em que a violência traspassa em direito e o direito em violência.

213 2010, p. 103

214 1990, p. 215

Fig. 31 São Paulo 2012

}

215 2004, p. 43

216 Ibid., p. 46

217 2003, p. 125

218 Agambem, 2002, p. 36

219 Ibid., p. 36-37

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capitúlo 2 ser eliminável | a interdição e a anulação do corpo

Assim, Agambem em seu livro Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua de-fine o Homo Sacer (Homem Sacro) como um personagem do direito roma-no arcaico que não pode ser sacrificado por ser ‘sacro’ mas alguém que está suscetível a ter a sua vida matável, sendo objeto de violência que extrapola o direito, “na qual a vida humana é incluída no ordenamento unicamente sob a forma de sua exclusão (ou seja, de sua absoluta matabilidade)”220. Segundo Kawash221, o corpo do morador de rua é um corpo passivo que vive sua ‘não existência’. A corporalidade do morador de rua emerge por meio de traços ma-teriais compostos pela percepção da ‘sujeira’ que ele oferece, trazendo o precon-ceito e a intolerância. Sendo assim, a sujeira deve ser removida materialmente dos espaços públicos por meio de sua eliminação: “a solução a tal impasse apa-rece como um último esforço na ‘guerra contra os moradores de rua’: empregar tais pressões contra seus corpos até reduzi-los a nada, espremê-los até torná-los tão pequenos fazendo-os desaparecer [...]222. Assim, a situação atual para aqueles que moram nas ruas caracteriza-se por situações de risco e eliminação diante das diversas chacinas cometidas em todo o Brasil223. Exemplo disso fo-ram os ataques contra moradores de rua em 2004 e 2006 no centro de São Paulo, contabilizando o total de 20 pessoas assassinadas. Segundo denúncias do Ministério Público e da Defensoria Pública, esses ataques violentos foram realizados por grupos de extermínio envolvendo policiais civis e militares224. O extermínio de moradores de rua também pode ser feito por seguranças parti-culares contratados por comerciantes ou por jovens delinquentes. No entanto, os agressores operam com um nível significativo de anonimato por atuarem no período noturno e muito permanecem impunes225. Os materiais que os agres-sores usam são diversos, como gasolina, armas de fogo e objetos de madeira ou ferro. Esses ataques ocorrem enquanto os moradores de rua estão dormindo, ou seja, quanto mais expostos e estáticos, maior a vulnerabilidade e risco de morte corre essa população. Para Frangella, muitos dos crimes cometidos con-tra os moradores de rua utilizam o fogo:

a peculiaridade do fogo está no seu efeito rápido, reversível, doloroso e exten-sivo ao corpo todo, provocando o risco iminente da mutilação ou da morte. Mais do que isso, atear fogo significa a tentativa de consumição do corpo do morador de rua. Significa aniquilar o único suporte material e simbólico do morador de rua que lhe é irredutível226.

Portanto, os ataques cometidos contra os moradores de rua reforçam a con-dição dos moradores de rua de ‘anomalias espaciais’ e indivíduos que estão ‘fora do lugar’227. Esses casos de agressão são frequentes e foram noticiados principalmente no ano de 2013 em diversos estados brasileiros228.

220 Ibid., p. 16

221 1988

222 Ibid., p. 329

223 No Maceió a população de rua conta com 300 moradores, sendo que destes 31 foram assassinados.

224 Disponível em: <http://www.estadao.com.br/estadaodeho-je/20101104/not_imp634392,0.php>. Acesso em: 18 nov. 2012.

225 Ver Frangella, 2004 p. 271

226 Frangella, 2004, p. 281

227 Amster, 2004, p. 4

228 Ver: “SP, RS e DF têm casos recentes de agressão a moradores de rua”. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/09/1335519-s-p-rs-e-df-tem-casos-recentes-de-agressao-a-mora-dores-de-rua.shtml>. Acesso em: 05 out. 2013.

CAPÍTULO 3

SER FOTOGR AFADOA vulnerabilidade social por meio da imagem

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capitúlo 3 ser fotografado | a vulnerabilidade social por meio da imagem representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento

As imagens técnicas (e, em primeiro lugar, a fotografia) deviam constituir um denominador comum entre conhecimento científico, experiência artística e vivência política de todos os dias. Toda imagem técnica devia ser, simulta-neamente, conhecimento (verdade), vivência (beleza) e modelo de compor-tamento (bondade)1.

! "#$%$&'$ ()"*'+,! pondera sobre o trabalho de fotógrafos que passa-ram a documentar a pobreza e trazer a situação de vulnerabilidade social para discussão pública nos meios impressos como livros, jornais, revistas etc. Com abordagens e equipamentos específicos, cada fotógrafo procurava entrar nesse território ‘desconhecido’ de representar o ‘Outro’. Segundo Pe-ter Hamilton2, o documento fotográfico tem um valor informacional que é mediado pela pessoa que o produz, misturando emoção e informação3. É interessante dentro da ideia de emoção e informação analisar o depoimento e a obra de fotógrafos como August Sander, Jacob Riis, Lewis Hine, Sebastião Salgado, entre outros que faziam a representação de determinadas popula-ções – imigrantes ou não – em seus ambientes de trabalho e moradia. Procu-raremos discutir com tal análise como a experiência ‘real’4 de cada fotógrafo procurou consolidar a natureza documental da imagem em formular dis-cursos em épocas de crise, reforma e transformação social5. Para Batchen6, o discurso fotográfico nunca é neutro e pode estar relacionado com os va-lores sociais e seus significados7. Assim, a fotografia documental floresceu e se tornou um instrumento essencial na formação e manipulação da opinião pública, em especial com o advento da indústria gráfica e a reprodução dos meios-tons fotográficos. O documento social era apresentando em forma de texto e foto e tinha o potencial de ser aceito e registrado como a ‘expressão da verdade’8. A época na qual as fotografias foram produzidas era marcada pela ‘militância social’. Selecionamos, para discutir nesse cenário, o trabalho dos fotógrafos Jacob Riis, Lewis Hine, do grupo americano Farm Security Administration e Sebastião Salgado. A razão para isso se rende no fato de que grupo Farm Security Administration e Sebastião Salgado utilizavam e utili-zam suas credibilidades artísticas, difundindo imagens da pobreza no campo e nas cidades por meio do formato documental. Assim, podemos notar que a estética invadia o campo da fotografia documental, deixando questões aber-tas sobre comunicação fotográfica associadas ao que Sekula9 denomina de ‘folclore binário’ na fotografia:

existe um mito popular ‘simbolista’ e um mito popular ‘realista’. A confusa, mas popular forma desta oposição é a ‘fotografia artística’ versus a ‘fotografia do-cumental’. Cada fotografia está inclinada, em qualquer momento de leitura e

contexto, para esses dois polos de significação. A oposição entre esses dois polos são seguidas por: fotógrafo que vê versus fotógrafo testemunha, fotografia como expressão versus fotografia como reportagem, teorias da imaginação (verdade interior) versus teorias da verdade empírica, valor afetivo versus valor informa-tivo, e finalmente, significação metafórica versus significação metonímica.

As leituras de livros e artigos de críticos e historiadores da fotografia – tais como Sekula10; Burgin11; Bolton12; Batchen13; Tagg14 – com abordagens mais atuais, levaram-nos a refletir sobre o trabalho que alguns fotógrafos documen-tais praticaram no que se refere à ética de sua produção e de sua veracidade. Tais estudos contestam a maneira pela qual algumas fotografias eram produ-zidas ou apresentadas, podendo colocar em xeque a sua finalidade: “quando pensamos no significado e importância das imagens, nós precisamos levar em conta os efeitos da maneira pelas quais elas são organizadas e o efeitos de sua composição; também o nível de gratuidade de nosso engajamento”15.

A crescente utilização da fotografia em outras áreas do conhecimento no final do século XIX também é analisada diante das mudanças decorrentes na reformulação das técnicas e procedimentos nas instituições disciplinares. Assim, procuraremos realizar um entendimento dos conceitos desenvolvidos pelo filósofo Michel Foucault por meio da interlocução com John Tagg. Con-sideramos importante contextualizar as ideias de poder, disciplina, discurso e biopolítica para discutir o problema de populações excluídas. Apesar de se tratar de ideias e conceitos desenvolvidos nas décadas de 1970, tais conceitos permanecem atuais e pode-se estabelecer relações com pesquisas realizadas sobre fotografia no que se referem não somente à vulnerabilidade física, mas, sobretudo, política dos excluídos16. Podemos refletir através das leituras de John Tagg que a representação fotográfica foi institucionalizada como forma de evidência e registro e que a fotografia está historicamente implicada na tec-nologia de poder-conhecimento17. O pesquisador discorre sobre a utilidade social das fotografias em manter a hierarquia entre classes, fazendo relações entre a realidade e a constituição do significado fotográfico. O retrato fotográ-fico identificava e catalogava, por exemplo, pessoas pobres, doentes mentais e prisioneiros; ter sido retratado nessas condições era um registro como uma prova do ‘real’. As transformações na sociedade também fizeram surgir novas ciências sociais e antropológicas, como a criminologia, a psiquiatria, a fisio-nomia etc. Houve a necessidade de uma ‘documentação’ como uma ‘marca’ de individualização de corpos que deveriam ser vigiados e disciplinados visando a torná-los dóceis e produtivos. Utilizada como documento não somente em instituições como a polícia e em prisões, mas também em hospitais, fábricas, hospícios, escolas etc., a fotografia teve um papel importante em organizar

1 Flusser, 2011, p. 35

2 apud Hall, 1997

3 Ver Hamilton apud Hall, 1997, p. 83

4 Segundo Sontag (1986, p. 16), mesmo quando os fotógra-fos procuram trazer a realidade, essa é questionável pelo gosto e consciência de quem produz as imagens.

5 Na época do desenvolvimento in-dustrial, os Estados Unidos recebiam um grande número de imigrantes, como apresentaremos com o trabalho de Riis e Hine. Segundo Purdy et al. (2008), muitas mulheres e crianças eram preferidas em realizar trabalhos em fábricas porque seus salários eram menores até em vinte por cento se comparados aos de homens: “em 1900, pelo menos 1,7 milhão de crianças menores de 16 anos de idade trabalha-vam em fábricas e no campo”. (p. 177)

6 1999

7 Batchen, 1999, p. 9

8 Para Rosenblum (1984, p. 341) antes do ano de 1880 todas as imagens não manipuladas eram consideradas ‘documentais’.

9 apud Bolton, 1992, p. 108

10 1981, 1982

11 1982

12 1982

13 1999

14 1993, 2003, 2009

15 Wells, 2003, p. 5

16 Tagg, 1993, 2003, 2009

17 Segundo Tagg, a fotografia deveria ser vista como evidência dentro de práticas institucionais e relações histó-ricas e sociais particulares (1993, p. 4). Ver também Tagg, 2009, p. XVI

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capitúlo 3 ser fotografado | a vulnerabilidade social por meio da imagem representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento

a experiência de cada indivíduo e de produzir uma nova realidade: “o que é real não é somente o item material, mas também o sistema discursivo que a imagem carrega [...]”18. A instrumentalização da fotografia tinha a finali-dade de vigiar, gravar e se tornar evidência em instituições disciplinares e em novos departamentos do governo19. Um modelo de repetição cujo corpo era isolado em um espaço restrito onde a “submissão de um olhar sem retorno; vigilância dos gestos, rostos e características; claridade da iluminação e do foco nítido; os nomes e os números em placas. Estes eram os traços do poder, repetidos inúmeras vezes, uma vez que o fotógrafo preparava a exposição, na delegacia, na prisão, no consultório médico, no hospício [...]”20. Tagg aponta que tais mecanismos representavam uma sociedade cujo modelo dependia do Estado Liberal paternalista21. Sendo assim, pela difusão de mecanismos disciplinares podemos refletir que com a ascensão das sociedades burguesas22 houve a necessidade de separar e classificar o ‘certo’ e o ‘errado’, “estabelecendo e delimitando o terreno do Outro”23. O retrato fotográfico era um meio que poderia contribuir na identificação, catalogação, análise e correção dos ‘des-viantes’24, transformando-se em um ‘instrumento repressivo social’25. A refle-xão de Richard Bolton26 ilustra as possibilidades de utilização da fotografia na vida pública por médicos, agentes de polícia, estatísticos, etc.:

foi discutida uma vez que a fotografia serviria à democracia ajudando a cons-truir uma pólis modernista por oferecer um método de discurso acessível a um amplo número de participantes. Mas a fotografia também ofereceu méto-dos de controle social: a capacidade da câmera para documentação e vigilân-cia foi vital na tentativa de construir uma sociedade reguladora.

UMA BREVE INTRODUÇÃO À FOTOGRAFIA DE RETRATO

! #$'#)'! -!'!.#/-0(! é o resultado de uma troca e comum acordo en-tre duas partes. Se existe consenso entre o sujeito a ser retratado e o fotógrafo, uma relação, ainda que fugaz, é estabelecida. É criado um elo de confiança através da pose27 e do olhar – mesmo que o sujeito seja um estranho para o fotógrafo ou vice-versa –, através do qual relações de poder e tensão são ativa-das por meio da câmera. O objetivo final de tal processo é um só: a fotografia. O retrato fotográfico, segundo Roland Barthes28, transformava o sujeito em objeto e era um campo cercado de forças: ”diante da objetiva, sou ao mes-mo tempo: aquele que eu me julgo, aquele que eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele de que ele se serve para exibir sua arte”. Os primeiros retratos feitos em 1840 submetiam o sujeito a longas expo-sições – com aparelhos invisíveis, a lente com forma de próteses – mantendo os corpos imóveis, tornando-os objetos de museu29. É interessante assinalar que a fotografia, desde os seus primórdios, esteve envolvida com o retrato fotográfico como um novo meio de representar a figura humana, abrangendo desde a expressão artística ao registro documental30. Para Gisele Freund31, no século XIX – era da máquina e do capitalismo moderno – a expressão ar-tística tinha papel importante em como representar a variação da estrutura social por meio do retrato32: “em sua origem e sua evolução, todas as formas de arte revelam um processo idêntico ao desenvolvimento interno das formas sociais”33. O sucesso do retrato fotográfico se devia, sobretudo, à exatidão da qualidade mimética impressa sobre uma placa metálica sensibilizada à luz34. A relativa instantaneidade35 e qualidade com que a câmera de daguerreotipo produzia retratos, por exemplo, também oferecia vantagens em comparação à técnica da pintura36. Apesar da pouca sensibilidade à luz, das lentes escuras, e da inabilidade em seus primórdios em transmitir a luz para superfície da emulsão, a câmera levava fotógrafos tanto amadores como aspirantes a profis-sionais a popularizar a fotografia no cenário cotidiano. A demanda por fotografias era grande, mas seu alto preço impedia que classes menos abas-tadas obtivessem um retrato. Dentro desse contexto cabe trazer a reflexão de Tagg37, de que o retrato fotográfico pertencia a um estágio de evolução social que era associado à comodidade, ao luxo e ao adorno {Figs. 1 e 2}. A ascensão da classe média em torno de um cenário político e econômico de maior rele-vância despertou um desejo: “ter ‘um retrato feito’ era um dos atos simbólicos do qual indivíduos vindos de classes sociais emergentes faziam sua ascensão visível para eles mesmos e para os outros e se classificavam como aqueles

pela difusão de mecanismos disciplinares podemos refletir que com a ascensão das sociedades burguesas22 houve a necessidade de separar e classificar o ‘certo’ e o ‘errado’, “estabelecendo e delimitando o terreno do Outro”23. O retrato fotográfico era um meio que poderia contribuir na identificação, catalogação, análise e correção dos ‘desviantes’24, transformando-se em um ‘instrumento repressivo social’25

18 Tagg, 1993, p. 4

19 Ver Tagg, 2009, p. 26

20 Tagg, 1993, p. 85

21 Tagg, 2009, p. 28

22 Para Sekula (1981, p. 15) a fotografia é assombrada pela ciência e arte burguesa.

23 Bolton, 1992, p. XVII. Ver também Sekula, 1981, p. 16

24 Ver Wells 2003, p. 222

25 Ver Sekula apud Bolton, 1992, p. 346 e Bolton, 1992, p. XI

26 1992, p. XI27 Para Barthes, o que funda a natureza da fotografia é a pose. (1989, p. 117)

28 1989, p. 27

29 Barthes, 1989, p. 26

30 Rosenblum, 1984

31 2006

32 A autora destaca os meios de expressão artísticos do qual a nobreza e aristocra-cia eram represen-tadas pelo realismo da pintura (retrato em miniatura). Segundo a autora, o retrato fotográfico correspondia a uma fase particular da evolução social en-tre as camadas mais ricas. A burguesia estabeleceria seu poder natural com sua ascensão social e a afirmação da própria persona-lidade perante ca-madas mais baixas (Freund, 2006, p. 14; 23). As máquinas substituíam o trabalho manual.

33 Ibid., p. 7; 15

34 Existiam diversas dificuldades de pre-paração das placas, a necessidade de levar laboratórios ambulantes, o peso de mais de 50 kg da câmera, além da manipulação dos químicos exigirem certa habilidade.

35 Quando discutimos que a velocidade do daguerreotipo é comparada ao tempo para se produzir um retrato pintado. A produção de retratos com os daguerreotipos se tratava de uma técnica difícil e desconfortável devido ao longo tempo de exposição. O retratado deveria permanecer imóvel e exposto ao sol por até quinze minutos, pois a superfície da placa de metal era extremamente frágil e não podia ser copiada. Com o passar dos anos, a Daguerreotipia foi substituída pelo processo de wet plate, técnica que se popularizou entre os amadores por sua rápida emulsão, revolucio-nando especialmen-te a fotografia de retrato. (Tagg, 1993, p. 48; 74)

36 Para Maresca (1996, p. 9), o retrato fo-tográfico empresta qualidades de repre-sentação à própria pintura. Isso se deve à invenção de Da-guerre (a primeira câmera fotográfica) que dá continuidade à história do retrato pintado.

37 1993

Fig. 1 Nadar | 1855 Charles Baudelaire

}

Fig. 2 Nadar | 1858 Delacroix

}

representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento

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que desfrutavam de status social”38. Foi diante de um mercado ávido por fo-tografias com preços mais acessíveis que o fotógrafo francês André Adolphe Disderi patenteou em 1854 um aparelho com diversas lentes. O invento tirava quatro, seis, oito ou até doze fotografias, proporcionando diversas exposições. O sistema, que foi chamado de cartes de visite, multiplicou, popularizou e ba-rateou a fotografia. Sobre o barateamento da fotografia produzido por Disde-ri, Freund39 aponta que “graças a um novo formato da sua invenção, pôde ven-der os seus retratos cinco vezes mais baratos”. O retrato popular possibilitava a qualquer um ter sua própria fotografia: “Disderi pedia vinte francos por doze fotografias, enquanto, até então, se tinha pago entre cinquenta e cem francos por uma única prova”40. Dessa maneira, o sistema de Disderi democratizou a produção de retratos em massa. A distância social provocada pelo fato de se possuir uma fotografia foi extinta {Fig. 3}. Para o sociólogo Sylvain Ma-resca41, a relação do retrato e da fotografia é de extrema importância, pois o

retrato se impôs à fotografia tanto como a fotografia democratizou o retrato: “mesmo o mais retrabalhado, o mais retocado, resta portador de signos dire-tamente decalcados de um rosto particular, de um indivíduo particular que posa diante do aparelho”. Para o pesquisador, o retrato fotográfico tem voca-ção documental pela ambição de ser uma visão da sociedade em representar indivíduos singulares como representativos e “a ver os indivíduos como eles mesmos”42. Assim, a fotografia fazia parte da vida cotidiana por sua aceitação e penetração entre as diversas camadas sociais43 A popularização da fotografia atingiu seu ápice com o invento do filme flexível por George East-man em 1888 e pela concepção de um mercado para produtos fotográficos. Tal período foi marcado pela ‘segunda revolução técnica’, com a invenção de câmeras de mão, lentes com melhor luminosidade etc.44 {Fig. 4}. Para Tagg45, a produção em massa de equipamentos – simples e convenientes – de fotografia acelerou o crescimento de uma ‘organização industrial avançada’:

no contexto de mudança geral de formas de produção e consumo, a fotogra-fia foi preparada para uma nova fase de expansão dentro da propaganda, do jornalismo e do mercado doméstico. Ela também abriu toda uma gama de aplicações técnicas e científicas e forneceu uma pronta instrumentação para um número de aparatos – médico, legal e municipal – reformados ou emer-genciais em que as fotografias funcionavam como meio de registro e uma fonte de evidência.

o retrato fotográfico tem vocação documental pela ambição de ser uma visão da sociedade em representar indivíduos singulares como representativos e “a ver os indivíduos como eles mesmos”42. Assim, a fotografia fazia parte da vida cotidiana por sua aceitação e penetração entre as diversas camadas sociais43

40 Ibid, p. 58

41 1996, p. 9

Fig. 3}Andre Disderi | 1860Carte de visite

Fig. 4} Sem data Kodak brownie

42 Ibid, p. 10

43 Freund, 2006, p. 8

44 Ver Tagg, 2009, p. 54 e 55

45 1993, p. 60

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O RETRATO SOCIOLÓGICO DE AUGUST SANDER

Sander tinha como objetivo lançar a luz sobre a ordem social, atomizando-a num número indefinido de tipos sociais46.

)+.+%' %)&1$#, fotógrafo alemão, foi o pioneiro em desenvolver uma série de retratos abrangendo as diversas camadas sociais com a obra Homens do Século XX. No início dos anos 1920, alguns pintores de avant-garde propuse-ram um movimento chamado de ‘nova objetividade’47; uma reação contra o abstracionismo, o cubismo etc., em nome de um retorno à tradição realista-figurativa. Dentro desse contexto a fotografia de retrato de Sander encontra seu espaço por meio de sua volta às técnicas antigas48 e a tradição da foto-grafia ‘exata’49. Em função da objetividade o fotógrafo “se coloca em direção a um certo igualitarismo sobre a representação, em nome de um interesse igual por todos os membros do corpo social”50. Assim, rompia-se a tradi-ção em representar apenas a aristocracia e a monarquia. Houve a inclusão da representação fotográfica de camponeses, profissionais liberais, artesãos, deficientes etc. {Figs. 5, 6, 7 e 8}. O igualitarismo também era representado pelas novas profissões que emergiam na sociedade alemã, como os arquite-tos, intelectuais etc. Lange51 assinala que: “em seus retratos, Sander delibera-damente traçou a formação de diferentes tipos sociais, que eram caracteri-zados por seu trabalho, o meio ambiente social e familiar ou a sua falta em qualquer lugar público ou privado”. O monumental trabalho criado por Sander possui sete volumes divididos pela sequência de grupos temáticos, como: O camponês; O artesão; A mulher; As categorias socioprofissionais; Os artistas; A grande cidade; Os últimos homens. Segundo Sander52, seus retratos são “para ver as coisas como elas são e não como elas deveriam ou poderiam ser”. Com 619 fotografias, a organização gráfica dos volumes foi escolhida de acordo com o título publicado em 1929 de Sander, Face of our time. O documento histórico iconográfico revelava a diferença de classes que se construía com o avanço da modernidade alemã. Os livros privilegiam a justaposição e a sequência de fotografias, possibilitando ver cada imagem primeiro de maneira isolada e depois todas as fotografias como parte de um ‘continuum pictórico’: “dessa forma, a interação entre a expressividade indivi-dual e a qualidade tipológica, que é uma característica do trabalho de Sander apresentada em cada fotografia, podem também ser realizadas em forma de livro”53. Pela amplitude de tal projeto, Sander propunha construir um retrato da sociedade alemã por meio de uma verdadeira ‘sociologia compara-tiva’54. Através da representação fotográfica, seu trabalho procurava mostrar

o homem conectado ao seu trabalho nas suas diversas profissões e em seus respectivos ambientes. August Sander organizava os elementos de seu retrato por meio da direção e pose do retratado. Os retratos dos profissionais liberais e da burguesia em geral eram fotografados no interior de suas residências, sem nenhum acessório, demonstrando a etiqueta social da época55. Já os tra-balhadores mais simples e as pessoas mais pobres eram retratados no am-biente exterior de seu trabalho, de pé, trajados com costumes e ferramentas que demonstravam sua situação social e profissional.

mais do que representações de tipos sociais, como de fato acreditava San-der, Homens do Século XX é um conjunto de estereótipos, no sentido de seus retratos serem realidades construídas (cenário; direção dos modelos; modo de fotografar), que correspondem a um modo de percepção social: enquanto percepção do real, a maioria dos seus retratos correspondem a estereótipos concebidos socialmente56.

Sander também retratou populações pobres como os ciganos, andarilhos e vagabundos, mostrando sua relação com a cidade e seu estilo de vida er-rante. Portanto, o trabalho de August Sander buscou apontar por meio do retrato fotográfico a diferença econômica e profissional entre classes sociais da sociedade alemã, democratizando vários tipos sociais pela repre-sentação do retrato. O fotógrafo procurava destacar, sobretudo, a relação entre o retratado e o ambiente do qual ele fazia parte. A postura do retrata-do, a posição das mãos, objetos e o entorno, poderiam enfatizar como algu-mas pessoas eram destituídas de poder (prisioneiros, destituídos políticos, deficientes, loucos, vagabundos) enquanto outras eras cercadas de poder, como a burguesia, os políticos etc.

46 Sontag, 1986, p. 61

47 Segundo Maresca (1996, p. 24), o mo-vimento era com-posto por diversos artistas espalhados pela Alemanha com propósito político progressista e esté-tico tradicionalista, ambicionando “reconciliar o construtivismo e o realismo, e conduzir uma criação de avant-garde junto com um engaja-mento político radi-cal” (p. 29). Sander influenciou e foi influenciado por Otto Dix e George Grosz (Rossi, 2009, p. 58), artistas que pesquisavam a exploração social e o antagonismo de classes nas grandes cidades por meio da pintura caricata e estilizada.

48 Na época havia experimentações artísticas, como solarizações, fotomontagens etc., no entanto, Sander continuava fiel às câmeras com placa de vidro, ao tripé e as exposições de três a quatro segun-dos. (Maresca, 1996, p. 25)

49 Segundo Rossi (2009, p. 39), a ima-gem revela aspectos históricos, culturais e sociais por sua exatidão e: “seria alcançada pela astúcia do fotógrafo, pelo desempenho do aparato técnico,

e por tomadas convencionais e diretas – sem grandes variações de ângulos –, buscando registrar o máximo de deta-lhes. A percepção dessa riqueza de informações visuais se realizaria com inúmeros passeios do olhar sobre a imagem e por meio da análise dos detalhes impressos na fotografia, como ocorre na fotografia de perícia técnica”. Dentro desse con-texto, é interessante trazer a reflexão de Flusser (2011, p. 30) sobre a objetividade das imagens téc-nicas que “faz com que seu observador as olhe como se fossem janelas e não imagens. O ob-servador confia nas imagens técnicas tanto quanto confia em seus próprios olhos. Quando critica as imagens técnicas (se é que as critica), não o faz enquanto imagens, mas enquanto visões do mundo”.

50 Ibid, p. 27

51 2002, p. 13, Volume I

52 apud Lange, 2002, p. 105

53 Lange, 2002, p. 14

54 Ver Maresca, 1996, p. 31

55 Maresca, 1996

56 Rossi, 2009, p. 14

“em seus retratos, Sander deliberadamente traçou a formação de diferentes tipos sociais, que eram caracterizados por seu trabalho, o meio ambiente social e familiar ou a sua falta em qualquer lugar público ou privado”51

representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento

Fig. 6 August Sander 1928 | !e Bricklayer

}

Fig. 7 August Sander | 1925 Middle Class Children

}

Fig. 8} August Sander 1929 | Architect

Fig. 5 August Sander 1930 | Gypsy

}

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RELAÇÕES DE PODER

Só o homem entre os viventes possui a linguagem. A voz, de fato, é sinal da dor e do prazer e, por isto, ela pertence também aos outros viventes (a natu-reza deles, de fato, chegou até a sensação da dor e do prazer e a representá-los entre si), mas a linguagem serve para manifestar o conveniente e o inconve-niente, assim como também o justo e o injusto; isto é próprio do homem com relação aos outros viventes, somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e das outras coisas do mesmo gênero, e a comunidade destas coisas faz a habitação e a cidade (1253a, 10-18)57.

%$.+&1! )#&!,158, o mais bruto Estado de Poder é efetivo justamente com os mais pobres e as economias dependentes. No decorrer da história, oposta à relativa autonomia do cidadão, os moradores de rua são submetidos a práticas e relações de poder, como a vigilância e disciplina59. Uma série de estratégias espalhadas na sociedade são ativadas por meio do poder local no momento de interação entre as estruturas sociais, as instituições e o indivíduo. O poder, para Michel Foucault, não é somente visto pelo lado negativo em reprimir e controlar os indivíduos, mas também é algo produtivo: “o poder produz o que nós somos e o que nós podemos ser; e este produz como nós somos vistos no mundo”60; opera mais claramente entre indivíduos e instituições não por imposição, mas como uma rede de interações que circula na sociedade. Para Mills61, o pensamento de Foucault “focava sua análise nos efeitos de várias instituições sobre grupos de pessoas e a maneira que essas pessoas jogavam em afirmar ou resistir a esses efeitos”. As relações entre pessoas como a de pais e filhos, de patrão e empregado etc. são relações de poder; estas operam por sistemas de diferenciações que permitem agir sobre ação de uns sobre outros. Essas diferenciações podem ser, por exemplo, de ordem jurídica de estatutos e privilégios, de lugar dentro do processo produtivo, e de competência62. Os regimes exercem o poder sobre a sociedade por meio de mecanismos e técni-cas. Alguns mecanismos fundamentam-se na disciplina. O regime disciplinar, segundo Revel63, é caracterizado por um número de técnicas de coerção entre o tempo, espaço e movimento do indivíduo: “técnicas de individualização do poder”. Para Mills64, a disciplina se preocupa com o controle de cada indiví-duo. A pressão disciplinar tende criar um próprio controle sobre a postura e as funções do corpo, ou seja, existem ações disciplinares que produzem um indivíduo a ser ajustado por uma série de procedimentos que vem de fora e do próprio indivíduo: “para Foucault, disciplina é uma série de estratégias, pro-cedimentos e maneiras de se comportar que estão associadas com certos con-

textos institucionais que permeiam as maneiras de pensar e se comportar em geral”65. O filósofo estava interessado em examinar as novas formas de poder dentro da sociedade, focando mais na resistência do que na simples e passiva opressão66. A organização do poder é aplicada ao indivíduo por meio de me-canismos disciplinares. A disciplina se relaciona à punição (força nega-tiva) e a noção de habilidades e conhecimentos que devem ser desenvolvidos para obter o sucesso à força positiva67. Com a disciplina surgem hierarquias e categorias, com isso, a disciplina individualiza e cria modelos binários de re-presentação entre bom/mau e merecedor/não merecedor68. Foucault também usava a palavra disciplina para descrever os campos da educação, medicina, psiquiatria e psicologia. Segundo Foucault, a disciplina exigia ordem e era uma técnica de interdição das atitudes, gestos e corpos por meio de fórmulas genéricas de dominação. Todos os espaços fechados podem permitir a gestão dos indivíduos. Por meio dessas instituições as populações são criadas para serem grupos homogêneos que compartilham os mesmos interesses e ideais. O controle surge com as numerosas instituições disciplinares: prisões, escolas, albergues etc. Para Foucault,69 o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. As formas de poder também podem ser analisadas por meio do discurso. Segundo Mills, Foucault analisa-va o discurso como um sistema que segue estruturas que regula as maneiras que enxergamos a realidade:

no processo de pensar sobre o mundo, nós categorizamos e interpretamos experiências e eventos de acordo com as estruturas disponíveis que nos apre-sentam e no processo de interpretar, nós damos a essas estruturas uma solidez e uma normalidade que é frequentemente difícil de se questionar70.

O mundo como um todo e as experiências dos objetos materiais só podem ser pensados dessa maneira por meio do discurso e das estruturas que se im-põem ao nosso pensamento. O que interessava para Foucault71 era a maneira que o discurso era regulado dentro da sociedade, pois em cada sociedade a produção do discurso era controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos cuja regra é repelir seus poderes e perigos, para ganhar poder sobre os eventos. É importante, dentro desse contexto, trazer a ideia de restrição e isolamento do Outro por meio da disci-plina e de seus mecanismos de controle. Assim, procuraremos relacionar tais ideias aos dispositivos disciplinares usados com a fotografia em instituições como manicômios e presídios. Tais instituições tinham como objetivo deli-mitar e regular o espaço do Outro ‘estranho’ de acordo com suas patologias e características de desvio social.

57 Aristóteles apud Agambem 2002, p. 15

58 2004, p. 43

59 Ibid, p. 88

60 Danaher, 2000, p. XIV

61 2003, p. 33

62 Revel, 2005, p. 47

63 Ibid., p. 20

64 2003, p. 43

65 Ibid., p. 44

66 Ibid., p. 52

67 Danaher, 2000

68 Arnold, 2004, p. 107; 113

69 1978

70 Mills, 2003, p. 56

71 1978

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OS MECANISMOS DISCIPLINARES PELO USO DO RETRATO FOTOGRÁFICO

) 0&2$&34! 1) -!'!.#)-0) causou impacto na sociedade pela sua cren-ça na representação fiel da ‘realidade’. Simultaneamente ao desenvolvimento técnico do aparato fotográfico, as funções controladoras do Estado se expan-diram e se diversificaram pelo seu rigor e visibilidade. Dentro desse contexto, a fotografia ofereceu aos cientistas a multiplicidade no campo da observação e o exame comparativo de dados. As práticas documentais na fotografia de retrato, a partir de 1880, foram utilizadas por sua característica disciplinar e regulatória em hospitais, asilos, delegacias de polícia etc. ‘Favelas miseráveis’ e ‘fisionomias anormais’ de pacientes ou prisioneiros descolados da socieda-de aristocrata eram rejeitados por meio de um arquivo de imagens onde o mínimo traço de ‘desvio’ era classificado e anotado. Tal distinção valia não somente para os corpos, mas também para o espaço:

os corpos – trabalhadores, vagabundos, criminosos, pacientes, o insano, o po-bre, a raças colonizadas – são tomados uma por um: isolados em um frívolo espaço contido; virando seus rostos completamente com um olhar não retor-nável; iluminados, em foco, medidos, numerados e nomeados; forçados a dar origem aos mínimos escrutínios de gestos e características. Cada dispositivo é um marca do poder sem palavras, replicado em inúmeras imagens, uma vez que o fotógrafo prepara a exposição, na cela da polícia, na prisão, na casa de missão, no hospital, no asilo, ou na escola. Os espaços, também – territórios inexplorados, terras fronteiriças, guetos urbanos, favelas da classe operária, cenas de crime – são confrontados com a mesma frontalidade e medidos contra um espaço ideal: um espaço livre, um espaço saudável, um espaço de linhas de visão desobstruídas, abertos para visão e supervisão; um espaço desejável em que os corpos estarão livres de doenças [...]72.

O início da fotografia também coincidiu com o estabelecimento dos serviços de polícia e organização documental73. O estabelecimento de novas institui-ções de (re) conhecimento buscou ativar na fotografia mecanismos ‘como um tipo de prova’74. A vigilância nas instituições era capaz de tornar todos visíveis, mas ela própria deveria permanecer invisível. A polícia foi um dos exemplos que instalou um ‘novo poder de conhecimento’ com novas técnicas de obser-vação acarretando um aumento da produção de dados, registros e relatórios; consequentemente a fotografia de retrato com sua instantaneidade facilitou a identificação de criminosos, tornando-se um produto do método ‘disciplinar’:

o corpo transformado em objeto; dividido e estudado, cercado em uma es-trutura celular do espaço cuja arquitetura é em forma de fichas de catálogo, tornados dóceis e forçados a se render a sua verdade, separados e individuali-zados, dependentes e feitos para depender. Quando acumuladas, tais imagens são equivalentes a uma nova representação da sociedade75.

O sistema de identificação criminal com a fotografia foi criado em Paris em 1880, pelo oficial de polícia Alphonse Bertillon {Fig. 9}. O sistema era composto por dois retratos fotográficos (frontal e de perfil), medidas antro-pométricas e notas escritas em um cartão ou ficha. Com todos esses dados, Bertillon procurou estabelecer um modelo de administração e estatística76

72 Tagg, 1993, p. 64

73 Segundo Tagg (1993, p. 74), ambos foram progredindo juntos no decorrer de duzentos anos.

74 Sontag (1986), seguindo a mesma reflexão, discorre que uma das utili-dades da fotografia é a de possuir o poder de incriminar porque ela fornece prova: “desde sua utilização pela polícia de Paris na perseguição sanguinária aos Comunnards em Junho de 1871, a fotografia tornou-se um instrumento precioso dos Estados modernos para a vigilância e controle das suas populações, que têm uma crescente mobilidade. Uma fotografia passa por ser uma prova incontro-versa de que uma determinada coisa aconteceu”. (p. 15)

O início da fotografia também coincidiu com o estabelecimento dos serviços de polícia e organização documental73. O estabelecimento de novas instituições de (re) conhecimento buscou ativar na fotografia mecanismos ‘como um tipo de prova’74. A vigilância nas instituições era capaz de tornar todos visíveis, mas ela própria deveria permanecer invisível.

75 Tagg, 1993, p. 76

76 Entre os anos de 1830 e 1840 houve introdução da estatística social por Adolphe Quetelet do qual Bertillon sofreu influência. Quetelet procurava a regularidade estatística em taxas de nascimento, mortalidade e criminalidade, para estabelecer o conceito de ‘homem mediano’; um indi-víduo socialmente estável e saudável. Para o estatístico, “quanto maior o nú-mero de indivíduos estudados, maior as particularidades individuais, físicas ou morais se fazem aparentes, e deixam um proeminente ponto de vista aos fatos gerais, em virtude de que uma sociedade exista e seja preservada”. (Quetelet apud Sekula, 1986, p.20)

{Fig. 9Alphonse Bertillon1893Criminal profiles

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na polícia, o qual permitia a identificação e quarentena de criminosos re-incidentes. O policial queria melhorar os métodos de controle para captura de delinquentes. Sekula77 pondera: “Bertillon procurou diferenciar. Suas in-tenções eram práticas e operacionais, uma resposta às exigências do traba-lho da polícia urbana e às políticas fragmentadas de lutas entre classes na Terceira República”. O arquivo de dados de Bertillon procurava identificar criminosos ‘habituais’ ou ‘profissionais’. As fotografias tentavam evitar os disfarces, falsas identidades etc. À Bertillon interessava que a ordem social triunfasse sobre a desordem social78. No entanto, o sistema de ‘classificação’ tinha problemas de organização devido ao enorme número fotografias e fichas, podendo levar até uma semana para identificação dos criminosos (ainda que suscetível ao erro)79. Rouille aponta que a fotografia não conse-gue captar as transformações físicas dos reincidentes e por isso foi associada a outro sistema de classificação: a antropometria80. O esquema de identifica-ção de Bertillon foi colocado em xeque com o advento da impressão digital. Tal técnica demonstrou que o corpo não necessitaria estar circunscrito para ser identificado. Segundo Henning, a fotografia no final do século XIX era utilizada para classificar pessoas em ‘tipos’ por meio das disciplinas de fisionomia e frenologia81. Para Sekula82, essas disciplinas ‘comparativas’ contribuíram para a divisão hierárquica do trabalho em um sistema capita-lista baseado na habilidade e inteligência individual. Havia a distinção pelo retrato fotográfico entre as zonas de genialidade, virtude, poder, comparada às zonas de estupidez, vício e fraqueza. Não havia zonas ‘intermediárias’ de análise e comparação. As ‘zonas negativas’ eram associadas às variações de animalidade e patologia. Em História da loucura (1972), Michel Foucault aponta eventos históricos que representam o binômio de razão/desrazão da idade clássica. Foucault discorre que a prática da internação designa uma nova reação à miséria, aqueles que podem desenvolver aspectos inumanos dentro de sua própria existência, deveriam ser internados: “o louco moder-no tornou-se estranho a si: se ele não se torna livre conforme e dentro das instituições do mundo moderno, ele se encerra em sua própria verdade”83. Existe com a internação uma nova sensibilidade a fim de banir:

[...] o momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo; o momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade. As novas significações atribuídas à pobreza, a importância dada à obrigação do trabalho e todos os valores éticos a ele ligados determinam a experiência que se faz da loucura e modificam-lhe o sentido84.

No intuito de isolar o indivíduo por meio de patologias, o médico Hugh Wel-ch Diamond foi o responsável por criar a relação entre fotografia e psiquiatria, creditando à imagem seu poder de cura pela ‘fotografia clínica’ {Fig. 10}. O local onde os pacientes eram fotografados era um espaço político regulador onde uma ‘nova ordem’ foi instituída: “o conhecimento e a verdade de que a fotografia se tornou o guardião eram inseparáveis do poder e controle que ela engendrou”85. Consequentemente, se sobrepunham os discursos da psiquia-tria, da fisionomia, da ciência fotográfica e da estética. A fotografia de retrato foi empregada para o diagnóstico e tratamento de transtornos psiquiátricos, mostrando a correspondência entre a doença cerebral e os órgãos e caracte-rísticas do corpo. A imagem também manifestava o esquema de controle por-que servia como evidência para registros médicos. O médico buscava mostrar para os próprios pacientes como suas aparências eram de pessoas ‘desviantes’ em comparação a sujeitos ‘normais’86. Os retratos também serviam para iden-tificar e readmitir pacientes em hospícios – por motivos de segurança87 – no caso de ausência temporária ou cura. Diamond confiava completamente na fidelidade e descrição precisa do retrato fotográfico88 como podemos notar na citação abaixo em seu artigo de 1856, “On the Application of Photography to the Physiognomic and Mental Phenomena of Insanity”:

o metafísico e moralista, o médico e fisiologista se aproximaram de uma in-vestigação com maneiras de ver peculiares, definições e classificações. O fo-tógrafo, de outra forma, não precisa em muitos casos da ajuda de nenhuma linguagem, mas prefere exatamente ouvir, com a fotografia antes dele, a silen-ciosa, mas falante linguagem da natureza. É desnecessário para ele o uso de termos vagos que denotam a diferença do grau de sofrimento mental, como por exemplo, agonia, tristeza, profunda tristeza, pena, melancolia, angústia, desespero; a fotografia fala por ela mesma [...]89

A câmera fotográfica foi empregada no final do século XIX como instru-mento de conhecimento, evidência e documentação não apenas em institui-ções psiquiátricas. Em 1880, o estatístico inglês Francis Galton introduziu outra técnica fotográfica derivada das ciências de fisionomia e frenologia {Fig. 11}. Para Wells90, a combinação entre a ciência e a técnica “produziu uma nova e completa visão racista da sociedade”. Galton foi o fundador da eugenia91, ciência que consistia em um sistema racial classificatório – pos-teriormente utilizado pelos nazistas – interessada na hereditariedade e no ‘melhoramento’ racial: “o movimento de eugenia que Galton fundou flores-ceu em um contexto histórico [...] de declínio das taxas de natalidade da classe média associado aos medos da classe média de um resíduo emergente

77 1986, p. 19

78 Ver Sekula, 1986, p. 40

79 Foram mais de cem mil fotografias arquivadas ao longo de dez anos. (Ibid., p. 26)

80 Medidas de certas partes do corpo como cabeça, nariz, testa etc. Ver Rouil-le, 2009, p. 87

81 A fisionomia era uma ciência conhecida em distinguir o caráter de uma pessoa pela classificação das medidas da cabeça. A frenologia basea-va-se na ideia de que os contornos do crânio podiam dar pistas em relação ao funcionamento mental do cérebro. Ambas as ciências procuravam decifrar o corpo pelo desejo de classificá-los de acordo com sua apa-rência visual: “a clas-sificação ‘tipológica’ se reafirmava para as classes médias urbanas porque suas convenientes gene-ralizações ajudavam a tornar uma massa de estranhos na cidade parecerem mais familiares”. (Henning apud Wells, 2001, p. 221)

82 1986

83 Billouet, 2003, p. 30

84 Foucault, 1972, p. 78

85 Tagg, 1993, p. 80

86 Shaw, 1994, p. 825

87 “É bem sabido que os retratos daqueles que estão reunidos nas prisões de punição têm muitas vezes sido de muito valor em recapturar alguns que escapa-ram, ou em provar com pouca despesa, com a certeza de uma condenação anterior [...]”. (Dia-mond apud Tagg, 1993, p. 80)

88 Comparada às téc-nicas de ilustração utilizadas na época, como a litografia e gravura.

89 Diamond, 1856, p. 2

90 2001, p. 224

91 Segundo Wells (2001, p. 224), a eugenia “propunha que as quali-dades morais e intelectuais fossem hereditárias e que algumas raças por consequência fossem superiores a outras. Além disso, convenientemente forneceu uma justificativa para o colonialismo europeu, a eugenia representou a diferença de classes como biológica, observando a inclinação das classes sociais mais baixas em direção ao desvio como resultado da falta de boas qualidades hereditárias”.

capitúlo 3 ser fotografado | a vulnerabilidade social por meio da imagem

de pobres urbanos degenerados”92. Prosseguindo com a reflexão de Seku-la, o estatístico estava comprometido em propagar tecnologias de controle demográfico por meio da intervenção na reprodução humana através de políticas públicas “encorajando a propagação do ‘correto’ e desencorajando ou prevenindo totalmente o ‘não correto’”93. O método era aplicado pela superposição de retratos com o registro de características e circunstâncias similares. Os retratos de criminosos eram agrupados de acordo com suas fisionomias para comprovar que “todos cometeram o mesmo crime, ou per-tenciam aos mesmos grupos étnicos”94. A fotografia ‘composta’ procurava revelar características inaptas biológicas – diagnosticando doenças – in-fluenciadas pela hereditariedade. Entretanto, a história da fotografia ignorou os métodos de documentação utilizados por Bertillon e Galton. Sekula95 sugere que uma breve referência aos mecanismos de controle pela imagem se devia “a uma opinião erudita burguesa preocupada com o traba-lho obsceno da modernização, especialmente quando o status da fotografia como arte estava em jogo”. O pesquisador ainda enfatiza que

“o louco moderno tornou-se estranho a si: se ele não se torna livre conforme e dentro das instituições do mundo moderno, ele se encerra em sua própria verdade”. 83

92 Sekula, 1986, p. 44

93 Ibid., p. 19

94 Henning apud Wells, 2001, p. 224

95 1986, p. 56

Fig. 11 Francis Galton | 1883 !e Bricklayer

}

{Fig. 10 Hugh Welch Diamond 1855 | Mental Patient

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é ainda mais extraordinário que a história da fotografia social documental foi escrita sem levar em conta a [fotografia de] polícia. Aqui o problema é de manutenção de certo mito humanista liberal das origens de uma fotografia socialmente preocupada completamente com a benfeitoria.

Entendendo o papel fundamental da fotografia dentro de ‘esquemas’ docu-mentais, podemos supor que seus procedimentos e técnicas estavam envolvi-dos em práticas institucionais vigentes em um novo modelo governamental de verdade e ordem96. Dessa maneira, a fotografia veio estabelecer, delimitar e regular o terreno do Outro de acordo com suas circunstâncias de desvio social e suas patologias. A fotografia também funcionava como um mecanis-mo de rápida identificação pressionando as forças de trabalho localizadas nos centros urbanos a se moldarem, submetendo-as à obediência social e docili-dade de seus corpos. A formação do Estado moderno procurava colher infor-mação sobre a população, baseado em um sistema de vigilância eficaz que se tornava integrado ao corpo social, possibilitando que os indivíduos fossem identificados e regulados uns sobre os outros. A reflexão de Tagg97 construída através da análise do pensamento de Michel Foucault é de extrema importân-cia porque revela que a fotografia era um instrumento que facilitava a impo-sição daqueles que detinham poder (agentes do Estado) em direção àqueles que não detinham poder algum (grupos marginalizados como criminosos, doentes mentais, operários, pobres etc.). Procuramos demonstrar como esses sujeitos destituídos de poder eram representados pelas forças modernas de opressão como objetos de conhecimento, análise e controle. Para Tagg98,

como o Estado, a câmera nunca é neutra. As representações que ela produz são altamente codificadas, e o poder que ela exerce nunca é seu próprio. Como uma forma de registro, ela chega na cena investida com uma autori-dade particular para prender, representar e transformar a vida cotidiana; um poder para ver e registrar; um poder de vigilância [...] Este não é o poder da câmera, mas o poder do aparato do Estado local que exibe e garante a autori-dade das imagens que ele constrói para mantê-la como evidência ou registro de uma verdade.

A FOTOGRAFIA DOCUMENTAL COMO MEIO DE REPRESENTAÇÃO SOCIAL

esta é a maneira como o documentário trabalha [...] Se opõe ao comentário; impõe seu significado. Confronta-nos, a audiência, com evidência empírica de tal natureza como para evocar uma disputa impossível e uma interpreta-ção supérflua. Toda sua ênfase é na evidência; os fatos por eles mesmos falam [...] desde que os fatos que importam possam ser transmitidos em qualquer mídia plausível [...] O coração do documentário não é a forma ou o estilo, mas sempre o conteúdo99

! '$#5! 1!(+5$&'/#0! foi criado pelo cineasta John Grierson para de-signar o trabalho baseado na ‘interpretação criativa da realidade’100. Grierson cunhou o termo depois de ter visto o filme de Robert Flaherty, “Moana”101; assim introduzia-se a palavra ‘documental’102 como aquela baseada em fa-tos naturais e materiais apresentados de maneira imaginativa e dramática103. Brian Winston104 pondera que

o uso contemporâneo de documento ainda carrega com ele a conotação de evidência. Esta percepção de documento fornecida pelo enquadramento, como ele era, dentro da qual a tecnologia da fotografia poderia ser colocada. A fotografia foi recebida, desde o início, como um documento e consequen-temente como evidência.

O ‘discurso documental’ foi uma resposta à crise não somente socioeconô-mica, mas da representação da experiência social nos Estados Unidos e na Europa:

o documentário veio para denotar uma formação discursiva que foi bem mais ampla que a fotografia sozinha, mas que apropriou a tecnologia fotográ-fica para um lugar central e privilegiado dentro da retórica do imediatismo e da verdade [...] focado em áreas específicas institucionais e articulado por toda uma gama de práticas intertextuais, [o documentário] é completamente atrelado a uma estratégia particular social: um plano corporativo para nego-ciar a crise econômica, política e cultural por meio de um programa limitado de reformas estruturais e medidas desconfortáveis, além de uma intervenção cultural com proposta de reestruturar a ordem do discurso [...]105.

Segundo Rosenblum106, a documentação social por meio da fotografia flo-resceu com a “emergência de reforma de movimentos sociais e da invenção de um meio não tão caro de mecanicamente se reproduzir os meios-tons

Entendendo o papel fundamental da fotografia dentro de ‘esquemas’ documentais, podemos supor que seus procedimentos e técnicas estavam envolvidos em práticas institucionais vigentes em um novo modelo governamental de verdade e ordem96. Dessa maneira, a fotografia veio estabelecer, delimitar e regular o terreno do Outro de acordo com suas circunstâncias de desvio social e suas patologias.

96 Ver Tagg apud Bolton, 1992, p. 257-260

97 1993

98 1993, p. 64

99 Willian Stott apud Angier, 2007, p. 37

100 Wells, 2001, p. 252

101 Considerado como o primeiro filme-documen-tário, Moana foi produzido na Nova Zelândia e retratou a vida de tribos Samoa na colheita, caça, pesca, costura, dança e ritos de passagem como a tatuagem.

102 Newhall (1938) assinala a diferença entre a fotografia parada como uma arte espacial e a fotografia em mo-vimento – cinema – como relacionada ao tempo e à uni-dade. A fotografia pode ser reprodu-zida com outras imagens e com outras legendas e vista com diversas interpretações, distinguindo-a do filme documental.

103 Newhall, 1938, p. 2

104 apud Quick, 2010, p. 4

105 Tagg, 1993, p. 8

106 1984, p. 341

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das fotografias” e se desenvolveu com o crescimento da imprensa popular e suas tecnologias de impressão. Para Rosler107 a consciência social por meio da sensibilização fotográfica documental obteve reconhecimento pelo de-senvolvimento ideológico liberal através dos movimentos de reforma e do Estado liberal no início do século XX108. O momento no qual o documento social tomou seu lugar dentro da história da fotografia foi em 1930109. Os trabalhos fotográficos de documentação social buscavam alterar o propósito da situação precária vigente. Seu significado e ressonância tinham estilo e abordagem particulares:

com seu foco primordialmente nas pessoas e sua situação social, as imagens no estilo documental combinam organização pictórica lúcida com um com-prometimento passional pelos valores humanísticos – ideais e dignidade, o direito a condições decentes de vida e trabalho110.

A fotografia documental poderia ter dois momentos, segundo Rosler111: a fotografia como imediatista e instrumental, apresentada como testemunha de um momento ideológico argumentando para ou contra a mudança social; e a fotografia documental ligada ao momento ‘ahistórico’-estético dando es-paço à organização e ao prazer estético da imagem, recusando seu período histórico específico como procuraremos discutir mais adiante com a criação do grupo Farm Security Adminitration e do trabalho do fotógrafo Sebastião Salgado. A fotografia documental era apresentada como um grupo de imagens e aplicada a peças gráficas como ilustração em panfletos e periódi-cos acompanhados de artigos e textos. O sucesso de tal documento se devia ao poder de reproduzir a realidade da vida social de maneira fiel. A fotografia gravava os fatos cotidianos com precisão visual e havia a crença, na época, de que ela carregava o índice112 de seu referente113. Freund114 pondera que a fotografia documental, no entanto, poderia expressar os desejos e necessida-des das camadas dominantes, ficando suscetível a “deformações possíveis da realidade, dado que o caráter da imagem se determinou cada vez mais pela maneira de ver do operador e das exigências de seus comandantes”. Seguin-do tal reflexão, a fotografia documental, passa a ser objeto de interesse pelo aspecto ‘pitoresco’ da decadência humana e de seus edifícios trazendo à tona imagens de grande beleza. O fotógrafo documental expressa sua emoção por meio da câmera frente a um problema social, “ele coloca por meio de ima-gens o que ele sabe sobre, e o que ele pensa a respeito, o sujeito antes de sua câmera”115. Portanto, no início do século XX a fotografia documental estava ligada à ideia de que ela era um traço do ‘real’116. Sua autenticidade estava baseada na presunção de que a fotografia era representada de maneira

não dirigida à lente da câmera. Sontag critica o desejo por uma visão ‘realista’, considerando que esta fazia com que fotógrafos documentaristas buscassem seu ‘prêmio exótico’ nas camadas mais pobres da sociedade:

os fotógrafos, durante mais de um século, debruçaram-se sobre os oprimidos, presenciando cenas de violência com uma boa consciência espetacular. A in-justiça social tem inspirado os privilegiados para a premência de tirar foto-grafias, a mais suave das predações, com o fim de documentar uma realidade oculta, ou seja, uma realidade oculta para eles117.

O primeiro fotógrafo a realizar um trabalho documental com populações pobres foi o inglês John 6omson, no final do século XIX. 6omson publicou o livro Street Life in London, em 1887118 e fotografou vendedores de rua, nô-mades, pobres etc. Rosenblum pondera que o livro não era uma condenação ao sistema de classes, mas procurava fazer com que a classe média se sensibi-lizasse com a população pobre e melhorasse sua condição119. Destacamos na publicação a imagem “6e Crawlers”; a foto é de uma senhora esgotada pelo cansaço ou tristeza carregando uma criança no colo e é seguida pelo texto sensacionalista de Smith {Fig. 12}:

como regra, elas são velhas mulheres reduzidas pelo vício e pobreza, ao nível de extrema miséria que destrói suas energias para mendigar. Elas não têm força para lutar pelo pão, e preferem passar fome a realizar a atividade do que os mendigos ordinários devem apresentar120.

107 apud Wells, 2003

108 Época reconhecida como ‘progressiva’ nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial. (Rosler apud Wells, 2003, p. 303)

109 Para Quick (2010, p. 5), a fotografia documental foi uma resposta aos movimentos picto-ralistas da época que por sua vez tinham preocupação estética e discurso simbolista. A fotografia docu-mental também se solidificou pela sua relação com a nova mídia da época o ‘filme’ documental. Ver também Solo-mon-Godeau, 1991, p. 169.

110 Rosenblum, 1984, p. 341

111 apud Wells, 2003

112 Para Kossoy (1999, p. 33) o conteúdo fotográfico tem o conceito de índice vinculado ao processo de criação e pode se caracterizar como: “prova, constatação documental que o objeto, o assunto representado, tangível ou intangível, de fato existiu-ocorreu; qualquer que seja o conteúdo de uma fo-tografia, nele teremos sempre o rastro indi-cial (marca luminosa deixada pelo referente na chapa fotográfica) mesmo que esse referente tenha sido artificialmente produzido [...]”.

113 Quick, 2010

114 2006, p. 8

115 Newhall, 1938, p. 5

116 Quick, 2010, p. 4; Solomon, 1991, p. 170

117 Sontag, 1986, p. 56

118 O livro contava com textos de Adolphe Smith.

119 Ver Rosenblum, 1984, p. 357

120 apud !omson, 1887, p. 81

Fig. 12} John 6omson 1877 | !e crawlers

A fotografia documental era apresentada como um grupo de imagens e aplicada a peças gráficas como ilustração em panfletos e periódicos acompanhados de artigos e textos. O sucesso de tal documento se devia ao poder de reproduzir a realidade da vida social de maneira fiel.

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OS PRIMÓRDIOS DA FOTOGRAFIA DOCUMENTAL NOS ESTADOS UNIDOS PELAS LENTES DO JORNALISTA JACOB RIIS

Quanto à expressão fotografia documental, passou a ser utilizada na década de 1930 nos Estados Unidos (logo após a expressão de filme-documentário), para referir-se às cenas do cotidiano de pessoas comuns, especialmente po-bres, como vistos, por exemplo, através das lentes de Jacob Riis (1849-1914), Dorothea Lange (1895-1965) e Lewis Hine (1874-1940)121.

) -!'!.#)-0) 1!(+5$&'), procura evocar uma reação emocional visceral em direção a grandes audiências. Com o propósito de criar uma ação efetiva diante de um problema, discutiremos o registro documental social realizado pelo fotógrafo Jacob Riis. O dinamarquês Jacob Riis122 imigrou para Nova York em 1870 e depois de um período de indigência se tornou jornalista policial, au-tor de best-sellers e palestrante em igrejas cristãs e convenções. Tais palestras123 eram dirigidas para audiências de classe média a fim de induzir a reflexão sobre a miséria social encontrada na cidade de Nova York, encorajando-as a realizar trabalhos missionários diante “das injustiças que muitos aprenderam a igno-rar”124. Riis foi pioneiro em retratar os miseráveis. Interessado em fotografias125 para ilustrar suas matérias e publicações, selecionou voluntários amadores e um profissional para tirar fotos. Problemas com seus contratados obrigaram-no a aprender a fotografar. O jornalista em 1877 trabalhou para os jornais New York Tribune e Associated Press Bureau onde iniciou suas incursões como jornalista nos cortiços; em 1887 começou a usar a máquina fotográfica. Apesar de nunca ter almejado ser um grande fotógrafo, Riis explicava que “é uma foto ruim, mas não é tão ruim quanto o lugar”126, admitindo que seu trabalho era apenas su-perior aos ambientes fotografados. Conforme comentário de Vicki Goldberg,

ele queria algo mais convincente que palavras, não conseguia desenhar e não considerava desenhos uma evidência adequada. A tecnologia veio para ajudá-lo. Quando Riis leu sobre o flash de pó de magnésio em 1887, deu-se conta imediatamente de que era possível fotografar com flash dentro de apartamen-tos escuros onde pobres cidadãos viviam mediocremente127.

Tentar mostrar às pessoas de classe mais abastadas um ambiente não reve-lado e ‘perigoso’; essa era a função que alguns fotógrafos estavam engajados por meio da fotografia documental128. A fotografia, antigo instrumento de uma burguesia interessada em registrar paisagens pitorescas e retratos de família, adquiriu outra função com o trabalho de Riis: a de denúncia social. Para Peter Hales129, o trabalho de Riis levou que

fotógrafos da cidade vissem eles mesmos não simplesmente como observa-dores passivos da superfície das coisas, mas como investigadores ativos que revelam por baixo da aparente superfície da cidade suas realidades escondi-das, suas verdades obscuras.

O trabalho de um documentarista social não é eficaz com uma foto somente; mas com uma série de imagens. Perturbadora, a fotografia documental de Riis expunha as mazelas da sociedade e propunha contribuir para melhorar as condições de existência dos fotografados130 {Fig. 13}. Segundo Riis, a mo-tivação da criação de seu livro How the other half Lives131 em 1890 vinha da “crença na experiência de o que cada homem faz deveria ser algo válido para a sociedade da qual ele faz parte, não importando o que tal experiência po-deria ser [...]”132. Twigg critica o livro, considerando-o como uma compilação de fotografias, estatísticas, tabelas demográficas, com uma narrativa de suas ‘aventuras’ nos guetos com uma retórica altamente moralizante133. No entan-to, para Pascal134, a publicação do livro inspirou uma geração de reformistas nos Estados Unidos e abriu os olhos da nação, fazendo Riis o porta-voz dos

121 Burke, 2004, p. 26

122 Pascal (2005, p. 26) fez um levanta-mento minucioso sobre a situação de extrema pobreza que Riis viveu em Nova York. A cita-ção de Riis ilustra bem tal condição: “morando na rua e sem dinheiro, eu me juntei ao exérci-to dos vagabundos vagando nas ruas durante o dia com a imobilidade de alguém faminto que corroía meus sentidos vitais, e lutando durante a noite com pessoas maltrapilhas e banidas tão miseráveis como eu por proteção em albergues e marqui-ses. Eu era muito orgulhoso em toda minha miséria para mendigar [...]”.

123 Suas palestras eram acompanhadas com música e slides fotográficos. Segun-do Twigg (1992, p. 308), o fotógrafo “combinava o tra-tamento ideológico do livro com humor e melodrama para produzir um entre-tenimento altamen-te moralizante para audiências de classe média”.

124 Carter, 2008, p. 118

125 Segundo Alland (1993, p. 11), a co-leção de fotografias de Riis tem 412 placas de vidro e 250 negativos.

126 Meyerowitz, 1994, p. 242

127 Goldberg, 1999, p.11

128 É interessante tra-zer a relação entre distanciamento e perigo proporcio-nada pela fotografia através da reflexão de Simson (apud Samain, 2005, p. 20): “os avanços tecnológicos, o isolamento social e a violência da sociedade contem-porânea têm levado os homens a per-mear seu cotidiano com um número cada vez maior de imagens, chegando alguns a preferir vivenciar, em certas circunstâncias, uma realidade virtual em lugar de correr riscos com relacio-namentos sociais imprevisíveis”.

129 apud Carter, 2008, p. 117

130 Para Sontag (1986, p. 25), “uma fotografia que nos informa sobre si-tuações insuspeitas de miséria não pode ter impacto na opinião pública se não encontrar um contexto de sentimento e atitudes propícios”.

131 Em função das limitações de im-pressão da época, as fotografias do livro aparecem nas primeiras edições em forma de ilustração. (Charles A. Madison apud Riis, 1971, p. viii)

132 Riis, 1971, prefácio

133 Ver Twigg, 1992, p. 309

134 2005, p. 8

Fig. 13 Jacob Riis | 1890 Bandits’ Roost

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pobres e criando um elo entre os excluídos e incluídos da sociedade de Nova York. Dentro desse contexto, é importante trazer a reflexão de Kathy Quick sobre as mudanças ocorridas na época da reforma americana135 pela mudan-ça de atitude frente à pobreza:

Na maior parte do século XIX havia um foco no indivíduo como causa e na caridade como a solução. Existia uma distinção feita entre o pobre ‘mere-cedor’ e o ‘não merecedor’. Aqueles condenados ‘merecedores’ poderiam ser ‘ausentes de espírito’ ou vítimas de falta de sorte como doentes, acidentados, ou vítimas de catástrofes pessoais [...] Pelo contrário, os pobres ‘não mere-cedores’ são entendidos como pessoas com vidas imorais preenchidas pelo alcoolismo e a promiscuidade, entre outras coisas, e são responsáveis pela sua própria situação136.

Entre 1870 e 1880, imigrantes judeus, irlandeses, italianos e alemães viviam em 37.316 cortiços que abrigavam o número de 1.093.791 pessoas137. O preço dos aluguéis era alto, levando famílias a ocuparem quartos de cortiços super-lotados. Em 1890, Riis explorou o interior de cortiços, albergues da polícia, vilas, escolas improvisadas e bairros do subúrbio de Nova York. Em ambien-tes escuros, cercados de sujeira, crianças e adultos eram fotografados em seu cotidiano {Fig. 14}. Para Carter138, o trabalho de Riis enfatizava “a alta taxa de mortalidade dos trabalhadores que estavam alojados em apartamentos superlotados, a fome de famílias pobres, a exploração do trabalho infantil, e as circunstâncias de sujeira em que esses sujeitos viviam suas breves vidas”. Como mencionado, o documentarista usava flash de magnésio conhecido como Blitzlichpulver para iluminar os locais. Carter pondera que a potência do flash servia não somente para captar o real estado das habitações pre-cárias, mas para acentuar e até exagerar suas condições de extrema pobre-za “suas fotografias efetivamente fizeram tudo visível, se possível, mais sujo, mais populoso, mais caótico do que a realidade”139. O flash intensificava a im-pressão para que o observador – livre de riscos – compartilhasse temporaria-mente por meio da fotografia o espaço com os pobres {Fig. 15}. Riis, com suas fotografias, fez que a cidade interior e obscura onde os pobres viviam fosse ‘brilhante e transparente’ para seus leitores140. Já o fotógrafo Ansel Adams141, pensando em aspectos estéticos da imagem, aponta que a qualidade da ilu-minação do flash de Riis era extraordinária devido a “suas bordas sombrea-das, modulações e texturas dos elementos, o equilíbrio entre o flash interior e a luz do dia [...]” Solomon-Godeau discute que tamanha exposição dos pobres ameaçava um grande número de imigrantes recém-chegados; dessa maneira, a fotografia poderia se transformar em um mecanismo de vigilân-

135 Tagg (2003, p. 9) aponta que o pro-grama de reforma americana ‘New Deal’ mobilizou uma ‘prática do-cumental’ entre as ‘New Deal Agencies’ centralizadora e corporativista por meio da reforma sanitária, criminal etc. A administra-ção de Franklin Roosevelt fez dessa prática não apenas propaganda com orientação política, mas “exibiu uma retórica com um largo apelo [político], tal apelo apenas tinha o status de recuperar a Verdade no discurso, um status ameaçado pela crise, mas cuja renegociação era essencial se o significado das relações sociais fosse prolongado e a identidade nacional e social fosse protegida, en-quanto a demanda pela reforma foi contida dentro dos limites de relação do monopólio capitalista”. Tagg (2009, p. 60) tam-bém assinala que ocorreu na época uma estratégia cul-tural do ‘New Deal’ ativada e apoiada na estrutura docu-mental.

136 Quick, 2010, p. 28

137 Madison apud Riis, 1971, p. VI

138 2008, p. 119

139 Hales apud Carter, 2008, p. 122

140 Carter, 2008

141 apud Alland, 1993, p. 7

cia, confinamento e controle social142. O fotógrafo também acentuava as con-dições precárias de vida dos pobres em Nova York pela combinação da “foto-grafia, composição e assunto”, trazendo em primeiro plano a superpopulação dos cortiços com toda composição fotográfica preenchida por pessoas e por vários objetos em precária condição143. A preocupação de Riis era denunciar a sofrida condição de vida em que se encontravam vários imigrantes. O lazer inexistia nos registros fotográficos. Os locais em que crianças e adultos vi-viam eram pequenos porões. Para dormir, as crianças se agrupavam no chão e os adultos disputavam um espaço nos colchões. Todos tinham um aspecto de sofrido {Fig. 16}. Riis fotografava interiores depois das duas da manhã – acompanhado de policiais – para ter certeza de que conseguiria encontrar os cortiços em sua pior situação de lotação144; “ele de repente aparecia nos abrigos dos pobres sem avisá-los no meio da noite”145. O número de equipa-mentos e o barulho explosivo dos cartuchos de seu flash acordava e causava distúrbios nos seus retratados: “fisicamente descoordenado, Riis duas vezes ateou fogo aos lugares que visitava, uma vez em sua própria roupa [...]”146.

Riis mostrou às pessoas que nunca tinham visto fotografias de pobreza e de multidão, momentos duros e desconcertantes. Ele convidou-nos ao choque. Nós estamos tão acostumados ao pior que provavelmente não poderíamos entender o quanto eram poderosas estas imagens inovadoras. Ocasionalmen-te as pessoas ficavam tão perturbadas que choravam e até desmaiavam. As leis de moradia também mudaram. Riis foi imensamente eficaz147.

Para Goldberg148, as fotografias de Riis funcionavam parcialmente para a so-ciedade da época, pois esta deveria se engajar e acreditar na responsabilidade que todos têm diante da pobreza. Tais fotografias tinham a inclinação “in-vasiva, exploratória, sensacionalista, distante”. Riis utilizava várias maneiras discursivas de apresentar seus textos e fotografias; obtendo sucesso através de sua autoridade como narrador e apresentador149. Twigg150 pondera que a efetividade do trabalho de Riis era devida a sua habilidade de coarticu-lar raça, gênero, e identidades de classes através da narrativa de seu texto e de suas fotos em “esquemas classificatórios categorizando indivíduos em unidades facilmente administráveis que, interessantemente, reduzem todas diferenças culturais em distinções raciais claramente discerníveis pela cor”. Em uma época em que a diversidade cultural “problematizava as concepções homogêneas da identidade ‘Americana’”151, tal narrativa poderia reforçar a enxergar ‘the Other Half ’ como uma forma de vigilância entre classes152: “muito da retórica de How the Other Half Lives expressa a ansiedade da classe média sobre a ameaça política da ‘Outra Metade’ e representa tal ansiedade

142 Ver Solomon-Go-deau, 1991, p. 175

143 O autor discute duas fotos de Riis do capítulo chama-do “!e Bend” reve-lando a contradição do fotógrafo na representação do espaço. Na fotogra-fia ‘Bandit’s Root’ a parte externa do cortiço converge para distância e amplitude sendo fotografada de maneira natural, mostrando a socialização entre pessoas. Já a foto-grafia “Lodgers in a crowded Bayard Street Tenement – Five cents a spot”, Riis mostra um quarto de corpos empilhados estres-sados pela confusão de atividades em um espaço confina-do. Para Carter, isso demonstra a tensão entre o fotógrafo e seu entorno de maneira pensada e dirigida. Ver Carter, 2008, p. 122-123

144 Carter, 2008

145 Goldberg, 2005, p. 179

146 Madison apud Riis, 1971, p. viii

147 Goldberg, 1999, p. 13

148 2005, p. 179

149 Stange, 1989, p. 2.

150 1992, p. 316

151 Ibid., p. 310

152 Twigg, p. 307; 310

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num discurso de gestão que apresenta o Outro para a inspeção pública e regulação”. A classe média reformista não estaria engajada em resolver os problemas sociais dos quais Riis apresentava, como a extinção dos guetos; para Twigg, ao contrário, os guetos são um componente útil do sistema eco-nômico. O pesquisador conclui em seu artigo que o livro de Riis tinha como função o controle por meio da câmera e da descrição documental. O traba-lho para o autor “produzia e justificava hostilidade pela diferença cultural”153. Em contrapartida, o fotógrafo Ansel Adams, no prefácio do livro Jacob A. Riis Photographer and Citizen (1993), defende que a fotografia humanística de Riis é de “definitiva importância histórica”:

Muitas das pessoas apresentadas no trabalho de Riis olham para a câmera e para o fotógrafo no momento da exposição. Eles não se dão conta de que eles estão olhando para você e para mim e toda humanidade por ages of time. Suas posturas e agrupamentos não são artificiais; o momento da exposição foi selecionado mais como uma intenção de verdade do que com uma intenção de efeito. Seria difícil imaginar estas fotografias como imagens únicas. à parte do projeto de grande matriz de Riis. As fotografias, livros, artigos e palestras de Riis existem como uma única afirmação, uma vida dedicada ao trabalho. Isto é o que a fotografia deveria ser – uma afirmação criativa e construtiva integrada, não uma série de imagens desconectadas e desorganizadas com um apelo mais ou menos superficial. O fotógrafo quando expressando ‘ele mesmo’ ou refletindo uma ideologia ou puramente uma linha estética está, em efeito, shadowboxing com realidade [...] não podem ser suprimidos em estilos, e modelos intelectuais154.

Fig. 14} Jacob Riis 1888

Fig. 15} Jacob Riis 1890

Fig. 16} Jacob Riis 1889

A preocupação de Riis era denunciar a sofrida condição de vida em que se encontravam vários imigrantes. O lazer inexistia nos registros fotográficos. Os locais em que crianças e adultos viviam eram pequenos porões. Para dormir, as crianças se agrupavam no chão e os adultos disputavam um espaço nos colchões. Todos tinham um aspecto de sofrido.

153 Ibid., p. 326

154 Adams apud Alland, 1993, p. 7

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A PROFISSIONALIZAÇÃO DA FOTOGRAFIA DOCUMENTAL COM A DOCUMENTAÇÃO DO SOCIÓLOGO LEWIS HINE

Nós vimos através dos livros de história e as tomado [fotografias] como fatos, inconscientes do homem que fez essas imagens [...] muito ainda permanece para ser visto: estas fotografias não são ilustrações, mas visões de um homem para quem a câmera era um instrumento da verdade155.

Mas ele não fotografará desapaixonadamente; ele simplesmente não ilustrará suas anotações. Ele colocará dentro de seus estudos de câmera uma parte da emoção que ele sente em direção a um problema, para ele, esta é a maneira mais efetiva de ensinar o público do qual ele está endereçando156.

) -!'!.#)-0) 1!(+5$&'), se profissionalizou em Nova York pelas lentes de um sociólogo. Em 1904157, Lewis Wickes Hine realizou seu primeiro tra-balho de documentação social. No início do século XX, os Estados Unidos atraíam a imigração estrangeira. Pessoas de toda a Europa seguiam rumo à Nova York à procura de trabalho. Em Ellis Island, famílias esperavam a libe-ração para permanecer no país. Ao longo de cinco anos, Hine fotografou a vida desses maltratados imigrantes. Hine também trabalhou durante a refor-ma progressiva158 nos Estados Unidos até os anos da Grande Depressão, em 1930. Quick159 pondera que nestes anos muitos reformistas sociais considera-vam a fotografia uma ferramenta científica de pouco valor e que esta somente servia para coletar dados de maneira mais rápida. Segundo Seixas160, “como professor de uma Escola de Cultura Ética progressista, Hine estava cercado e inspirado pelo otimismo do vibrante movimento de reforma em Nova York” O fotógrafo estava envolvido na habilidade que o povo americano deveria ter em resolver seus problemas sociais; sua contribuição seria demonstrar os conflitos de classe e a pobreza por meio da publicidade de suas imagens. A forma de apresentação de suas imagens combinava com textos, criando uma linguagem gráfica nova, enaltecendo a fotografia161. A fotografia não era subordinada ao texto; ambos os recursos eram tratados de maneira igual. A forma que Hine narrava os problemas sociais era melodramática162. Sua abordagem era dife-rente da imprensa sensacionalista, dominada por narrativas em que jornalistas criavam sua própria versão dos fatos163. Seus registros não possuíam o amadorismo de Jacob Riis. Apesar de usar um equipamento pesado e flash em pó para situações de pouca luz, suas imagens produziam um genuíno e fugaz relacionamento com pessoas que não falavam a língua inglesa164. A foto-grafia documental em Ellis Island adquiriu profissionalismo com composições bem enquadradas e iluminadas165. Uma fotografia emblemática de tal série é a

imagem ”Climbing into America”. A fotografia publicada no jornal de trabalho social !e Survey166 mostrava uma série de imigrantes com papéis nas mãos aguardando para serem atendidos pelos oficiais da imigração {Fig. 17}. A fo-tografia era seguida pela legenda “fila dolorosamente ascendente do momento em que trabalhadores chegam a Ellis Island”167. Para Seixas, o artigo do jornal enfatizava a recomendação do escritório de imigração e indústrias como meio de comunicação entre pessoas ‘alienígenas’ e agências e atividades america-

155 Allan Trachtenberg

156 Beaumont Newhall

157 Goldberg, 1999, p. 13

158 A reforma pro-gressista abrange o período de meados de 1890 até o fim da Primeira Guerra, caracterizada pela mudança social em resposta ao crescimento urbano, às pressões da industrialização e à tensão ética.

159 2010, p. 24

160 1987, p. 392

161 “Hine continuava a desdobrar a fotografia social entre unidades sin-táticas entre texto e imagem. Arranjando múltiplas páginas em projetos gráficos, ele reconheceu o latente poder iconográfico da imagem – com um texto autoritário – como uma efetiva e desejável ferramenta de comunicação”. (Kaplan apud Quick, 2010, p. 37)

162 O melodrama era um dominante modo de narração associado à emoção e moralidade. Tal estilo de narração era comum no teatro (no final do século XIX) e no cinema (no início no século XX). Ver Quick, 2010, p. 55

163 Quick, 2010, p. 25

164 Seixas, 1987, p. 382

165 Hine produziu 200 fotografias entre 1904 a 1909. (Je"rey, 1996, p. 159)

166 O jornal tinha o antigo nome de Charities and the Commons e foi renomeado em 1909. Quick (2010) aponta que a proliferação de jornais e revistas durante a era progressiva moti-varam jornalistas investigativos e reformistas sociais a trazer problemas à tona.

167 Seixas, 1987, p. 385

{Fig. 17Lewis Hine | 1905 Climbing into America

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nas. A fotografia demonstrava graficamente a possibilidade de comunicação com ‘alienígenas’168 recém-saídos dos barcos de imigração. Seixas pondera que apesar das imagens de Ellis Island terem sido pouco publicadas e não pos-suírem consistência política, “marcam o começo de uma carreira fotográfica construída em torno do retrato da dignidade e humanidade de trabalhadores e da classe operária”169. Para Je7rey, as imagens revelavam esses novos cidadãos americanos como indivíduos, contrapondo-se à ideia de que essas pessoas não tinham valor algum na Europa170. Lewis W. Hine foi o pioneiro a usar a fotografia documental com técnica apurada e com propostas além da fotogra-fia. O fotógrafo permanecia vários meses no mesmo local convivendo com os fotografados, por exemplo, em fábricas com crianças . Para Goldberg,

a fotografia documental social estava ainda na sua infância no início do sé-culo XX, ainda que Hine tenha dado a ela uma forma canônica. Não que ele a tenha inventado, mas a prática e o conteúdo de seu trabalho influenciariam a fotografia documental americana nas décadas por vir171.

O historiador de fotografia Beaumont Newhall escreveu dois artigos172 sobre a fotografia documental inspirados no trabalho de Hine. O autor descreve que “estas fotografias foram primeiramente tiradas como registros. Elas são diretas e simples. É presente nelas uma qualidade emocional que as elevam a trabalhos de arte”173. O interesse de Newhall aponta para a consolidação do termo fotografia documental não apenas como uma técnica, mas também como algo artístico e com função estética174. Quando discute a estética das fotografias de Hine, a crítica de arte Elizabeth McCausland – que promovia o potencial e a responsabilidade social na área das artes175 – aponta que tais resultados são casuais. O objetivo sociológico era primordial em seus traba-lhos176. Hine também foi comparado a outros fotógrafos da época. Seu trabalho emergia em paralelo ao do fotógrafo pictoralista Alfred Stieglitz. Para Sekula177 no artigo “On the invention of photographic meaning’, o significado de uma fotografia está sujeito à definição cultural da qual ela faz parte: “um discurso pode ser definido como uma arena de informações em troca, que é um sistema de relações entre partes interessadas na atividade de comunica-ção”178. As mensagens seguem interesses próprios, sendo que sua comunica-ção pode ser tendenciosa: “o discurso é, no seu senso mais geral, o contexto de sua declaração, as condições que suportam e suprimem seu significado, que determinam seu público semântico”179. Sekula traz a comparação entre a ima-gem “Immigrants Going Down Gangplank, New York” (1905), de Hine e “6e Steerage” (1907), de Stieglitz; duas imagens que representam os imigrantes em situações e momentos diferentes em Nova York {Figs. 18 e 19}. A fotogra-

168 Twigg (1992, p. 308) discute por meio da interlocução de Michel Foucault que populações ‘aliení-genas’ – imigrantes e as classes ope-rárias – deveriam se transformar em força produtiva de trabalho e consumo por meio da vigilân-cia e disciplina.

169 Seixas, 1987, p. 385

170 1996, p. 159

171 Goldberg, 1999, p. 9

172 Beaumont Newhall. Lewis Hine. Magazine of Art. 31 e Documentary Approach to Photo-graphy. Parnassus. Vol. 10, n. 3

173 Newhall apud Quick, 2010, p. 12

174 Quick discute pela leitura dos artigos de Newhall que a fotografia deveria revelar algum aspecto ‘emocional’ e ‘simpático’ em direção ao assunto retratado.

175 Ver em Quick, 2010, p. 13

176 McCausland apud Quick, 2010, p. 14

177 1982

178 Ibid., p. 84

179 Ibid., p. 85

Fig. 18Lewis Hine | 1905 Immigrants going down gangplank

Fig. 19} Alfred Stieglitz 1907 | Steerage

}

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fia de Hiis apareceu no jornal de trabalho social Charities and the Commons com conotação documental diferente da foto de Stieglitz, que foi publicada na revista de arte Camera Work – da qual era editor – e privilegiava atributos estéticos e artísticos. Sekula vai além dos aspectos estéticos apresentados por Newhall e questiona o que as fotografias realmente significam. O significado de uma fotografia, segundo o pesquisador, faz parte de um ‘discurso fotográ-fico’. Tais publicações citadas acima são destinadas a diferentes públicos com discursos distintos:

Quando nós falamos do necessário acordo entre partes engajadas na ativi-dade da comunicação, nós devemos prestar atenção em torno da sugestão freely entered no contrato social. Esta qualificação é necessária por causa da discussão que se engaja a fotografia como uma moeda de troca no domínio hermético da alta arte e da imprensa popular. A última não é nada neutra e nem aberta ao retorno popular180.

Seguindo a reflexão do autor, a fotografia é de alguma forma um enunciado, talvez incompleto, que carrega ou é uma mensagem que depende das con-dições externas e pressuposições de sua leitura “o significado de qualquer mensagem fotográfica é necessariamente determinado pelo contexto”181. No caso das fotografias de Hine, como elas poderiam ter sua mensagem alterada quando acompanhadas por textos? Um exemplo acerca dessa combinação é o pôster ‘Making Human Junk’ onde o fotógrafo faz através da narrativa de texto e fotografias um percurso que mostra as crianças inicialmente sendo um ‘bom material’ até se transformarem em ‘lixo’ depois de ter trabalhado abusivamente em fábricas {Fig. 20}. As crianças na primeira fotografia são retratadas em grupo quando ainda ‘úteis’, abaixo com retratos individuais encarando a câmera feições tímidas e de raiva182 demonstram o resultado da exploração infantil em forma de conto. Quick questiona se tal narrativa fun-cionaria com apenas uma imagem. Para autora esse esquema de publicidade do trabalho infantil contando uma ‘estória’ se daria à influência do jornalismo sensacionalista e do cinema melodramático183 discutidos anteriormente: “foi o melodrama que forneceu o veículo do qual eles [os reformistas] poderiam expressar melhor sua ideologia progressiva”184, devido a sua flexibilidade em apresentar desde a pobreza à exploração infantil por meio da moralidade e de excesso emocional. As fotografias de trabalho infantil de Hine moviam os espectadores à compreensão de tal injustiça. Em 1906, o National Child Labor Committee contratou o fotógrafo para retratar a exploração infantil em diversos estados americanos, sendo este trabalho o mais reconhecido e celebrado. Em 1908 o fotógrafo deixou sua posição de professor para se de-

180 Ibid., idem

181 Ibid., idem

182 Ver Quick, 2010, p. 58

183 Para a autora, o cinema criou uma nova maneira de ver, influenciando Hine em construir novas narrativas pictóricas (p. 136). O típico melodrama se baseava na vitimização dos ino-centes por um ‘mau vilão’, e era desenha-do para comover o espectador. (p. 72)

184 Ibid., p. 68

{Fig. 20 Lewis Hine Data desconhecida Making Human Junk

a fotografia é de alguma forma um enunciado, talvez incompleto, que carrega ou é uma mensagem que depende das condições externas e pressuposições de sua leitura “o significado de qualquer mensagem fotográfica é necessariamente determinado pelo contexto”181

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dicar exclusivamente à fotografia social, “ignorando um aviso de um filantro-pista estabelecido de que ele não tinha ‘um largo background sociológico’”185. Hine trabalhou de 1906 a 1918186, fotografando os abusos cometidos contra crianças por jornadas de trabalho de até doze horas em fábricas, campos de algodão, indústrias agrícolas, minas etc. {Figs. 21 e 22}. Para Quick, essas fotografias estavam permeadas pelo conceito das crianças serem ‘sagradas’ e ‘emocionalmente inestimáveis’187. O fotógrafo dizia para os capatazes que era vendedor de bíblias, de seguros ou fotógrafo industrial para ter acesso aos locais de trabalho e fotografar as condições em que as crianças trabalhavam. O resultado de sua pesquisa, em um primeiro instante, era apresentado por meio de artigos, palestras, e displays de pôsteres acompanhados de fotogra-fias. Mas a denúncia de Hine ia além das imagens. O fotógrafo usava os botões de sua jaqueta para medir a altura das crianças e calcular suas idades. Sua experiência como professor facilitava as conversas com os pequenos ex-plorados. O sociólogo fazia anotações em um pequeno caderno. Sua pesqui-sa ia além das fábricas e campos. Quando impossibilitado de fotografar em certos locais, Hine se dirigia às residências das crianças para fazer entrevistas com seus familiares. A intenção de Hine – obtendo êxito em 1910 – era im-pactar a opinião pública expondo tais evidências para mudar a legislação:

A veracidade da imagem fotográfica combinada com o que era pretendido com cenas angustiantes de crianças no trabalho foram concebidas para pro-vocar uma forte resposta emocional do espectador. Embora ainda seja uma questão aberta como se fosse uma estratégia eficaz geral, é claro que Hine se propôs a criar as imagens mais altamente carregadas possíveis.186a

Hine fazia seus espectadores ‘sentirem’ o problema das crianças propondo uma futura ação de mudança de opinião. Suas fotografias foram apresentadas em panfletos188, capas de revistas e exibições coletivas para pressionar o público a mudar a situação do trabalho infantil: “em 1912, o United States Children’s Bu-reau foi criado; e no mesmo ano, o Partido Progresso da campanha presidencial de Roosevelt adotou a abolição do trabalho infantil como plataforma”189. Em 1916190, diante do impacto do trabalho do documentarista, o Congresso ameri-cano concordou em rever a situação das leis de proteção às crianças. Para Hine: “Eu queria mostrar as coisas que deveriam ser corrigidas. Eu queria mostrar as coisas que deveriam ser estimadas”191. No livro Photography Reader192, uma série de artigos questiona a autenticidade da fotografia documental em relação à seriedade de seu propósito, profundidade da pesquisa e integridade da histó-ria. Para Rosler193, o testemunhal fotográfico demonstra o ímpeto do fotógrafo em circular em lugares que jamais esperaríamos frequentar. Esse universo fisi-

185 Seixas, 1987, p. 389

186 Quick, 2010, p. 8

186a Ibid, p. 73

187 Ibid., p. 81

188 Hine também foto-grafou cartoons de época onde criticava a exploração e o sofrimento infantil. (Pereira, 2013, p. 135-136)

189 Seixas, 1987, p. 393

190 Goldberg, 1999, p 19

191 Meyerowitz e Westerbeck, 1994, p. 246.

192 Wells, 2003

193 Apud Wells, 2003

Fig. 21 Lewis Hine | 1908 Child laborer

}

Fig. 22 Lewis Hine | 1908 Midnight at the glassworks

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camente perigoso, socialmente restrito e decadente era revelado por fotógrafos documentais que se tornavam ‘estrelas’194. Goldberg aponta que as fotografias de reforma social recentemente fazem parte de coleções de museus, levando os fotógrafos documentais a adotar modelos artísticos. Para Sontag195:

Os fotógrafos com preocupações sociais partem do princípio que o seu traba-lho pode transmitir uma espécie de significado estável, pode revelar a verda-de. Mas em parte porque a fotografia é sempre um objeto num contexto, este significado está condenado a desvanecer-se; ou seja, o contexto que molda os usos imediatos da fotografia – especialmente os políticos – é sucedido ine-vitavelmente por outros contextos em que esses usos são menos fortes e se tornam progressivamente menos relevantes. Uma das características centrais da fotografia é esse processo pelo qual os usos originais são modificados e eventualmente suplantados por usos subsequentes, em particular pelo dis-curso da arte, capaz de absorver qualquer fotografia.

Na direção oposta à imprensa sensacionalista da época196, Rosler197 pondera que os fotógrafos Jacob Riis e Lewis Hine apresentavam outras formas de discurso social para a correção dos ‘erráticos’: “os erráticos não eram perce-bidos como fundamentais para o sistema social que os tolerava”. Tal discurso era moralista ao invés de ser politicamente revolucionário em tempos de re-forma, pois o trabalho documental, na posição crítica de Rosler198, carregava “informação de um grupo de pessoas sem poder para outro grupo endere-çado como socialmente poderoso”199. Je7rey200 aponta que Riis fotografava e escrevia sobre as condições degradantes da pobreza com a esperança de uma sociedade americana melhor, enquanto as fotografias Hine exibiam um futuro perigoso pela exploração do trabalho infantil. Jacob Riis e Lewis Hine também tiveram algumas semelhanças. Ambos usavam o mesmo tipo de iluminação para o escuro: flash de magnésio Blitzlichtpulver; começaram a trabalhar na mesma época e local e eram colaboradores da Revista Charities and the Commons; Riis escrevia e Hine fotografava. Entretanto, existia uma diferença fundamental entre as intenções dos dois documentaristas:

Enquanto que o objetivo de Riis era, primordialmente, expor as condições de vida dos pobres, o de Hine era expor as condições de trabalho. Riis foi das fábricas clandestinas para os edifícios, albergues e alojamentos da po-lícia, enquanto Hine ia para as minas, fábricas e engenhos. Em cada caso, a ideia era penetrar no imundo interior dos aposentos privados e da explo-ração da América, para revelar algo que era intencionalmente oculto dos espectadores201.

O FARM SECURITY ADMINISTRATION

) -!'!.#)-0) 1!(+5$&'), foi utilizada como propaganda política e ga-nhou espaço através da intersecção de discursos ‘realistas’ de departamen-tos do governo, do jornalismo e da própria estética documental202. Em 1933, durante a Grande Depressão americana203, o presidente Franklin D. Roosevelt propôs, com a aprovação do congresso, projetos de lei para lidar com o problema do desemprego. Este plano de leis foi chamado de New Deal, plano que buscou reconstruir a economia dos Estados Unidos. Em 1935, o Farm Security Administration (FSA) foi criado como um dos pro-gramas de assistência do New Deal. A intervenção governamental poderia fornecer a cura para as enfermidades na área agrícola e modernizá-la; mas como mostrar para o resto da América que a população rural de seu país enfrentava dificuldades para sobreviver? A solução foi encontrada por Roy Stryker. Ele selecionou um grupo de doze fotógrafos – os que se destaca-ram foram Walker Evans, Dorothea Lange, Ben Shahn, Russell Lee, Arthur Rothstein, Marion Post Walcott – e formou o Farm Security Administration (FSA). O FSA foi uma operação documental para levantar informa-ções e produzir imagens204 de pobreza e privação – em um momento de profunda crise social – que motivassem a reforma econômica e social. As fotografias buscavam trazer interconexões sociais e econômicas entre os fazendeiros, os burgueses e a cidade seguindo um script predeterminado por Stryker, como em uma agência de fotografia205. A sociedade norte-ame-ricana mudava de uma cultura de leitura para uma cultura visual. Sendo assim, a imagem fotográfica atingiu sua importância na sociedade ameri-cana pelo número de praticantes da fotografia amadora206. Diante da popu-larização da fotografia, o movimento FSA também coincidiu com o surgi-mento das primeiras revistas ilustradas por fotografias. As recém-lançadas revistas Life e Look alteravam a forma de receber informações. Em 1937 a revista Look publicava uma série de artigos ilustrados com fotografias de Rothstein, Lange e Shahn sobre a pobreza rural no sul dos Estados Unidos com títulos como ‘Caravana da Fome’ e ‘Humanidade alcança seu mais bai-xo nível no Sul’. As novas tecnologias de reprodução fotográfica se proliferaram e permitiram uma maior disseminação social das imagens. O tipo de equipamento utilizado – em jornais – mudou de câmeras pesadas 4X5 Speed Graphics para câmeras leves de 35mm com a popularidade das revistas. É neste cenário que a revista Life ganhava espaço pela quantidade de fotografias, qualidade de papel, grande formato e moderno layout e de-

194 Rosler (apud Wells, 2003) cita como exemplo os fotógrafos de guerra Robert Capa e Susan Meiselas e os documentaristas Eugene W. Smith, Walker Evans e Russell Lee.

195 1986, p. 99

196 O jornalismo sen-sacionalista predo-minou nos Estados Unidos de 1902 a 1912 e era descrito como ‘literatura de argumento’ ou ‘lite-ratura de exposição’ (Quick, 2010, p. 48)

197 apud Wells, 2003, p. 304

198 Ibid, p. 306

199 A autora traz como exemplo as foto-grafias de crianças famintas implo-rando por doações para organizações internacionais de caridade, uma forma de documen-tação liberal que nos obriga a olhar para a privação e a tristeza (Rosler apud Wells, 2003, p. 307).

200 1996, p. 159

201 Ibid, p. 243

202 Ver Tagg, 1993, p. 173

203 Rosenblum (1984, p.366) assinala que o período foi marcado pelo alto desemprego e o desastre do setor agrícola, causados pela persistente seca e o desuso da terra. Para Je"rey (1996, p. 165), as pessoas estavam deixando o campo para viver nas cida-des pela baixa nos preços de algodão, milho e trigo.

204 De 1935 a 1943 foram produzidas 270.000 fotografias. (Maresca, 1996, p. 71)

205 Os fotógrafos não detinham poder dos seus negati-vos,os quais eram posteriormente reorganizados, cor-tados e legendados. (Rosenblum, 1984, p. 366)

206 Maresca (1996, p. 86) aponta que o número de americanos que usavam a câmera fotográfica chegava a 18 milhões.

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sign. A compulsão em olhar para imagens oferecia uma janela para o que estava acontecendo nos Estados Unidos e no mundo. Alguns pontos cha-mavam atenção na descrição que a revista Life fazia dela mesma como: “ver a vida; ver o mundo; testemunhar grandes eventos; assistir aos rostos da pobreza e aos gestos de orgulho [...]”207. A proposta da revista Life nos faz refletir sobre a dualidade das convenções de representação fotográfica que emergiam na imprensa americana. De acordo com Sekula208: “o discurso que envolve a fotografia fala paradoxalmente da disciplina e liberdade, de rigorosas verdades e de libertação de prazeres”. Esse discurso contribui e legitima os múltiplos fluxos no tráfego das fotografias. O FSA mostra-va, por meio de fotografias, como o morador do campo vivia, trabalhava, se alimentava etc. Revelada a face da pobreza, o grupo tentou combatê-la e lutou para ajudar pequenos fazendeiros a reestruturar as terras e as comu-nidades devastadas pela Grande Depressão dos anos 1930. Os fotógrafos com propostas artísticas, jornalísticas e sociais permitiram novos estilos na produção da fotografia, levando o trabalho documental ao ‘status’ de arte para dentro de museus como o Museum of Modern Art209. De acordo com Sontag210, “para os fotógrafos não existe, em última instância nenhuma di-ferença, nenhum esforço significativo, entre o esforço de embelezar o mun-do e o esforço contrário de arrancar a máscara”. No grupo, destaca-se o trabalho dos fotógrafos Walker Evans e Dorothea Lange. Walker Evans começou a trabalhar para o FSA em 1935, quando já era um fotógrafo ex-periente. Os primeiros ensaios foram no sudoeste dos Estados Unidos. A parceria entre o fotógrafo e o Farm Security Administration foi rompida por diferenças com o líder Roy Stryker. O fotógrafo fazia questão de man-ter a autonomia em seu trabalho, escapando do padrão de propaganda po-lítica que o governo impunha e fugindo do modelo de base documental imposto por Stryker. Fotografando objetos do dia a dia como placas e fa-chadas de estabelecimentos comerciais, Evans mostrava a pobreza presente no campo. Maresca211 aponta que Evans era um fotógrafo ambicioso, preo-cupado em realizar um trabalho autoral sem gosto algum pela fotografia de cunho ‘pedagógico’ e ‘militante’: “é evidentemente com ele que se revela a desvalorização e descontentamento entre a fotografia e propaganda”. As moradias dos camponeses muitas vezes eram fotografadas sem revelar seus habitantes {Fig. 23}. Para esse tipo de registro Evans usava câmeras de grande formato 8x10 apoiadas em tripé; esse tipo de equipamento possibi-litava precisão, controle e nitidez da cena com enorme qualidade. A escolha desse tipo de formato de câmera aponta que o trabalho de Evans tinha prioritariamente inclinações de ordem estética212. Mas Evans foi além

da fotografia. O editor Eric Hodgins, da revista Fortune, queria oferecer para seus leitores uma documentação precisa da pobreza no sul dos Esta-dos Unidos. James Agee, que escrevia para a revista desde 1932, concordou em descrever a situação e convidou Evans para fotografar. Evans e Agee produziram o livro Let Us Now Praise Famous Men, que consistia em um estudo antropológico e fotográfico sobre as condições de vida do fazendei-ro americano depois da Grande Depressão de 1930. A fotografia foi utiliza-da como instrumento de pesquisa, complementando os textos. O trabalho foi enriquecido com as fotografias que Evans havia produzido para o FSA. Algumas de suas mais célebres fotografias foram feitas no estado do Alaba-ma. Em uma área primitiva e abandonada chamada Hale County, Agee e Evans passaram meses compartilhando da vida miserável na qual viviam seus moradores. As fotografias revelavam a realidade crua da pobreza e como seus moradores passivamente a aceitavam {Fig. 24}. Outro mem-bro do grupo FSA que teve profunda influência na história da fotografia documental foi Dorothea Lange. Em seu trabalho, ela preocupava-se com as pessoas pobres. Um dos seus primeiros ensaios fotografava moradores de rua de São Francisco. Lange se misturou e fotografou esses moradores que aguardavam pelo ‘sopão’ popular. Da série de retratos se destacou a imagem de um homem com sinais de desolação: “White Angel Breadline” {Fig. 25}. A fotografia se tornou uma das imagens mais conhecidas da crise americana213. Chocada com o número de miseráveis na época da Grande Depressão americana, Lange quis chamar a atenção da opinião pública. Em suas fotografias, ela mostrou as consequências do êxodo de famílias de agricultores que deixavam suas terras e migravam para o leste dos Estados Unidos. Em busca de trabalho, imigrantes e suas famílias viviam miseravel-mente. As fotografias produzidas para o FSA mostravam as precárias habi-tações dos imigrantes e a vida cotidiana de crianças e de adultos trabalhan-do. Para Paul Taylor – marido de Lange que acompanhava suas viagens – a fotografia era uma ferramenta de pesquisa poderosa, associada ao texto e às notas de campo214. As fotografias de retrato do FSA mostravam em sua maioria indivíduos e famílias em sua situação de extrema vulnerabili-dade e fadiga. No entanto, é interessante refletir sobre os aspectos estéticos exaltados para chamar a atenção sobre a pobreza. A fotografia mais famo-sa e difundida pela FSA foi produzida por Dorothea Lange em 1936. A foto Migrant Mother mostra uma mulher cercada por seus três filhos. As crianças se apoiam nos braços da mãe procurando proteção e escondendo seus rostos da câmera. O retrato aponta as dificuldades da época: a mãe com vários filhos, em um espaço improvisado e precário, com a expressão

207 Tagg, 2003, p. 7

208 1981, p. 15

209 Em 1938, Walker Evans publicou o livro American Photographs pelo Museum of Modern Art.

210 1986, p. 97

211 1996, p. 93

212 Maresca (1996) aponta que o realis-mo documental de Evans iria contra as propostas hiperes-téticas da fotografia pictoralista de Alfred Stieglitz e Edward Steichen.

213 Ver Maresca, 1996, p. 78

214 Ver Maresca, 1996, p. 86

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Fig. 25 Dorothea Lange | 1933 White Angel Breadline

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Fig. 24}Walker Evans1936

Fig. 23}Walker Evans1935 | New Orleans

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sofrida {Fig. 26}. A retratada era Florence 6ompson que sobrevivia de ve-getais e pássaros que seus filhos matavam; ela havia acabado de vender os pneus de seu carro para comprar comida. Lange comenta que Florence “parecia saber que minhas fotografias poderiam ajudá-la, e então ela me ajudou”215. No entanto, Florence comenta que “esta é minha foto exposta por todo mundo, e eu não consigo um centavo dela”216. Roy Stryker, que considerava a fotografia um empreendimento ligado às Ciências Sociais, assinala a importância da imagem de Lange para o grupo:

Quando Dorothea tirou aquela foto, foi definitiva. Ela nunca ultrapassou aquilo. Para mim, foi a fotografia do Farm Security. Ela tem todo o sofrimen-to da humanidade dentro dela, e toda a perseverança também. Uma repressão de emoções e uma estranha coragem217.

A fotografia foi utilizada de diversas maneiras, por exemplo, desde selo do correio americano até fonte para desenho de cartuns218. Seguindo as questões estéticas discutidas com o trabalho de Evans, Maresca219 aponta o espírito artístico acentuado pelo registro estético de Lange, midiatizado por intelectuais interessados pela imagem: “existe ao menos três compo-nentes referentes à obra fotográfica, entre o encontro de intelectuais e fo-tógrafos: a renovação das ciências sociais; o interesse deste universitários pela imagem; seu engajamento em torno da ação política”. Tagg220 critica o trabalho documental atrelado ao New Deal como centralizador e corporativista. Para o autor, através da reforma procurava-se represen-tar e reconstituir o corpo social de novas maneiras. Seguindo a crítica de Tagg, podemos refletir que dentro de um grande arquivo de imagens, pou-cas fotografias foram selecionadas e repetidas, tornando a edição crucial dentro de um projeto político-social. Dessa maneira, observou-se que as dificuldades econômicas que atingiram a sociedade americana que vivia no campo na década de 1930, fizeram surgir na área da fotografia documental uma preocupação estética relacionada à pobreza. No entanto, como Sekula221 assinala, existe a oposição entre a fotografia documental e a fotografia artística. Na primeira, a fotografia se serve de um realismo em que o fotógrafo é testemunha de um evento e que ele estaria inclinado a transmitir informações e momentos históricos ao espectador. Na segunda, a imaginação e a criatividade do fotógrafo são exaltadas, sobressaem-se aspectos estéticos, como a luz e composição. É dentro desse contexto de fo-tografia documental versus fotografia artística que discutiremos o trabalho do fotógrafo documentarista Sebastião Salgado.

215 Lange apud Wells, 2001, p. 39

216 Rosler apud Wells, 2003, p. 267

217 Citação disponível no site: <http://xroads.virginia.edu/~UG97/fsa/lang.htm>. Data de acesso: 09 set. 2004.

218 Ver Wells, 2001, p. 35

219 1996, p. 83

220 2003, p. 9

221 apud Bolton, 1992

Fig. 26 Dorothea Lange | 1933 Migrant Mother

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SEBASTIÃO SALGADO

) ,8.0() 1$ $9"+,%4! dos pobres nas grandes cidades cresce cada vez se-guindo um modelo neoliberal de desenvolvimento desde os anos 1980222. Os favelados, os pobres desterritorializados encarcerados em campos de refu-giados e prisões, os jovens desempregados, os moradores de rua etc. sofrem medidas de coerção e anulação de seus corpos “assinalando uma transforma-ção sistêmica que foi documentada em dados e pedaços, mas não completa-mente narrados como uma overarching dinâmica que está nos levando para uma nova fase do capitalismo global223. Partindo dessa perspectiva, discuti-remos o trabalho do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, que figura entre um dos principais nomes da história da fotografia documental, alinhando-se à reflexão Sassen (2011) de que suas fotografias têm a capacidade de mostrar as lógicas de expulsão presentes em diversas partes do mundo. Salgado, que militou pelo movimento estudantil, é economista por formação, e começou seus primeiros ensaios logo após se tornar doutor em economia pela Escola Nacional de Estatística Econômica. Ele e sua esposa Leila Wanick Salgado224 saíram exilados do Brasil em função da ditadura militar: “partimos para Eu-ropa e constatamos que passáramos a ser parte refugiados, parte imigrantes, parte estudantes”225. Na época, utilizou a máquina fotográfica de sua esposa para ilustrar seus relatórios feitos na África (Angola) para Organização In-ternacional do Café em Londres. Seu projetos de fotografia documental se iniciaram no ano de 1973 e percorreram diferentes partes do mundo por anos, desenvolvendo temas relacionados à pobreza, migração, sofrimento, resistência etc. Em períodos que variam de quatro a seis anos, o fotógrafo convive de uma forma muito próxima e se compromete com as populações das quais ele representa visualmente:

você não vai fazer uma foto. Você vai para construir uma história [...] Eu vou para ficar dentro da minha história, para tentar entender o que está acon-tecendo, estar perto das pessoas que eu fotografo, e para criar um fluxo de informações que nós podemos usar para comunicar algo226.

O esquema de trabalho documental como um ensaio fotográfico reunindo dezenas de fotografias sobre o mesmo tema tem uma posição inclinada para o engajamento social por parte do fotógrafo e procura criar uma “narrativa visual” que conta uma história por trás dos fatos. Esse tipo de comprometi-mento do fotógrafo documentarista difere seu trabalho da fotografia jorna-lística como reproduzida nas capas de jornais e revistas onde uma fotografia

sensacionalista ou uma única fotografia de grande impacto está inclinada a estampar a primeira página para fins jornalísticos e comerciais. Dessa ma-neira, a fotografia “militante” de Salgado busca trazer dignidade a populações isoladas e esquecidas em várias partes do mundo: “as pessoas se posicionam em frente de minha lente como se elas estivessem se posicionando em frente a um microfone [...]”227. Suas imagens provocam diversas opiniões – a favor e contra seu estilo fotográfico – resultando em uma série de debates sobre questões estéticas, políticas e éticas em torno da fotografia documental. Sobre a questão ética das fotografias de Salgado, Koneski228 pondera que ela se encontra

em indicar o Absolutamente Outro não na infinidade de normas a seguir, mas no “para além” de qualquer sentido. A imagem apenas diz – eis-me aqui – oferece-se, porém nunca é desvelamento. Não ser desvelamento é, portanto, inerente à sua natureza de imagem. No fracasso da representação, o fotógrafo marca a sua responsabilidade pelo Outro e confere-nos a sociabilidade com relação ao Outro. As imagens de Salgado testemunham o infinito [...] o seu relato é ético à medida que não se resolve ao prazer de um Eu, das coisas que vê. Ele entrega o enigma e nele se põe, pondo também a respeitabilidade perante o Outro.

Para Parvati229, o comprometimento de Salgado – com suas fotografias es-tetizadas – focam para pessoas despossuídas e deslocadas que permanecem obscurecidas nas políticas dominantes. Segundo Salgado230,

o mundo no qual a gente vive é um mundo de exploração, de desencontros, mas também de descobertas e sonhos. O que faz o fotógrafo? Fotografa para fornecer dados para uma discussão. Uma tentativa de tomada de consciência. Nunca faço uma foto pensando que estou fazendo uma obra de arte. Não busco uma imagem: a imagem me é dada, uma espécie de presente da rea-lidade, da vida. Tento captar o momento, que na verdade me capta, e assim provocar uma intervenção na realidade. A imagem que dou é a imagem da minha ideologia.

O fotógrafo utiliza câmeras Leica de 35mm e escolhe lentes que variam dos 28mm até 60mm. Esses tipos de lentes permitem ao fotógrafo maior pro-ximidade e contato com seus retratados. Salgado pondera que a proximi-dade com seus fotografados não é estabelecida somente quando o ele usa câmera, mas quando “o fotógrafo gasta muito tempo com os retratados, vive com as pessoas, permanece noites com os fotografados, porque à noite você não fotografa, você senta entre essas pessoas e elas te dizem o que realmente

222 Ver Sassen, 2011, p. 438

223 Sassen, 2011, p. 439

224 Wanick é respon-sável pela edição e projeto gráfico de todos os livros de Salgado.

225 Salgado, 2000, p. 9

226 Salgado apud Kay, 2011, p. 425

227 Sebastião Salgado entrevistado por John Berger, para o vídeo “Spectre of Hope”, 2002.

228 2008, p.66

229 2012

230 apud Persichetti, 1995, p. 37

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acontecem em suas vidas [...]”231. As cópias impressas de seus negativos em preto e branco são tratadas no quarto escuro, revelando aspectos estéticos manualmente retocados por meio da luz ou de sua ausência; sendo assim, sua fotografia transcende aspectos documentais e se transformam em obras de arte: “é, sem dúvida, sua estética cuidadosamente construída no preto e branco, com a ausência de cor mas a tonalidade aprimorada cuidadosamen-te, que deu origem a ver o trabalho de fotojornalismo de Salgado como uma grande arte232. Segundo Salgado233:

eu fui em uma exposição em Barcelona de arte africana. O que eu vi eram coisas do dia a dia – cumbucas de cozinha, objetos domiciliares, coisas da vida cotidiana. Eles eram objetos práticos, mas lá estavam removidos de seu contexto social, eles se tornaram objetos de arte. Isto é também o que faço. Eu fotografo a vida cotidiana. Eu estou lá, no momento. Minhas fotografias mos-tram a realidade. Assim as fotografias podem ser vistas como arte, embora elas sejam documentos.

Portanto, é interessante refletir como as fotografias de Sebastião Salgado constroem uma linha tênue entre assunto e forma. Pela beleza de suas foto-grafias, Salgado recebe críticas ligadas à exploração da estética da pobreza234. Tais críticas surgem por meio de perguntas de críticos, como: “é correto que tal miséria deva aparecer em ostentadoras paredes de galerias? A única pes-soa que ganha pelas fotografias é o fotógrafo? O que um livro de cem dóla-res tem a ver com o debate sobre pobreza?235 A editora da revista Artforum, Ingrid Sischy é umas das maiores críticas do trabalho de Salgado; para ela, o fotógrafo transforma tragédia em clichê: “estetizando a tragédia é a maneira mais rápida de anestesiar os sentimentos daqueles que os testemunham. Be-leza é um chamado para a admiração, não para ação”236. Em contrapartida, o crítico de fotografia John Berger sai na defesa de Sebastião Salgado e traz uma reflexão importante de que a história da arte sempre produziu pinturas relacionadas à estetização do sofrimento: “o que dizer sobre Pietá de Mi-chelangelo? Metade da arte visual europeia do século XX era sobre coisas terríveis e ao mesmo tempo belas. De fato, elas eram a definição do que as pessoas chamaram de belo”237. Não cabe nessa pesquisa avaliar posições favoráveis ou contrárias à questão estética do fotógrafo Sebastião Salgado. Apresentamos as visões antagônicas de respeitados críticos de arte e foto-grafia principalmente pela força e impacto que sua fotografia tem, tanto no público geral como no especializado. Assim entendemos que polemizando a opinião pública por meio das imagens, o fotógrafo conseguiu trazer à tona a discussão sobre a pobreza e dar voz aos destituídos de direitos, criando

solidariedade. Aos olhos de sociólogos contemporâneos, como pon-dera Kay, em seu artigo ”Building Solidarity with Subjects and Audience”, a importância do trabalho documental de Sebastião Salgado é fundamental para ensinar aos próprios sociólogos como expandir as relações com sua audiência. Para a pesquisadora, Salgado tem uma abordagem etnográfica e fotográfica única, promovendo e ampliando a perspectiva sociológica pela análise visual. Na mesma linha de reflexão de Kay, Parvati238 pondera que a obra de Salgado – imbuída de uma estética poderosa – luta pela solidarieda-de em todo o planeta, revelando condições de vida em diferentes culturas e nos questionando sobre os limites da possibilidade. Persichetti239 sugere que as fotografias de Salgado modificam e transformam a vida dos espectado-res; suas imagens são um contar sem palavras e sobrevivem por si próprias sem necessitar de explicação. Essa representação do Outro excluído de maneira intensa, presente e ativa pode ser observada em seus projetos. Os seguintes temas foram abordados em mais de 30 anos de trabalho de campo: os camponeses na América Latina (Outras Américas), os famintos na região do Sahel (região desértica africana) na década de 80; os trabalha-dores e seus deslocamentos que acompanharam a industrialização moder-na; o movimento dos sem-terra; as migrações globais impulsionadas por forças políticas e econômicas; as crianças afetadas pelas migrações forçadas, pobreza e outros problemas sociais; a campanha contra poliomielite, e seu último trabalho, Genesis, onde diferentemente de seus outros projetos ele procurou explorar sobretudo a natureza e populações remotas “intocadas” em várias partes do mundo. O trabalho feito no deserto do Sahel por Salgado, com duração de quinze meses, foi realizado com o grupo humani-tário “Médicos sem Fronteiras”240. As fotografias tiveram grande impacto na época para levantar fundos e trazer a discussão para o problema da fome na região {Fig. 27}. Segundo Price241,

a grande resposta em 1980 para os famintos da Etiópia foi ativada pelas fo-tografias. Relatórios dos famintos apareciam na parte de trás das revistas por ao menos dois anos, silenciosamente ignorados, antes das incríveis fotos de corpos esqueléticos, exaustos, descalços de homens, mulheres e crianças an-dando em uma incerta direção no seco e arenoso cenário que apareceram na televisão e nos jornais.

Seguindo o trabalho de Sahel, o fotógrafo realizou entre 1986 e 1992 o proje-to “Trabalhadores: uma arqueologia da era industrial” (1997), onde revela o problema da escassez de cargos de trabalho pela mecanização da sociedade no século XX. Esse foi seu primeiro projeto explorando diversos continentes.

231 Sebastião Salgado entrevistado por John Berger, para o vídeo “Spectre of Hope”, 2002.

232 Parvati, 2012, p. 14

233 apud Parvati, 2012, 119

234 Ver Kay, 2011, p. 427

235 Wroe apud Parvati, 2012, p. 133

236 Sischy apud Parvati, 2012, p. 135

237 Berger apud Parva-ti, 2012, p. 135

238 2012, p. 118

239 1995, p. 49

240 Salgado explica que nunca faz suas fotografias sozinho, ele trabalha sempre com instituições como a UNICEF, os Médicos sem Fronteiras, a organização não governa-mental Save the Children e com outros grupos de instituições: “nós todos trabalhamos juntos, nós todos vivemos juntos. Eu dou minhas fotos para eles. Eles me dão informação. Eu trabalho dentro de um sistema” (Salgado apud Sassen, 2011, p. 442).

241 apud Parvati, 2012, p. 60

representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento

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As fotografias mostram como populações lutam para realizar seu trabalho manual – duro e penoso – em canaviais, cafezais, zonas de garimpo, portuá-rias e pesqueiras etc. Para Salgado as imagens242

são um registro de uma era – uma espécie de delicada arqueologia de um tempo que a história conhece pelo nome de Revolução Industrial. Um tempo no qual o eixo central do mundo estava naquilo que estas imagens registram: o trabalhador; a mão do homem.

O aumento e o refinamento da produção capitalista, segundo Salgado, é aces-sível a apenas uma parte da população – um quinto – que pode consumir nesse mundo “superdesenvolvido”. Assim, o mundo divide-se entre o bloco do Norte e Sul que são marcados pelo excesso e carência, respectivamente. Para Salgado o lado de cá do mundo (bloco Sul) “é uma espiral sem fim de opressões, humilhações, devastações. Mas também infinita capacidade hu-mana para sobreviver a todas as pestes, todos os males, inclusive os mais cruéis: a cobiça, a ambição”243. As fotografias de Salgado demonstram tal capacidade de grupos oprimidos como os garimpeiros de Serra Pelada, os boias-frias etc. e exaltam a habilidade e o esforço manual de trabalhadores que sofrem com intermináveis horas de trabalho para sobreviver de forma digna {Fig. 28}. Tais preocupações não só demonstram a preocupação es-tética e documental do fotógrafo, mas também assinalam o resgate de sua formação inicial como economista. Parvati244 pondera que:

as fotografias de Salgado nos convidam a uma previsão histórica, especial-mente a obscura história dos escravos traficados da África para trabalhar nas plantações. Apesar da abolição e do fim do apartheid, vislumbra-se as ma-neiras pelas quais como os dias modernos capitalistas ativam em contextos contemporâneos a violência originalmente de épocas anteriores.

O livro Terra mostra fotografias do Movimento dos Sem-Terra e testemunha a resistência que esses camponeses sofriam como vítimas da crise na agricul-tura frente aos latifundiários. Salgado registrou as ocupações, a violência e as chacinas contra pessoas despossuídas de terras. A preocupação do fotógrafo era a de dar reconhecimento e justiça ao grupo no que se referia à questão da redistribuição de terras no Brasil. Esse tipo de fotografia, para Sassen245, contém a possibilidade de incluir a discussão dos sem-terra na política, re-velando a situação de impotência do grupo pela falta de autoridade e voz. Já para Parvati246, as imagens servem como “um hino visual para celebrar o tipo de solidariedade dos despossuídos que desafiam a opressão do feudalismo e do capitalismo”. Salgado comenta em entrevista que “o sem-teto em São Pau-

Dessa maneira, a fotografia “militante” de Salgado busca trazer dignidade a populações isoladas e esquecidas em várias partes do mundo: “as pessoas se posicionam em frente de minha lente como se elas estivessem se posicionando em frente a um microfone [...]”227

Fig. 27 Sebastião Salgado Cerca de 1980 | Sahel

}

{Fig. 28 Sebastião Salgado | 1986 Serra Pelada

Fig. 28 Dorothea Lange | 1933 Migrant Mother

}

242 1996, p. 7

243 Ibid., idem

244 2012, p. 69

245 2011, p. 442

246 2012, p. 185

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lo, a criança de rua em São Paulo, é exatamente a continuação do sem-terra, é o sem-terra que não tentou ficar na terra, não lutou pela terra, que chegou à cidade e a cidade não o assimilou”247. É interessante a observação de Salgado para apontar as semelhanças entre as populações de rua e a população de mi-grantes que foi retratada no livro Êxodos, ambos estão em constante deslo-camento e carecem de direitos, mas continuam perseverantes em sobreviver de forma digna {Fig. 29}. A fragmentação e separação espacial que levou e leva milhares de pessoas a migrar e se refugiar em um estado de pobreza e exclusão também foi documentada por Salgado no livro Êxodos: “talvez alguém tenha a impressão de que as fotografias deste livro mostram apenas o lado sombrio da humanidade. Na realidade, é possível vislumbrar alguns pontos de luz na penumbra total”248. O trabalho aponta para a continuidade dos temas fotografados nos livros Trabalhadores e Terra. Nesse projeto o fo-tógrafo percorreu quarenta países em sete anos de trabalho. O êxodo foi re-gistrado em diferentes contextos: a migração de camponeses para os grandes centros urbanos, a migração de populações do Bloco Sul para o Bloco Norte, a migração de refugiados de guerra e genocídio etc. Todas essas populações buscavam um lugar decente para viver, um lugar seguro, uma escola para suas crianças. Portanto, como Parvati249 pondera, Salgado buscou revelar

um fenômeno de migração de massa, onde dezenas de milhões de pessoas são forçadas a cair na estrada em busca de novos horizontes econômicos e de segurança política [...] Êxodos é um ensaio fotográfico de alerta; ele aponta para o fato de que, na virada do milênio, o deslocamento se tornou perturba-doramente um estilo de vida para uma proporção significante da população mundial.

A pobreza, a falta de políticas públicas, e o reconhecimento da população de rua em São Paulo como cidadãos, sugere, seguindo a mesma reflexão dada por Parvati analisando a obra de Salgado, que se trata de uma população que se desloca constantemente, criando um estilo de vida próprio. O êxo-do e o deslocamento refletem nas populações migratórias – cem milhões de pessoas250 – uma ruptura com as raízes locais que significam a saída de “uma casa”, de seu lar para um destino incerto. Tal ruptura também significa o es-tranhamento que essas populações passam a sentir procurando uma “nova casa”, se deparando com o desconhecido em cidades industrializadas e glo-balizadas; uma história perturbadora de uma humanidade em trânsito fu-gindo de guerras, da pobreza e da repressão251. Esses refugiados e imigrantes são percebidos como “infiltrados” e problemáticos, suas identidades, dessa maneira, estão ameaçadas pois frequentemente essas populações despertam

O êxodo e o deslocamento refletem nas populações migratórias – cem milhões de pessoas250 – uma ruptura com as raízes locais que significam a saída de “uma casa”, de seu lar para um destino incerto. Tal ruptura também significa o estranhamento que essas populações passam a sentir procurando uma “nova casa”, se deparando com o desconhecido em cidades industrializadas e globalizadas; uma história perturbadora de uma humanidade em trânsito fugindo de guerras, da pobreza e da repressão251

Fig. 29 Sebastião Salgado 1996 | Sergipe

}

247 Entrevista dada ao programa Jô Soares em 1997 na ocasião do lançamento do livro Terra. Disponível em: <http://www.you-tube.com/watch?-v=U5IKp320Kxk> Data de acesso: 27 Nov. 2013.

248 Salgado, 2000, p. 14

249 2012, p. 90-91

250 Sebastião Salgado entrevistado por John Berger, para o vídeo “Spectre of Hope”, 2002.

251 Ver Salgado, 2000, p. 7

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reações xenofóbicas. Além disso, esses imigrantes e refugiados trazem à tona a sensação de “diferença” e de “não pertencimento”, são populações “estra-nhas”, como discutimos no primeiro capítulo. Salgado mostra essa rup-tura e o sofrimento desses despossuídos, por exemplo, quando imigrantes clandestinos arriscam suas vidas para cruzar a fronteira entre o México e os Estados Unidos ou nas embarcações de refugiados no Estreito de Gibraltar entre a África e a Europa. Para Salgado, esses refugiados e miseráveis passavam os piores momentos de suas vidas sendo humilhados, mal alojados e assustados, mas “mesmo assim, aceitavam ser fotografados porque, acredi-to, queriam que seu sofrimento fosse divulgado”252 {Figs. 30 e 31}. Apesar de se encontrarem em condições onde a ira e amargura poderiam se manifestar, Salgado percebeu que essas pessoas confiavam nesse “estranho” que os fo-tografava. A dignidade era uma das características que apareciam em busca de uma vida melhor: “fiquei atônito ao ver até que ponto os seres humanos são capazes de adaptar-se às circunstâncias mais calamitosas”253. Essa afirma-ção tem ressonância com o que apresentaremos nos capítulos quatro e cinco da presente pesquisa: a adaptação e inventividade dos moradores de rua a circunstâncias extremamente precárias e adversas em ambientes inóspitos. Apesar de viverem nas ruas de São Paulo, identificamos nessa população uma forma de sobrevivência sofrida porém digna. Portanto, os traba-lhos dos fotógrafos que discutimos ao longo deste capítulo são um conjunto de imagens reveladoras e perturbadoras. Essas fotografias provocam descon-forto por meio da representação visual. A discussão trazida à tona por esses fotógrafos é fundamentalmente sobre a situação de pessoas destituídas de direitos e de condições de sobrevivência – de extrema pobreza – em diversas partes do planeta para uma possível resposta ou consciência dessa situação por outras camadas da sociedade. A discussão e análise de tais projetos nos faz refletir sobre o esforço humanístico que diversos fotógrafos empregam em trabalhos que duram anos, provocando um debate sobre a responsabili-dade de cada um frente aos problemas sociais.

Fig. 30 Sebastião Salgado 1996 | Congo

}

Fig. 31 Sebastião Salgado 1997 | Gibraltar

}

252 2000, p 8

253 Ibid., idem

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LISTA DE IMAGENS E LINKS PARA REFERÊNCIA {Fig. 18} Lewis Hine , Immigrants going down gangplank , 1905

http://www.theslideprojector.com/images/photo1/chapter12-socialdo-cuments/immigrantsgoingdowngan-gplank.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 19} Alfred Stieglitz, Steerage, 1907 http://upload.wikimedia.org/wikipe-

dia/commons/d/da/Alfred_Stieglitz_(American_-_6e_Steerage_-_Goo-gle_Art_Project.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 20} Lewis Hine, Making Human Junk, data desconhecida

http://academic.evergreen.edu/curri-cular/summerwork/images/Hine,%20Lewis/Hine,%20Making%20Human%20Junk.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 21} 21 Lewis Hine, Child laborer, 1908 http://upload.wikimedia.org/wikipe-

dia/commons/9/9a/Child_laborer.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 22} Lewis Hine, Midnight at the glassworks, 1908

http://upload.wikimedia.org/wikipe-dia/commons/f/:/Midnight_at_the_glassworks2b.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 23} Walker Evans, New Orleans, 1935 http://walkerevans.florencegriswold-

museum.org/images/gallery/fullsize/g9.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 24} Walker Evans, 1936 http://esquizofia.files.wordpress.

com/2012/09/walker-evans-poor-folks-at-home-trodd-family-bud-fields-and-family-1936.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 25} Dorothea Lange, White Angel Brea-dline, 1933

http://www.archives.gov/press/press-kits/picturing-the-century-photos/images/white-angel-breadline.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 26} Dorothea Lange, Migrant Mother, 1933

http://upload.wikimedia.org/wikipe-dia/commons/5/54/Lange-Migrant-Mother02.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 27} Sebastião Salgado, Cerca de 1980, Sahel

http://openingintro.com/wp-content/uploads/2013/11/sebastiao-salgado.png data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 28} Sebastião Salgado, 1986, Serra Pelada x http://www.fada.com/view_image.

html?image_no=19587 data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 29} Livro Êxodos, SALGADO, Sebastião. Êxodos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. P. 305

{Fig. 30} Livro Êxodos, SALGADO, Sebastião. Êxodos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. P. 39

{Fig. 31} Livro Êxodos, SALGADO, Sebastião. Êxodos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. P. 213

{Fig. 1} Nadar, Charles Baudelaire, 1855 http://upload.wikimedia.org/wikipe-

dia/commons/a/a8/F%C3%A9lix_Nadar_1820-1910_portraits_Char-les_Baudelaire_2.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 2} Nadar, Delacroix, 1858 http://upload.wikimedia.org/wiki-

pedia/commons/6/62/F%C3%A-9lix_Nadar_1820-1910_portraits_Eu-g%C3%A8ne_Delacroix.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 3} Andre Disderi, carte de visite, 1860 http://www.neuegalerie-archiv.at/07/

foto/bilder/disderi01_cmyk.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 4} Kodak brownie, sem data http://upload.wikimedia.org/wikipe-

dia/commons/d/d7/Brownie2_over-view3.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 5} August Sander, 6e Bricklayer, 1928 http://www.photoforager.com/wp-

content/uploads/2011/12/thebrickla-yer1928.jpeg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 6} August Sander, Middle Class Chil-dren, 1925

http://www.art-agenda.com/wp-con-tent/uploads/2011/12/1.-August-San-der-Middle-Class-Children.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 7} August Sander, Gypsy, 1930 http://mynotesforeyes.files.wordpress.

com/2013/04/immagine.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 8} August Sander, Architect, 1929 http://rosswolfe.files.wordpress.

com/2013/11/poelzig.jpg?w=845 data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 9} Alphonse Bertillon, Criminal profiles, 1893

http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Bertillon_-_Criminal_profiles.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 10} Hugh Welch Diamond, Mental Pa-tient, 1855

http://classconnection.s3.amazonaws.com/974/flashcards/171974/png/un-titled431329530184764.png data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 11} Francis Galton, 1883 http://test.classconnection.s3.amazo-

naws.com/190/flashcards/386190/jpg/inquiries_into_human_faculty_and_is_development_1883_francis_galton.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 12} John 6omson, 6e crawlers, 1877 http://test.classconnection.s3.ama-

zonaws.com/190/flashcards/386190/jpg/the_crawlers_1877_john_thom-son.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 13} Jacob Riis, Bandits’ Roost, 1890 http://upload.wikimedia.org/wiki-

pedia/commons/8/89/Jacob_Riis_-_Bandits%27_Roost.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 14} Jacob Riis, 1888 http://media.web.britannica.com/eb-

media/16/19516-050-03528DBA.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 15} Jacob Riis, 1890 http://www.studenthandouts.

com/01-Web-Pages/01-Picture-Pa-ges/10.07-Industrial-Revolution/1-Rii-s-Family-Living-in-One-Room-New-York-City-Slum-1890.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 16} Jacob Riis, 1889 http://upload.wikimedia.org/wikipe-

dia/commons/9/98/Sleeping%2C_ho-meless_children_-_Jacob_Riis.jpg data de acesso: 9/12/2013

{Fig. 17} Lewis Hine, Climbing into America, c.1905

http://academic.evergreen.edu/curri-cular/summerwork/images/Hine,%20Lewis/climbing%20into%20Ameri-ca,%20c.1905.jpg data de acesso: 9/12/2013

CAPÍTULO 4

SER VÁLIDONovas abordagens sobre os moradores de rua

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capitúlo 4 ser válido | novas abordagens sobre os moradores de rua representações artísticas com os moradores de rua por meio da luz e do movimento

Dignidade somente pode ser conferida sob as pessoas se elas são tratadas com respeito pelo o que elas são1.

[...] tantas são as mudanças requeridas para alterar as trocas da humanidade com o mundo físico que somente a sensação de deslocamento próprio e es-tranhamento podem dirigir as práticas atuais de mudança e reduzir nossos desejos consumistas2.

!"#! $%&'#()* &+!#!,-! trazer uma nova abordagem sobre a vida do morador de rua. Isso envolve, sobretudo, o estudo de sua condição de vida na rua por meio de análises baseadas principalmente na vivência com esses indivíduos em diversas situações cotidianas, períodos do dia e eventos climá-ticos por meio da bricolagem e de performances válidas. Por bricolagem en-tendemos a prática de recuperar e transformar objetos descartados em algo útil. As performances válidas ao nosso entender podem ser encontradas nos modos como os moradores de rua manipulam os objetos e nas atividades de adaptação no espaço urbano {Fig. 1}. Por permanentes manifestações de controle e anulação do corpo dos moradores de rua, como discutidas no capítulo dois, podemos refletir que os moradores de rua permanecem habi-tando o logradouro público por longa estada e não possuem alternativas a não ser habitar a rua. Os conceitos de bricolagem e de performance válida sugerem a existência de dignidade, identidade própria e inventividade. Sen-do assim, os tópicos que serão abordados nesse capítulo são:

Reconhecimento por meio da interlocução com Richard Sennett (2009) das habilidades e inteligência que os moradores de rua possuem como artesãos quando criam maneiras de se adaptar nos logradouros públicos utilizando poucos recursos disponíveis.

Compreensão de que novos paradigmas e conceitos provindos, por exem-plo, das áreas projetuais como o design, arquitetura e urbanismo, sugerem que os moradores de rua deixem de ser vistos como problema, passando a ser compreendidos como mais um ator da cena urbana; que, ao serem observados e interpretados, mostrem que podem contribuir para o conhe-cimento e proposição sobre novas maneiras de habitar a cidade no século XXI. Tony Fry3, por exemplo, aponta que as autoridades locais deveriam contribuir na transformação da imagem dos moradores de rua para que eles tenham um lugar na comunidade, por que “desejar sobreviver é desejar criar de outra maneira”4.

Entender as possíveis relações entre o uso da fotografia/design como ferra-menta de intervenção e engajamento social analisando a obra do professor, artista e designer Krysztof Wodizcko, em suas diversas projeções e objetos apresentados no espaço público. O artista apresenta a fotografia como veí-culo de denúncia dentro do espaço público e interroga as condições de vida e o lugar de pessoas consideradas estranhas no mundo contemporâneo, pela intervenção projetual em fachadas de edifícios, e estátuas etc. O autor causa estranhamento dando voz a minorias oprimidas. Para Wodizcko5, os “artistas estão preocupados com a exploração da realidade, e eles até tentam transformá-la”.

1 Arnold, 2004, p. 169

2 Sennett, 2009, p. 13

3 2009, p. 23

4 Ibid., p. 110

5 apud Mccorquodale, 2011, p. 13

Segundo Sennett11, um bom artesão se preocupa em resolver problemas, em procurar soluções que encerrem uma tarefa. Assim, pode-se refletir a técnica utilizada pelos moradores de rua em manipular objetos encontrados no lixo como uma questão cultural ao invés de um procedimento sem consciência12

Fig. 1 São Paulo 2013

}

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capitúlo 4 ser válido | novas abordagens sobre os moradores de rua

O BRICOLEIRO ÚTIL À SOCIEDADE

+.$/%+- "!,,!##6, no livro !e Cratfsman, pondera que a vida de artesãos do passado sugeriria o uso de diferentes ferramentas, o emprego de materiais alternativos, revelando maneiras de conduzir a vida com habilidade. Dessa maneira, a habilidade era aprimorada com a prática engajada e o desenvol-vimento técnico pelo poder da imaginação. O conhecimento era ad-quirido por meio das mãos, pelo toque e o movimento e não somente pela instrumentação. Segundo Sennett7, “o uso de ferramentas imperfeitas ou in-completas provoca a imaginação em desenvolver habilidades para reparar e para improvisar”, ou seja, para o autor todo artesão ganha conhecimento de experiências resistentes e ambíguas com resultados instrutivos; não se luta contra esses dois elementos, aprende-se dessas experiências e das coisas que as pessoas fazem por si mesmas, ou seja, a cultura material dentro desse ce-nário se torna extremamente importante8. Para Tony Fry, a história das coisas segue diferentes cursos. Assim, novos modos de fazer através das ge-rações humanas são estabelecidos por meio da metamorfose e da adaptação {Seq. 1}: “as pessoas que fazem coisas frequentemente não entendem o que estão fazendo”9. Fry acredita que a mudança – fundamentais para sobrevi-vência – de valores e comportamentos já edificados pode ocorrer por meio do design. Para o autor10,

o design vem antes daquilo que se faz e prossegue depois que termina. A implicação é que a atuação do design envolve não apenas quem desenha, mas também quem é desenhado. O desenhar se perpetua no desenhado – a menos que destruído, o objeto do design tem sempre uma utilidade ou função síg-nica concreta ou eminente, que propicia ou delimita uma relação com ele. O design jamais começa do zero, pois tem de nascer com um objeto já existente e provir de um ambiente determinado.

Dentro desse contexto, a apropriação da ideia de que os moradores de rua podem ser “man as maker” pode ser discutida, ou seja, ao invés de enca-rar os moradores de rua pela vadiagem, precariedade e perigo poder-se-ia entender esses indivíduos como produtores de conhecimento. Segundo Sennett11, um bom artesão se preocupa em resolver problemas, em pro-curar soluções que encerrem uma tarefa. Assim, pode-se refletir a técnica utilizada pelos moradores de rua em manipular objetos encontrados no lixo como uma questão cultural ao invés de um procedimento sem cons-ciência12. Seguindo tal reflexão, poder-se-ia pensar que há um desejo no

6 2009

7 2009, p. 10

8 Ibid, p. 8

9 Fry, 2009, p. 1

10 Ibid., p. 26

11 2009, p. 26

12 Ibid., p. 8

Seq. 1} São Paulo 2012

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morador de rua de conseguir se organizar e resolver problemas reforçando a ideia de performance válida13, pois segundo Sennett14, “todo bom cra-"sman conduz um diálogo entre práticas concretas e pensar; este diálo-go envolve sustentar hábitos, e estes hábitos estabelecem um ritmo entre o problema resolvido e o problema encontrado”. Os objetos pro-duzidos e apropriados pelos moradores de rua tornam-nos, aos olhos de pesquisadores e praticantes nas áreas de design, arquitetura e urbanismo, por exemplo, alvo de atenção quanto ao seu potencial de proposição de soluções a partir de situações muito restritas. Em outras palavras, se em uma primeira fase dos estudos a respeito dos moradores de rua, mais típica das primeiras décadas do século XX e associada ao paradigma moderno, o morador de rua poderia encaixar-se na categoria de ‘estranho’ e excluí-do, hoje poder-se-ia pensar na atividade dos moradores de rua como uma fonte possível de conhecimento, e não simplesmente um problema social a ser resolvido ou eliminado. Segundo Willis, os moradores de rua não de-veriam ser vistos como sujeitos que dependem apenas da caridade e pena da sociedade, mas que essa população “tem muito a ensinar àqueles que estão confortavelmente abrigados e aparentemente seguros em seus estilos de vida – incluindo os designers”15. Santos, seguindo a mesma linha de ra-ciocínio, pondera que: “o comportamento de adaptação dos moradores de rua aponta que é fundamental olhar para eles não somente como vítimas, mas também como agentes ativos que são capazes de criar e construir seus habitats improvisados pelo reuso de materiais descartados [...]”16 {Seq. 2}.

A complexidade da situação é ainda maior: muitos moradores de rua preferem viver na rua porque assim evitam as regras rígidas dos albergues, como discutido no capítulo dois. Segundo Santos, cabe aos arquitetos e urbanistas a manutenção da dignidade dessa população, pois o projeto e a construção de equipamentos adequados podem ser decisivos:

[...] por exemplo, na superação dos resistentes à albergue. A qualidade e ade-quação arquitetônica do edifício explicitarão ao morador de rua que ele não está adentrando uma prisão ou depósito de seres humanos. O que é possível e desejável para abrigar esse imenso contingente de excluídos? O que é inacei-tável? O que é adequado? Quais os conhecimentos necessários? Qual o papel dos arquitetos? Até muito recentemente as únicas opções para acomodação do morador de rua eram os rudimentares albergues, em condições precárias, com vagas insuficientes ou então dormir nas ruas, nas calçadas, sob viadutos nos intermináveis acampamentos, alvo de expulsões forçadas, gerando hosti-lidades, produzindo a Nimby (Not In My BackYard)17.

13 Cloke, 2010

14 2009, p. 92009, p. 9

15 Willis, 2005, p. 1

16 Santos, 2004, p. 23

17 2006

“o comportamento de adaptação dos moradores de rua aponta que é fundamental olhar para eles não somente como vítimas, mas também como agentes ativos que são capazes de criar e construir seus habitats improvisados pelo reuso de materiais descartados [...]”16

Seq. 2 São Paulo 2012

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Além disso, uma parcela significativa dos moradores de rua vem de re-giões menos urbanizadas e encontram em São Paulo um ambiente hostil e incompreensível, em vários aspectos. Conforme lembra Milton Santos18, o problema da pobreza urbana atinge todos os países, principalmente os subdesenvolvidos e que: “a urbanização galopante que estes últimos anos conhecem é acompanhada pela expansão, a um ritmo igual, da expansão da pobreza”. Interessa enfatizar, portanto, que essas condições encontram similaridade nos centros urbanos brasileiros e ao redor do mundo. Santos19 pondera que: “... por um longo tempo o problema do morador de rua era associado aos países de terceiro mundo, mas que na última parte do século passado, as cidades de plástico e papelão começam a aparecer em algumas das maiores cidades do mundo”. A autora cita, por exemplo, os condôminos de papelão em Shinjuku no Japão e o Skid Row no centro de Los Angeles nos Estados Unidos. Tendo isso em vista, levamos em consideração a posi-ção assumida por Tony Fry20, para quem, atualmente, as nações estão mal equipadas para lidar com a questão dos moradores de rua, uma vez que, segundo o autor, o que tem de ser planejado e projetado para essas popu-lações ainda não mereceu a devida atenção. Um dos aspectos que também mereceria maior atenção é o modo como o morador de rua se apropria dos objetos para seu uso cotidiano, transformando esses materiais – por meio do que poderíamos chamar de ações de bricolagem – para tornar viável sua existência nas ruas. As ações bricoleiras para Eichemberg21 são permeadas de processos criativos e imaginativos:

nas mãos dos moradores de rua, as bricolages tornam-se não apenas efe-tivos espaços físicos de habitar, mas também ‘invólucros sagrados’, ma-nifestações criadoras, nos quais há a essência passa a habitar. A ‘essência’ de um chapéu, associada à proteção da cabeça de quem o usa, passa a habitar um mero saco plástico. Peças de papelão, ferro, borracha, madeira tornam-se habitats móveis. Identifico tal processo espontâneo e criativo de reciclagem com a figura da serpente comendo a própria cauda, o ou-roboros alquímico, a transmutação da matéria morta em elementos vivos, morte-renascimento, reciclagem.

Kasper, através da reflexão do livro O pensamento selvagem, de Lévi-Strauss, apresenta de maneira clara o conceito de bricolagem. É interessante abordar a interlocução de Kasper com Lévi-Strauss, pois sua tese discute formas de habitar dos moradores de rua seguindo a tática do rearranjo; que pode ser entendida com uma forma extrema de bricolagem. O autor define bricola-gem como o:

[...] uso de meios desviados, em comparação com aqueles do profissional. Em seguida, o bricoleiro é contraposto ao engenheiro. Diferentemente deste, as ferramentas e os materiais dos quais dispõe o bricoleiro não foram juntados em vista de um projeto particular, mas ao acaso dos encontros, em virtude do princípio de que ‘isso pode ser útil’. O bricoleiro é, portanto, antes de tudo, um recuperador, alguém que coleta e conserva objetos e materiais com um obje-tivo que não é definido com muita precisão: “isso pode ser útil” remete não a um projeto particular, mas a uma gama aberta de fabricações possíveis22.

Ademais, como Fry observa, a atividade que caracteriza a vida dessas popu-lações sem domicílio fixo hoje se enquadra em boa medida naquilo que é in-serido no conceito de sustentabilidade. Fry inicia a discussão caracterizando as necessidades de sobrevivência de um ser humano sustentável:

1. Recursos do ambiente natural (ar puro, água potável, solo fértil e biodi-versidade);

2. Ambiente artificial (dependemos do mundo feito como se ele fosse natural para ter abrigo, transporte, roupas, meios econômicos de manutenção etc.);

3. Reciprocidade (a esfera social, a comunidade)23.

Assim, a observação dos artefatos que os moradores de rua selecionam para reciclagem é relevante para entender como esses indivíduos desenvolvem sistemas de camuflagem e de sobrevivência. Os objetos descartados que são encontrados no lixo e nas ruas são reutilizados pelos moradores de rua, por meio da manipulação de objetos de plástico e papelão. Esses materiais são re-traduzidos de diversas maneiras como contêineres, telhas, recipientes de proteção e armazenamento. Nesse sentido, lembramos a leitura de “Máqui-nas de guerra contra os aparelhos de captura”, de Nelson Brissac Peixoto, tex-to decorrente do projeto Arte cidade do SESC, em 1996. Acreditamos que as reflexões do autor sobre as formas alternativas de se viver nas metrópoles por meio da informalidade, da exclusão social e da transitoriedade revelam uma maneira positiva de abordar populações excluídas. Peixoto24 pontua so-bre a cultura nômade: “em oposição às operações dos aparelhos autoritários, os nômades urbanos contemporâneos desenvolvem dispositivos protéticos e contramáquinas que permitem ao despossuído sobreviver e transformar as condições de sua existência”. O autor discute a situação de guerra na qual vive a cidade de São Paulo pela ocupação de áreas urbanas, onde modernas construções convivem ao lado de espaços de sobrevivência {Fig. 2}. Essa si-tuação de sobrevivência é caracterizada por meio da clandestinidade e da criação de espaços e veículos de resistência:

18 2009, p. 9

19 2005, p. 1

20 2009

21 2004, p. 2

22 Kasper, 2004, p. 127

23 Fry, 2009, p. 21

24 1996, p. 12

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A cidade converteu-se num arquipélago de enclaves modernizados – com suas torres corporativas, shopping centers e condomínios fechados – cercados por vastas áreas abandonadas, terrenos vagos ocupados por populações iti-nerantes. Camelôs tomam as ruas, favelas vão preenchendo os espaços entre as autopistas, grupos de sem-teto instalam-se sob viadutos. Como uma maré informe, espraiam-se por todos os lados, tomando os espaços intersticiais25.

Para Peixoto, novas modalidades de ocupação do espaço urbano emergem diante dessas transformações. Tais modalidades são descritas pelo pesqui-sador como novas máquinas de guerra e se distribuem no espaço aberto. Essas máquinas configuram-se nos vazios existentes e têm a possibilidade de surgir em qualquer ponto de modo fluído. O autor pondera que a máquina de guerra caracteriza-se

por uma certa maneira de ocupar o espaço. É uma invenção de populações itinerantes, que ocupam o território pelo deslocamento, por trajetos que dis-tribuem indivíduos e coisas num espaço aberto e indefinido. A máquina de guerra opera fora do aparelho de Estado e da economia corporativa, fora dos dispositivos de estruturação e controle do espaço urbano26.

Peixoto também pontua que populações nômades, tais como camelôs, mi-grantes, favelados e moradores de rua executam procedimentos táticos rei-vindicando sua presença e direito à cidade. Essas populações criam dispositi-

vos de guerra com a função estritamente de sobrevivência dentro das cidades globais. São nômades urbanos que instrumentalizam tudo o que está ao seu redor: “o morador de rua usa a torneira do posto de gasolina, o camelô toma para si um trecho de calçada, o favelado ocupa áreas junto a autopistas e viadutos e faz ligações clandestinas de luz. Toda a infraestrutura urbana vai sendo requisitada e redirecionada para outros usos”27. Para Magni, a mobili-dade dos nômades urbanos está associada a sua própria condição existencial, onde o espaço da rua se torna um elemento vital e inevitável de existir :

alguns sujeitos fazem da rua o seu habitat, reapropriando-se de espaços pú-blicos e atribuindo-lhes novos significados, formas e funções, em que a ideia de casa, de abrigo, mantém-se presente, mesmo que invertendo, ou melhor, confundindo os princípios básicos de classificação dos domínios público e privado28.

Sendo assim, as traquitanas improvisadas {Seq. 3} que os moradores de rua produzem sugerem a possibilidade de existência legítima em ambientes re-guladores e estratégicos onde imperam as políticas de dominação como hi-gienismo, os processos de gentrificação e a revitalização dos grandes centros urbanos, como se discutiu no capítulo dois; são veículos que demonstram a manifestação dos excluídos contra os aparatos construídos com a finalidade de reestruturar a paisagem urbana:

É uma operação de reconquista do território urbano, movida contra as regu-lamentações administrativas e a urbanização excludente do capital. São ma-nobras de guerrilha urbana: desviam de obstáculos para penetrar por outras frestas, reinventam constantemente novas economias e táticas de ocupação. Suas formações de combate e manobras constituem uma verdadeira empresa bélica. Seus ataques consistem em sitiar e invadir os espaços, cortar as vias de comunicação e estabelecer linhas de fuga29.

Seguindo a mesma linha de reflexão de Peixoto, o sociólogo Christian Kas-per entende em sua tese de doutorado que: “o ponto de vista adotado encara os modos de existência dos moradores de rua como formas de vida pos-síveis, e não em termos de carência, remetida a uma suposta normalida-de”30, ou seja, o autor defende que os moradores de rua desenvolvem táticas para tornar a rua habitável tanto nos modos de ocupação de locais públicos, como na funcionalidade dos materiais encontrados e aproveitados. A pes-quisa aponta que os moradores de rua desenvolvem tecnologias específicas por meio da reversão tática e do rearranjo. Por reversão tática o pesquisador entende que é:

25 Ibid, p.11

26 Ibid, idem

27 Ibid, p. 12

28 2006, p. 51

29 Ibid, p. 13

30 Kasper, 2004, p. III

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[...] transformar um fator adverso em vantagem. Um bom exemplo disso nos é dado pelas cercas colocadas pelo poder público para impedir que um local seja ocupado por moradores de rua. Pratica-se uma abertura nela, e pronto: o que era obstáculo tornou-se proteção. Uma vantagem ulterior pode ser ob-tida, se, como observei em duas ocasiões, o metal da cerca é vendido a um ferro velho. [O rearranjo consiste em] criar novas configurações a partir de elementos dados. Implica desagregar alguma estrutura encontrada para re-combinar os elementos que a compõem31 {Fig. 3}.

Para Fry32, é necessário ainda ter em vista os cenários que apontam para um futuro próximo em que, em decorrência de problemas econômicos, políticos ou sociais, ou mesmo de desastres naturais consequentes de dese-quilíbrios ecológicos, centenas de milhões de pessoas perderão suas casas e serão incapazes de serem acomodados pela necessidade de habitação do planeta. Como observa o autor, as necessidades ecológicas da vida neste planeta destoam francamente das práticas econômicas e culturais de mui-tos de seus habitantes; dizendo com mais simplicidade, as “necessidades” dos pobres não são as “necessidades dos ricos”33. Em tal panorama, pode

31 Ibid., p. 17

32 2009

33 Santos, 2009, p. 17

Seq. 3 São Paulo 2012

Fig. 3 São Paulo 2013

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passar a fazer sentido aprender sobre a vida neonômade e as estruturas transportáveis, desenhadas e criadas pelos moradores de rua. Há a condi-ção de que muitos moradores de rua não conseguem ou não desejam ser reintegrados à sociedade, dessa maneira, como Fry34 aponta: “é urgente re-conhecer que os meios de mudança de rumo só podem ser encontrados na história da sobrevivência e da inovação do homem”. Segundo Kasper, o termo cultura material serve, usualmente, para designar a especificidade – geralmente étnica – de um conjunto de objetos, incluindo, nos desenvol-vimentos mais recentes, as condutas motoras envolvidas com os artefatos. Santos35, por exemplo, entende que a cultura material da população de rua constitui um campo de pesquisa. É o que se poderia chamar de uma so-ciologia do design, do objeto e dos materiais, a partir do consumo e dos consumidores e das necessidades de exumação dos produtos industriais de massa. Trata-se de uma área nova e interdisciplinar, que certamente torna-rá possíveis novos conhecimentos sobre as articulações dos eixos do tempo e do espaço, na cultura urbana contemporânea. A autora prossegue considerando que o conceito de ‘cultura embrulhada’ refere-se às práticas que os moradores de rua desenvolvem de reutilização e reconceituação de materiais descartados, especialmente embalagens. Por fim, pondera que um aspecto expressivo a ser considerado é que “o design espontâneo e a reciclagem informal trazem a presença da alteridade no espaço público, são elementos poderosos que materializam uma prática alternativa e radical de design e de resistência cultural”36 {Figs. 4 e 5}. Por meio da observação da cultura material das pessoas que vivem na rua, pode-se construir refle-xões sobre o modo pelo qual os moradores de rua sobrevivem de maneira alternativa – uma prática cada vez mais recorrente nos centros urbanos – e que os objetos encontrados em suas caminhadas são re-traduzidos e essenciais para adaptação na rua. Essa atitude dos moradores de rua sur-ge da ausência de alternativas eficientes dos órgãos públicos na oferta de equipamentos para quem opta por viver nos logradouros. Segundo San-tos37, “estes arranjos têm um significante impacto na cidade, direcionando novos usos do espaço público, que frequentemente geram reações adversas dos habitantes da cidade e do governo municipal”. Assim, pode-se inferir que os moradores de rua têm habilidades em garimpar, selecionar e transformar o lixo. Os moradores de rua entendem e compartilham essas habilidades na manipulação de objetos? Existe uma utilidade nos objetos que os moradores de rua transformam? Esses objetos são lúdicos, práticos ou apenas lixo acumulado, sem função? Grupos específicos de moradores de rua utilizam objetos específicos de acordo com suas necessidades? As

Por meio da observação da cultura material das pessoas que vivem na rua, pode-se construir reflexões sobre o modo pelo qual os moradores de rua sobrevivem de maneira alternativa – uma prática cada vez mais recorrente nos centros urbanos – e que os objetos encontrados em suas caminhadas são re-traduzidos e essenciais para adaptação na rua. Essa atitude dos moradores de rua surge da ausência de alternativas eficientes dos órgãos públicos na oferta de equipamentos para quem opta por viver nos logradouros

34 2009, p. 21

35 2003

36 Santos, 2003, p. 83

37 2003, p. 62

Fig. 4 São Paulo 2013

Fig. 5 São Paulo 2012

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possibilidades técnicas de um estilo de vida simples e precário podem ser válidas dentro da sociedade de consumo? Embora não se pretenda propor respostas para essas perguntas, outras pesquisas, acadêmicas e artísticas, poderiam debruçar-se sobre elas. A manipulação do lixo feita pe-los moradores de rua pode apresentar qualidades e habilidades que jamais pensaríamos, ampliando o repertório em como manipular materiais des-cartados: “todo tipo de mobiliário resgatado do lixo é passível de ser trans-formado em elementos importantes para a criação dos habitats informais urbanos”38. Os moradores de rua, para sustentar um estilo de vida próprio, desenvolvem hábitos específicos, pensando em como utilizar poucos ma-teriais que permanecem como alternativa e em como conduzir a vida com habilidade, o que novamente nos remete a ideia de performance válida39. Para Santos40,

o morador de rua e o catador de recicláveis estabelece uma sensibilidade múl-tipla em sua relação com os materiais e com as embalagens, que pode se ca-racterizar como uma relação disfuncional e uma nova funcionalidade, onde emergem várias vidas dos produtos e dos materiais {Figs. 6 e 7}.

O morador de rua resgata o potencial de cada objeto de maneira criativa, tanto o usando para seu benefício próprio, como o reintroduzindo no mer-cado de materiais recicláveis para sustento de sua própria economia. É inte-ressante, dentro desse contexto, trazer a reflexão de Magni41 no que se refere às diferentes maneiras de consumir entre a população incluída e excluída:

Os instrumentos, apetrechos, utensílios diretamente associados à realização daquelas atividades domésticas, são objetos a que os setores mais pobres da população não têm acesso direto via mercado. Por outro lado, a sociedade sedentarizada, tendo alcançado um alto nível de desenvolvimento das forças produtivas próprio do capitalismo avançado gera um acúmulo incessante de dejetos que, tendo perdido a sua função utilitária ou conformando excesso para determinadas camadas sociais, são destinadas ao lixo ou à caridade – fontes principais da cultura material do nômade urbano [...] Ao resgatar tais dejetos, ele restabelece o seu valor utilitário e simbólico, empregando-o com finalidades variadas – da energia e do conforto ao lúdico e simbólico –, mui-tas vezes distantes do emprego dado pelo segmento social que anteriormente o consumiu.

38 Ibid., p. 80

39 Cloke, 2010

40 2003, p. 116

41 2006, p. 74

Fig. 7 São Paulo 2013

}Fig. 6 São Paulo 2013

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UMA OUTRA PERSPECTIVA SOBRE O MORADOR DE RUA

0%""!+1%, ! $)%.+42 discutem a relevância em adotar uma abordagem na pesquisa e no trabalho de campo sobre pessoas que moram na rua não como a representação de uma patologia problemática desenvolvida pelo morador de rua, mas como uma decisão legítima e compreensível. Isso demonstra o quanto se pode avançar na compreensão e tolerância nas formas de convi-vência e interação com os moradores de rua. A pesquisa que eles conduziram em Birmingham, nos Estados Unidos, buscou produzir benefícios para os participantes oprimidos, melhorando suas vidas. Arnold aponta que as representações das experiências dos moradores de rua demonstram dispa-ridade entre a realidade complexa e o paradigma construído pela literatura e medidas públicas. A autora assinala essas qualidades como: “os moradores de rua criaram jornais e novas formas de construir casas (por meio de acam-pamentos e ‘cidades’) e trabalho (reciclagem, lavar carros e outros serviços). Nota-se a importância em interpretar a ‘casa’ como um ‘abrigo’ ou algo ‘além do abrigo’ que “envolve relacionamentos, trabalho, mementos, privacidade, e expressão pessoal”43. Wasserman e Clair44 também apontam que os relacio-namentos são guiados por códigos de comportamento mantidos de diversas maneiras e servindo-se de diferentes regras “não somente aqueles que estão vivendo na rua estão comprometidos a construir redes de relacionamento com seus pequenos grupos, mas diferentes grupos mantêm relações um com o outro por meio de interlocutores”. Os autores sinalizam que os am-bientes que os moradores de rua criam iluminam os relacionamentos entre seus pares e o senso de comunidade. Reconhecer seus objetos e seu estilo de habitar significa validar e aceitar socialmente essa forma específica de iden-tidade própria (embodiment), em que a ideia de liberação e determinação própria é colocada em primeiro plano ao invés de ideais comuns de proprie-dade privada e emprego rentável45. Os moradores de rua estão focados em resolver problemas referentes à autonomia e liberdade:

enquanto a concepção popular é a de que eles são o mais falido subgrupo en-tre vários grupos de pessoas com problemas econômicos, nós consideramos que a possibilidade de resistência aos albergues e outras instituições poderia no mínimo em alguns casos significar aspectos de funcionalidade. A capa-cidade de criar e de propor algo indicam noções de méritos do self, ou no mínimo aspectos deste46.

Nesse sentido Santos47 pondera que:

a espacialidade/visibilidade dessa nova cultura se impõe, até mesmo pela di-ferença visual que ela introduz na paisagem urbana e, mais do que nunca é necessário reconhecer as diferenças, pois como diz Jeudy: ‘o desafio de uma sociedade democrática não é senão defender as identidades ameaçadas, mas fazer aceitar que a alteridade seja apreendida no coração mesmo da identida-de, seguindo o bom princípio: um é o outro.

Para Arnold, a noção de dignidade envolve a ideia de reconhecimento mú-tuo, como por exemplo, quando o eu vai além da polaridade entre eu/outro. A humanidade mútua é reconhecida pelas histórias das pessoas, suas parti-cularidades, e sua diferença. A sua inclusão é feita justamente pela diferença “se a política enraizada em uma comunidade permite identidades complexas e diferentes, isto pode circunscrever escolhas e ainda abranger o pertenci-mento daqueles que seriam os moradores de rua”48. A escolha entre ficar na rua ou encarar o sistema de albergamento pode ser uma opção em nome da liberdade e autonomia49. O autor mencionando o ‘ambiente hostil’ do al-bergue aponta que estando com ‘estranhos’ ao redor, muitos moradores de rua se sentem instáveis de diversas formas, num ambiente estressante, sim-plesmente os deixando inseguros. Ao contrário, na rua eles podem escolher onde eles dormem, e com quem em seus arredores. Eles podem permanecer relativamente escondidos e próximos a amigos. Com esse tipo de afirmação, o morador de rua começa a ser visto como aquele que tem uma longa lista de razões lúcidas para não usar esse tipo de serviço, em particular, de não permanecer em albergues durante a noite. Ruddick50 aponta a capaci-dade positiva dos moradores de rua quando eles se utilizam e desenham as coisas, permitindo o conhecimento de uma criatividade individual e coletiva. Para a autora, os moradores de rua formam redes complexas de cooperação, entre grupos ou individualmente, compartilhando seus territórios. Tais ca-racterísticas revelam que a identidade e defesa podem ser experiências for-temente positivas. Os moradores de rua possuem um conhecimento prático dos locais onde eles habitam temporariamente ou permanentemente. Constroem ‘microarquiteturas’ dentro de suas rotinas de movimento e pausa. Para Cloke51, essas ‘microarquiteturas’ revelam a possibilidade de inserção no espaço da cidade com marcas e sinais alternativos que apontam para am-bientes onde coexistem o cuidado, a caridade, a diversão etc. Assim, sugere-se reconhecer os moradores de rua como pessoas que possuem identidade própria e que executam performances válidas quando criam espaços para dormir, comer, ganhar, etc. Seguindo essa perspectiva, ao invés de se pensar na vida na rua somente como transgressão, é interessante entender essas per-formances: “reconhecendo emoção e afeto na vida dos moradores de rua nós

42 2010, p. 58

43 Arnold, 2004, p. 169

44 2010, p. 113

45 Ibid, p. 48

46 Ibid, p. 140

47 2003, p. 23

48 2004, p. 169-170

49 Wasserman e Clair, 2010

50 1996

51 2010, p. 8

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podemos começar a construir um lugar de nuances na ‘homeless city’52. Se-guindo a ideia de ‘homeless city’ de Cloke, Frangella observa que pode existir relações de sociabilidade e interações sociais ‘itinerantes’ entre os moradores de rua onde:

pessoas ou grupos reproduzem, muitas vezes, papéis familiares entre os de-mais que compartilham o mesmo espaço, seja por pouco ou muito tempo. Marcam também relações de vizinhança entre si e com outros segmentos que compartilham seu mundo. No mundo da rua, agrupamentos são formados usualmente de forma provisória temporal e espacialmente. Nestes, várias for-mas de sociabilidade se manifestam, tendo as trocas ou compras e comu-nhões dos objetos acumulados cotidianamente como base das alianças: co-mida, roupas, bebida, drogas, cobertor, potenciais ‘mercadorias’ encontradas no lixo53.

Tais ‘geografias de performance’ para Frangella, são percebidas pelo desloca-mento nômade dos moradores de rua:

nas contínuas andanças em busca de recursos de sobrevivência, vão marcan-do interações sociais práticas e simbólicas com os segmentos sociais que os circundam e novas territorialidades no espaço liminar. A partir da movimen-tação pedestre, o morador de rua também alarga seu universo de interlo-cuções com o cenário institucional no qual busca parte de seus recursos e amplia assim seu circuito geográfico na cidade54.

No caso específico de São Paulo, Frangella explica que a visibilidade se trans-forma em ameaça às ordenações urbanas e as normas da cidade ativam formas de vigilância e de opressão policial para evacuar essa população do centro de São Paulo. Esses tipos de ações confirmam a necessidade dos mo-radores de rua sempre estarem se deslocando – acabam encarcerados em ter-ritórios que não oferecem nenhuma saída –, tornando-se nômades urbanos estigmatizados e excluídos à procura de um espaço de resistência, reformu-lando-se e adaptando-se à paisagem urbana. Segundo a autora55,

criam cidades nômades dentro da Cidade, tomando de assalto a lógica urba-nística com sua imagem composta de “subtrações” e o caminhar permanente, e relembrando constantemente a propriedade plural do espaço urbano, onde lugares se criam por meio da disputa das fronteiras identitárias.

A existência do morador de rua é fundamentalmente uma ‘existência espa-cial’56. Os moradores de rua vivem em universos delimitados apropriando-se e transformando seu meio. Nos estudos de Magni sobre nomadismo, a

autora observa que os abrigos improvisados dos moradores de rua podem ser abandonados quando o morador de rua deixa evidências materiais de sua ocupação anterior ou pode ser re-apropriado por outro morador de rua57. Observações fundamentadas em experimentos de vivência junto aos moradores de rua permitem trazer registros das diferenças entre os mo-mentos diurnos e noturnos, ou ainda, como os moradores de rua lidam com os diferentes eventos climáticos que ocorrem na cidade, como calor, frio, chuva etc., adotando estratégias que variam da camuflagem à visibilidade. Wasserman e Clair58 apontam a possibilidade de a invisibilidade trazer be-nefícios para ambos lados: para o morador de rua, pois eles não querem ser vistos e para a sociedade por que não quer ver os moradores de rua. É nesse contexto que se insere o seguinte depoimento:

Eu costumava usar locais seguros ‘quando eu dormia numa cabana’. Camu-flava-a. Eu posso dizer [...] que ele cometeu um erro. Sua barraca era laranja, assim ela era bem visível ‘e é claro’ você normalmente não vai lá durante o dia. Você vai lá quando está escuro e ninguém pode ver você indo lá. Se você não tem como iluminar o local, você não consegue ver nada. Nestas cabanas, é muito perigoso colocar uma vela. Eu vi muitas pessoas queimarem suas cabanas e quase matar elas mesmas”59.

Para Arnold, a dignidade e a particularidade do Outro são descritas como justiça e obrigação moral: “justiça permitindo o Outro ser outro”60.

Os moradores de rua possuem um conhecimento prático dos locais onde eles habitam temporariamente ou permanentemente. Constroem ‘microarquiteturas’ dentro de suas rotinas de movimento e pausa. Para Cloke51, essas ‘microarquiteturas’ revelam a possibilidade de inserção no espaço da cidade com marcas e sinais alternativos que apontam para ambientes onde coexistem o cuidado, a caridade, a diversão etc

52 Ibid., p. 66

53 Frangella, 2004, p. 31

54 Ibid., p. 12

55 Ibid., p. 33

56 Magni, 2006, p. 42

57 Ibid., p. 64

58 2010, p. 98

59 Alan apud. Cloke, 2010, p. 75

60 Arnold, 2004, p. 170

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A DISCUSSÃO E INCLUSÃO DOS ‘DESTITUÍDOS DE VOZ’ POR MEIO DA PRÁTICA PROJETUAL DE WODICZKO

,%"$.-* !1 2345 ,% &*)6,.%, formado em desenho industrial na Acade-mia de Belas Artes de Varsóvia em 1968, Wodiczko emigrou para o Canadá em 1977 e, em 1983 foi para os Estados Unidos, onde passou a lecionar no MIT. O designer, por ter emigrado e imigrado para diversos países, se vê como um nômade. Partindo desse interesse por uma cultura do deslocamen-to, Wodiczko entende que os nômades não são deslocados de seu terreno e que – muito pelo contrário do que muitos pensam – conhecem melhor que os residentes nativos o ambiente no qual se deslocam e permanecem. Para Kwinter, a arte de Wodiczko está fundada sobre a agonia do cosmopolitismo, buscando revelar o problema da democracia de forma concreta e efêmera. Seus trabalhos – projeções, veículos e ativismos coletivos – “pertencem à categoria do discurso social e é sob esta luz que eles devem ser primeiro vistos”61. Além disso, Wodiczko apresenta seus discursos sociais com convic-ções democráticas no espaço público. Um dos primeiros objetos que Wodiczko criou para lidar com a questão pública e privada foi o Personal Ins-trument. O designer discorre que tal objeto buscou trazer a discussão social e política na esfera pública por meio de um instrumento pessoal:

as características privadas do Personal Instrument (intimidade) são submer-sas nas características públicas (publicamente) do espaço, e isto determina suas características sociais (comunalidade). Personal Instrument é uma exal-tação público-privada de liberdade dos cidadãos62.

O objeto consistia em um microfone, fones de ouvido, luvas e receptores de luz. O movimento das mãos, quando apontados para a luz, transmitiam sons da esfera pública. Essa foi a primeira tentativa de Wodiczko em demons-trar como o cidadão tem o poder de comunicar, usar e controlar o espaço público. Seguindo a reflexão do designer, trabalhos artísticos dão voz aos complexos discursos de poder e liberdade no espaço das cidades; as cidades são ambientes onde os cidadãos são silenciados. Sendo assim, os cidadãos silenciados concordam com sua desaparição no espaço público e consequen-temente com a desaparição da democracia. Segundo Deutsche63, o designer também trabalha há mais de uma década em um projeto intitulado Xenology. Esse projeto consiste em desenhar equipamentos para imigrantes, refugiados e pessoas procurando proteção e ajuda contra atos de violência, opressão e injustiça. Para Wodiczko64, o projeto consiste em ser a arte e a

ciência do estranho, uma espécie de arte ou habilidade por meio da dor que os imigrantes desenvolvem para sobreviver. O estado de ser estranho nas sociedades contemporâneas se acumula como

uma experiência sem forma, sem linguagem, sem expressão, e sem direito de ser comunicado, portanto torna-se um sintoma físico perigoso”. Segundo o designer: “se o estranho é um profeta que interrompe a história, os artistas e designers de hoje deveriam ajudar esse profeta desenhando equipamentos especiais para tal intervenção65.

Wodiczko também lidera um grupo de design interrogativo no Massachu-setts Institute of Technology’s Center for Advanced Visual Studies. O artista discorre sobre o design interrogativo:

[...] uma proposta de pesquisa e implementação pode ser chamada de inter-rogativa quando se arrisca, explora, articula, e responde as condições questio-náveis da vida no mundo atual, e faz isso de uma maneira interrogativa. O de-sign interrogativo questiona o mundo de necessidades dos quais ele nasce66.

Ou seja, esse tipo de design responde interrogativamente as necessidades que não deveriam existir, mas que existem no mundo civilizado capitalis-ta; em um ambiente cercado de coisas inaceitáveis, o design interrogativo pode também ser percebido como inaceitável. Segundo Deutsche67, “o de-sign interrogativo questiona o design existente no mundo social, e oferece soluções que não podem ser vistas como próprias ou tomadas sem protesto”.

Bruce Mau68 problematiza que uma das ambições secretas do design é se tornar invisível e ser absorvido dentro de nossa cultura, ou seja, quanto mais sucesso os produtos alcançam, mais eles se tornarão banais e passarão desapercebidos. É exatamente o oposto da proposta comercial que o design pode ter, encerrando seu ciclo em objetos consumidos em excesso e sem a devida utilidade, que Wodiczko contrapõe o papel do designer como criador e do objeto como instrumento que polemiza situações que são esquecidas e estão escondidas nas sociedades contemporâneas. Portanto, o design tem a função primordial de ser um agente sensibilizador. Mau complementa no livro Massive Change que o mundo passa por mudanças trazidas pela inovação e que deveríamos olhar para as bordas da cultura e da tecnologia para obter uma inesperada visão do futuro. Papanek69 também se preocu-pa com o caminho que o design pode tomar. Em seu livro Design for the Real World, o autor discute a falta de engajamento social nas áreas de design apontando que “a indústria e os designers estão preocupados somente com uma pequena porção de privilegiados, sem se endereçar às necessidades reais

61 Mccorquodale, 2011, p. 6-7

62 Ibid., p. 36

63 2002

64 1999

65 Ibid., p. 9

66 Ibid., p. 16

67 2002, p. 27

68 2005

69 1973

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do design e da indústria”70. O autor ainda complementa que “a mais impor-tante habilidade que o designer pode trazer para seu trabalho é a habilidade de reconhecer, isolar, definir e resolver problemas. Minha própria visão é que o design deve ser sensitivo para os problemas existentes”71. Entendemos que a preocupação desses autores se encontra em produzir artefatos de design para quem realmente tem necessidade e não somente para quem pode de-sejar e consumir. Wodiczko é conhecido por desenvolver projetos em duas vertentes, por ele denominados instrumentações e projeções através de veículos críticos. Em ambos os casos propõe o design como ferramenta de intervenção no espaço público: como suplemento para o ambiente urbano já saturado de significados, de forma a curar o entorpecimento que ameaça a saúde do progresso democrático ao romper e inserir vozes de outros habi-tantes que são silenciados e marginalizados72. Dessa maneira é interessante entender como utilizar a palavra veículo. Na reflexão de Wodiczko73, “veícu-los servem como significados de ativação (e aviso contra) a opressividade do sistema psicossocial”, ou seja, a exibição por meio de veículo – em forma de objeto ou de projeção de imagens em monumentos – procura revelar proble-mas de minorias oprimidas que ativamente fazem parte das grandes cidades, mas que dificilmente são ouvidas e geralmente são silenciadas.

A palavra vehicle é associada com o conceito de (transporte de armas ou mi-litares) Carrier . Em alguns dicionários, é descrita como “uma pessoa ou uma coisa” ou usada com meio “para transmitir ideias ou emoções”. É comumente entendida como formas de transmissão, apresentação e expressão. O termo critical sugere julgamento, um ato de apontar desvios, defeitos ou erros. Im-plica indispensabilidade e uma situação alarmante ou perigosa, bem como arriscada. Denota um ponto ou estado em que a mudança de propriedades ou características toma lugar – uma mudança de rumo ou crise que pode de-mandar uma urgente resposta ou ação. Um critical vehicle é, dessa forma, um meio; uma pessoa ou uma coisa atuando como Carrier para mostrar ou trans-portar ingredientes e agentes vitais. Está pronto para operar como mudan-ça de rumo no consciente coletivo e individual. Transmite ideias e emoções que são indispensáveis para compreensão da urgência e da complexidade da situação. Em suma, o critical vehicle é um e meio ambicioso e responsável – uma pessoa ou um pedaço de equipamento – que pretende atribuir ideias e emoções na esperança de transportar para cada terreno humano um vital julgamento em direção a uma mudança vital74.

Para Turowski ,os veículos de Wodiczko “contribuem para um discurso geral histórico de um ponto de vista crítico, uma crítica da história em que os con-

ceitos de função, progresso, altruísmo, ‘o outro’, segurança, e assim por diante, são vistos como componentes ideológicos da visão social do poder político”75. As projeções públicas envolvem o questionamento da função das proprieda-des privadas por meio da contradição política de uma cultura capitalista. O ataque a tais propriedades – para Wodiczko – deve ser feito à noite e realizado de maneira inesperada, “quando o edifício, imperturbável de suas funções diá-rias, está dormindo, e quando seu corpo sonha, quando a arquitetura tem seus pesadelos”76. Dessa maneira, as projeções públicas transformam-se em um festival urbano noturno onde a reflexão, a crítica, e o compromisso emocional podem coexistir. Tal posicionamento crítico pode ser observado quando Wodiczko interfere no espaço público expondo o problema dos moradores de rua através da Homeless Projections. Projetando imagens dos sem-teto em monumentos e memoriais, o designer traz de volta à vida estátuas de praças públicas com a proposta de despertar os habitantes que circulam por esses lugares “onde humanos se tornam petrificados e monumentos tomam vida”77. Uma de suas projeções aconteceu na Union Square em Nova York, local que foi notoriamente conhecido na década de 1980 pelos processos de gentrifi-cação e especulação imobiliária {Figs. 8 e 9}. Na época, lojas de baixo poder aquisitivo, hotéis de simples qualidade etc. deram lugar a luxuosos edifícios comerciais e residenciais. A projeção, segundo Deutsche, ia contra as forças que pretendiam explorar e tirar lucro da praça, além de militar contra a neu-tralização da população de rua por aspectos estéticos onde projetos idealistas são construídos por meio de formas arquitetônicas. Para Deutsche78, “as ho-meless projections proclamam, pelo contrário, a mutabilidade de sua lingua-gem, e chamam a atenção para a mudança do uso em que elas são colocadas e como elas são continuamente reformuladas nas circunstâncias históricas e contextos sociais”. As imagens chamam atenção para o estilo de vida que os moradores de rua levam, seus equipamentos, suas roupas, revelando objetos fundamentais para sobrevivência e deslocamento, como uma cadeira de ro-das, uma muleta etc. Portanto, a projeção abre a possibilidade de dar voz aos silenciados e visibilidade aos excluídos, uma via possível de debate para inclusão política, cultural, e social dentro do espaço público. No exemplo aci-ma, as imagens buscaram mobilizar o público e restabelecer o espaço como um lugar de crítica aos processos de revitalização. Os monumentos são ilu-minados pelos projetores e convertidos em veículos críticos. Segundo Jekot, o trabalho de Wodiczko leva as pessoas marginalizadas a se: “expressarem por elas mesmas, estabelecerem sua presença e insistirem em seus direitos”79. É de se refletir o próprio espaço das praças públicas, lugares de passagens onde realmente quem se apropria e utiliza são os moradores de rua. Para Wodi-

70 Papanek, 1973, p. 56

71 Ibid., p. 151

72 Wodiczko, 2004

73 1999, p. XII

74 Ibid., p. XVI

75 Mccorquodale, 2011, p. 23

76 Ibid., p. 49

77 Wodiczko, 1999, p. XIV

78 apud Mccorquo-dale, 2011, p. 115

79 apud Jekot, 2008, p. 2

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zcko80, os edifícios – um efetivo meio e um ideológico instrumento de poder – são construídos para operar com uma estrutura estética que pode ajudar no processo de inspirar e concretizar nossas projeções mentais de poder. A arquitetura deve ser reconhecida como um sistema social onde há a existên-cia de uma nova condição econômica e uma experiência política e social, no entanto, inversamente a arquitetura é cínica e preocupada somente com sua expansão, forçando a expulsão e eliminação de grupos pobres pois tais forças de exteriorização de seus corpos estranhos transformam os moradores de rua em estruturas permanentemente exibidas ao ar livre, formas arquitetônicas simbólicas, novos tipos de monumentos nas cidades: os moradores de rua.

Canevacci81 acredita que os edifícios se comunicam por meio de diversas linguagens, tanto com o observador como com a cidade e sua complexidade:

[...] a tarefa do observador é tentar compreender os discursos ‘bloqueados’ nas estruturas arquitetônicas, mas vividos pela mobilidade das percepções que envolvem numa interação inquieta os vários espectadores com os dife-rentes papéis que desempenham. Espectadores, que por sua vez, ao observa-rem por meio de sua própria bagagem experimental e teórica, agem sobre as estruturas arquitetônicas aparentemente imóveis, animando-as e mudando-lhes os signos e o valor no tempo e também no espaço.

Assim sendo, Wodiczko, por meio das projeções, polemiza a escolha na vida na rua: destaca aspectos humanos positivos em um tipo de vida estranho e alternativo e faz as pessoas lembrarem e refletirem sobre problemas indivi-duais recorrentes nas sociedades contemporâneas. Segundo Oliveira82, “suas projeções em prédios públicos iluminam as ambivalências camufladas do es-paço urbano de forma inovadora e crítica, expondo feridas que os regimes de signos capitalísticos hegemônicos insistem em ocultar”. O projetor, no entan-to, deve ser desligado no momento em que a imagem perde seu impacto para não se tornar meramente um objeto de decoração83. Em uma palestra da Aperture Foundation sobre o contexto da fotografia por meio das projeções Wodiczko argumenta que:

denunciar o fato de uma situação de que alguém pode viver – com extrema precariedade – é enunciar para o mundo que talvez isso não deveria existir no futuro; denunciar um lugar para esse tipo de experiência, dessa maneira é uma projeção mas também uma rejeição de denunciar e enunciar alguma coisa”84.

O objeto Homeless Vehicle projetado por Wodiczko leva em conta respostas às necessidades dos moradores de rua, como dormitório (oferecendo abrigo

80 apudMccorquo-dale, 2011, p. 48

81 1997, p. 22

82 2002, p. 149

83 Mccorquodale, 2011

84 Palestra na Aperture Foundation. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=Y_BhaZA2Frg> Acesso em: 20 ago. 2013.

Data de acesso: 10/12/2013 http://adv-design2012.wordpress.com/project-4/krzysz-tof_wodiczko-2/

{Fig. 9 Nova York 1990

Fig. 8 Nova York 1990

}

Data de acesso: 10/12/2013 http://24.media.tumblr.com/tumblr_m38f06fe-C71rqwvq8o1_400.jpg

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e proteção); higiene (mental e física); alimentação (armazenamento de água e alimentos) e mobilidade (dos utensílios carregados no dia a dia e dos ob-jetos reciclados para gerar renda). Para tanto, o produto foi testado por uma série de moradores de rua que serviram como consultores e adaptaram o veículo às necessidades de subsistência de futuros moradores de rua. {Fig. 10}etc. O veículo revela as preocupações de Wodiczko frente às estratégias desenvolvidas pelos moradores de rua em ambientes ameaçadores como os logradouros públicos. Segundo Mau, o terceiro mundo é povoado por em-preendedores que se esforçam em construir ambientes informais com suas próprias mãos: “o que seria se nós pudéssemos desenhar um sistema de pro-priedades que pudesse apoiar isso”?85 Wodiczko questiona se realmente os moradores de rua querem ter uma habitação fixa, ocupando os albergues. O veículo procura legitimar a situação daqueles que optam pela vida nôma-de, na rua, dentro da comunidade urbana. Uma articulação que Wodiczko86 propõe sobre o design interrogativo é a função prática e visual da bandana:

uma bandana cobre e trata uma ferida enquanto ao mesmo tempo expõe sua presença. Essa presença significa a experiência de dor e a esperança de recu-peração. É possível desenvolver esse conceito? Nós poderíamos inventar uma bandana que comunicaria, interrogaria, e articularia com as circunstâncias e a experiências de injúria.

É interessante refletir essa proposta de Wodiczko para o aspecto e o impacto visual para chamar a atenção para o que promove, um tipo de ‘tratamento’ e ‘proteção’ dos homeless, ou uma cultura que se embrulha para mostrar a fragilidade e exposição à qual essas pessoas vivem em São Paulo. Ao buscar refletir sobre o modo como os moradores de rua se apropriam de objetos descartados e os transformam para seu uso e sobrevivência, adotamos o pon-to de vista de Tony Fry, que sugere uma perspectiva renovada: o reconheci-mento dessa população como uma comunidade legítima na cena urbana. De fato, se Santos reconhece naquilo que chama ‘cultura de embrulhamento’ uma tendência para a separação e alienação do morador de rua, que passa a se assumir como ser à parte da vida urbana, Wodiczko ensaia, com seus objetos experimentais e projeções, a possibilidade de um movimento contrá-rio, a inserção do morador de rua e de comunidades marginalizadas como seres visíveis e participantes da coreografia urbana. Emergem ainda dessa especulação possibilidades a serem atentamente exploradas. Não per-sonificariam os moradores de rua, com seu saber-viver nômade, uma espécie de paradigma da sustentabilidade, no que se refere à seleção, manipulação e transformação de objetos descartados em instrumentos úteis para sua sobre-

vivência? Tony Fry parece crer que sim, ao apontar para prognósticos em que a vida urbana passará a incluir cada vez maior número de desabrigados. Nes-se cenário, as experiências projetuais de Wodiczko, mais que especulações idealistas, podem ser encaradas como parte de um processo que se inicia, de busca sistemática e apropriada de pensar em soluções que, ao invés de par-tirem da premissa da eliminação do morador de rua, entende-o mais como uma peça do intrincado elenco que compõe a dinâmica da vida na cidade.

85 Mau, 2005, p. 41

86 1999, p. 10Fig. 10 Nova York 1989

}

Data de acesso: 10/10/13 http://people.lib.ucdavis.edu/~da-vidm/xcpUrbanFeel/ascher.html

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

!"#" $%&'#() !"*)'+,-(./,) no âmbito deste trabalho, é importante enfatizar, em primeiro lugar, que a argumentação aqui construída articulou desde seu início e ao longo do seu processo a revisão bibliográfica, a seleção e o trabalho sobre o referencial teórico e a exploração e construção do tra-balho artístico. Ambas interferiram entre si e transformaram-se continua-mente. Esse modo de trabalhar ensejou a experimentação de suportes apro-priados para a apresentação dos resultados dessa pesquisa. Neste contexto, o desenvolvimento do projeto gráfico constituiu-se em instância paralela de trabalho. Entendeu-se, desde o início, que a relação entre o conteúdo da pes-quisa e a forma de sua apresentação deveria ser criteriosamente ponderada, tendo em vista a natureza do vínculo entre os elementos textuais e não tex-tuais. A articulação da narrativa textual e visual do primeiro capítulo dis-cutiu a conotação de “estranho”, “perigoso”, “refugo” e “anomalia”, comumente atribuída aos moradores de rua, com fotografias de trabalhos anteriores e recentes, abrangendo o período de 2001 a 2013, documentando indivíduos de vários lugares do mundo. O foco da narrativa visual recaiu sobre o indiví-duo, seu corpo, seu rosto. No segundo capítulo – cuja preocupação cen-tral foi as posturas prescritivas que buscam enquadrar e controlar o corpo e as ações dos moradores de rua – a narrativa fotográfica explora as relações entre o indivíduo e os espaços da cidade, enfatizando o caráter de “estra-nho”. O terceiro capítulo discutiu as representações que são instrumen-talizadas como suporte para julgamentos e prescrições. Nele, comparecem principalmente o trabalho de profissionais cuja repercussão contribuiu para a compreensão do impacto da representação fotográfica quando utilizada pela mídia. São as fronteiras mal delimitadas entre o trabalho documental e artístico na fotografia. O quarto capítulo volta-se para as abordagens projetuais e artísticas, as quais se distanciam das abordagens de julgamento e prescrição, propondo visões alternativas. Aqui foram apresentadas as fases exploratórias da narrativa fotográfica, em que a relação do morador de rua com seus objetos vêm somar-se à relação de si com seu corpo e com a cidade. Investigação visual que buscou diálogos com autores como Fry, Wodiczko e Loschiavo. O quinto consolidou-se como trabalho de campo em que a discussão teórica é ensaiada e substanciada, em suas possibilidades e limita-ções, vis-à-vis às possibilidades e questões impostas pelo trabalho efetivo da fotografia. Elementos como a vivência e a técnica fotográfica, as possibilida-des de representação gráfica e de edição das fotografias, e suas sequências in-

terferiram de modo efetivo na construção deste último capítulo, cuja ênfase recai sobre o discurso visual. Tendo isso em vista, este trabalho preten-deu contribuir para os campos da pesquisa acadêmica no âmbito de pós-graduação, que têm na argumentação visual um fator essencial. O trabalho fotográfico apresentado aqui mostra elementos do dia a dia dos moradores de rua em circunstâncias não exploradas anteriormente. O registro fotográ-fico da atividade dos moradores de rua no período noturno em São Paulo, empregando técnicas de fotografia que expressam movimento – como o stop motion – preenchem uma lacuna no território das investigações sobre essas populações. Espera-se que o esforço documentado ao longo dessa pes-quisa possa prover, por meio do trabalho articulando revisão bibliográfica, fotografia e design gráfico, contribuições no âmbito do ensino de graduação em arquitetura, urbanismo, design e demais áreas que fundamentam grande parte da construção de seu conhecimento em modos não textuais.

| considerações finais

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Esta tese, composta em plataforma Apple®, com as fontes Minion Pro®, teve sua impressão digital realizada pela ALTAMIRA Editorial sobre papel Conqueror Diamond White® 120g/m2 para o miolo. O acabamento realizado manualmente com encadernação japonesa teve capa revestida com papel Color Plus Los Angeles e Cartagena® 80g/m2 em dezembro de 2013.