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4º Nas Nuvens... Congresso de Música de 1 a 7 de dezembro de 2018 ANAIS Artigo Nas Nuvens...: <http://musicanasnuvens.weebly.com/> Piano Maranhense: Barcarola para piano solo, de João Nunes (1877- 1951) Daniel Lemos Cerqueira 1 Categoria: Recital-conferência Resumo: O presente artigo, que complementa o vídeo homônimo submetido ao Congresso Virtual de Música Nas Nuvens, apresenta uma interpretação para piano solo de Barcarola, composição de João Nunes (1877-1951). Ela está associada ao projeto cultural Piano Maranhense, cujo objetivo central é retomar a circulação do repertório de piano solo de compositores nascidos ou radicados no Maranhão entre os séculos XIX, XX e XXI. Há uma explanação sobre os métodos empregados na pesquisa em andamento que deu origem ao projeto cultural em questão, além de informações complementares sobre a trajetória de João Nunes. Palavras-chave: Práticas interpretativas. Performance musical. Piano maranhense. João Nunes. Pesquisa artística. Piano Maranhense: Barcarola for solo piano, by João Nunes (1877-1951) Abstract: The present work, which adds to the homonym video submitted to the Virtual Congress Nas Nuvens, shows a solo piano performance from Barcarola, composed by João Nunes (1877-1951). This recording is associated to the cultural project Piano Maranhense, aimed to bring back the repertoire from Maranhão’s native or settled composers from 19 th , 20 th and 21th centuries. There is a brief explanation about the ongoing research methods, as well as complementary information about the composer’s biography. Keywords: Music Performance. Piano Maranhense. João Nunes. Artistic Research. Introdução O título “Piano Maranhense” remete ao projeto cultural de mesmo nome, criado a partir do projeto de pesquisa O Piano no Maranhão, em andamento no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 1 Mestre em Performance Musical pela UFMG. Aluno do Doutorado em Práticas Interpretativas do PPGM/UNIRIO, com apoio do Departamento de Música da UFMA, do curso de Música Licenciatura EaD da UEMA e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Maranhão (FAPEMA). Orientado pelo Prof. Dr. Marco Túlio de Paula Pinto e co-orientado pelo Prof. Dr. João Berchmans de Carvalho Sobrinho (UFPI). Endereço do vídeo relacionado ao presente trabalho: https://youtu.be/5VM4dchTRp4.

Piano Maranhense: Barcarola para piano solo, de João Nunes

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Piano Maranhense: Barcarola para piano solo, de João Nunes (1877-1951)

Daniel Lemos Cerqueira1

Categoria: Recital-conferência

Resumo: O presente artigo, que complementa o vídeo homônimo submetido ao Congresso Virtual de Música Nas Nuvens, apresenta uma interpretação para piano solo de Barcarola, composição de João Nunes (1877-1951). Ela está associada ao projeto cultural Piano Maranhense, cujo objetivo central é retomar a circulação do repertório de piano solo de compositores nascidos ou radicados no Maranhão entre os séculos XIX, XX e XXI. Há uma explanação sobre os métodos empregados na pesquisa em andamento que deu origem ao projeto cultural em questão, além de informações complementares sobre a trajetória de João Nunes. Palavras-chave: Práticas interpretativas. Performance musical. Piano maranhense. João Nunes. Pesquisa artística.

Piano Maranhense: Barcarola for solo piano, by João Nunes (1877-1951) Abstract: The present work, which adds to the homonym video submitted to the Virtual Congress Nas Nuvens, shows a solo piano performance from Barcarola, composed by João Nunes (1877-1951). This recording is associated to the cultural project Piano Maranhense, aimed to bring back the repertoire from Maranhão’s native or settled composers from 19th, 20th and 21th centuries. There is a brief explanation about the ongoing research methods, as well as complementary information about the composer’s biography. Keywords: Music Performance. Piano Maranhense. João Nunes. Artistic Research.

Introdução

O título “Piano Maranhense” remete ao projeto cultural de mesmo nome, criado

a partir do projeto de pesquisa O Piano no Maranhão, em andamento no Programa de

Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

1 Mestre em Performance Musical pela UFMG. Aluno do Doutorado em Práticas Interpretativas do PPGM/UNIRIO, com apoio do Departamento de Música da UFMA, do curso de Música Licenciatura EaD da UEMA e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Maranhão (FAPEMA). Orientado pelo Prof. Dr. Marco Túlio de Paula Pinto e co-orientado pelo Prof. Dr. João Berchmans de Carvalho Sobrinho (UFPI). Endereço do vídeo relacionado ao presente trabalho: https://youtu.be/5VM4dchTRp4.

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(PPGM/UNIRIO) na subárea de Práticas Interpretativas. A elaboração desse projeto

cultural é resultado direto do objetivo central de nossa pesquisa: trazer de volta à

circulação obras para piano solo de compositores nascidos e radicados no Maranhão

durante os séculos XIX, XX e XXI.

Nesse processo, emergiram algumas questões acerca de pesquisas vinculadas às

Práticas Interpretativas/Performance Musical, conforme os diagnósticos de Correia

(2015) e Borges (2017). Segundo esses autores, os tipos mais recorrentes de teses e

dissertações associados a esta subárea contemplam estudos biográficos de compositores

da música erudita e a análise de suas respectivas obras, podendo contemplar recitais

e/ou gravações do repertório estudado. No entanto, Correia (2015) e Borém e Ray

(2012) destacam que nos últimos anos, as investigações em Práticas Interpretativas no

Brasil têm se diversificado consideravelmente, a exemplo do que já acontecia no

exterior, adotando abordagens interdisciplinares e trazendo o tema da pesquisa artística

– que introduz os conceitos metodológicos de “conhecimento incorporado”, “reflexão em

ação” e “pesquisa nas artes” (BORGDORFF, 2012).

Na perspectiva de estar inserido nesse contexto acadêmico, o presente artigo

complementa a gravação em audiovisual homônima que oferece uma interpretação de

Barcarola, peça composta por João Sebastião Rodrigues Nunes (1877-1951), músico

nascido em São Luís e, portanto, associado a nossa investigação.

1. Metodologia da pesquisa

Na primeira etapa, nossa pesquisa não diferiu substancialmente dos trabalhos

que têm caracterizado a subárea de Práticas Interpretativas. As referências disponíveis

sobre músicos nascidos ou radicados no Maranhão, a exemplo de A Grande Música do

Maranhão do pe. João Mohana (1974), Teatro no Maranhão de José Jansen (1974), A

Música e o Tempo no Grão-Pará de Vicente Salles (1980) e Músicas e Músicos em São Luís

do prof. Dr. João Berchmans de Carvalho Sobrinho (2010), foram o ponto de partida para

mapear os compositores associados à nossa proposta. Fazendo uso da historiografia,

reconstituímos informações sobre as práticas musicais e biografias de músicos, em

especial por meio dos jornais disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

(BN). Conhecendo a trajetória desses compositores, levantamos possíveis locais e

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instituições com coleções e acervos de documentos sonoros – partituras principalmente

– a fim de obter fontes do repertório proposto na pesquisa. Entre os locais, definimos o

Rio de Janeiro (onde muitos dos músicos contemplados na pesquisa residiram ou

enviaram suas partituras para publicação), Recife, Belém e Manaus, além de São Luís,

onde o Arquivo Público do Estado (APEM) guarda a coleção feita pelo pe. João Mohana

entre 1950 e 19742.

Posteriormente, editamos as fontes encontradas no MuseScore, programa livre

de notação musical. Com base nos métodos de edição crítica propostos por James Grier

(1996) e Carlos Alberto Figueiredo (2017), realizamos 181 edições. Algumas obras

possuem mais de uma edição – a primeira procurando maior fidelidade ao texto original,

em espírito próximo às edições diplomáticas; enquanto a segunda possuía o acréscimo

de dedilhados e notação de gestos corporais/recursos fisiológicos, além da revisão de

estruturas musicais interpretadas como “erros”. Todas as decisões editoriais do

repertório foram registradas detalhadamente em um documento à parte, podendo servir

a estudos posteriores sobre práticas de edição musical. Isso reflete, ainda, uma

característica associada à pesquisa artística: a ênfase do trabalho pode estar no registro

do processo de investigação, ao invés de contemplar somente a apresentação de

resultados ou produtos finais (LILJA, 2015, p. 64). Segundo a coreógrafa e pesquisadora

sueca Efva Lilja:

Pesquisa artística é continuamente desenvolvida por artistas interessados nas metodologias de processos aprofundados. Muitos artistas que estiveram ativos por um longo período sentem a necessidade de processos de um tipo que não estão mais acessíveis em um mercado cada vez mais comercializado. O processo artístico às vezes tem uma obra de arte como seu objetivo final, mas a necessidade de processos que vão além da produção, buscando outros tipos de conhecimento, está constantemente se fortalecendo. (LILJA, 2015, p. 15)

A artista-pesquisadora continua, esboçando a necessidade de refletir sobre os

conceitos de “conhecimento” e “pesquisa” historicamente estabelecidos na academia:

2 Para maiores informações, recomendamos a leitura do trabalho de Cerqueira (2018).

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Nós, artistas como pesquisadores, podemos arguir que a pesquisa artística é quem adiciona legitimidade ao processo artístico como método e subsequente aceitação de uma definição mais adequada do conhecimento. Pesquisa é simplesmente uma maneira de aumentar nosso conhecimento e concepções sobre o que desejamos saber. (LILJA, 2015, p. 15)

Foi a partir desse ponto que nossa investigação passou a se direcionar para a

pesquisa artística, que nada mais é do que um método científico. O musicólogo holandês

Henk Borgdorff (2012, p. 37-39) a define em três categorias:

1) Pesquisa sobre artes: investigações onde a prática artística são o objeto de estudo.

Focam em conclusões válidas sob uma perspectiva teórica, implicando em uma

distância hipotética – e idealizada – entre pesquisador e objeto. São utilizados

métodos e ferramentas de pesquisa já consolidados no meio acadêmico.

2) Pesquisa para as artes: investigações caracterizadas como pesquisa aplicada. A

prática artística constitui o objetivo da investigação, oferecendo ferramentas e

concepções que podem ser utilizados no fazer artístico. Como exemplo, temos

trabalhos voltados à fabricação de instrumentos musicais ou interfaces de áudio para

performances ao vivo – ou seja: voltam-se à realização da prática artística.

3) Pesquisa nas artes: trabalhos onde a prática artística assume a posição tanto de

objeto quanto de processo metodológico, não havendo separação entre pesquisador

(artista) e objeto (prática artística). Também não há distinção entre teoria e prática,

pois é a partir dessa última que os problemas da pesquisa são detectados, analisados

e resolvidos. A teoria, se existe, advém da prática e é estudada/reelaborada para se

fundir novamente com a prática, formando um modelo cíclico – daqui advém o

conceito de “conhecimento incorporado”, admitindo que o saber de artistas e mestres

da cultura popular está associado a todas as suas experiências cognitivas, motoras e

sensoriais3.

3 Esse tipo de conhecimento, por sua natureza, não é documentável, ao menos com nossa tecnologia atual. Associamos essa questão ao que o Prof. Dr. Jorge Salgado Correia chamou de “fratura epistemológica” do modelo tradicional de pesquisa acadêmica (CORREIA, 2013).

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O musicólogo continua, afirmando que “conceitos e teorias, experiências e

compreensões estão inter-relacionados com a prática artística; e, parcialmente por essa

razão, a arte é sempre reflexiva” (BORGDORFF, 2012, p. 21). Essas referências nos

influenciaram muito ao iniciar a terceira etapa de nossa pesquisa, que envolveu o estudo

ao piano de parte do repertório editado. Algumas perguntas, não respondidas desde os

tempos do curso de Bacharelado em Piano, emergiram: esse recital vai acontecer apenas

uma vez, restrito à instituição? Como podemos aproveitar ao máximo esse trabalho? É

possível transformá-lo em um projeto cultural e levar essa produção a um público mais

abrangente? E que tipos de documentação nessa etapa podem ser mais úteis para os

pianistas que pretendem conhecer e/ou se basear em nossa pesquisa?

Com boa parte das edições realizadas, foi possível saber que obras revelam mais

claramente as características estéticas de cada compositor. Sendo assim, fizemos uma

seleção de que peças que ilustram a diversidade estético-musical da música maranhense

dos séculos XIX e XX até o limite de 65 minutos para o recital – o século XXI teria de ficar

para outra oportunidade. Levamos em conta também a biografia dos músicos, buscando

contemplar aqueles que se destacaram mais evidentemente em seu contexto histórico-

cultural. Sendo assim, fizemos a seguinte escolha (Tabela 1):

Tabela 1. Lista de compositores, obras e breves biografias contempladas nos recitais do projeto cultural “Piano Maranhense”

Compositor Obras e duração estimada Breve biografia

António Luiz Miró

(1805-1853)

Introdução e Thema com Variações para Pianoforte

(1835); 17min15s

Nascido na Espanha, foi para Portugal na Infância. Estudou com Domingos Bomtempo. Teve prolífica carreira como pianista, professor, compositor de operetas e diretor de orquestra

Leocádio Rayol (1849-1909)

Minuête (1905); 2min00s Marcha Rio Branco (1905);

5min25s

Natural de São Luís, estudou violino e composição em Portugal. Teve relevante atuação no Maranhão até ir para o Rio de Janeiro em 1883. Compôs obras religiosas e música para acompanhar peças de teatro

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Compositor Obras e duração estimada Breve biografia

Elpídio Pereira (1872-1961)

Dois Romances sem palavras; 6min40s

Três danças sobre temas brasileiros; 8min15s

Nascido em Caxias/MA, estudou na França por três vezes com Paul Vidal. Residiu em Manaus e no Rio de Janeiro. Era criticado em sua época por compor obras na estética romântica, sendo indiferente ao movimento nacionalista brasileiro

João Nunes (1877-1951)

Barcarola; 3min40s

Pièces Drôles; 12min00s

Ludovicense, foi um autodidata em piano até se mudar para o Rio de Janeiro, onde estudou com Arthur Napoleão e Alfredo Bevilacqua. Após dois anos em Paris, voltou ao Maranhão em 1906. Em 1914, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde passou a atuar como professor do Instituto Nacional de Música (INM) e crítico de música

Ignácio Cunha (1877-1951)

Elixir de Carnaúba (1907); 2min40s

Violinista e professor de música nascido em São Luís. Atuava na orquestra contratada do Teatro Arthur Azevedo e dirigia grupos musicais para atuar em festas religiosas e nos cinemas mudos. Foi um compositor relevante em seu contexto

Antonio Rayol (1863-1904)

Vera Lowndes; 3min00s

Irmão de Leocádio, iniciou seus estudos na viola, passando para o violino. Destacou-se como diretor de grupos musicais e tenor, quando ganhou uma bolsa de estudos do Conde de Leopoldina em 1892 para passar seis meses em Milão. Residiu no Recife, Rio de Janeiro e em Salvador. Foi uma figura de liderança em São Luís, quando dirigiu a Escola de Música pública entre 1901 e 1904

Com o repertório preparado em nível de apresentação, submetemos uma

proposta ao Edital n.º 003/2017 da Fundação de Amparo à Pesquisa do Maranhão

(FAPEMA) – Patrimônio Imaterial, voltado ao apoio de ações artísticas e culturais com

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um ano de duração4. Fomos contemplados, permitindo contratar um produtor cultural –

o músico e professor Ivaldo Guimarães Torreão Júnior – e desenvolver um projeto

cultural intitulado “Piano Maranhense”. Nossa proposta era levar este recital a pelo

menos dez municípios do interior do Maranhão, transportando um piano digital e um

projetor para exibir imagens históricas e curiosidades sobre a música maranhense ao

longo do tempo. Sob o “tripé” universitário de ensino, pesquisa e extensão, essa ação se

caracteriza como extensão. Porém, acreditamos que ela é mais ampla do que levar o

conhecimento para além da comunidade institucional: é a própria investigação que se

materializa na prática através do produto artístico (recital) – aqui, remetemos mais uma

vez à pesquisa artística.

Outra questão debatida no contexto da pesquisa nas artes é o suporte para

apresentação dos produtos da investigação. Na investigação acadêmica tradicional, o

suporte básico é a publicação de textos. Já nas Artes – tomaremos como exemplo a área

de Música – temos documentos sonoros (partituras, gravações em áudio), gravações em

audiovisual e produção de conteúdo multimídia na internet, entre outras variações.

Borgdorff defende que:

1. Processo ou produtos artísticos são componentes essenciais da e na pesquisa artística. A opção por métodos de investigação é livre e irá variar conforme as questões problematizadoras. A diversidade metodológica referida anteriormente, todavia, é sempre complementar a seu uso pelo processo em si. 2. Resultados da pesquisa consistem parcialmente em uma ou mais produções artísticas tanto cognitivamente quanto artisticamente. Longe de serem uma mera ilustração que acompanha a pesquisa, as produções artísticas são um componente indispensável da mesma. (BORGDORFF, 2012, p. 24-25)

James Grier, ao tratar sobre edição musical, aponta a necessidade de avaliar

sistematicamente a apresentação do texto final de uma edição conforme a finalidade e o

contexto para a qual foi elaborada (GRIER, 1996, p. 144-179), não necessariamente

4 Uma das observações que temos feito é que a FAPEMA, uma fundação científica, tem contribuído muito mais para o desenvolvimento artístico e cultural do Maranhão do que a Secretaria de Estado da Cultura e Turismo (SECTUR), órgão que deveria ser o provedor desse tipo de iniciativa por excelência. Para maiores informações, ver Cerqueira (2017).

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vindo como anexo de um trabalho acadêmico que “valide” esse tipo de produção – como,

por exemplo, uma tese ou dissertação.

No formato atual de pesquisa acadêmica instituída no Brasil, ainda não há

flexibilidade para o suporte – com exceção dos Mestrados profissionais, que têm como

característica justamente a elaboração de um produto final não limitado apenas a uma

dissertação. Mesmo assim, em nossa investigação, já estamos gerando produtos em

multimídia sob influência da pesquisa artística: todas as apresentações associadas ao

projeto “Piano Maranhense” estão sendo registradas em audiovisual e disponibilizadas

em um canal na plataforma YouTube – http://www.youtube.com/user/dlemosufma,

além de estarmos produzido um relatório para cada evento. Para o público em geral,

estas gravações são registros de diversos momentos do projeto. Já para os especialistas

em pesquisa artística, é interessante observar algumas questões para reflexão como, por

exemplo:

▪ É possível analisar as decisões interpretativas do pianista, objetivamente

captadas através do áudio, com base em uma audição crítica acompanhada da

partitura resultante do processo de edição;

▪ Ao mesmo tempo, podemos traçar um panorama cronológico da interpretação de

cada obra ao longo do projeto, comparando as decisões interpretativas realizadas

em cada evento/gravação – considerando também evidências circunstanciais;

▪ Podemos estudar as diferenças geradas na interpretação em função do contexto

de cada espaço cultural, que contemplou teatros, salas de concerto, bares, escolas,

centros religiosos, bares, universidades e espaços voltados à cultura popular;

▪ Há a possibilidade de estudar a melhora progressiva na questão da ansiedade na

performance, observando como o pianista foi ficando mais à vontade ao longo

das apresentações, caso as coloquemos em ordem cronológica;

▪ Sobre a questão da “qualidade” musical – amplamente presente nos estudos em

Práticas Interpretativas, de forma explícita ou não – podemos discutir como esse

parâmetro de avaliação se aplicaria ao contexto de nossa pesquisa nas diferentes

interpretações (que, naturalmente, variam em qualidade), ao invés de tentar

estabelecer um critério “universal” para definir o que seria a qualidade na

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performance, independentemente do contexto de prática musical – abordagem

fortemente ligada ao positivismo na Música;

▪ Em termos técnico-operacionais, podemos desenvolver um estudo sobre as

diferentes formas de captação de áudio utilizadas em cada gravação, avaliando

sua adequação ao auditório e à instrumentação – no caso, piano solo. Fizemos uso

de recursos variados, envolvendo o microfone da câmera, um microfone

direcional ligado à câmera e uma ligação direta entre a câmera e o piano digital,

entre outras técnicas.

Destacamos, assim, as possibilidades de estudo que os produtos gerados por

meio de suportes variados podem proporcionar, além de contemplar de maneira mais

clara e adequada informações muito difíceis de serem abordadas apenas por meio do

texto escrito. Assim, reiteramos a valiosa oportunidade que iniciativas como o congresso

virtual Nas Nuvens oferecem para o desenvolvimento da pesquisa artística no Brasil.

2 João Nunes e a Barcarola

Como ponto de partida para o estudo da trajetória de João Nunes, utilizamos a

biografia do pianista elaborada pelo historiador maranhense José Jansen (1976). O

método historiográfico utilizado pelo autor é baseado em entrevistas com pessoas

próximas – as ex-discípulas Helsa Camêu (1903-1995), Yara Camarinha, Maria Luísa Vaz

e Creusa Tavares da Silva Loretto (1904-1986) – análise de reportagens em jornais, os

dois livros que João Nunes publicou em função de sua admissão em concursos para a

carreira docente no INM (1914; 1941) e aquisição de documentos junto a familiares do

pianista, que foi casado com a cantora lírica e professora Lília Nunes (1900-1991) e era

cunhado do arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012). Sendo assim, nosso trabalho

consistiu basicamente em verificar as informações providas no livro, complementando-

as com outros achados não constantes no mesmo.

Em jornais, há algumas informações que não foram contempladas no livro de

Jansen. O autor afirma que João Nunes ficou órfão de pai logo na infância. Ao consultar

jornais da época, vimos que sua mãe Emília das Neves Marques Nunes faleceu em 1888

(PACOTILHA, 1888). Posteriormente, seu pai se casou com a irmã dela, Amélia Marques

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Nunes. No entanto, ele faleceu três anos depois (PACOTILHA, 1891), quando João

contava com apenas 13 anos. Diante das dificuldades financeiras da família, ele fez

concurso para os correios e foi aprovado. No entanto, teve de apresentar provas de que

já era de maior idade para a nomeação (JANSEN, 1976, p. 16). Para isso, recorreu a seus

padrinhos residentes em Caxias que, por meio de uma justificação de nascimento da

Diocese de São Luís, alegaram seu ano de nascimento como sendo 1873. Encontramos

esse documento no APEM.

Em 1929, quinze anos após sua admissão no INM, João Nunes foi convidado

para escrever na coluna “Música” do Diário Carioca. Sua atuação nesse campo foi

reconhecida na época, chegando a receber uma observação de Oscar Guanabarino

(1851-1937):

No Instituto começa a aparecer um professor de grande merecimento. Homem de poucos amigos, talvez devido ao seu gênio seco, fisionomia fechada com tendência à misantropia. Referimo-nos ao Sr. João Nunes, grande talento que lutou com dificuldades sérias para estudar mas que chegou a conquistar um lugar de destaque, entre os melhores professores de piano desta Capital. (GUANABARINO In: JANSEN, 1976, p. 31)

As críticas de João Nunes, voltadas ao público e geral e não para especialistas,

revelam curiosidades sobre compositores, intérpretes, obras, o contexto musical em

outros países e críticas de concertos, entre outros assuntos. Nelas, o pianista revela uma

personalidade aberta a novas tendências musicais e à tecnologia, comentando a

ascensão das pianolas e o recital de um sexteto transmitido ao vivo via rádio onde cada

intérprete se localizava em uma cidade da Europa (NUNES, 1929a; ibidem, 1929b).

No entanto, a primeira atividade de João Nunes com cronista aconteceu em São

Luís, em uma edição especial da Pacotilha em 1910. Nessa crítica, intitulada “O Audaz”

(NUNES, 1910), o pianista já traz críticas à influência da música italiana no Brasil – na

qual ele convivera intensamente antes de ir para a França, pois vivenciou o período

áureo das óperas no Teatro Arthur Azevedo e tocou com músicos maranhenses da época

como Alexandre Rayol (1855-1934), Ettore Bosio (1862-1936), Antonio Rayol (1863-

1904), Marcellino Maya (1867-1935) e Ignácio Cunha (1871-1955). Além disso, ele fez

referências ao INM na crítica, elogiando o trabalho de Leopoldo Miguez (1850-1902),

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Henrique Oswald (1852-1931), Alberto Nepomuceno (1864-1920), Francisco Braga

(1868-1945) e Alfredo Bevilacqua (1874-1942), sendo um possível sinal de interesse em

se juntar futuramente ao corpo docente dessa instituição.

Barcarola é uma peça que ilustra tanto a estética musical de João Nunes em suas

obras de maior complexidade, com uma sonoridade que remete ao Impressionismo,

quanto a abertura do pianista às novas propostas estéticas de seu tempo. Apesar de não

conseguirmos acesso à data ou ano de composição da peça, ela certamente foi escrita

após seu período de estudos na França, entre 1905 e 1906. Uma notícia de jornal indica

que ela foi transmitida na Rádio Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, em 1935 (DIARIO

CARIOCA, 1935), sendo a referência de maior recuo cronológico que encontramos sobre

a veiculação da mesma.

É notável a influência do compositor Claude Debussy (1862-1918) na produção

de João, especialmente por ele ter deixado vários ciclos de peças infantis como Parque de

Diversões, Os Três Meninos, Quatro Peças Infantis e Seis Peças Infantis – assim como os

dois Arabescos, Children’s Corner e Le Petit Nègre do supracitado compositor, sendo

essas duas últimas publicadas após a estadia do pianista na França. A fonte utilizada em

nossas edições é um manuscrito autógrafo presente no Setor de Música da Biblioteca

Nacional. Ela traz indicações de dedilhado e pedalização, sugerindo a sonoridade de

reverberação do pedal e o legato que o pianista imaginou para determinadas passagens.

Observamos, ainda, que as estruturas musicais dessa peça remetem à primeira fase de

Debussy: Barcarola possui um motivo temático que se apresenta em regiões diferentes

do piano na primeira seção, enquanto na segunda parte há uma melodia em terças com

acompanhamento. Não nos parece, portanto, trabalhar “coloridos sonoros” através das

harmonias – apesar do intérprete poder explorar essa abordagem musical, buscando

valorizar a sonoridade dos pedais e as harmonias de tons inteiros que acontecem ao

longo da peça. Nossa edição segue em anexo ao presente trabalho.

3 Considerações finais

Esperamos que o presente artigo, associado ao vídeo homônimo disponível na

plataforma do congresso virtual Nas Nuvens, acrescente à literatura disponível sobre

pesquisa artística na língua portuguesa. Apesar do debate sobre este tema estar sendo

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realizado em outros países desde o final da década de 1980, segundo o teatrólogo e

pesquisador Robin Nelson (2013, p. 11), esse tema só começou a ser efetivamente

contemplado na área de Música brasileira nos últimos anos. Mesmo havendo resistência

por parte de muitos acadêmicos, o interesse mais direto nessa questão parte da subárea

de Práticas Interpretativas. Esperamos, assim, encorajar novos trabalhos baseados em

métodos diversificados e que façam uso de suportes variados.

Referências

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