PierreFatumbiVerger_EtnografiaReligiosaIoruba&ProbidadeCientifica

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    Etnografia religiosa iorub e

    probidade cientficaPierre Verger

    Retomo, trocando duas palavras, o ttulo de um artigo de trs pginas escritopelo saudoso Bernard Maupoil, cuja referncia retiro da Bibliographie africaine deFa, publicada no incio de seu livro sobre La gomancie lanciene ctedes esclaves(Maupoil, 1943:19). No tive a oportunidade de ler suaEthnographie dahomene et probit scientifique, publicada em 1937 na

    Afrique Franaise, mas acho o ttulo sugestivo e ele me incita a tecerconsideraes semelhantes sobre a etnografia religiosa iorub.

    As definies dadas aos oris, os deuses iorubs, foram efetivamente, a partir dedeterminada poca (1884, para sermos precisos) embelezadas com detalhes to

    pitorescos quanto inexatos. Essas definies foram a seguireruditamente retomadas, doutamente citadas e entusiasticamente comentadaspela maioria dos que a partir de ento escreveram sobre o assunto.

    Ao longo de minhas pesquisas, pude constatar de que maneira informaesexpressas muitas vezes descuidadamente por pessoas, respeitveis noutrosdomnios, criaram uma tradio aparentemente lgica, mas enganadora. Com otempo foi-se assim acumulando vasta documentao escrita, tida como eruditaporque baseada em textos, a nica fonte vlida aos olhos dos letrados, mesmoque esses textos fossem inspirados por escritos anteriores incorretos e atcontrrios verdade.

    Essas informaes foram copiadas e publicadas inmeras vezes, sem que suaautenticidade fosse posta em dvida. O padre Labat j constava (Labat,1831:143), e no sem ironia, em 1772, que certas informaes foram dadas porvrios autores e acrescentava: mas talvez no tenha sido seno a opinio doque as escreveu primeiro e que os outros seguiram e copiaram sem se importarse estavam bem ou mal fundadas.

    Eis porque somos obrigados a pr em questes neste artigo certas informaesque esto na origem de sistemas teognicos e cosmognicos eruditos e aconstatar que, estando desprovidas de fundamentos, no passam degratuidades ou de construies mais ou menos habilidosas do esprito.Lendas da Criao do Mundo dos Iorubs.

    Entre os Iorub existem duas verses sobre a criao do mundo. Elascorrespondem s tradies de duas cidades que disputam a hegemonia domundo iorub: de um lado If, chamada de bero da civilizao, e de outro Oy,que deteve o governo efetivo. Os habitantes dessas duas cidades divinizaram osfundadores das dinastias que nelas reinaram Oduwduw para os primeiros eOranmiyan para os segundos transformando a tradio histrica da fundaodas duas cidades na tradio da criao do mundo. Tanto numa quanto na outrao heri criador do mundo chegou do Alm tendo recebido do Deus Supremo,Olodumar, o saco da criao contendo uma substncia escura, de natureza atento desconhecida.

    Essa substncia, lanada sobre a superfcie das primeiras guas, formou um

    montculo de terra sobre o qual pousou uma galinha com cinco dedos. A galinhacomeou a arranhar o monte com os ps e com o bico e espalhou a matria querecobriu pouco a pouco as guas e formou a crosta terrestre, da qualOduwduw, para If, e Oranmiyan, para Oy, se tornaram senhores. No caso deIf, a lenda se complica com uma rivalidade entre Obatal (tambm chamadoOrisl), enviado por Olodumar para criar o mundo e Oduwduw, que seaproveitou de um momento de intemperana de seu rival, o qual, tendo bebidoem excesso vinho de palma quando estava a caminho para cumprir a sua tarefa,embriagou-se, caiu e adormeceu. Oduwduw, que vinha atrs, surrupiou o sacoda criao e tornou-se assim, ele prprio e em seu lugar, o senhor do mundo.

    Mais tarde, quando se reencontraram, Oduwduw e Obatal discutiram e lutaram

    ferozmente. Detalhes sobre esse assunto foram dados em outra obra (verger,1965: cap.II e III).

    Essas relaes tempestuosas entre divindades, como j registramos, sotransposies para o domnio religioso de acontecimentos de carter histrico,que podero ser resumidos da seguinte forma: Oduwduw, o fundador da cidadede If, teria encontrado sua chegada uma populao autctone j instaladanaquelas paragens, os Igb, cujo rei teria sido Obatal (Orisl). Oduwduw,

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    depois de ter vencido Obatal, se teria apossado de seu reino, da mesma formacomo na lenda ele teria roubado o saco da criao, tornando-se senhor domundo em detrimento de Obatal.

    Essa lenda da criao do mundo por Oduwduw s se tornou conhecida dogrande pblico e dos etnlogos em 1912, quando Frobenius publicou os

    resultados de sua viagem frica (Frobenius, 1912:283). A lenda da criao domundo por Oranmiyan tinha j sido publicada por Jean Hess na Revue deParisem 1896 (Hess, 1896:603-606) e em livro dois anos mais tarde (Hess,1898:117-176). Mas ela s interessou aos amadores de literatura extica.

    Ficou e permanece totalmente ignorada do mundo da antropologia, ainda que 58pginas do livro de Hess constituam o primeiro documento publicado acerca dahistria dos Iorub, recolhida pelo autor de Oy, desde que a se refugiou em1893, depois de ter sido atacado, roubado e ferido na terra dos Bariba, ao nortede Sav, e que seus homens, batendo em retirada, o abrigaram numa aldeia nafronteira iorub. Da, ele foi recolhido e tratado na misso catlica de Oy, ondefoi o primeiro europeu e registrar os cantos tradicionais sobre a criao do

    mundo, o nascimento do povo iorub e a histria de seus reis.

    Foi preciso esperar at 1921 para que The history of the Yorubafosse publicadapelo reverendo S. Johnson (Johnson, 1921), cujo manuscrito data de 1897,remontando quase mesma poca das publicaes de Jean Hess.

    Como Nasceram as Falsas Tradies sobre os Deuses Iorubs

    Ao lado e independentemente dessa tradio oral recolhida no corao da terraiorub, a etnografia religiosa iorub tem sido vtima, desde 1884 (e o ainda),de informaes fantasistas recolhidas muitas vezes em regies perifricasdaquelas onde a civilizao iorub se desenvolveu. Felizmente, nos possvel

    encontrar os autores, assinalar o momento exato do nascimento e oencaminhamento dessas noes errneas atravs dos diversos escritos que tmtratado da questo. Tambm nos fcil determinar o grau de competncia e deseriedade, avaliar o crdito que pode ser concedido s suas informaes ecompreender o que est por trs de tudo que possa influenciar o carter dosinformes publicados por eles.

    Nas linhas seguintes desenvolveremos esses diversos pontos detalhadamente,pois essas falsas tradies tm figurado como um postulado e freqentementetm sido aceitas sem discusso por numerorso autores.

    Os primeiros informes relativos aos deuses iorubs foram publicados por: Ajayi,batizado com o nome de Samuel Crowther, nascido em 1810 em Osogn, aldeia

    pertencente ao reinado de Oy. Ele foi raptado e feito escravo pelos Fulani com aidade de 11 anos, vendido em Lagos e embarcado para ser revendido ao Brasilna Esperana Feliz. Mas o navio negreiro que o transportava foi aprisionado porum cruzador britnico da esquadra de represso ao trfico de escravos, e eledesembarcou j livre, em 7 de abril de 1822, em Freetown, na Serra Leoa.

    Foi batizado em Londres em 1825 e tornou-se missionrio protestante daChurch Missionary em sem prprio pas. Traduziu parte da Bblia em iorub e em1852 publicou um vocabulrio iorub (Crowther, 1852). Nesse vocabulrio, deualgumas definies sobre oris, de certo modo vlidas, ainda que com tendnciaa chamar de deusas o que os Iorub adoram como deusas. Essa impreciso podeser explicada pela tenra idade em que ele foi arrancado sua famlia e ao seu

    meio.

    O reverendo T. J. Bowen, missionrio batista americano, que passou seis anosem territrio iorub. Publicou um dicionrio em 1858 (Boewn, 1858: cap.16),onde fornece algumas precises a mais sobre os oris. Suas informaes sodignas de confiana (Verger, 1957:171 e 509).

    O abade Pierre Bouche, das Misses (catlicas) Africanas de Lyon, quepermaneceu na frica entre 1866 e 1875 e deu as mesmas informaes que seuspredecessores, com algumas variantes (Bouche, 1885).

    O padre Noel Baudin, que viveu na frica entre 1869 e 1883 em regies no-

    iorubs, em Porto Novo com os Gun, em Uid com os Hweda e em Tongo com osEwe, e tiveram uma curta permanncia em Top e Lagos, cidades que surgiramdepois de longa sujeio ao reino de Benim. De passagem pela Frana em 1884,publicou um dicionrio (Baudin, 1884 a) altamente influenciado pelo deCrowther (as rubricas consagradas aos deuses iorubs esto redigidas nosmesmos termos) e publicou igualmente um livro (Baudin, 1884 b) que deuorigem maior das confuses sobre o conhecimento dessa religio, pois as

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    informaes publicadas por ele esto longe, como vimos, de terem sido colhidasem fontes iorubs.

    As informaes fornecidas so extravagantes. Baudin foi levado, verdade, porum zelo missionrio evidente, acrescido de um desprezo extremo, que noprocurou dissimular, por tudo que dizia respeito religio daqueles que ele tinha

    por dever e vocao converter.

    O tom do livro de Baudin revela a certeza de uma f bem fundada e osentimento bem ancorado da indignidade dos nativos. Eis alguns trechosbastante reveladores do seu estado de esprito: Os feiticeiros (Baudin, 1884b:86) so seres desprezveis, mentirosos, preguiosos, hipcritas, impudicos erefinados ladres. Geralmente tm um aspecto sujo, vestimentas ridculas eesfarrapadas, e os que molham as mos em sangue humano tm um ar bestial,feroz e repugnante Quanto aos deuses e deusas, com suas ridculas lendas, osgrandes feiticeiros no acreditam neles Os dolos (ib:89) modelados sobre otipo mais feio de negro de lbios grossos, de nariz chato e de queixo retrado,so verdadeiras imagens de velhos macacos.

    Animado por tais sentimentos, o autor no pde estabelecer relaes deconfiana e de estima recproca, teis em pesquisss desse tipo. No deadmirar, portanto a extrema confuso que reina nas informaes relatadas emseu livro e no devemos esquecer, sobretudo, que os dados recolhidos o foramem lugares pouco representativos das tradies iorubs, onde o pouco que sepodia encontrar se chocava e se misturava em Uid com a religo dos Fon, dosHweda e dos Hwala, em Porto Novo, com a dos Gun, e em Lagos, com ascontribuies de Benim. Baudin esteve realmente em Abeokuta e em Oy, emterritrio iorub, mas j em 1886, depois da publicao do seu livro.

    A confuso Criada pelo Padre Baudin

    Falamos acima da criao do mundo por Oduwduw em If e da rivalidade que oops a Obatal (Orisal), de quem roubou o saco da criao. Os nomes dessesoris aparecem impressos pela primeira vez, que eu saiba, em 1852, novocabulrio da lngua iorub de Crowther (Crowther, op.cit.).

    O autor indica em rubricas separadas, por um lado, que Odu ouOduwduw (Crowther, op.cit.: 207) uma deusa de If, tida como a suprema

    deusa do mundo e acrescenta que o cu e a terra so duas grandes cabaas(ele queria dizer meias cabaas, igb), que, uma vez fechadas (ou maisprecisamente, colocadas uma sobre a outra, formando um recipiente fechado),no podem ser abertas (separadas). Afirma ainda que houvesse uma aluso aparente concavidade do cu, que parece tocar a terra no horizonte. Por outrolado, indica que Obatal() a grande deusa iorub, a artes do corpo da matriz

    (ib.: 228). Ao mesmo tempo, Orisl indicado como sendo a grande deusaObatal (ib.: 223). J assinalamos a tendncia de Crowther a chamar os deusesde deusas, mas evidente que nos encontramos na presena de duas divindadesdistintas: Oduwduw e Obatal (Orisl).

    Bowen publicou em 1856 (Bowen, op.cit.: cap.XVII), no seu dicionrio iorub,mais uma vez duas rubricas separadas: Oduwduw o universo, est localizadoem If e Obatal tido como o primeiro, maior coisa j criada. Outros,entretanto, afirmam que ele no nada mais do que um antigo rei iorub. Suamulher Iyangba, a me que recebe representada acariciando uma criana.Richard Burton cita e copia em 1863 Bowen para Obatal e Crowther paraOduwduw (Burton, 1863: 185 e 192).

    O abade Pierre Bouche publica em 1885 um livro onde fornece as mesmasinformaes, mas acrescenta num esprito de sincretismo (Bouche, op.cit.: 272)que a deusa Iyangba se parece muito com a Santa Virgem. Como ela, seguraum menino nos braos; chama-se A Me que Salva (e no que recebe), elasalvou os homens. O abade Bouche estava longe de supor que Iya Agba, a meidosa e respeitvel, fosse um eufemismo utilizado para saudar Iyami Osorong, afeiticeira dos Iorub (Verger, 1965: 142).

    A maior confuso foi criada em 1884 pelo padre Noel Baudin, notavelmente malinformado sobre a religio iorub e dotado de uma frtil imaginao. Ele juntaIyangba e Oduwduw, que at ento eram deuses distintos, e os funde numa

    nica e mesma divindade. Para completar essa embrulhada, intrometeousadamente Obatal (Orisl) no meio das duas meias cabaas descritas porCrowther, as quais viram uma cabaa nica, munida de uma tampa.

    Completa esse sutil ponto de vista com uma estranha lenda (Baudin, 1884 b:89) onde Obatale Oduwduw estavam no princpio estreitamente apertados ecomo que encerrados numa grande cabaa Obatal no alto, sob a tampa, eOduwduw embaixo, afundados nas guas, envolvidos em profundas trevas, com

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    a noite, o medo e a fome correndo em todas as direes Oduwduw ficou feiae cega em conseqncia de uma briga domstica na qual Obatal lhe arrancouos olhos para obrig-la a ficar quieta. Ela, na sua clera, o amaldioou e disse-lhe: Ters caramujos para te alimentares Com efeito, este o principalsacrifcio que os negros oferecem a Obatal.

    No se pode ver muito bem o que essa maldio pode ter de dramtica. Ocaramujo constitui um alimento apreciado tambm na frica. Citemos depassagem, para comprov-lo, uma lenda publicada em outro lugar (Verger, 1965:211), onde Orisl oferece caramujos a Odu-Iya Agba, o que provocaentusistico comentrio: Aquilo era bom. Nunca antes lhe tinham dado decomer coisa to boa. Esses caramujos que Orisl come, devem-lhos dar tambmdaqui em diante.

    O padre Baudin acrescenta, para a alegria dos futuros estruturalistas, queObatal tudo o que est em cima e Oduwduw tudo o que est em baixo.Obatal o esprito e Oduwduw matria. Obatal o firmamento eOduwduw a terra, que simbolizada por uma cabaa branca munida de uma

    tampa, que se coloca nos templos.

    As Informaes Fantasistas do Padre Baudin

    O padre Baudin mistura e confunde com o culto de Obatal, e sem o menordiscernimento, o culto de deuses pertencentes a etnias totalmente diferentes. Elenos revela gravemente que em Porto Novo (Baudin, 1884 b: Obatal aindaconhecido sob o nome de Ons. Em todos os casos duvidosos , o rei recorre a elepara descobrir a inocncia ou culpabilidade dos acusados. Esse fetiche consistenum grosso cilindro de madeira oca, com um metro de altura e da grossura deum homem () Coloca-se o fetiche sobre a cabea do acusado que est de

    joelhos e o segura com toda a fora de suas duas mos. Se o fetiche cai para a

    frente, o acusado declarado inocente; se cai para trs, proclamado culpado.Havia, segundo Baudin, uma criana metida dentro do cilindro para provocar aqueda numa direo ou noutra. Essa descrio pitoresca e divertida do padreBaudin no tem, infelizmente, nada a ver com Obatal-Orisl nem com a etniaiorub.

    Mais adiante (ib.: 12), Baudin divaga e faz de Obatal e Oduwduw uma s emesma divindade hermafrodita. Essa idia representada por uma esttua que

    s tem um p e um brao, com uma cauda terminada por uma bola ou umglobo. Em seguida acrescenta, sem o menor discernimento, que ambos seencontram ainda sob os nomes de Aroni ou Aja, e diz mas agora decarampouco a pouco ao nvel de gnios ou duendes.

    O padre Baudin despoja em seguida Obatal e Oduwduw de seu carter

    hermafrodita para separ-los em duas divindades perfeitamente distintas, queso ento representadas separadamentes: Obatal sob a forma de um guerreiroe Oduwduw sob a forma de uma mulher amamentando uma criaa (retornandos caractersticas de Iyangba de Bowen e do abade Bouche).

    Um pouco mais adiante, o padre Baudin separa ainda mais completamenteObatal e Oduwduw, que no esto mesmo mais associados conjugalmente efaz reinar Oduwduw como soberana e deusa em Ado, cidade outroradependente de reino de Benim (chamado Ado ou Edo) e submetida durantealgum tempo a uma influncia no iorub. Cada vez mais inspirado o padreBaudin continua a sua descrio: Um caador encontra um dia Oduwduw quepasseava na floresta. A deusa prope-lhe ficar com ele. Assim vivem durante

    muito tempo, entregando-se ao prazer da caa e da pesca e passando o restantedo tempo numa cabana de folhagem posta ao p de uma rvore no meio dafloresta.

    Finalmente a deusa enjoa do mortal, como havia acontecido com o imortal, eparte, prometendo-lhe que o protegeria sempre, a e le e a todos que seestabelecessem naquele lugar e lhe erigisse um templo no local da cabana.Muitas pessoas vieram al se fixar e dessa forma foi criada Ad que significaprostituio, em memria da deusa (), e onde se celebram jogos imundos emsua honra. O padre Baudin se entrega a insinuaes marotas, mas pareceignorar que h numerosas cidades iorubs que tm esse nome. Citemos

    Ad Ekiti (Abraham, 1958:155), cujos habitantes vieram de Benim e onde os

    jogos nada tm de particularmente imundos.Os Compiladores e Discpulos do Padre Baudin

    O Tenente Coronel A. E. Ellis publicou por sua vez em 1894 as mesmasdivagaes, cuidadosamente copiadas por ele do livro do padre Baudin, e, paramelhor completar o sistema dualista do tema da falsa dupla Oduwduw-Obatale o tornar comparvel do Yang e do Yin chins, no hesitou em aproximar a

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    deusa Oduwduw de dudu(Ellis, 1894) negro em iorub, para a opor a funfun,a cor branca de Obatal. Mas o tenente-coronel britnico no levou em conta asdiferenas de tons (de uma importncia primordial em iorub) existentes entreessas duas palavras.

    Alm disso, os adeptos de Dudu no Daom usam colares brancos, pela simples

    razo que Dudu o nome dado nessa regio do Dom a Obatal. Maisrecentemente em 1950, o padre Bertho publicou um arigo (Bertho, 1950:74)onde declarava ter visto em Porto Novo, no antigo palcio real de

    Akron (Lokoro dos Iorub), um altar dedicado a um casal de divindades, Lissa-Oduwduw (associando o nome de um vodu fon com o de um orix iorub).

    Lissa era representada, escreveu ele, por uma cabaa branca na frente de ummuro pintado de branco, enquanto Oduwduw o era por uma cabaa negrasobre um muro pintado de preto. ( preciso notar que no se trata, nessadescrio, de uma cabaa nica cortada lateralmente em duas, ou mesmo deduas meias cabaas colocadas uma sobre a outra, mas de duas cabaascompletamente separadas.

    Interessado por esta descrio fui visitar esses lugar em 1952. A realidade erainteiramente outra. O padre Bertho tinha feito uma terrvel mistura, pois Lissa para os Fon o que Orisl para os Iorub, e Dudu o nome dado em PortoNovo a esse mesmo Orisl. O casal era formado por uma divindade nica ehavia realmente uma cabaa branca na frente de um muro pintado de branco,mas era de Dudu (que seria negra segundo Bertho), e a cabaa negra eraavermelhada, posta diante de um muro pintado de vermelho, e pertencente aSngo, o deus do trovo dos Iorub.

    O casal divino dos Fon, do qual um nico membro citado por Bertho, deveriaser Lissa-Mawy, adaptao fon do casal Orisl-Yemowo, de If. (1) Sabe-se,com efeito, que esse culto (Lissa-Mawu) foi levado da regio de Tchetti, habitada

    pelas Ana ou If, por Na Wangele, a me do rei Tegbessu, e instalado no bairroDjenna, em Abem, nos princpios do sculo XVIII.

    Sabemos que entre os Fon (Herskovits, 1938, v.II: 101) Lissa o elementomasculino, que simboliza o oriente, o dia, o sol e que Mawu o elementofeminino, que simboliza o ocidente, noite, a lua. Trata-se de um sistemdualista, mas correspondente, como vimos, ao casal Orisl-Yemowo, visvel soba forma de esttuas instaladas lado a lado no ilsin, lugar de adorao do templo

    de Obatal em Idet-Il, no bairro Itapa em If, muito diferente do casal Orisl-Oduwduw que, unicamente para o padre Baudin e seus discpulos, seriaconstitudo por dois elementos machos.

    A tradio de If no deixa nenhuma dvida sobre o carter agressivo, hostil,antagnico, das relaes existentes entre Orisl e Oduwduw, que longe de uni-

    los num casal geneticamente estril, os separa e os ope como se depreende dahistria antiga do povo Iorub.

    O Padre Baudin e Iemanj

    O padre Baudin, depois de nos ter contado as brigas conjugais entre Obatal eOduwduw (feminizada por ele), continua seu relato indicando (Baudin, 1884 b:13) que pouco depois dos esponsais de Obatal e de Oduwduw, esta deu luz

    Aganju (o deserto) e a Iyemoj (a me do peixe). Iyemoj teve de seu irmo umfilho, Orngan (o meio dia, o ar, o firmamento). Mais tarde, ultrajada por seufilho Orngan, Iyemoj fugiu inconsolvel, sem escutar o culpado que aperseguia, suplicando-lhe que voltasse. Quando ele chegou quase a alcan-la,

    Iyemoj caiu para trs e seus dois seios cresceram desmesuradamente e setransformaram em duas fontes que deram lugar a uma lagoa que se chamaOdo Yemoj, a lagoa de Iyemoj, junto de Okiodan. Mostra-se o lugar em If, acidade santa dos Iorub (If significa crescimento).

    De If, isto , do seio de Iyemoj, saram numa confuso extrema, todos osdeuses e deusas, dos quais Baudin nos d uma quinzena de nomes. Essa lista eas caractersticas que ele atribui aos oris citados confirmam a confusoextrema que reina no esprito de reverendo padre. Ele tornou femininaDOduwduw, transformou Olokun, divindade feminina e mulher de Oduwduw,(2) num deus masculino do mar das gentes de Benim, considerou erradamenteDada, o deus dos vegetais e da natureza, confundiu o deus do ferro gn com o

    rio gn, e divinizou o sol (Orun) e a lua (Ox), que no so adorados pelosIorub. Constatamos que ele tambm situa If em Oke-Odan, s margens doriacho Yewa, que se encontra a vrias centenas de quilmetros de sua posiogeogrfica real.

    Alm de misturar em outras partes de seu livro (ib.: 38) os oris iorubs com osvodus daomeanos, como Ajauto, o antepassado das dinastias reais de Allada,

    Abom e Porto Novo, Baudin inventa outros, como Adanzolan, (em lugar de

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    Adandozan) um rei de Abom destronado em 1818 por seu irmo Ghezo.Confunde igualmente gungun(ossadas) com egngn(a alma dos mortos), oque deplorvel para o compilador de um dicionrio iorub.

    As lendas redigidas pelo padre Baudin foram literalmente copiadas, traduzidas epublicadas pelo tenente-coronel A. E. Ellis, que, entretanto apimenta a histria de

    Iemanj perseguida por seu filho incestuoso (Ellis, op.cit. 45), atribuindo a estesltimos propsitos galantes e audaciosos quando declarava a sua me queningum saberia o que se estava passando, que no podia viver sem ela, e lheelogiava, mesmo, a excitante perspectiva de viver (como em certos lares dasupper middle class familiesda poca vitoriana) entre dois maridos, oficialmentecom um e secretamente com outro.

    O Padre Baudin e Sngo

    Pode-se atribuir ao padre Baudin (Baudin, 1884 b: 22), a menos que pertena aA. L. Hethersett (Hethersett, s/d: 50), uma lenda fantasista fundada sobre umafalsa interpretao do ttulo Oba Koso, rei Koso, usado por Sngo antes de se

    tornar o terceiro Alfin Oy (Verger, no prelo: VIIIa), o rei dos Iorub. Essa lendase baseia num trocadilho publicado pelos dois autores, em que o ttulo ObaKoso aparece como significando o rei no se enforcou (Ob Kso), uma fraseque os Mogba, partidrios de Sngo, teriam pronunciado para defender amemria do rei contra as alegaes de seus inimigos, que afirmavam que eleteria se enforcado (Ob so) num momento de fraqueza de nimo quandoabandonou o trono.

    Esses relatos pitorescos e divertidos sobre o suposto fim de Sngo forampublicados e vendidos em proveito da Sociedade das Misses Catlicas

    Africanas de Lyon e da Church Missionary Society (protestante), que no tinham,nem uma nem outra, interesse algum em proclamar a glria de um deus pago.

    O reverendo Epega (Epega, 1931), apesar da sua declarada simpatia pela religioiorub, chegou at a interpretar o nome do dia da semana consagrada a Sngo,Oj Jakuta, o dia do lanamento da pedra (aerolito), como o dia em que Xangteria sido lapidado por pessoas revoltadas contra ele.

    Nenhum dos autores que escreveu anteriormente sobre Sngo relatou essasbobagens. Crowther declara (Crowther, op.cit.: 227) que Obba-Kuso o reitrovo e dos relmpagos (literalmente, o rei de Kuso, o lugar onde se afirma que

    Sngo desceu vivo sobre a terra). Foi assim que comeou o culto de Sngo;Jean Hess (Hess, 1898:145), que esteve algum tempo em Oy em 1893, tambmfala em Ikoso. Nenhum deles faz qualquer aluso a essa histria deenforcamento, divulgada por Baudin e Hethersett e retomada por todos osautores que eruditamente escreveram sobre o Deus do Trovo.

    Os Danos das Informaes Fantasistas do Padre Baudin

    Alonguei-me um pouco sobre os danos da influncia das lendas inventadas pelopadre Baudin e copiadas pelo tenente coronel Ellis, mas era necessrio faz-lo,pois os absurdos publicados por eles servem de ponto de partida e de inspiraopara outras e de fundamento para dissertaes sobre sistemasteognicos habilmente estruturados e ornados com efeites psicolgicos egenticos sofisticados, sobre os quais falaremos mais adiante.

    As lendas do padre Baudin tiveram vida longa, atravessaram o Atlntico, no namemria dos escravos transportados, pela simples razo de que o trficonegreiro j tinha acabado na poca em que Baudin convertia os pages, mas por

    intermdio do livro de Ellis, de que Nina Rodrigues teve conhecimento aoescrever seu livro Os Africanos no Brasil, atravs de certo Loureno Cardoso, deLagos, que lhe servia de professor de ingls e tradutor de nag. Nina Rodriguespublicou-a, mas fez notar que de crer que esta lenda seja relativamenterecente e pouco espalhada entre os Nag. Os nossos negros que dirigem e seocupam do culto iorubano, mesmo os que estiveram na frica recentemente, detodo a ignoram e alguns a contestam (Rodrigues, 1945:353).

    Ao longo de pesquisas feitas a partir de 1948 nos meios no letrados dessasregies da frica, nunca encontrei vestgios das lendas inventadas pelo padreBaudin.

    Arthur Ramos, sucessor de Nina Rodrigues, cujos trabalhos so influenciadospela psiquiatria, encontrou nos textos do padre Baudin conhecidos atravs deEllis (3) o ponto de partida para brilhantes consideraes sobre os temas doincesto com a me e do triunfo sobre o pai flico. Assim, atravs de uma dialticaelaborada, Iemanj acaba por se ver assimilada me flica! (Ramos,1940:331).

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    Os Danos do Estruturalismo Mal Utilizado

    Antes de continuar, preciso expor o que foi escrito pelo reverendo D.OnadeleEpega (Epega, op.cit. 5) por volta de 1931, e a que no falta interesse, apesar deseu carter um pouco bblico. H, diz ele, seiscentos imals (que se chamamtambm oris) divididos em dois grupos, duzentos do lado direito e quatrocentos

    do lado esquerdo. No se pode falar dos duzentos imals que estiveram entre osprimeiros criados sobre a terra. Mas eles eram muito maus e perversos e foramdestrudos. proibido falar nisso. Ogum serve de intermedirio entre essesantigos imals e os novos. por isso que se diz que na realidade hquatrocentos e um imals do lado esquerdo.

    Os descendentes dos Iorub que vivem ainda no Brasil no decorrer de certascerimnias (Verger, 1957:272) fazem saudaes tanto aos duzentos imals dolado direito quanto aos quatrocentos do lado esquerdo. Esse nmero no deveser entendido como um valor real: duzentos, na nao iorub, eram smbolo deum nmero grande e quatrocentos, de um nmero maior ainda.

    Este texto de Epega, juntamente com as indicaes errneas do padre Baudin,serve de fundamento para um livro recente intitulado Os Nag e morte(Santos,1975) onde a autora expe uma concepo toda pessoal das leis que regem oque ela chama de entidades sobrenaturais (ib.: 72) dos Nags (Iorub). Trata-se de um sistema habilmente estruturado e embelezado com consideraespscicolgicas e genticas cujo exame deixa o leitor inteiramente pasmo!

    A autora do livro diz que essas entidades sobrenaturais esto divididas em doisgrupos: de um lado, os oris funfun (ib.: 75), oris brancos, com Obatal-Orislcomo lder, que seriam os quatrocentos deuses da direita (em lugar dos duzentosde Epega), deteriam o poder genitor masculino e seriam portadores etransmissores do sangue branco, e, de outro, os ebors (ib.: 79) liderados por

    Oduwduw, que seriam as duzentas divinidades da esquerda (em lugar dasquatrocentas de Epega), deteriam o poder genitor feminino, constituriamespcies de ventres fecundados e, graas elaborada dialtica da autora,seriam, ao mesmo tempo, portadores de sangue branco, vermelho e preto.

    Para ligar tudo, Es (ib.: 75) em lugar do Ogum de Epega (Epega, op.cit.: 5) pertenceria tanto direita quanto esquerda, veiculando o as (a fora, o

    poder) a partir e e em direo de uns e de outros e fazendo com que o conjuntodo sistema se intercomunicasse.

    Essa estrutura dualista, onde o masculino posto em paralelo com o feminino,seria perfeita se a feminilidade dos elementos da esquerda no fosse ilusria eno fosse tambm masculina como a dos elementos da direita, pois exceto para

    o padre Baudin e seus seguidores, Oduwduw do sexo masculino, guerreiroviril, vencedos dos Igbo, fundador de If, pai de numerosos reis e soberano dediversas regies iorubs. E ainda mais, um ebor considerado pelos Iorubcomo um homem valente e temvel, definido no dicionr io (Abraham, op.cit.: 73)como strong man, um homem vigoroso. Com isso, todo o sistema desmorona!

    As substituies de Ogum por Es explicam-se pelo interesse demonstrado pelaautora por este ltimo orix, ao qual consagrou diversos estudos (Santos 1971 e1973). Ela coloca como princpio que Es o elemento dinmico (Santos,1975:130) (da transmisso do as), no somente de todos os seressobrenaturais, mas igualmente de tudo o que existe, ainda que ela nos diga (ib.:15) que seus textos no devem ser considerados como uma supervalorizao de

    Es.

    Ela porm, no deixa claro onde comea a definio de Es e onde termina a doas, da fora, do poder. Ela d a impresso de que Es as, o que constituino apenas um notvel exagro, mas tambm um ponto de vista falso.

    Se a autora do livro conta o poder soberano e a universalidade de Es, nofaltam lendas em que, ao contrrio, Es foi vencido por diversos oris, quandosurgiram entre eles conflitos porovocados por questes de primazia e rivalidades.

    A expresso dinamismo aparece constantemente nos escritos da autora, e esseleitmotivno deixam de evocar as hipteses sobre a fora mgica e suas

    relaes com o dinamismo na cincia moderna (Saint Yves, 1914) dos ocultistasdo fim do sculo passado. Essa psicologia dinmica e gentica (ib.: 121) inspiroua um deles, Mr. Ravaisson, frases che ias de uma poesia um pouco antiquada: Oesprito no se manifesta somente no homem e nos animais superiores, masmurmura na planta e geme na pedra! Dessa forma celebrava ele a energiapsquica encarada sob uma forma dinmica Clara autora, mas talvez m enosfamiliar ao babalawo iorub.

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    No decorrer de suas investigaes, a autora recolheu um determinado nmero dedeclaraes em apoio a suas teorias (Santos, 1975:131) sobre a universalidadedas atividades de Es, mas no posso deixar de lembrar que durante a pesquisade campo geralmente se estabelece uma situao desagradvel entre opesquisador e a pessoa entrevistada. Esta ltima pega rapidamente o sentido e opensamento do pesquisador, e cheia de boa vontade, d as respostas que casam

    com a hiptese da pesquisa desejada.

    Ainda que o informante no deforme voluntariamente os fatos, tenta ao menosexprimir-se em termos que ele quer tornar compreensveis ao interlocutor, sendoo resultado a maior satisfao deste ltimo e um grande prejuzo para a verdade.O abade Bouche reconhecia isso entre 1866 e 1975 (Bouche, op.cit.: 109),dizendo que os intrpretes negros visam menos a ser exatos do que a nodescontentar o branco (freqentemente irascvel quando se v contrariado emsuas teorias pr-estabelecidas), (4) e eles (os intrpretes) no se incomodamcom interpretaes que sabem ser de seu gosto, ou, pelo menos, de suas idias.

    um pouco isso o que deve ter acontecido com as pesquisas da autora. Fui

    freqente testemunha da enrgica insistncia e da paixo com que ela dirigesuas entrevistas, e tambm do esprito de compreenso do babalawo querespondia a suas perguntas. Trabalhei cerca de 15 anos com ele e aconteceu-merecolher as mesmas histrias publicadas pela autora, mas as duas versesapresentam, s vezes, variantes significativas. verdade que no meu caso asinformaes eram espontneas, porque eu no pretendia com essas histriasprovar quaisquer teorias pr-estabelecidas.

    Esse babalawo tem, entretanto, memria muito segura, e aconteceu de ele mecontar a mesma histria nos mesmos termos com dez anos de diferena. Mastambm aconteceu, quando perguntei se conhecia uma histria contada poroutro babalawo, de cont-la por sua vez, no sem eu notar que certas frases que

    eu havia dito para orient-lo apareciam com insistncia, para me demonstrar queno s ele conhecia a histria, mas que era a histria que eu desejaria ouvir.

    Parece-me que foram nesse mesmo estilo de oratria que o nosso babalawo deu autora as informaes desejadas por ela sobre a multiplicidade de Ess. Elesatisfez os desejos dela, chegando mesmo a lhe dar os nomes dos Ess pessoaisdos 256 odus de If (Santos, 1975:132), atribuindo a esses Ess imaginrios,sem maiores preocupaes, os mesmos nomes dos citados odus.

    A autora de Os Nags e a morteafirma igualmente que nos Nag-Iorub existemtrs espcies de sangue (ib.: 41):

    1. O sangue vermelho2. O sangue branco3. O sangue preto.Cada um desses sangues comporta:

    1. sangue do reino animal2. sangue do reino vegetal3. sangue do reino mineral.No se sabe muito bem por que e onde a autora foi procurar todos esses

    sangues, mas certamente no foi nas tradies conhecidas dos Nags (Iorub).Alm disso, salvo quando cita o sangue vermelho do reino animal (o sanguedos animais sacrificados), ela fala de seiva, de esperma, de secrees, de hlitos,

    de metais, de diversas bebidas, de carvo e de cinza, que parecem difceis declassificar, ainda que simbolicamente, sob o nome de sangue.

    Encontram-se algumas vezes trs cores em certas histrias de If, mas elas soclassificadas noutra ordem: branco, vermelho e preto, que evocamalternadamente a cor do cu durante o dia, no crepsculo e quando chega noite. Vrias pginas do livro de Victor Turner (Turner, 1967:68-81),The Forest of symbols, citado na bibliografia do livro da autora, so consagradasa essas trs cores, mas trata-se de um ritual ndembu que no tem nada a vercom o nag (iorub).

    Outros exemplos de certos tipos de sangues dados pela autora em apoio sua

    teoria so ainda menos convincentes: ela d como exemplo de sangue brancovegetal (ib.: 41) o Iyrsn. Ela declara que o seu nome cientfico Eucleptes(em lugar de Euplectes) Franciscan F., que um pssaro do mais belo

    vermelho, o cardinal BIRDdos ingleses (Abraham, op.cit.: 316). Pode tratar-sede uma planta do mesmo nome de Iyrsn, cujo nome cientfico Baphia nitida Lodd, Papillionaceae, da qual se extrai uma tinta vermelha paratingir l (Dalziel, 1948:232) e lenos vermelhos chamados bandana. Esse

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    sangue, para empregar a expresso da autora, dificilmente passaria porbranco!

    Etnografia Religiosa Iorub e Probidade Cientfica

    O que nos entristece e nos constrange no livro da autora que sua tese de

    doutoramento de terceiro ciclo pela Sorbonne no tanto o fato de ela haver-se inspirado em informaes errneas ou provenientes de etnias no-nago, maso fato de que, para edificar e estruturar sua obra, ela m anipule e modifique osdocumentos citados em apoio ao sistema concebido por ela, o que grave econstitui falta total de probidade cientfica.

    difcil no mencionar a constante e sistemtica confuso criada por ela entreigbd, a cabaa dos odus, possuda por raros babalas e descrita porMaupoil (op.cit.: 84-111), Johnson (Dennett, 1906:253), Bertho (1951:331-350)e Bascom (1969:82) e igb Oda, de que falam, como vimos acima, Crowther eem seguida Baudin, Ellis e seus seguidores, porm com caractersticas jmodificadas.

    A autora escreve, por exemplo, que segundo certos mitos (ib. 59), Oddua,igualmente chamado de Oda, a representao deificada de Iymi(a feiticeira),a representao coletiva das mes ancestrais e princpio feminino, origem detudo. Assim, Oacorresponde a Obatal ou Orisl, que o princpio masculino.

    A autora faz aluso (ib.: 108), para justificar essa afirmativa, a uma histria deIf por mim publicada (Verger, 1965:151 e 205-206), na qual ela substitui Odpor Odae atribui em conseqncia a Odao que est dito a respeito de Odnaminha histria. Ela escreve ento: Trs oris, Oda[Odno meu texto],Obarix, (Obatal-Orisl) e Ogumchegaram a terra. Oda[em vez de Od] anica mulher entre eles e queixa-se a Olorum (Deus supremo) de que no temnenhum poder. Olorum escolhe-a para ser a me para a eternidade. Ele lhe d

    as (o poder) sob a forma de uma cabaa contendo um pssaro, smbolo dopoder das feiticeiras Mas trata-se, repetimos, de Ode no de Odanahistria publicada por mim, tendo ela feminizado Oda(Oddu), que do sexomasculino. No se trata de um erro de leitura ou de redao, pois a autora deixapermanecer Odem vrias passagens de seu livro (ib. 109, linhas 18 a 21).

    Reciprocamente, ela troca o Igb Odapor Igbd(ib. 66), quando escreve:Segundo os autores mais antigos, partindo do rev. Crowther e passando pelo

    rev. Bowen e tantos outros, o Igbdtem sido objeto de considervelinteresse Graas a essas confuses, atribuindo a Oda(que masculino) ascaractersticas de Od(que feminino), a autora de Os Nags e a mortejustificao sistema dualista imaginado por ela.

    Contrariamente ainda ao que escreve a autora em questo, no existem

    seiscentos imals formando dois grupos onde quatrocentos machos se opem aduzentas fmeas, que tambm no formam um grupo hierrquico, nico eidntico para o conjunto do territrio iorub. O culto dos oris est ligado noo de famlia, famlia entendida como originria de uma cidade bemdeterminada.

    Resulta da, de acordo com as diversas regies, variaes locais onde osoris que ocupam uma posio dominante em certos lugares sototalmente desconhecidos em outros. O culto de Sngo, que ocupa o primeirolugar em Oy, oficialmente inexistente em If, onde um deus local, Oramf, ligado ao trovo em seu lugar. Oxum, cujo culto est muito evidncia na naoIjexa, ausente na nao de Egba etc.

    A posio de todos esses oris depende da histria das cidades onderepresentam divindades protetoras. Sngo, quando vivo, era o terceiro rei deOy; Oxum fez um pacto em Oxogbo com Laro, o fundador da dinastia dos reislocais; Odda, fundado da cidade de If, cujos filhos se tornaram reis de outrascidades iorubs, conservou um carter mais histrico e at mais poltico quedivino e no tem nada a ver com os ventres fecundados da autora de Os Nagse a morte. Outros oris tm uma rea de difuso muito maior, como Obatal, oantigo rei dos Igb, divinizado (5) como deus da criao, ou Ogum, deus dosferreiros e dos que utilizam o ferro, cuja importncia ultrapassa o quadro familiarde origem.

    Algumas divindades disputam entre si as mesmas atribuies em lugaresdiferentes: Sngo em Oy, Oramf em If, Aira em Sav, so todos senhores dotrovo; Ogum encontra mulos guerreiros e caadores em diversos lugares,como Ija na regio de Oy, Oxssi em Ketu, Or em If, e como Logunede,Ibualama e Erinle na nao Ijexa; Osanyin em Oy e entre os Egba desempenhao mesmo papel curandeiro que Elesij em If.

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    Em vista dessa extrema diversidade e das numerosas variaes de coexistnciaentre os oris, impossvel ficar ctico diante de concepes sistematicamenteestruturadas.

    Nessa constante procura de elementos diversos para elaborar seu sistemadualista, a autora no se contenta com os oris masculinos da direita e os

    ebors pseudo-femininos da esquerda, todos em princpio ancestrais longnquosdivinizados, mas passa do domnio dos deuses para o das almas-do-outro-mundoe das feiticeiras, reunidas, escreve ela, em duas sociedades, uma deantepassados masculinos reservada aos homens agrupados em volta dosegngn, e outra de antepassados femininos reservada s mulheres agrupadasem volta dos geled, pessoas mascaradas (sempre homens, entretanto) quedanam para acalmar e tornar favorveis as Iya Aje.

    Essas feiticeiras controlam a fecundidade das mulheres e tm tendncia amanifestar seu mau humor, desencadeando diversas calamidades, como secasprolongadas que destroem as colheitas, invases de ratos, epidemias e outrasmanifestaes malficas.

    A autora escreve poeticamente (ib.: 92) que as folhas brotadas sobre os ramose os troncos (das rvores) simbolizam descendentes. As palmas recm-nascidasdo igi-op(palmeira) chamadas mrw, (6) constituem a representao maisimportante de Ogum (ib. 93). Ela aproxima ento esse mrw(que consta detrs slabas de tom grava) a outro mrwo(7) (cujas slabas so de tons graves,agudo e mdio), que em iorub forma uma palavra completamente diferente daprimeira na significao e na grafia. Esse segundo mrwosignifica a voz ougrito de Egngn.

    Aproximando essas duas palavras, a autora escreve (ib. 126): os Ojconstituemo corpo sacerdotal do culto (dos Egngn), e acrescenta Mrw[em vez de

    Mrwo] o nome simblico dos Oj, associado s palmas desfiadas do igi-pe,os descendentes da palmeira, identificada com os ancestrais. Tinha ela, pormescrito o contrrio num trabalho anterior (Santos, 1969:98): O Oj tambmconhecido como Mrw[em vez de Mrwo]. A relao deste nome com omrw, palma desfiada, tem ainda de ser estabelecida.

    Ela fundamenta ento agora uma teoria bastante sofisticada, confundindo,entretanto, e reunindo sob uma mesma designao noes que na realidade

    diferente, sem haver mesmo entre elas nenhuma relao de significado. O maisgrave que o contedo da obra Os Nags e a mortecomo aconteceram comescritos precedentes, citados no incio deste artigo serve de referncia e ponto departida para novos trabalhos baseados assim em informaes inexatas.

    Existe na autora uma tendncia um pouco hoffmanesca para as almas-do-outro-

    mundo, as feiticeiras e Es. Ela tem todo o direito de seguir suas inclinaes,mas onde estamos menos de acordo quando, partindo de dados inexatos,algumas vezes manipulados, ela edifica sistemas de uma lgica impecvel,muito bem acolhidos, diga-se de passagem, nos congressos cientficosinternacionais, mas que, examinados com cuidado, so um tecido de suposiese de hipteses inteligentemente apresentadas, no tendo nada a ver com acultura dos Nag-Iorub e correndo o risco de contaminar as tradiestransmitidas oralmente, ainda conservadas nos meios no-eruditos.

    Ns no estamos mais no tempo de Nina Rodrigues, quando as tradies eramainda bastante fortes para negar e rejeitar as extravagncias do padre Baudin,do tenente-coronel Ellis e de compiladores e intelectuais diversos.

    NOTAS

    1. Quando uma palavra passa do vocabulrio iorub para o fon, tem sempresuprimida a vogal do incio e os r se transformam em l.

    2. Olokun chegou a If ao mesmo tempo em que Odda. Ela era uma mulherelegante que ele gostava de exisbir em pblico, adornada com muitas jias.

    3. De fato, parece que Ramos teve conhecimento dos textos de Ellis atravs deNina Rodrigues. Escreve ele na pgina 31 de O negro brasileiro que adiantaEllis que este mito de Iemanj comparativamente recente, porm esta frase

    fora escrita por Nina Rodrigues, sendo opinio pessoal.4. A frase entre parnteses do autor deste artigo.

    5. Obatal depois de sua derrota perdeu o trono, mas passou categoria dedivindade.