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Poemas de Agostinho Neto In: NETO, Agostinho. Sagrada Esperança. 9ªed. Lisboa, Sá da Costa, 1979. ADEUS À HORA DA LARGADA Minha Mãe (todas as mães negras cujos filhos partiram) tu me ensinaste a esperar como esperaste nas horas difíceis Mas a vida matou em mim essa mística esperança Eu já não espero sou aquele por quem se espera Sou eu minha Mãe a esperança somos nós os teus filhos partidos para uma fé que alimenta a vida Hoje somos as crianças nuas das sanzalas do mato os garotos sem escola a jogar a bola de trapos nos areais ao meio dia somos nós mesmos os contratados a queimar vidas nos cafezais os homens negros ignorantes que devem respeitar o homem branco e temer o rico somos os teus filhos dos bairros de pretos além aonde não chega a luz elétrica os homens bêbados a cair abandonados ao ritmo dum batuque de morte teus filhos com fome com sede com vergonha de te chamarmos Mãe com medo de atravessar as ruas com medo dos homens nós mesmos Amanhã entoaremos hinos à liberdade quando comemorarmos a data da abolição desta escravatura Nós vamos em busca de luz os teus filhos Mãe (todas as Mães negras cujos filhos partiram) Vão em busca de vida. QUITANDEIRA A quitanda. Muito sol

poemas de Agostinho Neto e João Melo

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Poemas de Agostinho Neto In: NETO, Agostinho. Sagrada Esperança. 9ªed. Lisboa, Sá da Costa, 1979. ADEUS À HORA DA LARGADA Minha Mãe (todas as mães negras cujos filhos partiram) tu me ensinaste a esperar como esperaste nas horas difíceis Mas a vida matou em mim essa mística esperança Eu já não espero sou aquele por quem se espera Sou eu minha Mãe a esperança somos nós os teus filhos partidos para uma fé que alimenta a vida Hoje somos as crianças nuas das sanzalas do mato os garotos sem escola a jogar a bola de trapos nos areais ao meio dia somos nós mesmos os contratados a queimar vidas nos cafezais os homens negros ignorantes que devem respeitar o homem branco e temer o rico somos os teus filhos dos bairros de pretos além aonde não chega a luz elétrica os homens bêbados a cair abandonados ao ritmo dum batuque de morte teus filhos com fome com sede com vergonha de te chamarmos Mãe com medo de atravessar as ruas com medo dos homens nós mesmos Amanhã entoaremos hinos à liberdade quando comemorarmos a data da abolição desta escravatura Nós vamos em busca de luz os teus filhos Mãe (todas as Mães negras cujos filhos partiram) Vão em busca de vida. QUITANDEIRA A quitanda. Muito sol

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e a quitandeira à sombra da mulemba. - Laranja, minha senhora laranjinha boa! A luz brinca na cidade o seu quente jogo de claros e escuros e a vida brinca em coraç·es aflitos o jogo da cabra-cega. A quitandeira que vende fruta vende-se. - Minha senhora laranja, laranjinha boa! Compra laranjas doces compra-me também o amargo desta tortura da vida sem vida. Compra-me a infância de espírito este botão de rosa que não abriu princípio impelido ainda para um início. Laranja, minha senhora! Esgotaram-se os sorrisos com que chorava eu já não choro. E aí vão as minhas esperanças como foi o sangue dos meus filhos amassado no pó das estradas enterrado nas roças e o meu suor embebido nos fios de algodão que me cobrem. Como o esforço foi oferecido à segurança das máquinas à beleza das ruas asfaltadas de prédios de vários andares à comodidade de senhores ricos a alegria dispersa por cidades e eu me fui confundindo com os próprios problemas da existência. Aí vão as laranjas como eu me ofereci ao álcool para me anestesiar e me entreguei às religiões para me insensibilizar e me atordoei para viver. Tudo tenho dado. Até mesmo a minha dor e a poesia dos meus seios nus

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entreguei-as aos poetas. Agora vendo-me eu própria. - Compra laranjas minha senhora! Leva-me para as quitandas da Vida o meu preço é único: - sangue. Talvez vendendo-me eu me possua. - Compra laranjas! PARTIDA PARA O CONTRATO O rosto retrata a alma amarfanhada pelo sofrimento Nesta hora de pranto vespertina e ensangüentada Manuel o seu amor partiu para S. Tomé para lá do mar Até quando? Além no horizonte repentinos o sol e o barco se afogam no mar escurecendo o céu escurecendo a terra e a alma da mulher Não há luz não há estrelas no céu escuro Tudo na terra é sombra Não há luz não há norte na alma da mulher Negrura Só negrura... VELHO NEGRO Vendido e transportado nas galeras vergastado pelos homens linchado nas grandes cidades esbulhado até ao último tostão humilhado até ao pó sempre sempre vencido

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É forçado a obedecer a Deus e aos homens perdeu-se Perdeu a pátria e a noção de ser Reduzido a farrapo macaquearam seus gestos e a sua alma diferente Velho farrapo negro perdido no tempo e dividido no espaço! Ao passar de tanga com o espírito bem escondido no silêncio das frases côncavas murmuram eles: Pobre negro! E os poetas dizem que são seus irmãos. NOITE Eu vivo nos bairros escuros do mundo sem luz nem vida. Vou pelas ruas às apalpadelas encostado aos meus informes sonhos tropeçando na escravidão ao meu desejo de ser. São bairros de escravos mundos de miséria bairros escuros. Onde as vontades se diluíram e os homens se confundiram com as coisas. Ando aos trambolhões pelas ruas sem luz desconhecidas pejadas de mística e terror de braço dado com fantasmas. Também a noite é escura. SÁBADO NOS MUSSEQUES Os musseques são bairros humildes de gente humilde

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Vem o sábado e logo ali se confunde com a própria vida transformada em desespero em esperança e em mística ansiedade Ansiedade encontrada no significado das coisas e dos seres na lua cheia acesa em vez dos candeeiros de iluminação pública que pobreza e luar casam bem Ansiedade sentida nos barulhos e no cheiro a bebidas alcoólicas espalhados no ar com gritos de dor e alegria misturados em estranha orquestração Ansiedade no homem fardado alcançando outro homem que domina e leva aos pontapés e depois de ter feito escorrer sangue enche o peito de satisfação por ter maltratado um homem Outros evitarão passar onde o casse-tête derrubou o homem darão voltas saltarão muros pisarão espinhos pés descalços se cortarão sobre cacos de garrafas quebradas por crianças inocentes e cada mulher suspirará de alívio quando o seu homem entrar em casa Ansiedade nos soldados que se divertem emboscados à sombra de cajueiros a espera de incautos transeuntes A intervalos ais de dor lancinam ouvidos ferem corações tímidos e afastam-se passos em correria angustiante e depois dos risos da matula desenfreada só silêncio mistério lágrimas de ódio e carnes laceradas pelas fivelas dos cinturões Ansiedade nos que passam

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à procura do prazer fácil Ansiedade no homem escondido em recanto escuro violando uma criança Sua riqueza calará o pai e a criança só tarde clamará contra o destino Ansiedade ouvida na contenda de taberna Compadres discutindo escandalosamente velha dívida de cem mil réis entre os murmúrios da numerosa assistência Ansiedade nas mulheres que abandonaram os homens para ouvir a vizinha aos gritos ralhando contra a pobreza do marido Ouvem-se choros histéricos ruído de cadeiras caídas respirações ofegantes tilintar doloroso de louça de ferro esmaltado e a multidão invade a casa os desavindos expulsam-na e depois vem a reconciliação com risinhos de prazer Ansiedade nos alto-falantes do cinema de bocas escancaradas a gritar swings ao pé das bilheterias enquanto um carrossel arrasta em turbilhão de sonho luzinhas vermelhas verdes azuis e também a troco de dois mil e quinhentos namorados e crianças Ansiedade nos batuques saudosos dos kiocos contratados formando lá do acampamento o fundo de todo o ruído Lunda sem fronteiras a debruar o sussurro da ânsia tumultuante Ansiedade na humilde criança que foge amedrontada do polícia de serviço

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Ansiedade no som da viola acompanhando uma voz que canta sambas indefinidos deliciosamente preguiçosos pejando o ar do desejo de romper em pranto Com a voz passa o grito de saudade que a multidão tem dos dias não vividos dos dias de liberdade e a noite bebe-lhes os anseios de vida Ansiedade nos bêbados caídos nas ruas alta noite Ansiedade nas mães aos gritos à procura de filhos desaparecidos nas mulheres que passam embriagadas no homem que consulta o kimbanda para conservar o emprego na mulher que pede drogas ao feiticeiro para conservar o marido na mãe que pergunta ao adivinho se a filhinha se salvará da pneumonia na cubata de velhas latas esburacadas nas mulheres implorando compaixão a nossas senhoras nas famílias rezando enquanto oram bêbados urinam na rua encostados à parede afastando-se depois a ridicularizar as rezas que perceberam através das persianas das janelas Ansiedade na kazukuta dançada à luz do acetileno ou de candeeiro Petromax em sala pintada de azul cheia de pó e do cheiro a suor dos corpos e de meneios de ancas e de contatos de sexos

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Ansiedade nos que riem e nos que choram nos que entendem e nos que respiram sem compreender Ansiedade nas salas de dança regurgitantes de gente onde daí a instantes o namorado repreende a noiva insultos são atirados para o ar enchendo o recinto de questões que extravasam para a rua acudindo polícias aos assobios Ansiedade no esqueleto de pau a pique ameaçadoramente inclinado a sustentar pesado teto de zinco e nos quintais semeados de dejetos e maus cheiros nas mobílias sujas de gordura nos lençóis esburacados e nas camas sem colchão Ansiedade nos que descobrem multidões passivas esperando a hora Nos homens ferve o desejo de fazer o esforço supremo para que o Homem renasça em cada homem e a esperança não mais se torne em lamentos da multidão A própria vida faz desabrochar mais vontades nos olhares ansiosos dos que passam O sábado misturou a noite nos musseques com mística ansiedade e implacavelmente vai desfraldando heróicas bandeiras nas almas escravizadas. CAMINHO DO MATO Caminho do mato caminho da gente gente cansada óóó-oh Caminho do mato caminho do soba soba grande óóó-oh

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Caminho do mato caminho de Lemba Lemba formosa óóó-oh Caminho do mato caminho do amor amor do soba óóó-oh Caminho do mato caminho do amor do amor de Lemba óóó-oh Caminho do mato caminho das flores flores do amor. SINFONIA A melodia crepitante das palmeiras lambidas pelo furor duma queimada Cor estertor angústia E a música dos homens lambidos pelo fogo das batalhas inglórias Sorrisos dor angústia E a luta gloriosa do povo A música que a minha alma sente. 1948 CONTRATADOS Longa fila de carregadores domina estrada com os passos rápidos Sobre o dorso levam pesadas cargas Vão olhares longínquos corações medrosos braços fortes sorrisos profundos como águas profundas Largos meses os separam dos seus

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e vão cheios de saudades e de receio mas cantam Fatigados esgotados de trabalhos mas cantam Cheios de injustiças caladas no imo das suas almas e cantam Com gritos de protesto mergulhados nas lágrimas do coração e cantam La vão perdem-se na distância na distância se perdem os seus cantos tristes Ah! eles cantam... CONSCIENCIALIZAÇÃO Medo no ar! Em cada esquina sentinelas vigilantes incendeiam olhares em cada casa se substituem apressadamente os fechos velhos das portas e em cada consciência fervilha o temor de se ouvir a si mesma A História está a ser contada de novo Medo no ar! Acontece que eu homem humilde ainda mais humilde na pele negra me regresso África para mim com os olhos secos. DEPRESSA Impaciento-me nesta mornez histórica das esperas e de lentidão quando apressadamente são assassinados os [justos quando as cadeias abarrotam de jovens espremidos até à morte contra o muro da [violência

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Acabemos com esta mornez de palavras e de [gestos e sorrisos escondidos atrás de capas de livros e o resignado gesto bíblico de oferecer a outra face Inicie-se a ação vigorosa máscula inteligente que responda dente por dente olho por olho homem por homem venha a ação vigorosa do exército popular pela libertação dos homens venham os furac·es romper esta passividade Soltem-se em catadupas as torrentes vibrem em desgraças as florestas venham temporais que arranquem as árvores [pela raiz e esmaguem tronco contra tronco e vindimem folhagens e frutos para derramar a seiva e os sucos sobre a terra úmida e esborrache o inimigo sobre a terra pura para que a maldade das suas vísceras fique para sempre aí plantada como monumentos eternos dos mostros a serem escarnecidos e amaldiçoados por [gerações pelo povo martirizado durante cinco séculos África gloriosa África das seculares injustiças acumuladas neste peito efervescente e [impaciente onde choram os milhões de soldados que não ganharam as batalhas e se lamentam os solitários que não fizeram a harmonia numa luta unida Atraia-se o raio sobre a árvore majestosa para assustar os animais dos campos e queimar a insantidade dos santos e dos [preconceitos Rompa aos gritos a juventude da terra e dos [corações na irreverente certeza do Amanhã nosso apressando a libertação dos amarrados ao tronco esclavagista dos torturados no cárcere dos sacrificados no contrato dos mortos pelo azorrague e pela palmatória dos ofendidos dos que atriçoam e denunciam a própria pátria Não esperemos os heróis sejamos nós os heróis unindo as nossas vozes e os nossos braços cada um no seu dever e defendamos palmo a palmo a nossa terra escorracemos o inimigo e cantemos numa luta viva e heróica desde já a independência real da nossa pátria.

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Cadeia do Aljube de Lisboa, Agosto de 1960 CONFIANÇA O oceano separou-me de mim enquanto me fui esquecendo nos séculos e eis-me presente reunindo em mim o espaço condensando o tempo Na minha história existe o paradoxo do homem disperso Enquanto o sorriso brilhava no canto de dor e as mãos construíam mundos maravilhosos John foi linchado o irmão chicoteado nas costas nuas a mulher amordaçada e o filho continuou ignorante E do drama intenso duma vida imensa e útil resultou certeza As minhas mãos colocaram pedras nos alicerces do mundo mereço o meu pedaço de pão. O CAMINHO DAS ESTRELAS Seguindo o caminho das estrelas pela curva ágil do pescoço da gazela sobre a onda sobre a nuvem com as asas primaveris da amizade Simples nota musical indispensável átomo da harmonia partícula germe cor na combinação múltipla do humano Preciso e inevitável como o inevitável passado escravo através das consciências como o presente Não abstrato incolor entre ideais sem cor sem ritmo entre as arritmias do irreal inodoro entre as selvas desaromatizadas

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de troncos sem raiz Mas concreto vestido do verde do cheiro novo das florestas depois da chuva da seiva do raio do trovão as mãos amparando a germinação do riso sobre os campos de esperança A liberdade nos olhos o som nos ouvidos, das mãos ávidas sobre a pele do tambor num acelerado e claro ritmo de Zaires Calaáris montanhas luz vermelha de fogueiras infinitas nos capinzais violentados harmonia espiritual de vozes tam-tam num ritmo claro de África Assim o caminho das estrelas pela curva ágil do pescoço da gazela para a harmonia do mundo. NA PELE DO TAMBOR As mãos violentas insidiosamente batem no tambor africano e a pele percutida solta-me tantãs gritantes de sombras atléticas à luz vermelha do fogo de após trabalho Esmago-me na pele batida do tambor africano vibro em sanguinolentas deturpaç·es de mim [mesmo à vontade das percussões alcoólicas sobre a pele esticada do meu cérebro Onde estou eu? quem sou eu? Vibro no couro pelado do tambor festivo em europas sorridentes de farturas e turismos sobre a fertilização do suor negro nas áfricas envelhecidas pela vergonha de [serem áfricas nas áfricas renovadas do brilho firme do sol e [transformação sedosa e explosiva do universo dentro do movimento de mim mesmo na [vibração ritmada da pele cerebral do tambor africano ritmada para o esforço de dançar a dança [suave das palmeiras Vibro em áfricas humanas de sons festivos e [confusos (que línguas pronunciais em mim irmãos que não vos entendo neste ritmo?)

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Nunca me pensei tão pervertido ó impureza criminosa dos séculos coloniais (que história é essa da lebre e da tartaruga que contas neste novo ritmo de fogueira à noite minha avozinha de pele negra de África) Mas não tão longe nem tão pervertido quanto as vibraç·es da pele do meu cérebro esticada no tambor das minhas mãos pela África humana As mãos entrelaçadas sobre mim em gozo de vida em gargalhadas em alegrias de lagos libertados por amplos verdes para os mares dão-me o tom da minha áfrica dos povos negros do continente que nasce fora dos abismos escurecidos da negação ao lado de ritmos de dedos congestionados sobre a pele envelhecida do tambor dentro do qual vivo e vibro e clamo: avante! 1953 FOGO E RITMO Sons de grilhetas nas estradas cantos de pássaros sob a verdura úmida das florestas frescura na sinfonia adocicada dos coquerais fogo fogo no capim fogo sobre o quente das chapas do Cayatte Caminhos largos cheios de gente cheios de gente cheios de gente em êxodo de toda a parte caminhos largos para os horizontes fechados mas caminhos caminhos abertos por cima da impossibilidade dos braços. Fogueiras dança tam - tam ritmo Ritmo na luz ritmo na cor ritmo no som ritmo no movimento ritmo nas gretas sangrentas dos pés descalços ritmo nas unhas arrancadas Mas ritmo ritmo

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_ vozes dolorosas de África! A VOZ IGUAL Neste amanhecer vital para os acontecimentos extraordinários por montes e rios, por anharas e preconceitos caminhamos já vitoriosos sobre a condição moribunda Uma amanhecer vital em que se transformam as sensaç·es [orgânicas sobre o solo pátrio As flores apenas pétalas e aroma os homens apenas homens o lavrador possuindo a terra em associação [perene o operário da fábrica consciencialiando [a máquina e a nossa voz gritando igual no seio da [Humanidade na mesma hora em que a mentira se esconde na covarde violência os homens saídos dos cemitérios da ignorância das ossadas insepultas dos arrabaldes das [cidades nas sanzalas e nas terras estéreis são os eleitos os participantes efetivos no festim da nova [vida e das suas vicissitudes Os homens cuja voz descansou sob a condição e sob [o ódio e construíram os impérios do Ocidente as riquezas e as oportunidades da velha [Europa mantendo os seus pilares sobre a angústia [pulsátil dos braços sobre a indignidade e a morte dos seus filhos os homens sacrificados nos traços paralelos [das vias férreas cujo sangue se encontra nas armagamassas lançado com pontes e estradas também prenderam as águas nas barragens com as suas mãos formidáveis e com os seus [mortos deram ao brilho das metrópoles ouro e [diamantes e das entranhas da terra mungiram óleos e fartura para os sorrisos ingratos e na sua bondade na sua visionária esperança pediram às estrelas apenas o complemento espiritual do dia [escravo Povo genial heroicamente vivo

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onde outros pereceram de vitalidade inultrapassada na História alimentou continentes e deu ritmos à América deuses e agilidade nos estádios centelhas luminosas na ciência e na arte Povo negro homens anônimos no espírito da triste vaidade [branca agora construindo a nossa pátria a nossa África e no traço luminoso dos dias magníficos de [hoje definem a África solidária e esforçada contra os desvarios duma natureza [incongruente na independência num mundo novo com a voz igual Chegada a hora das transformaç·es cósmicas que atingem a terra e catalisam os fenômenos o raio mortífero da revolução pulveriza a submissão do homem e na força da amizade se encontram as mãos se beijam as faces Na hora das transformações humanas o chilreio infantil da mocidade feliz cantando em rodas ensaiadas pelos avós falando nas nossas línguas a tradição da nossa [terra harmonizando as vozes na hora da [independência reconquistando o solo pátrio para o nosso homem preenche-lhe o vazio Cantam nas praças e nos templos da sabedoria as raparigas os poetas o brilho das estrelas mergulhadas as raízes no húmus ancestral da [África Chegados à hora fervilha a impaciência nos coraç·es que lutam pelo fumegar das fábricas e chiar dos [guindastes homens e rodas, suor e ruído conjugados na construção da pátria libertada conscientemente na construção da pátria sem que o germe da exploração lhe penetre sem que a voz nauseabunda do capataz anuncie o cair do chicote e os homens felizes na incomodidade de hoje nos campos de batalha, nas prisões, no exílio construindo o Amanhã, para uma terra nossa uma pátria nossa independente Construção e reencontro Chegados à hora

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caminha o povo infatigável para o reencontro para de novo se descobrir e fazer nas melodias e nos cheiros ancestrais na modificação progressiva dos sacrifícios aos deuses nas violências sagradas e nos ritos sociais na revivificação e na carinhosa adoração dos mortos no respeito dos vivos nas orgíacas práticas do nascimento e da morte na iniciação da vida e do amor no milagroso pacto entre o homem e o cosmos Reencontrar a África no sorriso no choque diário com os fantasmas da vida na consagração da sabedoria e da paz livres do constrangimento livres da opressão livres Reencontrar-se nos campos de trabalho na socialização na entreajuda gloriosa nos campos nas construções nas caçadas na coletivização das catástrofes e alegrias na congregação dos braços para o trabalho reencontrar-se nas tradições e nos caminhos feiticeiros no medo no furor dos rios e cataratas na floresta na religião na filosofia a essência para a nova vida de África Ressuscitar o homem nas explosões humanas do dia a dia na marimba no chingufo no quissange no tambor no movimento dos braços e corpos nos sonhos melodiosos da música na expressão do olhar e no acasalmento sublime da noite com o luar da sombra com o fogo do calor com a luz a alegria dos que vivem com o sacrifício gingado dos dias Reencontrar nos sagrados refúgios das horas de angústia os homens perdidos nos labirintos alcoólicos vícios da escravidão e socorro extremo para a fome crônica dos dias de frio e de calor de tristeza e de alegria dos dias de farra e dos dias de rusga dos minutos importantíssimos da existência [imediata imprevisível indispensável com ódios amizades traiç·es riso choro força fadiga energia ânimo desânimo silêncio ruídos de terremoto soltos pelas mãos ansiosas de êxito e de esquecimento e de sonoras palavras nas letras das músicas desesperadas lançadas nos bailes de sábado sobre as poeiras dos quintais e o desejo incontido de se realizar de ser homem de encontrar o calor supremo na superfície carnal do outro a voz amiga na laringe longínqua do outro afagando um pouco a vida num artifício monstro da liberdade ansiada Reencontrar nos álcoois No sangue demoníaco das entranhas feiticistas da terra

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onde se espelham os horizontes infernais da morte e se cruzam razão e loucura bílis amaríssima no encarceramento da prudência e da capacidade buscar nos álcoois o amor à cultura à investigação à criação à explicação dos cosmos o domínio da seta veloz sobre a vida do antílope da água sobre as chamas ateadas pelo raio a forma e o âmago do estilo africano de vida Do caos para o reinício do mundo para o começo progressivo da vida entrar no concerto harmonioso do universal digno e livre povo independente com voz igual a partir deste amanhecer vital sobre a nossa esperança. Ponta do Sol, Arquipélago de Cabo Verde, Dezembro de 1960 O IÇAR DA BANDEIRA (Poema dedicado aos Heróis do povo angolano) Quando voltei as casuarinas tinham desaparecido da cidade E também tu Amigo Liceu voz consoladora dos ritmos quentes da farra nas noites dos sábados infalíveis Também tu harmonia sagrada e ancestral ressuscitada nos aromas sagrados do Ngola [Ritmos Também tu tinhas desaparecido e contigo os Intelectuais a Liga o Farolim as reuniões das Ingombotas a consciência dos que traíram sem amor Cheguei no momento preciso do cataclismo [matinal em que o embrião rompe a terra umedecida [pela chuva erguendo planta resplandecente de cor e [juventude Cheguei para ver a ressurreição da semente a sinfonia dinâmica do crescimento da [alegria nos homens E o sangue e o sofrimento eram uma corrente tormentosa que dividia a [cidade Quando eu voltei

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O dia estava escolhido e chegava a hora Até o riso das crianças tinha desaparecido e também vós meus bons amigos meus irmãos Benje, Joaquim, Gaspar, Ilídio, Manuel e quem mais? - centenas, milhares de vós amigos alguns desaparecidos para sempre para sempre vitoriosos na sua morte pela vida Quando eu voltei qualquer coisa gigantesca se movia na terra os homens nos celeiros guardavam mais os alunos nas escolas estudavam mais o sol brilhava mais e havia juventude calma nos velhos mais do que esperança era certeza mais do que bondade era amor Os braços dos homens a coragem dos soldados os suspiros dos poetas Tudo todos tentavam erguer bem alto acima da lembrança dos heróis Ngola Kiluanji Rainha Ginga Todos tentavam erguer bem alto a bandeira da independência.

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Poemas de João Melo In: MELO, João. Poemas Angolanos. Porto, ASA, 1989. O APRENDIZ DE KIMBANDA Reza após reza, i.é, verso após verso eu insisto E trabalho de noite que é quando a concentração logra um misticismo mais profundo E utilizo de tudo para fabricar as palavras: homens pedras ervas animais Depois saio, afivelando a minha horrenda máscara de makixe e gritando os meus espantos medonhos: medo sangue raiva morte ARTE POÉTICA 72 A minha poesia é angolana ferozmente Escrevo com medo e com raiva e força e ritmo e alegria Escrevo com fogo e com terra Escrevo sempre como se comesse funje com as mãos mesmo quando utilizo garfo e faca O POETA PREGUIÇOSO Ao Aldemiro Estou de acordo: nada de vilipendiar as palavras de ordem pois de tanto abuso falho de massa cinzenta elas arriscam-se a perder a virilidade Daí que: me tenha acomodado

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a esta preguiça fictícia de nervos desconfiados e lanternas faiscantes nos olhos Sugeres: suaves canções às savanas ralas poemas novos e ousados a mulheres de carne e fogo Pergunto: e os duzentos mortos de Savate? O POETA DEVE (Réplica a D.M.) O regulamento do poeta é este juramento: ser do povo o instrumento aguçado e atento às exigências do momento incansável activista deste movimento dirigndo o vento pelo futuro adentro fogo lento ardendo debaixo da terra fabricando o sol de Amanhã O alento do poeta é: anunciar o cumprimento da antiga lei fecundada pelo sofrimento milenar dos povos: o mundo está sempre em andamento TARDE A PINO Um céu aberto em que brilha uma enorme bola pintada de amarelo e donde caem pequenos pássaros de limpos tons quentes que sonoros vão poisar nas várias mulembas que

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uma qualquer mão certeira estrategicamente aqui colocou neste amplo terreiro SOL NO MUCEQUE Redonda lâmpada acesa a amarela luz alastrando-se por sobre o zinco das cubatas Os fartos cabelos das mulembeiras Raparigas cartando água no chafariz Meninos de barriga inchada brincando com bola ou tampas de garrafa CHUVA SOBRE O ZINCO A batucada doida com ressonâncias finas ocupando o ar da casa os ouvidos perfurando Súbitos medos há tanto tempo olvidados rebentando de repente Mãos estendendo-se para o pacto frementes por uma poderosa angústia A terrível conspiração dos espíritos força sua entrada na casa RECADO Conceição: você lembra ainda quando eu chegava no sábado e ia na tua casa atacar o próprio muzonguê você tinha já tudo preparado a esteira os pratos a garrafa de vinho eu entrava devagarinho e te encontrava batendo o panquê? Conceição: no outro sábado eu vou ir de novo na tua casa NA MORTE DE TI JOÃO Ti João morreu Ti João morreu e ficou seco sequinho - Parecia o pau de bater o funje NGA XICA Nga Xica morreu num domingo de Páscoa um domingo cinzento triste

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às seis horas da manhã todo o povo apareceu em casa de nga Xica E ela mereceu sem dúvida o komba de sete dias que parentes e amigos lhe fizeram CRÔNICA SUPOSTAMENTE ECOLÓGICA Aqui havia grandes naturais espaços com árvores fartas e amigas que tinham pássaros nos ramos Mas um dia esses espaços sendo abertos livres passaram a devolutos e foram inundados de arranha-céus Essas vítreas construções as pessoas ao vê-las tornam-se irritadiças mas inutilmente conspirativas Até os pássaros debandam segundo o poeta defecam na cidade e os homens ficam melancólicos E as criancas coitadas essas então já não brincam à vontade as suas brincadeiras entrarão no folclore Moral está tudo lixado precisamos arranjar hábitos de pedra mas Amanhã estaremos todos corrompidos NA QUEDA DO ADOBE Vimos todos como o adobe caiu: o cimento armado tomou-o por trás Até os batuques desapareceram Foi de facto impossível salvá-los... E como vamos agora chorar? UMA INFINITA TRISTEZA À sombra da milenar mulembeira um povo inteiro morre E esse vasto sentimento faz chorar LÓGICA Dizem: demos novos mundos ao mundo Con- cluem: Deus autorizou-nos a: que vos chupemos até ao osso HUMOR Está

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certo eu sou boçal tenho um lombo imemorial e flexível como se não bastasse sou: UM RELES PREGUIÇOSO Mas sobre mim construíste: tua casa teu carro tua querida mulherzinha (e que deus me pague) FARRA I Os poderosos batuques do espírito ressoam, actuam nos corpos colectivos, a- nimando-os, como um sismo na alma mais in- terior, e em profundo trabalho de restituição. II Reexercemos a imemorial função do ritmo (ó febris ó puros movimentos!), dançamos com o coração do corpo, mais: pelo ritmo nos reencontramos - no minuto sempre. AS VOZES DA LUTA Invadem o papel ins- talam-se como rochas no poema sobem em crescendo furibunda cascata negra ária

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de tambores crescem como rijas raízes por dentro da terra as vozes da luta A CASA A pedra desta casa esta casa de vidro esta casa construída sobre outra casa a pedra desta casa é frágil: por isso ela vai cair. DA NOITE PARA O DIA A água rebentando as veias sanguínea, feroz estilhaçando as linhas de nylon com cantos épicos na voz À frente da noite os antigos animais fantásticos, terríveis o estoiro dos tambores como um sol que deflagrasse O grito rompendo a boca fechada vário como um tiroteio sibilino como um vento alegre como um canto A memória, uma ferida no meio A revoada de flechas como um pânico solto de pássaros contra o vidro das casas A CIDADE É NOSSA Os homens reencontraram a cidade E percorrem-na com a alegria desfraldada nos dentes Antigamente a cidade era como um enorme sanatório de cristal. Hoje é um velho mapa familiar e acolhedor: agora os homens não mais passarão pela cidade como estranhos Esta cidade os homens a ergueram sobre a sua dor secular. Há sangue nas ocultas artérias de pedra da cidade. Mas só agora os homens a reconhecem no brilho de seus olhos e no novo roteiro

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de suas pernas rejuvenescidas A cidade é nossa. Na verdade sempre conhecemos as linhas viciadas da sua quadratura. Enfim destruímos os fios invisíveis e dramáticos que nos mantinham acorrentados ao cosmos suburbano da miséria E os tambores já podem cantar no coração da cidade In: MELO, João. Tanto Amor. Porto, ASA, 1989 AMOR O amor é uma certeza? O amor é um pressentimento? O amor é uma razão ou é um sentimento? E o que é o sentimento? Um simples instinto? Um sabor efémero como o absinto? Ou, mais do que isso, uma intuição - essa mentira que só convence o coração? O amor é um jogo? E cada jogador - qual é o seu prémio? Tem regras, o amor? O amor é um só? E é igual para todos? Ou podem ser vários e de muitos modos? O amor pode ser livre? Ou implica compromisso? Ou em cada caso há que pensar nisso? O amor, para sê-lo, tem que ter ciúme? Ou isso é culpa que não se assume? O amor é um rio sem nascente ou foz? O amor é o instante em que estamos sós? Ou o amor tem futuro? E para onde nos conduz? O amor é uma sombra? Ou uma majestosa luz? O que for, tudo se apaga

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à sua chegada: a vida ganha outras cores e não importa mais nada TESE O amor não se prepara: espera-se O amor não avisa: surge O amor não é oportuno nem importuno: é uma oportunidade O amor não se planta: colhe-se JURA DE AMOR Juras-me: amo-te mas não te possuo Juras-me: amo-te mas sem te escravizar ao meu amor Juras-me: as grilhetas do amor embora doces são sempre grilhetas E eu creio em ti pois sei que mentes por amor TEORIAS Eu sou um homem moderno, li uns livros assimilei umas teorias e acho pré-histórico privar as mulheres da sua própria liberdade em nome do amor Mas que hei-de sofrer muito hei-de se tiver de pôr à prova essas teorias. O JOGADOR Mandei-te mil sinais codificados: panos encomendados de terras distantes os melhores despojos de minhas caçadas olhares oblíquos lançados de longe Pacientemente tecia a minha armadilha como um solitário caçador Sou especialista em jogos secretos

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Contudo os meus arrojados lances de nada valeram O amor não é um jogo de cartas marcadas CANTO ELEMENTAR Tentei tudo: supliquei aos deuses agradei aos espíritos cometendo espantosos sacrifícios perdi o orgulho - mas não te pude prender O amor não é eterno, disseste-me simplesmente NOVO AMOR Como a palmeira jovem que Ulysses viu em Delos... Eugenio de Andrade Já vi antes esse corpo esbelto e esguio como uma palmeira suave docemente entregue ao vento Já vi antes esse ar inquieto mas forte essas mãos terrivelmente promissoras essa boca madura e cruel Já vi antes esse rio voraz e esse incêndio só pressentidos no fundo dos teus olhos transparentes como vidro Já senti antes esse tremor imperceptível que escondes em teu ventre sazonado Permite que eu o colha ILHA Estou ilhado no meu apartamento e penso em ti Simplesmente gostaria que chegasses de repente trazida nas asas da música que murmura no rádio da sala docemente Mas estou ilhado

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no meu apartamento Tristemente TANTO AMOR Tantos encontros e desencontros tantas entregas e fugas tantas esperanças e medos Tanta ternura tanta raiva tanta alegria tanta amargura tanta emoção tanto tédio Tantas promessas e mentiras tanta paz tanta violência tantas renúncias tão renegadas Tanto amor meu amor contraditório belo indestrutível MISTÉRIO Esses fantasmas antigos estas palavras estranhas estes gemidos selvagens - eu os arranco de ti, amor um segundo apenas um segundo antes da violenta explosão destes tambores medonhos e belos que eu não sei quem solta ESTES TAMBORES Como fazer parar estes tambores, tambores à solta como indomáveis animais no teu corpo, corpo, luzes, ritmos, gritos, tambores antigos, novos, perenes, como fazer pará-los, se estes tambores já vêm de um tempo tão velho, tão velho que os homens os carregam no sangue e os fazem vibrar, vibrar, se tomados de repente por uma paixão selvagem, pura, pura, como esta SONETO DA PROCURA

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Procuro-te nos cantos meditabundos da casa nas flores sem vida, nos reflexos esmaecidos da patética luz derramada sobre a sala na cama ridícula abandonada no quarto Procuro-te no ar subitamente paralisado no tempo suspenso, doloroso e cruel no telefone irónico coberto de pó nas cartas eróticas jamais concluídas Procuro-te na espera impaciente de tua chegada na poesia febril arrancada dos dedos como uma cópula ardente de sangue e loucura Procuro-te na terrível angústia do falo quando a noite se abate sobre a cidade e no esperma solitário despejado na pia. CULPA Não sei se me cheguei a dar às mulheres que me deram o seu amor. Ou se simplesmente passei por elas, Se bebi a água fresca da sua cabaça, dormi no seu colo amigo, enlouqueci nas suas carnes e depois prossegui esta viagem de mil rumos. Não sei mesmo se fui capaz de lhes deixar marcado na pele um pouco de afecto e de ternura. Usei algumas delas, outras usaram-me a mim. Não é isso o importante. O que quero é saber se depois que emudeciam os tambores eu saía simplesmente levando de novo tudo o que trouxera.