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Contos Novos Obra-síntese que reúne as conquistas modernistas de 22 e os elementos responsáveis pela maturidade literária de Mário de Andrade. A maturidade artística de Mário de Andrade, no campo da ficção literária, culmina com os Contos novos, obra publicada postumamente em 1947, como o autor fez questão de anotar no final de cada narrativa, o livro é fruto de um minucioso processo de elaboração artesanal que compreende várias versões de um mesmo texto e se estende por períodos de tempo que vão de quatro até dezoito anos de preparação... Este é o caso de Frederico Paciência, cuja gestação criativa evoluiu de 1924 até 1942. 1. Narrador A paixão por pensar, em consonância com a paixão pela vida redescoberta através da memória e da imaginação, constituem os traços mais marcantes da vida e da obra de Mário de Andrade, exemplarmente encontrados nestes Contos novos. Escritos a partir de 1924, reescritos ao longo de até dezoito anos de depuração artística, os Contos dividem-se, do ponto de vista de seu foco narrativo, em dois tipos: os narrados em primeira pessoa, de caráter memorialistas, e os narrados em terceira pessoa, nos quais a voz do narrador onisciente confunde-se com a voz dos personagens. Em ambos os tipos, há uma aproximação entre narrador e personagem, tanto pela adesão do adulto aos momentos do passado recriados através do personagem-narrador, protagonista dos contos em primeira pessoa, quanto pela adesão do narrador aos protagonistas dos contos em terceira pessoa. Tal aproximação e/ou adesão do narrados aos personagens é percebida, nos dois tipos de contos, por um recurso narrativo extremamente moderno a que chamamos de discurse indireto livre, discurso em que não há as convenções que distinguem a voz do narrador da voz dos personagens: no discurso direto, pelos dois pontos e pelo travessão com os quais o narrador deixa os personagens falarem: no discurso indireto, pelas conjunções integrantes [ que, se] e pelos verbos declarativos com os quais o narrador incorpora em seu próprio falar a fala dos personagens. Os três tipos existem mas predomina o discurso indireto livre nos contos novos, o que lhes dá uma liberdade sintática que preserva a afetividade e a expansividade do discurso direto ao mesmo tempo que mantém alguns elementos típicos do discurso indireto. Vamos exemplificar este procedimento, a fim de compreendê-lo melhor: Se esperavam “grandes motins” em Paris, deu uma raiva tal no 35. e ele ficou todo fremente, quase sem respirar, desejando “motins” [devia ser turumbamba] na sua desmesurada força física, ah, as fuças de

Os melhores poemas de João Cabral de Melo Neto

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Contos NovosObra-síntese que reúne as conquistas modernistas de 22 e os elementos

responsáveis pela maturidade literária de Mário de Andrade. A maturidade artística de Mário de Andrade, no campo da ficção literária, culmina

com os Contos novos, obra publicada postumamente em 1947, como o autor fez questão de anotar no final de cada narrativa, o livro é fruto de um minucioso processo de elaboração artesanal que compreende várias versões de um mesmo texto e se estende por períodos de tempo que vão de quatro até dezoito anos de preparação... Este é o caso de Frederico Paciência, cuja gestação criativa evoluiu de 1924 até 1942.

1. Narrador A paixão por pensar, em consonância com a paixão pela vida redescoberta através

da memória e da imaginação, constituem os traços mais marcantes da vida e da obra de Mário de Andrade, exemplarmente encontrados nestes Contos novos. 

Escritos a partir de 1924, reescritos ao longo de até dezoito anos de depuração artística, os Contos dividem-se, do ponto de vista de seu foco narrativo, em dois tipos: os narrados em primeira pessoa, de caráter memorialistas, e os narrados em terceira pessoa, nos quais a voz do narrador onisciente confunde-se com a voz dos personagens. 

Em ambos os tipos, há uma aproximação entre narrador e personagem, tanto pela adesão do adulto aos momentos do passado recriados através do personagem-narrador, protagonista dos contos em primeira pessoa, quanto pela adesão do narrador aos protagonistas dos contos em terceira pessoa. 

Tal aproximação e/ou adesão do narrados aos personagens é percebida, nos dois tipos de contos, por um recurso narrativo extremamente moderno a que chamamos de discurse indireto livre, discurso em que não há as convenções que distinguem a voz do narrador da voz dos personagens: no discurso direto, pelos dois pontos e pelo travessão com os quais o narrador deixa os personagens falarem: no discurso indireto, pelas conjunções integrantes [ que, se] e pelos verbos declarativos com os quais o narrador incorpora em seu próprio falar a fala dos personagens. 

Os três tipos existem mas predomina o discurso indireto livre nos contos novos, o que lhes dá uma liberdade sintática que preserva a afetividade e a expansividade do discurso direto ao mesmo tempo que mantém alguns elementos típicos do discurso indireto. 

Vamos exemplificar este procedimento, a fim de compreendê-lo melhor: Se esperavam “grandes motins” em Paris, deu uma raiva tal no 35. e ele ficou

todo fremente, quase sem respirar, desejando “motins” [devia ser turumbamba] na sua desmesurada força física, ah, as fuças de algum... polícia? Policia. Pelo menos os safados dos policias. [Primeiro de Maio] 

Sem censura aparente, perguntou aos camaradas se ainda não tinham ido trabalhar.

Os camaradas responderam que já tinham sim, mas que com aquele tempo quem agüentava permanecer dentro do poço continuando a perfuração! [O Poço] 

Observe no primeiro exemplo a transposição direta da fala interior, isto é, dos pensamentos do 35 – protagonista do conto Primeiro de Maio – que se confunde com a fala inicial do narrador. no segundo exemplo, as características do discurso indireto se preservam – os camaradas respondiam que já tinham [verbo declarativo + conjunção integrante] – embora a elas se acrescentem as expressões de oralidade – já tinham sim; quem agüentava permanecer ... – normalmente presentes no discurso direto. 

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Assim, há um enriquecimento expressivo que vem do tom de naturalidade conseguido, dentre outros recursos, pelo discurso indireto livre. Nos contos em primeira pessoa o mesmo enriquecimento pode ser percebido – além do discurso indireto livre – pela intersecção entre presente e passado: a voz do adulto que conta e reflete sobre a história e a voz do menino, do adolescente, do jovem que a vive, como veremos no exemplo abaixo: 

Frederico Paciência estava maravilhoso, sujo do futebol, suado, corado, derramando vida. Me olhou com uma ternura sorridente. Talvez houvesse, havia um pouco de piedade. [Frederico Paciência]. 

Fui abraçando os livros de mansinho, acariciei-os junto ao rosto, pousei a minha boca numa capa, suja de pó suado, retirei a boca sem desgosto.naquele instante não sabia, hoje se: era o segundo beijo que eu dava em Maria, último beijo, beijo de despedida, que o cheiro desagradável do papelão confirmou. Estava tudo acabado entre nós dois. [Vestida de preto]. 

No trecho de Frederico Paciência, fica extremamente clara a interpretação entre o passado da história vivida – Talvez houvesse – e o presente da história contada – havia um pouco de piedade. 

A emoção da experiência afetiva conjuga-se assim como a compreensão racional de seu segmento, como também ocorre no fragmento de Vestida de preto, em que à descrição sensual, sensorial, do beijo, sucede a revelação madura de que fora o último... 

O narrador, assim, revive a emoção, a enorme sensibilidade de momentos profundamente especiais e marcantes, e ao mesmo tempo é capaz de refletir sobre eles, de percebê-los de forma lúcida e nem por isso menos apaixonada. 

Em suma, o raro equilíbrio entre a emoção e a razão, entre fruição da memória e lucidez no seu desvendamento, é um dos principais motivos da preciosidade literária e humana dos Contos novos, obra que representa tanto o experimentalismo da fase heróica de nossa primeira geração modernista quanto o amadurecimento, o adensamento crítico da Geração de 30. 

Exemplos de monólogo interior 

Antes de passarmos ao estudo do enredo destes contos, vamos ver mais um exemplo de adesão do narrador aos personagens através do discurso indireto livre, ressaltando, agora, o fluxo de consciência ou monólogo interior dos personagens, com o qual, Mário de Andrade consegue os momentos de maior intensidade dramática e lírica da obra: 

Lá estavam as três estrelinhas, brilhando no ar do sol, cheias de uma boa sorte imensa. E eu tinha de me desligar de uma delas, da menorzinha estragada, tão linda! Justamente a que eu gostava mais, todas valiam igual, por que a mulher do operário não tomava banhos de mar? mas sempre, ah meu Deus que sofrimento! eu bem não queria pensar mas pensava sem querer, deslumbrado mas a boa mesmo era a grandona perfeita, que havia de dar mais boa sorte para aquele malvado do operário que viera, cachorro! dizer que estava com má sorte. Agora eu tinha que dar para ele a minha grande, a minha sublime estrelona do mar![...] eu estava tonto, operário de má-sorte, a estrela, a paralítica, a minha sublime estrelona do mar [...]. Fui correndo, fui morrendo, fui chorando, carregando com fúria e carícia a minha maiorzinha estrelinha-do-mar. [Tempo da camisolinha]. 

2. Enredo 

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Há um total de nove contos no livro, quatro em primeira pessoa, de caráter memorialista, com fortes elementos autobiográficos, e cinco em terceira pessoa. 

Para facilitar o nosso trabalho, vamos reuni-los em dois grupos, de acordo com a diferença do foco narrativo mencionada, e, apresentando o sumário de seu enredo. 

Contos em primeira pessoa 

Tempo da camisolinha [infância]. Aos Três anos de idade, quando ainda vestia camisolinha como as meninas, o personagem-narrador tem os cabelos cortados por ordem paterna. Sofre com esta violência um trauma que no entanto é compensado pelas três estrelas-do-mar - estrelas da “boa sorte” – que ganha de pescadores em Santos, onde passava férias com a família. Um velho operário sofrido e sem sorte, a quem se sente obrigado a dar a maior das estrelas, vem de novo frustra-lo numa descoberta dolorida e difícil da existência da dor e da necessidade de solidariedade humana. 

Vestido de preto [infância – adolescência – juventude]. Aos dez anos, Juca vive um momento de grande pureza, emoção e pavor. Este momento ocorre durante grande pureza, emoção e pavor. Este momento ocorre durante uma brincadeira “de família”, quando beija o primeiro grande amor de sua vida – a prima Maria – sendo ambos interrompidos pela malícia da tia velha, que destrói a ingenuidade da cena. Após tal acontecimento, Maria afasta-se de Juca, já adolescente e mau estudante, é insultado por este motivo pela menina, dando por encerrado o amor entre eles. 

Na juventude, o destino de ambos se inverte: Maria torna-se namoradeira e irresponsável, e acaba por se casar com um diplomata. Juca passa de “caso perdido” a intelectual, poeta e conferencista. A revelação acidental da mãe de Maria de que esta sempre o amara causa-lhe a terceira grande emoção deste conto: ele então a procura e a encontra vestida de preto, sem conseguir, entretanto, dizer-lhe o quanto a queria bem e a desejava. 

Frederico Paciência [ adolescência]. Este conto narra a história de uma amizade ambígua, misto de pureza e de impureza, entre o personagem-narrador e Frederico Paciência, companheiro de ginásio, que lhe desperta sucessivamente simpatia, admiração, inveja, vontade de imitar e sensualidade. Através do desenvolvimento do enredo, vamos percebendo que a perfeição moral e física de Frederico Paciência, a sua infância, deixam de servir como modelo ao protagonista. Este, após episódios de proximidade física e espiritual com Frederico Paciência, opta pela própria imperfeição, pela própria impureza, individualizando-se e acabando por se distanciar do amigo. 

O peru de Natal [juventude]. O pai, em todos os contos memorialistas, é descrito como uma personalidade autoritária, incapaz de manifestar carinho e escravizado pelo trabalho. Neste conto, que ocorre alguns meses após a sua morte, o pai aparece como um “desmancha-prazeres”. O protagonista, taxado de “louco” pela família, resolve aproveitar-se da fama e promover uma grande ceia de Natal, com peru e cerveja, apesar da recente morte do pai. 

Durante a ceia, quando especialmente a mãe e a tia solteirona comem numa abundância desconhecida por ambas, e também pelos filhos sempre reprimidos nas manifestações de alegria, o momento de plenitude familiar é posto em risco através

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da lembrança do defunto. O protagonista, então, enfrenta e vence a luta entre o peru e o fantasma do pai, hipocritamente referindo-se ao prazer que este sentiria se pudesse testemunhar a felicidade de todos naquele Natal...Consegue, assim, recuperar o clima benéfico e de comunhão que minuciosamente preparara, por amor à mãe, à tia, e à irmã: seus três “anjos da guarda”. 

Comentário 

Os temas desenvolvidos nestes contos percorrem a existência de Juca, o personagem-narrador, que em muitos momentos se confundem com a existência de Mário de Andrade, o que percebemos por informações que temos de sua vida, de suas relações familiares, seus amores etc. São temas autobiográficos, portanto, cuja densidade e cujo significado procuraremos analisar. 

A perda da ingenuidade infantil [Tempo da camisolinha], a descoberta e a sublimação da sensualidade e do erotismo [Vestida de preto e Frederico Paciência], e a resistência contra a imagem paterna castradora e autoritária [O peru de Natal] constituem, resumidamente, alguns destes temas. Embora diferentes e específicos no universo de cada conto, eles estão ligados entre si por constituírem momentos marcantes da trajetória humana, momentos mágicos como o do presente das três estrelas-do-mar, que, por algum tempo, recupera a ingenuidade infantil [Tempo da camisolinha], o do primeiro beijo [Vestida de preto], o da descoberta da amizade [Frederico Paciência] e o da sensação de uma vitória numa luta contra a opressão [O peru de natal]. 

Esse momentos mágicos, podemos dizer fundadores e fecundadores da poesia da autodescoberta e da descoberta do outro e do mundo, estão presentes em todos os contos, sendo, portanto, um elo que os une. 

A eles se atrelam, entretanto, momentos de decepção e de dor, de profunda solidão e de duro amadurecimento, como o corte dos cabelos [Tempo de camisolinha], a interrupção do primeiro beijo [Vestida de preto] e a revelação da impureza no desenrolar de uma amizade “suspeita” [Frederico Paciência]. 

Temos aqui o contraponto da plenitude encontrada nos primeiros momentos analisados. Somados todos podemos perceber a alternância de amor e de dor, de comunhão e de solidão, de ingenuidade e de malícia, que vão delineando o indivíduo, cujo processo de formação e de diálogo conflituoso com a sociedade parece ser a grande temática dos contos em primeira pessoa. 

Contos em terceira pessoa 

O ladrão. A perseguição de um suposto ladrão, que ninguém consegue enxergar, desperta um bairro suburbano cujos tipos vão sendo revelados ao leitor, num momento extraordinário de quebra de rotina e de encontro entre as pessoas. Esse momento culmina com a valsa triste tocada pelo violinista, que assim estréia a sua única música perante a platéia improvisada. Esta o palude de forma efusiva antes de dissolver-se na calada da noite. 

Primeiro de maio. O 35, um operário carregador de malas, passeia pela cidade de São Paulo para confusa e apaixonadamente comemorar o Dia do Trabalho,primeiro de maio. Cercado de policiais e de colegas indiferentes, o conto narra a intensidade ingênua mas lírica dos sentimentos do 35, cuja euforia transforma-se em angústia e medo, até conseguir,carregando as malas pesadas para um companheiro, o 22,

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manifestar a piedade, o amor, a fraternidade desamparada que sentira ao longo do dia... 

Atrás da Catedral de Ruão. Mademoiselle é uma professora de francês, quarentona e virgem, tomada por um vendaval do mal do sexo. Preceptora de duas adolescentes, Alba e Lúcia – abandonadas pelo pai e de certo modo pela mãe, infeliz e distante – Mademoiselle conversa imoralidades e malícias com elas,fixando-se em suas fantasias eróticas no cenário de uma antiga história picante: atrás da Catedral de Ruão. Intensificam-se tais fantasias até o momento em que Mademoiselle, ao sair de uma festa, imaginariamente é perseguida por dois homens, correndo deles e ao mesmo tempo entregando-se à volúpia de faze-lo, atrás da Catedral. Quando chega à pensão onde mora, dá um níquel a cada um dos supostos perseguidores, agradecendo, em francês, a boa companhi9a que lhe fizeram... 

O Poço. Joaquim Prestes, fazendeiro rico, dono de três automóveis, de dez chapéus, criador de mel e inventor da moda dos pesqueiros de beira de rio, é uma personalidade estranha, obcecada pela idolatria da autoridade. Num dia frio, chuvoso e escuro, leva uma visita ao pesqueiro de que é proprietário, e onde quatro operários constroem um poço. Neste contexto, pressiona os homens a prosseguirem com o trabalho, praticamente impossível pelas condições atmosféricas. Deixa cair a caneta-tinteiro no poço, uma caneta de our5o, exigindo que os operários a resgatem. Maltrata-os então de forma cruel e desumana, até o momento em que um dos operários – José – desafia sua autoridade e impede que o irmão, fraco e doente – Albino – volte a descer ao poço. 

Contrariado mas impotente, o velho cede à firmeza de José, embora se vingue alguns dias depois, xingando os operários, que reencontraram a caneta, por ela não escrever. Abre, então, a gaveta da escrivaninha onde há várias lapiseiras e três canetas-tinteiro, uma de ouro... 

Nelson. Neste misterioso conto, um homem não nomeado, com um ar esquisito, ar antigo, que talvez lhe viesse da roupa mal talhada, entra num bar. Enquanto toma seis chopes, sua presença desperta a atenção de três pessoas, sentadas em outra mesa, que passam a contar histórias estranhas a respeito dele. Uma, do amor que teve por uma paraguaia, a quem entregou toda a fortuna, vinda das fazendas que possuía em Mato Grosso, e outra, da sua participação heróica na Coluna Prestes, não se sabe de que lado, em que uma piranha comera-lhe um pedaço da mão... Ambas as histórias intercalam-se, acentuando, com o seu desfecho, a curiosidade dos personagens. A paraguaia o abandona, conta Alfredo, o narrador exageradamente preocupado em criar suspense, o que irrita os companheiros. 

Diva, a garçonete do bar que também é prostituta, protege o homem da curiosidade alheia, demonstrando-lhe respeito e admiração. 

O homem se levanta, sai do bar, anda seis quarteirões e, após esperar que se dissolva um pequeno grupo que bebe num outro bar, certifica-se de que ninguém o segue, entra em casa, e fecha a porta por trás de si com três voltas à chave. 

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Comentário 

Nestes cinco contos, continuam aparecendo momentos iluminadores, especiais, como a quebra da rotina e as manifestações de solidariedade entre as pessoas, em O ladrão; a ousadia e a firmeza do operário José ao enfrentar Joaquim Prestes para proteger o irmão, Albino, em O Poço; o impulso de amor e de fraternidade do 35, em Primeiro de Maio; a humanidade com que a garçonete priva os curiosos de informações que poderiam violentar um homem que ela mal conhece mas por quem sente respeito, em Nelson. 

Por outro lado, continuam também os contrapontos desses momentos: em O ladrão, há uma italiana que marginaliza uma portuguesa, cuja suposta “vida fácil”, devido às viagens do marido, a transforma em vítima da maldade alheia, o que faz com que ela ironicamente vá dormir sozinha, tendo sete homens a seus pés....Em Primeiro de Maio, os colegas de 35 ridicularizam a comemoração, trabalhando indiferentes e alheios ao policiamento ostensivo na cidade. Em O Poço, a obsessão pela autoridade, o sadismo e a violência de Joaquim Prestes retomam a imagem castradora do pai, agora o patrão, desenvolvida nos contos em primeira pessoa. 

Em Atrás da Catedral de Ruão, a temática da sexualidade reprimida, sublimada, presente em Frederico Paciência e em Vestida de preto, reaparece, através das fantasias sexuais de uma mulher envelhecida, puritana, extremamente solitária, que por um instante mergulha na fantasia e se liberta da solidão. 

Dentre os contos que tematizam a solidão, entretanto, destaca-se Nelson, uma história cujo enigma não se explica, mas que mostra claramente, apenas pelo comportamento do protagonista, o isolamento em que vive. 

Em geral, tanto nestes últimos contos comentados quanto nos primeiros, há uma fixação de momentos, de breves lapsos de vida, que ora revelam a beleza, a grandeza da suspensão da mediocridade cotidiana [Vestida de preto, O ladrão, O peru de Natal especialmente], ora revelam o desamparo, a prepotência, que fazem parte desta mesma mediocridade [Nelson, O poço]. 

Em Primeiro de Maio, Atrás da Catedral de Ruão Frederico Paciência e Tempo de Camisolinha tais momentos, eufóricos e vazios, plenos e impotentes, solitários e solidários, são simultâneos, na alegria e na angústia do 35, na solidão e no delírio de Mademoiselle, na pureza e na impureza do Juca, na infelicidade e na dolorosa descoberta, por uma criança, de que as pessoas sofrem e precisam de ajuda.

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Dom Casmurro

Machado de Assis

1. Enredo

Vivendo no Engenho Novo, um subúrbio da cidade do RJ, quase recluso em sua casa, construída segundo o molde da que fora a de sua infância, na Rua de Matacavalos, Bento de Albuquerque Santiago, ,com cerca de 54 anos e conhecido pela alcunha de Dom Casmurro por seu gosto pelo isolamento , decide escrever sua vida.

Alternando a narração dos fatos passados com a reflexão sobre os mesmos, no presente, o protagonista/narrador informa ter nascido em 1842 e ser filho de Pedro de Albuquerque Santiago e de D. Maria da Glória Fernandes Santiago. O pai, dono de uma fazenda em Itaguaí, mudara-se para a cidade do RJ por volta de l844, ao ser eleito deputado. Alguns anos depois falece e a viúva, preferindo ficar na cidade a retornar a Itaguaí, vende a fazendola e os escravos, aplica o dinheiro em imóveis e apólices e passa a viver de rendas, permanecendo na casa de Matacavalos, onde vivera com o marido desde as mudança para o RJ.

A vida do protagonista/narrador transcorre sem maiores incidentes até a 'célebre tarde de novembro' de 1857, quando, ao entrar em casa, ouve pronunciarem seu nome e esconde-se rapidamente atrás da porta. Na conversa entre sua mãe e o agregado José Dias, que morava com a família desde os tempos de Itaguaí, Bentinho, como era então chamado, fica sabendo que sua mãe se mantém firme na intenção de colocá-lo no seminário a fim de seguir a carreira eclesiástica, segunda promessa que fizera a Deus caso tivesse um segundo filho varão, já que o primeiro morrera ao nascer.

Bentinho, que há muito tinha conhecimento das intenções de sua mãe, sofre violento abalo pois fica sabendo que a reativação da promessa, que parecia esquecida, devia-se ao fato de José Dias ter informado D. Glória a respeito de seu incipiente namoro com Capitolina Pádua, que morava na casa ao lado. Capitu, como era chamada, tinha então catorze anos e era filha de um tal de Pádua, burocrata de uma repartição do Ministério da Guerra. A proximidade, a convivência e a idade haviam feito com que os dois adolescentes criassem afeição um pelo outro. D. Glória, ao saber disto, fica alarmada e decide apressar o cumprimento da promessa. Os planos de Capitu, informada do assunto, e Bentinho para, com a ajuda de José Dias, impedir que D. Glória cumprisse a decisão ou, pelo menos, a adiasse, fracassam. Como último recurso, o próprio Bentinho revela à mãe não ter vocação, o que também não a faz voltar atrás. Tio Cosme, um viúvo, irmão de D. Glória e advogado aposentado, que vivia na casa desde que seu cunhado falecera, e a prima Justina, também viúva, que, há muitos anos, morava com a mãe de Bentinho, procuram não se envolver no problema. Assim, a última palavra fica com D.Glória, que, com o apoio do padre Cabral, um amigo de tio Cosme, decide finalmente cumprir a promessa e o envia ao seminário, prometendo, contudo, que se dentro de

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dois anos não revelasse vocação para o sacerdócio estaria livre para seguir outra carreira. Antes da partida de Bentinho, este e Capitu juram casar-se.

No seminário, Bentinho conhece Ezequiel de Souza Escobar, filho de um advogado de Curitiba. Os dois tornam-se amigos e confidentes. Em um fim de semana em que Bentinho visita D. Glória, Escobar o acompanha e é apresentado a todos, inclusive a Capitu. Esta, depois da partida de Bentinho, começara a freqüentar assiduamente a casa de D.Glória, do que nascera aos poucos grande afeição recíproca, a ponto de D.Glória começar a pensar que se Bentinho se apaixonasse por Capitu e casasse com ela a questão da promessa estaria resolvida a contento de todos, pois Bentinho, que a quebraria, não a fizera, e ela, que a fizera, não a quebraria.

Enquanto isto, Bentinho continuava seus esforços junto a José Dias, que, tendo fracassado em seu plano de fazê-lo estudar medicina na Europa, sugeria agora que ambos fossem a Roma pedir ao Papa a revogação da promessa. A solução definitiva, contudo, partiu de Escobar. Segundo este, D. Glória prometera a Deus dar-lhe um sacerdote, mas isto não queria dizer que o mesmo deveria ser necessariamente seu filho. Sugeriu então que ela adotasse algum órfão e lhe custeasse os estudos. D. Glória consultou o padre Cabral, este foi consultar o bispo e a solução foi considerada satisfatória.

Livre do problema, Bentinho deixa o seminário com cerca de 17 anos e vai para São Paulo estudar, tornando-se cinco anos depois, o advogado Bento de Albuquerque Santiago. Por sua parte, Escobar, que também saíra do seminário, tornara-se um comerciante bem-sucedido, vindo a casar com Sancha, amiga e colega de escola de Capitu. Em l865, Bento e Capitu finalmente casam-se, passando a morar no bairro da Glória. O escritório de advocacia progride e a felicidade do casal seria completa não fosse a demora em nascer um filho. Isto faz com que ambos sintam inveja de Escobar e Sancha, que tinham tido uma filha, batizada com o nome de Capitolina. Depois de alguns anos, nasce Ezequiel, assim chamado para retribuir a gentileza do casal de amigos, que dera à filha o nome da amiga de Sancha.

Ezequiel revela-se muito cedo uma criança inquieta e curiosa, tornando-se a alegria dos pais e servindo para estreitar ainda mais as relações de amizade entre os dois casais. A partir do momento em que Escobar e a Sancha, que moravam em Andaraí, resolvem fixar residência no Flamengo, a convivência entre as duas famílias torna-se completa e os pais chegam a falar na possibilidade de Ezequiel e Capitulazinha, como era chamada a pequena Capitolina, virem a se casar.

Em 1871 Escobar, que gostava de nadar, morre afogado. No enterro, Capitu, que amparava Sancha, olha tão fixamente e com tal expressão para Escobar morto que Bento fica abalado e quase não consegue pronunciar o discurso fúnebre. A perturbação, contudo, desaparece rapidamente. Sancha retira-se em seguida para a casa dos parentes no Paraná, o escritório de Bento continua a progredir e a união entre o casal segue crescendo. Até o momento em que, cerca de um ano depois, advertido pela própria Capitu, Bento começa a perceber as semelhanças de Ezequiel com Escobar. À medida que o menino cresce, estas semelhanças aumentam a tal ponto que em Ezequiel parece ressurgir fisicamente o velho companheiro de seminário.

As relações entre Bento e Capitu deterioram-se rapidamente. A solução de colocar Ezequiel num internato não se revela eficaz, já que Bento não suportar mais ver o filho, o qual por sua vez, se apega a ele cada vez mais, tornando a situação ainda mais crítica.

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Num gesto extremo, Bento decide suicidar-se com veneno, colocado numa xícara de café. Interrompido pela chegada de Ezequiel, altera intempestivamente seu plano e decide dar o café envenenado ao filho mas, no último instante, recua e em seguida desabafa, dizendo a Ezequiel que não é seu pai. Nesse momento Capitu entra na sala e quer saber o que está acontecendo. Bento repete que não é pai de Ezequiel e Capitu exige que diga por que pensa assim. Apesar de Bento não conseguir expor claramente suas idéias, Capitu diz saber que a origem de tudo é a casualidade da semelhança, argumentando em seguida que tudo se deve à vontade de Deus. Capitu retira-se e vai à missa com o filho. Bento desiste do suicídio.

Durante a discussão fica decidido que a separação seria o melhor caminho. Para manter as aparências, o casal parte pouco depois rumo à Europa, acompanhado do filho. Bento retorna a seguir, sozinho. Trocam algumas cartas e Bento viaja outras vezes à Europa, sempre com o objetivo de manter as aparências, mas nunca mais chega a encontrar-se com Capitu. Tempos depois morrem D.Glória e José Dias.Bento retira-se para o Engenho Novo. Ali, certo dia, recebe a visita de Ezequiel de Albuquerque Santiago, que era então a imagem perfeita de seu velho colega de seminário. Capitu morrera e fora enterrada na Europa. Ezequiel permanece alguns meses no RJ e depois parte para uma viagem de estudos científicos no Oriente Médio, já que era apaixonado da arqueologia. Onze meses depois morre de uma febre tifóide em Jerusalém e é ali enterrado.

Mortos todos, familiares e velhos conhecidos, Bento/Dom Casmurro fecha-se em si próprio, mas não se isola e encontra muitas amigas que o consolam. Jamais, porém, alguma delas o faz esquecer a primeira amada de seu coração, que o traíra com seu melhor amigo. Assim quisera o destino. E para esquecer tudo, nada melhor que escrever, segundo decide, uma História dos subúrbios do Rio de Janeiro.

2. Personagens principais

Bentinho/Dom Casmurro

Dividido entre a saudade da juventude irrecuperável e a meditação sobre seu caminho existencial, Bento Santiago ora manifesta certa condescendência diante do espetáculo do mundo, apreciando certos prazeres da vida, ora demonstra seu desencanto em reflexões melancólicas sobre a realidade. Este último sentimento, que domina a fase de maturidade do protagonista/narrador, acaba dando o tom a todo o romance. Consciente de sua ingenuidade no passado, não exacerba seu pessimismo e se mantém num equilíbrio filosófico que lhe permite assimilar as lições da vida e viver com certa paz interior. Em termos estritamente pessoais, Bento Santiago é um homem que pagou o preço de sua existência e aparou o suficiente os golpes do destino para poder ordenar a realidade e manter sua identidade. Em termos sociais, é o membro de uma classe superior para quem tudo se resume, na vida, em saber salvar as posses e as aparências, o que, em última instância, é a mesma coisa.

Capitu

Mudando de classe social através das armas da inteligência e da sensualidade, Capitu, com seus 'olhos de cigana oblíqua e dissimulada', se perde - para o protagonista/narrador - em virtude de um autocontrole pouco desenvolvido, isto é, em virtude de não submeter-se aos limites impostos pela condição social a que ascendera. Mostra-se capaz de envolver Bentinho mas incapaz de dominar o mundo

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em que passa a integrar-se após seu casamento. Seu destino é ser 'expurgada' do grupo.

Escobar

Com um perfil pouco desenvolvido no romance, Escobar é, em síntese, um homem de ação, pouco dado a especulações sobre o mundo. Sua carreira de comerciante e seu gosto pelo esporte - que o leva à morte - o contrapõem a Bento Santiago. É um personagem simples e linear, o que o configura como um perfeito parceiro de traição.

SanchaMais limitada e menos vital que Capitu, Sancha é seu oposto, como fica claro no fugaz incidente com Bento Santiago, quando ela recusa a dar o passo que levaria além dos limites impostos à sua condição de mulher casada.

D. Glória

Uma boa criatura, descendente de famílias tradicionais da aristocracia mineira e paulista, D. Glória se atém rigidamente às normas do grupo social e, apesar de ser ainda bela e jovem ao tornar-se viúva, recusa qualquer outro tipo de ligação com homens, dedicando-se às tarefas de administrar os bens, cuidar do lar e educar o filho. Como diz o protagonista/narrador, 'teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preservá-la da ação do tempo'. É a figura clássica da matrona ilibada e inatacável.

José Dias

Amante dos superlativos e da bajulação, as convicções de José Dias oscilam de acordo com os interesses dos membros da família a que se agregara. Neste personagem, Machado de Assis traça um perfil magistral de um grupo social típico da sociedade escravocrata brasileira do séc. XIX: o homem livre, mas sem posses, que, tanto por seu próprio interesse quanto por interesse da classe proprietária, integra-se em um clã e perde a própria identidade em troca dos favores que o mantêm vivo, livre e desfrutando de certo status social.

Padre Cabral

Apesar de ocupar um lugar discreto na obra, o padre Cabral encarna, claramente, a Igreja como instituição, como um núcleo de poder que, em plano secundário mas com certa importância, caracterizava a sociedade brasileira do séc. XIX, particularmente antes da República, a partir da qual separaram-se Igreja e Estado.

3. Estrutura narrativa

Em 218 capítulos, geralmente bastante curtos, Dom Casmurro é a narração, feita em primeira pessoa pelo próprio protagonista, da vida de Bento de Albuquerque Santiago, o Bentinho. A trajetória existencial recomposta vai do ano de 1857 até meados da década de 1890, quando o narrador, já qüinquagenário, se debruça sobre o passado, apresentando-o e, ao mesmo tempo, analisando-o à distância, do que resulta uma estrutura narrativa em que se alternam a narração da ação e a reflexão sobre a mesma, ambas tendo por palco o RJ da segunda de do séc. XIX.

4. Comentário crítico

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Unanimemente considerada como uma das obras-primas da ficção brasileira e colocada em destaque entre as cinco principais obras de Machado de Assis - ao lado de Quincas Borba, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Esaú e Jacó e O Alienista - Dom Casmurro nunca deixou de estar em evidência ao longo de quase um século de sua publicação, enfrentando, assim, as vicissitudes críticas comuns à obra machadiana.

Diante da inegável importância da ficção de MA e de sua fluidez, que recusa qualificativos e teorias, e não raro monta armadilhas para análises que pretendam ser totalizantes, a crítica, ao longo do tempo, reagiu das mais variadas formas. Alguns censuram em MA a falta de um compromisso mais direto com a realidade, posição que, de pernas para o ar, acabou na visão, muito em voga até recentemente, segundo a qual sua obra possuía tal universalidade que tornava impossível referi-la a um contexto histórico determinado. Outros, numa posição que também fez fortuna, destacaram na obra machadiana a atmosfera de humour, nascido de uma fusão de tristeza e enfado diante da vida. Este seria o Machado de Assis 'filósofo'.

A visão biografista, aplicada a outros romancistas de sua época, também atingiu o autor de Quincas Borba. Ao tentar explicar a obra a partir da vida do autor, o biografismo, no caso de MA, chegou ao extremo de considerar seu humour, o desencanto diante da vida que transparece em suas obras, como resultado de sua recusa em assumir a condição de mulato. Neste sentido, a visão de mundo presente na obra machadiana seria o produto de um desejo intenso, frustrado em virtude da barreira representada pela consciência da própria cor, de arianização social e branqueamento ideológico. Como em todos os casos, tal interpretação biografista não vai além de uma observação sobre o autor - que pode até ser verdadeira mas que é sempre dispensável - e nada diz especificamente sobre a obra.

Nas últimas décadas, a crítica machadiana tendeu a tomar outra direção, orientando-se decididamente no sentido de uma análise profunda da obra em si e dando especial atenção aos elementos históricos nela contidos. E então não foi difícil perceber que, ao contrário do que faziam supor muitas posições críticas até ali sustentadas, MA apresenta com extrema profundidade e de maneira bastante explícita a sociedade carioca e brasileira das últimas décadas do séc. XIX, expondo claramente sua estrutura de classes e seus mecanismos de poder.

Nos últimos anos, esta visão histórica da obra machadiana acentuou-se ainda mais.

Assim, nesta perspectiva, a incapacidade de ação, o pessimismo existencial, a crise de identidade e mesmo a loucura que caracterizam os personagens mais importantes do mundo ficcional de MA seriam o símbolo de um país econômica e culturalmente dependente e dominado por uma elite colonizada e sem perspectivas históricas diante da maré montante do liberalismo industrial/capitalista europeu, que minara, ao longo da segunda de do século, a última das grandes formações sociais escravistas do planeta.

Como se pode observar, a própria diversidade das interpretações dá bem a medida daquela que talvez possa ser considerada a mais importante das características do mundo ficcional de MA e da galeria de seus grandes personagens: o caráter esquivo e ambíguo que parece exigir e, ao mesmo tempo, repelir todos os enquadramentos teóricos.

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Se o exposto pode ser considerado verdadeiro no que se refere à obra de MA como um todo, o é muito mais ainda em relação a Dom Casmurro. De todos os romances do autor, este é, com certeza, o mais popular, seja no sentido de ser, possivelmente, o mais lido, seja no sentido de abordar um tema popular, do que deve resultar, aliás, sua capacidade de atingir um universo mais amplo de leitores. De fato, Dom Casmurro é a história de uma traição. É evidente que a obra é bem mais complexa do que pode fazer supor tal afirmação, mas é inegável também que o núcleo essencial do enredo, isto é, dos fatos narrados, é formado pela existência de um triângulo amoroso e pelas conseqüências daí resultantes.

Como era natural, além de cair no agrado do grande público leitor, o casal de protagonistas, Bentinho e Capitu, tornou-se, ao longo do tempo, um dos centros de atenção das análises feitas pela crítica a respeito de Dom Casmurro, a tal ponto que, em alguns casos, o romance ficou reduzido a única questão: Capitu traiu ou não traiu? Sob este ponto de vista, Dom Casmurro passou a ser não a história de uma traição - afirmação sem dúvida abonada pelo texto - mas a história da dúvida sobre uma traição, o que, a partir de uma leitura honesta, é uma evidente e injustificada extrapolação. Para Bento Santiago, o narrador, não há a mínima dúvida do valor das provas circunstanciais de que dispõe: Ezequiel é filho de Escobar. E o texto não coloca, em momento algum, em questão o valor destas provas circunstanciais, nem do ponto de vista objetivo - o valor em si das mesmas - nem de um ponto de vista subjetivo - a capacidade de discernimento do protagonista. No texto, Bento Santiago é antes um ingênuo - por perceber tarde demais o problema - do que um manomaníaco ou um obsessivo. Ele é apresentado, aliás, como um exemplo perfeito de normalidade, segundo se pode deduzir de sua vida posterior à morte dos que o rodeavam. Afirmações como 'o texto é uma visão distorcida, pois é a visão de Bentinho' ou 'a narrativa de Capitu seria diferente' são hipotéticos absurdos, a não ser que se queira ver Dom Casmurro como uma grande armadilha montada por este mestre da narrativa que é MA com o objetivo de divertir-se às custas de seus leitores de todas as épocas.

Seja como for, esta discussão acabou sendo muito justamente relegada a um plano sem importância e a crítica prefere hoje salientar elementos cuja presença no texto é inegavelmente sólida. Em primeiro lugar, retomando o velho tema, nunca abandonado nos estudos sobre Dom Casmurro, do humour machadiano, procura analisá-lo em outro plano, localizando-o historicamente. Nesta perspectiva, a mistura de serenidade e desencanto perante a vida - encarnada por Bento Santiago mais do que por qualquer outro personagem de Machado de Assis - deixa de ser apenas um genérico olhar de tristeza lançado sobre a condição humana e passa a símbolo da falta de perspectivas e da decadência de uma elite que, sobre uma estrutura escravista, montara uma paródia aristocrática nos trópicos dominados pelo empuxo avassalador do capitalismo industrial anglo-francês. Sereno mas incapaz de ação, conformado mas pessimista, Bento Santiago carrega em si o fim de um tempo e, em sua lucidez, vinga-se de todos, a todos sobrevivendo e de todos fazendo o necrológio.

Um necrológio, contudo - e este é o segundo ponto em que insistem mais recentes - que é um registro minucioso da sociedade do RJ e, por extensão, do Brasil litorâneo da segunda de do século passado. Do prosaico dia-a-dia da cidade aos valores culturais então dominantes, das formas de namoro às relações de classe, da estrutura do casamento à estrutura econômica e aos caminhos de ascensão social dentro dela - um dos quais a carreira eclesiástica -, tudo aí está fixado para a posteridade com o rigor de um gravurista. Com o rigor de um mestre da narrativa

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realista/naturalista do Ocidente, na qual sem dúvida, Dom Casmurro tem um lugar reservado.

Os Melhores Poemas - Gonçalves Dias

                  Gonçalves Dias foi um dos poucos poetas que soube dar um toque realmente brasileiro na sua poesia romântica, mesmo escrevendo sobre todos os temas mais caros ao Romantismo europeu, como o amor impossível, a religião, a tristeza e a melancolia. 

                  Suas paixões são reveladas muitas vezes num tom ingênuo e melancólico, mas muito menos tempestuosas e depressivas que as dos poetas da segunda geração romântica. 

                  A morte e a fuga do real não lhe são tão atraentes, principalmente quando esse real inclui as belezas naturais de sua terra tão amada. Suas musas parecem se fundir às belas imagens e fragrâncias da natureza, lembrando várias vezes a própria pátria, que é cantada com toda a sua exuberância e saudade, revigorada pelo seu sentimento nacionalista. 

                  A saudade, aliás, é a grande mola propulsora que leva o poeta a escrever em Coimbra o poema que é considerado por muitos a mais bela obra-prima de nossa literatura: A Canção do Exílio.

           O nome de Gonçalves Dias está mais ligado, porém, com a poesia indianista. Isso se deve ao fato de ninguém ter conseguido criar versos tão líricos, belos e magníficos quantos os que o poeta maranhense dedicou aos costumes, crenças, tradições dos índios brasileiros, por ele considerados como verdadeiros representantes de nossa cultura nacional. 

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                  A figura do indígena ganha tons míticos e épicos dentro da poesia, capazes de colocar à tona toda a sua harmonia com a natureza, sua honra, virtude, coragem e sentimentos amorosos, mesmo que isso muitas vezes signifique uma imagem idealizada e exacerbada de sua vida quotidiana. 

                  É, apesar de todo esforço nacionalista, o resquício da visão que os povos da Europa tinham do selvagem da América, aliada a uma tentativa de conciliação entre a sua imagem e os ideais e honras do cavaleiro medieval europeu, fartamente cantado no Romantismo.

           Mais do que uma vigorosa exaltação nacionalista, alguns dos versos que Gonçalves Dias dedicou aos índios servem e muito para denunciar os três séculos de destruição que os colonizadores impuseram às suas culturas.

Melhores Poemas- João Cabral de Melo Neto

Catar Feijão Catar feijão se limita com escrever: 

Jogam-se os grãos na água do alguidar E as palavras na da folha de papel; e depois, joga-se fora o que boiar. 

Certo, toda palavra boiará no papel, água congelada, por chumbo seu verbo; 

pois catar esse feijão, soprar nele, e jogar fora o leve e oco, palha e eco. 

Ora, nesse catar feijão entra um, risco o de que entre os grão pesados entre 

um grão imastigável, de quebrar dente. Certo não, quando ao catar palavras: a pedra dá à frase seu grão mais vivo: 

obstrui a leitura fluviante, flutual, 

açula a atenção, isca-a com risco. João Cabral de Melo Neto

 Ao nos depararmos com o poema sentimos certa dificuldade em interpretá-lo, não é mesmo? Mas é natural que isso ocorra, pois trata-se de uma poesia introspectiva, baseada na reflexão, no desvendar da essência camuflada pela linguagem. 

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Mas primeiramente iremos conhecer quem foi este engenhoso poeta, para somente assim podermos nos inteirar de suas características pessoais. 

João Cabral de Melo Neto (1920 - 1999) é o mais importante poeta da geração de 45. Nasceu em Recife e passou a infância em engenhos de açúcar em São Lourenço da Mata e Moreno. Desde cedo demonstrava interesse pela palavra, pela literatura de cordel nordestina e desejava ser crítico literário. 

Em 1946 ingressou na carreira diplomática e, a partir de então, serviu em várias cidades do mundo: Barcelona, Londres, Sevilha, Madri, Porto, Rio de Janeiro, aposentando-se em 1990. 

Sua obra apresenta duas linhas-mestras: a metapoética e a participante. A linha metapoética abrange os poemas de investigação do próprio fazer poético. E a participante é aquela que tem como tema o Nordeste, com todos os problemas voltados para a questão social, tais como a miséria, a indigência, a fome, entre outros.Uma das celebridades que retrata bem esta temática foi a obra Morte e Vida Severina, a qual revela a história de um retirante de 20 anos que sai em buscas de melhores condições de vida. 

Dando prioridade à análise da poesia mencionada, percebemos que o artista parece não dialogar com um leitor comum, mas com os outros poetas. Podemos chamar isto de “Métrica do Intelecto”, no qual o “fazer poético” tem o seu sublime destaque. 

Podemos perceber que ele utiliza um simples ato do cotidiano, que é o de catar feijão, e compara-o com a prática da escrita, ou seja, assim como os grãos devem ser minuciosamente escolhidos, as palavras devem ser muito bem articuladas para que haja clareza, no que se refere ao exercício da linguagem. 

A afirmativa torna-se verídica ao analisarmos os seguintes versos: 

“Joga-se os grãos na água do alguidar E as palavras na folha de papel E depois, joga-se fora o que boiar.”Por Vânia DuarteGraduada em LetrasEquipe Brasil Escola

JOÃO CABRAL DE MELO NETO (1920-1999).

POETA-ENGENHEIRO.

DIPLOMATA-SERVIU EM VÁRIOS PAÍSES

EUROPEUS E SUL-AMERICANOS.

ESPANHA – BRASIL (ANALOGIA)

CARACTERÍSTICAS

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GERAÇÃO DE 45

FORMAS REGULARES DE ESTROFAÇÃO E AO VERSO METRIIFCADO

ESTILO

Criou um estilo seco, antilírico, de musicalidade dissonante.

Textos de configuração concreta: EX:

O LÁPIS, O ESQUADRO, O PAPEL:

O DESENHO, O PROJETO, O NÚMERO;

O ENGENHEIRO PENSA O MUNDO JUSTO.

MUNDO QUE NENHUM VÉU ENCOBRE.

(...)

Melhores Poemas - Manuel Bandeira

Obra organizada em 1984 reúne os poemas mais expressivos de Manuel Bandeira.

Em toda a sua trajetória poética Manuel Bandeira nos mostra a preocupação com a constante busca por novas formas de expressão.

A principal característica da obra de Bandeira é, sem sobra de dúvidas, o emprego do verso livre. No entanto, isso não significa que Bandeira não fizesse uso das formas fixas. Nas suas últimas obras ele utilizou-se muito da forma mais clássica de todas: o soneto.

Os versos livres de Bandeira sempre foram escritos sem preocupações. Ele não gostava de modificar nada. Até mesmo, segundo o próprio poeta, o poema "Vou me embora para Pasárgada" foi escrito dessa forma.

Os principais temas de seus poemas foram: solidão, dor e o medo da morte. O cotidiano de Santa Tereza, local onde morava, era constantemente transformado em crônicas.

Explorava os elementos sensoriais (visão, audição, tato, olfato, gustação) de forma que se ressaltava em seus poemas.

Herdeiro da musicalidade simbolista, sempre se preocupou com a sonoridade, harmônica ou dissonante, dando um efeito mais agressivo a quaisquer temas.

Nos textos eminentemente sensuais, nota-se a linguagem coloquial, anti-retórica,

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despojada, a grandiloqüência, as metáforas arrojadas, muito usadas por poetas como Castro Alves e Olavo Bilac.

Poemas escolhidos

INGÊNUO ENLEIO

Ingênuo enleio de surpresa,Sutil afago em meus sentidos,Foi para mim tua beleza,A tua voz nos meus ouvidos.

Ao pé de ti, do mal antigoMeu triste ser convalesceu.Então me fiz teu grande amigo,E teu afeto se me deu.

Mas o teu corpo tinha a graçaDas aves...Musical adejo...Vela no mar que freme e passa...E assim nasceu o meu desejo.

Depois, momento por momento,Eu conheci teu coração.E se mudou meu sentimentoEm doce e grave adoração.

O IMPOSSÍVEL CARINHO

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejoQuero apenas contar-te a minha ternuraAh se em troca de tanta felicidade que me dásEu te pudesse repor- Eu soubesse repor -No coração despedaçadoAs mais puras alegrias de tua infância!

TEMA E VOLTAS

Mas para quê tanto sofrimento,se nos céus há o lentodeslizar da noite?Mas para quêtanto sofrimento,se lá fora o ventoé um canto na noite?Mas para quêtanto sofrimento,se agora, ao relento,cheira a flor da noite?Mas para quêtanto sofrimento,

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se o meu pensamentoé livre na noite?

O Calor das Coisas – Nélida Pinon

A obra O calor das coisas, de Nélida Piñon, é um livro de contos que tratam de circunstâncias presentes no cotidiano das pessoas. São treze histórias nas quais é fácil perceber as mesmas preocupações da autora: a importância da palavra e a manipulação política da linguagem. Desta vez, porém, há uma grande carga de humor. De fina ironia e construção complexa para desvendar os mais recônditos cantões da alma de seus personagens. 

Nélida utiliza imagens belas e delicadas para tratar das paixões humanas. Seus enredos, sempre originais, muitas vezes confundem-se com o discurso. Nélida alterna poesia e crítica, racionalidade e erotismo em páginas de leitura voraz e provocadora.

A obra de Piñon é instigante e envolvente. Ela traz em sua estrutura temática o desdobrar e o atualizar em cada publicação, seja de romances, de contos ou de ensaios. Reflete em sua obra a preocupação constante com questões referentes à criação do texto, à linguagem, à religião (panteísta ou cristã), ao mito, ao amor associado aos questionamentos do cristianismo, à paixão, à solidão humana e, entre outras, à realização feminina

Nesta obra têm-se personagens do mundo contemporâneo vivendo momentos significativos – mas não necessariamente excepcionais – e historicamentemarcados.

A multiplicidade das histórias deixa ver um certo número de temas recorrentes, que se espelham entre si e se desenvolvem uns aos outros. Tem-se assim, por exemplo, o tema fantástico da união (im)possível de espécies diferentes e o da mutação humana, o do incesto e o da homossexualidade. Em todos os casos tem-se o homem

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infrator, ora por sua ação, ora pela inação que, nesses contos, não significa jamais fraqueza mas escolha e assunção de força. Esse homem infrator exige, limpa, ordena, organiza, que tais são os verbos recorrentes na gramática nelidiana.

Nas histórias que nesse livro se conta, não há reorganização (construção) do mundo destruído pelos personagens, pelas circunstâncias, pela narração. Quando ocorre, a auto-organização do protagonista implica a desvalorização de seu contexto, que só lhe interessa como cenário, palco de experiências próprias e não partilháveis.

De fato, tem-se nesses contos, em vários níveis e em vários matizes, a mesma narrativa de solidão, em que toda relação interpessoal é vista como radicalmenteimpossível e na qual é lesiva toda tentativa nesse sentido.

É por isso que não se pode, a rigor, falar da existência de diálogos nesses textos. Entre os personagens só há monólogos e o preenchimento do silêncio pelopastiche do lugar-comum, falas que apontam o vazio de que são feitas. 

Os contos “O calor das coisas”e “A sombra da caça” destacam-se na composição do livro de que participa. O primeiro por dar nome à coletânea de que faz parte, o outro por ocupar o significativo lugar de último conto do livro, como a indicar que nele se poderia buscar (como nos romances policiais) a chave para o(s) mistério(s) de sentido que se teriam enovelado até então. 

Se, quando apreciados tematicamente, vê-se atravessar tais textos o sentimento de erosão, este também se exprime na linguagem. Assim, já à primeira abordagem, a dicção destes contos se mostra provocadora, elaborando uma narrativa densa, que exige toda a atenção do leitor para a percepção do seu sentido.Pode-se mesmo dizer que o discurso nelidiano revela-se uma experiência sobre as possibilidades de expressão da tensão pensamento/linguagem fora da norma lingüística e que daí advém a dificuldade que oferece a seu leitor.

Nesse discurso pode-se também identificar a presença de alguns aspectos da retórica do “carnaval”, tais como o estilo grotesco como em “O calor das coisas” e “O sorvete é um palácio”. 

É a presença do mecanismo da paródia que melhor caracteriza a estruturação dos mais significativos textos do livro em questão. Através de tal procedimento perpassam os mais bem sucedidos nesses contos, narrativas advindas de lugares tão variados quanto a Bíblia em “O jardim das oliveiras”; o repertório artístico popular brasileiro em “Disse um campônio a sua amada”; um determinado corpus de valores e padrões de comportamento em “I love my husband” (leia abaixo na íntegra) ou “Tarzan e Beijinho”. Esses textos básicos (e considera-se como texto também o conjunto de valores e padrões de comportamento vigentes a partir dos anos 60 do século XX) constituem o indispensável pano de fundo do conto nelidiano, que os relativiza sem jamais os anular.

Estão, assim, sempre presentes, indicando o quanto o discurso da autora deles se serviu e o quanto deles se afastou e assinalando, dessa maneira, a tonalidadeirônica desse discurso. Assim, por exemplo, a agonia de Cristo é convocada na expressão da angústia daquele que renega seus antigos valores, em “O jardimdas oliveiras”, primeiro conto da obra. Este conto narra, em primeira pessoa, a história de um preso que não suporta ser torturado, que examina os horrores da ditadura e a covardia moral dos seres humanos. Assim como Pedro nega Cristo, o protagonista desta história pretende negar a si mesmo.

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CONTO ESCOLHIDO:

I love my husband

Eu amo meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele suspira exausto da noite sempre maldormida e começa a barbear-se. Bato-lhe à porta três vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição. Não quero meu esforço confundido com um líquido frio que ele tragará como me traga duas vezes por semana, especialmente no sábado. 

Depois, arrumo-lhe o nó da gravata e ele protesta por consertar-lhe unicamente a parte menor de sua vida. Rio para que ele saia mais tranqüilo, capaz de enfrentar a vida lá fora e trazer de volta para a sala de visita um pão sempre quentinho e farto. 

Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a louça, fazendo compras, e por cima reclamo da vida. Enquanto ele constrói o seu mundo com pequenos tijolos, e ainda que alguns destes muros venham ao chão, os amigos o cumprimentam pelo esforço de criar olarias de barro, todas sólidas e visíveis. 

A mim também me saúdam por alimentar um homem que sonha com casas-grandes, senzalas e mocambos, e assim faz o país progredir. E é por isto que sou a sombra do homem que todos dizem eu amar. Deixo que o sol entre pela casa, para dourar os objetos comprados com esforço comum. Embora ele não me cumprimente pelos objetos fluorescentes. Ao contrário, através da certeza do meu amor, proclama que não faço outra coisa senão consumir o dinheiro que ele arrecada no verão. Eu peço então que compreenda minha nostalgia por uma terra antigamente trabalhada pela mulher, ele franze o rosto como se eu lhe estivesse propondo uma teoria que envergonha a família e a escritura definitiva do nosso apartamento. 

O que mais quer, mulher, não lhe basta termos casado em comunhão de bens? E dizendo que eu era parte do seu futuro, que só ele porém tinha o direito de construir, percebi que a generosidade do homem habilitava-me a ser apenas dona de um passado com regras ditadas no convívio comum. 

Comecei a ambicionar que maravilha não seria viver apenas no passado, antes que este tempo pretérito nos tenha sido ditado pelo homem que dizemos amar. Ele aplaudiu o meu projeto. Dentro de casa, no forno que era o lar, seria fácil alimentar o passado com ervas e mingau de aveia, para que ele, tranqüilo, gerisse o futuro. Decididamente, não podia ele preocupar-se com a matriz do meu ventre, que devia pertencer-lhe de modo a não precisar cheirar o meu sexo para descobrir quem mais, além dele, ali estivera, batera-lhe à porta, arranhara suas paredes com inscrições e datas. 

Filho meu tem que ser só meu, confessou aos amigos no sábado do mês que recebíamos. E mulher tem que ser só minha e nem mesmo dela. A idéia de que eu não podia pertencer-me, tocar no meu sexo para expurgar-lhe os excessos, provocou-me o primeiro sobressalto na fantasia do passado em que até então estivera imersa. Então o homem, além de me haver naufragado no passado, quando se sentia livre para viver a vida a que ele apenas tinha acesso, precisava também atar minhas mãos, para minhas mãos não sentirem a doçura da própria pele, pois talvez esta doçura me ditasse em voz baixa que havia outras peles igualmente doces e privadas, cobertas de pêlo felpudo, e com a ajuda da língua podia lamber-se o seu sal?

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Olhei meus dedos revoltada com as unhas longas pintadas de roxo. Unhas de tigre que reforçavam a minha identidade, grunhiam quanto à verdade do meu sexo. Alisei meu corpo, pensei, acaso sou mulher unicamente pelas garras longas e por revesti-las de ouro, prata, o ímpeto do sangue de um animal abatido no bosque? Ou porque o homem adorna-me de modo a que quando tire estas tintas de guerreira do rosto surpreende-se com uma face que lhe é estranha, que ele cobriu de mistério para não me ter inteira? 

De repente, o espelho pareceu-me o símbolo de uma derrota que o homem trazia para casa e tornava-me bonita. Não é verdade que te amo, marido? perguntei-lhe enquanto lia os jornais, para instruir-se, e eu varria as letras de imprensa cuspidas no chão logo após ele assimilar a notícia. Pediu, deixe-me progredir, mulher. Como quer que eu fale de amor quando se discutem as alternativas econômicas de um país em que os homens para sustentarem as mulheres precisam desdobrar um trabalho de escravo. 

Eu lhe disse então, se não quer discutir o amor, que afinal bem pode estar longe daqui, ou atrás dos móveis para onde às vezes escondo a poeira depois de varrer a casa, que tal se após tantos anos eu mencionasse o futuro como se fosse uma sobremesa? 

Ele deixou o jornal de lado, insistiu que eu repetisse. Falei na palavra futuro com cautela, não queria feri-lo, mas já não mais desistia de uma aventura africana recém-iniciada naquele momento. Seguida por um cortejo untado de suor e ansiedade, eu abatia os javalis, mergulhava meus caninos nas suas jugulares aquecidas, enquanto Clark Gable, atraído pelo meu cheiro e do animal em convulsão, ia pedindo de joelhos o meu amor. Sôfrega pelo esforço, eu sorvia água do rio, quem sabe em busca da febre que estava em minhas entranhas e eu não sabia como despertar. A pele ardente, o delírio, e as palavras que manchavam os meus lábios pela primeira vez, eu ruborizada de prazer e pudor, enquanto o pajé salvava-me a vida com seu ritual e seus pêlos fartos no peito. Com a saúde nos dedos, da minha boca parecia sair o sopro da vida e eu deixava então o Clark Gable amarrado numa árvore, lentamente comido pelas formigas. Imitando a Nayoka, eu descia o rio que quase me assaltara as forças, evitando as quedas d'água, aos gritos proclamando liberdade, a mais antiga e miríade das heranças. 

O marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos e o jornal caído no chão, pedia-me, o que significa este repúdio a um ninho de amor, segurança, tranqüilidade, enfim a nossa maravilhosa paz conjugal? E acha você, marido, que a paz conjugal se deixa amarrar com os fios tecidos pelo anzol, só porque mencionei esta palavra que te entristece, tanto que você começa a chorar discreto, porque o teu orgulho não lhe permite o pranto convulso, este sim, reservado à minha condição de mulher? Ah, marido, se tal palavra tem a descarga de te cegar, sacrifico-me outra vez para não vê-lo sofrer. Será que apagando o futuro agora ainda há tempo de salvar-te? 

Suas crateras brilhantes sorveram depressa as lágrimas, tragou a fumaça do cigarro com volúpia e retomou a leitura. Dificilmente se encontraria homem como ele no nosso edifício de dezoito andares e três portarias. Nas reuniões de condomínio, a que estive presente, era ele o único a superar os obstáculos e perdoar aos que o haviam magoado. Recriminei meu egoísmo, ter assim perturbado a noite de quem merecia recuperar-se para a jornada seguinte.

Para esconder minha vergonha, trouxe-lhe café fresco e bolo de chocolate. Ele

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aceitou que eu me redimisse. Falou-me das despesas mensais. Do balanço da firma ligeiramente descompensado, havia que cuidar dos gastos. Se contasse com a minha colaboração, dispensaria o sócio em menos de um ano. Senti-me feliz em participar de um ato que nos faria progredir em doze meses. Sem o meu empenho, jamais ele teria sonhado tão alto. Encarregava-me eu à distância da sua capacidade de sonhar. Cada sonho do meu marido era mantido por mim. E, por tal direito, eu pagava a vida com cheque que não se poderia contabilizar. 

Ele não precisava agradecer. De tal modo atingira a perfeição dos sentimentos, que lhe bastava continuar em minha companhia para querer significar que me amava, eu era o mais delicado fruto da terra, uma árvore no centro do terreno de nossa sala, ele subia na árvore, ganhava-lhe os frutos, acariciava a casca, podando seus excessos. 

Durante uma semana bati-lhe à porta do banheiro com apenas um toque matutino. Disposta a fazer-lhe novo café, se o primeiro esfriasse, se esquecido ficasse a olhar-se no espelho com a mesma vaidade que me foi instilada desde a infância, logo que se confirmou no nascimento tratar-se de mais uma mulher. Ser mulher é perder-se no tempo, foi a regra de minha mãe. Queria dizer, quem mais vence o tempo que a condição feminina? O pai a aplaudia completando, o tempo não é o envelhecimento da mulher, mas sim o seu mistério jamais revelado ao mundo. 

Já viu, filha, que coisa mais bonita, uma vida nunca revelada, que ninguém colheu senão o marido, o pai dos seus filhos? Os ensinamentos paternos sempre foram graves, ele dava brilho de prata à palavra envelhecimento. Vinha-me a certeza de que ao não se cumprir a história da mulher, não lhe sendo permitida a sua própria biografia, era-lhe assegurada em troca a juventude. 

Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E porque viverás a vida do teu marido, nós te garantimos, através deste ato, que serás jovem para sempre. Eu não sabia como contornar o júbilo que me envolvia com o peso de um escudo, e ir ao seu coração, surpreender-lhe a limpidez. Ou agradecer-lhe um estado que eu não ambicionara antes, por distração talvez. E todo este troféu logo na noite em que ia converter-me em mulher. Pois até então sussurravam-me que eu era uma bela expectativa. Diferente do irmão que já na pia batismal cravaram-lhe o glorioso estigma de homem, antes de ter dormido com mulher. 

Sempre me disseram que a alma da mulher surgia unicamente no leito, ungido seu sexo pelo homem. Antes dele a mãe insinuou que o nosso sexo mais parecia uma ostra nutrida de água salgada, e por isso vago e escorregadio, longe da realidade cativa da terra. A mãe gostava de poesia, suas imagens sempre frescas e quentes. 

Meu coração ardia na noite do casamento. Eu ansiava pelo corpo novo que me haviam prometido, abandonar a casca que me revestira no cotidiano acomodado. As mãos do marido me modelariam até os meus últimos dias e como agradecer-lhe tal generosidade? Por isso talvez sejamos tão felizes como podem ser duas criaturas em que uma delas é a única a transportar para o lar alimento, esperança, a fé, a história de uma família. 

Ele é único a trazer-me a vida, ainda que às vezes eu a viva com uma semana de atraso. O que não faz diferença. Levo até vantagens, porque ele sempre a trouxe traduzida. Não preciso interpretar os fatos, incorrer em erros, apelar para as palavras inquietantes que terminam por amordaçar a liberdade. As palavras do homem são aquelas de que deverei precisar ao longo da vida. Não tenho que

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assimilar um vocabulário incompatível com o meu destino, capaz de arruinar meu casamento. 

Assim fui aprendendo que a minha consciência que está a serviço da minha felicidade ao mesmo tempo está a serviço do meu marido. É seu encargo podar meus excessos, a natureza dotou-me com o desejo de naufragar às vezes, ir ao fundo do mar em busca das esponjas. E para que me serviriam elas senão para absorver meus sonhos, multiplicá-los no silêncio borbulhante dos seus labirintos cheios de água do mar? Quero um sonho que se alcance com a luva forte e que se transforme algumas vezes numa torta de chocolate, para ele comer com os olhos brilhantes, e sorriremos juntos. 

Ah, quando me sinto guerreira, prestes a tomar das armas e ganhar um rosto que não é o meu, mergulho numa exaltação dourada, caminho pelas ruas sem endereço, como se a partir de mim, e através do meu esforço, eu devesse conquistar outra pátria, nova língua, um corpo que sugasse a vida sem medo e pudor. E tudo me treme dentro, olho os que passam com um apetite de que não me envergonharei mais tarde. Felizmente, é uma sensação fugaz, logo busco o socorro das calçadas familiares, nelas a minha vida está estampada. As vitrines, os objetos, os seres amigos, tudo enfim orgulho da minha casa. 

Estes meus atos de pássaro são bem indignos, feririam a honra do meu marido. Contrita, peço-lhe desculpas em pensamento, prometo-lhe esquivar-me de tais tentações. Ele parece perdoar-me à distância, aplaude minha submissão ao cotidiano feliz, que nos obriga a prosperar a cada ano. Confesso que esta ânsia me envergonha, não sei como abrandá-la. Não a menciono senão para mim mesma. Nem os votos conjugais impedem que em escassos minutos eu naufrague no sonho. Estes votos que ruborizam o corpo mas não marcaram minha vida de modo a que eu possa indicar as rugas que me vieram através do seu arrebato. 

Nunca mencionei ao marido estes galopes perigosos e breves. Ele não suportaria o peso dessa confissão. Ou que lhe dissesse que nessas tardes penso em trabalhar fora, pagar as miudezas com meu próprio dinheiro. Claro que estes desatinos me colhem justamente pelo tempo que me sobra. Sou uma princesa da casa, ele me disse algumas vezes e com razão. Nada pois deve afastar-me da felicidade em que estou para sempre mergulhada. 

Não posso reclamar. Todos os dias o marido contraria a versão do espelho. Olho-me ali e ele exige que eu me enxergue errado. Não sou em verdade as sombras, as rugas com que me vejo. Como o pai, também ele responde pela minha eterna juventude. É gentil de sentimentos. Jamais comemorou ruidosamente meu aniversário, para eu esquecer de contabilizar os anos. Ele pensa que não percebo. Mas, a verdade é que no fim do dia já não sei quantos anos tenho. 

E também evita falar do meu corpo, que se alargou com os anos, já não visto os modelos de antes. Tenho os vestidos guardados no armário, para serem discretamente apreciados. Às sete da noite, todos os dias, ele abre a porta sabendo que do outro lado estou à sua espera. E quando a televisão exibe uns corpos em floração, mergulha a cara no jornal, no mundo só nós existimos. 

Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-lo, ainda que sem vontade às vezes, ou me perturbe algum rosto estranho, que não é o dele, de um desconhecido sim, cuja imagem nunca mais quero rever. Sinto então a boca seca, seca por um cotidiano que confirma o gosto do pão comido às vésperas, e que

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me alimentará amanhã também. Um pão que ele e eu comemos há tantos anos sem reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento que nos declarou marido e mulher. Ah, sim, eu amo meu marido.

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O Cobrador - Rubem Fonseca

O O Cobrador é um livro de contos publicado em 1979, que reúne contos de Rubem Fonseca. Constituída por dez contos, a coletânea está centrada no tema da violência: a pedofilia e o aborto em “Pierrô da Caverna”; assassinato por encomenda em “Encontro no Amazonas”; as lutas armadas em “Caminho de Assunção”; tráfico de drogas, extorsão e assassinato em “Mandrake”; violência familiar e no trânsito, além de suicídio em “Livro de Ocorrências”; estupro em “Almoço na Serra no Domingo de Carnaval”; doenças infecto-contagiosas e escravismo em “H. M. S. Cormorant em Paranaguá”; grupos de extermínio em “O Jogo do Morto”. Além da discriminação social em “Onze de Maio” e a violência generalizada em “O Cobrador”.

O escritor usa uma narrativa agressiva, com forte realismo, para retratar o submundo do crime e da violência urbana no Rio de Janeiro da década de 70.

Nos contos o autor passa pela Guerra do Paraguai, pelo Amazonas, passando pelo Rio de Janeiro, sempre focando figuras banais mas, que olhadas com um pouco mais de atenção, de banais não tem nada.

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O Cobrador é um livro de contos bem distintos entre si, mas que têm em comum o fato de manterem sempre o seu foco no homem sofrido. Sofrido não pela guerra ou pelas doenças, mas pelo dia a dia, que às vezes exige muito dele próprio, se alimenta de seu sangue e de sua energia psíquica sem que se dê conta, a não ser quando entra em colapso. E para representar isso, escolher as palavras certas dentro do mundo coloquial é uma arte, uma grande arte, que Rubem Fonseca exerce com maestria.

No livro Rubem Fonseca continua a dar preferência ao espaço conflitante da cidade grande, retratando aí o universo da clandestinidade social. A linguagem do escritor, como nas obras anteriores, articula-se equilibradamente entre uma arte de texto e de contexto, valendo tanto pelo seu conteúdo semântico quanto pela sua elaboração estético-formal.

Passagens de obras de Machado de Assis, Haroldo de Campos, Maiakovski, Velimir Khlébnikov e Isaak Babel percorrem o tecido narrativo dos contos, fazendo parte da urdidura do texto que as engloba para com e sobre elas dialogar, valorizando-as, parodiando-as ou distorcendo-as.

O trabalho com citações eruditas provenientes de obras da literatura nacional e ocidental se constitui como uma as principais marcas da ficção de Rubem Fonseca. Vejamos alguns contos da obra.

O COBRADOR

O primeiro conto, que dá nome ao livro, é sobre um homem que sai pelas ruas cobrando o que lhe devem. O que lhe devem? Dignidade. Quem lhe deve? A sociedade. Na primeira cena, ele está em um consultório de dentista e se recusa a pagar a conta. Por que ele pagaria alguma coisa se ninguém lhe pagava a dignidade que ele merecia? E naquele momento ele declara que não faz mais parte daqueles que são cobrados, mas dos cobradores. Mesmo que se precise de uma arma para isso porque esse preço custa muita violência e radicalismo.

PIERRÔ DA CAVERNA

No conto "Pierrô na caverna", um escritor monologa com a “maquineta”, isto é, um gravador. Ele busca assim uma liberdade de expressão que a palavra escrita não lhe permitia. Quando escrevia, precisava buscar o estilo requintado que os críticos tanto elogiavam e que era apenas um trabalho paciente de ourivesaria. Por exemplo, ele jamais escreveria inconciliabilidade. Sua vida corriqueira era o oposto da alegoria sobre a ambição, a soberba e a impiedade que seu prestígio de escritor impelia a incluir numa novela. Apesar da correspondência entre o registro oral e o verbal que percebe, o uso do gravador era para ele uma libertação. Mas uma libertação com uso imoderado do literário que acumulara na memória. Surgiu então uma sarabanda de alusões a textos, a tal ponto que ele chega a usar uma frase em grego. Tem-se aí uma inversão curiosa: a oralidade é que permite uma explosão mais livre do literário verdadeiro, freado no cotidiano pelas convenções mesquinhas da “vida literária”.

"Pierrô na caverna" ironiza a metáfora platônica a fim de enredar o tema da paixão numa corrente de sarcasmos.

Tudo isso está mesclado com uma história do dia-a-dia, mas, também aí, o literário penetra soberano. A menininha de doze anos que ele, um cinqüentão, acaba possuindo, chama-se Sofia como a heroína de Quincas Borba. Em meio do monólogo

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aloucado do cinqüentão repontam ecos machadianos. “Após contemplarmos certas coisas, ou uma determinada coisa, há que mudar de vida”. Parece que ele insiste em usar, ao lado de formas bem coloquiais, outras que só o acervo de elementos literários de sua memória poderia sugerir.

Toda a história lembra algo da Grécia, freqüentemente da Grécia contaminada pela luxúria oriental, a Grécia da decadência. O próprio nome do pai da menina reboa a princípio com a grandiosidade clássica: Milcíades. Mas, ameaçador inicialmente em relação ao “sedutor” de sua filha (parece mais certo: seduzido por ela), amolece e acaba tomando um uísque no apartamento deste (“com voz mais suave e conciliadora: com gelo”). Evidentemente, Grécia e mundo moderno se misturam, os planos do literário e do real acabam embaralhados.

Mas, apesar de toda essa liberdade que o escritor assume diante do gravador, acaba aparecendo a dificuldade de comunicar: “Não sei, estou muito confuso, sinto que estou escondendo coisas de mim, eu sempre faço isso quando escrevo mas nunca pensei que o fizesse falando em segredo com esta fria maquineta”. E, ao mesmo tempo, toda esta dificuldade de comunicação, tão angustiosa, não o impede de contar de modo excelente uma história construída, com início, meio e fim, entre os episódios soltos e a literatura de seu monólogo oral.

Em outros contos, igualmente, percebe-se a repercussão de textos dos escritores mais diversos.

ENCONTRO NO AMAZONAS

Em "Encontro no Amazonas" há uma descrição minuciosa de uma exótica viagem de balsa pelos rios amazônicos.

Neste conto o narrador e seu sócio, Carlos Alberto, perseguem uma pessoa durante anos. "Soubemos que ele havia se deslocado de Corumbá a Belém, via Brasília, de ônibus", começa o conto. O perseguido vinha do Sul, da fronteira com a Argentina, e de repente desaparece não se sabe em que direção: talvez rumo a Macapá ou Manaus, ou quem sabe mais a oeste, para Porto Velho e depois Rio Branco. Nem sequer as feições do homem (deduz-se que é um homem) são claras para os perseguidores. "Sonhei com ele", diz o narrador. "Não era a primeira vez. Eu nunca o tinha visto mas sonhava com ele. Com a descrição que me haviam feito dele." É sempre assim. Nunca se sabe quando se pisa em terreno seguro, nunca se sabe por que acontece o que está acontecendo, nem para quê.

A arte dos contos de Fonseca é retesar a corda das palavras para que expressem o vazio do mundo, a antipatia dos indivíduos pela espécie: neles se mata e se destrói por inércia, se trepa por inércia. O amor pode destruir tudo.

CAMINHO DE ASSUNÇÃO

O conto "Caminho de Assunção" parece retomar, como parte de um sistema literário pessoal, certos procedimentos caros a Isaac Bábel (a frase curta e fustigante; os pormenores de cor e de cheiro que se destacam; a guerra em seu horror, dada incisivamente em primeiros planos eisensteinianos, pode-se dizer - uma sucessão de metonímias que se gravam na memória; tudo isso numa verdadeira “montagem” de episódio, em quatro páginas escassas, mas altamente significativas) teríamos assim histórias da Guerra Russo-Polonesa de 1920 repercutindo numa narrativa sobre a Guerra do Paraguai!

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Neste conto um soldado experimenta o sangue durante a Guerra do Paraguai.

LIVRO DE OCORRÊNCIAS

Fazendo jus a seu título, "Livro de ocorrências" conta, em detalhes, três ocorrências policiais.

Narrado em primeira pessoa por um delegado, "Livro de ocorrências" consegue posicionar-se num interessante ínterim entre o frio e seco registro criminal e a narrativa literária. 

ALMOÇO NA SERRA NO DOMINGO DE CARNAVAL

Neste conto de Rubem Fonseca, o narrador brinca com o diálogo e se angustia com um estupro amoroso.

Zeca odeia sua ex-namorada e a família dela. Quando ele os vê numa festa em sua antiga casa, adquirida pela família da moça depois da pressuposta ruína econômica da família do rapaz, ele executa um plano de vingança contra a moça.

O JOGO MORTO

Neste conto temos a impressão de que o escritor está apresentando um tipo de história com que já nos acostumou e na qual adquiriu um domínio invejável: o conto de violência e banditismo, descritos freqüentemente com simplicidade, num tom cotidiano e isento de patético, como se a morte nestas circunstâncias fosse algo normal e aceitável.

No caso, esta impressão se reforça pelo fato de a ação se passar na Baixada Fluminense, numa das zonas de domínio do Esquadrão da Morte. Eventualmente, alguém pode especular sobre a figura misteriosa de Falso Perpétua atribuir a tudo um tom metafísico. Tem-se, pelo menos, esta possibilidade em suspenso.

"O jogo do morto", é narrado em terceira pessoa e os protagonistas quase sempre são homens perturbados que se relacionam sexualmente com pelo menos uma mulher, mas dentro dessas aparentes restricões, Fonseca experimenta vários estilos e temáticas.

H. M. S. CORMORANT EM PARANAGUÁ

Neste conto, através de um episódio da vida de Álvares de Azevedo, o autor trata de questões como dependência econômica e cultural, escravidão, posição incômoda do intelectual etc.

"H.M.S. Cormorant em Paranaguá" trata do período, no nosso Segundo Império, em que a hostilidade aos ingleses explodiu violentamente, culminando na Questão Christie. Aparecem aí, em profusão, clichês do romantismo, episódios que repetem a biografia de Byron, o próprio Byron também surge no texto, alusões shakespeareanas transmudam-se no kitsch romântico tão comum nos nossos poetas da época, e o personagem, em meio do seu delírio, chega a falar em versos tão pífios que se tornam tocantes.

ONZE DE MAIO

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"Onze de Maio" é o título de um dos contos de O cobrador. Passa-se numa espécie de casa de repouso para velhos e todos vivem em cubículos. O autor põe em ação um personagem-narrador que, internado num asilo, relata os sofrimentos e humilhações dentro daquele estabelecimento. Asilo este, que mais parece uma das prisões descritas por Foucault.

Narrado em primeira pessoa, este conto está fortemente ligados com a realidade social da época.

Em “Onze de Maio”, o jogo de apoderação é, em princípio, apenas intelectual. O narrador, José, um professor de história aposentado, está internado em um asilo e passa a relatar o seu dia-a-dia.

Ele sente imperar naquele lugar o abandono, a degradação, o desrespeito , a humilhação e a privação. José, num primeiro momento, parece conformado com a situação em que se encontra: "um velho inerte, preguiçoso e entediado só pode abrir a boca para bocejar"(FONSECA, 1997, p. 118); entretanto, ele percebe as coisas à sua volta, vê que estão completamente isolados da sociedade, presos em um ambiente que mais parece presídio do que lar de idosos.

Acrescentando-se que nem mesmo entre os idosos é permitido o diálogo, devem ficar o tempo todo em seus cubículos esperando pela morte. Os idosos são condicionados a aceitar o tratamento humilhante que lhes é dado, ficam cada vez mais débeis e assim, não oferecem resistência.

José, vítima do sistema: "Aquele ser velho me foi imposto por uma sociedade corrupta e feroz, por um sistema iníquo que força milhões de seres humanos a uma vida parasitária, marginal e miserável" (FONSECA, 1997, p. 134), percebe que seus pensamentos não podem ser vigiados e que continua sendo o mesmo homem inteligente e astuto que sempre fora. Une-se, então, aos seus companheiros, Pharoux e Cortines, para realizar um motim em busca da liberdade. A luta passa a ser não só intelectual mas também física, pois invadem a casa do diretor do asilo e tomam o poder pela força: "A idéia me agrada. A história ensina que todos os direitos foram conquistados pela força. A fraqueza gera opressão" (FONSECA, 1997, p. 135); ou seja, a afirmação é de que os oprimidos devem fortalecer-se e usar a força contra os opressores. Para o narrador, a única forma de ganhar o complexo jogo da sobrevivência.

Neste conto, a perda da liberdade individual está em cada idoso internado, pois são vigiados diuturnamente pelos funcionários. Não parecendo um cerceamento da liberdade, mas sim um excesso de cuidados. O narrador, todavia, revela que não está sendo bem cuidado, ao contrário, a alimentação é péssima, não tem atendimento médico, não tem boas condições de higiene, os internos não podem conversar entre si e devem apenas assistir televisão e dormir. Esses acontecimentos levam o homem a um sentimento de desencanto da vida e a uma sensação de vazio existencial que José busca suprir com a tentativa de incitar uma revolução, uma luta para que o ser humano venha a ter um pouco mais de dignidade ou, pelo menos, seja respeitado em sua diferença.

Em “Onze de Maio”, a narrativa passa-se em ambiente restrito e fechado, um asilo de idosos. Porém, a distinção social se dá em três níveis. A classe média-alta, com seus privilégios, está na figura do diretor do Lar Onze de Maio, que tem o escritório e a casa em uma torre, símbolo da altivez e superioridade, vista também em sua

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postura. O Proletariado são os funcionários do asilo, chamados de “Irmãos”, lembram uma instituição religiosa; são apresentados como pessoas que se deixam manipular pelo sistema e obedecem às ordens como máquinas programadas. O marginalizado é representado pelos internos, que, ao se rebelarem, desencadeiam a luta entre os estratos sociais. Nesse conto, a pressão exercida de cima para baixo, eclode com a reação violenta do narrador e seus amigos, que invadem a casa do diretor na tentativa de se sobrepor àquele que os dominava.

O que ocorre com maior freqüência na narrativa de “Onze de Maio”, é o "descentramento". Segundo ele, Foucault fala em “poder disciplinar”, Em “Onze de Maio” o asilo é uma instituição de controle criada pelo governo da espécie humana. A vigilância e o controle são exercidos no sentido de transformar os internos em seres apáticos e de fácil manipulação. Os funcionários são controlados pela disciplina que aprenderam a ter para manutenção de seus empregos. O diretor é o representante, junto com os funcionários, desse controle das massas no sentido de evitar uma reação ao poder constituído. O narrador e seus amigos, ao reagirem, formam um grupo com o mesmo interesse, buscar a liberdade ou melhores condições, para assim, viver com mais dignidade o resto de suas vidas. Contudo, ao conquistarem a primeira etapa: fazer de reféns o diretor e sua mulher, os interesses se diversificam quando o narrador pensa na seqüência da ação, os outros dois vão satisfazer a fome com alimentos que há muito não comiam. Enquanto no narrador afloram instintos sexuais, quando deseja passar a mão no corpo nu da mulher, em Pharoux são os instintos destrutivos que afloram, quando faz pequenas perfurações no pescoço do diretor.

Este conto, na realidade, também é baseado na diferença e na exclusão de pessoas da convivência social. Os excluídos então desafiam e questionam a autoridade constituída e as instituições em geral e, mesmo não apresentando soluções para os problemas, são valores positivos pelo simples fato de exporem o conhecimento de tal exclusão. Por estarem calcados na diferença, onde o narrador sente-se vítima do sistema social elitista e preconceituoso, o conto apresenta as “alteridades da violência”, que estão em torno de um “eu” que se sente totalmente atacado, vitimado.

Esse "eu" de estrutura violenta está em José, narrador de “Onze de Maio”, que o possui com força permanente no ser. Ele se sente humilhado e excluído da vida social por ser velho, mas consegue transpor obstáculos aparentemente intransponíveis para um homem de sua idade. O narrador justifica sua violência, pela sofrida diante da sociedade que o excluiu e pelo tratamento recebido do diretor e funcionários do asilo, que supostamente, estariam tentando matá-lo.

Em “Onze de Maio”, a instituição é representante do poder constituído enquanto os internos são a força que enfrenta este poder, ambos com um fim superior. A primeira, justifica a violência contra os velhos pela crise financeira do país e por eles não estarem mais produzindo; os internos justificam a sua reação violenta pela busca da liberdade e da dignidade humana. Neste conto o veículo de comunicação de massa que aparece com mais evidência é a televisão. Ela está presente em toda a narrativa, é utilizada como meio de alienação dos internos do asilo: "Vamos, vamos, veja a televisão, divirta-se, não fique aí imaginando coisas tristes, preocupando-se à toa" (FONSECA, 1997, p. 125); mas esta alienação se dá, preponderantemente, pelo fato de ser um circuito interno de televisão, que passa a mesma programação o tempo todo: "A TV fica ligada o dia inteiro. Deve haver, também, alguma razão para isso. Os programas são transmitidos em circuito fechado de algum lugar do Lar. Velhas novelas, transmitidas sem

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interrupção." (FONSECA, 1997, p. 117); o narrador abre a possibilidade da televisão ser algo bom, porém, ela deve ser assistida sempre com um olhar crítico:

Os Irmãos [...] também têm televisão no quarto e assistem a outros programas que não são transmitidos para nós. Sei, por perguntas que faço inocentemente, que eles também dormem em frente ao vídeo. Televisão é muito interessante, descontando o sono e o esquecimento.(FONSECA, 1997, p. 126)

Este conto, bem como o conto "O Cobrador", levanta várias questões sobre a sociedade pós-moderna, mas neste trabalho o objetivo foi buscar um entendimento da crise existencial vivida pelas personagens e o porquê de suas ações violentas.

"Onze de Maio" começa com a questão da crise de identidade coletiva e termina com a crise de identidade individual; as três personagens descobrem que estão sendo dopados e têm em comum o objetivo de libertar-se da situação humilhante, mas quando vencida a primeira etapa, perdem completamente o sentido da revolução e cada um passa a resolver o seu desejo imediato.

Poemas Escolhidos – Claudio Manuel da Costa

O autor de Poemas Escolhidos, Cláudio Manuel da Costa, é um poeta do Arcadismo, gênero literário do clássico e do útil, da vida simples. Tem, também, características

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do momento barroco, gênero do exagero e do excesso. No soneto VIII deixa-nos perceber, ainda, algo do Romantismo, pois retrata nos versos seu estado da alma. Percebe-se que esse inconfidente viajou pelo mundo das letras, deixando sua vida nas páginas da História. Poemas Escolhidos faz parte do livro Obras, publicado em 1768 e considerado o marco inicial do Arcadismo. O autor retrata sua melancolia, tristeza e sofrimento, pela rejeição da mulher amada e pelos constantes conflitos internos vivenciados. A poesia de Cláudio Manuel da Costa revela a fidelidade cultural à metrópole (civilização) e a fidelidade afetiva à terra natal (vida rústica). Os poemas mostram a vida do escritor, natural de Mariana, ex-Ribeirão do Carmo, encantado com as novidades renascentistas da Europa. O escritor lamenta não poder vivenciar de perto a nova cultura européia, o centro do saber cultural. No entanto, não consegue se distanciar das suas origens. Entre os temas apresentados, o poeta fala da paisagem, relacionando pedras e suas variantes. Há em seus versos penhas, penedos, penhascos, rochedos, paisagem sombria e crepuscular. Isto nos faz lembrar de sua difícil luta pelos ideais de liberdade e da perda da mulher amada. Daí a simbologia da pedra, sugerindo a dureza de uma vida. A decepção amorosa domina os seus sonetos. Volta, ainda, a falar em pedra, comparando-a à rudeza feminina. Comenta sobre uma pastora e um penhasco, indicando que a frieza da mulher é superior à da rocha. Sentimos, ao ler seus versos, que nenhuma mulher o acolheu, que vivia em uma eterna e constante decepção amorosa. A paisagem no livro é o retrato do seu estado de espírito. A linguagem dos sonetos é rebuscada, cheia de recursos estilísticos e figuras de linguagem definindo o que vivencia. Sonetos com imensa riqueza vocabular que retratam uma vida de tristezas, lutas, decepções. Vida que se acaba quando ele se enforca durante o processo movido pela coroa portuguesa. Nome que fica para sempre escrito na História e na Literatura Brasileira.

Senhora – José de Alencar

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Análise

Senhora foi publicado em 1875. O romance pode ser considerado uma das obras-primas de seu autor e uma das principais da literatura brasileira. Uma vez que trata do tema do casamento burguês, ou seja, baseado no interesse financeiro, pode ser considerada precursora do Realismo ou pré-realista.  

Alencar classifica a obra dentro de seus “perfis de mulher”, já que concentra na mulher o papel mais importante dentro da sociedade de seu tempo. Aurélia é a protagonista do romance, uma jovem mulher dividida entre o amor e o ódio, o desejo e o desprezo pelo homem que ama. Essa personalidade dividida apresenta um desvio psíquico ocasionado a partir do rompimento do noivo, Fernando Seixas, e que causou um certo caso de esquizofrenia na personagem.

A personagem Aurélia Camargo é idealizada como uma rainha, como uma heroína romântica, pelo narrador. De "régia fronte, coroada de diadema de cabelos castanhos, de formosas espáduas", essa personagem, no entanto, é ao mesmo tempo "fada encantada" e "ninfa das chamas, lasciva salamandra". Ao estereótipo da "mulher-anjo" romântica, o narrador acrescenta, assim, um elemento demoníaco, elemento que, em vez de explicitar, deixa sugerido, "sob as pregas do roupão de cambraia que a luz do sol não ilumina", e também "sob a voz bramida, o gesto sublime, escondendo o frêmito que lembrava silvo de serpente" ou quando "o braço mimoso e torneado faz um movimento hirto para vibrar o supremo desprezo". Tal maneira de caracterizar a personagem - pelos elementos exteriores - é típica do narrador observador. Tal caracterização, por sua vez, humaniza a personagem, afastando-a do maniqueísmo romântico e acrescentando-lhe traços realistas.

O conflito entre os protagonistas gera momentos de grande emoção e sofrimento. É desse embate entre o desejo de vingança e o desejo de amar em plenitude que nasce a ação psíquica que se transforma em enredo. Se a temática e o psiquismo da obra representam antecipações realistas, ambos fortemente consolidados pela evidente critica de uma sociedade que valoriza mais a aparência e o dinheiro que os sentimentos humanos, a idealização das personagens reflete o universo romântico presente na obra. O desenlace configura, por si só, a vitória do Romantismo em Alencar sobre a possibilidade realista.

Para melhor entendermos a obra, devemos perceber as interações do artista que a criou. Alencar acreditava sinceramente na vitória do homem na reforma de si mesmo e da sociedade. Não havia nele ainda o traço de pessimismo profundo e de ceticismo que tantaspáginas maravilhosas fizeram nascer em Machado de Assis. É dessa crença nos sentimentos humanitários que bruta o Romantismo alencariano, do qual bruta a força vital de suas personagens. Divididos entre o ódio e o perdão, a necessidade financeira e os apelos do coração, vencem sempre os segundos. O mesmo caso pode ser observado na construção do romance Lucíola, mas com um final trágico. Em ambos os romances a premente necessidade do dinheiro, veículo central de uma sociedade aristocrática e burguesa, obriga personagens a trocarem seus sentimentos por dinheiro. O grande vilão, o antagonista, é sempre a sociedade e seus hábitos doentios e seus costumes imorais. Se é essa a pretensão do autor, o seu recado para a sociedade de seu tempo, devemos classificar Senhora com um romance de costumes. Se o cenário das personagens é o Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, podemos também considerá-lo como um romance urbano com traços de psicologismo e critica social.

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Estrutura da obra

Senhora é um romance dividido em quatro partes e não obedece uma ordem cronológica, isto é, a primeira parte (O Preço), narra os episódios atuais, enquanto que a segunda parte (Quitação), fala-nos do passado de Aurélia, seguem os capítulos: Posse e Resgate. A narrativa é feita por um narrador que parece penetrar na alma de Aurélia Camargo para transmitir suas confidências mais intimas. 

Esses títulos contrariam ostensivamente o espírito de uma história de amor, como efetivamente é o romance Senhora. Mas, como se trata de um amor contrariado pelos hábitos sociais, fica clara a idéia de que os títulos foram assim escolhidos para hipertrofiar a metáfora contida no livro. Eles explicitam, em tom caricatural e hiperbólico, a idéia de que a compra efetuada por Aurélia é uma metáfora do casamento por interesse, muito corrente na época, mas sempre disfarçado por elegantes e frágeis encenações sociais.

Enredo

Na primeira parte, O Preço,  Aurélia Camargo dá a conhecer para o leitor: jovem de 18 anos, linda e debutando nos bailes. A principal ação desta primeira parte do romance começa quando Aurélia pede ao tio que ofereça ao jovem Fernando Seixas, recém-chegado na corte após uma longa viagem ao Nordeste, a sua mão em casamento. Entretanto, uma aura de mistério cobre o pedido, pois Fernando não deve saber a identidade da pretendente e além disso a quantia do dote proposto deve ser irrecusável: cem contos de réis ou mais, se necessário.

A habilidade mercantil de Lemos, que chega a ser caricata, e a péssima situação financeira de Fernando - moço elegante mas pobre, que gastou o espólio deixado pelo pai e que precisava restituí-lo à família para a compra do enxoval da irmã - fazem com que dêem certo os planos de Aurélia.

Na noite de núpcias, Fernando se surpreende ao ver nas mãos de Aurélia, um recibo assinado por ele aceitando um adiantamento do dote. Aurélia se enfurece, acusa-o de mercenário e venal. E ela começa a contar a vida e os motivos que a levaram a comprá-lo.

Na segunda parte, Quitação, conhecemos a vida de ambos os protagonistas. Aqui há um retorno aos acontecimentos em suas vidas, o que explica ao leitor o procedimento cruel de Aurélia em relação a Fernando.

Na terceira parte, Posse, a história retorna ao quarto do casal. Vemos Fernando arrasado de vergonha, mas Aurélia toma o seu silêncio como cinismo. É o início da fase de hipocrisia conjugal.

Na quarta parte, Resgate, temos o desenrolar da trama. Intensificam-se os caprichos e as contradições do comportamento de Aurélia, ora ferina, mordaz, insaciável na sua sede de vingança, ora ciumenta, doce, apaixonada. Intensifica-se também a transformação de Fernando, que não usufrui da riqueza de Aurélia, tornando-se modesto nos trajes, assíduo na repartição onde trabalhava, e assim adquirindo, sem perder a elegância, uma dignidade de caráter que nunca tivera.

No final, Fernando, um ano após o casamento, negocia com Aurélia o seu resgate. Devolve-lhe os vinte contos de réis, que correspondiam ao adiantamento do montante total do dote com o qual possibilitava o casamento da irmã, e mais o

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cheque que Aurélia lhe dera, de oitenta contos de réis, na noite de núpcias.

Separam-se, então, a esposa traída e o marido comprado, para se reencontrarem os amantes, a última recusa de Seixas sendo debelada quando Aurélia lhe mostra o testamento que fizera, quando casaram, revelando-lhe o seu amor e destinando-lhe toda a sua fortuna.

O enredo deste romance mostra claramente a mistura de elementos romanescos e da realidade. Foco narrativo - O romance é narrado em terceira pessoa por um narrador onisciente, ou seja, que tudo sabe sobre as personagens, penetrando em seus pensamentos e em sua alma. Esse narrador é também intruso, já que interfere em vários momentos, apresentando-se ao leitor. A técnica narrativa empregada por Alencar em Senhora é sem dúvida bem moderna, se tomarmos como base suas obras anteriores, já que o autor utiliza digressões.

Tempo - O tempo é cronológico, tomando como base o século XIX, durante o Segundo Império. Entretanto, não há linearidade, já que a história é contada a partir de flash-back.

Espaço

O espaço central da narrativa é Rio de Janeiro.

Personagens

As personagens são bem construídas e já apresentam certa profundidade psicológica. Ao contrário de várias personagens românticas, não constituem meros tipos sociais, já que são capazes de atitudes inesperadas.

1. Fernando Seixas: Jovem estudante de Direito, bem vestido e apreciador da vida em sociedade. A falta de dinheiro o conduz a acreditar que a única maneira de evitar a ruína final é casando-se com um bom dote. Envolvido pelo amor de Aurélia, chega a pensar em abandonar os hábitos caros, mas acaba percebendo que não consegue viver longe da sociedade. Depois do casamento por interesse, é humilhado, arrepende-se e consegue resgatar o dinheiro que recebeu a Aurélia.

2. Aurélia Camargo: Moça pobre. Aurélia é decente e apaixonada por Fernando Seixas. A decepção amorosa transforma-a num mulher vingativa e fria, mas que não consegue disfarçar seu verdadeiro sentimento por Seixas. Seu comportamento é típico de uma esquizofrênica, já que se vê dividida entre sentimentos contraditórios até o final do romance. O amor parece ser sua salvação, redimindo-a de perder o homem que ama por causa de seu orgulho.

3. Dona Emília: Viúva, mãe de Aurélia. Mulher honesta e séria, que amargou imenso sofrimento por causa de seu amor por Pedro Camargo.

4. Pedro Camargo: Pai de Aurélia, filho natural de um rico fazendeiro do interior de São Paulo, de quem nutria grande medo. Morre à mingua por não conseguir confessar seu casamento contra a vontade do pai.

5.  Lourenço Camargo: Avô de Aurélia. Pai de Pedro. Homem duro e rústico, mas que procura ser justo depois que descobre a existência do casamento do filho.

6.   D. Firmina: Parente distante de Aurélia e que lhe serve de companhia quando

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fica rica.

7.  Lemos: Tio de Aurélia. “Velho de pequena estatura, não muito gordo, mas rolho e bojudo como um vaso chinês. Apesar de seu corpo rechonchudo tinha certa vivacidade buliçosa e saltitante que lhe dava petulância de rapaz, e casava perfeitamente com seus olhinhos de azougue.” Foi escolhido por Aurélia como tutor porque a moça podia dominá-lo facilmente.Estilo de época e individual

Alencar não destoa do Romantismo em voga. A sua visão de mundo é baseada na emoção, e o mundo urbano, com seus problemas políticos e econômicos, o aborrece, por isso foge para o passado; escapa para os lugares selvagens. Suas obras procuram retratar um Brasil e personagens mais ideais do que reais, mais como ele gostaria que moralmente fossem (românticos e moralistas) do que objetivamente eram (realistas). Senhora é um romance de características definidas de forma romântica, mas que já traduz uma temática realista: a crítica ao casamento burguês.

Problemática e principais temas

O conflito amoroso entre os protagonistas nasce desse choque entre os sentimentos e o interesse econômico. Aurélia Camargo é uma mulher de personalidade forte, carregada de sentimentalismo romântico. Daí sua contradição, sua personalidade marcada por extremos psíquicos: dá maior valor aos sentimentos, mas vale-se do dinheiro para atingir seu objetivo de obter o grande amor de sua vida, Fernando Seixas. Dessa forma, o dinheiro acaba impondo o valor burguês que lhe era atribuído na sociedade do século XIX. A realização amorosa só se cumpre depois de Aurélia vencer a aparente esquizofrenia que parece conduzi-la á dúvida quanto às intenções de Fernando Seixas. O comportamento esquizóide manifesta-se nas atitudes antitéticas de desejar o amor do marido com todas as suas forças, mas lutar contra o mesmo até suas últimas reservas.

Questões 1. (PUC-SP) A questão central, proposta no romance Senhora, de José de Alencar, é a do casamento. Considerando a obra como um todo, indique a alternativa que não condiz com o enredo do romance:

a) O casamento é apresentado como uma transação comercial e, por isso, o romance estrutura-se em quatro partes: preço, quitação, posse, resgate.b) Aurélia Camargo, preferida por Fernando Seixas, compra-o e ele, contumaz caça-dote, sujeita-se ao constrangimento de uma união por interesse.c) O casamento é só de fachada e a união não se consuma, visto que resulta de acordo no qual as aparências sociais devem ser mantidas.d) A narrativa marca-se pelo choque entre o mundo do amor idealizado e o mundo da experiência degradante governado pelo dinheiro.e) O romance gira em torno de intrigas amorosas, de desigualdade econômica, mas, com final feliz, porque, nele, o amor tudo vence.

2. (FATEC) “Seixas aproximou-se do toucador, levado por indefinível impulso; e entrou a contemplar minuciosamente os objetos colocados em cima da mesa de mármore; lavores de marfim, vasos e grupos de porcelana fosca, taças de cristal lapidado, jóias do mais apurado gosto.À proporção que se absorvia nesse exame, ia como ressurgindo à sua existência anterior, a que vivera até o momento do cataclismo que o submergira. Sentia-se renascer para esse fino e delicado materialismo, que tinha para seu espírito aristocrático tão poderosa sedução

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e tão meiga voluptuosidade.Todos esses mimos da arte pareciam-lhe estranhos e despertavam nele ignotas emoções; tal era o abismo que o separava do recente passado. Era com uma sofreguidão pueril que os examinava um por um, não sabendo em qual se fixar. Fazia cintilar os brilhantes aos raios de luz; e aspirava a fragrância que se exalava dos frascos de perfume com um inefável prazer.Nessa fútil ocupação demorou-se tempo esquecido. Porventura sua memória atraída pelas reminiscências que suscitavam objetos idênticos a esses, remontava o curso de sua existência, e descendo-o, depois o trazia àquela noite fatal em que se achava e à pungente realidade desse momento.Recuou com um gesto de repulsão.” (José de Alencar, Senhora)

Considerando este trecho no contexto da obra a que pertence, é correto afirmar que, nele, a personagem Fernando Seixas:

a) rejeita os objetos que o cercam, porque deseja conquistar posição elevada em ambientesb) dá-se conta de que aqueles objetos, que tanto valorizara, nesse momento eram a comprovação dos erros que praticara.c) experimenta o fascínio por objetos luxuosos que não são seus e decide lutar para conseguir possuí-los.d) sente renascer nele a revolta por não dispor de meios econômicos para possuir objetosluxuosos.e) relembra infantilmente sua existência anterior, quando podia usufruir do luxo que agora perdia, e lamenta sua situação atual.

3. (ITA) O romance Senhora (1875) é uma das obras mais representativas da ficção de José de Alencar. Nesse livro, encontramos a formulação do ideal do amor romântico: o amor verdadeiro e absoluto, quando pode se realizar, leva ao casamento feliz e indissolúvel. Isso se confirma, nessa obra, pelo fato de:

a) o par romântico central — Aurélia e Seixas — se casar no início do romance, pois se apaixonam assim que se conhecem.b) o amor de Aurélia e Seixas surgir imediatamente no primeiro encontro e permanecer intenso até o fim do livro, quando o casal se une efetivamente.c) o casal Aurélia e Seixas precisar vencer os preconceitos sócio-econômicos para se casar, pois ela é pobre e ele é rico.d) a união efetiva só se realizar no final da obra, após a recuperação moral de Seixas, que o torna digno do amor de Aurélia.e) o enriquecimento repentino de Aurélia possibilitar que ela se case com Seixas, fatos que são expostos logo no início do livro.

4. (UNIFESP) Leia o trecho a seguir, de José de Alencar.

Convencida de que todos os seus inúmeros apaixonados, sem exceção de um, a pretendiam unicamente pela riqueza, Aurélia reagia contra essa afronta, aplicando a esses indivíduos o mesmo estalão.Assim costumava ela indicar o merecimento relativo de cada um dos pretendentes, dando-lhes certo valor monetário. Em linguagem financeira, Aurélia contava os seus adoradores pelo preço que razoavelmente poderiam obter no mercado matrimonial.

O romance Senhora, ilustrado pelo trecho:

a) representa o romance urbano de Alencar. A reação de ironia e desprezo com que Aurélia trata seus pretendentes, vistos sob a ótica do mercado matrimonial, tematiza o casamento como forma de ascensão social.b) mescla o regionalismo e o indianismo, temas recorrentes na obra de Alencar. Nele, o escritor tematiza, com escárnio, as relações sentimentais entre pessoas de classes sociais distintas, em que o pretendente é considerado pelo seu valor monetário.c) é obra ilustrativa do regionalismo romântico brasileiro. A história de Aurélia e de seus

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pretendentes mostra a concepção do amor, em linguagem financeira, como forma de privilégio monetário, além de explorar as relações extraconjugais.d) denuncia as relações humanas, em especial as conjugais, como responsáveis por levar as pessoas à tristeza e à solidão dada a superficialidade e ao interesse com que elas se estabelecem. Trata-se de um romance urbano de Alencar.e) tematiza o adultério e a prostituição feminina, representados pelo interesse financeiro como forma de se ascender socialmente. Essa obra explora tanto aspectos do regionalismo nacional como os valores da vida urbana.

5. (PUC-SP) A questão central, proposta no romance Senhora, de José de Alencar, é a do casamento. Considerando a obra como um todo, indique a alternativa que não condiz com o enredo do romance:

a) O casamento é apresentado como uma transação comercial e, por isso, o romance estrutura-se em quatro partes: preço, quitação, posse, resgate.b) Aurélia Camargo, preterida por Fernando Seixas, compra-o e ele, contumaz caça-dote, sujeita-se ao constrangimento de uma união por interesse.c) O casamento é só de fachada e a união não se consuma, visto que resulta de acordo no qual as aparências sociais devem ser mantidas.d) A narrativa marca-se pelo choque entre o mundo do amor idealizado e o mundo da experiência degradante governado pelo dinheiro.e) O romance gira em torno de intrigas amorosas, de desigualdade econômica, mas, com final feliz, porque, nele, o amor tudo vence

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Triste Fim de Policarpo Quaresma – Lima Barreto

Análise da obra

Publicado inicialmente em folhetins do Jornal do Comércio entre agosto e outubro de 1911 e depois em livro em 1916, Triste Fim de Policarpo Quaresma, obra mais famosa de Lima Barreto, condensa em si muitas das características que consagraram seu autor como o melhor de seu tempo.

A obra focaliza fatos históricos e políticos ocorridos durante a fase de instalação da república, mais precisamente no governo de Floriano Peixoto (1891 - 1894). Seus ataques, sempre escachados, derramam-se para todos os lados significativos da sociedade que contempla, a Primeira República, ou seja, as primeiras décadas desse regime aqui no Brasil.

Assim, Lima Barreto encaixa-se no Pré-Modernismo (1902-22), pois, respeita códigos literários antigos (principalmente o Naturalismo, conforme anteriormente apontado), mas já apresenta uma linguagem nova, mais arejada em relação ao momento anterior.

O romance narrado em terceira pessoa, descreve a vida política do Brasil após a Proclamação da República, caricaturizando o nacionalismo ingênuo, fanatizante e xenófobo do Major Policarpo Quaresma, apavorado com a descaracterização da cultura e da sociedade brasileira, modelada em valores europeus.

Divertido e colorido no início, o livro se desdobra no sofrimento patético do major Quaresma, incompreendido e martirizado, convertido numa espécie de Dom Quixote nacional, otimista incurável, visionário, paladino da justiça, expressando na sua ingenuidade a doçura e o calor humano do homem do povo.

O romance anuncia no título o seu desfecho pouco alegre, apesar do enredo em que os efeitos cômicos estão aliados ao entusiasmo ingênuo do personagem central e ao seu inconformismo e obsessões. Quaresma é um tipo rico em manifestações inusitadas: seus requerimentos pedindo o tupi-guarani como língua oficial, seu jeito de receber chorando as visitas, suas pesquisas folclóricas; tudo procurando despertar o riso no leitor que, no final, presencia sua morte solitária e triste: “Com tal gente era melhor tê-lo deixado morrer só e heroicamente num ilhéu qualquer, mas levando para o túmulo inteiramente intacto o seu orgulho, a sua doçura, a sua personalidade moral, sem a mácula de um empenho, que diminuísse a injustiça de sua morte, que de algum modo fizesse crer aos algozes que eles tinham direito de matá-lo”. 

Outro personagem que merece especial atenção é Ricardo Coração dos Outros, o seresteiro do subúrbio, que enriquece a narrativa em que se mostra a paixão pela cidade, os bairros distantes, as serenatas e os violões compondo um cenário pitoresco do Rio de Janeiro da época.

Estrutura da obra

A obra divide-se em três partes. 

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Primeira parte - Retrata o burocrata exemplar, patriota e nacionalista extremado, interessado pelas coisas do Brasil: a música, o folclore e o tupi-guarani. Esta parte está ligada à Cultura Brasileira, onde conhecemos a personagem e suas manias. Sabe tudo sobre a geografia do nosso país. Sua casa é repleta de livros que se refiram à nossa nação. O que come e bebe é tipicamente brasileiro. Até o seu jardim só possui plantas nativas. Chega a estudar violão – instrumento de má fama na época, pois era associado a malandros – com Ricardo Coração dos Outros, já que descobre que a modinha, estilo tipicamente brasileiro, era tocada com esse instrumento.

Duas são suas grandes ações. A primeira está em estudar o folclore do Brasil para incrementar uma festa de seu vizinho, General Albernaz com algum folguedo popular. Descobre então o Tangolomango, brincadeira que consistia na dança com dez crianças, até que um sujeito, com uma máscara, deveria pegar uma a uma sucessivamente. O problema é que Quaresma empolgou-se tanto com a brincadeira que terminou passando mal, por falta de ar, ou, como se dizia na época, acabou tendo um “tangolomango”. Por aí já se tem uma idéia da ironia do autor.

O clímax da falta de senso de ridículo do protagonista foi ter mandado à Câmara um requerimento, pedindo para que a língua oficial do Brasil deixasse de ser o Português, idioma emprestado e por isso incentivador de inúmeras  polêmicas entre nossos gramáticos (seu argumento, nesse aspecto, é o de que não podemos dominar um idioma que não é nosso e que, portanto, não respeita a nossa realidade. Idéias bastante interessantes, mas apenas isso, pois é ridículo imaginar que uma língua seja mudada por decreto). No seu lugar propõe o tupi.

Resultado: vira motivo de chacota até na Imprensa. Seus colegas de trabalham aumentam as constantes ironias que jogam sobre a ele. Um chega a dizer que Quaresma estava errado ao querer impor aos outros uma língua que nem ele próprio, autor do requerimento, dominava. Idéia inverídica, tanto que o protagonista, irado, não percebe que escreve um ofício em tupi. Quando o documento chega aos superiores, a conseqüência é nefasta: o protagonista é internado no hospício.

Segunda parte - Mostra o Major Quaresma desiludido com as incompreensões o que o faz se retirar para o campo onde se empenha na reforma da agricultura brasileira e no combate às saúvas. Nesta parte, dedicada à Agricultura Brasileira, vemos Quaresma refugiar-se num sítio que compra, em Curuzu, e tem por intenção provar que o solo brasileiro é o mais fértil do mundo. Dedica-se, portanto, a estudar tudo o que se refere a agricultura. Mais uma vez, distancia-se, em sua perfeição, da realidade. Torna-se defeituoso.

Terceira parte - Acentua-se a sátira política. Motivado pela Revolta da Armada, Quaresma apóia Floriano Peixoto e, aos poucos, vai identificando os interesses pessoais que movem as pessoas, desnudando o tiranete grotesco em que se convertera o "Marechal de Ferro". Quaresma larga seus projetos agrícolas ao saber que estava ocorrendo a Revolta da Armada, quando marinheiros se rebelaram contra o presidente Floriano Peixoto. Na filosofia do protagonista, sua pátria só seria grande quando a autoridade fosse respeitada. Em defesa desse ideal, volta para a Capital, para alistar-se nas tropas de defesa do regime.

O interessante é notar a alienação em que a população mergulha diante de um tema tão preocupante como uma revolta. Recuperada do susto dos constantes tiroteios, parte da população chega a ver tudo como um festival, havendo até quem

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colecionasse as balas perdidas.

Enfim, a revolta é sufocada. Quaresma é transferido para a Ilha das Cobras, onde trabalhará como carcereiro. É então que presencia uma cena que lhe é chocante. Um juiz aparece por lá e distribui (esse termo é o mais adequado mesmo) as condenações aleatoriamente, sem julgamento ou qualquer outro tipo de análise. Indignado, pois acreditava que sua pátria, para ser perfeita, tem de estar sustentada em fortes ideais de justiça, escreve uma carta para o presidente, pedindo a reparação de tal erro.

Infelizmente, o herói não foi interpretado adequadamente, o que revela uma certa miopia dos governantes. Por causa de tal pedido, é preso e condenado à morte, pois foi visto como uma traição. Há nesse ponto uma ironia, pois justo o único personagem que se preocupou com o seu país foi considerado traidor, enquanto outros, que se aproveitaram no conflito para conseguir vantagens políticas, como Armando Borges, Genelício e Bustamante, saíram-se vitoriosos.

No final, tal qual Dom Quixote, Quaresma acorda, recobra a razão. Percebe que a pátria, por que sempre lutara, era uma ilusão, nunca existira. Num momento pungente, tocante, descobre que passara toda a sua vida numa inutilidade.

Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, na configuração dos elementos da narrativa, notamos a presença predominante da ironia e as impertinências contidas na figura central do romance, Quaresma, alegando que o tupi, por ser a língua nativa brasileira proporcionaria melhor adaptação ao nosso aparelho fonador. Além disso, segundo ele, os portugueses são os donos da língua e, para alterá-la teríamos de pedir licença a eles. 

O narrador é solidário com sua personagem pois não deixa de criticar os que zombam de Quaresma. No livro, encontramos ora um Quaresma, entusiasmado, apaixonado pelo Brasil, ora um Quaresma desiludido, amargo, diante da ingratidão do país para com seus bons objetivos. Nesse ponto, o que vemos é um personagem condenado à solidão, já que seus ideais batem de frente com os interesses políticos e com o capital estrangeiro.

Desse modo, temos o personagem central vivendo três momentos na obra: valorizando as coisas da terra – a história, a geografia, a literatura, o folclore; no sítio do sossego a frustrada busca de uma solução para o problema agrário, o que faz o romance se vestir de uma profunda atualidade; finalmente, o envolvimento na Revolta da Armada, o que acaba lhe custando a vida.

Enredo

O funcionário público Policarpo Quaresma, nacionalista e patriota extremado, é conhecido por todos como major Quaresma, no Arsenal de Guerra, onde exerce a função de subsecretário. Sem muitos amigos, vive isolado com sua irmã Dona Adelaide, mantendo os mesmos hábitos há trinta anos. Seu fanatismo patriótico se reflete nos autores nacionais de sua vasta biblioteca e no modo de ver o Brasil. Para ele, tudo do país é superior, chegando até mesmo a "amputar alguns quilômetros ao Nilo" apenas para destacar a grandiosidade do Amazonas. Por isso, em casa ou na repartição, é sempre incompreendido.

Esse patriotismo leva-o a valorizar o violão, instrumento marginalizado na época, visto como sinônimo de malandragem. Atribuindo-lhe valores nacionais, decide

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aprender a tocá-lo com o professor Ricardo Coração dos Outros. Em busca de modinhas do folclore brasileiro, para a festa do general Albernaz, seu vizinho, lê tudo sobre o assunto, descobrindo, com grande decepção, que um bom número de nossas tradições e canções vinha do estrangeiro. Sem desanimar, decide estudar algo tipicamente nacional: os costumes tupinambás. Alguns dias depois, o compadre, Vicente Coleoni, e a afilhada, Dona Olga, são recebidos no melhor estilo Tupinambá: com choros, berros e descabelamentos. Abandonando o violão, o major volta-se para o maracá e a inúbia, instrumentos indígenas tipicamente nacionais. 

Ainda nessa esteira nacionalista, propõe, em documento enviado ao Congresso Nacional, a substituição do português pelo tupi-guarani, a verdadeira língua do Brasil. Por isso, torna-se objeto de ridicularizarão, escárnio e ironia. Um ofício em tupi, enviado ao Ministro da Guerra, por engano, levá-o à suspensão e como suas manias sugerem um claro desvio comportamental, é aposentado por invalidez, depois de passar alguns meses no hospício.

Após recuperar-se da insanidade, Quaresma deixa a casa de saúde e compra o Sossego, um sítio no interior do Rio de Janeiro; está decidido a trabalhar na terra. Com Adelaide e o preto Anastácio, muda-se para o campo. A idéia de tirar da fértil terra brasileira seu sustento e felicidade anima-o. Adquire vários instrumentos e livros sobre agricultura e logo aprende a manejar a enxada. Orgulhoso da terra brasileira que, de tão boa, dispensa adubos, recebe a visita de Ricardo Coração dos Outros e da afilhada Olga, que não vê todo o progresso no campo, alardeado pelo padrinho. Nota, sim, muita pobreza e desânimo naquela gente simples. 

Depois de algum tempo, o projeto agrícola de Quaresma cai por terra, derrotado por três inimigos terríveis. Primeiro, o clientelismo hipócrita dos políticos. Como Policarpo não quis compactuar com uma fraude da política local, passa a ser multado indevidamente.O segundo, foi a deficiente estrutura agrária brasileira que lhe impede de vender uma boa safra, sem tomar prejuízo. O terceiro, foi a voracidade dos imbatíveis exércitos de saúvas, que, ferozmente, devoravam sua lavoura e reservas de milho e feijão. Desanimado, estende sua dor à pobre população rural, lamentando o abandono de terras improdutivas e a falta de solidariedade do governo, protetor dos grandes latifundiários do café. Para ele, era necessária uma nova administração.

A Revolta da Armada - insurreição dos marinheiros da esquadra contra o continuísmo florianista - faz com que Quaresma abandone a batalha campestre e, como bom patriota, siga para o Rio de Janeiro. Alistando-se na frente de combate em defesa do Marechal Floriano, torna-se comandante de um destacamento, onde estuda artilharia, balística, mecânica.

Durante a visita de Floriano Peixoto ao quartel, que já o conhecia do arsenal, Policarpo fica sabendo que o marechal havia lido seu "projeto agrícola" para a nação. Diante do entusiasmo e observações oníricas do comandante, o Presidente simplesmente responde: "Você Quaresma é um visionário".

Após quatro meses de revolta, a Armada ainda resiste bravamente. Diante da indiferença de Floriano para com seu "projeto", Quaresma questiona-se se vale a pena deixar o sossego de casa e se arriscar, ou até morrer nas trincheiras por esse homem. Mas continua lutando e acaba ferido. Enquanto isso, sozinha, a irmã Adelaide pouco pode fazer pelo sítio do Sossego, que já demonstra sinais de completo abandono. Em uma carta à Adelaide, descreve-lhe as batalhas e fala de seu ferimento. Contudo, Quaresma se restabelece e, ao fim da revolta, que dura

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sete meses, é designado carcereiro da Ilha das Enxadas, prisão dos marinheiros insurgentes. 

Uma madrugada é visitado por um emissário do governo que, aleatoriamente, escolhe doze prisioneiros que são levados pela escolta para fuzilamento. Indignado, escreve a Floriano, denunciando esse tipo de atrocidade cometida pelo governo. Acaba sendo preso como traidor e conduzido à Ilha das Cobras. Apesar de tanto empenho e fidelidade, Quaresma é condenado à morte. Preocupado com sua situação, Ricardo busca auxílio nas repartições e com amigos do próprio Quaresma, que nada fazem, pois temem por seus empregos. Mesmo contrariando a vontade e ambição do marido, sua afilhada, Olga, tenta ajudá-lo, buscando o apoio de Floriano, mas nada consegue. A morte será o triste fim de Policarpo Quaresma