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POESIA E CRISE

Poesia e crise - Marcos Siscar

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Poesia e crise - Marcos Siscar

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POESIA E CRISE

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Universidade Estadual de Campinas

Reitor Fernando Ferreira Costa

Coordenador Geral da Universidade Edgar Salvadori de Decca

Conselho Editorial Presidente

Paulo Franchetti Alcir Pécora – Arley Ramos Moreno José A. R. Gontijo – José Roberto Zan

Marcelo Knobel – Marco Antonio ZagoSedi Hirano – Yaro Burian Junior

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POESIA E CRISEENSAIOS SOBRE A “CRISE DA POESIA”

COMO TOPOS DA MODERNIDADE

Marcos Siscar

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Índices para catálogo sistemático:

1. Poesia moderna 809.1 2. Crítica literária 801.951 3. Literatura e história 809 4. Poesia francesa 841 5. Poesia brasileira b869.15

Copyright © by Marcos SiscarCopyright © 2010 by Editora da Unicamp

Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada emsistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos

ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.

isbn 978-85-268-0912-3

Si81p Siscar, MarcosPoesia e crise: ensaios sobre a “crise da poesia” como topos da modernidade /

Marcos Siscar. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2010.

1. Poesia moderna. 2. Crítica literária. 3. Literatura e história. 4. Poesia fran-cesa. 5. Poesia brasileira. I. Título.

cdd 809.1 801.951 809 841 b869.15

ficha catalográfica elaborada pelosistema de bibliotecas da unicamp

diretoria de tratamento da informação

Editora da UnicampRua Caio Graco Prado, 50 – Campus Unicamp

cep 13083-892 – Campinas – sp – BrasilTel./Fax: (19) 3521-7718/7728

www.editora.unicamp.br – [email protected]

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Para Margarida

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

O DISCURSO DA CRISE

O DISCURSO DA CRISE E A DEMOCRACIA POR VIR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17“RESPONDA, CADÁVER”: AS PALAVRAS DE FOGO DA POESIA MODERNA . . . . . . . . . . . . . . . . . . .41O GRANDE DESERTO DE HOMENS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55POESIA COU COUPÉ ............................................................................................. 67

HERANÇAS DA CRISE

O TÚNEL, O POETA E SEU PALÁCIO DE VIDRO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .83POETAS À BEIRA DE UMA CRISE DE VERSOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103TRADUZIR MALLARMÉ É O LANCE DE DADOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .117A CRISE DO LIVRO OU A POESIA COMO ANTECIPAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131A CISMA DA POESIA BRASILEIRA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .149AS DESILUSÕES DA CRÍTICA DE POESIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169

VERSÕES DA HISTÓRIA

FIGURAS DO PRESENTE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185O DISCURSO DA HISTÓRIA NA TEORIA LITERÁRIA BRASILEIRA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197

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O PRECEDENTE: O TOM DA VOZ EM PAUL VALÉRY . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211A PARTE DA FICÇÃO: O PROBLEMA DA CONTRADIÇÃO EM CHARLES BAUDELAIRE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 231AS “PARADOXAIS SUTILEZAS” DE VILLIERS DE L’ISLE-ADAM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255

A POESIA E SEUS FINS

A POESIA A DOIS PASSOS: SOBRE OS ANAGRAMAS DE FERDINAND DE SAUSSURE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .267A MÁQUINA DE JOÃO CABRAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .287ESTRELAS EXTREMAS: SOBRE A POESIA DE HAROLDO DE CAMPOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .305MICHEL DEGUY: DEFESA E ILUSTRAÇÃO DA POESIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 319O DIVINO RIDÍCULO: TÉCNICA E HUMANISMO NA POESIA DE MICHEL DEGUY . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 335

BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 353

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APRESENTAÇÃO

A trajetória percorrida por este livro coloca em relevo autores e questões im-portantes para a formulação daquilo que ainda hoje chamamos, de maneira heterogênea e com sentidos contraditórios, “modernidade”. A noção, como se sabe, notabilizada por seu uso em Baudelaire, está em jogo de maneira decisi-va em autores franceses, mas também tem peso nos desdobramentos da poe-sia brasileira, em especial a do século XX e a contemporânea, ainda que suas questões sejam reelaboradas hoje — às vezes, com acréscimo de impre-cisão — por meio da designação alternativa de “pós-modernidade”.

De Baudelaire ao Concretismo brasileiro e mais além, a poesia experi-menta uma notável e complexa metamorfose, rica em rupturas e desloca-mentos, que não deixa de ter relação com as transformações históricas, in-clusive com as transformações do discurso das ciências humanas. Tal como o marxismo, a psicanálise ou a crítica fi losófi ca, o discurso poético moder-no coloca em questão aspectos fundantes de seu sentido, estabelecendo um ponto de vista sobre os novos desafi os da cultura e sobre os limites do pró-prio humanismo. Considerada por alguns como declinante e crepuscular, por meio de uma eventual comparação com a popularidade da lírica ro-mântica, a poesia tem papel ativo na constituição de nossa relação com a linguagem e, sem dúvida alguma, de nossa relação com a realidade.

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POESIA E CRISE

A reivindicação de uma perspectiva singular, traduzida como aspiração à “autonomia” dita estética, nesse sentido, designa muito menos o sintoma de um escapismo social do poeta, como normalmente é vista, do que uma resultante discursiva na qual se explicita (ou se dramatiza, isto é, se dá a entender, pelos expedientes da retórica e do phatos) um certo saber sobre o real — um saber que frequentemente coloca em primeiro plano a violência de sua exclusão e o sentido de seus fi ns. Em outras palavras, a autonomia desejada pela poesia não é aquela que a isolaria da realidade intolerável, mas aquela que de fato lhe fornece os recursos para carregar ou suportar os paradoxos de sua inscrição na realidade, atribuindo-lhe a condição de dis-curso histórico que denuncia, inclusive, as fi cções paradisíacas da cultura como identidade entre forma e experiência. Nesse sentido, o discurso poé-tico aspira ao gesto dilemático pelo qual seria possível, inclusive, iluminar o sentido de outros campos e discursos sociais, reconhecendo neles as estra-tégias políticas implícitas de manipulação, eufemização ou desdramatiza-ção da linguagem.

É nesse contexto que o leitor, habituado a identifi car a trajetória da poe-sia moderna com a (contínua e infi ndável) história de seu declínio, pode entender um pouco melhor a particularidade do tema e da estrutura da “crise”. Reivindicada em tom desiludido ou reciclada como estratégia de en-tusiasmo renovador, a crise é um dos elementos fundantes de nossa visão da experiência moderna. O discurso poético é aquele que não apenas sente o impacto dessa crise, não apenas deixa ler em seu corpo as marcas da vio-lência característica da época, mas que, a partir dessas marcas, nomeia a crise — a indica, a dramatiza como sentido do contemporâneo.

As evidências do mal-estar são corriqueiras e a retórica apocalíptica é um dos modos mais conhecidos de realizar essa complexa dramatização do presente, que perturba constantemente a estabilidade da remissão à tradi-ção ou à instância do “futuro”. A profecia do fi m do mundo, em Baudelaire, por exemplo, é uma maneira irônica de constatar o desastre do presente; a “crise de verso”, em Mallarmé, um dispositivo que coloca em jogo a tarefa “antropológica” da poesia; o “ódio” à época contemporânea, um modo de

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APRESENTAÇÃO

estabelecer o sentido da maldição, em Verlaine; o misto de violência e me-lancolia em relação às ruínas, o dispositivo básico da destruição vanguardis-ta. Ao transitar por essa história de pouco mais de um século e meio, depa-ramo-nos com numerosos profetas dos escombros e reis sem reino. Hesita-mos entre os lamentos com força crítica e as estratégias de gerenciamento de bens e políticas culturais. Ou seja, convivemos com variados discursos da crise que, dependendo do caso, oscilam entre a política cultural e o mo-vimento po-ético (poéthique) do “mudar-se em sua perda” (se changer en sa perte), na expressão de Michel Deguy.

Assim, se os episódios são variados, a confi guração do discurso da crise é profundamente ambivalente. A despeito do atalho crítico que pretende denunciar como “contradição” o paradoxo formalizado pelo poema, inte-ressa-me reconhecer que o topos da crise comporta um modo de entendi-mento do real que toma forma historicamente singular dentro do discurso poético e que tem um papel, por assim dizer, fundador. Ou seja, quando falamos de crise, em poesia, não falamos exatamente de um colapso de or-dem factual, mas mais precisamente da emergência de um ponto de vista sobre o lugar onde estamos, sobre nossas condições de “comunidade”. Pro-fanadora e “sacrifi cial”, distante do lugar comum nefelibata a que é submeti-da por alguns discursos das ciências humanas, a poesia nomeia o desajuste sem fugir de suas contradições, ao contrário, fazendo dessas contradições ao mesmo tempo o elemento no qual se realiza e no qual naufraga qualquer nomeação. Se há um heroísmo poético moderno, este não é meramente nos-tálgico, ou messiânico, tampouco simplesmente programático, dialético ou experimental.

Considerado em poemas, mas igualmente em textos híbridos, inclusive críticos, o discurso da crise se reconhece decisivamente na esfera do julga-mento, da decisão, que, como se sabe, também está no radical grego crisis. Ao contrário de observações rotineiras, assumidas como ponto de partida por notáveis historiadores e fi lósofos da literatura, mesmo em momentos considerados os mais descomprometidos com o transcurso histórico — co-mo o do “hermetismo”, ou da “torre de marfi m” —, não creio que se possa

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dizer que a poesia vira as costas para a realidade. A irritação ou o sufoca-mento das idealidades do azur não são consequência de uma suposta abs-tenção, como talvez pudesse ser dito da solução que, abusando da simplifi -cação histórica, chamaríamos de “romântica”; ao contrário, tais irritações fazem parte do sentido que o poeta atribui à sua situação. A poesia carrega, assim, uma capacidade de formalização do mal-estar, ou seja, uma peculia-ridade crítica.

A fi losofi a política marxista habituou-se a discutir o conceito de crise vinculando-o às contradições do sistema produtivo. A crise seria inerente ao processo de desenvolvimento do sistema, sinalizando seus impasses e revelando suas estratégias. E, de fato, é preciso lembrar que, se a evidencia-ção das crises é um modo de abalar a violência constitutiva de tal sistema, denunciando seu modo de individuação estatístico e concorrencial, tal dis-positivo pôde muitas vezes exercer também a função oposta, de ajuste basea-do na destruição e na substituição contínuas de certas camadas da cultura. Identifi car e compreender essa ambivalência nos permite ter maior clareza sobre diferentes modos de tratar a crise histórica que atingiria a cultura e a poesia, decisivamente. Entretanto, essa distinção higiênica não nos oferece todos os elementos para compreender o sentido poético da crise, que é tam-bém uma interpretação da história (uma “fi losofi a” da história, poderíamos dizer), embora não deixe de ser histórica; e que não deixa de constituir um confl ito (algo menos, ou algo mais, que um colapso), embora não seja de natureza propriamente ou puramente factual, isto é, independente da for-malização de seu sentido.

O que poderíamos chamar de formalização poética da crise não se se-para da necessidade e da difi culdade da “herança”. Justamente pelo fato de acolher a contradição como elemento estruturante do discurso, a crise em poesia não apenas produz o qualifi cativo da situação em que vivemos, do lugar desolado em que vivemos, como também, pelos mecanismos que ex-plicitam a violência dos acontecimentos, nos oferece a experiência material e confl ituosa daquilo que signifi ca o ter lugar histórico. Por essa razão, ao con-trário de uma poesia que colocaria os pés nas nuvens de sua condição pós-

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APRESENTAÇÃO

moderna ou pós-vanguardista, fi nalmente desvinculada dos pontos de refe-rência da tradição, os acontecimentos que reconhecemos no contemporâneo não deixam de ser a manifestação dos impasses que têm caracterizado his-toricamente os movimentos teutônicos da poesia. E que a fi zeram desdo-brar-se, até nossos dias, com formas, funções e públicos variados.

Daí o interesse mas também a limitação das verifi cações históricas ou sociológicas da crise, que constituem um gênero antigo, mas brotam com grande força nos tempos que correm. Se o discurso apocalíptico aplicado à poesia pode ter mais de um sentido, parece que a tradição moderna, mes-mo em momentos considerados os mais “conservadores” do ponto de vis-ta social (o chamado “esteticismo”), também carrega razões de ambivalên-cia, sinalizando para um outro uso da noção de crise, que gostaria de des-tacar aqui, no cruzamento entre o sentido da crise e o gesto de crise. Algo dessa ambivalência, que frequentemente toma a forma angustiada ou eu-fórica da tensão ou da contradição performativa, está em jogo na poesia, nesse gesto artístico para o qual a herança deve ser, ininterruptamente, conquistada, reconfi gurada.

Se as preocupações políticas da crítica literária do século passado se sustentam em distinções subjacentes, mas não menos decisivas, em relação ao modo mais ou menos atento com que a poesia se insere na história, ca-beria hoje, com urgência, entender os diferentes dispositivos pelos quais o discurso poético tem compreendido sua capacidade de herdar a crise. Ou seja, o modo como vem, desde muito cedo, nomeando o real e construindo essa história.

Campinas, abril de 2010.

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O DISCURSO DA CRISE

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O DISCURSO DA CRISE E A DEMOCRACIA POR VIR

ATUALIDADE DA CRISE

Uma das questões mais decisivas dos estudos literários, frequentemente deixada à margem de sua disciplinaridade, é o problema da “perda de pres-tígio” de seu objeto — a literatura —, que estaria, nos termos do debate atual, defi nitivamente rendida ao mercado ou, conforme a orientação do crítico, em “decadência”, isto é, defi nitivamente incapaz de inserir-se nele. Essa situação (designada como crise, exaustão, fracasso, pobreza, desvalori-zação, perda das ilusões, perda de rumo, de centralidade) é um topos larga-mente explorado pelo jornalismo, mas também pela universidade, que tem multiplicado nos últimos anos seus sinais de alerta, quando não suas “des-pedidas” à literatura. Trata-se de uma tese sobre o tempo presente que, se por um lado pode ser assimilada paradoxalmente ao próprio funcionamen-to das instituições no que elas têm de mais conservador, por outro lado ajuda a propagar um sentimento pelo qual a literatura é colocada em posi-ção de desconfi ança e, em certas situações, poder-se-ia dizer, na posição de réu de um mal-estar cultural muito mais abrangente. Apesar do caráter po-lêmico, a questão é tratada de modo relativamente ligeiro, permanecendo

1. Na França, como argumenta Antoine Compagnon (2007), a cada ano alguém publica um “adeus à literatura”. Ensaios sobre a crise da literatura já se tornaram quase um gênero à parte, curiosamente integrado de maneira perfeita ao mercado literário. Um dos sucessos editoriais da rentrée 2005/2006 foi, por exemplo, o livro L’Adieu à la littérature, de William Marx.

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POESIA E CRISE

em larga escala no campo intuitivo da avaliação dos “ares da época” ou da tendência crítica do analista.

Em que consistiria esse mal-estar da literatura, no qual a teoria se apoia ou que a teoria denuncia? Para entender a questão em toda a sua extensão, seria preciso deixar de tratá-la unicamente como pressuposto do discurso, como um estado de fato da cultura ou da literatura. Ou seja, seria preciso negociar com outros tipos de avaliação, outros tipos de evidência muito menos disfóricos, que fazem parte do cenário discursivo sobre o contempo-râneo e que reinserem o tema em outro tipo de perspectiva, a da “interpre-tação”. Isso evitaria o engessamento do discurso intelectual nos limites da evidência dos fatos, ou o obrigaria a justifi car o crédito por vezes ilimitado que concede a essa evidência. Por outro lado, é importante lembrar que a extensão da questão da crise não é apenas da ordem dos acontecimentos presentes, não é apenas um “estado” de coisas, mas inclui também um per-curso histórico e um sentido cultural a serem levados em consideração. Por fi m, a proposição da crise não depende apenas de uma verifi cação externa ao campo do discurso literário, que lhe conferiria valor e sentido, mas faz parte de sua própria constituição moderna, do modo como dialoga com os outros discursos.

O pathos da crise pode tornar-se uma questão relevante para a teoria literária? Difi cilmente, se acreditamos que sua tarefa não é a de formular avaliações quanto ao grau de penetração da literatura na cultura. Até por isso, apesar da retórica bombástica do anúncio, tal avaliação tem discreto detalhamento e raramente é evidenciada como tese crítica. Ao contrário, aparece normalmente em tom de cumplicidade, por meio de uma conjec-tura supostamente partilhada, como pano de fundo para outras operações do discurso. A alternativa de que dispomos para esse tratamento aproxima-tivo da questão apresenta-se menos como uma sociologia da cultura do que, frequentemente, como uma estatística dos produtos culturais. Refi ro-me à insistente elaboração de pesquisas baseadas em estatísticas e dirigidas ao grande público, as quais, frequentemente limitadas por precaução “meto-dológica”, a rigor deixam de enfrentar a difi culdade dos dados objetivos,

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O DISCURSO DA CRISE

muito mais complexos do que se pensa e não raro contraditórios: venda de livros, produção editorial ao longo da história, fl uxo de traduções, uso de bibliotecas, circulação de livros usados, variedade de suportes do texto (li-vros, revistas especializadas, imprensa escrita), tipos de uso da literatura (na educação, nas diversas artes), além, é claro, do fenômeno da Internet, essa gigantesca biblioteca, que tem sido considerada também como um labora-tório da criação literária. Não há como não pensar que as atuais pesquisas nessa área, pela sua incompletude e pelo segredo de polichinelo que afi nal acabam “revelando”, valendo-se da legitimidade conferida pelos números, apenas infl acionam uma situação discursiva na qual vários tipos de interes-se permanecem silenciados.

Apesar da relativa fragilidade dos argumentos, o espaço dado a eles não deixa de fundamentar publicamente o movimento de mão única em curso nas relações entre a circulação do livro e a política de publicação das edito-ras; entre a vida intelectual e os suplementos de jornais; entre o peso social da literatura e as transformações sofridas pelas políticas educacionais (cur-rículos, conteúdo de vestibulares). Como se as instituições que interagem com a literatura fossem apenas receptoras passivas de um fenômeno supos-tamente defi nido e quantitativo que — no fundo — elas mesmas ajudam a criar, a reproduzir ou a aprofundar. Explicitando o que está em jogo nessa passagem do sentimento de crise para a política das instituições, parece que, da visão algo paternalista que, no passado, pretendia educar o público igno-rante na obediência de valores elitistas, estamos passando hoje diretamente para o cinismo (também chamado “realismo”) da obediência ao gosto do “público-alvo”, público cuja natureza, abrangência e interesses, a rigor, são

2. A simplifi cação fi ca clara em pesquisas como a do National Endowment for the Arts (cf. Silva, 2008), que limita a experiência de leitura à venda de livros (minimizando, explicita-mente, a importância de dados contraditórios, como o aumento do faturamento das livrarias, e questões importantes da nossa época, como o acesso ao texto promovido pela Internet), mais especifi camente, à quantidade de dólares gastos em livrarias por famílias americanas. Pode-se perguntar, nesse caso, a quem interessa a confusão explícita entre a relevância social da obra artística e a circulação empresarial do dinheiro.

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defi nidos por publicitários e gerentes invisíveis e, nesse sentido, irresponsá-veis, do ponto de vista das políticas culturais.

Arriscaria dizer que o consentimento geral da crítica mais séria à relativa falta de rigor, nesse campo, dando por perdida a época das “utopias”, não ajuda a evitar a confusão entre discursos de natureza e valor bastante heterogêneos. De modo geral, seu interesse pelo sentido do contemporâneo denota uma espécie de urgência em defi nir aquilo que está em jogo no destino da literatu-ra. Ou seja, a formulação apressada de panoramas do tempo presente indicia a natureza imediatamente estratégica, mas também interessada, compulsiva, com que nos relacionamos com a ideia de “crise”. Se, como disse, colocada em termos habituais, a busca em determinar a falência da leitura e da literatura pode gerar uma discussão estéril, dada sua imprecisão e os diversos tipos de interferência que estão em jogo, por outro lado a urgência com a qual esse sentimento de crise se manifesta é extremamente relevante como indício de um modo de relação com o tempo presente e com a possibilidade de dizer esse presente. Nesse ponto, a questão me interessa especialmente, na medida em que o sentimento de crise é, a meu ver, um dos traços mais relevantes da literatura moderna, em que pesem as alterações materiais e objetivas pelas quais têm passado o texto e a leitura nas últimas décadas.

Para esclarecer esse ponto de vista, é preciso lembrar rapidamente que a capacidade de formulação da crise, que eu chamaria de herança crítica da literatura, se apresenta tradicionalmente como reação não apenas ao desen-volvimento da sociedade industrial de massa e ao fantasma da transforma-ção do humano em mercadoria (problemática que Benjamin averiguou em Baudelaire), mas também, especifi camente, à constituição de um ponto de vista aritmético sobre a realidade social. Ainda a propósito de Baudelaire, Pierre Pachet nota que “as sociedades modernas se tornam ‘sociedades de massa’ a partir do momento em que se constitui uma ciência ou um projeto de ciência dos números sociais”. Assim, a centralidade do “número” (da

3. Pierre Pachet, Le Premier venu. Essai sur la politique baudelairienne. Paris, Denoël, 1976, p. 27. Os textos em língua estrangeira citados neste e nos demais ensaios do livro são traduzidos pelo autor, salvo indicação em contrário.