Politica Negra e Democracia no Brasil Contemporaneo

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CAMINHOS CONVERGENTESESTADO E SOCIEDADE NA SUPERAO DAS DESIGUALDADES RACIAIS NO BRASILORGANIZADORAS

MARILENE DE PAULA ROSANA HERINGER

7POLTICA NEGRA E DEMOCRACIA NO BRASIL CONTEMPORNEO: REFLEXES SOBRE OS MOVIMENTOS NEGROSMARCIO ANDR DE O. DOS SANTOS

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Dedico este texto a Lenora e Zeca, militantes negros que dedicaram suas vidas defesa da liberdade.

INTRODUOOs movimentos negros so considerados um dos mais importantes movimentos sociais no cenrio poltico-institucional brasileiro. Em plena transformao, este movimento social tem apontado tanto para as falhas e incoerncias na democracia atualmente existente quanto para as incoerncias de uma sociedade profundamente marcada pelo racismo institucional e pela discriminao racial. O estudo dos movimentos negros

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Doutorando em Cincia Poltica no IUPERJ; mestre em Cincias Sociais pela UERJ.

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aponta para determinados limites de suas configuraes e dinmicas internas, ao mesmo tempo em que revelam uma crescente capacidade de dialogar e atuar junto aos poderes estatais e com o conjunto da sociedade civil e, inclusive, com instncias globais de proteo dos direitos humanos. No entanto, uma srie de questionamentos e indagaes precisa ser feita no sentido de entender melhor seus objetivos, metas e perspectivas. No meu entender tais perguntas precisam romper com os atuais paradigmas interpretativos e alargar sua abrangncia para outros campos de investigao como a psicologia social, o direito e a pedagogia crtica. Por outro lado, h que se entender a singularidade dos movimentos negros se que podemos assim dizer a partir de uma configurao de outras foras polticas, sociais e culturais existentes na sociedade e da prpria resistncia estatal frente s demandas deste movimento. O mito da democracia racial foi oficialmente deslegitimado, porm permanece uma realidade no corpus institucional de todo o pas: escolas, departamentos pblicos, instituies sociais, universidades, etc. Como afirma Koopmans (2004), a contestao2 sempre um processo de mltiplos atores que no podem ser compreendidos adequadamente focando a ateno em um s ator coletivo. Isso reduziria o grau de complexidade presente em suas dinmicas de interao. Em outros termos, a interao entre os atores coletivos, inclusive o Estado, fundamental no entendimento de sua evoluo, limites e horizontes.

O QUE UM MOVIMENTO SOCIAL?O que move um movimento social, qual seu motor, o que o faz existir? O que o diferencia de outras dinmicas mobilizatrias, de outras aes ou demandas coletivas? O que visam: mudar a sociedade, criar novos valores ticos, comportamentais, culturais... fazer a revoluo? Cientistas sociais se colocaram estas questes ao longo de praticamente todo o sculo 20 e mesmo agora, no incio do sculo 21, no h um consenso

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O termo utilizado pelo autor contentious. Contentious tambm pode significar conteno, combate, dentre outros. Possivelmente Koopmans pega este termo de emprstimo de Charles Tilly e Sidney Tarrow do livro Contentious Politics.

sobre isso. Na verdade, de acordo com os principais intrpretes dos movimentos sociais cada poca, cada contexto e seus momentos polticos determinados produziro maneiras diferentes de olhar para este fenmeno, particularmente o lugar social ocupado pelo pesquisador(a) no momento em que observa. Sem a pretenso de estabelecer uma definio abrangente, podemos dizer que, regra geral, um movimento social assim descrito quando exige ao Estado ou ao poder pblico mudanas no ordenamento social via polticas sociais e de acordo com regras consensualmente definidas no mbito de sociedades democrticas. Neste sentido, movimento social significa diretamente ao contra o Estado ou, mais propriamente, ao junto ao Estado. Tais exigncias podem assumir e geralmente assumem um sem nmero de formas: subverso temporria da ordem estabelecida, revoltas, negociaes e arranjos de vrios tipos, cooptao de lideranas populares nos aparatos burocrticos, revoluo e, no limite, a extino ou institucionalizao do movimento. O contexto brasileiro das ltimas duas dcadas sugere que as relaes entre os movimentos sociais e o Estado traduzem-se mais no segundo tipo, ou seja, em aes junto ao Estado, de construo de parcerias visando objetivos diversos. Os movimentos sociais se constituem a partir de pautas reivindicativas ou eixos mobilizatrios especficos. Suas causas podem abarcar um ou mais eixos simultaneamente ou mesmo um tema abrangente como a busca por justia social ou igualdade de direitos. Por exemplo, um movimento social voltado defesa dos interesses de empregados sem garantias trabalhistas; populaes indgenas; sem-tetos; sem-terras; desempregados; favelizados; negros; mulheres, etc. Teoricamente, tais movimentos sociais demandam ao Estado e ao conjunto da sociedade mudanas substantivas ou pontuais quanto situao atual de subalternidade frente a outros grupos. A fim de melhor ilustrar essa imagem, tomemos o movimento social dos sem-terra. Qual sua razo de ser? O que pretendem, o que visam e como buscam? Grosso modo, buscam ter acesso terra e condies satisfatrias de produo, bem como aumento de crditos bancrios e mudanas gerais nas polticas sobre a agricultura. Por outro lado, o movimento dos sem-terra pode ser subdividido em vrios segmentos, interesses, escopos de ao e maneiras de agir. Desde aqueles cujas

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reivindicaes podem ser vistas como mais imediatas, prioritrias como acesso direto terra e condies de cultivo at aqueles cuja fonte mobilizatria uma mudana generalizada e profunda nas polticas sobre o campo. Deste ponto de vista, este segundo segmento no reivindica somente reforma agrria pura e simplesmente e sim mudanas na ordenao social e poltica. No raro aspiram a uma revoluo social. O movimento de mulheres segue uma lgica semelhante. Divide-se a partir de um conjunto concilivel e, ao mesmo tempo, no-concilivel de interesses. O conjunto concilivel pode ser expresso quando buscam reverter os efeitos negativos produzidos em sociedades machistas e sexistas contra as mulheres. Por exemplo, a ideia de que as mulheres possuem baixa capacidade de liderana e gesto poltica ou que possuem uma economia emocional mais frgil, levando-as a agir em nome do corao e no da razo. O conjunto no-concilivel se expressa quando em uma dada sociedade mulheres de diferentes estratos sociais, pertencimentos tnicos e raciais atuam a partir de interesses diferenciados e no raro contraditrios. Por exemplo, mulheres das classes mdias urbanas geralmente possuem interesses substantivamente diferentes de mulheres da classe trabalhadora e residentes em bairros perifricos. As preocupaes das primeiras podem ser em relao expanso de espaos de consumo, ampliao da participao feminina nas cmeras legislativas e parlamentos, aumento no nmero de mulheres no ensino superior, etc. J as mulheres da classe trabalhadora podem se concentrar em demandas por leis mais rgidas em relao violncia domstica, a polticas de gerao de emprego e aumento de creches pblicas para os seus filhos, bem como a melhoria das escolas pblicas, etc. Ambos os tipos de reivindicaes no so excludentes, pelo contrrio, tocam-se e confluem-se em muitos pontos. Entretanto, os espaos ocupados por estas mulheres do ponto de vista da classe social, do pertencimento racial, bairro e orientao sexual produzem3 as diferenas existentes entre elas. Um exemplo significativo na histria do feminismo no Brasil pode ser expresso nos modos pelos quais mulheres negras e brancas participaram

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A ideia de produo aqui vista como um artefato histrico, social e contextualizado j que, a depender do momento e das situaes envolventes, as diferenas entre os grupos, podem ser aumentadas, reduzidas e at mesmo neutralizadas.

MOVIMENTOS NEGROS: SIGNIFICADOS E BREVE HISTRIA POLTICAA histria dos movimentos negros brasileiros, de suas organizaes polticas, entidades associativas, culturais, religiosas, veculos e pedagogias comunicativas manifesta um profundo e fecundo pluralismo, polifonias organizativas e de estratgias de ao, desde pelo menos o incio do sculo 205. Ao longo da dcada de 90, historiadores, socilogos, e

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Uma srie de autores traa as trajetrias dos movimentos negros ao longo do sculo 20. A fim de no ser exaustivo, sugiro a leitura do artigo do historiador Petrnio Domingues Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos histricos, publicado em Tempo, Revista do Departamento de Histria da UFF, v. 12, 2007. As principais pesquisas sobre os movimentos negros situam o incio do que chamam de Movimento Negro Contemporneo a partir dos anos 30 com a constituio da Frente Negra Brasileira. Domingues por exemplo, encontrou registros de vrias organizaes negras nas cidades de So Paulo, Campinas e cidades do Rio Grande do Sul. No entanto, tais organizaes possuam carter mais assistencial, recreativo e literrio do que propriamente poltico. Para uma abordagem histrica dos movimentos negros ver O Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos histricos, do mesmo autor.

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do cenrio poltico-social. Os repertrios motivacionais, as pautas reivindicativas e horizontes normativos no so os mesmos, ainda que uma srie de afinidades as una pelo fato de serem mulheres em uma sociedade que as oprime, seja por meio de diferenciao salarial ou atravs da violncia domstica. O mesmo raciocnio se aplica aos movimentos sociais negros brasileiros. Ao longo de todo o sculo 20 os movimentos negros se constituram e atuaram no espao pblico de diversas formas4. A imagem de ondas batendo em uma praia ajuda a pensar os modos pelos quais os movimentos negros atuam na sociedade. Ora tais ondas so fracas, praticamente imperceptveis, ora so quase tsunamis polticos, questionando publicamente o posicionamento do poder pblico frente a demandas no cumpridas ou parcialmente atendidas do movimento. O mais importante notar que geralmente aps essas ondulaes movimentalistas uma srie de mudanas ocorre nas dinmicas internas e externas dos movimentos negros, provocando fragmentaes de suas organizaes ou o aprofundamento de suas aes junto ao Estado e sociedade.

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cientistas polticos tm se debruado mais sistematicamente em pesquisas sobre os movimentos negros, seja por meio de organizaes especficas e de trajetrias de ativistas notrios (SILVA, 2005, FERREIRA, 2005, DOMINGUES, 2004, MACEDO, 2005), seja por meio de anlises pontuais e crticas presentes na histria recente deste movimento social (CARDOSO 2002, PINTO 1993, HANCHARD 2001, GUIMARES 1999, PEREIRA 1998, 2006, SANTOS(a) 2005, SANTOS(b) 1985). Outros trabalhos tambm tm dado ateno aos movimentos negros, especialmente entrelaando seus dilemas e avanos com outros assuntos de relevncia social e poltica no Brasil contemporneo (HOFBAUER 1999, COSTA 2002). Pesquisas sobre polticas de ao afirmativa nas universidades pblicas, debates sobre a lei que introduz o ensino de histria da frica e da cultura afrobrasileira nos currculos escolares, transformaes da cultura negra urbana recente, literatura afrobrasileira, feminismo, homossexualismo e masculinidade negra para citar alguns so exemplos de interseccionalidade envolvendo esta temtica. Isso aponta para o fato de que o reconhecimento dos movimentos negros como atores polticos e de expressiva importncia na sociedade brasileira tem chamado a ateno de pesquisadores das mais diferentes reas, sejam estes negros, brancos, homens ou mulheres6. Entretanto, ainda relativamente baixo o nmero de pesquisas e pesquisadores (as) dedicados exclusivamente ao tema dos movimentos negros, ainda que dissertaes e teses de doutorado estejam atualmente em curso. Mais raro ainda so os estudos comparados sobre a atuao dos movimentos negros localizados em diferentes pases e continentes. Sem contar que dentre as pesquisas no campo dos movimentos sociais, os movimentos negros continuam a ocupar um lugar de marginalidade acadmica e escassos recursos7.

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Falta-nos ainda uma catalogao mais sistemtica da influncia das aes dos movimentos negros nos vrios campos do conhecimento. A Fundao Ford financiou vrias pesquisas que, direta ou indiretamente, tinham os movimentos negros como tema. Obtive financiamento da Fundao Ford do Brasil para minha pesquisa de mestrado e apoio para participar de um congresso de pesquisadores de temas brasileiros, a BRASA, em 2008, na cidade de New Orleans, Estados Unidos. Por outro lado, a FF financiou e apoiou diversas organizaes negras e intelectuais negros. No entanto, tem sido uma das poucas a manter uma poltica de financiamento para estes fins.

Os movimentos negros passaram por vrios momentos em termos de reivindicao coletiva contra o racismo. No final do sculo 19, uma srie de organizaes negras se constituiu como organizaes beneficentes a fim de criar uma rede de apoio entre os negros para se contrapor ao racismo dos brancos brasileiros que impediam os negros de ter acesso aos seus clubes esportivos e instituies sociais. Nas dcadas de 20 e 30 surge a imprensa negra brasileira, cuja funo era produzir um canal de manifestao literria, social, cultural e poltica da comunidade negra, bem como denunciar as prticas de racismo e discriminao racial existentes naquele momento. A imprensa da poca, tanto a segmentada quanto a geral, no canalizava as aspiraes e dramas dos negros brasileiros. Durante os anos 1930 surge a Frente Negra Brasileira FNB, considerada a primeira grande organizao efetivamente poltica8. A FNB e outras organizaes negras, em linhas gerais, reivindicavam a integrao do negro na sociedade como cidados. Nos anos 40, temos o protagonismo do Teatro Experimental do Negro e da Unio dos Homens de Cor. No final da dcada de 70 surge o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminao Racial MNUDCR, reunindo organizaes negras do Rio de Janeiro, So Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Nos anos 80 os movimentos negros buscam legitimidade de ao poltica junto aos aparatos estatais. Neste momento uma srie de experincias de secretarias de promoo da comunidade negra e de centros de denncia contra o racismo criada nas principais capitais do pas. J nos anos 90 tem-se outro cenrio, cujos detalhes sero expostos abaixo. Qual a relevncia de se designar movimentos negros e no simplesmente Movimento Negro, no singular, como feito geralmente por ativistas, meios de comunicao, agncias governamentais e por muitas anlises acadmicas? Exatamente porque a noo de movimentos negros capta e traduz de forma mais consistente a dimenso de multivocalidade, pluralidade e plasticidade existente neste movimento social. Quando nos referimos a Movimento Negro deixa-se implcito uma harmonia aparente,

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necessrio considerar a traduo de poltico aqui. Outras organizaes anteriores a FNB atuavam tambm politicamente na medida em que se contrapunham ao racismo at ento existente.

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um amplo consenso nos modos pelos quais este movimento social tem se organizado e atuado junto sociedade. Pelo contrrio, os movimentos negros so constitudos por organizaes de diferentes tipos, escopos, coloraes poltico-ideolgicas, objetivos programticos e condies de ao junto ao Estado e sociedade. Amauri Pereira em sua tese de doutoramento estabelece novos marcos analticos para a definio e abordagem dos movimentos negros9. Dialoga com os escritos de Joel Rufino dos Santos cuja leitura do significado de Movimento Negro assume uma dupla perspectiva:

1) Perspectiva de sentido estrito: o conjunto de entidades emilitantes e aes dos ltimos 50 anos, consagrados luta explcita contra o racismo (Rufino dos Santos, 1985: 287, citado em Pereira, 2006);

2) Perspectiva de sentido amplo: todas as entidades de qualquernatureza e todas as aes de qualquer tempo (a compreendidas aquelas que visavam autodefesa fsica e cultural do negro), fundadas e promovidas por pretos e negros (idem, 303). Estou de acordo com a anlise de Pereira (2006) de que os movimentos sociais no se definem exclusivamente por suas aes polticas. Inversamente, os estudos sobre os assim chamados novos movimentos sociais tm apontado para a necessidade de olhar a poltica cultural e a cultura poltica dos movimentos sociais exatamente a fim de no se perder as dimenses no colonizadas pela poltica e no antropologizar demais a noo de cultura. A cultura lugar de produo de sentidos e de orientaes da ao poltica, j que condensa valores e perspectivas diversas de um grupo social. Tratando-se especificamente dos movimentos negros, a dimenso cultural e simblica de organizaes negras de diversos tipos sempre exerceu papis de relevncia na luta contra o racismo, ajudando a cimentar e a fortalecer a identidade negra, a revalorizar os legados africanos em vrios campos, etc. As escolas de samba, os blocos afros, os centros recreativos, terreiros de candombl e umbanda,

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Ver a tese Para alm do racismo e do antirracismo: a produo de uma cultura de conscincia negra na sociedade brasileira. (Tese de doutorado em cincias sociais. Rio de Janeiro, UERJ, 2006).

os bailes blacks dos anos 70 e 80, os concursos de beleza negra e um sem nmero de expresses culturais negras regionais so exemplos da confluncia entre cultura e poltica. Atravs de cantos, danas, expresses corporais e modos de se vestir os negros tentaram e tentam em diversos momentos criar formas que so ao mesmo tempo subjetivas e materiais de resistncia ao racismo e aos valores hegemnicos da supremacia branca. Jacques DAdesky (2001), em contexto diferente, define Movimento Negro a partir de trs vertentes: poltica, cultural e religiosa. A dimenso poltica seriam as organizaes e entidades negras diretamente envolvidas com a luta contra o racismo institucionalizado nas prticas sociais e outras esferas do espao pblico como, por exemplo, o Movimento Negro Unificado (MNU), os Agentes de Pastoral Negros (APNs), a Unio dos Negros Pela Igualdade (Unegro) entidades que em outro lugar designo filiativo-nacionais10 e as ONGs negras como Geleds, Criola, Centro de Articulao de Populaes Marginalizadas (CEAP), Instituto Palmares de Direitos Humanos (IPDH), Maria Mulher Organizao de Mulheres Negras, etc. Tambm pertencente a esta dimenso seriam os ncleos de negros e negras de partidos polticos e sindicatos. As entidades culturais seriam aquelas que lidam com as vrias expresses da cultura negra como, por exemplo, o bloco carnavalesco Afox Filhos de Gandhi, o Olodum, as Escolas de Samba do Rio de Janeiro, de So Paulo, e centenas de outras entidades especificamente culturais. E as religiosas seriam expressas pelos centros de umbanda, os terreiros de candombl, de batuque, etc., bem como os grupos de negros nas igrejas catlicas, protestantes. A definio de DAdesky se assemelha a noo de Movimento Negro em sentido amplo adotada por Rufino e corroborada por Pereira e muitos outros. O esforo em se adotar uma perspectiva ampla na definio e tentativa de apreenso deste movimento social se explica pelas prprias dinmicas presentes nos movimentos negros ao longo do tempo. Pereira termina por admitir que as transformaes de valores da sociedade

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10 A Persistncia Poltica dos Movimentos Negros Brasileiros. Santos (2005)

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capitalista tiveram como consequncia o afastamento das Escolas de Samba, grupos de Capoeira, Entidades Religiosas de matriz africana, etc., do que antes era diretamente compreendido como Movimento Negro. Em outros termos, a perspectiva ampla de Rufino e DAdesky encontra terreno bem mais complexo para apreender os significados de movimentos negros. Um grupo de capoeira que funcione em uma escola privada de maioria branca e cuja dimenso de combate ao racismo nula Movimento Negro? Uma Escola de Samba, cujo gerenciamento feito por pessoas brancas de classe mdia e que no tenha nenhum trabalho cujo objetivo seja o combate ao racismo Movimento Negro? Um terreiro de candombl cujo trabalho se concentra nica e exclusivamente na prtica religiosa Movimento Negro? Uma associao de moradores de um bairro majoritariamente negro e cujos participantes so tambm majoritariamente negros Movimento Negro? Um grupo de dana afro, um baile funk, uma posse de hip hop, uma roda tradicional de samba no Rio de Janeiro ou So Paulo Movimento Negro? Em um primeiro olhar parece que sim, tudo isso constitui ou abrange aquilo que se convenciona chamar de Movimento Negro; porm me parece bem mais complexo e as respostas precisam ser investigadas mais a fundo. Do mesmo modo, como entender o papel desempenhado por personalidades do mundo das artes, da televiso, do jornalismo, por intelectuais negros independentes e polticos que frequentemente emprestam suas vozes e saberes em defesa da populao negra e contra o racismo? Como capturar nesse guardachuva conceitual chamado Movimento Negro um crescente e influente ativismo feito por centenas de internautas, negros e no-negros, assinantes de listas de discusso racial ou de listas semelhantes espalhadas pelo infindvel universo online e que eventualmente contribuem e influenciam no debate sobre justia racial no Brasil? O fato que chamar tudo isso de Movimento Negro, no esprito de Rufino, cria dificuldades pelo menos em termos analticos ainda maiores de traduo deste movimento social. Ao mesmo tempo tentador ver Movimento Negro em tudo isso, j que de um modo ou de outro a expresso de suas aes, maturidade e disseminao poltica. Em suas palavras

Esta citao interessante por trs razes: 1) capta a noo consensual do que significa movimento negro; 2) descreve em linhas gerais seus tipos organizativos e, 3) estabelece uma periodizao para um movimento negro de tipo mais poltico. De fato, boa parte da literatura sobre este movimento social fala de uma renovao ou retomada dos movimentos negros no final dos anos 70. No entanto, outros trabalhos apontam que o movimento negro moderno data do incio dos anos 30, transformando-se continuamente (SILVA 2005; DOMINGUES 2007; FERREIRA, 2005). Em termos gerais, interessante a tentativa de resposta a esta miscelnea movimentalista dada por Pereira com a noo de Cultura de Conscincia Negra. Mais importante do que chamar de Movimento Negro uma roda de capoeira ou um ensaio de escola de samba ver ali o legado da cultura poltica e da poltica cultural deste grupo racial. O autor pesquisou vrios eventos de comemorao do Dia 20 de Novembro em escolas pblicas do Rio de Janeiro e entrevistou professores(as), diretores(as), alunos(as) e funcionrios(as). Em sntese, viu que muitas vezes essas pessoas no tinham uma noo clara do que significa Movimento Negro, porm o fato de promoverem e participarem de tais eventos evidencia a presena ou os efeitos deste movimento social no dia a dia escolar. Desse modo, a Cultura de Conscincia Negra atravessa fronteiras e espaos culturais, institucionais e simblicos que fogem ao controle das organizaes negras e de suas lideranas, j que resultam simultaneamente de um ativismo poltico na esfera pblica, do repertrio cultural

POLTICA NEGRA E DEMOCRACIA NO BRASIL CONTEMPORNEO: REFLEXES SOBRE OS MOVIMENTOS NEGROS

Foi nos anos setenta que a luta organizada contra o racismo desembocou, enfim, num movimento negro de amplitude nacional e claramente destacado de outros movimentos sociais e polticos. Aquilo que os prprios militantes negros convencionaram chamar de movimento negro, no entanto, so na verdade cerca de 400 entidades, de diversos tipos, frouxamente articuladas entre si h quem prefira mesmo design-lo por movimentos negros, no plural. H desde organizaes polticas rgidas (como o Movimento Negro Unificado, o MNU, a mais notria), at instituies semi-acadmicas (como o Grupo Andr Rebouas, na Universidade Federal Fluminense), passando por centros autnomos de pesquisa histrica e cultural do negro (como o Centro de Cultura Negra do Maranho, por exemplo). (1994: 94). Joel Rufino

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dos negros e da traduo disso pelos milhares de mediadores espalhados por toda a sociedade. Podemos pensar no exemplo da disseminao da cultura hip hop entre os jovens dos grandes centros urbanos e periferias brasileiras. Conjunto de msica, poesia, dana e viso de mundo caracterstica dos afroamericanos, o hip hop se transformou numa cadeia de transmisso das angstias e aspiraes de milhares de jovens brasileiros. O interessante a observar que no somente jovens negros e empobrecidos se identificam com esta cultura e sim outros tantos jovens nonegros, inclusive brancos de classe mdia. O termo preto, por exemplo, no se restringe necessariamente aos negros de pele escura e sim a todos aqueles que vivem situaes de marginalidade social e econmica ou que se posicionam proativamente em defesa dos valores da periferia. Neste caso, h uma simbiose entre tradies culturais negras para alm das fronteiras nacionais e tnicas. Por esta razo so tradies fundamentalmente diaspricas, j que conectam elementos diversos dos descendentes de africanos nas Amricas. Outro exemplo de uma Cultura de Conscincia Negra legada pelas aes dos movimentos negros so as transformaes na esttica visual urbana dos ltimos 10 anos. H pouco tempo atrs era comum observar negros com cabelos estilo rastafri ou com tranas afros. J no chama a ateno vermos jovens e adultos brancos com dreadlocks e cachinhos nos cabelos, sem contar mudanas significativas na maneira de se vestir, com temas africanos e que homenageiam personalidades negras. Em suma, no se trata de designar tudo isso como Movimento Negro e sim ver tais manifestaes como o espelho e reflexo desse complexo ativismo. O grau de abrangncia dos movimentos negros alcanou resultados substantivos nos anos de 1990, levando a uma maior divulgao e cobertura pela imprensa de suas aes e mobilizaes. No entanto, o grau de desconhecimento das atuaes dos movimentos negros na sociedade relativamente grande entre a populao negra, ainda que tal assertiva s possa ser feita de modo tautolgico, j que no temos pesquisas empricas que demonstrem isso11.11 Recentemente participei de uma pesquisa intitulada A Comparative Study of Responses to Discrimination by Members of Stigmatized Groups, com um amostra de pessoas autodeclaradas pretas e pardas e cerca de 90% delas no sabiam o que era MN. A pesquisa foi feita por meio do intercmbio Harvard University e UFRJ.

O que ento faz dos movimentos negros um movimento social dos negros? Uma primeira resposta aponta para o fato de que este movimento social tem como horizonte normativo, como meta e objetivo geral a luta contra o racismo12 e a discriminao racial. O termo luta contra o racismo evidente por si mesmo. Porm, o que isso significa exatamente? Luta contra o racismo vigente na sociedade, ou seja, nas instituies sociais e privadas, no espao pblico, no acesso ao trabalho, por educao de qualidade. Luta contra o racismo na produo da cultura, nos modos de expressividade especficos do povo negro ou da comunidade negra, tais como moda, comportamento social, esttica, representao do mundo. Luta contra o racismo do ponto de vista da defesa de uma subjetividade negra. Ou mesmo luta contra o racismo no sentido de se contrapor s artimanhas da supremacia branca em todas as esferas da vida. Como se v, no simples capturarmos o que h por trs da ideia de luta contra o racismo sem antes contextualizarmos o momento em que tais demandas so feitas e quais os interesses em disputa. Por outro lado, podemos problematizar ainda mais a prpria ideia de movimentos negros e questionar sua legitimidade atual. Se o horizonte das aes polticas, demandas e anseios destes movimentos a luta contra o racismo, em tese sua razo de ser terminaria medida que no houvesse mais racismo, correto? Eis um problema imenso. Sem a pretenso de fazer qualquer tipo de futurologia, devemos nos perguntar se o racismo tem prazo de validade. Um conjunto expressivo de pesquisadores aponta que o racismo na verdade um sistema-mundo e que, portanto, est profundamente conectado modernidade ocidental (WINANT, 2001). Em outros termos, os produtos da modernidade ocidental que conhecemos como escravismo, colonialismo, capitalismo, socialismo, comunismo tm o racismo como uma de suas principais bases. O racismo ao qual me refiro atinge no somente aos negros, mas tambm povos indgenas, rabes e minorias tnicas e nacionais diversas.

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12 O termo luta contra o racismo se transformou em uma mxima para os movimentos negros sendo adotado at mesmo por governos especficos, secretarias estaduais, municipais e por outros movimentos sociais. O termo inclui aes tambm contra a discriminao racial em amplos setores da sociedade.

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Portanto, o carter praticamente permanente do racismo como sistema-mundo aponta para uma atuao tambm ilimitada dos movimentos negros como movimento social. Como lio bsica das cincias sociais e da histria aprendemos que os contextos sociais jamais so os mesmos, ainda que haja uma srie de permanncias do passado no presente. Isso aponta para o fato de que determinadas prticas correntes no passado, seja de maneira oficial ou oficiosa, modificam-se no correr dos tempos. Basta pensar aqui no nazismo, no sistema de segregao racial vigente at finais dos anos de 1960 nos EUA Jim Crow Laws e o apartheid na frica do Sul corrente at meados de 1994. Obviamente que tais estruturas de dominao racial no foram demolidas de forma natural e sem que antes uma srie de movimentos e atores sociais atuasse sistematicamente no sentido de minar suas bases. Inclusive no h porque acreditar em sua total dissoluo. Neste sentido, podemos pensar que o movimento pelos direitos civis nos EUA, sob liderana dos afroamericanos, construiu organizaes polticas especficas para se opor ao sistema de segregao oficial. Ao mesmo tempo, vrias iniciativas no-institucionais e de ao local foram criadas a fim de fazer frente a esta problemtica. Muitas organizaes criadas durante a Jim Crow no existem mais, perderam sua base de sustentao. Do mesmo modo que outras continuam a atuar no cenrio poltico dos EUA, no mais contra o racismo legal e sim contra suas persistncias nas prticas sociais e institucionais. Atuam contra o racismo estrutural, arraigado em todo o corpo social. A histria da National Association for the Advancement of Colored People NAACP13 um exemplo de uma organizao negra fundada em 1909 e que continua a atuar nos EUA em prol da defesa e garantia dos direitos civis e da justia social. Na mesma anlise, o apartheid na frica do Sul foi oficialmente desmantelado em 1994 aps centenas de embates sangrentos entre ativistas negros e as foras policiais. Vrias organizaes criadas especificamente para atuar contra este sistema transformaram-se ou extinguiram-se aps o fim do regime. Os efeitos do racismo de mais de quatro dcadas permanecem visveis na frica do Sul de hoje: concentrao da13 Associao Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor, fundada em 1909 nos Estados Unidos e considerada a mais antiga organizao negra na luta em defesa dos direitos civis.

MOVIMENTOS NEGROS CONTEMPORNEOSEm 1995, pela primeira vez na histria republicana brasileira, um governo democraticamente eleito reconhece que as histricas desigualdades raciais necessitariam de tratamento especfico por parte do Estado, o que ainda no sinalizava para a adoo de polticas de ao afirmativa. A ideologia do Estado brasileiro responsvel pela dissimulao da existncia do racismo e das desigualdades raciais, o mito ou ideologia da democracia racial, vem perdendo fora de maneira gradativa ao longo dos ltimos 10 anos. A partir daquele momento uma nova fase emergiria no cenrio poltico nacional no que tange ao que passou a ser chamado de promoo da igualdade racial 14. Em trabalho dissertativo de mestrado pesquisei o chamado processo de mobilizao dos movimentos negros para a 3 Conferncia Mundial das Naes Unidas contra o Racismo (3 CMR), realizada em 2001, na cidade de Durban, frica do Sul. O intento ali era o de analisar e interpretar parte das relaes estabelecidas entre os movimentos negros e o Estado brasileiro no que concerne construo de polticas raciais de carter pblico visando a superao de desigualdades sociais entre negros e brancos. Ao mesmo tempo, a investigao procurou registrar as evolues recentes experimentadas por este movimento social, suas contradies discursivas, novas prticas polticas e arranjos institucionais frente aos poderes estatais.

14 Aprofundo este argumento na dissertao A Persistncia Poltica dos Movimentos Negros: processo de mobilizao negra 3 Conferncia Mundial contra o Racismo. Santos, 2005.

POLTICA NEGRA E DEMOCRACIA NO BRASIL CONTEMPORNEO: REFLEXES SOBRE OS MOVIMENTOS NEGROS

pobreza entre os negros, desemprego, criminalidade, mortalidade, altos ndices de contaminao pelo HIV, etc. Por lei proibido coibir o acesso de negros e outros grupos no-brancos a empregos, espaos pblicos, servios sociais, etc. Exceto por meio de polticas de ao afirmativa cuja inteno exatamente reverter os efeitos passados da discriminao racial e tnica. Com efeito, muitas organizaes antiapartheid transformaram-se e agora atuam como organizaes de direitos humanos ou de outros tipos.

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Os anos de 1990 representaram para os movimentos negros um perodo significativo de mudanas institucionais. At o ano de 1995, aps a realizao da Marcha Zumbi dos Palmares Pela Cidadania e a Vida, organizada por diversas organizaes negras em Braslia 15, as demandas destes movimentos transformam-se do denuncismo para demandas propositivas. Se at este perodo as energias polticas dos movimentos negros se concentravam em denunciar a existncia de uma ideologia de democracia racial sustentada, sobretudo pelo Estado, aps este momento os ativistas passam a propor polticas de incluso racial e a dialogar com as esferas estatais de modo mais profissionalizado e sistemtico16. Na ocasio, o governo do ento presidente Fernando Henrique Cardoso cria o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorizao da Populao Negra GTI, a fim de responder de forma mais objetiva s demandas e presses polticas exercidas pelos movimentos negros durante o seu governo. Nesta ocasio, o Brasil j era signatrio de vrios tratados internacionais de proteo contra a discriminao racial e j havia assinado resolues com recomendaes de polticas especficas para a incluso de segmentos sociais e racialmente marginalizados. Apesar da exterioridade de tal compromisso no havia polticas significativas de reduo das desigualdades raciais. O processo de mobilizao negra para a 3 CMR revelou dimenses importantes no que tange mudana da relao entre os movimentos negros e Estado e mudanas internas s prprias organizaes negras. Neste perodo, as relaes polticas entre Estado e sociedade civil experimentaram um amadurecimento institucional sem precedentes. No caso brasileiro tem sido frequente a interface entre estes dois atores polticos, levando incorporao por parte da delegao oficial de diversas propostas e contribuies da sociedade civil em seus documentos

15 Depoimento de Edson Cardoso, ex-militante do Movimento Negro Unificado e atual editor do jornal Irohn, mostra que no final de 1994 ele props aos colegas do MNU esta marcha. A reao da comisso executiva do MNU no foi positiva, especialmente porque Cardoso afirmara que iria conversar com Ivanir dos Santos, diretor do CEAP, a fim de buscar mais aliados para a construo da marcha. Sublinha que as ONGs negras apoiaram a construo desta mobilizao, como o CEERT e o Geleds. Para ler o depoimento completo ver Histrias do Movimento Negro no Brasil, livro organizado pelos historiadores Verena Alberti e Amilcar Pereira. 16 Para o desenvolvimento e crtica deste argumento consultar a dissertao supracitada.

oficias (LINDGREN, 2001). Na realidade, a influncia e o know-how da sociedade civil, em especial das organizaes no-governamentais so de tal dimenso que as delegaes oficiais insistem em que estas participem dos processos decisrios e da discusso dos documentos. No raro constatar que em muitas ocasies a experincia acumulada pelas ONGs superou a da prpria delegao oficial, seja em termos tcnicos ou mesmo polticos17. No caso da preparao para a 3 CMR a delegao oficial, em diferentes momentos, confundia e reduzia a importncia temtica da conferncia. O chefe da delegao oficial na ocasio, o embaixador Gilberto Sabia, chegou a afirmar que a sociedade brasileira no reivindica mudanas nas relaes raciais no Brasil. Tal afirmao foi encarada pela militncia negra como uma profunda contradio entre aquilo que o governo afirmava do ponto de vista de rompimento da ideologia da democracia racial e o que fazia na prtica. Se por um lado o governo reconhecia o racismo e a discriminao racial e se mobilizava para que a delegao brasileira levasse para a frica do Sul as recomendaes mais progressistas no que tange a superao de tais desigualdades, por outro os representantes da delegao oficial no assumiam suficientemente tais desafios. O processo de mobilizao tambm trouxe tona que as disputas por representao pblica e hegemonia poltica so constantes nos movimentos negros brasileiros contemporneos. Em outros termos, determinadas organizaes concentraram os recursos financeiros e os canais de comunicao junto ao Estado e mesmo o sentido daquilo que reivindicavam em nome de toda uma coletividade. Denominei isto de onguizao dos movimentos negros tentando sinalizar que durante o processo para a conferncia as organizaes negras filiativo-nacionais tiveram dificuldades em acompanhar as negociaes em torno da conferncia e mesmo em incorporar em suas atuaes a importncia poltica que esta representava para a populao negra. Um bom exemplo disso que boa parte de tais organizaes se posicionava contrariamente s

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17 As delegaes oficiais no contam necessariamente com especialistas e ativistas no tema das conferncias. Consequentemente, o rendimento em termos tcnicos e polticos so relativamente baixos. Por esta razo, a participao de ativistas e profissionais da sociedade civil tem se tornado uma constante para a boa conduo dos trabalhos de preparao.

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polticas de ao afirmativa, em especial em uma de suas modalidades, as cotas raciais. Algumas de suas lideranas argumentavam que tais medidas eram insuficientes frente s reais demandas de incluso social da populao negra brasileira. Sem entrarmos no mrito se tal assertiva coerente ou no, o fato que tal argumento e a prpria precariedade de tais organizaes dificultaram a ampliao de sua participao no processo preparatrio. Sem a pretenso de esgotar o quadro exposto acima, necessrio acentuar que de 1995 em diante as mudanas observadas na relao entre movimentos negros e Estado influenciaram na construo de uma agenda poltica racial extremamente significativa. Anterior a este perodo, a prpria ideia de raa era frequentemente evitada, seno rechaada pelas autoridades estatais de governos especficos. Sob a sombra do mito da democracia racial, o mximo que se obtinha em termos de visibilidade das demandas da populao negra era expresso no campo das prticas culturais. A criao da Fundao Cultural Palmares (FCP) durante o governo do presidente Jos Sarney, do Partido do Movimento Democrtico Brasileiro (PMDB), em 1988, ilustrativa neste sentido. Atendendo reivindicaes de lideranas dos movimentos negros, crticos s comemoraes do centenrio da abolio da escravatura, o presidente Jos Sarney assina um decreto-lei estabelecendo a FCP como entidade subordinada ao Ministrio da Cultura e que teria como principal misso a defesa e a preservao do patrimnio imaterial afrobrasileiro. Em 2003, no incio do primeiro mandato do presidente Lus Incio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), a Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial (Seppir) estabelecida como secretaria de governo. A Seppir, diferentemente da FCP, resulta do aprofundamento das relaes poltico-institucionais entre movimentos negros e Estado, ainda que no represente somente os negros. Do mesmo modo, sinaliza de forma efetiva a incorporao de demandas de ativistas negros(as) pertencentes ao PT e das presses e compromissos gerados durante e aps a preparao para a 3 CMR. As relaes poltico-institucionais entre movimentos negros e os poderes estatais no Brasil sofreram modificaes substantivas do incio dos anos 90 at a atualidade. Desde o reconhecimento oficial do racismo e da discriminao racial pelo governo federal, demandas em torno de maior equalizao racial

INSTITUCIONALIZAO DOS MOVIMENTOS NEGROSO surgimento de rgos do poder pblico voltados especificamente defesa dos interesses da populao negra, como o Conselho de Participao e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de So Paulo, a Secretaria Extraordinria para Defesa e Promoo das Populaes Afrobrasileiras do Rio de Janeiro (Sedepron/Seafro), a Fundao

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em espaos institucionais tornaram-se tema corrente de discusso. Como citado acima, o prprio governo federal toma a iniciativa de discutir a viabilidade de implementar polticas de ao afirmativa. O prprio processo de mobilizao dos movimentos negros para a conferncia mundial contra o racismo e o trabalho junto delegao oficial possibilitou uma visibilidade at ento indita da questo das desigualdades raciais. A criao Seppir foi um dos resultados diretos desta mobilizao. Ainda que uma antiga demanda de militantes negros do Partido dos Trabalhadores de uma instncia federal que desenvolva e auxilie na execuo de polticas de igualdade racial, a Seppir um exemplo concreto do sucesso das vocalizaes dos movimentos negros junto ao Estado. Ao mesmo tempo, o trabalho desenvolvido pela secretaria ao longo das duas gestes governamentais de Lula no est isento de crticas por parte de intelectuais e militantes negros. Relatos de lideranas negras do Rio de Janeiro, So Paulo e Braslia criticam a maneira pela qual a Seppir foi constituda, ou seja, atendendo muito mais a configuraes poltico-partidrias e aos lobbies de militantes petistas do que a aspiraes e necessidades dos movimentos negros (SANTOS, 2005). A escolha da ex-ministra Matilde Ribeiro e do atual ministro Edson Santos ambos do PT corroboram em parte tal tese. No geral, carecemos de devidas anlises sobre a atuao desta secretaria junto aos rgos federais e a sociedade civil como um todo. Por outro lado, a constituio da Seppir, da Fundao Cultural Palmares e as experincias de secretarias estaduais e municipais de combate ao racismo e promoo da populao negra so exemplos de um complexo processo de institucionalizao dos movimentos negros que data do incio dos anos de 1980.

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Cultural Palmares, o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorizao da Populao Negra (GTI), a Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial (Seppir) dentre outras, constitui exemplo do que podemos chamar de institucionalizao dos movimentos negros nos ltimos 20 anos. Criado durante o governo de Franco Montoro (1983-1987), o Conselho de Participao e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de So Paulo foi o primeiro rgo do poder pblico especificamente voltado ao trabalho de construir polticas pblicas de combate ao racismo. Seu principal articulador e idealizador, Ivair dos Santos, relata que a ideia da secretaria surgiu quando foi convidado para trabalhar na Secretaria de Assuntos Polticos do governo Franco Montoro (PMDB) em 1983. Recm retornado de Angola, onde trabalhou por alguns anos, notou sem muito espanto que praticamente no havia negros na composio de governo, com exceo de Hlio Santos, que trabalhava no cerimonial. Ivair dos Santos ao observar que havia um Conselho da Condio Feminina percebeu que havia espao para a atuao das minorias. Imediatamente pensou: Por que no criar um conselho do negro18? Convidou Hlio Santos e mais outros colegas e sugeriu ao governador Montoro que se criasse esse conselho. O que foi feito no dia 11 de maio de 1983. De acordo com o depoimento de Ivair dos Santos, o Conselho de Participao e Desenvolvimento da Comunidade Negra no surgiu por uma demanda especfica do movimento negro. Muitos militantes entendiam poca que qualquer iniciativa tomada pelo poder pblico neste sentido sinalizaria cooptao do movimento 19 . Carlos Alberto Medeiros, militante experiente dos movimentos negros e ex-chefe de gabinete da Secretaria Extraordinria de Defesa e Promoo da Populao Negra (Sedepron) no incio dos anos 90, afirma que

18 Citado em Histrias do Movimento Negro no Brasil, organizados por Amilcar A. Pereira e Verena Alberti. Para detalhes do processo de formao do Conselho de Participao e Desenvolvimento da Comunidade Negra de So Paulo consultar dissertao de mestrado do prprio Ivair dos Santos, O movimento negro e o Estado (1983-1987), Campinas, Unicamp, 2001. 19 Citado em Histrias do Movimento Negro no Brasil, p. 217.

Anos mais tarde h uma acelerada mudana de percepo da militncia neste sentido. Muitas organizaes negras e ativistas ligados ao governo federal, estadual e municipal iro demandar exatamente uma resposta mais pragmtica e institucional ao problema das desigualdades raciais, ainda que alguns segmentos preferissem uma postura de constante crtica e denncia do racismo estrutural. Outro aspecto fundamental que as relaes com o aparato estatal atendem a determinados requisitos que podem ser descritos nos seguintes itens: a) atuao de ativistas negros, geralmente independentes, sejam estes funcionrios pblicos ou com mandatos parlamentares; b) algum tipo de experincia com a mquina burocrtica; c) percepo de aberturas institucionais ou de oportunidades polticas surgidas da relao movimento social/ Estado. Tais caracterizaes ajudam tambm a entender os papis desempenhados tanto por indivduos quanto por instituies em processos decisrios. Em outros termos, a gnese de muitas iniciativas no mbito governamental que iro caracterizar o que chamo aqui de institucionalizao dos movimentos negros se d a partir do protagonismo individual, por meio da percepo, experincia profissional junto burocracia estatal e oportunizao de determinados ativistas negros ao atuar em espaos estratgicos do poder pblico. Em termos gerais, tais rgos e/ou instncias de mediao so vistos por muitas lideranas negras como espaos importantes no sentido de dar suporte e auxlio na construo de polticas sociais de combate discriminao racial. Aps a experincia do conselho do negro em So Paulo, outras iniciativas foram desencadeadas a partir de modelos parecidos no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, etc. Na realidade, em vrios

20 Idem, p. 351.

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Havia muita desconfiana, no incio, em relao s primeiras articulaes do movimento negro com o Estado. At um determinado momento havia muita suspeita de cooptao: Vo levar os caras para neutralizar o movimento. Na Sedepron, no Rio, durante o governo Brizola, ns no conseguimos avanar muito, ns apanhamos da mquina do Estado20.

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estados brasileiros possvel encontrar exemplos da simbiose entre demandas coletivas dos movimentos negros incorporadas pelo e no poder pblico. O ponto central a observar que tais instncias funcionam desde dentro da institucionalidade estatal, a partir de determinadas oportunidades polticas especficas, da conjuntura nacional e da percepo e capacidade tcnico-burocrtico de ativistas negros ligados ou no a organizaes negras. A noo de institucionalizao pode levar a leituras equivocadas e apressadas, caso interpretemos isso simplesmente como um deslocamento da ao coletiva dos movimentos sociais para dentro da esfera estatal. Na realidade, este um processo cuja maturao atravessa geraes e provoca um sem nmero de transformaes internas na relao do movimento social com os aparatos estatais e com o conjunto da sociedade civil. O carter multifacetado descentralizado caracterstico dos movimentos negros, em momentos diversos da histria brasileira e, em especial aps os anos 70, permitiu uma interao mais ntima com as instituies estatais e com governos especficos. Determinados governos manifestaram posturas e aberturas diferenciadas para as agendas raciais apresentadas pelos movimentos negros. Alm do j citado PMDB, a experincia da Sedepron/Seafro no Rio de Janeiro tambm expressa isso. Criada no segundo governo de Leonel Brizola, do Partido Democrtico Trabalhista (PDT), esta secretaria extraordinria funcionou de 1991 a 1994 sob a coordenao de Abdias do Nascimento. No caso do PDT j havia uma relao minimamente consolidada entre o partido e parte da militncia negra do Rio de Janeiro. No incio dos anos 80, quando Abdias e Brizola voltam do exlio, criado o PDT e Abdias funda a Secretaria do Movimento Negro neste partido. Em linhas gerais, tais aberturas ou graus de dificuldades na relao entre movimentos negros e governo podem ser interpretadas a partir de uma srie de fatores, tais como: coligaes partidrias; insero da temtica racial nos programas de governo especficos; arranjos institucionais entre organizaes negras e lideranas partidrias; conjuntura internacional e; principalmente, nvel de flexibilidade da ideologia da democracia racial. Este ltimo item pode ser mais bem entendido em dois momentos da histria dos movimentos negros recentes: 1) perodo que vai do final dos anos 70 at meados de 1993 e 1994 e 2) momento posterior

ao ano de 1995, quando durante o governo de Fernando Henrique Cardoso tm-se o reconhecimento do racismo e da discriminao racial como fatos concretos da realidade brasileira. Durante a primeira fase o no reconhecimento do racismo e da discriminao racial enquanto estruturas mantenedoras da ordem racial cuja traduo a permanncia da desigualdade racial a partir da inrcia estatal neste campo dificultava imensamente o processo de negociao entre os movimentos negros e representantes estatais. Alm do mais, do ponto de vista da organizao poltica dos movimentos negros, em especial quando da formao do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminao Racial, o que estava em pauta era denunciar a existncia do racismo e da discriminao racial como fatos concretos no dia a dia da populao negra. Este carter denuncista tambm vinha acompanhado dos primeiros esboos de polticas pblicas de combate ao racismo, porm de maneira ainda muito incipiente e inorgnica. Ao mesmo tempo, havia por parte do MNU um projeto de modificao do ordenamento social visto a partir da dinmica da poltica negra. Os desgastes internos da ditadura militar e uma crescente mobilizao da sociedade civil em torno da redemocratizao ajudaram na flexibilizao destas novas demandas, o que no significou o fim da represso poltica contra ativistas negros21, tampouco a aceitao da agenda racial que os movimentos negros estavam desenvolvendo naquele momento. Por outro lado, tais relaes no devem ser vistas somente em chave positiva, como se representassem um avano nas demandas do movimento social. Uma das implicaes da institucionalizao dos movimentos negros so os possveis atrelamentos polticos da ao coletiva deste segmento e as diversas relaes de dependncia resultantes deste processo. Uma caracterstica comum a todas as experincias passadas e presentes de conselhos, secretarias especiais e outros rgos governamentais ou estatais voltados populao negra a discrepncia entre a implementao das polticas propostas e o oramento disponvel.

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21 Ver dissertao de mestrado de Karin SantAnna Kossling intitulada As Lutas Antirracistas de Afrodescendentes sob a Vigilncia do DEOPS/SP (1964-1983), defendida na USP em 2007.

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Por outro lado, este fenmeno aparentemente contraditrio com as noes clssicas de movimento social. Por exemplo, David Snow et al define movimento social comocoletividades agindo com certo grau de organizao e continuidade fora dos canais institucionais ou organizacionais com o propsito de desafiar ou defender a autoridade existente, se institucionalmente ou culturalmente baseada, no grupo, organizao, sociedade, cultura ou ordem mundial, de que so uma parte22. (p. 11)

O carter de fora dos canais institucionais ou mesmo contra os poderes institudos o que caracteriza a ao coletiva. No entanto, no caso dos movimentos negros temos exemplos de atuaes de parlamentares que buscaram defender e aproveitar este espao em prol da populao negra. O caso mais notrio disso a trajetria de Abdias do Nascimento pelo Senado Federal. Alm de realizar vrias aes explcitas em defesa da populao negra, Abdias do Nascimento foi o primeiro a propor o que at ento designava por polticas compensatrias, sinnimo de ao afirmativa. Benedita da Silva tambm exemplifica o caso do uso da mquina burocrtica em defesa dos negros. Mais recentemente temos o caso do senador Paulo Paim, o proponente do Estatuto da Igualdade Racial que em inmeras ocasies emprestou seu mandato para a defesa de polticas para a populao negra. A institucionalizao dos movimentos negros ao mesmo tempo resultado dos esforos da militncia negra em fazer com que os poderes estatais reconheam a existncia do racismo institucional e da discriminao racial e a expresso de mudanas das formas organizativas presentes no movimento. No h um consenso entre as organizaes negras quanto a este processo. Tampouco instncias como a FCP e Seppir so vistas exatamente como movimento negro por alguns

22 Traduo do ingls: collectivities acting with some degree of organization and continuity outside of institutional or organizational channels for the purpose of challenging or defending extant authority, whether it is institutionally or culturally based, in the group, organization, society, culture, or world order of which they are a part. Traduo feita pelo autor.

23 Em entrevista concedida por email o militante negro Reginaldo Bispo afirma neste sentido que Comisses, secretarias, coletivos de partido, de governo e a maioria das ONGs Negras no so MN (Movimento Negro). H tambm uma infinidade de entidades de um nico dono, estas tambm no caracterizamos como tal. As estruturas sindicais e das Centrais, assim como coletivos religiosos podem ser ou no, depende da sua atuao, uma poro delas so apenas cabide de emprego para satisfazer e acomodar os seus negros, o mesmo identificamos na maioria desses espaos em governos e partidos. Data da entrevista: 14 de maro de 2009.

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militantes 23. O fato que este processo de institucionalizao representa uma fase marcante dos movimentos negros contemporneos e aponta simultaneamente para transformaes presentes no prprio Estado desde a redemocratizao at os dias atuais. Isso no significa dizer que as conjunturas polticas dos ltimos 20 ou 15 anos representem avanos em todos os campos ou que tenham representado necessariamente benefcios para a populao negra. O avano das polticas de tipo neoliberal, especialmente a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, retardou uma srie de conquistas sociais importantes, alm de aumentar os ndices de pobreza e indigncia em todo o pas. Dentre os mais prejudicados esto os negros, j que massivamente encontram-se na base social. Os novos idelogos da democracia racial apontam para o fenmeno da institucionalizao dos movimentos negros como um perigoso processo de racializao da sociedade brasileira. Afirmam que um retrocesso histrico o fato de que um Estado permita e mesmo incentive polticas sociais com base na identidade racial. Para estes, a institucionalizao e a racializao so resultantes da penetrao de lideranas negras nos aparatos estatais e trairiam imensamente o iderio nacional de convivncia pacfica e indiferenciada entre as raas (FRY 2005, MAIO & MONTEIRO 2004). A nova ideologia da democracia racial aponta tambm que a racializao da sociedade brasileira nada mais do que uma tentativa apressada e extempornea de copiar o modelo de relaes raciais existentes nos Estados Unidos. Diferentemente do modelo da ideologia anterior, os novos idelogos no negam a existncia do racismo e da discriminao racial. Entretanto, enfatizam que no Brasil o verdadeiro problema de desigualdade social, ou seja, um problema de classe e

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no de raa. Portanto, bastariam polticas sociais visando os mais pobres para minorar tal situao. J que dentre os pobres os negros so majoritrios, ento bastaria implementar polticas universalistas e no polticas focadas na raa.

DEMANDAS E DESAFIOS ATUAIS DOS MOVIMENTOS NEGROSO processo de mobilizao dos movimentos negros para a 3 Conferncia Mundial Contra o Racismo apontou para um amplo conjunto de mudanas na relao movimentos negros/Estado24. Como visto acima, este processo no se inicia durante a preparao para a referida conferncia. Entretanto, este momento pode ser visto como o momento catalisador do ponto de vista do comprometimento do Estado para com a populao negra em termos de polticas pblicas de reduo das desigualdades raciais e da assuno desse compromisso em carter internacional. A partir do momento em que o Estado brasileiro assinou o Plano de Ao e a Declarao Final de Durban passou a assumir diante do mundo seus contedos mais fundamentais. Como de praxe, preciso que a sociedade civil e, neste caso, mais especialmente os movimentos negros, acompanhem e exijam do Estado os compromissos assumidos neste campo. Em outros termos, graas persistncia poltica dos movimentos negros atravs de articulaes e dilogos de seus ativistas foi possvel que o Brasil entrasse na conferncia contra o racismo com propostas sofisticadas e avanadas. Na verdade, a combinao entre a experincia diplomtica brasileira apesar da cegueira de muitos de seus representantes para os problemas envolvendo o racismo e o conjunto de saberes de ordem poltica, intelectual e institucional dos militantes negros e negras possibilitou com que a delegao brasileira se destacasse como uma das mais importantes de toda a conferncia e mais numerosa fora da frica.

24 Desenvolvi em dissertao de mestrado um estudo sobre este processo de mobilizao dos movimentos negros e ali aprofundei muitos dos pontos que aqui iro aparecer somente de forma elucidativa. Ver A Persistncia Poltica dos Movimentos Negros: processo de mobilizao negra 3 Conferncia Mundial contra o Racismo, UERJ, 2005.

25 No livro organizado por Amilcar Pereira e Verena Alberti, Histrias do Movimento Negro no Brasil encontrei as melhores descries de ambos os processos feitas por seus principais articuladores. Portanto, para detalhes de tais processos, consultar esta excelente publicao.

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Os grandes laboratrios para o que seria a conferncia contra o racismo, o avano de seus resultados, etc., foram, primeiro, a mobilizao dos movimentos negros para os preparativos em torno do Centenrio da Abolio da Escravatura, em 1988, e o segundo o processo de mobilizao negra para a Marcha Zumbi dos Palmares pela Cidadania e a Vida, em 1995 na cidade de Braslia25. De maneira bastante resumida, podemos dizer que em ambas as mobilizaes as principais reivindicaes concentravam-se em exigir do poder pblico polticas pblicas consistentes de reduo da desigualdade racial. A marcha de 1995 teve como consequncia concreta a criao do Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorizao da Populao Negra GTI ou, se preferirmos, uma resposta institucional do Estado frente s demandas postas pelo ativismo negro. O objetivo era exatamente romper com as constantes promessas e lentido estatal neste campo e pensar a questo racial desde uma perspectiva efetivamente pragmtica. Infelizmente o GTI, como outras tantas experincias no campo da relao Estado/movimentos negros, no obteve flego necessrio e no conseguiu cumprir suas promessas e anseios mais bsicos. A resposta para tal fracasso no simples j que h que se levar em conta uma srie de fatores: problemas internos ao GTI; pouca intimidade com a mquina burocrtica por parte dos ativistas; dificuldades de comunicao entre as esferas governamentais e, sobretudo, uma slida cultura poltica racista no totalmente decomposta. Seria no mnimo simplista imaginarmos que o reconhecimento do racismo e da discriminao racial por parte do governo significaria uma mudana acelerada de toda ideologia da democracia racial encarnada nas instituies estatais que, no meu entendimento, nada mais do que um poderoso constructo de manuteno da ordem racial hegemnica.

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O tema da ao afirmativa, presente desde o Conselho de Participao e Desenvolvimento da Comunidade Negra em So Paulo e da Sedepron no Rio de Janeiro, ganha um importante impulso a partir do momento em que tal ideia comea a ser pensada de maneira mais sistemtica no incio dos anos 90. O seminrio Multiculturalismo e Racismo: o papel da ao afirmativa nos estados democrticos tinha como proposta exatamente discutir a viabilidade destas polticas no contexto brasileiro. No lugar aqui para avaliar o grau de abrangncia esperado e obtido em torno destas polticas. No caso em questo chama a ateno que este amplo conjunto de mudanas provoca questionamentos profundos no conjunto da militncia negra. As mobilizaes, marchas e processos de organizaes resumidamente descritas acima houve uma centena de outras, de carter localizado traduzem exatamente o meio pelo qual a poltica dos movimentos negros conduzida no embate com os poderes estatais. Ao mesmo tempo, tal dinmica modifica e desafia a prpria maneira como as organizaes negras pensam a si mesmas. A Seppir e outros rgos existentes na estrutura do Estado nos dias atuais ligados aos negros representam simultaneamente um avano e um paradoxo na poltica negra brasileira atual. O avano pode ser expresso na incorporao de uma agenda racial pelo poder pblico, cuja expresso mais forte so as polticas de ao afirmativa. O paradoxo que ao desenvolver uma agenda racial o Estado parece sinalizar para uma aparente resoluo ou, pelo menos, para uma pacificao do conflito racial inscrito em sua prpria estrutura. Em outros termos, no est claro qual o caminho que os movimentos negros passaro a adotar neste sentido. O fato que no h como retroceder do ponto de vista dos compromissos assumidos at ento. Vejo tambm como um desafio o debate em torno da implementao das polticas de ao afirmativa no mercado de trabalho para a populao negra. Tal mudana de foco far com que a relao movimentos negros/Estado caminhe mais firmemente para decises no campo da poltica econmica. Isso implica que o movimento social dentro ou fora das estruturas do Estado desenvolva mecanismos de cobrana e accountability do quanto se pretende investir com polticas nesta rea.

CONCLUSOCom tranquilidade possvel afirmar que os movimentos negros tm sido um dos movimentos sociais mais vitoriosos nos ltimos anos na defesa e promoo das demandas da populao negra. Os avanos da militncia nas reivindicaes junto ao poder pblico ainda no significaram uma reverso social do padro de vida dos negros brasileiros, nem mesmo de pequenos segmentos desta populao. O debate sobre desigualdades raciais no pode ser plenamente entendido se olharmos somente para os efeitos causados entre os negros. Na verdade, h um entrelaamento de diversos outros fatores que mantm os padres gerais de desigualdades sociais constantes entre os vrios grupos na sociedade. Por esta razo que polticas sociais de reduo das desigualdades raciais precisam ser combinadas com polticas sociais de reduo de pobreza para todos os grupos. Isso tambm significa a ampliao de investimentos na requalificao da mo de obra de negros e no-negros e de uma mudana profunda nos investimentos em educao, desde o nvel fundamental at a ps-graduao. Pases como Japo, Estados Unidos e Coreia do Sul exemplificam exatamente a reverso de seus padres sociais a partir do investimento massivo em educao aliado ao desenvolvimento industrial e tecnolgico. Os ltimos 20 anos testemunharam transformaes profundas na relao movimentos negros/poder pblico, como se tentou mostrar acima. Alm do mais, este movimento social foi o grande responsvel pela mudana de paradigma no mbito das relaes raciais no Brasil, mais concretamente na disseminao popular de que o racismo continua a ser uma realidade e na deslegitimao da ideologia que o sustenta: o mito da democracia racial. Isso no significa necessariamente mudanas profundas no dia a dia das pessoas. Em outros termos, a prtica da discriminao racial continua em curso e provocando diversos prejuzos a quem a sofre. Desde aqueles de ordem psquica at os de ordem scio-econmica, como acesso a emprego e alocao profissional. No entanto, o imaginrio social sobre a populao negra tem sofrido paulatinas mudanas. A criao de rgos e secretarias visando o combate ao racismo atesta o grau de maturidade institucional e poltica dos movimentos negros. Seus ganhos podem ser descritos na maneira pela qual a sociedade brasileira encara o problema do racismo e vincula seus avanos com os

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movimentos negros. Do mesmo modo que a democracia existente hoje mais slida e sensvel s disparidades raciais, apesar de todas as suas imperfeies e contradies. Por outro lado, os movimentos negros no tm sido capazes de renovar suas bases altura de suas demandas, levando a um constante distanciamento de seus beneficirios. As ondulaes movimentalistas dos movimentos negros mencionadas no incio deste texto nos serviro de exemplo para conclu-lo. Metfora tomada de emprstimo de Sidney Tarrow a partir da ideia de ciclos de protestos e mais apropriadamente as ondas de contestao, na reinterpretao de Ruud Koopmans (2004), as ondulaes movimentalistas dos movimentos negros no seguem uma via linear de ao. Pelo contrrio, sua histria recente mostra que seus ativistas e apoiadores tm sabido diversificar e garantir conquistas em prol da igualdade racial, mesmo que esta permanea no terreno da utopia e como um horizonte poltico a ser perseguido. Cabe ao prprio movimento, com o suporte do poder pblico, a tarefa de aproximar mais estas diferentes esferas de atuao a fim de que os resultados da poltica negra se faam sentir efetivamente na comunidade negra, auxiliando na modificao dos lugares sociais ocupados pela imensa maioria destes.

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