124
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Thanyelle Galmacci A Demarcação Urbanística e a Legitimação da Posse como instrumentos de Regularização Fundiária de Interesse Social MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2012

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

  • Upload
    others

  • View
    4

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Thanyelle Galmacci

A Demarcação Urbanística e a Legitimação da Posse

como instrumentos de Regularização Fundiária de Interesse Social

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2012

Page 2: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Thanyelle Galmacci

A Demarcação Urbanística e a Legitimação da Posse

como instrumentos de acesso de Regularização Fundiária de Interesse Social

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial à obtenção do título de Mestre em Direito do Estado sob a orientação do Prof. Dr. Nelson Saule Júnior.

SÃO PAULO

2012

Page 3: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

Banca Examinadora:

____________________________________

Page 4: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

À minha filha Luiza, personificação do amor

incondicional. Lute sempre por aquilo que acredita.

Page 5: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

AGRADECIMENTOS

Agradeço, inicialmente, ao meu orientador Nelson Saule Júnior por seus

ensinamentos, por toda sua dedicação ao Direito Urbanístico e, em especial, por

sua luta pelo fim da segregação espacial urbana.

Agradeço à Professora Daniela Libório Di Sarno, que fez parte da minha

banca de qualificação e que, em alguns poucos minutos de contato, conseguiu me

contagiar com sua empolgação e amor pelo Direito Urbanístico. Em especial porque,

despretensiosamente, sua presença e suas palavras reavivaram em mim a vontade

de lutar e vencer que havia perdido no decurso do ano de 2011.

À Professora Arlete Inês Aurelli por sua fundamental contribuição no

processo de elaboração desse trabalho.

Agradeço aos meus pais, Acyr e Maria Luiza, por seu amor infinito, por

acreditarem em mim e incentivarem minha luta pessoal para concluir o mestrado.

Agradeço à família Ferreira Lopes, à família Galmacci, à família Rodrigues e

à família Gomes pelo companheirismo sem cobranças nos momentos bons e difíceis

desses últimos anos.

Aos meus avôs paternos e minha avó materna, que não mais estão conosco,

mas que me iluminaram e abençoaram ao longo dessa caminhada árdua.

Ao meu avô Manuel Luiz Lopes, meu maior incentivador desde a infância

que ainda hoje, sem conseguir manifestar reações, tem o dom de me fortalecer

apenas com sua presença.

A Patrick Esnaty Bizarro Gomes por todo o esforço que despreendeu para

que eu concluísse o mestrado e, principalmente, por tudo que representa na minha

vida e na de nossa família.

Agradeço aos amigos Giovanna e Marco Berberi pelo companheirismo e

apoio desmedido em todas as fases desse processo.

À Teca Sandrini que me recebeu de braços abertos no ano de 2011 e

possibilitou a conclusão de minha pós-graduação, sem esperar ou pedir nada em

troca.

A todos os amigos do Museu Oscar Niemeyer que souberam aceitar meus

limites, em especial à Caroline Enke que nesta reta final, juntamente com Giovanna

Berberi, se dispuseram a me ajudar de todas as maneiras possíveis, aliviando, em

muito, minha carga de responsabilidades.

Page 6: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

Agradeço, por fim, a todas as pessoas que me auxiliaram nesse longo

processo de qualificação profissional e que, ainda que apenas respeitando minha

ausência, me incentivaram a concluí-lo.

Page 7: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

“O impossível reside nas mãos inertes

daqueles que não lutam.”

(Epicuro)

Page 8: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

GALMACCI, Thanyelle. A Demarcação Urbanística e a Legitimação da Posse como instrumentos da Regularização Fundiária de Interesse Social. São Paulo, 2012. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012.

RESUMO

A dificuldade que tem o Poder Público de promover e garantir o direito à moradia tem sua origem no período de descobrimento e distribuição de terras do Brasil. Os métodos trazidos pela coroa portuguesa para dar utilidade às terras resultou nos grandes latifúndios e na segregação espacial urbana. No Brasil, o direito à moradia, mencionado na Declaração Universal de Direitos Humanos, passou ao status de direito fundamental na Constituição Federal de 1988 apenas no ano 2000. Como consequência da falta de políticas públicas habitacionais, as ocupações irregulares passaram a fazer parte do contexto da cidade, em especial nos grandes centros urbanos. A regularização fundiária tornou-se então um importante instrumento para garantir a segurança jurídica da posse nessas ocupações e melhorar a qualidade de vida e condições de habitabilidade dessa população. A lei 11.977/2009 regulamentou a regularização fundiária e trouxe dois novos instrumentos para auxiliar nesse processo, a demarcação urbanística e a legitimação de posse, possibilitando ao Poder Público a utilização de novos instrumentos de promoção do direito à moradia e a criação de melhores condições de vida à população de baixa renda.

Palavras-chave: Distribuição de terras no Brasil, Direito à Moradia, Regularização Fundiária, Demarcação Urbanística e Legitimação da Posse.

Page 9: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest. São Paulo, 2012. Master´s Thesis – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012.

ABSTRACT The difficulty that the Government is to promote and guarantee the right to housing has its origin in the period of discovery and distribution of land in Brazil. The methods brought by the Portuguese crown to give the land use resulted in large estates and urban spatial segregation. In Brazil, the right to housing, mentioned in the Universal Declaration of Human Rights, got the status of fundamental right, expressed in the 1988 Brazilian Federal Constitution, just in 2000. As a consequence of the lack of public housing policies, the illegal occupations have become part of the context of the city, especially in large urban centers. The regularization then became an important instrument to guarantee the legal security of tenure in these occupations and improve the quality of life and living conditions in this population. The law regulated the 11.977/2009 tenure and brought two new tools to assist in this process, the urban demarcation and legalization of possession, allowing the Government to use new instruments to promote the right to housing and the creation of better living conditions for low-income population. Keywords: Distribution of land in Brazil, Housing Rights, Landed Regularization, Demarcation Urban and Legitimation of Possession.

Page 10: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12

2 DISTRIBUIÇÃO DE TERRAS NO BRASIL ........................................................... 15

2.1 O REGIME DE SESMARIAS E A FORMAÇÃO DA PROPRIEDADE NA

COLÔNIA .................................................................................................................. 20

2.2 O IMPÉRIO DAS POSSES E A LEI DE TERRAS ............................................... 23

2.3 COLONIZAÇÃO E IMIGRAÇÃO ......................................................................... 26

2.4 LEGISLAÇÃO FUNDIÁRIA NA REPÚBLICA ...................................................... 27

3 OS MARCOS DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA .............................................. 37

3.1 DIREITO À MORADIA COMO FUNDAMENTO DA REGULARIZAÇÃO

FUNDIÁRIA ............................................................................................................... 37

3.1.1 O Direito à Moradia no mundo ......................................................................... 38

3.1.2 O Direito à Moradia no Brasil ........................................................................... 44

3.1.3 Direito Fundamental à Moradia, Aplicabilidade e Eficácia ................................ 47

3.3 REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA E SUA PREVISÃO NORMATIVA .................... 52

3.3 REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE INTERESSE SOCIAL ................................ 56

4 OS NOVOS INSTRUMENTOS DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE

INTERESSE SOCIAL ............................................................................................... 61

4.1 DEMARCAÇÃO URBANÍSTICA .......................................................................... 61

4.1.1 Exigências legais e procedimentos da Demarcação Urbanística ..................... 63

4.1.2 A Relação entre a ZEIS e a Demarcação Urbanística ..................................... 68

4.2 LEGITIMAÇÃO DA POSSE ................................................................................. 71

4.2.1 Análise histórica do instituto da Posse ............................................................. 71

4.2.1.1 A Posse no Direito Romano .......................................................................... 72

4.2.1.2 A “Gewere” .................................................................................................... 75

4.2.1.3 O Direito Canônico ........................................................................................ 76

4.2.1.4 Transição da posse ....................................................................................... 76

4.2.1.5 Teorias sobre a Posse ................................................................................... 77

4.2.2 LEGITIMAÇÃO DA POSSE NO DIREITO BRASILEIRO ................................. 80

4.2.2.1 A Legitimação da Posse no Direito Urbanístico – Lei 11.977/2009 ............... 82

4.2.2.2 Conceito de Legitimação da Posse na Lei 11.977/2009................................ 84

Page 11: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

4.2.2.3 Fundamentos e base legal da Legitimação da Posse na Lei

11.977/2009 .............................................................................................................. 84

4.2.2.4 Exigências da Lei 11.977/2009 à Legitimação da PosseErro! Indicador não definido.

4.2.3 A Legitimação da Posse e a Concessão de Uso Especial para fins de

Moradia ..................................................................................................................... 87

4.2.4 As interfaces entre a Usucapião Especial Urbana e a Legitimação da

Posse ........................................................................................................................ 91

4.2.4.1 Conceito de Usucapião ................................................................................. 92

4.2.4.2 Origem histórica ............................................................................................ 92

4.2.4.3 Fundamentos da usucapião .......................................................................... 93

4.2.4.4 Elementos necessários à usucapião ............................................................. 95

4.2.4.5 Usucapião de bens públicos .......................................................................... 99

4.2.4.6 A Usucapião Especial Urbana e Legitimação da Posse .............................. 101

5 EXPERIÊNCIA DE DEMARCAÇÃO URBANÍSTICA E LEGITIMAÇÃO DA

POSSE NA ROCINHA ............................................................................................ 106

6 CONCLUSÃO ...................................................................................................... 113

REFERENCIAS ....................................................................................................... 116

Page 12: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

12

1 INTRODUÇÃO

Para se entender os institutos da Demarcação Urbanística e da Legitimação

da Posse como instrumentos de regularização fundiária faz-se necessária uma

análise da conjuntura jurídica, política e econômica da colonização do Brasil.

Ainda que não seja o tema principal desta dissertação, um estudo da

retrospectiva histórica da época do descobrimento nos mostrará o contexto no qual

se deram as primeiras distribuições de terras no Brasil, os meios então utilizados, o

regime adotado pela Coroa Portuguesa e ainda outras tantas informações que

esclarecerão como se chegou ao problema fundiário existente em nosso país e a

criação e evolução dos instrumentos incumbidos de sua solução.

Mesmo que se trabalhe com a palavra descobrimento, passando a noção de

que o Brasil era uma terra que a ninguém pertencia até este momento, a história nos

demonstra que as terras brasileiras, por força de acordos políticos legitimados por

autoridades papais, já pertenciam à Coroa Portuguesa.

Portugal necessitou adotar um regime de colonização que, além de

possibilitar a exploração das terras, deveria proteger a colônia das invasões

estrangeiras. A necessidade de garantir economicamente a terra, fez com que os

concessionários adotassem o mesmo sistema de Portugal, concedendo a outras

pessoas parte das terras, o que foi denominado de sesmarias. Pode-se entender

que essa é a origem dos grandes latifúndios, uma vez que a coroa Portuguesa

doava terras àqueles que delas podiam cuidar.

Com a independência do Brasil todas as terras então pertencentes a

Portugal, passaram a pertencer ao Governo do Brasil. Nesse momento o fato

gerador da aquisição da propriedade era a posse e, como não existia procedimento

jurídico para transformá-la em propriedade, favoreceu-se a ocupação desordenada e

a criação de latifúndios.

O advento da Lei de Terras em 1850 trouxe caminhos para o

reconhecimento da propriedade que poderia dar-se por doação, compra das terras

devolutas, a legitimação das posses e revalidação das cartas de sesmarias

mediante a comprovação do cultivo da terra.

Assim, as terras cujas cartas de sesmarias não fossem revalidadas, bem

como as posses não legitimadas, eram incorporadas às terras devolutas.

Page 13: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

13

A Constituição de 1891 transfere as terras devolutas da União para os

Estados e, como estes não conseguem ter o controle, crescem ainda mais os

latifúndios.

Nesse contexto verifica-se que não há respeito, ou mesmo observação, da

função social da propriedade ou da posse no direito brasileiro.

A falta de políticas públicas e a fuga das pessoas do campo para a cidade,

em busca de novas oportunidades, trouxeram diversas consequências ao

desenvolvimento do espaço urbano.

A escassez de recursos das famílias que iam para a cidade atrás de uma

melhor condição de vida não possibilitava a compra de imóveis, obrigando-as, na

grande maioria das vezes, a ocupar irregularmente áreas no entorno dos grandes

centros urbanos.

Faltava a essas famílias, além de melhores condições de habitabilidade, a

segurança jurídica da posse para que não sofressem lesão ao seu direito à moradia.

O direito à moradia, embora há muito já encontrasse subsídio em legislação

internacional e tratados, só foi expressamente previsto na Constituição Federal no

ano 2000.

Passou então o direito à moradia ao nível de direito social fundamental,

elencado no mesmo rol do direito à educação, direito à saúde, entre outros.

O déficit habitacional e a falta de políticas habitacionais ao longo dos anos

não possibilitou (e ainda não possibilita) que todos os brasileiros tivessem acesso ao

direito à moradia, restando necessário, ao menos, garantir a segurança jurídica da

posse das áreas ocupadas irregularmente.

A regularização fundiária tem exatamente esse viés, assegurar a posse dos

moradores de assentamentos irregulares garantindo o acesso à moradia.

Ainda que prevista no Estatuto da Cidade, foi com o advento da Lei

11.977/2009 que a regularização fundiária foi devidamente regulamentada.

Além de conceituar a regularização fundiária de interesse social, que trata

exclusivamente dos assentamentos informais de população de baixa renda, a lei

trouxe dois novos instrumentos, a legitimação da posse e a demarcação urbanística.

Embora se tenha conhecimento de que ambos os instrumentos já existiam,

foi somente com a entrada em vigor desta lei que eles passaram a ser aplicados em

área urbana particular.

Page 14: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

14

A presente dissertação, para estudar os instrumentos “legitimação da posse”

e “demarcação urbanística”, acaba por dividir-se em cinco partes.

A primeira parte do trabalho tratará do histórico da distribuição de terras no

Brasil, ou seja, a gênese da crise habitacional que enfrentamos desde a época da

colonização até os dias de hoje.

Na etapa seguinte, demonstrando os reflexos da má distribuição de terras,

buscar-se-á explicar a proteção legal do direito à moradia das ocupações irregulares

e a regularização fundiária como meio de garantia deste direito.

Com base em todo o trabalho até então desenvolvido, a terceira etapa

estudará a demarcação urbanística, demonstrando a origem e aplicabilidade e a

legitimação da posse, analisando a história da posse como instituto jurídico, a

aplicabilidade da legitimação no direito urbanístico, os fundamentos e requisitos

desse instrumento, além de trazer uma análise com outros instrumentos de

regularização fundiária.

A quarta e última parte da dissertação demonstrará a aplicação desses

instrumentos na Rocinha através do Projeto “Rocinha mais legal” observando as

políticas de implantação, eventuais dificuldades e resultados já obtidos.

Cumpre ressaltar que o tema, de extrema importância para o

desenvolvimento urbano sustentável, ainda é pouco explorado pela doutrina, muito

provavelmente por ser bastante recente no ordenamento jurídico brasileiro. E, nesse

prisma, diversos foram os obstáculos encontrados para concluir esta análise, o que

impossibilitou aprofundar-se no tema. Espera-se, no entanto, que este estudo

represente uma contribuição ao avanço da pesquisa do direito urbanístico.

Page 15: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

15

2 DISTRIBUIÇÃO DE TERRAS NO BRASIL

É fato que o presente estudo mostrar-se-ia incompleto se não fosse

examinada, mesmo que de maneira superficial, a história da origem de nosso regime

de terras, o que demanda uma análise do período anterior ao descobrimento do

Brasil, que se inicia em Portugal.

A perspectiva histórica, mesmo não sendo o nosso foco, por sua vez, nos

traz a origem dos problemas atuais, desde a distribuição de terras, sejam elas

urbanas ou rurais,1até o entendimento da exclusão social existente em nosso país

hodiernamente.

Ainda que se considere que o movimento das Cruzadas, que teve lugar na

Idade Média, tenha em sua origem causas religiosas, não se pode desconsiderar

que existiram também causas econômicas.

A história mostra que o sistema de cultivo de terras então adotado acabava

por causar a infertilidade do solo e, consequentemente, endividava seus nobres

senhores. O direito de primogenitura gerou um grande excesso na classe que, como

alternativa, sucumbiu aos reclames da Igreja para a (re)conquista de novas terras,

sagradas e férteis.

Há que se considerar que, naquele tempo, o domínio territorial era tido como

uma dádiva de Deus, Senhor Deus do Universo, representado na terra pelos Papas,

vigários e chefes da cristandade, justificando, assim, o direito dos pontífices

romanos de distribuir as terras.2 Os conquistadores buscavam o Papa para anuir

com suas descobertas pois desta forma, protegida pela Santa Madre Igreja, suas

conquistas tornavam-se legítimas.

Assim o Papa Nicolau V, por meio da Bula “Cuncta Mundi”, datada de 08 de

janeiro de 1545, concedeu aos reis de Portugal todas as ilhas, mares e terras firmes

compreendidas nas conquista da África. Através da “Bula Inter Caetera”, o Papa

Calixto III, além de ratificar a concessão de Papa Nicolau V, ordenou que nenhuma

outra nação poderia realizar, ou mesmo tentar, descobrimentos nas áreas

mencionadas naquele documento3.

1 TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A Propriedade e a Posse: Um confronto em torno da Função

Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 4. 2 PORTO, Costa. Estudo sobre o Sistema Sesmarial. Recife: Imprensa Universitária, 1965. p. 19.

3 LACERDA, Linhares de. Tratado das Terras do Brasil. Rio de Janeiro: Alba, 1960. p.27.

Page 16: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

16

Esse documento, entre outros de igual valor, é a certeza que se tem de que,

mesmo antes de descobertas, as terras brasileiras já pertenciam à coroa

portuguesa, o que significava que o acesso e a exploração das terras dependiam do

consentimento de Portugal, obrigatoriamente.

Para integrar as terras brasileiras ao seu patrimônio, Portugal se viu

obrigado a adotar um processo de ocupação e exploração, assegurando, assim, seu

domínio e controle sobre as áreas. No processo, algumas camadas da população

portuguesa, individualmente ou mesmo organizadas em sociedade, poderiam povoar

e explorar a colônia com a concessão, inclusive, de alguns privilégios.

Os então concessionários, para continuidade na exploração das terras,

deveriam garanti-las economicamente, o que lhes obrigou a adotar o mesmo

sistema usado pelo reino de Portugal, promovendo, assim, a concessão das

denominadas sesmarias para pessoas que pudessem explorar e defender a terra.

Esse sistema de colonização em Portugal contribuiu para a formação de

pequenas propriedades produtivas, diferentemente do que ocorreu no Brasil. Aqui,

além de existirem terras em abundância, a ausência de meios técnicos para explorar

essas áreas, bem como a dificuldade para incorporá-los quando existentes, trouxe a

necessidade de uso de grandes extensões de terras para, assim, produzirem o

volume e a quantidade necessários. Ainda, a ausência de mão-de-obra, que já

existia em Portugal, levou os sesmeiros a importar escravos africanos.

No contexto do mercantilismo e do modelo econômico português, as

próprias condições do Brasil- olônia fizeram surgir o escravismo, os latifúndios e os

privilégios políticos.

A dinâmica de legitimação da propriedade privada de terras no Brasil

consistiu, estritamente, num processo de tornar privado o que antes era público. As

terras brasileiras sempre estiveram, originariamente, nas mãos do Estado.

Primeiramente a Coroa portuguesa detinha a posse e o controle das terras

brasileiras, que passaram na sequência para o Império e para a República.

Temos, portanto, neste contexto, uma conformação de forças políticas,

jurídicas e ideológicas que se dão em resposta a problemas agrários objetivos,

concretos4. Por outro lado, estas forças influenciam diretamente nas formas de

ocupação e exploração do território brasileiro dadas em cada momento histórico.

4 HIRANO, Sedi. Pré-capitalismo e capitalismo. São Paulo: Hucitec, 1988.

Page 17: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

17

O estudo dos instrumentos jurídicos e políticos da legitimação das terras

públicas brasileiras em propriedade privada passam, necessariamente, pela

compreensão da complexa conjuntura do Estado nos diversos momentos da história

política brasileira. Conjuntura esta que é constantemente influenciada pelas

condições históricas, econômicas, sociais, políticas, jurídicas e culturais.

Examinar a conjuntura histórica dos dispositivos jurídicos de regulação da

posse de terras no Brasil no momento atual torna-se relevante, sobretudo, pelos

discursos eminentes do fracasso da reforma agrária brasileira e da necessidade de

se retomar um processo institucional de disposição de terras no país. Existem

alguns discursos que precisam ser cuidadosamente desmistificados. Primeiramente

o Estado afirma que a reforma agrária é inviável porque demanda, necessariamente,

um custo elevado com a desapropriação de terras. Implícita nesta afirmação do

Estado está a consideração que as terras disponíveis para a reforma agrária seriam

aquelas tidas como propriedades privadas e legalmente assim reconhecidas.

Argumento de que os grupos de “ruralistas” se apropriam para se defender,

amparados pela Constituição Federal, que assegura o direito à propriedade privada.

Jones5 argumenta contrariamente a estes pressupostos, afirmando que:

A alienação das terras públicas brasileiras, tanto através das concessões, inicialmente postas em prática pela Coroa Portuguesa, quanto pelas demais formas de apropriação e legitimação da posse, que se lhes seguiram, fundaram-se, de modo relevante, no privilégio, quanto à alienação; e na ilegalidade, quanto aos registros.

A alienação de terras públicas brasileiras torna-se ainda digna de

questionamento na medida em que os processos de legalização e de registros de

imóveis rurais em nome de particulares, em sua maior parte referente àqueles de

grandes extensões de terras, se furtaram ao cumprimento da legislação,

especialmente da Lei de Terras de 1850.

Levando-se em conta esta ilegalidade na ocupação de grandes extensões

de terras consideradas atualmente como privadas, reduz-se consideravelmente o

montante estimado de gastos com as desapropriações para fins de reforma agrária.

O que é originariamente uma apropriação indevida de uma área pública não deve

ser passível de indenização. Trata-se simplesmente de restituição ao Estado de um

5 JONES, Alberto da Silva. Acumulação primitiva e cercamento dos campos na agricultura brasileira:

uma hipótese de trabalho. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa, 1987. p.12.

Page 18: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

18

bem que lhe pertence e que será redistribuído num projeto de reforma agrária efetivo

no país. Segundo esta análise, não há que se discutir sequer as formas de

pagamento das indenizações por desapropriação, antes disso, a questão passa por

uma revisão da legalidade da posse.

Quando se explicita os mecanismos jurídicos que, no processo de alienação

das terras brasileiras, deram condições privilegiadas de apropriação de grandes

territórios a uma parcela da população, é revelada outra parcela que não é

beneficiada por estes instrumentos jurídicos e administrativos. Historicamente

existiram os pequenos posseiros e as comunidades indígenas que ocupando

pequenas áreas de produção para subsistência familiar, no processo de legitimação

da propriedade de terras do país não tiveram os mesmos direitos de apropriação

que os demais.

Duas ações do Estado podem ser consideradas marcos na regulamentação

da posse de terras do território brasileiro, pois determinaram uma nova conjuntura

na história agrária do Brasil, no que se refere à alienação de terras devolutas e na

legitimação das posses de domínio particular, são elas: a Lei 601 de 1850, e o

Estatuto da Terra, de 1964. Ambas estão diretamente relacionadas a momentos

políticos importantes do país, a Independência Nacional e o Regime Militar (1964-

1984).

Tendo em vista a relevância histórica destes dois imperativos jurídicos para

a compreensão da apropriação de terras públicas pela iniciativa privada, esta

investigação se debruçará, ainda que superficialmente, sobre cada um deles.

A lei 601 de 1850 traz pela primeira vez a concepção moderna de

propriedade burguesa para o princípio de distribuição de terras no Brasil. Até 1822

era outorgado pela coroa o direito ao uso e a ocupação do solo, e não a legitimação

da propriedade, a posse privada do mesmo. Contudo, COSTA PORTO6 registra que:

[...] talvez a linguagem das cartas dos donatários por esta concepção de que el-Rei cedera direitos dominiais sobre o solo, quando, na verdade, se limitara a outorgar 'poderes políticos', largos, sim, 'direitos majestáticos quase absolutos' mas de nenhum modo, direitos sobre o solo.

Isto porque a qualquer momento o rei poderia requerer a posse de volta para

a Coroa, configurando em um domínio absoluto das terras pela coroa, e uma

6 PORTO, Costa. Estudo sobre o sistema Sesmarial. Recife: Imprensa Universitária, 1965. p. 21.

Page 19: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

19

consequente apropriação das mesmas por indivíduos que possuíssem relações

privilegiadas políticas e sociais com as figuras de poder.

De 1822 a 1850 tem-se um período em que a ausência de legislação, com a

suspensão das sesmarias, faz avançar o poder das grandes posses. Esta expansão

sem legitimação pelo Estado deu origem a uma problemática que se desenrolou na

Lei de Terras de 1850.

Com a promulgação da Lei de Terras de 1850, ao estabelecer critérios legais

para o processo de privatização, típicos da sociedade burguesa, criou-se,

juridicamente, o divisor de águas que possibilitou a separação entre o que era e o

que não era legítimo, no âmbito da propriedade fundiária. Porém, este processo é

marcado pela apropriação do aparelho estatal pela iniciativa privada, que direcionou

a aplicação da legislação aos seus interesses particulares, configurando mais uma

vez o processo de privilégio, da ilegalidade e da excludência na distribuição de

terras. Tem-se então que a Lei de Terras não se fez cumprir e não foi capaz de

resolver o problema da ilegalidade da ocupação de terras no país. JONES defende a

tese de que

sua aplicabilidade foi sistematicamente sabotada, tanto no que se referia à arrecadação e à discriminação de terras devolutas, quanto no que tocava à política tributária (inviabilizada), quanto ainda, o que é mais relevante, à legitimação e ao registro das terras que se encontravam no patrimônio privado e poderiam, obedecidas as formalidades legais estabelecidas, ser legalizadas e tituladas

7.

O Estatuto da Terra de 1964 (Lei 4.504/1964), assim como a Lei de Terras,

foi uma lei de propriedade, que no bojo das transformações do período do Regime

Militar, levaram a mudanças no âmbito das propriedades rurais e na produtividade

agrícola. No entanto, ele significou também um acirramento da política de

beneficiamento e de exclusão social. Por isso Octávio Ianni o considerou como um

processo de contrarreforma agrária8.

Examinadas as linhas gerais da dinâmica de posse e distribuição de terras

no Brasil, torna-se necessário aprofundar a compreensão dos fatores históricos que

7 JONES, Alberto da Silva. Acumulação primitiva e cercamento dos campos na agricultura brasileira:

uma hipótese de trabalho. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa, 1987. p.15. 8 IANNI, Octávio. Ditadura e agricultura: O desenvolvimento do capitalismo na Amazônia: 1964-1978.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

Page 20: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

20

determinam a relação entre o Estado e suas prerrogativas jurídicas e a ocupação do

território brasileiro.

2.1 O REGIME DE SESMARIAS E A FORMAÇÃO DA PROPRIEDADE NA

COLÔNIA

Do descobrimento em diante, todas as terras passam, formalmente, à

condição de domínio da Coroa Portuguesa, o acesso e a exploração (produtiva ou

não) das terras coloniais, passava, necessariamente, a serem mediados pelo

consentimento do Governo de Portugal. Isto porque há, sobretudo, uma sujeição

jurídica, política e econômica. As condições da economia mundial e também internas

do reino de Portugal fizeram que, para poderem tornar produtivas as posses da

colônia, estabelecessem um plano de colonização específico. Neste plano foram

necessárias a ocupação e a exploração do território da colônia por camadas da

população portuguesa. Foram dados amplos poderes aos primeiros colonizadores,

que estavam lá como representantes do rei, respondendo com sua lealdade o direito

adquirido de ocupar a colônia. A estes concessionários era dado ainda o direito de

repassar as sesmarias para pessoas que pudessem ocupar a terra e promover a

defesa da colônia, reproduzindo, porém, o mesmo modelo de realização da

propriedade recebida.

A ocupação das terras em regime de sesmarias foi determinada, não só pela

existência de terras abundantes, mas também pelas dificuldades de implementação

de recursos técnicos, o que implicou uma exploração extensiva da terra com o uso

de mão de obra escrava africana. A monocultura e o uso de mão de obra escrava

foram recursos de ocupação do território da colônia pelo reino de Portugal visando a

produção em quantidade necessária para a competitividade no mercado mundial.

Como já observado anteriormente, com o descobrimento, o território

brasileiro passa a integrar o domínio colonial português, e portanto a sua exploração

deveu-se exclusivamente aos interesses econômicos de Portugal. “É neste sentido

que a formação e desenvolvimento da propriedade territorial brasileira não pode ser

desvinculada da tradição jurídica e da situação política e econômica de Portugal e

do Brasil enquanto colônia”9.

9 JONES, Alberto da Silva. Acumulação primitiva e cercamento dos campos na agricultura brasileira:

uma hipótese de trabalho. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa, 1987. p.27.

Page 21: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

21

A ocupação das terras no regime de Sesmarias, em Portugal, fazia um

sentido específico e estava relacionado diretamente a uma crise da economia

portuguesa e europeia, assim como às diversas transformações daquele meio rural,

marcado pelo êxodo e pela decadência agrícola em geral. Por sua vez, as

Sesmarias no Brasil exigiam novas formas de relação e de organização, uma vez

que “produtos prontos para o tráfico comercial normal não existiam; povoações de

caráter estável, para serem ocupadas e exploradas, que pagassem com tributos o

direito de existência, também não eram encontradas”10.

Portanto, para colonização e exploração deste novo território era necessário

um investimento por parte da Coroa Portuguesa, com o qual ela não poderia arcar.

Neste contexto eles optam por estabelecer uma relação com concessionários no

sistema de Capitanias, obedecendo a uma série de cláusulas resolutivas.

Uma das restrições fundamentais que constava no regime sesmarial

brasileiro foi a impossibilidade da posse absoluta da terra.

As cláusulas resolutivas proibiam o arrendamento, exigiam a residência habitual do concessionário ou prepostos, a cultura permanente e a respectiva medição, como condições para sua confirmação pela Coroa. Proibia, ainda, a concessão de mais de uma sesmaria ao mesmo concessionário, familiares ou herdeiros em linha direta

11.

E foram estas mesmas cláusulas rígidas que impediram as sesmarias de

seguirem dentro do que estava estabelecido legalmente e se expandissem. A ordem

jurídica formalizada não conseguia se efetivar face à realidade concreta de

dispersão do poder no território da colônia.

O texto da “Lei de Sesmarias”, a Carta Régia de 1375, previa que as terras

improdutivas deveriam voltar para a mão da Coroa que as redistribuiriam. Esta se

configurou uma importante restrição à medida que permaneceu como cláusula em

todas as legislações subsequentes de distribuição territorial brasileira. A plena

utilização da área da posse como um requisito legal para a aquisição de terras era

eventualmente relativizada em Portugal por questões culturais atinentes à

titularidade legítima, porém, no Brasil a lei proibia qualquer forma de arrendamento

para terceiros, bem como subutilização das terras recebidas em sesmarias.

10

SIMONSEN, Roberto. História Econômica do Brasil: 1500-1820. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978.p.52. 11

JONES, Alberto da Silva. Acumulação primitiva e cercamento dos campos na agricultura brasileira: uma hipótese de trabalho. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa, 1987 . p.30.

Page 22: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

22

A Lei de Sesmarias restringia ainda o uso de animais de trabalho de acordo

com as condições específicas de produção, e também estabelecia condições para

proceder o confisco das terras não aproveitadas.

Todas estas restrições apresentadas para a concessão das terras em

sesmarias atendiam aos objetivos de expansão comercial e competitividade no

mercado de trocas mundial. E finalmente, tinham o objetivo de salvaguardar a

soberania da Coroa Portuguesa. “O objetivo era sempre econômico: manter e

ampliar a exploração agrícola; assegurar o povoamento e ocupação do território e,

na Colônia, além destes objetivos, buscava-se garantir a defesa e integridade

territorial contra pretensões estrangeiras”12.

No Brasil o sistema de sesmarias sofreu diversas alterações em virtude das

necessidades específicas da situação da Colônia. As grandes faixas de terras que

constituíram as sesmarias atendiam à necessidade de povoar as terras, numa

tentativa de garantir a defesa do território contra incursões de piratas e de nações

estrangeiras. E também se davam em virtude da dificuldade pela escassez de mão

de obra e do baixo nível das técnicas de exploração agrícolas.

O prazo de concessão de uma sesmaria era limitado em Portugal e

inicialmente assim o foi no Brasil, no entanto, tornou-se perpétuo nas terras

brasileiras em um momento seguinte. Ficava garantida a cláusula resolutiva de que

a concessão poderia ser revogada a qualquer momento caso as exigências não

fossem cumpridas.

O regime de sesmarias se deu no Brasil juntamente com a distribuição das

chamadas Capitanias Hereditárias, que por sua vez foram seguidas por um novo

modelo de administração baseado na concentração do poder nas mãos de

Governadores Gerais. Este modelo tornou o sistema de aquisição de sesmarias

mais burocrático e hierarquizado, com a criação de novas exigências.

O desenvolvimento da administração das terras em sesmarias, levava cada

vez mais a concessões que privilegiavam a grande lavoura destinada à agricultura

para a exportação. Uma outra exigência que demonstra o caráter excludente do

incentivo à produção mercantil foi a exigência de incorporação do trabalho escravo.

12

JONES, Alberto da Silva. Acumulação primitiva e cercamento dos campos na agricultura brasileira: uma hipótese de trabalho. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa, 1987. p.34.

Page 23: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

23

JONES13 afirma que as sesmarias raramente se efetivam na realidade

concreta, nas dimensões e condições das terras declaradas, em virtude da falta de

recursos e da falta de condições técnicas para as medições. Então, temos nas

sesmarias a origem de um processo que se manifesta consecutivamente desde

então, a emissão de títulos de propriedade que não apresentam coerência. E ainda

o caso das propriedades que se tornaram improdutivas, inabitadas, e que foram

devolvidas para a Coroa, resultando na primeira manifestação do que hoje é

chamado de terras devolutas do Estado.

2.2 O IMPÉRIO DAS POSSES E A LEI DE TERRAS

O regime sesmarial foi extinto em julho de 1822, através da Resolução n.º

76, porém, ainda que a legislação colonial preceituasse que o direito de propriedade

seria garantido tão somente através das cartas de sesmarias, diversas terras

públicas foram ocupadas à revelia do Estado.

No período compreendido entre 1822 e 1850 tem-se o denominado “Regime

de Posses”, fenômeno originado na inexistência de legislação específica sobre o

acesso à terra, e que se caracterizava pela aquisição da propriedade através da

posse.

O Regime de Posses resulta da balbúrdia em que se encontrava o sistema

de propriedade territorial no Brasil, o que impossibilitava a certeza em identificar um

solo como público ou particular14 (Silva, 2008).

A Lei de Terras, aprovada apenas em 1850, Lei n.º 601, e regulamentada

em 1854 através do Decreto n.º 1.1318, foi editada visando ordenar o espaço

territorial brasileiro e acabar com a desorganização fundiária gerada pelo Regime de

Posses, uma vez que possibilitava o acesso legal à terra.

A referida lei trouxe como instrumentos para o reconhecimento da

propriedade a revalidação das cartas de sesmarias, a legitimação da posse, a

compra das terras devolutas e a doação.

Os ocupantes de posses que comprovassem a moradia habitual e o cultivo

da terra poderiam legitimar sua posse assim como os detentores de cartas de

13

JONES, Alberto da Silva. Acumulação primitiva e cercamento dos campos na agricultura brasileira: uma hipótese de trabalho. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa, 1987. p.41. 14

SILVA, Ligia Osório. Terras devolutas e latifúndio. Campinas: Unicamp, 2008. p.146.

Page 24: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

24

sesmarias poderiam revalidá-las, desde que observados os prazos para as

medições das terras, de acordo com o previsto nos art. 7º e 8º:

Os possuidores que deixarem de proceder à medição nos prazos marcados pelo Governo serão reputados caídos em comisso, e perderão por isso o direito que tenham a ser preenchidos das terras concedidas por seus títulos, ou por favor da presente lei, conservando-a somente para serem mantidos na posse do terreno que ocuparem com efetiva cultura, havendo-se por devoluto o que se achar inculto.

No entendimento de Ruy Cirne Lima15 a parte do art. 8º descrita acima

demonstra que quando as terras estavam efetivamente cultivadas não existia

necessidade de legitimar suas posses uma vez que, independente de formalidade,

eram reconhecidos os direitos dos posseiros.

O referido artigo, no entanto, dá margem a dupla interpretação. Muito

embora seja deveras importante a opinião de Ruy Cirne Lima, não se pode olvidar

que cabe também o entendimento de que se fazia necessária a comprovação do

cumprimento das exigências legais para que o domínio fosse invocado.

É evidente, portanto, que a partir da Lei de Terras a posse era reconhecida

como condição para obtenção de domínio, mas restava imprescindível o

atendimento de todos os requisitos para alcança-lo.

O reconhecimento do domínio, fosse pela revalidação da carta de sesmarias

ou pela legitimação da posse, não era ato automático, dependia de requerimento e

instrução de processo. Para tanto, foi criada a Repartição Geral das Terras Públicas,

responsável por orientar e ordenar como deveriam ser comprovados os requisitos

necessários à obtenção do domínio.

O processo administrativo de incorporação de patrimônio compreendia

diversos procedimentos que se iniciavam com a nomeação de escrivães e

agrimensores para realizar as medições e demarcações, passavam pela verificação

da existência da cultura efetiva e moradia habitual, entre outros, e chegavam na

decisão do Presidente, a qual era publicada e registrada em livro específico, para, só

então, o Delegado da Diretoria Geral das Terras Públicas proceder à expedição do

título.

Uma vez transcorrido o prazo sem que as obrigações fossem cumpridas, as

terras eram tidas como caídas em comisso e, tanto as terras oriundas de cartas de

15

LIMA, Ruy Cirne. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas. Porto Alegre: Sulina, 1954. p. 49.

Page 25: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

25

sesmarias não revalidadas como as de posse não legitimadas, eram incorporadas

às terras devolutas, arrecadadas e vendidas.

A posse era, portanto, um pré-requisito para o acesso à terra e não um fator

originário de aquisição de propriedade. O domínio só era reconhecido quando, além

da posse, fossem comprovadas a moradia, o cultivo, a demarcação das terras, o

recolhimento de taxas e o reconhecimento formal por ato administrativo ou judicial,

restando evidente que o reconhecimento formal do Estado era o meio para a

incorporação da terra à propriedade provada.

A Lei de Terras encerrou o costume de aquisição de terras devolutas por

meio da posse e vinculou a aquisição à legitimação das posses adquiridas por

ocupação primária ou havidas do primeiro ocupante16. Havia também limite às áreas

legitimáveis que se restringia à extensão das últimas sesmarias concedidas naquela

comarca ou na mais próxima.

Foi também com a Lei de Terras que se criou a figura das terras devolutas

entendidas como terras públicas que não se achavam aplicadas a algum uso ou

serviço do Estado, províncias ou municípios. Eram devolutas também as terras que,

incursas em comisso por omissão de seus possuidores, voltavam a ser incorporadas

ao patrimônio público para nova destinação.

O Registro Paroquial, primeiro cadastro de terras do Brasil, também foi

implantado pela Lei de Terras que determinava que todos os possuidores de terras,

independente do título, deveriam registrá-las perante o vigário da paróquia local, que

encontrava-se incumbido da responsabilidade de abrir, numerar, rubricar e encerrar

os livros de registros onde transcrevia as declarações apresentadas pelos

detentores.

Era obrigatório que as declarações contivessem o nome do possuidor, a

freguesia onde as terras se localizavam, seus limites e sua extensão, se fosse

conhecida. Esse último item, que entendia que a extensão deveria ser declarada

apenas se fosse conhecida, abriu precedente para as declarações imprecisas que

se agravou com a cobrança de emolumentos conforme o número de letras, o que

gerou descrições demasiadamente resumidas.

Há que se considerar ainda que os vigários, ainda que identificassem erros

notórios nas declarações, não poderiam recusar-se a fazê-las, razão pela qual a lei

16

LAFAYETTE, Rodrigues Pereira. Direito das Coisas. Brasília: Senado Federal, Superior Tribunal de Justiça, 2004.

Page 26: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

26

previa, inclusive, que referidas declarações não conferiam qualquer direito aos

possuidores.

2.3 COLONIZAÇÃO E IMIGRAÇÃO

A colonização e a imigração estão associadas às necessidades produtivas e

de ocupação territorial brasileira desde os primeiros anos após o descobrimento. No

início a mão de obra era baseada no trabalho escravo e a ocupação das terras se

deu pelo regime de sesmarias, como apresentado anteriormente, num sistema

imerso na conjuntura do mercantilismo. A estrutura escravista e latifundiária criou

raízes muito profundas na organização política-jurídica e social da sociedade

brasileira emergente, afetando sobremaneira os projetos de sociedade que estariam

por vir171819.

Neste sentido, o projeto de “colonização sistemática”, apresentado ao

parlamento em 1840, de estilo wakefieldiano, nunca foi implementado de fato e

sofreu diversos boicotes por parte da oligarquia agrária. Este modelo previa que as

terras devolutas deveriam ser sistematicamente empregadas em um projeto de

colonização, como forma de dinamizar a economia. Porém o conservadorismo de

caráter excludente das forças políticas no poder levaram ao fracasso desse projeto e

a um movimento de imigração de colonos pobres para áreas desvalorizadas.

O modelo inglês, inspirado nas ideias de Wakefield, previa a colonização

como forma de dinamizar a economia, com o Estado ocupando um papel central no

controle do mercado, com a posse das terras e o incentivo à mão de obra e ao

comércio, através da melhor disposição da população no território.

Tratava-se, portanto de um projeto de desenvolvimento do capitalismo em escala mundial (visando manutenção das taxas de acumulação de capital nas metrópoles) pela extensão dos mercados (de capital e trabalho) aos espaços coloniais

20.

17

FAORO, Raymundo. Os donos do poder: Formação do patronato brasileiro. São Paulo: Globo, 1996. 18

PRADO JUNIOR, Caio. Evolução Política do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1977. 19

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1979. 20

JONES, Alberto da Silva. Acumulação primitiva e cercamento dos campos na agricultura brasileira: uma hipótese de trabalho. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa, 1987. p.94.

Page 27: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

27

Com a aquisição das terras pelo Estado e a disposição das mesmas neste

projeto de colonização, criava-se uma possibilidade para vários imigrantes terem

acesso à terra, e ao mesmo tempo estimulava estes imigrantes a se assalariar, para

terem condição de pagar o seu pecúlio e depois de algum tempo se tornarem

pequenos produtores. Esta condição de trabalho com vistas à independência

também era uma motivação extra para o trabalhador se dedicar ao trabalho e se

tornar uma mão de obra extremamente interessante.

O modelo “wakefieldiano” fracassa no Brasil por diversos motivos. Dentre

eles a dimensão das sesmarias, com a ocupação de grande parte das melhores

áreas agricultáveis e também das mais caras e a desorganização fundiária

brasileira. O fracasso deste modelo deu lugar ao que Jones denominou de

“colonização dirigida para os latifúndios”21.

A colonização que aqui se desenvolveu manteve vários traços do modelo

escravista, ao passo que determinava condições de trabalho, de moradia e salários

indignos para os colonos. Em consequência muitos deles encaravam o Brasil como

zona de passagem para outras regiões de melhores condições de vida, logo que se

deparavam com o fracasso da expectativa de independência financeira.

Para o desenvolvimento brasileiro, o preço pago por esta opção pelo

conservadorismo da elite latifundiária e pelo privilégio deste setor foi a permanência

da intensa desigualdade social e de direitos, e também de uma economia agrária

muito aquém de sua real potencialidade.

2.4 LEGISLAÇÃO FUNDIÁRIA NA REPÚBLICA

Pode-se afirmar que o desafio que o Brasil enfrentava, e que ainda é um

engodo nos dias atuais, era a legitimação de todas as terras, com a definição legal e

real do que se tratava de terras públicas e do que se tratava de terras particulares. O

fracasso da Lei de Terras e do projeto de colonização e modernização da economia

agrário-exportadora, deu-se em uma conjuntura de poderes locais, regionais, em

que a oligarquia dominava jurídica e administrativamente.

Os senhores de terras recusaram-se contundentemente, por um lado, a

regularizar e registrar as áreas que possuíam e, por outro lado, tentaram impedir, de

21

JONES, Alberto da Silva. Acumulação primitiva e cercamento dos campos na agricultura brasileira: uma hipótese de trabalho. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa, 1987.p.97.

Page 28: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

28

forma sistemática e eficiente, a discriminação das terras devolutas. Desta maneira, a

ocupação desordenada e marcada pelo privilégio das elites continuou como um

problema a ser enfrentado pela República.

Podemos observar no constante movimento de forças políticas que vem

sendo descrito até aqui a indicação para uma tentativa das elites governamentais de

instalarem um Estado de Direito, baseado nos princípios liberais bem como a

resistência e hegemonia do latifúndio. O que fica bem esclarecido na seguinte

afirmação de JONES:

Se se quisesse utilizar outra terminologia, poder-se-ia dizer que o caminho eleito pelos grandes detentores de terras, fundava-se em um projeto que optara pela barbárie, em oposição a via civilizada, pacífica, negociada, fundada em princípios estabelecidos, ainda que formalmente, em Leis e regulamentos, social e politicamente sancionados

22.

Na República houve um movimento intenso e constante de confronto entre

estas forças políticas, enfrentado sobretudo no campo legislativo. Neste sentido, o

Decreto n. 451-B, de 31 de maio de 1890 “estabelece o Registro e Transmissão de

Imóveis pelo Sistema Torrens. Tratava-se de uma tentativa do Governo de

enfrentamento da desorganização fundiária pela via do registro das posses, visando

conter o avanço da posse de áreas devolutas pela via indireta. Ou seja, ele não se

trata de uma política de discriminação e arrecadação de terras devolutas, mas sim

de registros de terras possuídas, na expectativa de, por essa via, conseguir algum

tipo de controle sobre as terras do Estado.

Um momento seguinte neste histórico de tentativas de regularização

fundiária brasileira foi a Constituição Republicana de 1891. Com a efetivação do

Sistema Federativo, cinde-se a autonomia política e administrativa sobre a

implementação da política de terras devolutas, entre União e Estados, assim como o

processo judiciário que trata sobre as questões de acesso à propriedade no país.

No cenário político dos Estados Federados têm-se as oligarquias com um

grande peso na disputa por projetos de desenvolvimento; especialmente no que

tange à terra e à agricultura eram amplos seus poderes regionais e locais. A

centralização do poder nas mãos desta oligarquia era projetada sobretudo pela

relevância da exportação cafeeira na balança comercial brasileira.

22

JONES, Alberto da Silva. Acumulação primitiva e cercamento dos campos na agricultura brasileira: uma hipótese de trabalho. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa, 1987.p.107.

Page 29: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

29

É neste cenário que se dá a implementação da Constituição de 1891, com o

arbítrio dos Estados, e consequentemente, das oligarquias locais. Sendo assim, esta

constituição transferiu para os Estados da Federação a autonomia política,

legislativa e administrativa sobre “as minas e terras devolutas situadas nos seus

respectivos territórios, cabendo à União apenas a porção de território que for

indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e

estradas de ferro federais”23.

A Constituição Republicana de 1891 assegurava plenamente o direito de

propriedade nos mesmos termos da de 1834, admitindo a desapropriação por

necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. No entanto, o direito

à indenização prévia foi considerado por Jones “um retrocesso em relação a Carta

Régia de 1375 e à Lei 601 de 1850, que condicionavam a propriedade territorial rural

à sua exploração efetiva, sob pena de cair em comisso”24. E, mais à frente considera

ainda sobre a desapropriação: “só há a possibilidade de desapropriar terras que

tenham sido, ou sejam, objeto de propriedade privada anterior e legítima. Falar em

desapropriação é admitir, a priori, a existência legal da propriedade privada sobre a

terra.”25 Portanto, a problemática de não legalização dos títulos de posse das terras

aparece aqui como ponto central. As terras ou são privadas, com título comprovando

a posse, ou são públicas, devolutas, sendo assim, o Estado não pode desapropriar

ou indenizar a si mesmo.

Em casos de posse privada, ilegal, de terras públicas (aquelas

assumidamente sem título de posse), a legislação, desde a Lei 601 de 1850 previa o

despejo, pena de dois a seis meses de prisão e multa, além da satisfação de danos

causados ao bem. No entanto, no campo do real, do concreto, havia a possibilidade

do Estado legalizar a posse de áreas públicas, pela venda ou por sentença

declaratória.

Conclui-se disto que, no Período Republicano, perpetua-se o avanço das

grandes propriedades, paralelamente à concessão ou vendas de terras pelos

Estados, geralmente para grandes grupos ou empresas privadas.

23

Artigo 64. BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de fevereiro de 1891. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil, Brasília, DF, 24 fev 1981. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao91.htm>. Acesso em: 14 dez. 2011.) 24

JONES, Alberto da Silva. Acumulação primitiva e cercamento dos campos na agricultura brasileira: uma hipótese de trabalho. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa, 1987.p.121. 25

JONES, Alberto da Silva. Acumulação primitiva e cercamento dos campos na agricultura brasileira: uma hipótese de trabalho. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa, 1987.p.122.

Page 30: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

30

Durante o Período Republicano podemos destacar outras legislações

nacionais importantes que regiam sobre o uso e a posse de terras no Brasil, sem

considerar aquelas legislações específicas de Estado e município da Federação.

Com relação à legislação federal, podemos destacar os Decretos 2.453-A, de 5 de

janeiro de 1912, que se destinou especificamente ao incentivo à produção do látex,

10.105 de 5 de março de 1913, que aprova o novo regulamento de terras devolutas

da União, um novo decreto, suspendendo este anterior, até que se organize a Lei de

Terras, Decreto 11.485, de 10 de fevereiro, de 1915 e o 9.760, de 5 de setembro de

1946, que estabelece a chamada Nova Lei de Terras.

Como iniciativas institucionais importantes com o mote de reorganização

fundiária e assistência ao campo, do conturbado período que precedeu o Golpe

Militar, no governo de João Goulart, podemos citar a criação do INIC - Instituto

Nacional de Colonização e Reforma Agrária – instituído pela Lei 2.163 de 5 de

janeiro de 1954, voltado especificamente para o desenvolvimento de um projeto

nacional de colonização, destinado à assistência e encaminhamento de

trabalhadores migrantes nacionais e estrangeiros. E seu complementar, o SSR -

Serviço Social Rural, pela Lei 2.613, de 23 de setembro de 1955, voltado

genericamente para a assistência social ao homem do campo. Em 1962, já no

período inicial da crise do governo João Goulart, estes órgãos são substituídos pela

SUPRA - Superintendência da Reforma Agrária - que tinha o objetivo ambicioso de

elaborar e executar um Programa de Reforma Agrária.

A SUPRA foi um dos estopins que fizeram as forças conservadoras dos

grupos políticos-partidários, latifundiários e militares, se unirem para se contrapor à

proposta progressista de reorganização da estrutura agrária brasileira. A ação desta

superintendência foi associada às ações comunistas, temiam sobretudo as

influências de Cuba e do leste europeu.

A conjuntura do período da ditadura militar no Brasil envolveu uma série de

transformações mundiais decorrentes do período posterior à Segunda Guerra

Mundial no campo econômico e político, que foram importantes, e que transcendiam,

em muito, aos problemas estritamente ligados à questão fundiária. São questões

importantes desta conjuntura: a cambial, a remessa de lucros, a nacionalização de

empresas, especialmente as refinarias de petróleo, etc.

A questão da propriedade rural, do seu controle e regulamentação,

instaurados durante o regime militar, estava ligada à uma possibilidade real da

Page 31: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

31

pobreza rural vir a se constituir em base para uma possível revolução, de fundo

agrário e de caráter socialista, nos moldes das Revoluções Chinesa ou Cubana, do

que a qualquer outra pretensão dos conspiradores em promover a justa e equitativa

distribuição da terra.

No período posterior à Segunda Guerra Mundial, a articulação das

esquerdas, sobretudo os movimentos contestatórios do campo assustavam a elite

conservadora latifundiária, política, e também os militares, à medida que começaram

a se articular os movimentos e reivindicações rurais com as lutas urbanas,

especialmente no âmbito sindical, oferecendo, desta forma, maior organicidade às

reivindicações de acesso às terras, em particular as devolutas. Uma das

reivindicações era a expansão dos direitos trabalhistas aos trabalhadores rurais,

com destaque para as Ligas Camponesas lideradas por Franscisco Julião no

Nordeste.26

A massificação da pobreza no campo que dá origem aos vários movimentos

de luta pela terra está diretamente relacionada com as políticas de territorialização

expostas anteriormente, que tendiam a afastar a posse da propriedade da terra,

pelos pobres, para distante das áreas de influência ou interesse da burguesia

latifundiária. Pode-se afirmar que, na prática, o acesso à terra sempre esteve

vedado ao grosso da população pobre, embora fosse, formalmente, assegurado.

Com o Golpe Militar de 1964, todo o movimento de organização desta

massa de proletários pobres do campo, demonstrado em diversas revoltas

populares de meados da década de 1950, foi reprimido através da mobilização das

armas, da violência e do genocídio. Os pretextos eram:

Acusação de monarquistas, contra os habitantes de Canudos; “infiltração comunista”, como nos casos dos pobres de Porecatu, do Araguaia, de Trombas do Formoso, das Ligas Camponesas, dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais e tantos outros movimentos populares no pós-1964.

27

A mensagem n.33 consistiu no diagnóstico do problema agrário brasileiro

realizado pelo General Humberto de Alencar Castelo Branco, localizando a questão

agrária dentro de um amplo projeto de desenvolvimento nacional, e levando ao

encaminhamento do Projeto de Lei do Estatuto da Terra ao Congresso Nacional. O

26

MARTINS, José de Souza. O poder do atraso: Ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo: HUCITEC, 1994. 27

JONES, Alberto da Silva. Acumulação primitiva e cercamento dos campos na agricultura brasileira: uma hipótese de trabalho. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa, 1987.p.164.

Page 32: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

32

“diagnóstico” realizado pela mensagem n.33 consistia em severas críticas ao

governo João Goulart, apontando-o como mero incitador das massas e omisso aos

reais problemas agrários. E então, como proposta de enfrentamento de tais

problemas, a mensagem n. 33 indicava a necessidade de execução de um amplo

processo de reforma agrária, visando a modernização da política agrícola do país.

Tem-se então nesta mensagem, o diagnóstico político da questão agrária do Brasil

naquela conjuntura e os apontamentos para sua superação.

Por sua vez, o Estatuto da Terra foi um instrumental jurídico e institucional,

envolvendo um diagnóstico técnico da questão agrícola e propondo novas

normativas. Ele passa a regular a tributação, a assistência técnica, o crédito rural e a

reforma agrária. Entretanto este documento serviu mais como estratégia de

apaziguamento dos conflitos no campo, não sendo aplicadas principalmente suas

determinações sobre a reforma agrária.

Juntamente com o aprimoramento tecnológico do campo, o Brasil vivia a

fase do “milagre econômico” (1968-1973), marcada pela aceleração da

industrialização e pela internacionalização. O capitalismo de desenvolvimento tardio

no país vivia sob “os binômios ditadura e acumulação, arrocho e expansão”28. A

mecanização do campo leva a transformações na ordem da produção que têm

impactos diretos no modelo social de ocupação do campo.

Jones29 considera que o Estatuto da Terra “efetivamente realizou alguns

avanços no campo normativo, especialmente ao elaborar alguns construtos, como o

de módulo familiar, empresas rurais, latifúndio e minifúndio, de tal forma que, em

certo sentido possibilitaria a sua avaliação em termos do preceito constitucional”.

O Estatuto é aqui destacado pelo mérito de regulamentar, juridicamente, o

acesso às terras devolutas, mas também, e sobretudo, por ter colocado o governo à

frente do processo de promoção de alienação de terras públicas. E neste sentido

inicia-se a condução de uma extrema e complexa reorganização, legitimação

fundiária, na medida em que assegurava os meios, jurídicos e administrativos,

necessários ao processo de venda de terras devolutas ou de reconhecimento de

titularidades legítimas existentes sobre estas.

28

ANTUNES, R. A era da informatização e a época da informalização: riqueza e miséria do trabalho no Brasil, p 15-25. In: ANTUNES, Ricardo (Org). Riqueza e miséria do Trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006. p.17. 29

ANTUNES, R. A era da informatização e a época da informalização: riqueza e miséria do trabalho no Brasil, p 15-25. In: ANTUNES, Ricardo (Org). Riqueza e miséria do Trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006. p.184.

Page 33: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

33

Destaca-se também a prerrogativa de aprimoramento tecnológico que

perpassou este programa de desenvolvimento rural.

A mecanização do campo leva a transformações na ordem da produção que

têm impactos diretos no modelo social de ocupação do campo.

O Estatuto da Terra colocou em prática, legalmente, o processo de

alienação das terras devolutas, privatizando-as, cedendo-as às médias e grandes

empresas. Tem-se, portanto, uma reforma agrária com vistas à modernização da

agricultura, e não à redistribuição de terras para os pobres. A via escolhida, portanto,

foi a da incorporação da população rural pelo emprego e, não necessariamente pela

doação ou distribuição de terras.

A reforma agrária distributiva estaria restrita aos limites definidos pelo projeto

de colonização, em particular àquelas áreas de conflito social, ocupadas por

posseiros e arrendatários. Tornaram-se também uma necessidade específica do

projeto de redistribuição das terras, a realocação das populações que ocupavam

áreas de construção de barragens, redes elétricas, vias de comunicação, etc.,

indispensáveis para o desenvolvimento nacional em voga.

Outro indício da ênfase do Estatuto da Terra na política fundiária e não nas

medidas de reforma agrária redistributivas, é o fato de trazê-las separadamente, o

que pode ser entendido como uma manifestação de interesses distintos. Tem-se

então a reforma agrária como mero projeto de apoio, destinado à promover a paz

social necessária à sustentação da política agropecuária voltada para o

desenvolvimento das médias e grandes empresas agropecuárias.

As pequenas propriedades não estavam no foco de interesse do governo, à

medida que o seu projeto de modernização nacional necessitava de uma agricultura

capaz de produzir para o mercado externo. O que, definitivamente não é o caso das

pequenas propriedades com produção baseada na agricultura familiar para fins de

subsistência. Portanto, as terras destinadas à pequena propriedade deveriam ser

limitadas ao mínimo necessário para amortecer ou conter as tensões e conflitos

sociais existentes ou que pudessem vir a surgir.

Pode-se perceber destas ações que o governo militar tinha uma distinção

clara entre reforma agrária e colonização. A primeira estava relaciona à

reorganização da estrutura agrária, visando à modernização e à diversificação da

agricultura em áreas amplamente ocupadas. A colonização, por sua vez, estava

voltada para o assentamento de populações em áreas de terras devolutas,

Page 34: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

34

longínquas, num processo de baixo custo e também com vistas a outros interesses

de expansão territorial.

Nesta dicotomia colonização X desenvolvimento rural, a pobreza rural seria

resolvida, efetivamente, com a modernização da economia, que ampliaria a

produção e a produtividade agrícolas, dinamizando os processos de absorção de

mão de obra e geração de renda no campo.

O projeto de colonização do Estatuto foi complementado pelo PIN -

Programa de Integração Nacional, que surge durante o governo do General Emílio

Garastazu Médici, em 1970, com a prerrogativa de associar as terras “vazias” da

Amazônia aos homens sem terra, especialmente do Nordeste. Este programa

implicou a ampliação, em escala sem precedentes, da especulação imobiliária,

especialmente, na Amazônia Legal. O governo militar tinha o objetivo de formar e

desenvolver uma classe média rural, e para tanto incentivou a ocupação de áreas

novas, áreas públicas, distantes e descentralizadas dos tradicionais polos de

produção agrários. É neste ínterim que surge o PIN, fundamental para o

desenvolvimento e a integração nacionais.

A colonização diferenciada de áreas como o Paraná e o Rio Grande do Sul

também pode ser destacada como estratégia de integração nacional, no entanto,

com a particularidade de ocuparem terras de qualidade. A ocupação com colonos de

áreas distantes como a Amazônia e a Região Sul atendeu ao objetivo de formação

de uma classe média rural, altamente especializada, capaz de investir no que se

denominou de colonização privada. O Estado garantia o subsídio para a aquisição

da terra àquela população com condições mínimas técnicas e financeiras para

investir na produção. Incentivavam assim a criação das empresas rurais de porte

médio, de grande relevância na diferenciação da produção com alto valor comercial,

como a pecuária, os cereais, o café, o cacau e a pimenta.

É exatamente este o sentido em que é regulamentada a Colonização Oficial, no Capítulo II, Seção I, da Lei 4.504 de novembro de 1964, e a Colonização Particular, na seção II do mesmo capítulo. Portanto, mais uma vez, os projetos implementados nesta áreas estavam claramente postos no Estatuto da Terra e claramente referidos nas diretrizes expostas na Mensagem 33 do General Humberto Castelo Branco

30.

30

JONES, Alberto da Silva. Acumulação primitiva e cercamento dos campos na agricultura brasileira: uma hipótese de trabalho. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa, 1987.p. 215.

Page 35: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

35

A criação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA,

se dá em 1970 com a fusão do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária – IBRA e do

Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrícola – INDA. O órgão, na ocasião de sua

criação e nos anos subsequentes teve uma ação muito mais voltada para a

colonização do que para a Reforma Agrária.

A política agrária do regime militar, através da mensagem n.33 e do Estatuto

da Terra, executou fielmente os seus princípios de modernização e de expansão do

mercado agroindustrial brasileiro. Portanto este projeto teve êxito ao que se propôs,

já que nunca foi prioridade do mesmo promover a redistribuição justa de terras, com

igualdade de oportunidades, e tampouco se dispôs a encarar o real problema da

pobreza e das relações de trabalho no campo.

”A grande propriedade, que já se sabia um aliado precioso do autoritarismo

político, tornou-se um suporte econômico fundamental à implementação de uma

política econômica de favorecimento irrestrito ao grande capital”31.

A política de regularização da posse privada das terras colocada em

movimento neste período, através destes e de vários outros dispositivos jurídicos,

tinha, portanto, objetivos muito específicos ligados à atividade produtiva, às relações

entre o capital e o trabalho e a uma simples relação formal entre o homem e a terra.

Portanto, o Estatuto da Terra configurou-se como o instrumento que possibilitou ao

Governo assegurar a subordinação do trabalho pela subordinação do processo de

acesso à terra a determinados interesses bastante específicos.

O que pretendeu-se destacar com os dados apresentados, e que é de suma

importância para esta investigação, são as estratégias do Estado, através de

diversos instrumentos jurídicos, administrativos e institucionais, de privatização

privilegiada e excludente do território nacional.

O projeto de desenvolvimento nacional colocado em prática pelo governo

militar levou à uma expulsão, sem precedentes na história do Brasil, de uma massa

de trabalhadores das terras onde residiam e trabalhavam. Estes trabalhadores se

incorporaram aos contingentes marginalizados dos centros urbanos, configurando

no intenso movimento de êxodo rural que marcou os anos de 1960 e 1970 no Brasil.

É com o advento da Constituição de 1988 que a real situação do indivíduo

Pós-Revolução Industrial é reconhecida. No Estado Social de Direito a dificuldade

31

CONTAG. Posição da CONTAG sobre o programa nacional de política fundiária. Brasília: CONTAG, 1982. p. 3-4.

Page 36: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

36

de alcance dos direitos do indivíduo não mais pode ser ignorada, obrigando o

legislador constituinte a preceituar os direitos fundamentais sociais no corpo da

Carta Magna. Para Sundfeld32, “em termos sintéticos, o Estado Social e

Democrático de Direito é a soma e o entrelaçamento de: constitucionalismo,

república, participação popular direta, separação de Poderes, legalidade, direitos

(individuais, políticos e sociais), desenvolvimento e justiça social”.

Em relação as normas que preceituam os direitos fundamentais sociais,

aduz Celso Antonio Bandeira de Mello:

Nelas está plasmada a concepção de que não basta assegurar os chamados direitos individuais para alcançar-se a proteção do indivíduo. Impende considerá-lo para além de sua dimensão comunitária, social, sem o que lhe faltará o necessário resguardo. Isto é, cumpre ampará-lo contra as distorções geradas pelo desequilíbrio econômico da própria sociedade, pois estas igualmente geram sujeições, opressões e esmagamento do indivíduo. Não são apenas os eventuais descomedimentos do Estado que abatem, aniquilam ou oprimem os homens. Tais ofensas resultam, outrossim, da ação dos próprios membros do corpo social, pois podem prevalecer-se e prevalecem de suas condições socioeconômicas poderosas em detrimento dos economicamente frágeis

33.

A positivação constitucional desses direitos obriga o Poder Público a atuar

na busca pela proteção do bem-estar do indivíduo, respeitando o mínimo essencial

para a efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana.

A previsão do direito à moradia na Constituição Federal acaba por exigir

uma postura ativa do Estado, através de ações efetivas que protejam e concretizem

tal direito, cumprindo com a justiça social e o respeito à dignidade humana.

É nesse contexto, buscando o Poder Público garantir a eficácia do direito

fundamental social à moradia, que se fundamenta a Regularização Fundiária.

32

SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 54. 33

MELLO, Celso Antônio Bandeira. Eficácia das Normas Constitucionais sobre Justiça Social. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 57/58, p. 233, 1981.

Page 37: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

37

3 OS MARCOS DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

O advento da Constituição de 1988 trouxe consigo importantes diretrizes

para o desenvolvimento de política urbana. A obrigatoriedade, aos municípios com

mais de 20.000 habitantes, de desenvolver e implementar o Plano Diretor demonstra

a preocupação do constituinte com o desenvolvimento da cidade e sua função

social.

É, porém, com a promulgação da Lei n.º 10.257/2001, denominada Estatuto

da Cidade, que o administrador público encontra os subsídios necessários para

desenvolver o Plano Diretor que já lhe era obrigatório por força da Constituição.

Nesse contexto emerge a regularização fundiária urbana, não apenas como

instrumento de segurança de posse ou mesmo de acesso ao direito à moradia, mas

também como diretriz geral da política urbana nacional.

3.1 DIREITO À MORADIA COMO FUNDAMENTO DA REGULARIZAÇÃO

FUNDIÁRIA

Num país como o Brasil, caracterizado pela intensa desigualdade social, faz-

se necessário um estudo, ainda que resumido, do regime jurídico do direito à

moradia, sua aplicabilidade e eficácia.

De modo bastante simples, o direito à moradia34 pode ser definido como o

direito a ter um lugar para se viver de maneira digna e saudável, com segurança e

paz.

O direito à moradia foi reconhecido como um Direito Humano na Declaração

Universal dos Direitos dos Homens e foi aplicado em várias partes do mundo como

um dos direitos fundamentais da pessoa humana. A Declaração deu origem a

diversos tratados internacionais onde os Estados signatários passaram a ter

obrigação de proteger e promover o direito à moradia. Atualmente, existem mais de

doze textos diferentes da ONU que tratam do direito à moradia.

34

SILVA, José Afonso. Comentário Contextual da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 313. O direito à moradia significa ocupar um lugar como residência; ocupar uma casa, apartamento etc., para nele habitar. No “morar” encontramos a ideia básica da habitualidade no permanecer ocupando uma edificação, o que sobressai com sua correlação com o residir e o habitar com a mesma conotação de permanecer ocupando um lugar permanentemente. O direito à moradia não é necessariamente o direito à casa própria. Quer se garanta um teto onde se abrigue com a família de modo permanente, segundo a própria etimologia do verbo morar, do latim “morari”, que significa demorar, ficar [...].

Page 38: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

38

No Brasil, a Constituição Federal de 1988, por força da Emenda

Constitucional 26/2000, incluiu o direito à moradia no rol dos direitos sociais

descritos no parágrafo 6º, o que deu a esse direito a característica de direito

fundamental, portanto, vinculante e autoaplicável.

Em que pese o direito à moradia ser tido como um direito fundamental no

ordenamento jurídico brasileiro, ele é, seguramente, o direito menos garantido e

menos protegido pelos gestores públicos.

O crescimento desordenado das cidades, a falta de programas habitacionais

e a ausência de vontade política contribuem, em muito, para o aumento da exclusão

social, dificultando, portanto, o acesso da população à moradia digna.

O presente capítulo, num primeiro momento, ainda que resumidamente,

demonstra o reconhecimento e a proteção do direito à moradia na legislação

internacional e, na sequencia, faz um breve histórico de sua inclusão no plano

constitucional brasileiro como direito fundamental social, sua aplicabilidade e

eficácia, definindo, assim, o regime jurídico do direito à moradia.

Por fim, salienta-se que não pretende este capítulo esgotar o tema proposto e sim,

tão somente, analisar o direito à moradia demonstrando a viabilidade jurídica de sua

garantia e sua importância como meio de promoção da dignidade da pessoa

humana.

3.1.1 O Direito à Moradia no mundo

Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, iniciou-se um movimento que

visava à proteção dos direitos humanos além das fronteiras dos países, uma vez

que a própria guerra demonstrou que a violação dos direitos fundamentais dos

cidadãos era causada pelo próprio Estado.

A comunidade internacional, objetivando desenvolver mecanismos globais

de proteção ao indivíduo, criou a Organização das Nações Unidas – ONU, que, logo

após o início de seus trabalhos, reconheceu o direito à moradia adequada como um

direito humano.

Estudos mostram que a primeira menção à moradia como um direito do

homem deu-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que data de 10 de

Page 39: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

39

dezembro de 1948 e foi aprovada pela Resolução nº 217 (III) da Assembleia Geral

das Nações Unidas35.

Dita Declaração faz referência ao direito à moradia quando, em seu artigo

XXV, preceitua:

Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos seja um importante

instrumento político de difusão e proteção dos direitos dos homens e tenha, ao longo

do tempo e em todo mundo, influenciado diversas Constituições, ela não tem força

vinculante por não ter natureza jurídica de Tratado Internacional.

Quanto ao tema, Francisco Rezek e Norberto Bobbio posicionam-se,

respectivamente, da seguinte maneira:

A Declaração Universal dos Direitos dos Homens não é um tratado e, por isso seus dispositivos não constituem exatamente uma obrigação jurídica para cada um dos Estados representados na Assembleia Geral quando, sem qualquer voto contrário, adotou-se o respectivo texto sob a forma de resolução da Assembleia. Por mais de uma vez, ante gestões externas fundadas no zelo pelos direitos humanos, certos países reagiram lembrando

a natureza não-convencional da Declaração36

.

[...] é algo mais que um sistema doutrinário e algo menos que um sistema normativo. Do ponto de vista da ciência do direito internacional público, a Declaração não tem a força vinculante dos tratados, pois não foi elaborada

de acordo com as normas de processualística desses instrumentos37

.

A supressão desse gargalo deu-se com os Pactos que, com sua natureza

jurídica de Tratados e Convenções, tornaram-se importante marco na

universalização e sistematização dos direitos previstos no artigo XXV da Declaração

de Direitos Humanos e, portanto, no direito humano à moradia.

35

SAULE JUNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da moradia nos assentamentos irregulares, Porto Alegre: Fabris, 2004. p.89. O direito à moradia no direito internacional dos direitos humanos tem como fonte originária a Declaração Universal dos Direitos Humanos que, apesar de não ter valor jurídico, contém um núcleo de direitos da pessoa humana, que foram incorporados nos tratados internacionais de direitos humanos. 36

REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 9. ed. São Paulo: Saraiva. 2002, p. 211. 37

BOBBIO, Norberto. A era do direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 15.

Page 40: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

40

O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, assim

como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos38, foi instituído pela

Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966 e traz, em seu

artigo 11º, o preceito tido por muitos doutrinadores como a principal fundamentação

legal da obrigatoriedade da garantia do direito à moradia no Brasil39:

Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento.

O direito à moradia volta a aparecer na Convenção40 Internacional sobre a

eliminação de todas as formas de discriminação racial que foi adotada através da

Resolução nº 2106A(XX) da Assembleia Geral das Nações Unidas, datada de 21 de

dezembro de 1965, e que entrou em vigor em 04 de janeiro de 1969. No Brasil, foi

promulgada pelo Decreto 65.810 de 08 de dezembro de 1969.

As Nações Unidas também buscou proteger o direito à moradia da mulher

conforme se verifica na Convenção41 Internacional sobre todas as formas de

discriminação contra a mulher, aprovada pela Resolução 34/180 de 18 de dezembro

de 1979 e que entrou em vigor em 03 de setembro de 1981.

A Convenção, no Brasil, foi inicialmente promulgada pelo Decreto 89.460 de

20 de março de 1984, com reservas aos artigos 15, §4º e 16, §1º, alíneas “a”, “c”, “g”

e “h”, entrando em vigor em 02 de março de 1984. Em momento posterior, o Decreto

38

O Pacto dos Direitos Civis e Políticos preceitua no artigo 17: 1. Ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra e reputação. 2. Toda pessoa terá direito à proteção da lei contra essas ingerências ou ofensas. 39

Os Pactos Internacionais de Direito de Econômicos, Sociais e Culturais e de Direitos Civis e Políticos foram aprovados pelo Congresso Nacional através do Decreto-lei n.º 226 de 12 de dezembro de 1992 e ratificados através dos Decretos 591 e 592 de 06 de julho de 1992. 40

Art. 5º. De acordo com as obrigações fundamentais enunciadas no artigo 2 desta Convenção, os Estados Partes comprometem-se a proibir e a eliminar a discriminação racial sob todas as suas formas e a garantir o direito de cada um à igualdade perante a lei, sem distinção de raça, de cor ou de origem nacional ou étnica, nomeadamente no gozo dos seguintes direitos: [...] e) direitos econômicos, sociais e culturais, nomeadamente: [...] (iii) direito à habitação; 41

Art. 14, §2º, “h”. Os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra as mulheres nas zonas rurais a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, a sua participação no desenvolvimento rural e seus benefícios, e em particular assegurar-lhes-ão o direito de: [...] h) gozar de condições de vida adequadas, particularmente no que diz respeito à habitação, saneamento, fornecimento de eletricidade e abastecimento de água, transportes e comunicações.

Page 41: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

41

4.377 de 13 de setembro de 2002, revogou o Decreto 89.460, promulgando a

Convenção sem qualquer ressalva.

A Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a proteção do direito à

moradia da criança na Convenção42 sobre os Direitos da Criança. Aprovada através

da Resolução n.º 44/25, de 20 de novembro de 1989, entrou em vigor em 02 de

setembro de 1990 e foi ratificada no Brasil através do Decreto n.º 99.710 de 21 de

novembro de 1990.

A Comissão de Direitos Humanos, o Comitê dos Direitos Econômicos

Sociais, o Centro de Assentamentos Humanos (Habitat), a Assembleia Geral e a

Conferência Global das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos, a fim de

monitorar o cumprimento dos Tratados, Convenções e demais instrumentos

internacionais de Direitos Humanos pelos Estados-partes, desenvolveram um árduo

trabalho para construir o significado, os elementos e a abrangência do direito à

moradia, suas formas de proteção e seus tipos de violação43.

Do trabalho, foram publicados documentos de valor inestimável à garantia e

monitoramento do direito à moradia no mundo, “Estratégia44 mundial para a moradia

até o ano 2000”, “Comentário Geral n.º 445”, “Comentário Geral n.º 746”, “Declaração

42

Art. 27, §3º. Os Estados Partes, de acordo com as condições nacionais e dentro de suas possibilidades, adotarão medidas apropriadas a fim de ajudar os pais e outras pessoas responsáveis pela criança a tornar efetivo esse direito e, caso necessário, proporcionarão assistência material e programas de apoio, especialmente no que diz respeito à nutrição, ao vestuário e à habitação. 43

SAULE JUNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da moradia nos assentamentos irregulares, Porto Alegre: Fabris, 2004. p. 98. 44

Art.13. O direito à moradia digna é reconhecido universalmente pela comunidade das Nações [...] Todas as nações, sem exceção, têm algumas obrigações legais no setor da habitação, em suas políticas, programas e projetos [...]. Todo cidadão de todo Estado, quão pobre ele possa ser, tem o direito de evoluir seu governo para satisfação de suas necessidades habitacionais e exigir-lhe a obrigação fundamental de proteger e melhorar casas e vizinhanças, em vez de danificá-las ou destruí-las. 45

O Comentário Geral n.º 4 sobre o direito à moradia adequada foi produzido pelo Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Cultural em 12 de dezembro de 1991 e traz, em seu corpo, a definição do direito à moradia adequada, indicando os aspectos mais importantes deste, além de princípios e normas para seu entendimento. Define os componentes do Direito à Moradia como sendo a) segurança jurídica da posse, b) disponibilidade dos serviços, materiais, benefícios e infraestrutura, c) gastos suportáveis, d) habitabilidade, e) acessibilidade, f) localização e g) adequação cultural. 46

O Comentário Geral nº 7 sobre o Direito à moradia adequada: Despejo Forçado, datado de 16 de maio de 1997, indica as atitudes que os governos, proprietários e instituições devem tomar para impedir os despejos forçados.

Page 42: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

42

sobre assentamentos humanos de Vancouver47”, “Declaração sobre o

desenvolvimento48”, “Agenda 2149” e “Agenda Habitat”.

Ressalte-se, entre todos os documentos citados, a Conferência50 das

Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos, conhecida como Habitat II,

realizada em Istambul, Turquia, no ano de 1996, que teve como temas principais a

moradia adequada para todos e o desenvolvimento de assentamentos humanos

sustentáveis em um mundo em processo de urbanização.

47

A primeira Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos foi realizada em Vancouver, em 1976, e teve por documento oficial a Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver que preceitua, na Seção II e Capítulo II: Adequada habitação e serviços são um direito humano básico, pelo qual coloca como obrigação dos Governos assegurar a realização destes para todas as pessoas, começando com a assistência direta para os menos avantajados através de programas de ajuda mútua e de ações comunitárias. Os Governos devem se empenhar para remover todos os obstáculos que impeçam a realização destas metas. De especial importância é a eliminação da segregação social e racial, inter alia, através da criação de comunidades melhores equilibradas, com a combinação de diferentes grupos sociais, ocupações, moradias e amenidades”. 48

A Declaração sobre o direito ao Desenvolvimento, além de considerar o Direito ao Desenvolvimento como um direito humano inalienável, traz em seu artigo 8, item 1, a disposição: Os Estados devem tomar, a nível nacional, todas as medidas necessárias para a realização do direito ao desenvolvimento e devem assegurar, inter alia, igualdade de oportunidade para todos em seu acesso aos recursos básicos, educação, serviços de saúde, alimentação, habitação, emprego e distribuição equitativa da renda. Medidas efetivas devem ser tomadas para assegurar que as mulheres tenham um papel ativo no processo de desenvolvimento. Reformas econômicas e sociais apropriadas devem ser efetuadas com vistas à erradicação de todas as injustiças sociais. 49

A Organização das Nações Unidas realizou em 1992, no Rio de Janeiro, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Rio 92. Os países participantes, no total 192, assinaram a Agenda 21, que é um documento de 40 capítulos que contém um programa de ação visando o desenvolvimento sustentável. 50

Destaque para o artigo 7º da Declaração de Istambul sobre Assentamentos Precários: Como os seres humanos são o cerne da nossa preocupação com o desenvolvimento sustentável, eles são a base para as nossas ações na implementação da Agenda Habitat. Reconhecemos as necessidades especiais das mulheres, crianças e jovens por condições de vida seguras e saudáveis. Deveremos intensificar nossos esforços para erradicar a pobreza e a descriminação, para promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais para todos e garantir as necessidades básicas, como educação, nutrição e serviços de saúde vitalícios e, principalmente, moradia adequada para todos. Com essa finalidade, nós nos comprometemos a melhorar as condições de vida em assentamentos humanos de forma consonante com as necessidades e realidades locais, e reconhecemos a necessidade de abordar as tendências globais, econômicas, sociais e ambientais, para garantir a criação de melhores ambientes de vida para todas as pessoas. Garantiremos também a participação total e igual de todas as mulheres e homens e a efetiva participação dos jovens na vida social, política e econômica. Deveremos promover a total acessibilidade para pessoas portadoras de deficiências, além da igualdade de gênero em políticas, programas e projetos habitacionais e no desenvolvimento de assentamentos humanos sustentáveis. Nós assumimos esses compromissos com referência especial as mais de um bilhão de pessoas vivendo em pobreza absoluta e aos membros de grupos vulneráveis e desfavorecidos identificados na Agenda Habitat.

Page 43: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

43

A Conferência adotou a Agenda Habitat51 que é um plano de ação global

que compreende princípios, compromissos e metas capazes de oferecer respostas

às demandas por padrões sustentáveis de vida nos assentamentos.

A Agenda Habitat52 determina, no § 2º do seu preâmbulo, que para ser

considerada adequada a habitação, ela deve ser sadia, segura, protegida, acessível,

disponível e incluir serviços, instalações e comodidades básicas, e o gozo de

liberdade frente a discriminações de moradia e segurança jurídica da posse.

Segurança Jurídica da Posse: todas as pessoas devem possuir um grau de segurança de posse que lhes garanta a proteção legal contra despejos forçados, expropriação, deslocamentos e outros tipos de ameaça; Disponibilidade de serviços e infraestrutura: acesso ao fornecimento de água potável, fornecimento de energia, serviço de saneamento e tratamento de resíduos, transporte, iluminação pública; Custo da Moradia Acessível: adoção de medidas para garantir proporcionalidade entre os gastos com habitação e a renda das pessoas, criação de subsídios e financiamentos para os grupos sociais de baixa renda, proteção dos inquilinos contra aumentos abusivos de aluguel; Habitabilidade: a moradia deve ser habitável, tendo condições de saúde física e de salubridade adequadas; Acessibilidade: constituir políticas habitacionais contemplando os grupos vulneráveis, como os portadores de deficiências, os grupos sociais empobrecidos, vítimas de desastres naturais ou de violência urbana, conflitos armados; Localização: moradia adequada significa estar localizada em lugares que permitam o acesso às opções de emprego, transporte público eficiente, serviços de saúde, escolas, cultura e lazer; Adequação Cultural: respeito à produção social do habitat, à diversidade cultural, aos padrões habitacionais oriundos dos usos e costumes das comunidades e grupos sociais

51

São compromissos estabelecidos no § 40 da Habitat: a) promover o acesso de todas as pessoas à água potável, saneamento, especialmente as pessoas que vivem na pobreza, as mulheres, grupos vulneráveis e desfavorecidos; b) estimular tecnologias de construção que estejam disponíveis localmente, que sejam apropriadas, acessíveis, seguras, eficientes e que não causem impacto negativo ao meio ambiente; c) elaborar e aplicar normas destinadas ao acesso de pessoas deficientes, em conformidade com as Normas Uniformes sobre a igualdade de oportunidades para as pessoas com deficiência; d) aumentar a oferta de moradias acessíveis, estimulando as diversas formas de moradia, propriedade individual, propriedade coletiva por meio de cooperativas, moradia de aluguel, através de parcerias entre o setor público, privado e a comunidade; e) estimular a melhoria do patrimônio de moradias existentes, mediante a reabilitação, e a manutenção de oferta adequada de serviços e instalações básicas; f) erradicar a discriminação no acesso à moradia e aos serviços básicos, por qualquer motivo, raça, cor, sexo, língua, opinião política, origem nacional ou social, nacionalidade, deficiências e garantir a proteção jurídica contra tal discriminação. 52

De acordo com o § 43 da Agenda Habitat, habitação adequada significa: 1. mais do que um telhado sobre a cabeça. Adequada Habitação significa adequada privacidade, adequado espaço, acesso físico, adequada segurança incluindo a garantia de posse, durabilidade e estabilidade da estrutura física, adequada iluminação, aquecimento e ventilação; 2. adequada infraestrutura básica, fornecimento de água, saneamento e tratamento de resíduos, apropriada qualidade ambiental e de saúde, adequada localização com relação ao trabalho e serviços básicos; 3. que esses componentes tenham um custo acessível para todos.

Page 44: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

44

3.1.2 O Direito à Moradia no Brasil

É certo, portanto, que o direito à moradia é protegido e monitorado em

diversos documentos internacionais enquanto direito humano, que por si só não

possui vinculação ou concreção, conforme já mencionado anteriormente.

Los derechos humanos aparecen como un conjunto de facultades e instituciones que, en cada momento histórico, concretan las exigencias de la dignidad, la libertad y la igualdad humana, las cuales deben ser reconocidas positivamente por los ordenamientos jurídicos a nivel nacional e internacional

53.

Os direitos humanos, além de descritos em documentos de direito

internacional, são válidos para todos os povos e em todos os tempos. São direitos

atinentes à própria natureza humana, portanto, invioláveis, intertemporais e

universais54.

Diversos são os doutrinadores que entendem que a positivação dos direitos

humanos resulta nos direitos fundamentais, reconhecidos, portanto, como direitos

vigentes em dada ordem jurídica.

Como bem observa Francisco Rezek:

[...] o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão direitos humanos guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional

55.

A Constituição Federal de 1988 é reconhecida pela incorporação de

institutos modernos como os direitos e garantias fundamentais. O art. 5º, por sua

vez, é o reduto desses direitos, muitos dos quais influenciados pela Declaração

Universal dos Direitos Humanos.

53

LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. 6 ed. Madrid: Tecnos, 1999. p. 48 54

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3 ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 259. 55

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 5 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p.35.

Page 45: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

45

O texto original da Constituição Federal/88, no entanto, não trazia em seu

bojo o direito à moradia elencado como os demais direitos sociais.

A inclusão do direito à moradia como um direito fundamental social deu-se

através da Emenda Constitucional 26/2000, que foi proposta sob o vulto da

Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos em Istambul.

A justificativa56 da proposta deixa claro que a indicação do Brasil como

relator da Agenda do Habitat na parte do direito à moradia, foi fator determinante

para a apresentação da proposta do Senador Mauro Miranda, sob o n.º 28/1996.

A proposta foi aprovada no Senado sem nenhum voto contra ou abstenção,

nos dois turnos de votação. E na Câmara dos Deputados foi aprovada com um único

voto contra e uma única abstenção, ambos em segundo turno.

A Emenda Constitucional 26 foi promulgada em 14 de fevereiro de 2000 e

incluiu o direito à moradia entre os direitos fundamentais57 sociais previstos no art.

6º, com o texto a seguir:

Art. 1º. O art. 6º da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Art. 2º. Esta EC entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 14 de fevereiro de 2000.

Da análise do presente artigo, constata-se que o Direito à Moradia está

relacionado diretamente às necessidades vitais básicas do homem o que o torna,

56

Para esse evento (Conferência Habitat II), o Brasil foi indicado relator da parte da Agenda do Habitat (carta de intenções da Conferência), que trata do “direito à moradia”. Coube-lhe, assim, a difícil tarefa de justificar, frente a países como o Japão, Estados Unidos e Coréia (que foram contra a inclusão desse tema na Agenda), a urgente necessidade de se reconhecer a moradia como um direito social. A participação ativa brasileira em tão importante evento, de caráter mundial, coloca-nos em posição delicada, principalmente quando se verifica, em meio de um situação eminentemente crítica das áreas urbanas brasileiras, uma lacuna na Constituição Federal, que não reconhece a morada como direito real, como a saúde, o lazer, o trabalho etc. Mais delicada, ainda, fica a situação do Brasil quando, sabedores da realização da Conferência, os “sem-teto” de todo o País, já bastante organizados, ameaçam „pipocar ocupações de terrenos‟ na periferia das grandes cidades – conforme se lê nos mais renomados jornais do País. 57

Sobre direitos fundamentais Jose Afonso da Silva ensina que “além de referir-se a princípios que resumem a concepção de mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ela concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamental acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual que devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados.” SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. p. 159.

Page 46: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

46

além de um direito social, também um direito personalíssimo, fundamental e

humano58. Desse modo, é fato que o exercício do direito à moradia deve ser

ampliado, protegido e assegurado pelas normas jurídicas, sendo inconstitucional a

norma que não atenda, contrarie, dificulte ou até mesmo restrinja o exercício do

direito à moradia, vez que a Constituição lhe deu proteção.

Mister frisar que a Emenda 26/2000 veio positivar o direito à moradia, mas

este já era reconhecido em nossa Constituição por conta do princípio da dignidade

da pessoa humana, uma vez que a positivação do referido principio impõe a

satisfação das necessidades básicas do ser humano para uma vida digna, podendo,

inclusive, ser fundamento para o reconhecimento de direitos fundamentais não

expressos mas destinados à proteção da dignidade59, como é o caso do direito à

moradia.

Em que pese a omissão de nossa Constituição quando da definição mínima

do conteúdo do direito à moradia, temos que, bem como o princípio da dignidade da

pessoa humana, devem ser respeitados os preceitos contidos nos tratados e

convenções dos quais o Brasil é signatário.

Assim, remontamos ao Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais60

que define como elementos essenciais do direito à moradia a segurança jurídica da

posse, disponibilidade de infraestrutura básica, custo de moradia acessível,

habitabilidade, acessibilidade, localização e adequação cultural.

É fato que o direito à moradia é absolutamente vinculado à dignidade da

pessoa humana, especialmente quando se fala em condição essencial para uma

58

IGLESIAS, Sérgio Nunes. Direito á Moradia e de Habitação: análise comparativa de suas implicações teóricas e práticas com os direitos da personalidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 124. 59

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 97. 60

Segurança Jurídica da Posse: todas as pessoas devem possuir um grau de segurança de posse que lhes garanta a proteção legal contra despejos forçados, expropriação, deslocamentos e outros tipos de ameaça; Disponibilidade de Serviços e infraestrutura: acesso ao fornecimento de água potável, fornecimento de energia, serviço de saneamento e tratamento de resíduos, transporte, iluminação pública; Custo da Moradia Acessível: adoção de medidas para garantir proporcionalidade entre os gastos com habitação e a renda das pessoas, criação de subsídios e financiamentos para os grupos sociais de baixa renda, proteção dos inquilinos contra aumentos abusivos de aluguel; Habitabilidade: a moradia deve ser habitável, tendo condições de saúde física e de salubridade adequadas; Acessibilidade: constituir políticas habitacionais contemplando os grupos vulneráveis, como os portadores de deficiências, os grupos sociais empobrecidos, vítimas de desastres naturais ou de violência urbana, conflitos armados; Localização: moradia adequada significa estar localizada em lugares que permitam o acesso às opções de emprego, transporte público eficiente, serviços de saúde, escolas, cultura e lazer; Adequação Cultural: respeito à produção social do habitat, à diversidade cultural, aos padrões habitacionais oriundos dos usos e costumes das comunidades e grupos sociais.

Page 47: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

47

vida digna. É certo que a falta de uma moradia sem um mínimo de condições de

habitabilidade, assim entendida como um lugar para o ser humano viver, para

proteger a si e sua família, para desfrutar de sua intimidade e privacidade, não

assegura à pessoa nem mesmo seu direito à vida, impossível portanto falar-se em

garantia à sua dignidade.

3.1.3 Direito Fundamental à Moradia, Aplicabilidade e Eficácia

Não obstante o direito à moradia ser reconhecido por tratar-se de preceito

essencial à garantia do princípio da dignidade da pessoa humana61, a Constituição

Federal de 1988 o inclui em seu rol de direitos sociais, trazido por seu art. 6º,

colocando-o no mesmo nível dos direitos sociais à educação, à saúde, ao trabalho, à

segurança, entre outros62.

Em que pese o art. 6º ser parte integrante do Título II do Capítulo II da

Constituição Federal Brasileira, que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais,

alguns poucos doutrinadores afirmam que direitos sociais e direitos fundamentais

são distintos. Não comungamos desse posicionamento, uma vez que entendemos

que os direitos sociais são direitos adquiridos pelo homem ao longo de seu histórico

de batalhas em busca de condições de vida dignas e, assim, tidos por direitos

humanos. Daí, impõe-se que a não observância da garantia ao acesso a esses

direitos fere a própria condição humana do homem, restando certo que são direitos

fundamentais à sua existência.

61

SARLET, Ingo Wolfgang. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos Fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 62. Segundo Sarlet “[...] dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”. 62

LEAL, Rogério Gesta. Direito Urbanístico: Condições e Possibilidades da Constituição do Espaço Urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 40. Conforme Rogério Leal “em países como o Brasil, o nível de consciência política da população e do próprio Poder Público não oportunizou, ao menos em termos históricos, uma mobilização eficaz para o planejamento urbanístico [...] Resultado imediato disso é o fato de que as políticas públicas adotadas no país – se é que podemos falar disto – jamais consideraram, como deveria, os milhões de cidadãos que vivem em condições subumanas. Desta sorte [...] acumulou-se uma gigantesca dívida social no âmbito de políticas públicas efetivas às comunidades que vivem na cidade.”

Page 48: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

48

Direitos Sociais são direitos fundamentas do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal

63.

Verifica-se, também, que embora os direitos descritos no rol dos direitos

sociais sejam reconhecidamente necessidades individuais, os efeitos do não

reconhecimento dessas necessidades atingem toda a sociedade, razão de utilizar-se

a denominação direitos sociais.

A proteção social se preocupa sobretudo com os problemas individuais de natureza social, assim entendidos aqueles que, não solucionados, têm reflexos diretos sobre os demais indivíduos e, em última análise sobre a sociedade. A sociedade então, por intermédio de seu agente natural, o Estado, se antecipa a esses problemas, adotando para resolvê-los principalmente medidas de proteção social

64.

Evidente, portanto, que sendo o direito à moradia um Direito Fundamental65,

cabe ao Estado protegê-lo e promovê-lo, através de leis e políticas públicas, na

maior medida possível, dentro das possibilidades existentes, respeitando, de acordo

com Nunes de Souza66, os princípios fundamentais da cidadania, da dignidade da

pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa67.

63

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 202. 64

LEITE, Celso Barroso. A proteção Social no Brasil. São Paulo: LTR, 1972. p. 21. 65

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998. p. 359. Sobre direitos humanos e direitos fundamentais Canotilho ensina que “direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); Direitos Fundamentais são os direitos do homem, jurídicoinstitucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente.” 66

SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes. Direito à moradia e de habitação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 119. 67

SARLET, Ingo Wolfgang. Os Direitos Fundamentais Sociais Na Constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, v. 1, n. 1, p.8, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 02 mar. 2009, p. 8. Conforme entende Sarlet “[...] com base no nosso direito constitucional positivo, e integrando a perspectiva material e formal já referida, entendemos que os direitos fundamentais podem ser conceituados como aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, pelo seu objeto e significado, possam lhes ser equiparados, tendo, ou não, assento na Constituição formal (aqui consideramos a abertura material consagrada no art. 5º, § 2º, da CF, que prevê o reconhecimento de direitos fundamentais implícitos, decorrentes do regime e dos princípios da Constituição, bem como direitos expressamente positivados em tratados internacionais).”

Page 49: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

49

O reconhecimento dos direitos sociais como direitos fundamentais acaba por

defini-los como normas de hierarquia mais elevada que as demais, bem como

normas de aplicabilidade imediata, vinculando o Poder Público68.

O próprio §1º do art. 5º da Constituição Federal determina que as normas

definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, sendo

óbvio, ressalte-se, que este dispositivo aplica-se a todos os direitos fundamentais69

arrolados na Constituição e não tão somente aos constantes no art. 5º.

O direito à moradia70, enquanto direito fundamental, impõe ao Poder Público

que garanta sua efetividade dando-lhe aplicabilidade imediata. Ainda que alguns

doutrinadores entendam o direito à moradia como norma programática e, portanto,

dependente da criação de programas ou mesmo leis para sua efetivação, não

encontramos fundamentação suficiente para este posicionamento, uma vez que se

trata de norma constitucional.

O sistema constitucional brasileiro dispõe de diversas normas voltadas à

redução da desigualdade econômica e social que devem ser garantidas através da

implementação de políticas públicas, restando incompatível com este sistema a não

efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais no campo doutrinário71.

Celso Antônio Bandeira de Mello72 expressa com muita clareza a questão da

efetividade dos direitos sociais quando afirma que as disposições constitucionais de

Justiça Social não são apenas exortações ou conselhos de valor moral mas tratam-

se de comandos jurídicos, portanto obrigatórias, implicando ao Estado o dever de

fazer ou não fazer. Assim, os direitos econômicos, sociais e culturais, onde se inclui

68

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Eficácia das Normas Constitucionais sobre Justiça Social. Revista de Direito Público, São Paulo. n. 57/58, p. 253, 1981. Conforme Celso Antonio “há violação de normas constitucionais pertinentes à justiça social – e, portanto inconstitucionalidade – quer quando o estado age em descompasso com tais preceitos, quer quando, devendo agir para cumprir-lhes as finalidades, omite-se em fazê-lo. [...] Não somente os tratados internacionais de direitos humanos, mas em razão, principalmente, da Constituição, os direitos econômicos, sociais e culturais têm eficácia plena, gerando a obrigação imediata do Estado brasileiro estabelecer as medidas necessárias para efetivar esses direitos, dentre os quais se inclui o direito à moradia. 69

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 2. ed. Coimbra: Editora Coimbra, 1993. p.7. Para Jorge Miranda os direitos fundamentais são “[...] direitos inerentes à própria noção de pessoa, como direitos básicos da pessoa, como direitos que constituem a base jurídica da vida humana no seu nível atual de dignidade”. 70

SAULE JUNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da moradia nos assentamentos irregulares, Porto Alegre: Fabris, 2004. p. 175 Para Nelson Saule “O direito à moradia como integrante dos direitos sociais, para ter eficácia jurídica e social, pressupõe a ação positiva do Estado por meio da execução de políticas públicas, no caso, em especial, da promoção da política urbana e habitacional.” 71

SAULE JUNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da moradia nos assentamentos irregulares, Porto Alegre: Fabris, 2004. p. 178. 72

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Eficácia das Normas Constitucionais sobre Justiça Social. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 57/58, p. 182, 1981.

Page 50: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

50

o direito à moradia, têm eficácia plena, obrigando o Estado a tomar as medidas

necessárias para sua efetivação.

Segundo Nelson Saule73, para o Estado garantir o exercício do direito à

moradia faz-se necessária a tomada das seguintes medidas:

A legitimidade de o cidadão exigir de forma imediata as prestações e ações constitutivas desse direito, em decorrência da inércia do Estado, que pode gerar a inconstitucionalidade por omissão; O direito de acesso à Justiça, mediante remédios legais e procedimentos judiciais eficazes destinados à proteção do direito à moradia; O direito de participar da formulação e implementação da política habitacional; A adoção de instrumentos financeiros, legais, administrativos sem nenhuma espécie de medida discriminatória em razão de sexo, raça, cor. Origem social, posição econômica para a promoção de uma política habitacional que dificulte ou impeça o acesso a uma moradia adequada para a população considerada vulnerável ou excluída socialmente; A constituição de um sistema nacional de habitação descentralizada, com mecanismos de participação popular; A revisão de legislações e instrumentos de modo a eliminar normas que acarretem algum tipo de restrição e discriminação sobre o exercício do direito à moradia; A destinação de recursos para a promoção da política habitacional.

O resultado dessa aplicabilidade imediata do direito à moradia pode ser

verificado quando acionado o Poder Judiciário. Diante de uma situação concreta,

havendo verossimilhança de direitos, uma vez provocado, o Judiciário deve garantir

o acesso ao direito à moradia, cabendo assim instrumentos de garantias

constitucionais tais como ação civil pública, ação popular, mandado de segurança.

Há que se falar ainda na definição do conteúdo dos direitos fundamentais

que, de acordo com a doutrina de Alexy74, conforme a função exercida podem ser

distinguidos em direitos fundamentais como direitos de defesa e direitos

fundamentais como direitos a prestações.

Os direitos fundamentais cumprem sua função de defesa quando constituem

normas de competência negativa para o Poder Público, impedindo a ingerência

deste na esfera jurídica individual, e quando possibilitam o exercício dos direitos

fundamentais e a exigência de omissão por parte do Poder Público.

73

SAULE JUNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da moradia nos assentamentos irregulares, Porto Alegre: Fabris, 2004.p. 183. 74

ALEXY, Robert. Colisão de Direitos Fundamentais e Realização de Direitos Fundamentais no Estado de Direito Democrático. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 3, n. 217, p. 67-79, jul/set., 1999.

Page 51: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

51

Por outro lado, o direito fundamental à prestação é entendido como a

obrigação do Poder Público em proporcionar meios e condições para o exercício das

liberdades fundamentais.

Com efeito, o direito a prestações vai muito além da simples omissão do

Poder Público, ao contrário, exige um comportamento ativo do Poder Público,

obrigando-o a prestações de natureza jurídica e material.

No que concerne ao direito à moradia verifica-se que ele envolve ambas as

perspectivas dos direitos fundamentais, sendo tanto um direito de defesa como um

direito prestacional.

No tocante à perspectiva negativa do direito fundamental, sua função

defensiva, a moradia deve ser protegida de qualquer agressão, restando a todos o

dever jurídico de respeito à moradia alheia. A aplicabilidade imediata encontra-se

alojada na garantia da exigibilidade integral do direito em Juízo, devendo este zelar

por sua máxima eficácia e efetividade.

Sob esse aspecto, cabe aos juízes a observação da efetiva proteção da

moradia, tanto no controle de constitucionalidade de restrições dadas pelo Poder

Público, quanto nas relações entre particulares, onde o direito à moradia se opõe a

outros interesses.

No âmbito do direito à moradia prestacional, a grande dúvida suscitada

reside na possibilidade ou não de qualquer pessoa, titular de direitos fundamentais,

portanto também titular do direito à moradia, poder exigir do Poder Público prestação

que lhe assegure uma moradia, ou mais, uma moradia que atenda as condições de

vida digna.

Neste contexto, há doutrinadores que entendem que o direito à moradia, em

sua perspectiva prestacional, assume a condição de norma programática, o que não

destitui sua fundamentalidade e eficácia75.

75

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 164. Sobre normas programáticas, José Afonso da Silva ensina que “as normas programáticas têm eficácia jurídica imediata, direta e vinculante nos casos seguintes: I – estabelecem um dever para o legislador ordinário; II – condicionam a legislação futura, com a consequência de serem inconstitucionais as leis ou atos que as ferirem; III – informam a concepção do Estado e da sociedade e inspiram sua ordenação jurídica, mediante a atribuição de fins sociais, proteção dos valores da justiça social e revelação dos componentes do bem comum; IV – constituem sentido teleológico para a interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas; V – condicionam a atividade discricionária da Administração e do Judiciário; VI – criam situações jurídicas subjetivas, de vantagem ou desvantagem.”

Page 52: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

52

Vale notar, no entanto, que independente de tratar-se de norma

programática, o âmbito prestacional do direito à moradia obriga o Estado a

desenvolver e implementar políticas públicas de habitação, visando a garantia ao

acesso à moradia digna à população.

3.3 REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA E SUA PREVISÃO NORMATIVA

A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade buscaram indicar

diretrizes e instrumentos que possibilitassem a toda população o acesso à cidade e,

visando manter a ordem urbanística, procuraram agregar à cidade as irregularidades

urbanas, com o intuito principal de suprimir a segregação social que destoa da busca

constitucional pelo Estado Democrático de Direito.

Como baliza do Estatuto da Cidade, a função social da cidade procura

determinar, juntamente com o planejamento urbano e a função social da

propriedade, meios de promover o acesso da população à moradia digna. Procurou

a legislação nacional modificar a realidade social dos moradores de áreas

irregulares, loteamentos clandestinos, habitações precárias, favelas, habitações

coletivas, enfim, atender a garantia de respeito à dignidade da população de baixa

renda.

A falta de políticas públicas habitacionais coerentes, a industrialização e

consequente migração da zona rural para a cidade, a ausência de planejamento na

urbanização brasileira e a inércia da Administração Pública são causas do

surgimento e crescimento dos processos informais de ocupação do solo para fins de

moradia.

A cidade informal é oriunda da falta de acesso da população de baixa renda

à terra urbana formal principalmente pelo elevado valor do imóvel em localidades

onde exista um mínimo de infraestrutura tal como escolas, transporte coletivo e

equipamentos de saúde pública. A busca por uma moradia acaba levando essa

população para as grandes periferias onde a ocupação reveste-se em solução, ainda

que, muitas vezes, apresente condições precárias de habitabilidade.

Essa realidade traz à tona a necessidade de desenvolvimento de políticas

públicas habitacionais que consigam extinguir, ou mesmo reduzir, o déficit

habitacional e que apresentem mecanismos para solucionar a questão das

ocupações irregulares.

Page 53: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

53

Nesse contexto surge a figura da regularização fundiária, trazendo consigo a

responsabilidade de corrigir toda sorte de problemas originados da ocupação

desordenada do espaço urbano e das condições precárias de habitabilidade das

moradias nos assentamentos informais.

Ainda que seja instrumento de grande importância na busca do direito à

moradia, em especial na garantia da segurança da posse, a legislação junto do tema

pode ser considerada recente e transitou desde o Código Civil de 1916 até a Lei

11.977/2009 e suas alterações.

Fazendo-se uma retrospectiva sobre a legislação acerca da regularização

fundiária chega-se ao instituto da desapropriação, utilizado por um longo período

como instrumento de regularização fundiária para fins de moradia, regulamentado

através do Decreto-Lei n.º 3.365/1941, quando de utilidade pública, e da Lei

4.132/1962, quando de interesse social.

Através do Decreto-Lei 9.760/1946, a União possibilita a lavratura de auto de

demarcação, em imóveis de sua propriedade, para fins de regularização fundiária de

interesse social, inclusive determinando que esta finalidade visa atender famílias

com renda não superior a cinco salários mínimos.

É necessário fazer menção a alteração que a Lei de Parcelamento de Solo,

Lei 6.766/1979, recebeu no ano de 1999 que possibilitou a regularização fundiária

para fins de moradia em situações irregulares de ocupação, através da criação das

Zonas Especiais, caracterizada como um instrumento urbanístico necessário à

posterior autorização do Poder Público para regularizar loteamento ou

desmembramento não autorizado ou executado.

A alteração, no entanto, não trouxe grandes avanços ao desenvolvimento de

uma política urbana que alterasse de maneira efetiva os padrões urbanísticos

apresentados nas grandes cidades em razão de não apresentar tratamento às

ocupações irregulares.

A regularização fundiária foi ganhando forças com uma série de legislações

esparsas que buscavam garantir o direito à moradia da população de baixa renda

como é o caso da Lei 10.931/2004 que preceituou que o registro do primeiro título da

regularização fundiária fosse gratuito, o que significou grande avanço na luta pelo

Page 54: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

54

acesso à terra urbana legal76.

Há que se considerar, no entanto, que o grande divisor de águas da

regularização fundiária deu-se com a aprovação do capítulo sobre política urbana na

atual Constituição Federal, em especial com a possibilidade de usucapião especial

urbana e concessão de uso para fins de moradia. Não obstante o capítulo sobre

política urbana em nossa Constituição ter sido o responsável pela difusão da

regularização fundiária, o direito à moradia só é reconhecido como um direito social

fundamental com a Emenda 26 de 14 de fevereiro de 2000 e, com o advento do

Estatuto da Cidade, no ano seguinte, é que se tem a regulamentação para o

desenvolvimento da política urbana e, portanto, diretrizes e procedimentos para

realizar a regularização fundiária.

A moradia deve ser entendida como um dos componentes do exercício da

função social da cidade, razão pela qual a previsão constitucional da regularização

fundiária, bem como dos instrumentos de acesso ao direito à moradia, encontra-se

devidamente fundamentada na prescrição do capítulo que trata sobre a política

urbana uma vez que busca garantir o pleno desenvolvimento das funções sociais da

cidade e da qualidade de vida de seus habitantes.

Assim, compete ao Poder Público implementar a regularização fundiária

plena, portanto, resolver as questões jurídicas, urbanísticas e ambientais da

ocupação, para que exista efetivamente o respeito ao direito à moradia e sua

garantia.

Embora exista a previsão constitucional do dever da regularização fundiária,

sua efetivação dá-se através de planejamento, em especial, com a elaboração do

Plano Diretor, devidamente respaldado pelo Estatuto da Cidade. É o plano diretor o

instrumento mestre da política urbana municipal e é nele, por óbvio, que devem

constar todas as informações necessárias à promoção dos processos de

regularização fundiária. É no texto do Plano Diretor que estará descrita a área de

intervenção, os destinatários, as políticas sociais a serem implementadas, inclusive

de geração de renda e combate à desigualdade social, e os meios de preservação e

proteção ambiental.

O Estatuto da Cidade traz as diretrizes gerais da política urbana,

76

ALFONSIN, Betânia de Moraes. Direito à Moradia: Instrumentos e Experiências de Regularização Fundiária nas Cidades Brasileiras. Rio de Janeiro: Observatório de Políticas Urbanas, IPPUR, 1997. p. 56.

Page 55: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

55

regulamentando os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, e determina que a

regularização fundiária é uma dessas diretrizes que têm por objetivo ordenar o pleno

desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, além de

preceituar a regularização fundiária como um dos instrumentos a ser utilizado no

desenvolvimento da política urbana.

Tem, portanto, a regularização fundiária, enquanto materialização do direito

à moradia digna, natureza de política pública e de instrumento jurídico, devendo ser

utilizada tanto para o enfrentamento da questão da segurança da posse quanto para

o desenvolvimento pleno das cidades.

Na definição de Betânia Alfonsin77:

O processo de intervenção pública, sob os aspectos jurídico, físico e social, que objetiva legalizar a permanência de populações moradoras de áreas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei para fins de habitação, implicando melhorias no ambiente urbano do assentamento, no resgate da cidadania e da qualidade de vida da população beneficiária.

O crescimento urbano marcado pelas ocupações desordenadas e a

necessidade de atuação mais ativa e próxima do Poder Público acabou por incluir a

regularização fundiária no rol de atividades a serem desenvolvidas pelo Município,

vindo à tona a problemática em torno da nada favorável legislação ambiental e

urbanística.

Ainda que houvesse resistência do Poder Público para desenvolver as ações

de regularização fundiária, fosse pelas normas rigorosas e desconexas ou mesmo

pela dificuldade de implantação dos instrumentos, o advento do Estatuto da Cidade

e a necessidade de elaboração do Plano Diretor não lhe deixou outra opção para

solucionar o problema das ocupações irregulares urbanas.

O objetivo da regularização fundiária não é outro que o de assegurar o

direito à moradia adequada que, segundo a Agenda Habitat78, compreende, entre

77

ALFONSIN, Betânia de Moraes. Direito à Moradia: Instrumentos e Experiências de Regularização Fundiária nas Cidades Brasileiras. Rio de Janeiro: Observatório de Políticas Urbanas: IPPUR, 1997. p.24. 78

De acordo com o § 43 da Agenda Habitat, habitação adequada significa: 1. mais do que um telhado sobre a cabeça. Adequada Habitação significa adequada privacidade, adequado espaço, acesso físico, adequada segurança incluindo a garantia de posse, durabilidade e estabilidade da estrutura física, adequada iluminação, aquecimento e ventilação; 2. adequada infraestrutura básica, fornecimento de água, saneamento e tratamento de resíduos, apropriada qualidade ambiental e de saúde, adequada localização com relação ao trabalho e serviços básicos; 3. que esses componentes tenham um custo acessível para todos.

Page 56: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

56

outros, a segurança jurídica da posse, disponibilidade de infraestrutura e devidas

condições de habitabilidade.

A habitação adequada descrita pela Agenda Habitat acaba por permitir que a

população excluída, moradora de periferias, tenham acesso ao direito à cidade,

viabilizando ainda que as cidades cumpram sua função social.

A implementação da regularização fundiária garante à população beneficiada

o direito de ter um local para morar, uma vez que a inclusão dos assentamentos

irregulares na cidade formal acaba por solucionar a questão no âmbito legal e

urbanístico.

A regularização fundiária enquanto instrumento de garantia do direito social

à moradia trata-se de um dever do Poder Público e não uma faculdade. Sua

implementação garante um direito assim como a implementação de qualquer outro

programa social que tenha por objetivo resguardar ou viabilizar direitos

fundamentais.

É necessário ressaltar que a regularização fundiária é um processo,

compreendido por diversas etapas que, embora possam ser implementadas

separadamente e em momentos distintos, são complementares, uma vez que

buscam atingir não apenas a regularidade urbanística e da titulação do imóvel como

também garantir o exercício pleno do direito à moradia em todos os seus aspectos,

inclusive sociais e culturais.

Nesse ínterim verifica-se a necessidade de solucionar a desigualdade social

e territorial que atinge grupos vulneráveis, especialmente no que concerne ao

combate à pobreza e às suas causas. A redução dessa desigualdade passa

necessariamente, entre outras, pela realização da função social da propriedade e da

cidade, buscando o desenvolvimento sustentável desta e o respeito aos direitos

fundamentais de seus habitantes.

3.3 REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE INTERESSE SOCIAL

Foi visando possibilitar e facilitar o processo de regularização fundiária que

adveio a Lei 11.977/2009 que regulamenta a Regularização Fundiária de Interesse

Social, além de tratar do Programa Minha Casa Minha Vida, do Governo Federal.

Esta Lei conceituou a regularização fundiária e instituiu os procedimentos

que devem ser executados para atingir seu objetivo. A Lei, no decurso do ano de

Page 57: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

57

2011, sofreu algumas alterações trazidas pela Lei 12.404 que incluiu, entre outros

itens, a possibilidade de implementar a regularização fundiária em imóveis públicos,

na tentativa de incluir uma parcela maior de famílias beneficiadas, ainda que se

entenda a possibilidade de uso de instrumentos de regularização fundiária

anteriormente previstos.

Resultado de um pacote de fomento econômico, a proposta do programa

federal Minha Casa Minha Vida surgiu no momento em que o país vivenciava

transformações econômicas e políticas que incentivavam a especulação imobiliária,

tornando ainda mais difícil o acesso e regularização de ocupações de população de

baixa renda. Além disso, a lei estabelece que a regularização fundiária devem

integrar as dimensões urbanísticas, ambientais, jurídica e social, constituindo a

obrigatoriedade da elaboração do projeto de regularização fundiária que conste

áreas ou lotes a serem regularizados, edificações a serem relocadas, sistema viário

existente ou projetado, áreas de uso público, medidas de contenção de riscos,

medidas de adequação da infraestrutura básica, medidas de compensação

urbanística e ambiental e medidas que garantam a sustentabilidade da intervenção.

A esse respeito Nelson Saule Junior explica que:

O planejamento e a gestão, os padrões de controle, visando a garantir uma qualidade de vida nos assentamentos humanos, impostos pelas leis e instrumentos urbanísticos, tornam elevado o valor e o custo dos empreendimentos urbanísticos, gerando concentração da renda imobiliária aos proprietários e incorporadores imobiliários. Associado ao processo de concentração da renda imobiliária, o valor da terra/propriedade urbana estabelecido pelo mercado formal exclui a maioria da população de ter acesso a esse mercado, uma vez que não dispõe de renda

79.

Não obstante, há de se considerar que historicamente os assentamentos

irregulares, são resultado do descompasso entre condições sociais e econômicas

vivenciadas pelo País e os padrões urbanísticos estabelecidos em Lei80. O

acumulado jurídico, associado à falta de organização e planejamento das esferas

79

SAULE JUNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da moradia nos assentamentos irregulares, Porto Alegre: Fabris, 2004.p.338-339. 80

FERNANDES, Edésio. Política Nacional de Regularização Fundiária: contexto, proposta e limites. In: Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, n. 56, p. 245, jan./jun., 2004. De acordo com Edésio Fernandes “a informalidade urbana se dá por uma combinação de causas, sendo as mais correntes a carência de opções de moradias adequadas e acessíveis para os grupos mais pobres, devido à ação de mercados especulativos e informais; os sistemas políticos clientelistas; bem como o padrão de planejamento urbano e gestão que se faz no Brasil, um planejamento elitista e tecnocrático, baseado em critérios técnicos ideais, mas que não expressam as realidades socioeconômicas de produção e de acesso à terra urbana”.

Page 58: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

58

públicas competentes, resultou em ocupação do território urbano sem infraestrutura

com a dinâmica de urbanização composta por áreas ocupadas formal e

informalmente. Dessa forma, o que realmente se contempla em termos de

regularização fundiária é um cenário de assentamento humano irregular

caracterizado em favelas, loteamentos clandestinos entre outras ocupações

espontâneas, individuais ou coletivas com precária ou nenhuma condição de

habitabilidade e muitas vezes sem nenhum controle ou respeito ambiental.

Assim sendo, modificar o quadro de irregularidades urbanas é

responsabilidade do Poder Público, uma vez que, o urbanismo é tratado como

função pública do dever de agir. Vale salientar que o dever de agir não implica

somente na busca da solução para a cidade ilegal, mas também para evitar a

repetição das situações que hoje, em virtude das ações passadas, ainda prejudicam

o funcionamento do Estado, e causam mal ao meio ambiente e ao cidadão urbano.

Para tanto, a Constituição Federal Brasileira, em seu artigo 24, inciso I

atribui a União à responsabilidade em estabelecer as normas gerais de direito

urbanístico por meio de lei federal. Com isso, tem-se o Estatuto da Cidade,

conhecido como Lei nº 10.257, de 10.7.2001, para regulamentar os instrumentos de

políticas urbanas a serem aplicados pela união, Estados e municípios.

Elida Séguin81, tratando desse assunto afirma:

O Estatuto da Cidade (EC), instituído pela Lei nº 10.257, de 10.07.2001, disciplinando os artigos 182 e 183 da CF, municiou a comunidade e o Poder Público de mecanismos que lhe permitem desmistificar o caráter absoluto do direito de propriedade, subjugando o interesse particular ao público e dando efetividade à sua função social em prol de uma verdadeira política de urbanismo. Esta lei é produto da Constituição de 1988 que inovou ao destinar um capítulo à política urbana, estabelecendo a necessidade de um Plano Diretor para todas as cidades com mais de vinte mil habitantes (art.182, §1º), a introdução de usucapião especial urbana (art.183), como forma de regularização fundiária urbana, a possibilidade de desapropriação (sanção) quando o proprietário descumpre as exigências de aproveitamento e utilização do solo não edificado, de parcelamento ou edificação.

Esse novo instrumento jurídico-urbanístico colaborou para a consolidação da

função social e ambiental da propriedade, abrindo espaço para o conceito de Direito

Urbanístico, ao regulamentar e criar novos instrumentos com vistas à organização

social justa e includente nos municípios. Além disso, a referida Lei passa a incentivar

o debate dos processos políticos-jurídicos da gestão democrática das cidades,

81

SÉGUIN, Elida. Estatuto da Cidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 4.

Page 59: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

59

representando um marco do direito social à moradia ao propor o uso dos

instrumentos jurídicos de usucapião especial urbana, concessão de direito real de

uso e concessão de uso especial para fins de moradia, como alternativa para os

assentamentos informais em áreas municipais82. Com isso, o Município, amparado

no artigo 182 da Constituição Federal e no princípio da preponderância de interesse,

assume o papel de ente federado principal para a execução da política urbana, e

tem como instrumento básico para isso, os critérios estabelecidos no Plano Diretor.

Mesmo com a promulgação do Estatuto da Cidade, alguns conceitos não

assumiram uma clara definição, como é o caso da “regularização” inserida no

contexto de “regularização fundiária” que em alguns municípios recebe o status de

implementação das obras de infraestrutura urbana e prestação de serviços públicos,

e em outros caracteriza as políticas de legalização fundiária das áreas e dos lotes

ocupados informalmente83.Assim, deve-se considerar que o uso dos instrumentos

jurídico-urbanísticos na regularização fundiária de interesse social do município,

depende da definição que o Plano Diretor dá para as estratégias de planejamento e

ação, pois, a aprovação de leis urbanísticas coerentes com a função sócioambiental

do município, amplia a possibilidade de regularização fundiária sustentável da

cidade, e atende ao anseio básico e legalmente assegurado de moradia digna ao

cidadão.

Na prática a política urbana municipal tem no plano diretor um instrumento

para a condução dos planos de urbanização, e esse por sua vez, deve promover a

produção de habitação social reconhecendo a cidade ilegal e inserindo-a no

contexto da legalidade urbana. Dessa forma, a adoção de políticas urbanas

habitacionais por meio de garantias e instrumentos legais voltados para a

regularização fundiária das favelas e melhores condições e ofertas habitacionais

para a população moradora de áreas de risco, “resultam na eficácia jurídica do

direito a moradia”84.

De modo geral, a regularização de assentamentos urbanos promove a

inclusão social e o desenvolvimento sustentável, pois aproveita o espaço urbano

82

OSÓRIO, Letícia Marques (Org.). Estatuto da Cidade e reforma urbana: Novas Perspectivas para as Cidades Brasileiras. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. 83

ALFONSIN, Betânia de Moraes. Para uma análise compreensiva das experiências de regularização fundiária no Brasil. In: Direito à moradia: instrumentos e experiências de regularização fundiária nas cidades brasileiras. Rio de Janeiro: Fase/IIPPUR, 1997. 84

SAULE JUNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004. p. 175.

Page 60: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

60

construído e incentiva a comunidade para ações coletivas e organizadas de forma

que as conquistas e os benefícios sejam revertidos para o próprio grupo social.

A Regularização Fundiária de Interesse Social pode ser promovida por

beneficiários individuais ou coletivos, e/ou associações legalmente constituídas e

que tenham por finalidade atividades nas áreas de desenvolvimento urbano ou

regularização fundiária. Também o podem as associações de moradores da

comunidade ou de cooperativas habitacionais de personalidade jurídica, bem como,

associações civis sem fins lucrativos que tenham como atribuição estatutária prestar

serviços e promover medidas administrativas, jurídicas e judiciais para fins de

regularização fundiária.

As exigências para aprovação dos projetos de regularização em

assentamentos irregulares contidos na Lei n. 11.977/2009 permitem ao Poder

Público otimizar as ações em torno da demanda habitacional, uma vez que

considera a diversidade de situações urbanísticas, ambientais, socioeconômica de

produção das moradias e capacidades de gestão de cada município.

Além disso, a Lei supracitada cria dois novos instrumentos de auxilio e

execução da política urbana nacional: a demarcação urbanística para fins de

regularização fundiária e a legitimação da posse, estabelecendo que as famílias de

baixa renda e que habitam em assentamentos irregulares, tanto de áreas urbanas

como rurais, são prioridades para o programa de investimento habitacional.

Na demarcação urbanística, o poder público por meio de procedimento

administrativo demarca os imóveis de domínio público ou privado de modo a definir

seus limites, área, localização e confrontantes a fim de identificar e qualificar a

natureza de seus ocupantes, bem como o tempo das respectivas posses de

ocupações consolidadas em que não haja conflito com os proprietários da área,

podendo abranger parte ou totalidade de imóveis privados de mais de um

proprietário. Já o título de reconhecimento de posse de imóvel, denominado

legitimação da posse, se dá por meio de ato do poder público que confere o título de

posse pela identificação do ocupante e do tempo e natureza da posse.

Page 61: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

61

4 OS NOVOS INSTRUMENTOS DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE

INTERESSE SOCIAL

4.1 DEMARCAÇÃO URBANÍSTICA

A propriedade de um imóvel objeto de regularização fundiária de interesse

social pode ser obtida através da implementação de instrumentos trazidos pela Lei

11.977/2009, entre os quais se encontra a demarcação urbanística. Esta é, no

entanto, apenas uma etapa, que precede a legitimação da posse e a usucapião

preceituada pelo artigo 183 da Constituição Federal.

Demarcar é definir limites e, especialmente no direito urbanístico, demarcar

é identificar, em áreas passíveis de regularização fundiária de interesse social, além

dos limites físicos tais como a gleba ou a área, os confrontantes e o tempo de posse

dos moradores da área demarcada.

A demarcação urbanística tem por objetivo identificar todos os elementos

necessários à regularização fundiária de dada área, indicando, inclusive, a situação

de domínio vivenciada dentro da desordenada estrutura fundiária e cartorária das

áreas ocupadas, através da elaboração de mapas e memoriais.

É através da demarcação urbanística que os legitimados têm conhecimento

das ações necessárias para a promoção da regularização fundiária, inclusive com as

informações acerca das condições de habitabilidade das moradias e condições dos

equipamentos públicos e serviços locais.

Outra importante função da demarcação urbanística é viabilizar a

regularização da situação dominial dos imóveis objetos de intervenção em razão de

que o emaranhado que demonstra a situação fundiária das áreas ocupadas é, em

grande parte das vezes, um dos maiores desafios à promoção da regularização

fundiária.

Evidente, portanto, que a demarcação urbanística, por si só, constitui-se em

uma sequência de atos praticados com o intuito de elaborar um diagnóstico da área

na qual o poder público pretende fazer intervenções. É, portanto, um instrumento

necessário à implantação da regularização fundiária de interesse social, sem o qual,

por força de lei, esta não seria possível.

Page 62: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

62

De acordo com o § 1º do art. 4785 da Lei 11.977/2009, introduzido pela Lei

12.424/2011, a demarcação urbanística, assim como a legitimação da posse, não

são instrumentos capazes de alterar o domínio do imóvel objeto de regularização

fundiária, o que só ocorrerá após a conversão da legitimação da posse em

propriedade, quando cumpridos todos os trâmites legais necessários.

Na definição do inciso III do art. 47 da Lei 11.977/200986 a demarcação

urbanística é um procedimento administrativo no qual o Poder Público, no âmbito da

regularização fundiária de interesse social, demarca imóvel de domínio público ou

privado, definindo seus limites, área, localização e confrontantes, identificando seus

ocupantes e qualificando a natureza e o tempo das respectivas posses.

Embora a Lei 11.977/2009 determine que a regularização fundiária de

interesse social pode ser promovida também por particular ou por entidade com fins

de desenvolvimento urbano, a demarcação urbanística e a expedição do auto de

demarcação são elaborados exclusivamente pelo Poder Público.

A demarcação urbanística é um elemento muito importante na regularização

fundiária de interesse social, além de imprescindível, por trazer maior eficiência

nesse processo. A própria lei 11.977/2009, ao determinar que o Projeto de

Regularização Fundiária de Interesse Social defina diversos elementos físicos da

ocupação, acaba por ampliar a utilização da demarcação urbanística.

Com a definição da área de intervenção, da situação do imóvel e das

condições de ocupação o Poder Público deve encaminhar o auto de demarcação

para registro, que só ocorrerá após a notificação dos proprietários e confrontantes.

Sem a manifestação destes o auto de demarcação será averbado no registro de

imóveis. Se houver manifestação o Poder Público será acionado para que altere o

auto de demarcação ou adote outra medida que atenda também aos interesses do

proprietário. Não havendo acordo, a demarcação será encerrada em relação à área

impugnada.

As afirmações acima descritas demonstram que buscou o legislador garantir

o cumprimento do princípio constitucional do devido processo legal quando

85

Art. 47. [...] §1o A demarcação urbanística e a legitimação de posse de que tratam os incisos III e IV

deste artigo não implicam a alteração de domínio dos bens imóveis sobre os quais incidirem, o que somente se processará com a conversão da legitimação de posse em propriedade, nos termos do art. 60 desta Lei. 86

Art.47 [...] III – demarcação urbanística: procedimento administrativo pelo qual o poder público, no âmbito da regularização fundiária de interesse social, demarca imóvel de domínio público ou privado, definindo seus limites, área, localização e confrontantes, com a finalidade de identificar seus ocupantes e qualificar a natureza e o tempo das respectivas posses.

Page 63: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

63

possibilita ao proprietário manifestar-se antes mesmo da averbação do auto de

demarcação urbanística no registro de imóveis e, principalmente, quando determina

que na falta de acordo entre proprietário e Poder Público a área deverá ser retirada

do auto de demarcação. O proprietário da área ocupada, embora não detenha sua

posse, jamais será privado do imóvel sem ter conhecimento dos atos administrativos

incidentes sobre ele. Será o proprietário notificado pessoalmente ou através dos

Correios, com aviso de recebimento, pelo oficial do registro de imóveis e ainda pelo

Poder Público através de edital, para manifestar-se sobre a demarcação urbanística.

O princípio do devido processo legal, em poucas palavras, pode ser

entendido como o princípio que assegura a todos os cidadãos o direito a um

processo com as etapas previstas em lei e todas as garantias constitucionais.

O devido processo legal está ligado ao controle dos atos emanados pelo

legislativo, no entanto, encontra-se também vinculado com a razoabilidade dos atos

normativos, judiciários e administrativos. Para Calmon de Passos, o devido processo

legal “carece de significação, se o Estado não reconhecer ao indivíduo direitos que a

ele mesmo, Estado, sejam oponíveis, funcionando como limites ao seu arbítrio de

detentor dos instrumentos de coerção social87”.

Nesse contexto é que se apresenta abaixo a descrição das exigências e

procedimentos legais da demarcação urbanística.

4.1.1 Exigências legais e procedimentos da Demarcação Urbanística

Extrai-se da lei 11.977/2009 que a demarcação urbanística é instrumento

auxiliar do processo de regularização fundiária de interesse social operacionalizado

através do Auto de Demarcação Urbanística, onde deve constar o levantamento da

área ocupada, através de mapas e memoriais definindo seus limites, localização,

identificação dos ocupantes e seus confrontantes, o tempo da ocupação e se há

titulação sobre aquela posse88.

87

PASSOS, José Joaquim Calmon. Advocacia: O direito de recorrer à Justiça. In: Revista de Processo, São Paulo, v. 38, n. 5, p. 38, 1978. 88

Art. 56. [...] §1º O auto de demarcação urbanística deverá ser instruído com: I - planta e memorial descritivo da área a ser regularizada, nos quais constem suas medidas perimetrais, área total, confrontantes, coordenadas preferencialmente georreferenciadas dos vértices definidores de seus limites, número das matrículas ou transcrições atingidas, indicação dos proprietários identificados e ocorrência de situações mencionadas no inciso I do § 5

o;

Page 64: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

64

O auto de demarcação urbanística deverá ser lavrado pelo Poder Público e,

para surtir os efeitos legais, necessita passar por 2 (duas) fases, a instrução e a

averbação.

A fase da instrução, como o próprio nome diz, compreende a execução dos

procedimentos e a elaboração dos documentos necessários à identificação da área

a ser regularizada.

A elaboração da planta e do memorial descritivo da área a ser regularizada é

um desses documentos. Neles deverá constar a área total da ocupação a ser

regularizada, suas medidas perimetrais, seus confrontantes, suas coordenadas, o

número de matrículas ou transcrições atingidas, a indicação dos proprietários, se for

possível, ou mesmo a ausência dessa identificação. É fato, portanto, que nesse

primeiro momento é realizado um levantamento de todos os elementos constantes

dentro do perímetro determinado pela municipalidade que serão a base de todo o

trabalho de regularização fundiária a ser desenvolvido.

É de vital importância que as informações sejam precisas ou, ao menos,

aproximem-se o quanto mais da realidade uma vez que falhas podem ensejar em

adiamento do processo ou mesmo um recomeço com os dados coerentes.

A planta de sobreposição do imóvel demarcado com a situação da área

constante no registro de imóveis tem por finalidade indicar quem são os proprietários

dos imóveis constantes no auto de demarcação. Nesse sentido, sempre que

possível, a sobreposição indicará se os imóveis são de propriedade pública ou

particular e mesmo se a propriedade é desconhecida, o que refletirá a realidade

sobre a qual será elaborado o projeto de regularização fundiária de interesse social.

A certidão de matrícula ou transcrição da área é mais uma informação

complementar à anterior e tão necessária quanto, uma vez que acaba por fechar o

mosaico da sobreposição da situação legal com a situação real.

É, portanto, o auto de demarcação urbanística um diagnóstico analítico da

área objeto de intervenção do poder público, onde este poderá verificar o nome dos

moradores e sua situação socioeconômica, a situação jurídica da posse, tempo da

posse, a quem pertence o imóvel ocupado, de qual planta de loteamento faz parte e

II- planta de sobreposição do imóvel demarcado com a situação da área constante do registro de imóveis e, quando possível, com a identificação das situações mencionadas no inciso I do § 5

o; e

III - certidão da matrícula ou transcrição da área a ser regularizada, emitida pelo registro de imóveis, ou, diante de sua inexistência, das circunscrições imobiliárias anteriormente competentes.

Page 65: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

65

qual a matrícula sobre ele incidente. É um retrato perfeito, um raio-x da situação a

ser enfrentada.

Cumpre ressaltar que o Poder Público, antes de encaminhar o auto de

demarcação urbanística ao registro de imóveis, deve notificar os órgãos

responsáveis pela administração patrimonial dos demais entes federados para que

estes informem se detêm a titularidade da área. Pertencendo a área aos órgãos

notificados estes poderão anuir ou se opor ao procedimento. Sendo a área limítrofe

o imóvel público, o órgão patrimonial responsável poderá se manifestar sobre os

limites definidos no auto de demarcação urbanística. Inexistindo registro anterior ou

sendo impossível identificar os proprietários o órgão patrimonial poderá se

manifestar sobre eventual titularidade da área89. Na ausência de manifestação o

poder público dará andamento aos procedimentos de demarcação urbanística90.

Em relação à titularidade91 e extensão das áreas constantes no auto de

demarcação urbanística este poderá abranger parte ou totalidade de um ou mais

imóveis de domínio privado com ou sem identificação dos proprietários, ou ainda de

proprietários distintos, e mesmo áreas de domínio público.

A segunda fase descreve todo o percurso que o auto de demarcação

urbanística tem que fazer até ser registrado, bem como todo o procedimento

necessário para tal.

O primeiro passo dessa fase é o encaminhamento pelo Poder Público do

Auto de Demarcação Urbanística ao cartório de registro de imóveis competente.

89

Art. 56. [...] § 2

o O poder público deverá notificar os órgãos responsáveis pela administração patrimonial dos

demais entes federados, previamente ao encaminhamento do auto de demarcação urbanística ao registro de imóveis, para que se manifestem no prazo de 30 (trinta) dias quanto: I - à anuência ou oposição ao procedimento, na hipótese de a área a ser demarcada abranger imóvel público; II - aos limites definidos no auto de demarcação urbanística, na hipótese de a área a ser demarcada confrontar com imóvel público; e III - à eventual titularidade pública da área, na hipótese de inexistência de registro anterior ou de impossibilidade de identificação dos proprietários em razão de imprecisão dos registros existentes. 90

Art. 56. [...] § 3

o Na ausência de manifestação no prazo previsto no § 2

o, o poder público dará continuidade à

demarcação urbanística. 91

Art. 56. [...] §5º. O auto de demarcação urbanística poderá abranger parte ou a totalidade de um ou mais imóveis inseridos em uma ou mais das seguintes situações: I) domínio privado com proprietários não identificados, em razão de descrições imprecisas dos registros anteriores; II) domínio privado objeto do devido registro no registro de imóveis competente, ainda que de proprietários distintos; ou III) domínio público.

Page 66: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

66

Recebido o auto o oficial deverá realizar todas as buscas necessárias à identificação

dos proprietários das áreas constantes nos autos bem como suas matrículas ou

transcrições92.

Realizadas as buscas, o oficial do registro de imóveis deverá notificar os

proprietários e os confrontantes da área demarcada, pessoalmente ou pelo correio

com aviso de recebimento, ou ainda, por solicitação ao oficial de registro de títulos

de documentos da comarca onde se localiza o imóvel ou o domicílio de quem deva

recebê-la. Os notificados deverão apresentar, no prazo de 15 (quinze) dias,

impugnação à averbação da demarcação urbanística93.

O Poder Público também deverá notificar eventuais interessados, bem como

os proprietários e confrontantes não localizados nos endereços constantes no

registro de imóveis ou nos fornecidos pelo poder público para notificação94.

A Lei 11.977/2009 determinou o conteúdo e os requisitos da notificação por

edital95. Deve constar do edital o resumo do auto de demarcação urbanística e o

desenho da área demarcada, simples o suficiente para se identificar a área. A

publicação do edital deve dar-se no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, sendo

publicado uma vez na Imprensa Oficial e uma vez num jornal de grande circulação.

E, por fim, deverá constar o prazo de 15 (quinze) dias para impugnação à averbação

da demarcação urbanística.

Decorridos os 15 (quinze) dias sem impugnação dos notificados, o oficial do

cartório de registro de imóveis deverá proceder a averbação da demarcação

92

Art. 57. Encaminhado o auto de demarcação urbanística ao registro de imóveis, o oficial deverá proceder às buscas para identificação do proprietário da área a ser regularizada e de matrículas ou transcrições que a tenham por objeto. 93

Art. 57. [...] § 1

o Realizadas as buscas, o oficial do registro de imóveis deverá notificar o proprietário e os

confrontantes da área demarcada, pessoalmente ou pelo correio, com aviso de recebimento, ou, ainda, por solicitação ao oficial de registro de títulos e documentos da comarca da situação do imóvel ou do domicílio de quem deva recebê-la, para, querendo, apresentarem impugnação à averbação da demarcação urbanística, no prazo de 15 (quinze) dias. 94

Art. 57 [...] § 2

o O poder público responsável pela regularização deverá notificar, por edital, eventuais

interessados, bem como o proprietário e os confrontantes da área demarcada, se estes não forem localizados nos endereços constantes do registro de imóveis ou naqueles fornecidos pelo poder público para notificação na forma estabelecida no § 1

o.

95 Art. 57 [...]

§ 3o São requisitos para a notificação por edital:

I – resumo do auto de demarcação urbanística, com a descrição que permita a identificação da área a ser demarcada e seu desenho simplificado; II – publicação do edital, no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, uma vez pela imprensa oficial e uma vez em jornal de grande circulação local; e III – determinação do prazo de 15 (quinze) dias para apresentação de impugnação à averbação da demarcação urbanística.

Page 67: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

67

urbanística nas matrículas constantes das plantas e memoriais descritivos que

instruem o auto de demarcação96.

Se houver impugnação o oficial do registro de imóveis notificará o Poder

Público para se manifestar no prazo de 60 (sessenta) dias97. Se a impugnação se

der em relação à parte da área, os procedimentos de demarcação urbanística

seguirão em relação às demais áreas98.

Pode o Poder Público propor alteração do auto de demarcação urbanística

ou mesmo tomar outra medida que afaste a oposição do proprietário ou dos

confrontantes99.

Por se tratar de área de interesse social, o poder público pode utilizar-se de

outros instrumentos de regularização fundiária para não deixar os moradores da

parcela de área impugnada sem atendimento. Parece claro que quando o legislador

preceitua a possibilidade de alteração do auto de demarcação urbanística já está

determinando que o Poder Público deva retirar aquela parcela da área impugnada

do auto de demarcação urbanística e seguir com os procedimentos para o restante

da área. O processo de regularização fundiária é bastante complexo e as áreas que

serão objeto de demarcação urbanística podem constar de autos distintos, inclusive

por se tratarem de áreas com situações jurídicas diversas, o que aceleraria os

procedimentos de regularização fundiária.

Com o universo de instrumentos administrativos e jurídicos de regularização

fundiária trazidos pelo Estatuto da Cidade, pela própria Constituição, bem como pela

Lei 11.977/2009, não há que se falar que as áreas impugnadas não serão objeto de

regularização fundiária. O fato de não poder ser aplicada a demarcação urbanística

em determinados imóveis não os excluem da obrigação de cumprirem sua função

social. Não há, portanto, justificativa para o Poder Público deixar de garantir o direito

à moradia da parte da população ocupante da área impugnada, não somente por se

96

Art. 57 [...] § 4

o Decorrido o prazo sem impugnação, a demarcação urbanística será averbada nas matrículas

alcançadas pela planta e memorial indicados no inciso I do § 1o do art. 56.

97Art. 57 [...]

§ 6o Havendo impugnação, o oficial do registro de imóveis deverá notificar o poder público para que

se manifeste no prazo de 60 (sessenta) dias. 98

Art. 57 [...] § 8

o Havendo impugnação apenas em relação à parcela da área objeto do auto de demarcação

urbanística, o procedimento seguirá em relação à parcela não impugnada. 99

Art. 57 [...] § 7

o O poder público poderá propor a alteração do auto de demarcação urbanística ou adotar

qualquer outra medida que possa afastar a oposição do proprietário ou dos confrontantes à regularização da área ocupada.

Page 68: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

68

tratar de direito fundamental, o que por si só já seria justificativa mais que suficiente,

mas também para evitar conflitos sociais nas áreas de intervenção e cumprir com

sua política pública habitacional.

Com a impugnação100 da demarcação urbanística o oficial tem o dever de

promover tentativa de acordo entre o impugnante e o poder público, uma vez que o

objetivo de todos esses procedimentos é a regularização fundiária de interesse

social, portanto, de população de baixa renda. Inexistindo acordo entre as partes, a

demarcação urbanística será encerrada em relação à área impugnada101.

Uma vez averbado o auto de demarcação urbanística deverá o Poder

Público elaborar o Projeto de Regularização Fundiária102, proceder ao parcelamento

dele decorrente e, na sequência, conceder os títulos de legitimação da posse aos

moradores.

4.1.2 A Relação entre a ZEIS e a Demarcação Urbanística

O Estatuto da Cidade procurou flexibilizar as normas urbanísticas a fim de

possibilitar a inclusão da cidade ilegal na cidade legal, uma vez que a aplicação das

normas urbanísticas sem levar em consideração as peculiaridades das ocupações

irregulares aumentaria ainda mais a exclusão dessa parte da população.

Assim, o Estatuto da Cidade, no inciso XIV do art. 2º, estabeleceu, dentre as

diretrizes de Política Urbana, normas especiais de urbanização, uso e ocupação de

solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as

normas ambientais, para fins de regularização fundiária de áreas ocupadas por

população da baixa renda.

100

Art. 57. [...] § 9

o O oficial de registro de imóveis deverá promover tentativa de acordo entre o impugnante e o

poder público. 101

Art. 57. [...] § 10. Não havendo acordo, a demarcação urbanística será encerrada em relação à área impugnada. 102

Art. 51. O projeto de regularização fundiária deverá definir, no mínimo, os seguintes elementos: I – as áreas ou lotes a serem regularizados e, se houver necessidade, as edificações que serão relocadas; II – as vias de circulação existentes ou projetadas e, se possível, as outras áreas destinadas a uso público; III – as medidas necessárias para a promoção da sustentabilidade urbanística, social e ambiental da área ocupada, incluindo as compensações urbanísticas e ambientais previstas em lei; IV - as condições para promover a segurança da população em situações de risco, considerado o disposto no parágrafo único do art. 3º da Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979; e V – as medidas previstas para adequação da infraestrutura básica.

Page 69: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

69

Ainda, nesse mesmo sentido, o Estatuto prevê a redução de custos e o

aumento da disponibilidade de lotes e unidades habitacionais, através da

simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas

edilícias, conforme se verifica no inciso XV do artigo 2º.

Essas diretrizes objetivam, portanto, facilitar o processo de regularização

fundiária garantindo o acesso ao direito à moradia em toda sua amplitude, bem

como evitar o aumento do quadro de exclusão sócio habitacional.

A efetividade dessas diretrizes veio através da alínea “f” do artigo 4º do

Estatuto da Cidade que traz a possibilidade da instituição de Zonas Especiais de

Interesse Social – ZEIS.

Trata-se a ZEIS da demarcação de uma área que possibilita ao Poder Público

aplicar regras específicas que facilitem o processo de regularização fundiária, em

especial no tocante as normas de uso e ocupação de solo, que realizem a

contenção de novas ocupações e a especulação imobiliária.

Conforme define Nelson SAULE JÚNIOR103:

A ZEIS é uma zona urbana específica, que pode conter áreas

públicas ou particulares ocupadas por população de baixa

renda, onde há interesse público de promover a urbanização

ou a regularização urbanística e jurídica, sendo utilizadas para

habitação de interesse social, para salvaguardar o direito à

moradia.

A grande função da ZEIS é, portanto, permitir a regularização fundiária sob o

aspecto urbanístico, possibilitando sua aplicação em assentamentos precários tendo

em vista a simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e

das normas edilícias.

O objetivo da ZEIS, segundo Betânia Alfonsin104 é:

“(...) permitir a flexibilização do regime urbanístico de áreas

ocupadas irregularmente para fins de moradia, a fim de facilitar o

processo de regularização jurídica da mesma. A regularização

urbanística representa, muitas vezes, um poderoso obstáculo

103

SAULE JÚNIOR, Nelson. A proteção juríidica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004, p. 363. 104

ALFONSIN, Betânia. Dos instrumentos da política urbana.In: MATTOS, Liana Portilho (Org.)

Estatuto da Cidade comentado. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 122

Page 70: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

70

à regularização fundiária e o instrumento das ZEIS, utilizado

pioneiramente pelas cidades de Recife e Belo Horizonte, ainda

na década de 80, representam um instrumento ágil e flexível

para reconhecer por um lado o “direito à igualdade” da

população moradora (direito à moradia) e, por outro, o “ direito

à diferença” (direito de utilizar padrões que, ainda que

distintos dos esclarecidos pela lei, garantem dignidade e

habitabilidade aos assentamentos.”

Quanto à demarcação urbanística, no tocante à necessidade ou não de ser a

área ocupada declarada como ZEIS105, verifica-se que a Lei 11.977/2009 não a

entende como pressuposto, uma vez que o inciso VI do artigo 47 especifica que a

regularização fundiária de interesse social poderá ser realizada quando estiver a

área ocupada de forma mansa e pacífica ou estiver o imóvel situado em ZEIS ou

ainda situada em áreas públicas declaradas de interesse para promoção de

regularização fundiária.

De acordo com a lei, portanto, não é a declaração de ZEIS106 da área objeto

de intervenção requisito à regularização fundiária de interesse social e assim de

implementação de demarcação urbanística.

105

MOREIRA, Tomás. A política habitacional e fundiária no Brasil. Seminário: Terra urbana

para políticas sociais: aquisição e desapropriação. São Paulo: LabHab e Lincoln Institute of

Land Policy, 2002, p. 10. Para Tomás Moreira a ZEIS permite “dar aos territórios de moradia da

baixa renda um tratamento e um Regime urbanístico especial, dispensando-os de observar

as regras rígidas do Código de obras ou o Zoneamento de usos do Plano Diretor é

reconhecer o direito à diferença. Aqui, esse direito à diferença se baseia no imperativo ético de que o

Poder Público tem de facilitar o exercício, em seu território, de um direito humano fundamental: o

direito à moradia. A área gravada como ZEIS se torna uma espécie de zona liberada de regras

formais de uso e ocupação do solo, a não ser esta macro-diretriz que lhe grava como destinada à

moradia de interesse social.”

106 V – Zona Especial de Interesse Social - ZEIS: parcela de área urbana instituída pelo Plano Diretor

ou definida por outra lei municipal, destinada predominantemente à moradia de população de baixa

renda e sujeita a regras específicas de parcelamento, uso e ocupação do solo;

Page 71: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

71

Por certo que as ocupações irregulares, em sua grande maioria, não atendem

as normas urbanísticas, até porque estas visam uma condição ideal de urbanização

que não é comum ser encontrada em assentamentos de população de baixa renda.

Exigir que os moradores dos assentamentos informais observem a legislação

urbanística, tais como largura de via pública, frente mínima de lotes, entre outros,

pode soar como impossibilitar a esses moradores a garantia do direito à moradia e,

consequentemente, renegar a regularização fundiária.

Resta claro, portanto, que independente de ser a ZEIS pressuposto para a

aplicação da regularização fundiária de interesse social e, portanto, da demarcação

urbanística, ela viabiliza o processo como um todo quando possibilita que os

padrões urbanísticos da área de intervenção sejam mantidos, democratizando o

acesso à habitação formal.

4.2 LEGITIMAÇÃO DA POSSE

4.2.1 Análise histórica do instituto da Posse

Para melhor entendimento do instrumento legitimação da posse faz-se

necessário uma análise do fato posse, sua origem, evolução bem como suas teorias.

Beviláqua, em seu livro Direito das Coisas, inicia o assunto Posse com a

seguinte afirmação:

Não há, certamente, assunto em todo o direito privado, que tenha, mais irresistivelmente, cativado a imaginação dos juristas do que a posse; mas, também, dificilmente se encontrará outro que mais tenazmente haja resistido à penetração da análise, às elucidações da doutrina

107.

Ainda que não seja nada fácil traçar o perfil histórico do instituto jurídico

posse, essa tarefa é imprescindível para entendimento do instrumento legitimação

da posse, tema dessa dissertação.

Várias são as questões que há tempos permeiam as discussões jurídicas

acerca da posse desde sua natureza até sua relação com a propriedade.

Embora seja consenso entre os doutrinadores a dificuldade, ou mesmo a

impossibilidade, em identificar a origem da posse como o instituto que hoje

107

BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. 5.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1956. p.19.

Page 72: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

72

conhecemos, é fato que a sistematização do direito, bem como da posse, se deu

com o Império Romano.

Desde então, duas outras correntes doutrinárias foram sobremaneira

importantes na definição e conceituação da posse, a do Direito Germânico e a do

Canônico, sendo necessário o estudo de todas elas.

4.2.1.1 A Posse no Direito Romano

Encontrar textos originais confiáveis é uma das dificuldades encontradas por

historiadores ou estudiosos do Direito Romano, especialmente no que tange ao

tratamento da posse.

No entanto, buscando sistematizar o estudo, adotaremos a classificação

relatada por Moreira Alves108 que subdivide a história romana em Época Antiga e

Republicana, conhecida por Pré-Clássica, Época Imperial Clássica e Época

Romano-Helênica e Justinianeia.

Com o uso das interpolações, alterações dos textos realizadas por membros

de uma comissão designada para reunir e codificar o Direito Romano, e das

glossemas, comentários às leis, muito se dificultou a identificação do instituto posse,

porém, através delas pode-se constatar a inexistência de uma definição única do

instituto posse.

Sinteticamente, no primeiro período a posse é tida como um poder de fato

sobre determinada coisa relacionada ao concedente que tem o poder de direito,

sendo, além de ser exercida com intenção de ter a coisa para si e ser revogável a

qualquer momento, o fato jamais se transforma em direito. No segundo momento, a

posse é irrevogável, ilimitada no tempo e passível de aquisição do poder de direito,

do domínio. Por fim, no terceiro período a posse passa a ser o exercício do direito de

propriedade, posse jurídica109.

O período Pré-Clássico

108

ALVES, José Carlos Moreira. Posse: Evolução Histórica. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 10. 109

ALVES, José Carlos Moreira. Posse: Evolução Histórica. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 10.

Page 73: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

73

É nesse período que se nota a controvérsia existente quanto ao sentido das

palavras usus e possessio. Conforme Moreira Alves110, ao distinguir os dois termos,

usus é o fato de alguém se servir de uma coisa conforme sua destinação e

possessio não implicava, necessariamente, no uso da coisa.

Ainda, no estudo do Direito Romano, verifica-se que possessio é um instituto

de Direito Pretoriano que se referia a coisas corpóreas e que não configurava

aquisição de direitos, enquanto usus é um instituto de direito civil, referia-se a coisas

e pessoas indistintamente e que, ainda que não tivesse proteção jurídica, poderia

levar à aquisição de direitos.

O crescimento populacional de Roma, assim como o crescimento territorial e

econômico fez como que esta passasse de simples vila ao maior império do Mundo

antigo, o que exigiu a reformulação de seu sistema de posses.

A evolução do conceito de posse no período pré-clássico é uma unânime

entre os pesquisadores do Direito Romano baseados no fato de que desde então

havia distinção entre a senhoria de fato e a de direito, embora não se conheça seus

critérios.

Nesse momento a propriedade é tida como um direito salvaguardado por

ações reais e a posse e a detenção encontram-se no mundo dos fatos.

Tratando-se ainda da distinção tem-se que a detenção, conhecida por

possessio naturalis, é tão somente um fato material sem proteção, categoria ou

consequência jurídica. Ainda, há a posse de boa-fé capaz de levar à aquisição de

domínio denominada posessio civilis e a possessio ad intedicta ou possessio que se

caracteriza pela inclusão de um elemento subjetivo, tido como animus possidendi¸ à

detenção, sendo esta reconhecido no âmbito do Direito Pretoriano.

O Período Pós-Clássico

O Período Pós-Clássico é marcado pela confusa distinção entre posse e

propriedade que se deu, não somente pela terminologia, como também pela

existência de divergência entre o direito oficial e o efetivamente aplicado.

A partir de Justiniano, embora posse e propriedade recuperem seus

paralelos, aquela sofre significativas modificações com a aquisição do elemento

110

ALVES, José Carlos Moreira. Posse: Evolução Histórica. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 9.

Page 74: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

74

conceitual animus, substituindo-se, inclusive, a tríade possessio civilis – possessio

ad interdicta – possessio naturalis pelo conjunto possessio civilis – possessio

naturalis.

É nesse período também que a vontade de possuir a coisa para si, animus

possiendi, passa à intenção de ser proprietário, animus domini, além de que não são

mais sujeitas à posse as coisas incorpóreas ou os direitos, restringindo-se a posse

às coisas corpóreas.

O Período Justinianeu contribuiu para o entendimento atual da posse com o

surgimento de duas espécies para esse gênero, a posse de outro direito - que não o

de propriedade -, conhecido por possessio iuris e a posse do direito de propriedade,

a possessio rei.

Ainda, é no Período Pós-Clássico que a posse deixa de ser uma situação de

fato e passa ao mundo do direito, ao lado do ius domini.

Modalidades da posse

É no Direito Romano que se tem as primeiras noções de posse de boa-fé e

de má-fé e de posse justa ou injusta.

Nesse contexto, a posse de boa-fé é passível de ser tutelada por interditos

e, desde que tenha todos os requisitos necessários, é considerada verdadeiro

direito, protegida até mesmo do proprietário, ao contrário da posse de má-fé que

apenas pode valer-se dos interditos.

A definição da posse justa e injusta encontra respaldo na existência ou não

de violência, clandestinidade e precariedade, tendo a posse justa aptidão para

adquirir a propriedade, ao contrário da posse injusta.

Da proteção possessória

São duas as correntes que tratam da origem da proteção possessória no

Direito Romano. A majoritária, defendida por Savigny, prega que a origem da

proteção possessória deu-se com a necessidade de tutelar os que ocupavam ager

publicus e que não podiam defendê-los, sendo uma criação pretoriana a concessão

de interditos a esses casos. A outra corrente, seguida por Ihering, afirma que

Page 75: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

75

referida proteção advém das ações possessórias, onde o pretor destinava a posse

provisória a uma das partes.

Portanto, concordam as correntes que a origem da proteção possessória

deu-se com o pretor, no Período Clássico, que para tanto se valeu dos interditos.

Estes, no Período Pós-Clássico, foram assimilados pelas ações comuns.

Havia, no Período Clássico, dois tipos de interditos, um destinado à

conservação da posse e outro à sua recuperação. O interdito destinado à proteção

da posse subdividia-se em duas categorias, o uti possidetis, que protegia a posse

justa e atual de coisas imóveis, e o utrubi, que era aplicado a coisas móveis, dando

preferência a quem mais tempo ficasse na posse da coisa em um ano. Por sua vez,

o interdito utilizado para recuperar a posse apresentava três categorias, o unde vi,

reintegração na posse de imóveis retirados sob violência, o precário, restituição da

coisa a quem lhe entregou precariamente e clandestina possessione, recuperação

de imóvel ocupado clandestinamente.

4.2.1.2 A Gewere

Embora inegável a influência do Direito Romano na cultura jurídica da Idade

Média, em sua chegada à Alemanha encontrou um instituto antigo, conhecido por

Gewere, que foi equiparado ao seu instituto posse.

Diversas foram as dificuldades, entretanto, para se conceituar a Gewere, a

começar por sua tradução que em latim significava investidura. O termo,

inicialmente, referia-se ao ato de transferência de um imóvel por alguém que declara

sua renuncia. Em momento seguinte passou a significar a relação entre a pessoa e

a coisa, móvel ou imóvel, adquirida de forma originária ou derivada. Há ainda o

entendimento de que Gewere é a própria coisa.

Diversas foram as opiniões acerca do conceito de Gewere, alguns

doutrinadores a viam como a possessio romana, outros se baseavam em sua

vertente econômica, outros a tinham como uma relação jurídica protegida por uma

ação real e, por fim, ainda tinha os que achavam que a Gewere trazia um lado

místico.

A opinião mais aceita, no entanto, foi a de Huber que entendeu a Gewere

como forma sob a qual o direito real é defendido, conquistado e transferido; por isso,

não há direito real que não seja representável por meio de uma Gewere, mas, ao

Page 76: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

76

contrário, todo direito real é reconhecido no comércio jurídico sob a figura de uma

Gewere”111.

Assim, a Gewere não é apenas uma forma jurídica do direito real mas

também é ela mesma um direito, portanto não é apenas um fato e sim também um

direito provisório ao exercício de um direito real presumido112,113.

4.2.1.3 O direito canônico

O Direito Canônico, ainda que fundamentado no Direito Romano e no Direito

Germânico Medieval, foi quem trouxe um tratamento muito melhor à posse.

Entre tantas as contribuições do Direito Canônico Medieval ao Direito

Moderno, destacou-se a sua defesa da supremacia do fato sobre o direito, o que

ampliou consideravelmente o conceito de posse.

Ainda como contribuição essencial tem-se a criação da exceptio spolii e da

actio spolii, instrumentos de proteção possessória.

A exceptio spolii era um interdito canônico que fora inicialmente criado para

ser usado por eclesiástico quando espoliado, garantindo que este não seria acusado

antes de reintegrado na posse de seus bens e direitos, e acabou por se estender à

todas as ações de natureza civil bem como aos leigos.

A actio spolii, por sua vez, era a ação possessória que substituía os

interditos romanos, podendo ser utilizada por qualquer possuidor, sobre coisas

móveis ou imóveis, corpóreas ou incorpóreas.

Segundo alguns estudiosos tais remédios possessórios existiam

paralelamente aos interditos romanos que foram mantidos no Direito Canônico.

4.2.1.4 Transição da posse

Embora tenha a invasão bárbara trazido muita conturbação social, a doutrina

da época buscou manter a segurança jurídica reconhecendo o tratamento romano

dado à posse, incluindo em suas primeiras legislações uma defesa da posse diversa

111

ALVES, José Carlos Moreira. Posse: Evolução Histórica. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 83. 112

MITTEIS, H.; LIEBERICH, H. Deutsches Privatrecht. H. Beck‟sche Verlagsbunchhandlung: München und Berlin, 1959. p. 74. 113

PLANITZ, H. Principios de Derecho Privado Germánico, Barcelona: Casa Editorial, 1957. p. 155.

Page 77: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

77

da destinada à propriedade. É nesse contexto que os glosadores iniciam os

trabalhos de compilação do Direito Romano.

Ainda que se procurasse, num primeiro momento, manter íntegra a doutrina

sobre a posse trazida das fontes do Direito Romano, paulatinamente foram incluídas

as tendências do Direito Germânico e do Direito Canônico, o que fez com que o

entendimento sobre a posse se transformasse num verdadeiro labirinto114. O título

de posse estava bem mais vinculado à posse do senhor sobre o servo do que a

posse do senhor sobre sua terra115.

Em período seguinte surgem os pós-glosadores cuja principal característica

é comentar o Direito e não apenas explicá-lo, adaptando-o à sociedade da época.

Muitas foram as discussões levantadas na época acerca da posse, especialmente

em relação as diferenças entre seus efeitos e os da detenção. A descoberta de um

manuscrito de Teófilo intitulada Institutionem Graeca Paraphrasis ressuscitou a

questão do elemento subjetivo da posse. A terminologia também viria a ser motivo

de discussão, embora fosse unânime o entendimento de existir sempre a intenção

de ser proprietário, inclusive desconsiderando-se o fato de que se poderia entender

como a intenção de ter a coisa somente sob seu domínio.

A questão terminológica também causou confusão no tocante ao animus

domini e o opinio domini, pois enquanto este presumia a crença de ser proprietário,

em virtude da boa-fé, e a possibilidade de usucapião, aquele se configurava pela

intenção de ser proprietário, ainda que de má-fé, distinguindo posse de detenção.

Prevaleceu o entendimento de que o elemento caracterizador da posse em relação a

detenção é a intenção de ter a coisa para si, sendo a posse, portanto, um fato.

4.2.1.5 Teorias sobre a Posse

O estudo sobre posse passa, necessariamente, pela análise das teorias de

Savigny, conhecida como teoria subjetiva, e de Ihering, tida como teoria subjetiva.

Até o advento da Teoria de Savigny, a posse era tida como sendo a

possibilidade de dispor da coisa, inclusive fisicamente, e defendê-la contra qualquer

ação estranha. Savigny, no entanto, concluiu que por posse entende-se “o poder de

114

SALVIOLI, G. Manuale di Storia Del Diritto Italiano. Torino: Unione Tipográfico, 1899. p. 436 apud ALVES, José Carlos Moreira. Posse: Evolução Histórica. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 145. 115

HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. 20. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. p. 17.

Page 78: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

78

dispor fisicamente de uma coisa, combinado com a convicção do possuidor de que

tem esse poder116”.

Esse domínio físico da coisa é ser visto sob dois aspetos distintos. No

primeiro aspecto aparece como fato da realização de um direito preexistente, onde a

dominação sobre a coisa é um corolário do domínio, o dono da coisa tem o direito de

tê-la sob sua detenção117. No segundo aspecto aparece como fato que produz

efeitos legais, sendo a dominação da vontade sobre a coisa denominada posse.118

Friedrich Carl von Savigny criou então a teoria subjetiva determinando que a

posse deveria ser conceituada pela existência de dois elementos, quais sejam, o

animus e o corpus.

O animus caracteriza-se com a vontade, a intenção do possuidor em ter a

coisa como se fosse proprietário, enquanto o corpus é a possibilidade de dispor

fisicamente da coisa e defendê-la.

O animus domini é a fonte da subjetividade da teoria de Savigny, eis que,

através dele, o possuidor, como se proprietário fosse, tem a vontade de exercer o

poder sobre a coisa.

É importante salientar que, segundo Savigny, para caracterizar a posse não

basta apenas a mera intenção, sendo necessário que esta se conjugue com a

matéria.

Assim, a ausência de algum dos elementos mencionados descaracterizaria a

posse, restando certo que na falta do animus ter-se-ia tão somente a detenção e

sem o corpus não existiria sequer relação entre coisa e possuidor.

Washington de Barros Monteiro119 alerta que os conceitos de corpus e

animus sofreram mutação dentro mesma da teoria subjetiva. Desta feita, se num

primeiro momento o corpus consistia no contato direto com a coisa, passou, num

momento sequente, a se consistir na mera possibilidade de exercer esse contato em

virtude de sua disposição. (BARROS MONTEIRO, 1966, p. 18).

Nesse contexto, a posse é tida como o poder físico direto ou imediato de que

a pessoa tem a coisa, com vontade de defendê-la de outrem e achá-la sua, restando

116

BESSONE, Darcy. Da Posse. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 47. 117

PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das coisas. Brasília: SEEP, Senado Federal, 2004. p. 31. 118

PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das coisas. Brasília: SEEP, Senado Federal, 2004. p. 31. 119

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Direito das Coisas. 37 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p.18.

Page 79: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

79

óbvia a necessidade de conexão entre poder físico da coisa e a vontade de ser dono

dela.

A vontade do possuidor em ser proprietário da coisa, animus domini,

aproximou os conceitos de posse e de propriedade. Entretanto, verifica-se que a

teoria de Savigny reconheceu, sobretudo, o caráter fático da posse, onde a realidade

do fato se sobrepõe ao caráter formalista do positivismo legalista120.

Já para Ihering, o criador da teoria objetiva da posse, é indiferente a vontade

individual de ser proprietário. Rudolf Von Ihering, em crítica à teoria de Savigny,

buscou retirar a intenção como elemento da posse, criando sua teoria objetiva com

base no conceito de propriedade:

Pode a posse, de acordo com o exposto, representar a propriedade? Sim, porque é a propriedade em seu estado normal – a posse é a exteriorização, a visibilidade da propriedade. Estatisticamente, essa exterioridade coincide com a propriedade real dos casos. Quase sempre o possuidor é ao mesmo tempo o proprietário, sendo muito diminutos os casos em que não o é

121.

Para Ihering, a vontade de possuir como se fosse é uma regra de direito

objetivo, uma disposição de lei, que decide se temos diante de nós a posse ou a

detenção122. A utilidade que é dada à coisa, seu destino econômico e sua proteção é

a demonstração da posse como exteriorização da propriedade.

O entendimento de Maria Helena Diniz esclarece metaforicamente a teoria:

A propriedade sem a posse é um tesouro sem a chave para abri-lo, ou uma árvore frutífera sem os meios que possibilitem a colheita de seus frutos. Logo, a posse reveste-se, nessa teoria, de grande importância prática para o proprietário, uma vez que este só poderá utilizar-se economicamente da coisa que lhe pertencer se tiver a posse

123.

A teoria de Ihering prega que basta o corpus para caracterizar a posse,

entendendo que o animus é atinente ao próprio poder de fato exercido sobre a

coisa124.

120

OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Hermenêutica e Tutela da Posse e da Propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 86. 121

IHERING, Rudolf von. Teoria Simplificada da Posse. Belo Horizonte: Líder, 2004. p.24. 122

BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. 5. ed. Rio Janeiro: Forense, 1956. p.19. 123

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 18. ed. aum. atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei nº. 10.406 de 10-1-2.002). São Paulo: Saraiva, 2002. p. 36. 123

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 18. ed. aum. atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei nº. 10.406 de 10-1-2.002). São Paulo: Saraiva, 2002. 124

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 18. ed. aum. atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei nº. 10.406 de 10-1-2.002). São Paulo: Saraiva, 2002. p. 36.

Page 80: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

80

O elemento subjetivo, portanto, não foi excluído por Ihering e sim foi incluído

no corpus, existindo o animus na relação coisa – possuidor, importando a forma

como se revela ao mundo o poder de fato do possuidor sobre a coisa125.

Claro, portanto, que a teoria objetiva aproximou o conceito de posse do de

propriedade quando vinculou aquela a exteriorização desta, podendo ser entendida,

inclusive, que é o possuidor um proprietário presumido.

Ainda que Ihering tenha tecido críticas ao sistema romano da propriedade e

seu caráter individualista, não se verifica na teoria objetiva o caráter fático, material e

social da posse126, restando evidente seu caráter normativo de seu conceito.

Embora seja o corpus um elemento comum nas teorias de Savigny e Ihering,

enquanto aquele valorizou o caráter psicológico ao conceituar a posse, este

privilegiou o material, não conseguindo, ambas as teorias desconectar o fato da

posse da propriedade.

O Código Civil de 2012 consagrou a teoria objetiva da posse que, no artigo

1.196, considera possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não,

de algum dos poderes inerentes à propriedade.

4.2.2 LEGITIMAÇÃO DA POSSE NO DIREITO BRASILEIRO

A legitimação é um conceito de origem político-jurídica que designa o

reconhecimento, pelas instituições do poder e segundo articulações discursivas que

esse mesmo poder domina, de determinados fatos sociais.

Conforme se verifica no capítulo 1, a legitimação da posse surge no Brasil

com a promulgação da lei 601/1850, conhecida como “Lei de Terras”, que tratou da

questão relacionada às terras devolutas do Império Brasileiro.

A Lei de Terras é tida por muitos como um divisor de águas na estrutura

fundiária brasileira pois através dela se regulamentou o regime jurídico dos bens

imóveis do Estado, praticamente todo o território nacional.

É nesse contexto que surge a legitimação da posse e o conceito de terras

devolutas, terras destinadas ao donatário em regime de sesmaria que não cumpriu

com suas obrigações. A lei destaca situações onde se pode conferir ao posseiro o

125

GONÇALVES, Vania Mara Nascimento. Estado, Sociedade Civil e Princípio da Subsidiariedade na Era da Globalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 18. 126

OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Hermenêutica e Tutela da Posse e da Propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p.87-88.

Page 81: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

81

título definitivo de domínio, consistindo isso na legitimação da posse. Para tanto a lei

estabelece alguns requisitos mínimos, mas estes são basicamente a morada

habitual e a cultura efetiva.

Assim, é a legitimação da posse instituto gravado de perenidade uma vez

que tão somente transporta a posse do plano empírico para o jurídico, quando do

momento de reconhecimento do direito do possuidor sobre sua posse.

Ao legitimar a posse do particular sobre terras devolutas, ainda que

preenchidas as condições para tanto, o Estado cria uma esfera privada que até

então não existia.

Fica claro, portanto, que a Lei de Terras foi concebida sobre dois prismas.

No primeiro trata do passado respeitando as situações existentes e imbuindo-as de

efeitos jurídicos, como o caso da legitimação da posse, enquanto que no segundo

prisma, relacionado ao futuro, acaba por extinguir a possibilidade de aquisição de

domínio de terras públicas por outro meio que não seja a compra. Ainda que

respeitados os requisitos de moradia habitual e cultura efetiva, a posse não mais

poderia ser fundamento da aquisição do domínio de devolutas, inclusive sendo a

ocupação destas considerada crime.

A legitimação da posse traz a pessoa que se encontra em situação irregular,

precária no tocante à sua terra, para o mundo da certeza, da previsibilidade no

ordenamento jurídico. Por conseguinte, é imperioso afirmar que a legitimação da

posse foi o primeiro instrumento de regularização fundiária criado e aplicado no

Brasil que se tem notícia em nossa história.

Embora a Constituição de 1891, ao delegar as terras devolutas aos Estados-

Membros, tenha possibilitado que estes adotassem a legitimação da posse de

acordo com sua liberalidade, bem como o Decreto-Lei 9.760/46, que dispõe sobre

bens imóveis da União, tenha previsto a legitimação da posse de determinados

ocupantes de glebas, o instrumento se tornará mais significativo com o advento do

Estatuto da Terra (Lei 4504/64) e da Lei 6.383/76 que tratará do processo

discriminatório das terras devolutas.

As Constituições de 1946 e de 1967, somadas às leis citadas,

caracterizaram a legitimação da posse como um procedimento para compra da terra,

uma vez que garantiam a preferência legal do posseiro na compra da área ao fim do

período determinado na legitimação da posse.

Page 82: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

82

A legislação não entende a legitimação da posse como um ato discricionário

de liberalidade do poder público e sim um direito adquirido do possuidor de terras

devolutas que cumpre os requisitos exigidos, conforme se verifica no art. 29 da Lei

6.383/76: “O ocupante de terras públicas, que as tenha tornado produtivas com o

seu trabalho e o de sua família, fará jus à legitimação da posse de área contínua até

100 (cem) hectares, desde que preencha os seguintes requisitos: [...]”

A legitimação da posse é, portanto, configurada pelo posseiro com morada

permanente e cultura efetiva que adquire um direito por sua posse qualificada de

bem público, porém, este direito acaba por caracterizar um comodato gratuito com

prazo determinado durante o qual tem o posseiro a preferência de compra.

Transcorrido o prazo, e não tendo o posseiro exercido seu direito de

preferência na compra da área, sua posse tornar-se-á ilegal, restando nítido que

ainda aqui a posse é tida como precária.

A legitimação da posse, como foi concebida historicamente, apresenta

elementos que podem caracterizá-la como instrumento de regularização fundiária

urbana, ainda que sua aplicabilidade mais remota tenha se dado através do Direito

Agrário.

4.2.2.1 A Legitimação da Posse no Direito Urbanístico – Lei 11.977/2009

Até o advento da Lei 11.977/2009 era a usucapião o meio mais utilizado pelo

ocupante de imóvel particular para ver sua posse convertida em propriedade, desde

que atendidos todos os requisitos e sempre através de uma ação judicial.

À regularização fundiária da propriedade pública não cabia, e ainda não

cabe, a usucapião, razão pela qual trouxe o Estatuto da Cidade outros instrumentos

para garantir a segurança jurídica da posse, tais como a Concessão de Direito Real

de Uso e Concessão Especial de Uso para Fins de Moradia, mas que não

transferem a propriedade do imóvel para o ocupante, não obstante a existência do

instituto da doação.

Embora tenha a usucapião cumprido seu papel enquanto instrumento de

regularização fundiária, desde sua criação até os dias de hoje, o grande número de

ocupações irregulares pelo Brasil e o assoberbamento dos nossos Tribunais

sinalizavam para a necessidade de criação de um novo instrumento que pudesse

Page 83: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

83

garantir o direito à moradia, atender a demanda e, ao mesmo tempo, desopilar o

judiciário.

A criação do instrumento legitimação da posse para áreas urbanas acontece

exatamente nesse contexto, onde se verificou, ainda, que havia necessidade

também de regulamentar a regularização fundiária de interesse social.

A Lei 11.977/2009 traz aos operadores de direito, bem como aos demais

técnicos que trabalham com regularização fundiária, o norte para o desenvolvimento

de seu trabalho, descrevendo não somente conceitos até então abstratos como

também preceituando novos instrumentos passíveis de utilização para fins de

regularização fundiária e sua forma de operacionalização.

Outra inovação da lei que merece ser destacada é a necessidade de

desenvolvimento de projeto de regularização fundiária observadas, dentre outros

critérios, as edificações que devem ser relocadas e as medidas previstas para

adequação da infraestrutura básica. A exigência vai ao encontro da necessidade de

reconhecer o direito à moradia, garantindo que seja esta digna e encontre-se dentro

dos padrões mínimos de habitabilidade.

A lei traz ainda o instrumento denominado demarcação urbanística, muito

assemelhado à demarcação de terras já existente, mas que veio como meio de

operacionalizar a legitimação da posse, uma vez que é imprescindível para emissão

do devido título.

A legitimação da posse de imóvel urbano tem por escopo dar oportunidade

de acesso à propriedade urbana e à moradia a classes sociais desfavorecidas

residentes nas grandes cidades e que vivem na clandestinidade e sem condições de

habitabilidade em suas moradas.

Nesse contexto, é imperativo que o possuidor do imóvel que o utiliza para

fins de moradia tenha reconhecido seu domínio em detrimento daquele que, além de

não fazer uso do imóvel, não lhe deu qualquer destinação que respeitasse sua

função social, seja particular ou público.

Assim como outros instrumentos de acesso ao direito à moradia, a

legitimação da posse cumpre os objetivos descritos na Constituição Federal que

determinam o desenvolvimento das funções sociais da cidade, o bem-estar da

população e meio ambiente equilibrado.

Page 84: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

84

4.2.2.2 Conceito de Legitimação da Posse na Lei 11.977/2009

O conceito de legitimação da posse é trazido através da Lei 11.977/2009

que, em seu artigo 47, IV, o define como ato do poder público destinado a conferir

título de reconhecimento de posse de imóvel objeto de demarcação urbanística, com

a identificação do ocupante, tempo e natureza da posse.

Analisando a lei e todos os seus preceitos verifica-se a existência de

incongruência entre os sentidos ali aplicados de legitimação na posse. Enquanto em

um artigo ele aparece como sendo um processo, em outro ele ocupa o sentido de

título.

No artigo 47 da referida lei, já descrito acima, a legitimação da posse é um

ato do poder público destinado a reconhecer posse de dado imóvel, devendo ser

entendido como um processo pois diversos são os atos da administração pública

necessários à legitimar uma posse. O artigo 59127 da mesma lei, de outra forma,

aplica a legitimação da posse como título quando determina que seu registro

constitui direito em favor de seu detentor.

Independente dessa desconexão, resta claro que pretendia o legislador criar

um instrumento jurídico que garantisse o direito à moradia dos possuidores de

imóveis em situação de irregularidade, atribuindo a eles a propriedade desses

imóveis após o cumprimento de vários requisitos, utilizando-se da via administrativa

e não judicial para que os procedimentos fossem menos complexos e morosos.

4.2.2.3 Fundamentos e exigências da Legitimação da Posse na Lei 11.977/2009

Para a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a propriedade

consistia em direito inviolável e sagrado. Assim também previam o Código Francês e

o Código Italiano de 1865, para os quais era a propriedade o direito de gozar e

dispor do bem de modo absoluto.

É a partir da constituição de Weimar que se inicia o reconhecimento de uma

ordem econômica e social com implicações para a questão da propriedade, inclusive

com a instituição de normas que preceituavam que à propriedade correspondem

deveres ligados a utilização do bem de forma a gerar benefícios para toda a

127

Art. 59. A legitimação da posse devidamente registrada constitui direito em favor do detentor de posse direta para fins de moradia.

Page 85: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

85

sociedade. Tal posicionamento foi difundido e adotado por toda a legislação

Ocidental.

A proteção da posse foi concebida por Ihering a partir da propriedade, uma

vez que considerava que era a posse uma espécie de vanguarda da propriedade,

com tamanha importância ideológica para o sistema que seu mero exercício recebia

tratamento autônomo para proteger a simples aparência de proprietário128.

A função social está diretamente vinculada ao uso da propriedade, alterando

alguns aspectos pertinentes ao seu exercício. Assim, o uso da propriedade pode ser

tido pelo modo como são exercitadas as faculdades ou poderes inerentes ao direito

de propriedade129.

Cacilda Lopes, ao tratar desse tema, afirma:

Atualmente, o direito de propriedade outrora absoluto, está sujeito a numerosas restrições fundamentadas no interesse público ou social, e também no próprio interesse privado, de sorte que o traço nitidamente individualista de que se revestia, deu lugar à concepção diversa, de conteúdo social própria do âmbito do direito público

130.

A posse, por sua vez, não tem sua função social com previsão expressa na

Constituição Federal, até porque, em se tratando de um exercício de fato

socialmente admitido, a sua própria existência já indica a conformidade deste

exercício a uma finalidade de relevância social.

O pleito da tutela da posse relaciona-se diretamente com o atendimento de

sua função social que jamais pode ser objeto de proteção jurídica sem a

demonstração dos valores sociais e existenciais de que serve o instrumento131.

Nesse contexto, a análise subjetiva típica de propriedade absoluta do Estado

Liberal perde seu lugar para a análise objetiva do cumprimento da função social dos

bens imóveis urbanos do Estado Democrático de Direito.

A inércia atribuída àquele que perde a propriedade indica descumprimento

ao princípio da função social. A redução da coisa a componente patrimonial não

coaduna com a função social que traz implícitos uso e proveito132.

128

TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro:Renovar, 2006. p. 152. 129

FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea (Uma perspectiva da usucapião imobiliária rural). Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1988, p. 17 130

SANTOS, Cacilda Lopes dos. Novas perspectivas do instrumento da desapropriação: a incorporação dos princípios urbanísticos e ambientais. 2007. 132f. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. p. 17. 131

TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro:Renovar, 2006. p.156.

Page 86: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

86

A obrigação do proprietário de respeito a situações jurídicas socialmente

tuteladas advém da função social133, enquanto elemento interno do domínio, que é

responsável pelo controle funcional do direito de propriedade134.

A legitimação da posse urbana surgiu na legislação brasileira com o advento

da Lei 11.977/2009 que normatizou a regularização fundiária. Por sua vez, a Lei

12.424/2011 incluiu a legitimação da posse como um dos instrumentos para

execução de política urbana do Estatuto da Cidade na busca de cidades

sustentáveis, que garantam direitos mínimos aos seus cidadãos.

Não obstante tratar-se de instrumento de política urbana, a legitimação da

posse não tem o poder de efetuar a transferência da propriedade do imóvel, uma

vez que se trata de ato administrativo precário que necessita do atendimento de

diversas exigências para que, em 05 (cinco) anos contados da data de seu registro,

possa o título de legitimação da posse ser convertido em registro de propriedade.

Portanto, a legitimação da posse tem por objetivo o reconhecimento do fato

da posse e, cumpridas as condições descritas em lei, o título emitido pelo ente

público competente pode ser convertido em propriedade.

As exigências legais à efetivação do instrumento legitimação da posse

encontram-se descritas no texto da Lei 11.977/2009 e todas, de alguma maneira,

encontram respaldo na função social da propriedade.

A necessidade de Projeto de Regularização Fundiária de Interesse Social

devidamente aprovado pelo Município, assim como todos os requisitos que nele

devem conter é a demonstração de que o Poder Público deve buscar não apenas

garantir o direito à moradia da população de baixa renda como também trabalhar

para que as moradias apresentem condições mínimas de habitabilidade e

infraestrutura.

O projeto não apenas deverá conter as características da área ocupada,

identificação dos lotes, vias de circulação e áreas destinadas a uso público, a fim de

132

COCCARO FILHO, Celso Augusto. Usucapião especial de imóvel urbano: instrumento da política urbana. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 437, v.17, set. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/5709>. Acesso em: 12 fev. 2012.. 133

DUGUIT, Pierre Marie Nicola Léon. Les Transformations du Droit Public. Paris: La Mémoire du Droit, 1999. p. 37. Para Duguit “[...] la proprieda no es un derecho; es una función social. El propietario, es decir, el poseedor de uma riqueza, tiene, por el hecho de poseer esta riqueza, una función social que cumplir; mientras cumple esta misión sus actos de propietario están protegidos. Si no la cumple o la cumple mal, si por ejemplo no cultiva su tierra o deja arruinarse su casa, la intervención de los gobernantes es legítima para obligarle a cumplir su función social de propietario, que consiste en asegurar el empleo de las riquezas que posee conforme a su destino”. 134

TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro:Renovar, 2006. p. 158.

Page 87: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

87

definir os parâmetros urbanísticos e ambientais do local como também, conforme o

artigo 55 da Lei 11.977/2009, cabe ao Poder Público a implantação de sistema viário

e infraestrutura básica.

A lei permite que até mesmo as ocupações consolidadas em Áreas de

Preservação Permanente, que ocorreram até 31 de dezembro de 2007, sejam objeto

de regularização fundiária de interesse social desde que se comprove, através de

estudo técnico, que a intervenção implica em melhorias ambientais quando

comparada com a situação anterior.

De acordo com o parágrafo 2º do artigo 54 da Lei 11.977/2009, para

viabilizar a regularização, o laudo técnico deverá conter, ao menos, a caracterização

da situação ambiental da área a ser regularizada, a especificação dos sistemas de

saneamento básico, proposição de intervenções para controle de riscos geotécnicos

e de inundações, a recuperação das áreas degradadas e daquelas não passíveis de

regularização, comprovação das condições de melhoria de sustentabilidade urbano-

ambiental, considerados o uso adequado dos recursos hídricos e a proteção das

unidades de conservação, comprovação da melhoria da habitabilidade dos

moradores propiciada pela regularização à garantia do acesso público às praias e

aos corpos d‟água, quando for o caso.

A lei exige ainda que não pode o morador beneficiado com a legitimação da

posse ser concessionário, foreiro ou proprietário de outro imóvel urbano ou rural, ou

mesmo beneficiados com legitimação da posse em momento anterior.

Assim como os demais instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, a

legitimação da posse tem por objetivo o cumprimento das diretrizes e princípios

constitucionais destinados à efetivação da política urbana e, nesse caso em

especial, direcionado à parcela da população com baixa renda incluída nos projetos

de regularização fundiária de interesse social.

4.2.3 A Legitimação da Posse e a Concessão de Uso Especial para fins de Moradia

Ao se reconhecer que os assentamentos informais de baixa renda atribuem

à propriedade ocupada sua função social, aceita-se também as consequências dele

advindas. Inicialmente, e sem qualquer sombra de dúvida, é o direito de

permanência das famílias ocupantes ou, quando assim se fizer necessário, a

relocação delas para um local mais apropriado para moradia, respeitadas as

Page 88: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

88

condições mínimas de habitabilidade. A outra consequência diz respeito à resolução

do problema da precariedade ambiental e urbana e da questão da segurança da

posse através do desenvolvimento e implementação de políticas públicas voltadas

ao planejamento urbano.

Segundo o entendimento de Nelson Saule Junior135 a função social da

propriedade urbana é princípio norteador, tratando-se, portanto, de condição para o

exercício da propriedade, seja ela pública ou privada.

Os bens do Poder Público devem atender aos objetivos fundamentais da

República, tais como a construção de uma sociedade justa, fraterna e solidária,

obrigando o Estado, no que tange aos seus bens, a observar o princípio

constitucional da função social da propriedade136.

Há de se observar, portanto, que a propriedade pública também tem uma

função social vinculada diretamente ao atendimento dos interesses coletivos, o que

demonstra que, embora redundante, a função social é a essência da propriedade

pública.

Mostra-se, portanto, necessária a compatibilização entre o interesse público

e o interesse social na efetivação da função social da propriedade pública, eis que a

propriedade pública é voltada ao interesse público e não social, exigindo, para o

reconhecimento da função social, a conformidade entre os interesses137.

Para Tepedino, o controle dessa conformidade entre o público e o social é

necessário na medida em que o Estado passa a ser reconhecido como um

instrumento a serviço do desenvolvimento da pessoa humana. A propriedade

pública, para o autor, “[...] deve cumprir sua função social, sendo empregada não

apenas no atendimento do interesse do poder Público, mas no atendimento dos

interesses sociais privilegiados no texto constitucional”138.

135

SAULE JÚNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004. p. 399. 136

ROCHA, Silvio Luis Ferreira. Função social da propriedade pública. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 66. 137

TEPEDINO, G.; SCHREIBER, A. A garantia da propriedade no direito brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Campos, São Paulo, v. 6, n. 6, jun. 2005. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/25148569/a-garantia-da-propriedade-no-direito-brasileiro-Tepedino-e-Anderson-Schreiber-101>. Acesso em: 04 jan. 2012. 138

TEPEDINO, G.; SCHREIBER, A. A garantia da propriedade no direito brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Campos, São Paulo, v. 6, n. 6, jun. 2005. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/25148569/a-garantia-da-propriedade-no-direito-brasileiro-Tepedino-e-Anderson-Schreiber-101>. Acesso em: 04 jan. 2012.

Page 89: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

89

A finalidade, a destinação na utilização da propriedade pública é que irá

indicar se essa cumpre ou não sua função social, da qual não é isenta em momento

algum dentro do texto constitucional. Nesse contexto, a titularidade da propriedade,

seja ela pública ou privada, por si só, é insuficiente, devendo preponderar sua

legitimidade e destinação139.

A propriedade pública, portanto, vincula-se ao cumprimento da função social,

restando certo que o uso e destinação dos bens públicos, especialmente enquanto

realização do direito à moradia, deve dar-se através de decisões fundadas em

processo de gestão democrática de participação popular no desenvolvimento das

políticas públicas habitacionais.

A necessidade de desenvolvimento e aprovação de Projeto de

Regularização Fundiária de interesse social com a participação dos interessados em

todas as etapas do processo demonstra que, estando a ocupação, objeto de

intervenção do referido projeto, localizada em áreas públicas a propriedade estatal

encontra-se no cumprimento de sua função social. Essa afirmação se dá em virtude

não apenas da destinação do uso do imóvel público à regularização fundiária de

interesse social mas também pela participação popular140 na elaboração do projeto

de regularização fundiária e, portanto, na definição do uso dessa área.

Nesse sentido, a destinação de áreas públicas municipais ou estaduais

ocupadas por assentamentos informais de população de baixa renda, ou ainda

mesmo as áreas não utilizadas, devem ser destinadas ao desenvolvimento e

realização de políticas públicas habitacionais, garantindo assim o atendimento ao

interesse público através da promoção das funções sociais da propriedade e da

cidade.

139

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. Rio de janeiro: Lúmen Júris, 2006. p. 209. 140

DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Libório (Coord). Direito Urbanístico e Ambiental. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2011.p. 52. Sobre o tema Daniela Libório demonstra que “Ao Poder Público caberá o papel de educador para a cidadania, dentro do qual não deverá contentar-se com a pouca receptividade da comunidade em eventos públicos coletivos. Informar adequadamente a população que possa ser afetada pela decisão vindoura é de fundamental importância para o desenvolvimento da democracia participativa. Em casos nos quais a população possui baixa escolaridade, por exemplo, a simples liberação à consulta de projetos a serem debatidos não é suficiente para informá-la. Caberá ao Poder Público competente para a decisão o dever em simplificar a linguagem sem, entretanto, comprometer o conteúdo, de forma que a população entenda o que se passa e possa proceder a uma análise crítica compatível com seus interesses diretos”.

Page 90: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

90

É nesse contexto que se encontra fundamentado o uso da Legitimação da

Posse em imóveis públicos e da Concessão Especial de Uso para fins de Moradia –

CUEM como instrumento de regularização fundiária de interesse social.

A questão agora é quando se deve utilizar um ou o outro instrumento ou

mesmo em que casos será melhor aplicar, mais vantajoso, um ou o outro.

A Concessão de Uso Especial para fins de moradia é um instrumento criado

pela Medida Provisória 2.200/2001 e permite a regularização de áreas públicas

ocupadas até 30 de junho de 2001.

A CUEM, como é conhecida, encontra previsão no texto constitucional,

artigo 183, parágrafo primeiro, que afirma que esta poderá ser concedida ao homem

ou a mulher ou mesmo a ambos, independente do estado civil.

Embora não autorize a transferência da propriedade do imóvel, a CUEM é

um título que assegura a posse para fins de moradia quando cumpridos os

requisitos141. Assim como a usucapião especial urbana, para a CUEM a área não

pode ter mais de 250m², o morador deve lá residir por 5 (cinco) anos ininterruptos e

sem oposição, utilizando a área para fins de moradia, não pode o morador ser

proprietário ou concessionário de outro imóvel urbano ou rural, qualquer que seja o

título.

Como características temos que a CUEM142 é gratuita, perpétua, de utilidade

privada, obrigatória, autônoma e de simples uso, qual seja a moradia.

A CUEM e a legitimação da posse se parecem em muitos aspectos. No

entanto, o contexto sobre o qual está sendo realizado o projeto de regularização

fundiária deve sempre ser analisado para verificar qual a melhor alternativa.

Se o ocupante cumpre todos os requisitos da CUEM essa se mostra mais

vantajosa quando comparada à legitimação da posse. Enquanto a legitimação da

posse depende de iniciativa do Poder Público, a CUEM depende exclusivamente da

141

FERNANDES, Edésio (org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 34. Ao tratar de instrumentos de garantia de segurança da posse Edésio Fernandes afirma “Em outras palavras, a segurança da posse e da moradia é de ser alcançada de várias formas, e não apenas, e/ou necessariamente, através do reconhecimento de direitos de propriedade individual. Por outro lado, vários estudos também demonstram que a mera urbanização dos assentamentos ilegais não se traduz necessariamente na diminuição da pobreza urbana. Pelo contrário, se não forem acompanhadas de mecanismos polpiticos, sociais, legais e financeiros adequados, incluindo dentre outros fatores uma dimensão de gênero, tais políticas acabam por provocar distorções profundas no tenso mercado imobiliário e se tornam em mais um fator de acirramento da segregação territorial e da exclusão social”. 142

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Concessão de Uso Especial para fins de moradia. In: Estatuto da cidade Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 163.

Page 91: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

91

vontade do morador em iniciar o pedido de concessão que, frise-se, não poderá ser

negado.

Em se tratando de ocupação de área pública posterior a 30 de junho de

2001, não resta outra alternativa ao ocupante que a legitimação da posse, que

dependerá de atuação direta da Administração Pública.

Caso a ocupação tenha se dado antes da data limite para a concessão da

CUEM, e os demais requisitos estejam cumpridos, os moradores que ocuparem área

pública superior a 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) poderão ser

beneficiados com a CUEM coletiva.

No entanto, se a área com mais de 250m² (duzentos e cinquenta metros

quadrados) for ocupada por apenas uma família o único instrumento que poderá ser

utilizado será a legitimação da posse, restando claro, pela Lei 11.977/2009, que o

período de tempo necessário à conversão do título de legitimação da posse em

propriedade seguirá as regras da usucapião.

Se a ocupação se deu antes de 2001, e cumpre o morador todos os demais

requisitos, será a CUEM o melhor instrumento de regularização fundiária a ser

utilizado, tendo em vista que não há necessidade de aguardar o transcurso do prazo

de 5 (cinco) anos para conversão do Título de Legitimação de Posse em

propriedade, uma vez que a CUEM já é o título que garantirá ao morador a

segurança da posse.

Cumpre salientar que o processo de escolha do instrumento de

regularização fundiária a ser utilizado deve respeitar as características da ocupação

irregular onde será implementada.

4.2.4 As interfaces entre a Usucapião Especial Urbana e a Legitimação da Posse

As semelhanças entre a Legitimação da Posse e a Usucapião Especial

Urbana são muitas, assim como também são muitas as diferenças.

Passa a ser necessário, portanto, um entendimento, ainda que superficial,

do instrumento usucapião, sua origem, fundamentos e elementos. Necessária

também a análise da Usucapião Especial Urbana e, em especial, as interfaces entre

esta e a legitimação da posse.

Page 92: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

92

4.2.4.1 Conceito de Usucapião

A palavra usucapião advém da conjunção de duas palavras latinas, quais

sejam, usu, que está no caso ablativo, significando “pelo uso”, e capere, verbo

traduzido por “tomar”, resultado no termo “tomar pelo uso”143.

A usucapião é a aquisição do domínio pela posse continuada com tempo e

condições determinados pela lei. É, pois, a usucapião tido como a aquisição do

domínio ou de um direito real sobre coisa alheia, mediante posse mansa e pacífica,

durante o tempo estabelecido em lei144”.

A usucapião inclui-se entre os modos originários de aquisição da

propriedade, uma vez que não há vínculo entre o direito do antigo proprietário e o do

possuidor, ainda que enseje a extinção daquele145.

4.2.4.2 Origem histórica

Na obra República, Platão faz menção à prescrição aquisitiva, o que faz crer

que a origem da usucapião deu-se na Grécia. No Direito Romano, a etimologia da

palavra usucapião, “capio” significa “tomar” e “usu” quer dizer “pelo uso”.146, já

indicava que era modo aquisitivo de propriedade e que o tempo era seu elemento

precípuo. No sistema das doze tábuas, a usucapião já necessitava de tempo

predeterminado, além do justo título e boa fé, sendo que eram necessários dois

anos para usucapião de bem imóvel e um ano para os bens móveis.

Existiam duas formas diversas de prescrição, a prescrição aquisitiva da

propriedade, usucapião, e a prescrição “longi et longissimi temporis”, meio extintivo

da reivindicatória. A unificação desses dois institutos deu-se com Justiniano que

atribuiu à longa duração da posse extintiva da reivindicatória o mesmo efeito da

usucapião, o que a transformou em título aquisitivo da propriedade.

Embora os glosadores haviam unificado a matéria, por entenderem que

ambos os institutos são originários do transcorrer do tempo, não se confundem a

usucapião e a prescrição.

143

RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.p. 247. 144

SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens móveis e imóveis. 5. ed. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1999. p. 36. 145

GOMES, Orlando. Direito das Coisas. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 163. 146

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 22..ed. São Paulo: Saraiva, 2007.p.152.

Page 93: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

93

A prescrição aquisitiva é caracterizada pela força que cria o direito em favor

de um novo titular, extinguindo a ação que tinha o antigo titular para defender-se,

enquanto a prescrição extintiva é a força que extermina a ação e,

consequentemente, elimina o direito. Assim, na primeira nasce o direito e, pelo

nascimento do direito, fenece a ação; na segunda, fenece a ação e, pelo

fenecimento da ação, desaparece o direito147.

É certo que nosso Código Civil de 2002, bem como o anterior de 1916, não

deixa qualquer dúvida sobre as possíveis confusões entre o instituto da prescrição e

o da usucapião, uma vez que se faz menção à prescrição na parte geral,

entendendo-se que ela extingue a ação, protetora do direito, ferindo-o em todos os

seus departamentos, enquanto a usucapião encontra-se entre as formas geradoras

de direitos reais 148.

Grande divergência doutrinária gera a palavra usucapião quanto ao seu

gênero. No Código Civil de 1916, a palavra usucapião é usada no masculino, como

também se vê nas obras de Tubinambá Miguel Castro do Nascimento149, José

Carlos de Moraes Salles150, Humberto Theodoro Júnior151, porém, no Código Civil

atual a palavra é usada no gênero feminino, acompanhado por doutrinadores como

Luiz Edson Fachin152 e Maria Helena Diniz153 entre outros.

4.2.4.3 Fundamentos da usucapião

O fundamento da usucapião é, ao nosso ver, o interesse social e a função

social da propriedade, podendo ser entendido com um instituto de ordem e

estabilidade social, uma vez que possibilita ao direito de propriedade a realização de

seus fins, seja a cada particular como à sociedade. 154

147

MONTEIRO, Washington de Barros. Direito das Coisas. 37 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p.121. 148

BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1956. p.19. 149

NASCIMENTO, Tubinambá Miguel Castro do. Usucapião (comum e especial). 5. ed. Rio de Janeiro: Aide, 1986. p. 18. 150

SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens móveis e imóveis. 5. ed. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1999. p. 39. 151

THEODORO Júnior, Humberto. Posse e Usucapião (Direitos Reais I, Doutrina e Jurisprudência). Rio de Janeiro: Aide, 1991. p. 100. 152

FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea (uma perspectiva da usucapião rural). Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 13 153

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 22.ed. São Paulo: Saraiva, 2007.p. 154. 154

BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1956. p.19.

Page 94: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

94

A garantia da estabilidade e da segurança da propriedade na usucapião se

dá na fixação de um prazo que, uma vez transcorrido, não possibilita levantar

dúvidas ou mesmo contestações e acaba por sanar a falta de título155.

A aquisição do domínio através da prescrição é originada pelo detrimento do

direito do proprietário anterior. Assim, a usucapião acaba por possibilitar, dentro de

determinado prazo e cumpridas certas exigências, que o direito de propriedade do

possuidor se consolide, protegendo-se de possíveis reivindicações.

É certo, portanto, que com o advento do neoconstitucionalismo, a usucapião

não tem apenas um único fundamento mas se baseia, essencialmente, na função

social da propriedade e não mais na inércia do proprietário, resultando na criação de

usucapiões especiais, como é o caso do urbano, pró-moradia, e rural, pró-labore.

De acordo com o atual Código Civil, são três as formas de aquisição da

propriedade, a usucapião, artigos 1.238 ao 1.244, o registro do título translativo,

artigos 1.245 ao 1.247 e a acessão, artigos 1.248 ao 1.259.

O sistema jurídico brasileiro codificou três modalidades de usucapião, a

usucapião ordinária, preceituado pelo artigo 1242 do Código Civil, a usucapião

extraordinária, previsto no artigo 1.238 do mesmo diploma legal e a usucapião

especial, previsto em nossa Constituição Federal.

A usucapião especial é chamada de usucapião constitucional e é

contemplada nas formas urbana e rural, respectivamente, pelos artigos 183 e 191,

da Carta Política, e, também, nos artigos 1.240 e 1.239 do Código Civil, sendo,

ainda, a usucapião especial urbana prevista no capitulo II (Dos instrumentos da

política urbana), Seção V (Da usucapião especial de imóvel urbano), do Estatuto da

Cidade.

A usucapião especial rural, também conhecida coma usucapião pro labore,

foi concebida sob o prisma de política pública com o objetivo de consolidar a

pequena propriedade rural e fixar o homem no campo156.

Essa modalidade de usucapião, além da posse, é caracterizada pelo cultivo

da terra e foi contemplada pela primeira vez na Constituição de 1934, no artigo 125,

tendo como texto:

155

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 22.ed. São Paulo: Saraiva, 2007.p. 156. 156

NASCIMENTO, Tubinambá Miguel Castro do. Usucapião (comum e especial). 5. ed. Rio de Janeiro: Aide, 1986. p.181.

Page 95: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

95

Todo brasileiro que, não sendo proprietário rural ou urbano, ocupar, por dez anos contínuos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, um trecho de terras até dez hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele a sua moradia, adquirirá o domínio do solo, mediante sentença declaratória, devidamente transcrita.

Ao longo dos tempos, a usucapião veio sofrendo importantes alterações e

acabou por culminar na redação do artigo 191 da atual Constituição, onde verifica-se

que foi suprimida a necessidade da nacionalidade ser brasileira, o limite da área

passou de 10 hectares para 50 hectares e a prescrição aquisitiva teve seu tempo

reduzido de 10 para 5 anos.

Aquele que não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

A usucapião especial urbana, por sua vez, é fundada no esforço do

legislador constituinte em criar instrumento com efetividade dentro da política de

desenvolvimento urbano da Constituição Federal. Nesse sentido, o artigo 182 da

Carta Magna diz que a política de desenvolvimento urbano tem por objetivo ordenar

o desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar de seus

habitantes. O instituto atende os moradores que possuem como sua área de até 250

m², que não sejam proprietários de outra propriedade urbana ou rural e que estejam

se beneficiando do instituto pela primeira vez.

4.2.4.4 Elementos necessários à usucapião

Entre todos os elementos necessários à usucapião tem-se o Animus domini

que é o ato de possuir como se proprietário fosse. Para que a posse seja hábil a

constituir usucapião, não basta a posse ad interdictum, se ao possuidor faltar o

ânimo do proprietário, tampouco a opinio domini, que é a crença de que se é senhor

da coisa ou do direito, e, por fim, não se resume na simples intenção ou convicção

íntima de que se está comportando como proprietário.

Para caracterizar o animus domini o prescribente deve possuir como sua,

com intenção de dono, a área sobre a qual pretende que incida a prescrição

aquisitiva, uma vez que foi positivado em nosso ordenamento jurídico pela

Page 96: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

96

expressão “possuir como sua” insculpida tanto nos artigos 183, 191, 1238, 1239 e

1240 da Constituição Federal.

Até mesmo na usucapião ordinária, prevista no artigo 1.242, faz-se

necessário o animus domini, em razão de que a expressão “como seu” foi omitida

tendo em vista que o justo título induz à presunção de tal comportamento.157

É certo que o animus domini é a vontade, mesmo que de má fé, de possui

como se dono fosse, no entanto, com base na teoria de Jhering, para caracterizá-lo

faz-se necessário a causa possessiones, e não tão somente a vontade, pois se a

causa deu-se por um contrato, como o de locação por exemplo, não há que se falar

em animus domini uma vez que implica no direito dominial de outrem.

Também o acontece na usucapião especial, seja ela na modalidade urbana

ou rural, que, por se tratarem de demonstrações do princípio da função social da

propriedade, atendendo aqueles que residem ou trabalham no imóvel em regime

familiar pelo período de 05 (cinco) anos, dispensam os requisitos do justo título e

boa-fé e exigem, tão somente, o animus domini.

Outro requisito necessário é o tempo. A usucapião é modo de aquisição da

propriedade pela prescrição, onde um determinado lapso temporal extingue o direito

do proprietário e faz surgir o direito para possuidor, o que acaba por tornar a ação de

usucapião uma ação declaratória, vez que o direito já está constituído.

Verifica-se, assim, que o tempo é essencial para as quatro modalidades de

usucapiões, quando não há justo título ou boa fé o prazo prescricional é prolongado

enquanto que se encurta o prazo quando há maior importância da destinação do

imóvel.

Ainda que o possuidor atual possa juntar a sua posse a dos seus

antecessores, faz-se necessário que a prescrição aquisitiva transcorra

ininterruptamente. Deve também a posse ter atravessado todo o lapso temporal sem

oposição, fazendo presumir que não há direito contrário ao manifestado pela posse,

devendo esta ser tratada como propriedade e inscrita no registro de imóveis158.

Mesmo que seja possível, em algum momento, que a posse daquele que se

habilitou à usucapião venha a ser turbada ou esbulhada por outrem, o possuidor

pode defender-se e, tendo sucesso em sua defesa, seja no desforço próprio ou no

157

SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens móveis e imóveis. 5. ed. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1999. p. 212. 158

SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens móveis e imóveis. 5. ed. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1999. p. 4.

Page 97: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

97

apelo ao Poder Judiciário, o caráter de sua posse não será afetado. Evidente,

portanto, que ao falar em oposição à lei refere-se aos esforços deduzidos em juízo

para interromper a continuidade do lapso temporal.

No que tange à contagem da prescrição aquisitiva, os prazos se contam por

dias civis, por duração de 24 (vinte e quatro horas), é contínuo com meses sendo de

trinta dias cada, desprezando-se o “dies a quo”, o dia do começo, e contando-se o

“dies a quem”, o dia do fim. No entanto, segundo entendimento de José Carlos de

Moraes Salles159, não há razão para atendimento da exigência do artigo 132 do

Código civil, de se excluir o dia do começo da posse “ad usucapionem”, uma vez

que esse dia é dia de efetiva posse, devendo ser considerado cheio com expiração à

meia-noite e prorrogação para o primeiro dia útil ou de expediente subsequente se

se tratar de feriado.

Há também que se falar em justo título e boa-fé. Não se tratando de vícios

de forma e nem constituírem nulidade absoluta, a usucapião poderá saná-los por se

tratar de meio eficaz para tal. Nestes termos encontra-se aquele que possui justo

título e boa fé, passado o prazo de prescrição de 10 (dez), anos, ou 5 (cinco) anos-

artigo 1242, “caput” e parágrafo único, do Código Civil de 2002.

Ainda que essenciais à usucapião ordinário, o justo título e a boa-fé são

dispensáveis à usucapião extraordinário, especial urbano (pró-moradia) ou ao

especial rural (pró-labore).

O justo título, em relação ao domínio, é o negócio jurídico pelo qual se

adquire ou se transfere a propriedade, devendo encontrar-se formalizado e

devidamente registrado.

Assim, é exigência à usucapião ordinária que o usucapiente tenha título hábil

à aquisição do domínio, como uma escritura de compra e venda, um formal de

partilha ou uma carta de arrematação, com aparência de legítimos e válidos160. Por

sua vez, se acontecer de o título abstratamente considerado justo e hábil estar

eivado de vício, irregularidade ou falha que impeça a produção do efeito pretendido,

o decurso do tempo encarregar-se-á de sanar ditas falhas e irregularidades,

possibilitando ao possuidor a aquisição do bem por usucapião ordinário161.

159

SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens móveis e imóveis. 5. ed. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1999. p.52. 160

MONTEIRO, Washington de Barros. Direito das Coisas. 37 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 126. 161

SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens móveis e imóveis. 5. ed. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1999. p. 94

Page 98: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

98

Como requisito do objeto hábil à usucapião tem-se todos os bens corpóreos

passíveis de prescrição, bem como os direitos reais. Nesse sentido o domínio útil na

enfiteuse, as servidões aparentes, o usufruto e a habitação são todos objetos hábeis

de usucapião.

Há entendimento doutrinário que afirma que os imóveis que não se

encontrem, ou que não possam ser perfeitamente individualizados, não são objetos

hábeis à usucapião, baseado no fato de que seria incompreensível uma posse sobre

coisa indeterminada o que torna imprecisa a extensão dos atos possessórios.

O instrumento jurídico da usucapião especial urbana coletivo acaba por

derrubar essa teoria, uma vez que dita figura foi criada justamente para garantir o

direito à moradia de população de baixa renda que resida em locais onde não se

pode identificar a exata extensão dos imóveis ocupados, tal como acontece em

favelas, onde não se consegue definir quando termina uma moradia e quando se

inicia outra.

Também não há que se falar em usucapião das coisas que não podem ser

comercializadas, como é o caso do ar, do mar, da água corrente e das coisas

legalmente inalienáveis, tais como os bens públicos de uso comum e de destinação

especial, enquanto com esse caráter.

Há que se fazer distinção entre as coisas legalmente inalienáveis, que não

admitem usucapião, e as voluntariamente inalienáveis, possíveis de serem

usucapidas162.

Tanto os bens de uso comum do povo como os bens legados com cláusula

de inalienabilidade não podem ser alienados, porém, enquanto esse o é por vontade

do particular que o sujeita a incidência da lei por vontade própria, os bens de uso

comum do povo tem essa natureza independente da vontade do particular.

É, portanto, a inalienabilidade voluntária não só quando a manifestação de

vontade cria a cláusula de inalienabilidade, mas também quando, por ato de

vontade, cria uma situação jurídica na qual incidirá a norma legal da

inalienabilidade163.

Conforme já descrito acima, o direito brasileiro prevê três categorias de bens

alienáveis, os naturalmente inalienáveis, como é o caso do ar e do mar, os

162

NASCIMENTO, Tubinambá Miguel Castro do. Usucapião (comum e especial). 5. ed. Rio de Janeiro: Aide, 1986. p. 70. 163

NASCIMENTO, Tubinambá Miguel Castro do. Usucapião (comum e especial). 5. ed. Rio de Janeiro: Aide, 1986. p. 72.

Page 99: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

99

legalmente inalienáveis, como os bens públicos de uso comum e os de uso especial

e os voluntariamente inalienáveis, gravados com cláusula de inalienabilidade por ato

de vontade.

Não restam dúvidas de que não constituem objeto hábil à prescrição

aquisitiva os bens naturalmente e legalmente inalienáveis, uma vez que a

inalienabilidade por si só não necessariamente abrange a imprescritibilidade.

Tal afirmação se fundamenta no fato de tratar-se a usucapião de forma

originária de aquisição da propriedade, inexistindo transmissão da propriedade. A

inalienabilidade que impede a prescrição aquisitiva advém da lei que expressamente

a proíbe. A inalienabilidade advinda de ato de vontade não tem força jurídica para

impedir o comércio do bem e sequer impossibilitar sua sujeição à prescrição

aquisitiva.

4.2.4.5 Usucapião de bens públicos

A possibilidade de usucapir um bem não se encontra vinculada tão somente

à prescrição aquisitiva sobre a propriedade mas também à atuação do tempo sobre

o imóvel. A propriedade definirá, legalmente, qual bem poderá ser usucapido,

restando necessário descrever a divisão dos bens entre públicos e privados.

De acordo com o Código Civil, em seu artigo 98, são bens públicos os bens

do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno;

todos os demais bens, por sua vez, são particulares, seja qual for a pessoa a que

pertencerem.

O leque de pessoas jurídicas de direito interno é bastante grande e engloba

a União, os Estados, Distrito Federal e os territórios, os Municípios, as autarquias,

inclusive as associações públicas e as demais entidades de caráter público criadas

por lei, como é o caso das Empresas Públicas e das Sociedades de Economia

Mista.

Assim sendo, devemos entender por bens públicos todas as coisas,

corpóreas ou incorpóreas, imóveis, móveis e semoventes, créditos, direitos e ações

que pertençam, a qualquer título, às entidades estatais, autárquicas, fundacionais e

empresas governamentais 164.

164

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 518.

Page 100: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

100

Há, no entanto, uma divisão entre os bens públicos, qual seja os bens de

uso comum do povo, ruas, praças, mares, etc., os bens de uso especial, destinados

a serviços ou estabelecimento da administração pública, e os bens dominicais, os

quais constituem patrimônio das pessoas jurídicas de direito público.

Extrai-se da divisão acima descrita que os bens de uso comum do povo e os

bens de uso especial não são passíveis de serem adquiridos através da prescrição

aquisitiva, uma vez que, entendendo tratarem-se de bens do próprio povo, não só

seria redundante a prescrição em favor de quem já é dono, como também, sendo

possuídos pela coletividade, nenhum dos membros desta poderia alegar-lhes uma

posse exclusiva.

Até o advento da Constituição de 1988 havia divergência doutrinária relativa

à possibilidade de prescrição dos bens dominiais, pois havia o entendimento de que

o simples fato de serem bens de propriedade de pessoa jurídica de direito público

não os tornava invulneráveis à prescrição, não sendo, tampouco, suficiente a

característica da inalienabilidade para afastá-la, inclusive devido ao fato de que a

disciplina jurídica que rege esses bens é privatística, e não publicista.

A Constituição de 1988 trouxe consigo o fim dessa dúvida quando fez

previsão, no parágrafo 3º do artigo 183 e no parágrafo único do artigo 191, que

imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

Restou clara que a intenção do constituinte foi objetivamente consagrar em

dispositivo constitucional o que já fora estabelecido na Súmula 340165 do Supremo

Tribunal Federal. Assim, para os bens de uso comum do povo, os de uso especial e

os dominiais já havia a Súmula e para a usucapião especial urbana e rural a

exclusão expressa dos imóveis públicos, nos fazendo crer que não era outra a

intenção do constituinte a de impossibilitar a usucapião de qualquer espécie de bem

público.166

A usucapião nasce como instrumento jurídico do direito privado em suas

modalidades ordinária e extraordinária voltados à regulamentação da propriedade

privada, no entanto, a constituição federal de 1988, ao trazer os usucapiões

especiais, urbano e rural, o faz com o predomínio do interesse público, ainda que se

165

A referida Súmula foi aprovada em sessão plenária em 13 de dezembro de 1963, e refere-se ao artigo 67, do Código Civil de 1916 (“Os bens de que trata o artigo antecedente só perderão a inalienabilidade, que lhes é peculiar, nos casos e forma que a lei prescrever.”). 166

SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens móveis e imóveis. 5. ed. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1999. p. 218.

Page 101: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

101

tratando de instrumentos de direito privado, voltados à função social da propriedade.

Se o Constituinte excetuou os bens públicos da possibilidade da usucapião especial,

que tem por fundamento a função social da propriedade, não permitiria que possível

fosse usucapir imóvel público através das modalidades ordinária ou extraordinária,

uma vez que são baseados na propriedade privada.

4.2.4.6 A Usucapião Especial Urbana e Legitimação da Posse

O surgimento do Estado Social expandiu a intervenção do legislador no

campo dos direitos privados, que até então eram centrados na segurança jurídica e

disciplinados pelo Código Civil e leis ordinárias, possibilitando a edição de normas

de ordem pública que limitavam a autonomia de vontade do particular em prol dos

interesses coletivos. Nesse contexto, diversas foram as constituições

contemporâneas que passaram a disciplinar institutos típicos do Código Civil, como

é o caso do direito à propriedade, agregando a estes, valores solidarísticos167.

A defesa do exercício da propriedade passa a ser assegurada pelos valores

sociais da moradia, do trabalho e da dignidade da pessoa humana,

independentemente do domínio. A posse é justificada pela função social

desempenhada pelo possuidor que direciona o exercício de direitos patrimoniais a

valores existenciais atinentes ao trabalho, à moradia, ao desenvolvimento do núcleo

familiar168.

A Constituição de 1934, em seu artigo 125169, já previa a prescrição

aquisitiva na forma rural ou pro labore porém, é na Constituição de 1988, a primeira

a tratar da questão urbana, que se encontra prevista a usucapião especial urbana.

O Legislador ao retirar a exclusividade do Direito Privado na normatização

da prescrição aquisitiva e trazê-la para o âmbito constitucional, dimensionou o

problema fundiário à toda a sociedade, fazendo com que a usucapião fosse

reconhecida como forma de garantia do direito fundamental social à moradia e não

tão somente de pretensões individuais.

167

SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 69. 168

TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar. 2006, p. 152. 169

Todo o brasileiro que não sendo proprietário rural ou urbano, ocupar, por dez anos contínuos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, um trecho de terras até dez hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele a sua morada, adquirirá o domínio do solo, mediante sentença declaratória, devidamente transcrita.

Page 102: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

102

O fato de ter a Constituição normatividade jurídica reforçada, em virtude de

suas normas qualitativamente distintas e superiores às outras normas do

ordenamento jurídico170, acaba por reconhecer que a usucapião especial urbana,

enquanto instrumento de garantia do direito à moradia, objetiva proteger um dos

direitos básicos do cidadão.

O Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2000, que veio regulamentar o artigo 183

da Constituição Federal, que trata da usucapião especial urbana acaba por designá-

la como instrumento para a consecução da política pública que tem por objetivo

ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais das cidades e da propriedade

urbana, tendo como diretriz geral, dentre outras, a garantia do direito à moradia171.

Em que pese a semelhança entre a usucapião extraordinárao e a usucapião

especial urbana no que tange a desnecessidade de justo título e boa-fé, a

Constituição Federal preceituou o lapso temporal da prescrição aquisitiva em 5 anos

enquanto o Código Civil exigiu 15 (quinze) anos.

A distinção entre as duas modalidades de usucapião, além do lapso

temporal, se dá pelas exigências constitucionais na caracterização da usucapião

especial urbana, quais sejam a área e a destinação específica, demonstram a

preocupação do legislador com o desenvolvimento urbano e com a legalização das

ocupações irregulares, a fim de se evitar o caos nos grandes centros.

Nesse contexto, criou-se a usucapião especial urbana, com área limite de

250m² e destinado à moradia familiar, sendo que seu prescribente não pode possuir

outro imóvel urbano ou rural.

O fato de constar no art. 183 do texto constitucional que estão sujeitos à

prescrição aquisitiva, na forma de usucapião especial urbana individual, os imóveis

urbanos de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), sem a

especificação se trata da dimensão do lote ou da construção gerou algumas

controvérsias em sua interpretação.

Faz-se necessário, no entanto, admitir que quis o doutrinador tratar de lote

de 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) e não construção com essa

metragem, restando certo que as dimensões da edificação sobre o terreno pode

170

ARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 5 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 41 171

Lei 10.257 de 2001, art. 1º e 2º.

Page 103: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

103

inclusive ultrapassar esse valor, não podendo fazê-lo apenas o lote, desde que

cumpridos os demais requisitos.

Evidente que o texto constitucional determina apenas o limite máximo da

área do imóvel ficando o limite mínimo a critério do Plano Diretor do município e da

legislação local de uso e ocupação de solo.

Outra exigência do artigo 183 da Constituição faz menção ao prazo

prescricional. A importância dos prazos prescricionais está nos direitos subjetivos

que geram a partir do início de sua contagem e que não podem ser suprimidos pela

interpretação da norma.

Em áreas urbanas de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) o

lapso temporal é de cinco anos enquanto para áreas maiores usar-se-á a regra da

usucapião extraordinária, ou seja, 15 (quinze) anos, reduzidos, no entanto, para 10

(dez) anos por se tratar de moradia.

Nesse caso, a inércia do proprietário diante da ocupação do imóvel dentro

do prazo prescricional resulta no entendimento de falta de destinação social do

respectivo imóvel, encurtando o lapso temporal para a prescrição de seu direito,

sendo essa a principal característica dos usucapiões especiais.

A exigência da destinação do imóvel à moradia do possuidor ou de sua

família tem como base o direito fundamental à moradia, consagrado pela Declaração

Universal dos Direitos Humanos e consolidada no Brasil no artigo 6º da Constituição

Federal, incluído pela Emenda Constitucional 26 de 14 de fevereiro de 2000.

Ocorre que, antes mesmo da emenda n. 26, o legislador já havia previsto na

Constituição o capítulo “Da Política Urbana”, onde encontra-se o artigo 183 que

preceitua a usucapião especial urbana. Este artigo foi regulamentado pela Lei

10.257/2001, Estatuto da Cidade, e encontra-se arrolado como um dos instrumentos

da política urbana. É nesse contexto que a usucapião, na modalidade especial

urbana, tem como exigência a utilização do imóvel para moradia, sem a qual sequer

pode ser pleiteado.

Cumpridos os requisitos da área e do prazo prescricional, restam ainda as

limitações constitucionais relativas à pessoa do possuidor que não deve possuir

outro imóvel, urbano ou rural, e não deve ter sido beneficiado pela usucapião, em

outro momento172.

172

Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de

Page 104: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

104

As semelhanças entre a usucapião especial urbana e a Legitimação da

Posse são diversas, iniciando na própria lei 11.977/2009 que no art. 60173 menciona

que a conversão do título de legitimação da posse em registro de propriedade se dá

tendo em vista sua aquisição por usucapião nos termos do artigo 183 da

Constituição Federal.

A usucapião tem por função precípua a garantia da legalização do direito à

moradia assegurando que ao imóvel será dada uma função social174. O mesmo

ocorre com a legitimação da posse, no entanto, enquanto naquela utiliza via judicial

esta se dá via administrativa.

Em ambos os casos se faz imprescindível o animus domini, o ato de possuir

o imóvel como se proprietário fosse, e é dispensável o justo título, uma vez que ele é

um negócio jurídico pelo qual se adquire ou se transfere a propriedade e que deve

ser formalizado e devidamente registrado.

Ora, se estamos tratando de instrumentos de regularização fundiária não há

que se falar em documentação legal de transferência de propriedade haja vista que,

se existisse, a situação imobiliária restaria regular dispensando o processo de

regularização.

A semelhança dos institutos estende-se também à possibilidade de

aplicabilidade individual ou coletiva. Ambos são destinados a atender ocupações

informais, em sua grande maioria desordenadas onde frequentemente não se

consegue identificar onde termina um imóvel e começa outro. Se a usucapião

especial urbana admite a modalidade coletiva não encontramos óbices na aplicação

coletiva da legitimação da posse, tendo em vista que o fundamento principal destes

instrumentos é garantir a segurança da posse.

Ainda, respeitando o princípio da função social da propriedade e enquanto

instrumentos de política urbana, os ocupantes não podem ser proprietários de outros

imóveis, além de, no caso da legitimação da posse, não pode ter sido beneficiado

anteriormente nem mesmo concessionário ou foreiro.

sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (grifamos) §2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. 173

Art. 60. Sem prejuízo dos direitos decorrentes da posse exercida anteriormente, o detentor do título de legitimação da posse, após 5 (cinco) anos de seu registro, poderá requerer ao oficial de registro de imóveis a conversão desse título em propriedade, tendo em vista sua aquisição por usucapião, nos termos do art. 183 da Constituição Federal. 174

SAULE JÚNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2004. p.376.

Page 105: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

105

Há também que se mencionar que o fato da usucapião ser um meio de

garantir a segurança da posse via judicial enquanto a legitimação da posse sê-lo via

administrativa não é a única diferença entre esses instrumentos.

Os dois institutos são instrumentos de regularização fundiária que têm por

fundamento a necessidade de prover segurança e paz social no que diz respeito à

moradia, porém enquanto a usucapião especial urbana pode ser proposta

diretamente pelo morador da área, a legitimação da posse depende de iniciativa do

Poder Público.

A usucapião especial urbana, independente de ser individual, em área de até

250m², ou coletivo, área maior que 250m² ocupadas por mais de uma pessoa, tem

sua prescrição aquisitiva em 05 (cinco) anos, podendo ser declarada judicialmente, e

portanto convertida a posse em propriedade, em qualquer momento após esse

prazo. A legitimação da posse de imóvel com até 250m² só inicia sua contagem de

prazo de 05 anos após o registro do título de legitimação da posse em cartório.

Transcorrido esse prazo, o título poderá ser convertido em registro de propriedade.

No entanto, em áreas com mais de 250m², além de não necessariamente ser área

de ocupação coletiva, o prazo a ser considerado para fins de conversão do título de

legitimação da posse em propriedade é o mesmo estabelecido em lei pertinente em

usucapião, no caso específico, por tratar-se de moradia, 10 (dez) anos.

O Projeto de Regularização Fundiária também tem tratamento diferenciado

pelos institutos. Embora seja um instrumento de grande valia para conhecer a área

de intervenção e coordenar estrategicamente todas as atividades necessárias ao

desenvolvimento da regularização fundiária, o projeto só é imprescindível na

legitimação da posse tendo como denominação Projeto de Regularização Fundiária

de Interesse Social.

Possivelmente a principal diferença entre esses dois institutos está no objeto

hábil, especificamente na propriedade do imóvel. A usucapião, qualquer que seja a

modalidade, não pode ser utilizada quando tratar-se de áreas públicas, por força de

preceito constitucional. A legitimação da posse, por sua vez, pode incidir tanto sobre

áreas particulares quanto sobre áreas públicas.

Page 106: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

106

5 EXPERIÊNCIA DE DEMARCAÇÃO URBANÍSTICA E LEGITIMAÇÃO DA POSSE

NA ROCINHA

A escolha do Bairro da Rocinha para estudo de caso na implementação da

demarcação urbanística e legitimação da posse deu-se não somente pelo fato de ser

um dos símbolos das favelas no Brasil, e portanto por sua representatividade, mas

também por ser um dos locais pioneiros no uso desses instrumentos de

regularização fundiária.

A Rocinha situa-se entre os bairros da Gávea e de São Conrado, na zona

sul da cidade do Rio de Janeiro, bairros habitados por população que faz parte da

elite da cidade em razão de seu alto poder econômico, delimitando-se ao sul pela

Auto-Estrada Lagoa-Barra, que a separa de São Conrado, a nordeste pela Estrada

da Gávea, sua via de separação e de conexão com o bairro e a noroeste está

limitada pela mata do Parque Nacional da Tijuca.

Seu território tem área total de aproximadamente 143,72 ha, dos quais onde

66,80%, encontram-se acima da cota de 100m (cem metros), área que não é

permitida a construção por se tratar de área de preservação.

Há considerável contradição entre os diversos mecanismos de índices

quanto ao número de moradores da Rocinha. O censo realizado pelo IBGE em 2010

indicou cerca de 70.000 (setenta mil) habitantes enquanto que o realizado pela

LIGHT, ainda no ano 2000, já apontava 130.000 (cento e trinta mil) habitantes na

localidade. A associação de moradores local menciona a existência de

aproximadamente 200.000 (duzentos mil) moradores na Rocinha em contradição à

pesquisa realizada pelo governo do Estado em 2008 que demonstrou tratar-se de

100.818 (cem mil oitocentos e dezoito) habitantes .

A Rocinha surgiu no final dos anos 1920175 quando parte de sua área foi

loteada em terrenos de 270m² (duzentos e setenta metros quadrados). Inicialmente

foi habitada por operários de fábricas da Zona Sul pois era periférica em relação às

demais áreas centrais da cidade.

Foi por conta do embargo do loteamento pela Prefeitura, e

consequentemente do desinteresse dos proprietários pela área embargada que, em

1937, iniciou-se o processo de “favelização” da Rocinha.

175

SEGALA, Lygia. O riscado do balão japonês. Trabalho comunitário na Rocinha 1977-1982. 152f.1991. Dissertação (Mestrado) - PPGAF/UFRJ, Rio de Janeiro, 1991.

Page 107: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

107

Dados confirmam que inicialmente nestes lotes existiam pequenas

plantações de frutas, legumes e verduras, as quais eram comercializadas em feiras

livres. O que se revela é que os vendedores das mercadorias, quando indagados

acerca da proveniência dos produtos, informavam que era de uma "rocinha" que

existia no alto da Gávea.

Com o tempo esses compradores de pequenas chácaras que não possuíam

a documentação legal para vender seus lotes, foram igualmente fracionando seus

terrenos em pequenas glebas para moradia de seus familiares ou para venda a

terceiros, o que foi feito de forma irregular.

Após a década de 1940, a ocupação passou a ficar cada vez mais densa. As

áreas planas já se encontravam quase que totalmente utilizadas; as pessoas que ali

se instalavam começaram a construir no entorno do morro, nas áreas de proteção

ambiental e de risco, posto que em alguns casos a inclinação passa dos 50%

(cinquenta por cento), ficando as casas absolutamente desprotegidas e à mercê de

ingerências climáticas e da edificação.

A partir de 1960 muitas casas passaram a ser construídas em alvenaria,

uma vez que muitos dos moradores trabalhavam na construção civil e aplicavam as

técnicas, adquiridas nos canteiros de obras, em suas edificações. É fácil constatar

que muitos moradores construíam suas residências com lajes para que estas

pudessem ser comercializadas para construção de novas edificações, sendo comum

a existência hoje de pequenos prédios nos quais cada andar pertence a um

proprietário diferente.

Com o aumento desenfreado e desordenado da população, aliado ao fato de

que muitos moradores vinham com suas famílias de outros Estados, sem dinheiro e

sem lugar para morar começaram as construções de barracos normalmente com a

degradação das encostas do morro, consideradas áreas de proteção ambiental.

Nestas localidades encontram-se, até hoje, moradores de baixíssimo poder

aquisitivo e normalmente nenhuma preocupação com a salubridade.

A Rocinha, assim como grande parte das favelas do Rio de Janeiro, foi

objeto de implantação de políticas públicas de remoção no início dos anos 1970, que

não obtiveram bons resultados tendo em vista que não conseguiram estancar o

crescimento da favela. Já no final dos anos 1970, ignorando a necessidade de

adequação da habitação à realidade urbana, essas políticas públicas demonstraram-

Page 108: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

108

se ineficazes na resolução do problema de déficit habitacional e acabaram sendo

extintas.

A necessidade de reformulação das políticas públicas habitacionais veio à

tona ainda no final da década de 1970 através da formulação de propostas de

urbanização, sendo a Rocinha escolhida como área piloto para implantação de

programa desenvolvido pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social do Rio

de Janeiro.

O modelo proposto pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social do

Rio de Janeiro não previa demolições e remanejamentos com novo desenho da

malha urbana176, lotes e barracos e sim uma nova concepção de urbanização a nível

mais restrito177, com a prestação de serviços básicos.

Outra inovação trazida pela Secretaria foi a participação dos moradores no

processo de urbanização, possibilitando o debate entre os diversos setores

envolvidos no projeto com o intuito de solucionar os problemas habitacionais e

urbanísticos locais.

Aproximadamente na década de 1980 o governo percebeu que não

conseguiria mais fazer a realocação das famílias residentes em áreas de risco tendo

em vista a alta população, a pequena preocupação com políticas públicas de

realocação e a necessidade destes moradores, que eram formados na esmagadora

maioria por pessoas de muito pouca instrução que serviam como mão de obra

barata para o desenvolvimento da cidade, o Poder Público passou a implantar as

primeiras creches, escolas, passarelas, canalização de valas, agência de correios. A

partir daí tornou-se absolutamente necessária a implementação de políticas públicas

para melhoria da qualidade de vida dos moradores.

O que se vê atualmente é que a Rocinha é um bairro predominantemente

residencial, porém existe uma concentração de áreas comercias em algumas vias

principais do bairro, como a Via Ápia e a Estrada da Gávea. Algumas áreas, como o

Bairro Barcellos, constituem centros comerciais, agregando serviços como bancos e

casas lotéricas, além de instituições como locais para cultos diversos, escolas e

creches, tanto no setor informal quanto no formal, além de imóveis de boa

qualidade, o que se contrapõe, por exemplo com a Vila Macega, na qual as casas

176

PARISSE,Lucian. Favelas do Rio de Janeiro: evolução-sentido. Rio de Janeiro: Caderno do Centha 5, 1969. 177

SEGALA, Lygia. O riscado do balão japonês. Trabalho comunitário na Rocinha 1977-1982. 152f.1991. Dissertação (Mestrado) - PPGAF/UFRJ, Rio de Janeiro, 1991.

Page 109: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

109

são, na grande maioria, de madeira, encontram-se em situação de risco sem

infraestrutura, e abrigam famílias que vivem em extrema pobreza.

Verifica-se que o lugar onde se instalaram pessoas de baixa renda e

instrução, que antes fazia parte da periferia do Rio de Janeiro (hoje transformado em

bairro através do Decreto Municipal n.º 6.011/1986), encontra-se entre a Gávea e

São Conrado, bairros que possuem o IPTU mais caro da Cidade e onde reside uma

população de alto poder econômico que compõe parte da elite Fluminense,

pertencendo à Área de Planejamento (AP-2), da XXVII região administrativa 2.

Os problemas do bairro, que é desprovido de regulamentação urbanística e

fundiária, resultante da ocupação desordenada do solo e da falta de infraestrutura e

planejamento, aumentam na medida em que as casas e barracos encontram-se

mais distantes da entradas Lagoa-Barra e da Gávea, como a já citada Vila Macega,

em que a maioria das unidades é construída em madeira e em péssimas condições

de salubridade, posto que existem poucas ruas no interior da favela, sendo comum

que apenas becos, vielas ou escadarias possibilitem o trânsito aos moradores.

Com relação aos serviços públicos, até mesmo os mais essenciais são

escassos ou inexistentes; a maioria da população não possui rede de esgoto, de

água e coleta de lixo. A iluminação das casas e das vias normalmente é feita de

forma clandestina, o que compromete a segurança dos próprios moradores.

Em virtude disso, a regularização fundiária tem que ser realizada de

diferentes maneiras dependendo da área e é preciso traçar uma estratégia para que

os moradores se interessem pela regularização, pois atualmente não pagam

impostos e taxas.

O problema do crescimento desordenado chegou a tal proporção que vem

mobilizando todos os entes da Federação. No caso especial da Rocinha, que já é

um bairro no qual, pelo menos teoricamente, já estão delimitados os espaços

públicos, a situação é caótica, tendo em vista que, além de não serem observadas

técnicas de edificação, a maioria das construções apresenta problemas com relação

à pouca ou nenhuma experiência dos moradores na edificação, sendo comum

encontrar casas em que a cozinha e o banheiro, por exemplo, são agregados,

tornando a insalubridade altamente prejudicial à saúde dos ocupantes da residência.

Existem muitos problemas relacionados à ventilação que as vezes inexiste face a

impossibilidade de construção de janelas.

Diante de todos estes problemas, a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro

Page 110: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

110

desenvolveu para a XXVII Região Administrativa, um Posto de Orientação Técnica

(POT), onde técnicos da Secretaria Municipal de Habitação, Urbanismo, Meio

Ambiente, Desenvolvimento Social, entre outros, auxiliam a população dando

informações e pareceres sobre projetos de construções, que levam em consideração

os espaços públicos, localização, ventilação, disposição dos cômodos, licenças

necessárias e técnicas de edificação. Estes profissionais possuem poder de

fiscalização, portanto, como acompanham os trabalhos dos moradores nas

edificações ou reformas conseguem fazer com que sejam diminuídos dos dados à

saúde pública em geral.

Em parceria com os órgãos públicos, atuam as Organizações não

governamentais que disponibilizam engenheiros, advogados e assistentes sociais,

os quais auxiliam os moradores com relação aos conflitos de vizinhança, processos

judiciais e técnicas edilícias.

Tanto o POT quanto as ONG´s são importantes na medida em que

trabalham com parâmetros técnicos tornando o planejamento mais eficiente e

trazendo uma melhor qualidade de vida para os moradores de acordo com a

legislação urbanística.

Por todas essas informações e contrastes, a Rocinha foi escolhida pela

Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social do Rio de Janeiro como o local para

implantar um projeto piloto fundamentado na regularização fundiária de interesse

social criada pela Lei 11.977/2009.

A ideia é regulamentar as propriedades tal como se encontram com o

mínimo de demolições e remanejamentos, e com a implementação da prestação de

serviços básicos.

Tão logo a Lei 11.977/2009 foi promulgada, houve uma articulação de

diversos atores com o objetivo de implementá-la na Rocinha, nas subáreas de

Cachopa, Dionéia, Pastor Almir, Vila Verde e Trampolim, envolvendo,

aproximadamente, cinco mil famílias.

A Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro junto

com os demais atores, criaram grupos de trabalho destinados a discutir e instituir as

estratégias, procedimentos e diretrizes para aplicação da lei na localidade

selecionada. Resultou então a Portaria n.º 207/2009 que descreve os procedimentos

de atuação dos cartórios de Registro de Imóveis no que concerne a implementação

da lei.

Page 111: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

111

A Fundação Centro de Defesa dos Direitos Humanos Bento Rubião, o

Governo Federal, através do Ministério das Cidades, dentre outras entidades,

desenvolveram o Programa Papel Passado, que reconhece a gravidade do

crescimento informal na cidade e cria condições de Regularização Fundiária

Sustentável.

Este programa visa regularizar as moradias como estão, sejam elas térreas,

construídas nas lajes e até mesmo as de difícil acesso. Para tanto as Associações

de Moradores das Comunidades foram chamadas a participar do processo, posto

que seus representantes possuem maior acesso com os moradores e conseguem

fazê-los entender a importância da regularização fundiária, além de auxiliar às

comunidades ameaçadas de remoção, promovendo a correta organização

urbanística do ponto de vista técnico, ambiental e de saúde.

Em 2010, a Fundação Bento Rubião, assessorada pela Secretaria Municipal

de Habitação, por meio da Gerência de Regularização Urbanística e Fundiária,

elaborou um Auto de Demarcação Urbanística que foi devidamente registrado no 2º

Ofício de Registro de Imóveis do Rio de Janeiro, em novembro de 2010.

O que se pretendia é que, em ato subsequente, a Prefeitura Municipal

emitisse o título de legitimação da posse e providenciasse seu registro, para que, em

cinco anos fossem os cinco mil moradores beneficiados com os primeiros títulos de

propriedade na Rocinha, atendendo ao Acordo de Cooperação Técnica firmado

entre os governos federal, estadual e municipal do Rio de Janeiro.

A próxima etapa do processo seria a emissão do título de legitimação da

POSSE; SOUBE-SE, PORÉM, ATRAVÉS DA Fundação Bento Rubião, que após o

registro do Auto de Demarcação Urbanística não foi tomada nenhuma outra

providência. Foi feito contato com a Secretaria Municipal de Habitação da Prefeitura

do Rio de Janeiro, que não soube informar o motivo pelo qual não foi dada

continuidade aos trabalhos de Regularização Fundiária na Rocinha.

Não adentrando ao mérito da escolha do instrumento a ser utilizado na

regularização fundiária da Rocinha, até porque ele se tratava de projeto piloto da lei

11.977/2009, tem que um dos objetivos da lei, em especial da legitimação da posse,

qual seja agilizar e facilitar os procedimentos de regularização, não foi respeitado,

tampouco cumprido.

A dificuldade no uso da legitimação da posse encontra-se perfeitamente

caracterizada nesse caso. Sendo a demarcação e a legitimação instrumentos a

Page 112: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

112

serem aplicados pelo Poder Público, especialmente quando se trata de emissão de

título de legitimação da posse, nada podem os moradores fazer à respeito, exceto

manifestarem-se contra a inércia da Administração Pública.

Tivessem os moradores sido orientados para ajuizamento de Ação de

Usucapião, ou mesmo para requerer CUEM, talvez, e aqui se trata somente de uma

hipótese, já estivessem de posse de seus títulos.

Nada obsta, no entanto, que os entes envolvidos no Projeto de

Regularização Fundiária da Rocinha orientem as famílias, ou melhor ainda,

procedam eles mesmos devidamente para que os moradores da área de intervenção

sejam atendidos através de Ação de Usucapião ou CUEM.

Embora o advento da Lei 11.977/2009 e sua regularização fundiária de

interesse social tenham trazido mais solidez à nova ordem urbanística e mais

efetividade à garantia do direito à moradia, projetos iniciados e não concluídos,

como é o caso da Rocinha, fazem o processo de regularização cair em descrédito,

especialmente com os moradores da área de intervenção. Não é difícil encontrar

moradores que se recusam a participar de processos de regularização fundiária

porque deixaram de acreditar nos atos do Poder Público.

A esse Poder, no exercício de sua função administrativa, cabe o dever de

agir, promovendo políticas públicas que visem a melhoria das condições de vida na

cidade, o que inclui implementar a regularização fundiária de assentamentos

irregulares de baixa renda.

Enquanto o Poder Público não adotar políticas públicas e ações para tornar

efetivo o direito à moradia, buscando exterminar a segregação social existente

principalmente nos grandes centros urbanos, os moradores das ocupações

irregulares, assim como os moradores das áreas urbanizadas, não conhecerão o

significado de cidade sustentável.

Page 113: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

113

6 CONCLUSÃO

As ocupações irregulares são resultado da falta de planejamento e gestão

das áreas urbanas por parte do Poder Público. Por consequência, os moradores

dessas áreas sofrem com a falta de segurança da posse e, muito frequentemente,

com a péssima qualidade de vida e raríssimas, ou nenhuma, condições de

habitabilidade.

A especulação imobiliária, a ausência de legislação urbanística municipal ou

mesmo a dificuldade de implementá-la quando existente, colaboraram para tornar a

ocupação informal uma opção de moradia para grande parte da população de baixa

renda.

As raízes dessa segregação espacial urbana está nos primórdios da

distribuição de terras no Brasil. Historicamente, desde que Portugal iniciou a

ocupação das terras brasileiras, utilizando das sesmarias como método de

colonização, elas repousaram nas mãos daqueles que detinham maior poder

aquisitivo, independente do cumprimento de sua função social.

A regularização fundiária surge então como remédio a essas mazelas.

Baseada na garantia do direito fundamental à moradia, a regularização fundiária

deve promover a inclusão social e o desenvolvimento sustentável, através de suas

dimensões de urbanização e legalização das ocupações, assegurando

infraestrutura, condição de habitabilidade e segurança jurídica da posse aos

moradores.

No Brasil, o direito à moradia surgiu com o reconhecimento dos tratados

internacionais, no entanto, só constou expressamente na Constituição Federal no

ano 2000, a partir da Emenda Constitucional n.º 26/2000.

Passou, então, o direito à moradia ao status de direito fundamental exigindo

uma postura ativa do Estado, através de ações efetivas que protejam e concretizem

tal direito, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Como legislação infraconstitucional, o Estatuto da Cidade consolidou a

garantia do direito à moradia na ordem jurídica vigente, ao apresentar como

diretrizes gerais da política urbana, entre outras, a regularização fundiária de áreas

ocupadas por população de baixa renda.

Mas é com o advento da Lei 11.977/2009 que a regularização fundiária foi

devidamente regulamentada, em especial a regularização fundiária de interesse

Page 114: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

114

social, trazendo ao ordenamento jurídico brasileiro dois novos instrumentos a serem

usados nesses casos.

A demarcação urbanística178 e a legitimação da posse179 foram criadas com

o intuito de agilizar e viabilizar o processo de regularização fundiária de interesse

social180, sem a necessidade de intervenção judicial. Esses novos instrumentos de

regularização fundiária permitem que a ocupação irregular seja tratada conforme se

deu sua consolidação.

Reside aqui a importância da ZEIS. Embora não se faça imprescindível que

a área objeto de intervenção seja declarada Zona Especial de Interesse Social, é de

extrema importância que assim o seja. Em sua grande maioria, as ocupações

irregulares não respeitam as normas de parcelamento, uso e ocupação do solo das

demais áreas da cidade, podendo o Poder Público através da ZEIS implementar

normas específicas para a regularização dessas áreas.

Embora sejam vários os entes que podem implementar a regularização

fundiária de interesse social, algumas etapas desse processo só podem ser

desenvolvidas pelo município, como é o caso do Auto de Demarcação Urbanística,

da emissão do título de legitimação de posse e da aprovação do projeto de

regularização fundiária.

Há que se falar que o título de legitimação de posse apenas poderá ser

convertido em propriedade decorridos cinco anos da data de registro do título, por

solicitação do beneficiário.

Cabe, portanto, uma observação de ordem prática. Respeitadas as demais

exigências legais, em se tratando de área particular ocupada e estando o morador

na posse do imóvel por, ao menos, cinco anos, sem oposição, talvez seja mais

eficaz utilizar a Usucapião Especial Urbana que, além de não necessitar de Auto de

Demarcação Urbanística, pode ser proposta pelo próprio morador.

178

Art. 47 [...] III – demarcação urbanística: procedimento administrativo pelo qual o poder público, no âmbito da regularização fundiária de interesse social, demarca imóvel de domínio público ou privado, definindo seus limites, área, localização e confrontantes, com a finalidade de identificar seus ocupantes e qualificar a natureza e o tempo das respectivas posses. 179

Art. 47 [...] IV – legitimação de posse: ato do poder público destinado a conferir título de reconhecimento de posse de imóvel objeto de demarcação urbanística, com a identificação do ocupante e do tempo e natureza da posse. 180

Art.47 [...] VII – regularização fundiária de interesse social: regularização fundiária de assentamentos irregulares ocupados, predominantemente, por população de baixa renda, nos casos: a) em que a área esteja ocupada, de forma mansa e pacífica, há, pelo menos, 5 (cinco) anos; b) de imóveis situados em ZEIS; ou c) de áreas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios declaradas de interesse para implantação de projetos de regularização fundiária de interesse social.

Page 115: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

115

Em área pública, também respeitadas as demais exigências, embora não

possa utilizar a usucapião como alternativa à legitimação da posse, o morador

poderá requerer a Concessão Especial de Uso para fins de moradia que não

depende de iniciativa do Poder Público, que restará obrigado à emissão quando

cumpridos todos os demais requisitos.

A opção, quando existente, pelo uso de um ou outro instrumento deve

atender e respeitar a realidade da ocupação irregular de população de baixa renda.

Não se deve optar antes do conhecimento pleno de todas as circunstâncias

atinentes à área de intervenção, sob pena de não concluir o processo de

regularização fundiária.

Por fim, é importante mencionar que, com o advento dos instrumentos

Demarcação Urbanística e Legitimação da Posse, o Poder Público passou a dispor

de um leque ainda maior de possibilidades para a implementação da regularização

fundiária de interesse social. Todas essas possibilidades têm em comum o respeito

ao princípio da função social da cidade, à função social da propriedade e à

viabilização de acesso ao direito à moradia.

Page 116: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

116

REFERENCIAS

ALEXY, Robert. Colisão de Direitos Fundamentais e Realização de Direitos Fundamentais no Estado de Direito Democrático. Revista de Direito Administrativo, n. 217, Rio de Janeiro, jul/set 1999. ALFONSIN, Betânia de Moraes. Direito à Moradia: Instrumentos e Experiências de Regularização Fundiária nas Cidades Brasileiras. Rio de Janeiro: Observatório de Políticas Urbanas, IPPUR, 1997. ______. Dos instrumentos da política urbana. In: MATTOS, Liana Portilho (Org.) Estatuto da Cidade comentado. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. ALVES, José Carlos Moreira. Posse: Evolução Histórica. Rio de Janeiro: Forense, 1999. ANTUNES, Ricardo. A era da informatização e a época da informalização: riqueza e miséria do trabalho no Brasil. In: ANTUNES, Ricardo (Org). Riqueza e miséria do Trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006. BESSONE, Darcy. Da Posse. São Paulo: Saraiva, 1996. BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense,1956. BOBBIO, Norberto. A era do direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BRASIL. Lei 11.977 de 7 de julho de 2009. Dispõe sobre o Programa Minha Casa Minha Vida - PMCMV e a Regularização Fundiária de Assentamentos localizados em áreas urbanas; altera o Decreto-lei n.º 3.365, de 21 de junho de 1941, as leis nº 4.380, de 21 de agosto de 1964, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 8.036, de 11 de maio de 1990 e 10.257 de 10 de julho de 2001, e Medida Provisória nº 2.197-43, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil, Brasília, DF, 07 jul. 2009. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11977.htm>. Acesso em: 12 fev. 2012. ______.Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001: regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal: estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências: Estatuto da Cidade. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil,

Page 117: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

117

Brasília, DF, 10 jul. 2001. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm>. Acesso em: 12 fev. 2012. ______.Lei 4.504 de 30 de novembro de 1964: dispõe sobre o Estatuto da Terra e dá outras providências. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil, Brasília, DF, 30 nov. 1964. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4504compilada.htm>. Acesso em 01 de fevereiro de 2012. ______.Constituição (1988). Constituição [da] Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 12 fev. 2012. ______.Decreto-lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946: dispõe sobre os bens imóveis da União e dá outras providências. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil, Brasília, DF, 05 set. 1946. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/Decreto-Lei/Del9760.htm>. Acesso em: 4 jan. 2012. ______.Lei 601 de 18 de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil, Brasília, DF, 18 set.,1850. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim601.htm>. Acesso em: 4 jan. 2012. ______.Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de fevereiro de 1891. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil, Brasília, DF, 24 fev 1981. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao91.htm>. Acesso em: 14 dez. 2011. ______.Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 16 de julho de 1934. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 jul. 1934. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao34.htm>. Acesso em: 15 nov. 2011. ______.Lei 10.931 de 02 de agosto de 2004. Dispõe sobre o patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias, Letra de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Bancário e dá outras providências. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil, Brasília, DF, 02 ago. 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.931.htm>. Acesso em: 10 out. 2011.

Page 118: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

118

______.Lei 6.766 de 19 de dezembro de 1979. Dispõe sobre o parcelamento do Solo Urbano e dá outras providências. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil, Brasília, DF, 19 dez 1979. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6766.htm>. Acesso em: 15 nov. 2011. ______.Lei 3.365 de 21 de junho de 1941. Dispõe sobre desapropriações de utilidade pública. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil, Brasília, DF, 21 jun. 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3365.htm>. Acesso em: 15 nov. 2011. _________. Lei 4.132 de 10 de setembro de 1962. Define os casos de desapropriação por interesse social e dispõe sobre sua aplicação. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil, Brasília, DF, 10 set. 1962. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3365.htm>. Acesso em: 15 nov. 2011. ______.Lei 3.071 de 1 de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil, Brasília, DF, 01 jan. 1916. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm>. Acesso em: 01 fev. 2012. ______.Lei 12.424 de 16 de junho de 2011: altera a lei 11.977/ que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas, as Leis nºs 10.188, de 12 de fevereiro de 2001, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 4.591, de 16 de dezembro de 1964, 8.212, de 24 de julho de 1991, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil; revoga dispositivos da Medida Provisória nº 2.197-43, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 jun., 2011. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/lei/2011/lei-12424-16-junho-2011-610816-publicacaooriginal-132847-pl.html>. Acesso em: 12 fev. 2012. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3.ed. Coimbra: Almedina, 1998. COCCARO FILHO, Celso Augusto. Usucapião especial de imóvel urbano: instrumento da política urbana. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 437, 17 set. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/5709>. Acesso em: 12 fev. 2012. CONTAG. Posição da CONTAG sobre o programa nacional de política fundiária. Brasília: CONTAG, 1982.

Page 119: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

119

DALLARI, Adilson Abreu. Instrumentos da Política Urbana. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (Org.). Estatuto da Cidade: comentários à lei 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2006. DI SARNO, Daniela Campos Libório. Audiência Pública na gestão democrática da política urbana. In: DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO; Daniela Campos Libório (Coordenadores). Direito Urbanístico e Ambiental. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2011. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Concessão de Uso Especial para fins de moradia. In: Estatuto da cidade Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 18. ed. aum. atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei nº. 10.406 de 10-1-2.002). São Paulo: Saraiva, 2002. ______. Curso de direito civil brasileiro. 22.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. DUGUIT, Pierre Marie Nicola Léon. Les Transformations du Droit Public. Paris: La Mémoire du Droit, 1999. FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea (uma perspectiva da usucapião rural). Porto Alegre: Fabris, 1988. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: Formação do patronato brasileiro. São Paulo: Globo, 1996. FERNANDES, Edésio. Política Nacional de Regularização Fundiária: contexto, proposta e limites. In: Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, n. 56, p. 245-246, jan./jun., 2004. ______ (org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

Page 120: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

120

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1979. GOMES, Orlando. Direito das Coisas. 18.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. GONÇALVES, Vania Mara Nascimento. Estado, Sociedade Civil e Princípio da Subsidiariedade na Era da Globalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. HIRANO. Sedi. Pré-capitalismo e capitalismo. São Paulo: Hucitec, 1988. HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. IANNI, Octávio. Ditadura e agricultura: O desenvolvimento do capitalismo na Amazônia: 1964-1978. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. IHERING, Rudolf von. Teoria Simplificada da Posse. Belo Horizonte: Líder, 2004. JONES, Alberto da Silva. Acumulação primitiva e cercamento dos campos na agricultura brasileira: uma hipótese de trabalho. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa, 1987. LACERDA, Linhares de. Tratado das Terras do Brasil. Rio de Janeiro: Alba, 1960. LAFAYETTE, Rodrigues Pereira. Direito das Coisas. Brasília: Senado Federal, Superior Tribunal de Justiça, 2004. LEAL, Rogério Gesta. Direito Urbanístico: Condições e Possibilidades da Constituição do Espaço Urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. LEITE, Celso Barroso. A proteção Social no Brasil. São Paulo: LTR, 1972. LIMA, Ruy Cirne. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas. Porto Alegre: Sulina, 1954. LUÑO, Antonio Enrique Pérez Luño. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. 6 ed. Madrid: Tecnos, 1999.

Page 121: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

121

MARTINS, José de Souza. O poder do atraso: Ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo: Hucitec, 1994. MELLO, Celso Antônio Bandeira. Eficácia das Normas Constitucionais sobre Justiça Social. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 57/58, 1981. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 32.ed. São Paulo: Malheiros, 2006. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 2.ed. Coimbra: Coimbra, 1993. MITTEIS, H.; LIEBERICH, H. Deutsches Privatrecht. H. Beck‟sche Verlagsbunchhandlung: München und Berlin, 1959. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Direito das Coisas. 37.ed. São Paulo: Saraiva, 2003. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Atlas, 2002. MOREIRA, Tomás. A política habitacional e fundiária no Brasil. Terra urbana para políticas sociais: aquisição e desapropriação. São Paulo: LabHab e Lincoln Institute of Land Policy, 2002. NASCIMENTO, Tubinambá Miguel Castro do. Usucapião (comum e especial). 5.ed. Rio de Janeiro: Aide, 1986. SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes. Direito à moradia e de habitação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Hermenêutica e Tutela da Posse e da Propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006. OSÓRIO, Letícia Marques. Osório (Org.). Estatuto da Cidade e reforma urbana: Novas Perspectivas para as Cidades Brasileiras. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.

Page 122: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

122

PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das coisas. Brasília: SEEP, Senado Federal, 2004. PLANITZ, H. Principios de Derecho Privado Germánico, Barcelona: Casa Editorial, 1957. PORTO, Costa. Estudo sobre o sistema Sesmarial. Recife: Imprensa Universitária, 1965. PRADO JUNIOR, Caio. Evolução Política do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1977. REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. ROCHA, Silvio Luis Ferreira. Função social da propriedade pública. São Paulo: Malheiros, 2005. SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens móveis e imóveis. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. SALVIOLI, G. Manuale di Storia Del Diritto Italiano. Torino: Unione Tipográfico, 1899. SANTOS, Cacilda Lopes dos. Novas perspectivas do instrumento da desapropriação: a incorporação dos princípios urbanísticos e ambientais. 2007. 132f. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 5 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. ______. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

Page 123: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

123

______. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos Fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. ______. Os Direitos Fundamentais Sociais Na Constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, v. 1, n. 1, p.8-10, 2001. SAULE JUNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre: Fabris, 2004. SEGALA, Lygia. O riscado do balão japonês. Trabalho comunitário na Rocinha 1977-1982. 152f.1991. Dissertação (Mestrado) - PPGAF/UFRJ, Rio de Janeiro, 1991. SÉGUIN, Elida. Estatuto da Cidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. ______.Comentário Contextual da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005. ______. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. SILVA, Ligia Osório. Terras devolutas e latifúndio. Campinas: Unicamp, 2008. SIMONSEN, Roberto. História Econômica do Brasil: 1500-1820. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978. SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001. TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janiero: Renovar, 2006. TEPEDINO, G.; SCHREIBER, A. A garantia da propriedade no direito brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Campos, São Paulo, v. 6, n. 6, jun. 2005. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/25148569/a-garantia-da-propriedade-no-direito-brasileiro-Tepedino-e-Anderson-Schreiber-101>. Acesso em: 04 jan. 2012.

Page 124: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...GALMACCI, Thanyelle. The Demarcation Urban and Legitimation of Possession as instruments of Landed Regularization of Social Interest.São

124

THEODORO Júnior, Humberto. Posse e Usucapião (Direitos Reais I, Doutrina e Jurisprudência). Rio de Janeiro: Aide, 1991.

TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A propriedade e a Posse: Um confronto em torno da Função Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.