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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP MESTRADO EM DIREITO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO E INSEGURANÇA JURÍDICA: A linguagem do código versus a linguagem do CARF na operação “casa e separa” Eduardo Tadeu Francez Brasil SÃO PAULO 2012

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP ... · professor Tácio Lacerda Gama, pelos cursos de Teoria Geral do Direito e aulas de Lógica, tão bem ministradas;

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP

MESTRADO EM DIREITO

PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO E INSEGURANÇA JURÍDICA: A linguagem do código versus a linguagem do CARF

na operação “casa e separa”

Eduardo Tadeu Francez Brasil

SÃO PAULO 2012

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP

MESTRADO EM DIREITO

PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO E INSEGURANÇA JURÍDICA: A linguagem do código versus a linguagem do CARF

na operação “casa e separa”

Eduardo Tadeu Francez Brasil

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), sob orientação do Professor-Doutor Paulo de Barros Carvalho.

SÃO PAULO 2012

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________

_______________________________________

_______________________________________

Dedico esta dissertação a meu pai, Judas Tadeu Brasil, meu exemplo de homem; a minha mãe, Maria Helena Brasil, por ter cuidado de mim em todos os momentos de minha vida; a minha esposa, Paola Brasil, por me tornar uma pessoa melhor, a quem eu amo tanto; a Paulo de Barros Carvalho, mestre e amigo que me ensinou a pensar o Direito.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por tudo que faz em minha vida.

A meus pais, que me ensinaram, desde cedo, que é por intermédio do estudo que

se consegue alcançar qualquer objetivo traçado. Amo vocês. A Paola, por me incentivar e

sempre acreditar em mim quando eu mesmo duvidava; você é a razão de tudo. A meu irmão

Henrique Brasil, por ser o elo que sempre me unirá a nossos pais.

Ao professor Paulo de Barros Carvalho, que, além da imensa sabedoria jurídica

que nos transmite a cada palavra enunciada, possui virtude de poucos: colaboração com as

pessoas desconhecidas.

Quando cheguei a São Paulo, tinha um sonho: realizar o Mestrado em Direito

Tributário. Procurei alguns amigos de Belém (PA) para que me ajudassem em tal empreitada.

Não pretendia crescer sem merecimento, queria apenas oportunidade na vida profissional e

acadêmica. Alguns afirmavam: “É impossível para você, não se envolva com isso”; outros

agiram com indiferença. O professor Paulo, sem nunca me ter visto, estendeu-me as mãos.

Mestre, saiba que nesse dia você ganhou um amigo e admirador. O senhor ajudou alguém sem

esperar nada em troca. Muito obrigado.

Agradeço a meus “pais/sogros”, Paulo e Silvana, por colaborar e torcer pelo

sucesso desta empreitada. Amo vocês.

Não tenho palavras para agradecer ao amigo e professor Fernando Gomes

Favacho. Enumero: I – recebia-me toda semana de braços abertos em sua casa, quando vinha

semanalmente de Belém a São Paulo assistir às aulas do Mestrado na PUC-SP; II – sem me

conhecer, ajudou-me, sem nenhum interesse outro, a entrar no tão concorrido Mestrado de

Direito Tributário da PUC-SP; III – auxiliou-me diretamente na feitura deste trabalho,

trocando ideias, corrigindo o texto e me incentivando. Vertendo em linguagem o que estou

sentindo: amigo de todas as horas.

Ao amigo Georgenor Franco Neto, que me recebia também em casa

semanalmente para que eu cursasse os créditos do Mestrado. Amigo de longa data, meu

padrinho de casamento. Pessoa que protocolou esta dissertação na PUC-SP. Sem você não

haveria linguagem competente constituidora dos requisitos necessários à participação em

arguição oral a ser realizada pela Banca Examinadora. Item indispensável à obtenção do título

de Mestre em Direito Tributário. Muito obrigado.

Ao amigo Álvaro Cesar, com quem morei em São Paulo em meados de 2008,

conhecedor do quanto eu desejava este dia. Sinto falta dos debates acerca dos limites do

Direito e da Economia. Obrigado por também me receber em sua casa.

Ao amigo Michel Haber Neto, que igualmente me ajudou a revisar este trabalho,

sempre com ideias brilhantes.

Agradeço ao colega Pedro Afonso Gomes Braga, que colaborou na pesquisa

empírica das decisões do CARF.

A meus professores de Mestrado. Em especial à professora Clarice von Oertzen

de Araújo, que “abriu” minha mente com as aulas de semiótica; ao professor Robson Maia

Lins, pela simplicidade e sabedoria para ensinar os fundamentos da incidência normativa; ao

professor Tácio Lacerda Gama, pelos cursos de Teoria Geral do Direito e aulas de Lógica, tão

bem ministradas; à professora Fabiana Del Padre Tomé, por ter me dado a oportunidade de

poder viver a experiência de ser professor assistente em Direito Tributário no curso de

especialização da PUC/COGEAE.

Agradeço, ainda, aos professores Rodrigo Dalla Pria, professora Florence Haret

e Aurora Tomazini de Carvalho, professora de especialização que me introduziu no

Construtivismo Lógico-Semântico.

Agradeço a Rodrigo Favacho por ter me recebido em casa durante quinze dias

para que fosse concluída esta dissertação. Obrigado pela recepção e amizade.

Por fim, não sendo menos importante, agradeço a meus amigos de trabalho

Gustavo, Adriano, Milton e Marcella, por me “permitirem” passar tanto tempo longe do

escritório e por estar em “terras paraenses” torcendo pelo meu sucesso. Em nome de quem

estendo o agradecimento a todos os colegas de trabalho.

RESUMO

BRASIL, Eduardo Tadeu Francez. Planejamento tributário e insegurança jurídica: a linguagem do código versus a linguagem do CARF na operação “casa e separa”. São Paulo, 2012. Dissertação (Mestrado em Direito Tributário) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), 2012. 203 f.

Este estudo investiga as normas gerais e abstratas do Direito Positivo brasileiro, que permitem e proíbem aos particulares realizar o planejamento tributário. Examina-se a Constituição Federal, o Código Tributário Nacional e o Código Civil. Utiliza-se como premissa teórica o Construtivismo Semiótico com seu instrumental: teoria dos valores; autorreferência da linguagem; enunciação, enunciação-enunciada, enunciado-enunciado; autopoiese do sistema jurídico; estudo da incidência e da aplicação do Direito; o conceito de norma jurídica e a descrição do funcionamento do Sistema Constitucional Tributário. Em um segundo momento, são observadas as decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) em relação ao modelo de operação “casa e separa” no período de 2004 a 2010, com a finalidade de identificar um padrão de comportamento que tornam as operações realizadas pelos particulares como sendo oponíveis ou não ao fisco, verificando-se, também, a subsunção realizada por esse órgão administrativo. A pesquisa demonstra em que normas gerais e abstratas o CARF fundamenta as decisões e qual significação estipula para os conceitos que utiliza. O intuito é comparar a linguagem das normas gerais e abstratas, postas por um viés construtivista, com a linguagem das normas individuais e concretas expedidas pelo CARF. Conclui-se que existe o “descolamento da realidade jurídica” quando do diálogo entre esses dois extratos de linguagem. Afirma-se que o desvalor insegurança jurídica sobressai ao seu contraponto segurança, pois há a criação de dois corpos de linguagens antagônicos, em que a linguagem da concreção não encontra substrato em norma geral e abstrata pertencente ao atual sistema de Direito Positivo brasileiro.

Palavras-chave: Planejamento Tributário. Segurança Jurídica. Operação Casa e Separa.

CARF.

ABSTRACT

BRASIL, Eduardo Tadeu Francez. Tax planning and legal insecurity: code language versus CARF (Brazilian Federal Board of Tax Appeals) language on merger and spin off transactions. São Paulo, 2012. Dissertação (Mestrado em Direito Tributário) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), 2012. 203 f.

This study investigates the general and abstract Positive Law rules that allow and don’t allow individuals to perform tax planning. It examines the Brazilian Federal Constitution, the Brazilian National Tax Code and the Brazilian Civil Code. It is used as theoretical premise the semiotic constructivism, with its theoretical tools: theory of the values; language self-reference, enunciation, enunciation-enunciated, enunciated-enunciated; legal system autopoiesis; incidence and application of the law; concept of law norms and description of the functioning of the constitutional tax system. In a second moment, the decisions of the Brazilian Board of Tax Appeals (CARF) are analysed – about the “merger and spin off” operation model for the period 2004 to 2010, in order to identify a behavior pattern that makes the operations performed by individuals as being enforceable or not to the revenue service and there is also the subsumption by the Government. That is, where the general and abstract rules CARF bases its decisions and which provides meaning to the concepts it employs. The aim is to compare the general and abstract language, as a constructivism bias, to the concrete and individual language standards issued by CARF. It is concluded that there is a “decoupling of the legal reality” about the dialogue between the two groups of languages. It is said that the legal uncertainty stands opposed to its safety, because there is a creation of two antagonistic body language and the language of the concrete isn’t compatible with the general and abstract norm belonging to the current system of Positive Law in Brazil.

Keywords: Tax Planning, Legal Security, Merger and Spin off Transactions, CARF.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 9 CAPÍTULO I PREMISSAS EPISTEMOLÓGICAS ........................................................................ 14 1.1 OBJETO E MÉTODO ............................................................................................. 14 1.2 A AUTORREFERÊNCIA DA LINGUAGEM ....................................................... 18 1.3 O DIREITO VISTO COMO SISTEMA AUTOPOIÉTICO ................................... 20 1.4 DIALOGISMO ........................................................................................................ 22 1.5 INCIDÊNCIA E APLICAÇÃO DO DIREITO ....................................................... 23 1.6 ENUNCIAÇÃO, ENUNCIAÇÃO-ENUNCIADA, ENUNCIADO-ENUNCIADO 25 1.7 FUNCIONAMENTO DO SUBSISTEMA TRIBUTÁRIO .................................... 28 1.8 PRINCÍPIO, VALOR, NORMA JURÍDICA E MODELOS HERMENÊUTICOS 31 1.8.1 Teoria dos valores ............................................................................................... 33 1.8.2 O psicologismo axiológico, interpretação sociológica dos valores, ontologismo axiológico, historicismo axiológico ............................................................................. 34 1.8.3 Características lógicas dos valores .................................................................... 36 1.8.4 Definição de valor ............................................................................................... 38 1.8.5 Valor e direito ..................................................................................................... 39 1.8.6 Norma jurídica .................................................................................................... 41 1.8.7 Ainda sobre norma jurídica: uma visão fundamentada na filosofia da linguagem e na Teoria Geral do Direito .......................................................................................... 41 1.8.8 Tractatus Logico-philosophicus ........................................................................ 42 1.8.9 Neopositivismo lógico ......................................................................................... 45 1.8.10 Investigações filosóficas: giro linguístico pragmático ................................... 46 1.8.11 Modelo hermenêutico de Carlos Maximiliano ............................................... 48 1.8.12 Modelo hermenêutico de Paulo de Barros Carvalho .................................... 51 1.8.13 Diferença e aproximação entre os modelos de Carlos Maximiliano e Paulo de Barros Carvalho .......................................................................................................... 56 1.8.14 Realização dos valores no Direito ................................................................... 60 1.8.15 Conclusão parcial ............................................................................................. 60 CAPÍTULO II PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ........................................................................... 62 2.1 GRAMÁTICA HISTÓRICA DA EXPRESSÃO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO 62 2.2 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO 67 2.2.1 Segurança jurídica e planejamento tributário ................................................. 67 2.2.2 Liberdade de iniciativa e o planejamento tributário ....................................... 70 2.2.3 Capacidade contributiva e o planejamento tributário .................................... 78 2.2.4 Legalidade tributária e o planejamento tributário ......................................... 84 2.3 DIREITO DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL ........................................... 87 2.3.1 Análise do artigo 116, parágrafo único do CTN .............................................. 87 2.3.2 Análise do artigo 149, VII e artigo 150, § 4º do CTN ...................................... 94 2.3.3 Artigo 13 e 14 da Medida Provisória nº 66 e a exposição de motivos da Lei Complementar nº 104/2001 ......................................................................................... 99 2.4 DIREITO DO CÓDIGO CIVIL .............................................................................. 102 2.4.1 Conceituação de atos e negócios jurídicos ........................................................ 102 2.4.2 Artigo 112 e 113 do Código Civil ....................................................................... 111

2.4.3 Artigo 104 do Código Civil ................................................................................ 112 2.4.4 Fraude à lei .......................................................................................................... 118 2.4.5 Negócio jurídico indireto ................................................................................... 120 2.4.6 Simulação e dissimulação no Código Civil ....................................................... 122 2.4.7 Abuso de direito e as “cláusulas gerais” do Direito privado .......................... 127 2.4.8 Erro ou ignorância, dolo, coação, lesão, estado de perigo, fraude contra credores............................... ......................................................................................... 130 2.4.9 Abuso de forma e propósito negocial ................................................................ 131 2.5 DIREITO DA JURISPRUDÊNCIA ADMINISTRATIVA .................................... 135 2.5.1 Análise da estruturação do modelo “casa e separa” ...................................... 135 2.5.2 Caso KLABIN ..................................................................................................... 138 2.5.3 Caso NACIONAL ............................................................................................... 142 2.5.4 Caso SOPACO .................................................................................................... 147 2.5.5 Caso SHOPPING ................................................................................................ 153 2.5.6 Caso 1770 ............................................................................................................. 158 2.5.7 Caso CCLPL ....................................................................................................... 162 2.5.8 Caso LEA ............................................................................................................ 165 2.5.9 Caso TAVARES .................................................................................................. 169 2.5.10 Caso CCLSP ...................................................................................................... 167 2.5.11 Caso FEIJÓ ....................................................................................................... 173 2.5.12 Caso MARAMBAIA ........................................................................................ 177 2.5.13 Análise conjunta dos casos: propriedades e subsunção ................................ 179 3 CONCLUSÃO ........................................................................................................... 186 3.1. ENTRE O DIREITO DE NÃO PAGAR E O DEVER DE PAGAR TRIBUTOS . 186 3.2 O DESCOLAMENTO DA REALIDADE .............................................................. 187 3.3 CONCLUI-SE ......................................................................................................... 191 REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 195 ANEXO 1 – Portaria nº 74, de 05 de abril de 2002................................................... 202

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INTRODUÇÃO

Há longa data, Fisco e contribuintes travam batalhas tributárias. Aquele consegue

sucessivos recordes de arrecadação a cada ano; e estes, a todo átimo, tentam pagar a menor

quantia possível a título de tributo. Essa é uma constante histórica.

No Brasil, o cenário não é diferente. Quanto maior o aumento da arrecadação, maiores

são as disputas tributárias no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal

Federal (STF). Demandas que poderão gerar aos cofres públicos déficit de grande monta caso

os contribuintes sejam constituídos vencedores.

Nesse contexto, aparece o planejamento tributário, que, grosso modo, é a conduta do

contribuinte consistente em programar a vida para não pagar ou pagar a menor carga tributária

possível.

A evolução dos negócios e a velocidade de informação são fatores que contribuem

para a sofisticação das técnicas de planejamento tributário utilizadas, principalmente, pelas

grandes corporações.

Não há dúvidas de que a evolução negocial não é acompanhada pela modernização da

arrecadação tributária em todos os níveis de Governo (Federal, Estadual, Municipal e

Distrital).

Um dos principais instrumentos utilizados pelo Fisco para evitar a perda de

arrecadação consiste na desconsideração e requalificação de atos ou negócios jurídicos

praticados pelos contribuintes.

O limite à atuação do Fisco é o próprio sistema de Direito Positivo brasileiro.

Incontroverso que a Constituição Federal de 1988 (CF/1988), o Código Tributário Nacional

(CTN), o Código Civil (CC), leis complementares, leis ordinárias, decretos, regulamentos,

instruções normativas, portarias e as próprias decisões jurisprudenciais compõem o sistema de

Direito Positivo brasileiro.

Teorias dogmáticas, econômicas, políticas, filosóficas e estrangeiras não pertencem

aos domínios do Direito Positivo brasileiro. Não podem servir, por si só, como fundamento de

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construção de nenhuma norma jurídica. Deve existir suporte1 legal positivado dentro do

sistema que possibilite a criação de determinado conteúdo normativo.

Assim, esta pesquisa se propõe a responder às perguntas abaixo.

a) O conjunto de normas individuais e concretas expedidas pelo Conselho

Administrativo de Recursos Fiscais2 (CARF) relacionadas ao modelo de operação

denominado “casa e separa” durante o período de 2004 a 2010, que fixam os critérios

autorizadores para o Fisco desconsiderar e requalificar atos e negócios jurídicos realizados

pelos contribuintes, estão fundados em quais suportes legais? Quais propriedades jurídicas são

aplicadas e de que forma são utilizados seus conceitos? Há um padrão de conduta realizada

pelos contribuintes que, segundo o CARF, torne o planejamento tributário não oponível ao

Fisco?

b) Quais as categorias e de que forma devem ser utilizadas as normas gerais e abstratas

construídas a partir do plexo de enunciados prescritos na Constituição Federal de 1988, no

Código Tributário Nacional e no Código Civil que tratam da desconsideração e

requalificação, por parte do Fisco, de atos e negócios jurídicos realizados pelos contribuintes?

c) A linguagem da “realidade jurisprudencial administrativa” relacionada à

desconsideração e requalificação, por parte do Fisco, de atos e negócios jurídicos realizados

pelos contribuintes quando confrontada com a linguagem da “realidade positivada em plexo

normativo geral e abstrato” ocasiona insegurança jurídica no participante do sistema direito,

em razão de se tratar de um “direito do código” diferente de um “direito da jurisprudência

administrativa” do CARF?

Síntese das perguntas: existem duas realidades jurídicas antagônicas em matéria de

planejamento tributário hoje no Brasil?

Para tal escopo, necessário esclarecer as bases do trabalho.

No Capítulo 1, serão expostas as premissas epistemológicas, ou seja, as bases teóricas

que servem de suporte às conclusões que serão construídas.

Há a delimitação do objeto de estudo e estipulação do método de aproximação.

Adota-se a postura filosófica da autorreferência da linguagem. A partir desse axioma, inicia-

se a pesquisa.

1 Suporte físico, leis, enunciado. 2 Outrora denominado Conselho de Contribuintes.

11

Concebe-se a ideia de sistema como a melhor forma de estudar o Direito Positivo,

considerando-o um microssistema dentro da realidade social cuja função primordial é

prescrever condutas intersubjetivas.

O fenômeno jurídico da incidência e aplicação do direito é a forma adotada para

descobrir dentro do processo de positivação jurídica a localização do planejamento tributário,

isto é, como o planejamento tributário influencia na incidência da norma jurídica tributária.

A incidência e aplicação da norma tributária servem, também, como índice à

construção da fundamentação das decisões do CARF. Em outros termos, serve como

instrumento para saber em que norma geral e abstrata foi subsumida determinada norma

individual e concreta expedida pelo CARF, logicamente relacionada ao tema em questão.

Salta aos olhos a importância da incidência e aplicação do direito em relação ao objeto de

estudo.

O conceito de princípio, regra, valor e explicitação das bases teóricas do modelo

hermenêutico adotado são instrumentos que servem à compreensão do que seja segurança

jurídica e o seu modo de concretização no Direito brasileiro. Para saber se há ou não

insegurança jurídica no sistema positivo brasileiro em relação à terceira pergunta proposta no

trabalho, faz-se necessário a priori explicar a noção desse instituto.

Adiante-se: segurança jurídica é um valor, cuja realização depende da realização dos

limites objetivos postos no sistema jurídico.

Por fim, no capítulo inicial serão postos os conceitos de enunciação, enunciação-

enunciada, enunciado-enunciado, haja vista que servirão de fundamentação crítica as teorias

que preconizam a possibilidade de descoberta, por parte do intérprete, da denominada

“vontade real” de determinado emitente, principalmente em caso de dissimulação e

simulação, causas de nulidade de negócios jurídicos.

No Capítulo 2 será analisada a gramática histórica da expressão planejamento

tributário. Demonstrar-se-á a mudança de sentido que o signo em causa (planejamento

tributário) tem gerado na mente dos participantes do sistema de direito. Todavia, este item

não é apto por si só a responder às indagações postas. Serve apenas como demonstração da

alternância de sentido da expressão “planejamento tributário” nos últimos anos.

Neste capítulo se trata do denominado “direito do código” e do “direito da

jurisprudência”, em que serão analisados os critérios jurídicos que autorizam a

12

desconsideração e requalificação por parte do Fisco de atos e negócios jurídicos realizados

pelos contribuintes.

Analisar-se-á na Constituição Federal os temas: I – segurança jurídica; II – liberdade

de iniciativa; III – legalidade, IV – capacidade contributiva. O objetivo é fundamentar a

desconsideração, ou não, por parte do Fisco de determinados atos e negócios jurídicos.

Será feita análise do artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional. O

ponto-chave do tópico é a construção do conceito de dissimulação. Para tal escopo, serão

utilizados os artigos 109 e 110 do próprio CTN.

Os artigos 149, VII, e 150, §4º, ambos do CTN serão também estudados. O intuito é

construir a significação do que seja dolo, fraude e simulação previstos nestes suportes legais

e, principalmente, o modo de utilização dessas categorias.

Serão ainda vistos os artigos 13 e 14 da Medida Provisória nº 66 e a exposição de

motivos da Lei Complementar nº 104/2001. Consigna-se: não é jurídica a utilização de

institutos não positivados no microssistema tributário, posto que não aptos a tratar da temática

do planejamento, como o propósito negocial e o abuso de forma.

Serão estudadas as seguintes categorias: simulação, dissimulação, dolo, fraude à lei,

abuso de direito. Todas positivadas no Código Civil. Pretende-se construir um conceito

jurídico de cada uma dessas categorias.

A descrição das prescrições do Código Civil é indispensável, principalmente o

diálogo com o Direito Tributário, ou seja, a maneira de aplicar as categorias de Direito

privado que influenciam a relação entre Fisco e contribuinte.

Será observada a formação dos atos e negócios jurídicos, as teorias que os embasam e,

principalmente, posta em debate a celeuma acerca da vontade negocial e da causa como

elemento integrante dos negócios jurídicos. Isso porque ficará consignado que nem vontade

negocial nem tampouco a causa são mecanismos introdutores no sistema positivo brasileiro

do denominado propósito negocial, categoria aplicada pelo CARF na seara de planejamento

tributário.

A mesma análise realizada na CF/1988, no CTN e no CC será feita na jurisprudência

administrativa do CARF no período de 2004 a 2010, relacionada ao modelo de operação

denominado “casa e separa”. Quer-se compreender a forma de utilização pelo CARF das

categorias jurídicas positivadas no plexo normativo referido e também a utilização de outras

13

categorias como o propósito negocial e o abuso de forma, que, ainda em um primeiro exame,

não são aptas a autorizar o Fisco a desconsiderar atos e negócios jurídicos realizados pelos

contribuintes.

Na Conclusão, responder-se-ão às perguntas propostas. Este capítulo conta com o item

“entre o direito de não pagar e o dever de pagar tributos” e “o descolamento da realidade”.

O primeiro item do último capítulo manifesta a concepção de que todo cidadão é livre

juridicamente para planejar a vida tributária da maneira que lhe aprouver, sempre fazendo

valer as normas positivadas nos textos de Direito Positivo.

Em relação ao item denominado “descolamento da realidade”, tentar-se-á demonstrar

a existência, ou não, de diferença no conteúdo e na aplicação das categorias jurídicas

positivadas na CF/1988, no CTN e no CC em relação às categorias aplicadas pelo CARF em

tema de planejamento tributário.

A conclusão demonstrará se atualmente há ou não insegurança jurídica quando o

contribuinte deseja planejar a vida com o intuito de pagar a menor quantia de tributo. Com

isso, quer-se afirmar se há ou não realidades jurídicas distintas em termos de planejamento

tributário e se o contribuinte, nos dias atuais, consegue ou não planejar o porvir com o

mínimo de previsibilidade do que irá acontecer.

14

CAPÍTULO I – PREMISSAS EPISTEMOLÓGICAS

1.1 OBJETO E MÉTODO

O trabalho que pretenda ser científico deve, obrigatoriamente, delimitar o objeto de

estudo, estipular um modelo de aproximação e, no momento do processamento da pesquisa,

refletir sobre aquilo mesmo que se está produzindo.

Paulo de Barros Carvalho3: “(...) compreendi, de há muito, que a consistência do saber

científico depende do quantum de retroversão que o agente realize na estratégia de seu

percurso, vale dizer, na disponibilidade do estudioso para ponderar sobre o conhecimento

mesmo que se propõe construir”.

O objeto da pesquisa é o atual sistema positivo brasileiro no aspecto da

desconsideração e requalificação por parte do Fisco de atos e negócios jurídicos realizados

pelos contribuintes, de acordo com as normas válidas gerais e abstratas do Sistema

Constitucional Tributário, do CTN, do CC e das normas individuais e concretas referentes às

decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) relacionadas ao modelo de

operação denominado “casa e separa”.

O objetivo é realizar o confronto entre duas realidades (linguagem do código versus

linguagem do CARF) com o intuito de afirmar se, na atualidade, há ou não insegurança

jurídica em matéria de planejamento tributário.

Por outro modo: em um primeiro momento analisa-se, sempre a partir da perspectiva

do observador, como deveriam ser interpretadas as categorias jurídicas gerais e abstratas que

influem no planejamento tributário, tornando-o oponível ou não ao Fisco. Por segundo, o

mesmo observador mediante análise empírica das decisões do CARF, demonstrará quais as

categorias jurídicas que o referido Tribunal considera fundamentais para que dado

planejamento tributário seja oponível ou não ao Fisco, isto é, tentar-se-ão construir as

significações das categorias jurídicas que embasam as decisões do CARF a partir de sua

efetiva utilização.

3 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2008, p. 3.

15

Normas revogadas ou de sistema jurídico estrangeiro não fazem parte do campo

objetal.

O método é o Construtivismo Semiótico4, iniciado por Lourival Vilanova e evoluído

por Paulo de Barros Carvalho.

O percurso de aproximação ao objeto será realizado por meio da utilização de duas

técnicas, como segue.

Primeiro, as categorias jurídicas positivadas no ordenamento jurídico brasileiro

relacionadas com o objeto da pesquisa (desconsideração e requalificação por parte do Fisco

de atos e negócios jurídicos realizados pelos contribuintes) terão os conceitos delineados a

partir de estudo analítico que comporte o sincretismo com a postura hermenêutica, entre elas

incluídas as categorias da filosofia da linguagem, teoria dos valores, aplicação da teoria dos

atos de fala, utilização do modelo de incidência jurídica pela ótica construtivista, tomando

como base as categorias fundantes da Teoria Geral do Direito.

Segundo, as fundamentações e decisões do CARF relacionadas com a operação

denominada “casa e separa” serão analisadas pragmaticamente (Quadro 1). Buscar-se-á

compreender a efetiva utilização de determinadas categorias jurídicas pelo CARF5 aplicadas

ao tipo de operação escolhida.

Divisão dos acórdãos Títulos 108-09.037 Subscrição de participação com ágio; operação ágio 108-09.793 Subscrição de participação com ágio; operação ágio 101-95.537 Subscrição de participação com ágio; operação ágio 107-09169 Subscrição de ações com ágio; planejamento tributário 107-08.837 Subscrição de ações com ágio; ganho de capital 140-100.155 Subscrição de participação com ágio; planejamento tributário 101-96.087 Ganho de capital; operação ágio 101-96.523 Ganho de capital 104-21.497 Ganho de capital; planejamento tributário 104-21.498 Ganho de capital; planejamento tributário 104-21.610 Ganho de capital 104-21.675 Ganho de capital 104-22.250 Ganho de capital

Quadro 1 – Acórdãos e títulos analisados

4 Utiliza-se a expressão construtivismo semiótico por englobar o aspecto sintático, semântico e pragmático. 5 As proposições que serão construídas refletem a posição do pesquisador após tomar contato com as fundamentações e decisões do CARF, jamais podem representar uma posição oficial ou uma constante que se repetirá nas futuras decisões do CARF. Os relatos são construções a partir de determinadas decisões do CARF.

16

O corte metodológico elegeu dois critérios: I – tempo, com casos de 2004 a 2010; II –

casos que na pesquisa aparecem sob o título6: “operação ágio”; “ganho de capital”;

“subscrição de ações com ágio”; “subscrição de participação com ágio”; “planejamento

tributário”.

O material utilizado na pesquisa empírica foi coletado nos seguintes sítios eletrônicos:

a) <http://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/index.jsf>;

b) <http://www.acordaoscarf.com.br/>; e

c) <http://www.lexml.gov.br/>.

A pesquisa empírica chegará a uma conclusão indutiva, ou seja, do particular ao geral,

cientes da impossibilidade de constatar verdades absolutas e obter conclusões generalizantes

infalíveis e repetitivas. O intento é demonstrar como o CARF utiliza as ferramentas que lhe

fundamentam as decisões no modelo “casa e separa”.

Do confronto entre a postura construtivista lógico-semântica, que se aproxima do

intuito de descrição das categorias positivadas em textos jurídicos constitucionais do Código

Tributário e do Código Civil, e a postura pragmática da análise das decisões do CARF, ainda

que por amostragem, denota-se o Construtivismo Semiótico em toda a plenitude.

Tal confronto nada mais é que o diálogo entre o instrumental positivado (possibilidade

da desconsideração e requalificação pelo Fisco de atos e negócios jurídicos realizados pelos

contribuintes) com as fundamentações e decisões do CARF concatenados com o mesmo

objeto (desconsideração e requalificação pelo Fisco de atos e negócios jurídicos realizados

pelos contribuintes).

Esse é o feixe que confere à pesquisa o tom de cientificidade. Muito embora as

proposições enunciadas sejam todas previamente maturadas – refletidas – no espírito do

pesquisador, o momento de reflexão alcança pujança quando do confronto das duas

realidades.

Realidades estas que poderão ser contrárias ou não: a realidade positivada em códigos

e a realidade positivada na jurisprudência administrativa.

Paulo de Barros Carvalho7 assevera acerca do construtivismo lógico-semântico:

6 O Acórdão 101-96.066 (Caso MARAMBAIA) está entre os casos estudados. É encontrado sob o título “simulação”, que não faz parte da pesquisa. Foi mantido, pois foi o acórdão que instigou o espírito do pesquisador a realizar a presente dissertação. 7 CARVALHO, P.B. Op. cit., 2008. Prólogo, XXIV, XXV.

17

A respeito da orientação que está subjacente ao escrito, na sua integridade constitutiva, não hesito em inscrevê-la no quadro do chamado construtivismo lógico-semântico, em que a postura analítica faz concessões à corrente hermenêutica, abrindo espaço a uma visão cultural do fenômeno jurídico. Coube-me perceber, aliás, que o ponto de vista analítico não sai prejudicado, mas robustecido com as luzes das construções hermenêuticas: o tom de historicidade, a consideração dos valores, a interdiscursividade entre os textos afins, o imergir em segmentos culturais bem concebidos, tudo isso ressalta o teor de analiticidade com que o observador lida com o segmento normativo sob seus cuidados. Não é portanto, um sincretismo vulgar, comodista, que banaliza o assunto outorgando-lhe foros de superficialidade, para alegria dos adeptos das teorias em confronto. Longe disso, penso em expediente que potencialize a investigação: de primeiro, por sair amarrando e costurando os conceitos fundamentais, estipulando o conteúdo semântico dos termos e expressões de que se servem os especialistas; de segundo porque projeta os elementos especulativos, preparando-os para outra sorte de indagações, agora de cunho culturalista; e por fim, munidos desse poderoso instrumental, aplicá-lo ao Direito Tributário dos nossos dias.

O ensinamento acima transcrito é aplicado em sua magnitude ao construtivismo

semiótico.

Reunir os três critérios (delimitação de objeto, escolha de método e reflexão sobre

aquilo que se está construindo) constitui a tentativa de realizar um trabalho científico, já que a

busca pela cientificidade é um fim e não um meio.

Em resumo: o que se pretende é realizar um trabalho científico. Isso não significa que

as proposições elaboradas sejam dotadas de pura racionalidade, perfeitamente acabadas e

isoladas da ideologia e dos valores do intérprete. Este trabalho constitui um ponto de vista do

pesquisador e nada mais.

A escolha do objeto e método se deve:

I – à existência de inúmeros fóruns, congressos, livros publicados em torno do tema;

II – o planejamento tributário põe em dúvida não só o agir do contribuinte, como

também afeta diretamente a vida de advogados e contadores que colaboram no dia a dia da

vida tributária dos clientes, assim como a do agente fiscal. Prova disso que, hoje, para alguns

contribuintes e para alguns agentes fiscais a expressão planejamento tributário significa algo

muito próximo do sinal da ilicitude, havendo claro processo de alternância de significação;

III – convicção de que o Construtivismo Semiótico é capaz de juntar os três planos de

análise, a saber: sintático, semântico e pragmático, abarcando todos os campos linguísticos

possíveis. Pois não há teoria sem a prática nem prática sem teoria;

18

IV – a escolha do modelo “casa e separa” se deve ao fato de que se trata de tema muito

debatido no conselho de contribuintes, proporcionando farto material de análise, visto que

inúmeros contribuintes realizam tais operações, gerando relevância à pesquisa;

V – todos os casos estudados antes da pesquisa tinham sido considerados não

oponíveis ao Fisco, situação esta que intrigou o pesquisador;

VI – a restrição pragmática a um tipo de caso é devida unicamente ao objetivo da

pesquisa, ou seja, confrontar a efetiva utilização de certos institutos jurídicos pelo CARF,

alguns inclusive não positivados em textos jurídicos, com o plexo normativo posto nos

códigos e em leis esparsas. Do confronto não surgirão verdades absolutas ou a constatação de

comportamentos que se voltarão a repetir por parte do CARF. Apenas se denotará como neste

tipo de operação “casa e separa” o CARF tem atualmente agido, estipulando um padrão de

comportamento para as operações. Pois este estudo não é voltado na integralidade ao

mapeamento das decisões do CARF, isto é, não se trata de uma pesquisa eminentemente

empírica, mas, sobretudo busca fazer confronto de realidades, ou melhor, da realidade do

código versus parcela da realidade jurisprudencial do CARF em dado lapso de tempo e

espaço.

1.2. A AUTORREFERÊNCIA DA LINGUAGEM

Adota-se a autorreferência da linguagem como premissa epistemológica ao

desenvolvimento do tema.

A linguagem não possui nenhum fundamento exterior a si própria. Isso significa que

linguagem não representa objetos, eventos, coisas etc. A linguagem simplesmente os

constitui. Segundo Vilem Flusser8: “A linguagem é, cria, forma e propaga a realidade”.

Os objetos, eventos e coisas são dados brutos inacessíveis ao ser humano. A

linguagem não representa um objeto ou coisa pela essência do objeto ou coisa. A linguagem

não é mero instrumento de comunicação entre dois sujeitos e sim criadora dos objetos, das

coisas, dos próprios sujeitos e da comunicação que se instala entre eles.

8 FLUSSER, Vilem. Língua e realidade. 3ª ed. São Paulo: Annablume, 2007, p. 17.

19

Pelo exposto, não existem significações de base nas palavras. As significações são

construídas de acordo com o contexto histórico-cultural em que são mencionadas e conforme

o sistema de referência em que se as esteja utilizando.

A título de ilustração, a palavra tributo possui definição no contexto tributário de

forma diferente que é usada no Direito Financeiro9.

Segundo Paulo de Barros Carvalho10:

Será bom acentuar que lidarei com a linguagem tomando-a segundo o princípio da auto-referência do discurso, na linha das teorias retóricas, e não na acepção das teorias ontológicas, pelas quais a linguagem humana ‘constituiria um meio de expressar a realidade objetiva, coisas (res, substantia) e entidades equivalentes’, como expõe João Maurício Adeodato. A adoção desse princípio filosófico implica ver a linguagem como não tendo outro fundamento além de si própria, não havendo elementos externos à linguagem (fatos, objetos, coisas, relações) que possam garantir sua consistência e legitimá-la.

Afirma-se: o Direito Positivo é todo formado por linguagem. Esta ao mesmo tempo é

índice temático à aproximação do objeto de estudo – linguagem do Direito Positivo.

Caminhando em direção ao tema objeto de estudo, “planejamento tributário”, por meio

do pressuposto filosófico da autorreferencialidade da linguagem aplicada ao estudo do Direito

Positivo, verifica-se que as categorias simulação, dissimulação, abuso de direito, abuso de

forma jurídica, fraude à lei, dolo, propósito negocial e outras não possuem significação de

base.

O contexto do Direito Positivo e os enunciados prescritivos aplicáveis a cada um dos

institutos servirão de suporte físico à criação dos conceitos de cada um deles.

A autorreferência da linguagem fundamenta os “espelhos”. Não existe “realidade viva

alcançável” subjacente à linguagem. Os “espelhos” não refletem a “realidade”, eles são a

própria “realidade”. Qualquer descrição da hipotética “realidade” em verdade é a construção

do “espelho” para aquele que toma contato com determinado dado bruto.

9 Referimo-nos ao artigo 9º da Lei nº 4.320/64 e 3º da Lei nº 5.172/66. Conforme Fernando Favacho: “Não há uma mesma realidade para os diferentes idiomas, e não há uma mesma realidade jurídica para os diferentes sistemas jurídicos. ‘Tributo’ pode ter uma significação para o Direito Tributário, e outra bem diferente para o Direito Financeiro”. FAVACHO, Fernando Gomes. Definição do conceito de tributo. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 32. 10 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009 p. 5.

20

Debates acerca da viva realidade circundante que seria muito maior e mais importante

que a linguagem que os representa, sendo a verdadeira coloração do mundo, não se

coadunam com a corrente filosófica aqui seguida. Não por desconhecimento ou falta de

importância, mas apenas por questão de inacessibilidade, em que a importância dos temas

(dados brutos) se dá a partir do momento em que estes sejam captados e constituídos em

linguagem, ou seja, constituído o nosso único “real”, que para determinadas correntes11 são

denominados “espelhos”.

A importância de adotar esta corrente filosófica em matéria de planejamento

tributário, entre outras coisas, se dá pela constatação de que para construir a significação de

certa categoria jurídica é necessária a observância da linguagem jurídica de sobrenível,

estabelecedora dos critérios a ser utilizados. A título de exemplo, a categoria simulação em

matéria de planejamento terá significação de acordo com o que CTN, o CC e as leis esparsas

prescreverem, conforme as regras próprias de integração dos microssistemas.

A utilização do instrumental filosófico da autorreferencialidade da linguagem permite:

I –exame mais profundo e esclarecedor dos domínios do Direito, em especial no tema do

planejamento tributário, pois permite dizer que determinada categoria jurídica pode ter a

significação que o direito assim o estipular; II –constatação de que o Direito cria realidades

próprias.

1.3 O DIREITO VISTO COMO SISTEMA AUTOPOIÉTICO

O Direito positivo é percebido como um sistema encartado no sistema social. Visto

dessa perspectiva, é um microssistema pertencente ao sistema da realidade social. Tomado

por outro ângulo, o Direito Positivo brasileiro é um sistema regulador de condutas

intersubjetivas. A realidade jurídica incide sobre a realidade social constituindo, modificando,

extinguindo ou simplesmente resguardando relações jurídicas.

O sistema jurídico possui normas jurídicas como elementos. Normas que se

interconectam em relações de subordinação e coordenação, fazendo com que o sistema

alcance a finalidade precípua de regular condutas intersubjetivas.

11 Pensamento diametralmente oposto é o de Marco Aurélio Greco. Vide GRECO, Marco Aurélio. Planejamento tributário. 2.ª ed. São Paulo: Dialética, 2008, p. 70.

21

O sistema jurídico é fechado operacional e sintaticamente. As influências do ambiente

(economia, política, moral, religião etc.) são captadas pelo próprio sistema jurídico, sendo

processadas pelo código lícito/ilícito do Direito. O sistema processa as influências de acordo

com os códigos e programas próprios.

O ingresso de influências externas ao Direito é permitido e desejado pelo sistema

jurídico, servindo-lhe de alimentação. Nesse ponto ocorre sua evolução.

Em outros termos: semântica e pragmaticamente, o sistema é aberto ao ambiente.

O modelo descrito é de um sistema autopoiético, visto que o Direito cria as próprias

realidades de acordo com códigos e programas e evolui com a abertura semântica e

pragmática.

Por esse modelo, tudo que é captado pelo sistema jurídico pertence ao domínio do

jurídico. Nenhuma norma é construída por interpretação sociológica, econômica ou de

qualquer outra espécie. Norma jurídica, como à frente será explicitado, é construção baseada

no sistema de Direito Positivo, sendo marcada ou pelo sinal positivo da licitude ou pelo sinal

negativo da ilicitude.

No Direito não existem condutas “meio lícitas”. É lícito ou ilícito.

Por outro lado, os programas jurídicos trabalham com regulação condicional, se

houver determinadas circunstâncias deverão acontecer certas consequências. Isso não

significa que a finalidade não esteja presente no Direito. Ela se faz presente, ocorre que é

justamente por meio da regulação causal que o Direito concretiza seus fins. O que não se

aceita como premissa é que a finalidade estipule a causa do Direito. A causa, considerada

como antecedente, estipula a consequência, fim.

Esse modo de encarar o Direito Positivo ocasiona algumas sequelas na temática do

planejamento tributário, pois torna impossível que categorias ou propriedades não positivadas

em normas gerais e abstratas sirvam de fundamentação para expedição de decisões do CARF,

pois não há linguagem jurídica competente capaz de trazer e utilizar no mundo jurídico

brasileiro estas categorias e propriedades, sendo que a eventual utilização de elementos

exógenos ocasionaria falha sistêmica por falta de mecanismos que lhes autorizem a entrada.

A importância de adotar essa premissa epistemológica é que: I – não podem existir

e/ou permanecer no sistema jurídico normas individuais e concretas que não encontrem

suporte em normas gerais e abstratas, pois são dados inacessíveis ao participante do sistema

22

jurídico, podem ater ser válidas em dado momento para o participante do Direito Positivo,

jamais para o observador, porém fatalmente serão expulsas por outra norma de superior

hierarquia; II – a finalidade jurídica sempre ocorre pela realização de uma causa, nunca o

inverso; III – em matéria de planejamento ou a conduta do contribuinte é lícita, portanto,

oponível ao Fisco, ou ilícita e, portanto, não oponível ao Fisco.

1.4 DIALOGISMO

O Direito é uno, sendo que a inter-relação entre os microssistemas pertencentes ao

sistema jurídico é condição necessária sua evolução.

O diálogo entre microssistemas permite a funcionalidade do sistema como um todo.

Entretanto, o modo da conversação deve ser feito em consonância com o Texto

Constitucional. Por outro lado, ainda pode existir o diálogo entre o sistema jurídico brasileiro

e os sistemas jurídicos alienígenas, sociais, econômicos etc.

Este tipo de discussão é salutar e também propicia a evolução do sistema. Todavia, em

nenhum momento pode haver a transposição de teorias e/ou enunciados de legislações

estrangeiras se não existir a possibilidade de as informações colhidas serem processadas de

acordo com regras sintáticas existentes no sistema jurídico brasileiro que permitam a

utilização dessas informações e as transmudem em informações jurídicas.

Em outros termos: uma das maneiras de evolução do sistema jurídico consiste no

diálogo com sistemas estrangeiros, porém, a importação não criteriosa de teorias ou

legislações estrangeiras ao sistema jurídico brasileiro pode ocasionar ruptura, pois este possui

regras próprias de integração e utilização dos dados colhidos fora do ambiente jurídico.

A importância da escolha dessa premissa relacionada à temática do planejamento

tributário se observa em dois fatores: I – a conversação entre as prescrições do CTN e do CC,

especificamente o modo de aplicação dos artigos 109 e 110 do CTN, é fundamental à

construção das significações de categorias jurídicas.

A título de exemplo, o conceito de simulação ou dissimulação será obtido, como

oportunamente se verá12, após a utilização dos enunciados postos no Código Civil; II – na

12 Item 2.4.6 desta dissertação de Mestrado.

23

seara do planejamento tributário o propósito negocial e o abuso de forma jurídica não

encontram suporte em enunciados jurídicos para utilização. O sistema jurídico brasileiro na

atualidade ainda não possui mecanismos que permitam a integração dessas propriedades.

1.5. INCIDÊNCIA E APLICAÇÃO DO DIREITO

O presente item não tem por objetivo descrever à exaustão o mecanismo e as correntes

filosóficas que embasam a teoria da incidência jurídica. Para tal escopo seria necessário

estudo específico sobre o tema.

A importância deste tópico cinge-se a dois fatores: I – demonstrar em que ponto do

processo de positivação jurídica o planejamento tributário interfere e se posiciona; II – ao

analisar o modelo “casa e separa” se busca compreender a subsunção feita nas decisões do

CARF. Todavia, torna-se imperioso deixar consignado qual modelo de incidência jurídica foi

utilizado no experimento pelo pesquisador, pois as conclusões construídas se dão devido à

utilização de determinado modelo de incidência jurídica.

Adota-se o modelo de Paulo de Barros Carvalho, em que a incidência jurídica ocorre

única e exclusivamente por intermédio da ação do homem, agente competente que faz com

que a linguagem da norma geral e abstrata incida sobre a linguagem da facticidade jurídica,

expedindo, norma individual e concreta. Clarice de Araújo13 compara o processo de

incidência jurídica com uma tradução:

Uma tradução é concebida como atividade cognitiva que realiza a passagem de um enunciado dado para outro considerado seu equivalente. Para o universo jurídico esta tradução chama-se incidência. Na linguagem legal trata-se de traduzir um acontecimento social, enunciado descritivo vertido em língua natural para um fato jurídico, o qual se caracteriza por ser uma mensagem emitida na linguagem das provas, conforme exigência do Direito Positivo. Um fato jurídico, produto da incidência, resulta, portanto de uma tradução bem-sucedida.

Neste modelo, incidência e aplicação do Direito coincidem, não havendo diferença. E,

sempre que houver a expedição da norma individual e concreta, o fato jurídico posto em seu

antecedente irradiará consequências jurídicas estipuladas em permitir, proibir ou obrigar.

13 ARAÚJO, Clarice von Oertzen. Da incidência como tradução. In: HARET, Florance; CARNEIRO, Jerson (Coords). Vilem Flusser e juristas: comemoração dos 25 anos do grupo de estudos Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Noeses, 2009. p. 157.

24

Sendo a incidência um processo realizado pelo homem, devem ser destacadas algumas

situações: I – qualquer evento do homem praticado no mundo social, acaso não seja captado

por uma linguagem, em nada interferirá no âmbito jurídico; qualquer planejamento tributário

enquanto permanecer na órbita particular não ocasionará nenhum efeito no mundo jurídico

tributário; II – somente por meio da linguagem jurídica, expedida por agente fiscal realizando

a requalificação jurídica de determinados fatos, é que, a partir desse átimo, dado planejamento

tributário adentra no mundo jurídico; III – quando o contribuinte resolve realizar determinado

negócio jurídico com o objetivo de não realizar determinada hipótese de norma tributária

geral e abstrata, nada impede que o negócio jurídico subsuma outra hipótese tributária,

fazendo com que surta os efeitos jurídicos da hipótese normativa realizada.

A localização do planejamento tributário em relação à incidência jurídica pode ser

descrita da seguinte forma: I – quando o contribuinte por meio de fatos jurídicos realizados na

esfera privada “foge” totalmente da norma geral e abstrata tributária, considera-se que o ato

de planejamento não possui relação nenhuma com a incidência jurídica; II – quando o

contribuinte realiza fatos jurídicos na esfera privada e faz a subsunção em outra norma

tributária, o processo de positivação segue seu caminho como sendo o único a percorrer. Em

outros termos: quando o homem subsume determinados atos da vida privada em determinada

hipótese normativa tributária, neste momento ocorre a incidência jurídica, irradiando os

efeitos jurídicos inerentes; III – quando o agente fiscal realiza a requalificação jurídica de

determinados atos ou negócios jurídicos praticados pelo contribuinte e os faz subsumir em

determinadas hipóteses normativas, neste momento ocorre a incidência jurídica; IV – quando

o CARF julga determinado planejamento tributário, no caso da pesquisa, o modelo “casa e

separa”, o que este órgão realiza, referente à temática do planejamento tributário, é a

subsunção de determinados eventos a certas hipóteses normativas para prescrever a

oponibilidade de determinados planejamentos tributários ao Fisco ou, como faz em todos os

casos pesquisados, torna os planejamentos tributários não oponíveis ao Fisco. Todavia, o

grande acerto de estudar as decisões do CARF a partir de dado modelo de incidência jurídica

é que em alguns momentos a subsunção feita pelo órgão julgador não corresponde às

hipóteses abstratas descritas nas legislações. A título de exemplo, em algumas ocasiões o

CARF afirma que existe simulação, todavia não realiza o enquadramento adequado no

suporte físico posto no CTN, artigo 116,§ único, ou artigo 149.

25

1.6 ENUNCIAÇÃO, ENUNCIAÇÃO- ENUNCIADA, ENUNCIADO-ENUNCIADO

É somente com os enunciados postos no sistema de Direito Positivo que o jurista

consegue construir normas jurídicas e (re)construir o processo de produção normativa.

Qualquer agente credenciado a produzir enunciados jurídicos movimentando as

estruturas do Poder Legislativo, do Poder Executivo, do Poder Judiciário ou da própria órbita

do particular, jamais será capaz de descobrir a “real intenção” que motivou a produção

normativa que positivou enunciados no campo jurídico. Trata-se de pura falácia pressupor que

um enunciado normativo seja capaz de carregar consigo a intencionalidade do agente

produtor.

É somente por meio do contato com os enunciados que se inicia o percurso da

interpretação jurídica. A partir desse átimo, o jurista deposita valores que colaboram na

construção da norma jurídica.

A realidade jurídica funciona da seguinte forma: o jurista ao travar contato com os

enunciados normativo, “as tintas deixadas sobre o papel” no dizer de Paulo de Barros

Carvalho14, constrói as normas jurídicas e (re)constrói, utilizando-se também em ambos os

casos da experiência colateral, ainda que em superficialidade, o processo de produção

normativa.

Três categorias linguísticas fundamentam a asserção acima posta: I – enunciação; II –

enunciação-enunciada; III – enunciado-enunciado.

Tárek Moussallem15:

A enunciação é em si mesma o arquétipo do incognoscível. Trata-se de um acontecimento – agir humano- que se exaure no tempo e no espaço. Mas, por sua vez, projeta no enunciado os chamados fatos enunciativos (actantes, espaço e tempo da enunciação), que nos permitem constituir o evento da enunciação.

O processo de enunciação para o mundo jurídico é a fonte do Direito, enquanto seu

produto é o enunciado, que faz parte do ordenamento jurídico.

14 CARVALHO, P.B. Op. cit., 2009. 15 MOUSSALLEM, Tárek. Fontes do Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2006, p. 61.

26

Os enunciados que remetem ao processo de enunciação são denominados enunciação-

enunciada. Já, os que dão a possibilidade de criação de outras normas jurídicas indiferentes ao

processo de enunciação são denominados enunciados-enunciados.

Tárek Moussallem16:

Em um documento normativo vislumbram-se diferentes espécies de enunciados: (1) a enunciação-enunciada, que é o conjunto de marcas, identificáveis no texto, que remete à instância da enunciação e o (2) o enunciado-enunciado, que é a sequência enunciada desprovidas de marcas da enunciação.

A enunciação-enunciada é antecedente do veículo introdutor de normas e remete às

instâncias da enunciação.

Todavia, mesmo o veículo introdutor não é capaz de reconstruir em magnitude o

processo de enunciação. Serve apenas para averiguar se o processo de produção normativa

está em consonância com as normas que prescrevem como outras normas devem ser

produzidas, as denominadas normas de estruturas. Além do que, determina quem é o agente

produtor da norma, explicita em que ponto do tempo e espaço a produção normativa foi

realizada e o procedimento utilizado para própria produção normativa. Vale ressaltar que, no

consequente do veículo introdutor está previsto a obrigação de todos respeitarem os

enunciados que estão sendo introduzidos no sistema.

Tárek Moussallem17:

Assim, a norma denominada veículo introdutor é da espécie concreta e geral. Concreta, porque contém, no seu antecedente, um fato molecular (agente competente + procedimento, englobada a publicação) acontecido em determinado espaço e local, fruto da aplicação da norma sobre produção jurídica. Geral, porque, no seu consequente, estabelece uma relação jurídica que torna obrigatória a observação de seus dispositivos.

Consigna-se: a parte preliminar a que se refere o artigo 3º da lei complementar 95/9818

prescreve quais elementos fazem parte da classe enunciação-enunciada. Não fazendo parte a

16 MOUSSALLEM, T. Op. cit., 2006, p. 125. 17 Ibidem, p. 127-8. 18 Enunciados da norma de produção normativa: Art. 3º, inciso I, conjugado com os artigos 4º e 6º da Lei Complementar n. 95/98. Eis: Art. 3º – A lei estruturada em três partes básicas: I – parte preliminar, compreende a epígrafe, a ementa, o preâmbulo, o enunciado do objeto e a indicação do âmbito de aplicação das disposições normativas; II – parte normativa, compreendendo o texto das normas de conteúdo substantivo relacionadas com a matéria regulada; III – parte final, compreendendo as disposições pertinentes às medidas necessárias à implementação das normas de conteúdo substantivo, às disposições transitórias, se for o caso, a cláusula de

27

exposição de motivos. Esta não está prevista nem no antecedente nem no consequente da

norma de produção jurídica, a qual prescreve a obrigação de todos respeitarem as disposições

inseridas pelo veículo introdutor de normas, único instrumento capaz de positivar no sistema

jurídico enunciados que servirão à construção de outras normas jurídicas.

Tárek Moussallem19:

Em suma: a norma veículo introdutor resulta da aplicação da norma sobre produção jurídica e é da espécie concreta e geral, construída a partir da leitura da epígrafe e do preâmbulo do documento normativo, responsável por introduzir enunciados prescritivos no sistema. O seu antecedente é composto por um enunciado protocolar- fato jurídico- que projeta no documento normativo a linguagem constitutiva do agente competente, do espaço, do tempo em que se realizou a sua atividade, bem como deixa indícios (nome da espécie do veículo introdutor) do procedimento utilizado para confecção do documento. Todos presumidos juris tantum.

Os enunciados-enunciados são os artigos e parágrafos introduzidos pelo veículo

introdutor que permitem a construção de outros enunciados, de proposições e normas

jurídicas.

A importância da utilização das categorias expostas: I – torna inócua a busca por

internalidades, pelo fato de a enunciação se esvair no tempo e no espaço. Logo, é impossível

ao jurista descobrir a real intenção de qualquer agente produtor de normas, mesmo se utilizar

da enunciação-enunciada, assim sendo, a vontade que é levada em consideração no momento

da produção normativa é a do construtor da norma, que pode ser um contribuinte, um agente

fiscal, um juiz e até mesmo um observador do sistema jurídico etc.; II – torna-se fundamental

o aprofundamento no estudo da teoria das provas, pois ao Direito a única verdade que passa a

interessar é a verdade jurídica, ou seja, aquela produzida conforme as provas admitidas pelo

sistema jurídico; III – a vontade própria do enunciado normativo como algo de existência

ontológica, ou seja, como existência em si mesmo, também não se coaduna com as categorias

linguísticas expostas, pois um quantum de significação que o enunciado sozinho pode

produzir é, em verdade, o consentimento prévio que os participantes da comunidade do

discurso possuem em relação aos termos de determinado enunciado; IV – exposição de

motivos não faz parte da enunciação-enunciada, logo, não é Direito Positivo. Caso venha a ser

vigência e a clausula de revogação, quando couber. Art 4º- A epígrafe, grafada em caracteres maiúsculos, propiciará identificação numérica singular à lei e será formada pelo título designativo da espécie normativa, pelo número respectivo e pelo ano de promulgação. Art. 6º- O preâmbulo indicará o órgão ou instituição competente para a prática do ato e sua base legal”. 19 MOUSSALLEM, T. Op. cit., 2006, p. 132.

28

levada em consideração na interpretação de enunciados jurídicos, estar-se-á utilizando de

dado metajurídico, ou seja, alienígena, não apto à construção de enunciados jurídicos; V –

textos não convertidos em enunciados normativos ou expulsos do sistema jurídico já não

pertencem ao domínio do jurídico, não habilitados a servir como critério à interpretação de

enunciados jurídicos.

1.7 FUNCIONAMENTO DO SUBSISTEMA TRIBUTÁRIO

O sistema constitucional brasileiro possui delineamentos fundantes na Constituição

Federal de 1988.

Sendo a CF brasileira da espécie rígida, mudanças constitucionais exigem requisitos

obrigatórios. Daí surgirem enormes dificuldades de haver alterações constitucionais.

A tributação no Brasil não escapa ao contexto acima descrito. Os fundamentos do

sistema tributário estão plasmados em âmbito constitucional. Nenhuma mudança nesse

microssistema pode ocorrer se porventura forem de encontro aos pilares constitucionais da

tributação.

A afirmação posta não configura um “querer”: trata-se de uma constatação da

comunidade do discurso.

Em outros termos: na CF/1988 encontram-se fixada a legalidade tributária; a

irretroatividade tributária; a capacidade contributiva; a anterioridade tributária; as limitações

ao poder de tributar; a igualdade tributária; a proibição da utilização de tributo com efeito

confiscatório; as imunidades tributárias; as materialidades de todos os impostos, salvo de

caráter residual; os direitos e garantias individuais e coletivos; a competência tributária, a

solidariedade social etc.

Neste trabalho, as garantias constitucionais do contribuinte não serão vistas como

defesa plasmada em âmbito constitucional do patrimônio, ou seja, defesa contra a agressão

que a tributação ocasionaria ao patrimônio particular. Todavia, refuta-se peremptoriamente

que as garantias constitucionais postas na CF/1988 sirvam como parâmetros positivos à

tributação.

29

O sistema tributário constitucional ao prescrever as garantias tributárias determinou a

zona na qual o legislador positivo pode tributar os particulares.

O lado ideológico pré-legislativo não é alcançado neste estudo. O ponto de partida do

intérprete são os enunciados do Texto Constitucional.

O legislador deve agir positivamente ao tributar. Pode tudo, desde que não extravase

os limites constitucionais. Nesse momento, deve tentar realizar os ditames constitucionais,

como solidariedade social, implantação de políticas públicas etc.

Ao contribuinte é permitido não realizar, mediante planejamento tributário, as

hipóteses de incidência tributária desde que tal conduta não ofenda as regras autorizadoras do

sistema.

Não existe no sistema jurídico nenhuma regra ou princípio de solidariedade social que

obrigue o contribuinte a realizar alguma hipótese normativa tributária.

Frise-se: tributo não é agressão, porém, tampouco é obrigação de solidariedade social

dirigida ao contribuinte. Para esse escopo, o legislador do Direito pode e deve criar normas

que tragam para determinada sociedade equilíbrio social e econômico.

Adota-se o critério da hierarquia: normas inferiores são derivadas de normas

superiores e retiram fundamento de validade das próprias normas superiores.

A competência legislativa tributária foi toda posta em âmbito constitucional, logo, o

legislador positivo ao criar tributo deve respeitar as normas de competência constitucional.

O agente administrativo, por sua vez, deve embasar e fundamentar decisões e atos

administrativos nas leis ordinárias e complementares, bem como na própria CF/1988.

Jamais pode, de acordo com as regras do sistema, alargar a materialidade de

determinada exação ou realizar interpretação que ocasione aumento de tributo por meio de

viés econômico ou social, pois está vinculado à legalidade jurídica e às regras e princípios

constitucionais.

De outra perspectiva: o particular realiza a solidariedade social quando respeita e

concretiza as regras do sistema. Ao reger a vida de acordo com as normas jurídicas, princípios

e regras do sistema, desrespeito algum existirá à tributação ou solidariedade social. Conclui-se

que o particular concretiza a liberdade e a solidariedade quando coordena a vida a respeitar o

sistema jurídico.

30

Deixando claro que isso não significa em nenhuma hipótese a obrigatoriedade de

realizar materialidades tributárias. A “fuga” ilícita da hipótese normativa tributária é

reprimida pelo Direito, todavia, agir na licitude é plenamente possível e desejado pelo

sistema.

Ingênua ilusão achar que o legislador ordinário não está preocupado com a

arrecadação. Isso se verifica todos os dias. O legislador quer, sim, arrecadar. Constata-se

pelos sucessivos recordes arrecadatórios que, em princípio, não necessariamente está voltado

à solidariedade social.

Por outro lado, fique consignado que querer pagar a menor quantia de tributo, agindo

dentro da legalidade, não desrespeita a solidariedade social. Pois, se por ventura o agir de

acordo com o sistema ocasionar repressão pelo mesmo sistema, verdadeiro “sem sentido”

jurídico estará ocorrendo, tratando-se de completa ruína, em curto espaço de tempo, do

próprio sistema, haja vista que o “caos estaria instalado”.

O artigo 3º da CF/1988 prescreve: “Art 3º Constituem objetivos fundamentais da

República Federativa do Brasil. I – construir uma sociedade livre, justa e solidária”.

Não há dúvidas de que essas são as finalidades que o constituinte de 1988 elegeu.

Todavia, os meios (regras) que garantem tal escopo também foram elevados aos altiplanos

constitucionais.

Solidariedade e liberdade representam um fim/objetivo, cuja significação é um valor.

São concretizados por meio de valores de menor hierarquia que o intérprete escalona

conforme ideologia própria e principalmente aplicando as regras do sistema.

O porquê da escolha deste tópico se fundamenta em quatro variáveis: I – a percussão

tributária inicia-se em âmbito constitucional; II – liberdade, segurança, isonomia e

solidariedade estão postas em plano constitucional; assim, qualquer limitação deve ser

construída também a partir deste plano; III – a estrita legalidade tributária não foi

expressamente enunciada na CF, o princípio da capacidade contributiva positiva também não,

logo não foi elevado ao altiplano de princípio tributário constitucional; IV – a descrição do

subsistema tributário em verdade é a descrição do funcionamento da tributação no Brasil. O

CARF e os contribuintes devem respeitar o modo de operação da tributação em todos os

níveis, ou seja, não podem em hipótese alguma ficar aquém nem ir além da CF/1988.

31

1.8 PRINCÍPIO, VALOR, NORMA JURÍDICA E MODELOS HERMENÊUTICOS

Antes de adentrar especificamente neste tópico, é fundamental explicar e enumerar o

porquê de sua escolha. Senão vejamos:

I – sem valor não existe Direito. Na atualidade há a tendência em adotar linhas

teóricas que estão em voga. Assim, discute-se muito sobre o que significam os princípios e

repetidamente fica-se debatendo sobre as denominadas técnicas de ponderação. Todavia, aos

“desavisados” é de bom tom lembrar que a axiologia ou teoria dos valores é estudada desde a

Grécia antiga, ou seja, ninguém descobriu de repente a pólvora mágica de que princípios são

valores. Entre valores diferentes não há ponderação, mesmo porque os valores estão

escalonados na mente do intérprete. Não há ponderação entre segurança e solidariedade;

II – descrever o processamento da construção normativa tomando como pano de fundo

a teoria da linguagem e realizando um diálogo entre Carlos Maximiliano e Paulo de Barros

Carvalho significa ir aos altiplanos da filosofia, em especial da filosofia da linguagem, e da

Teoria Geral do Direito, tendo como único intuito demonstrar que as construções normativas

realizadas pelos contribuintes ao tomar contato com os enunciados do Direito Positivo ou as

construções jurídicas realizadas pelo CARF sempre obedecem ao percurso gerador de sentido,

podendo o observador do sistema jurídico analisar vertical e/ou horizontalmente cada

proposição emitida no contexto de Direito, tendo a segurança de que seu trabalho está sendo

feito de forma consistente, pois embasado em determinada corrente filosófica e de acordo

com os mandamentos da Teoria Geral do Direito. Daí, torna-se necessário explicitar o que se

entende por norma jurídica, comparar seu percurso formador com outra linha teórica e, por

fim, expor a linha que se seguirá – pois, quando for analisada a CF/1988, o CTN, o CC, as

leis esparsas e as decisões do CARF no modelo “casa e separa”, os fundamentos e as normas

que serão construídas tomarão como base as premissas teóricas desenvolvidas;

III – o estudo da norma jurídica serve também para sepultar a denominada

interpretação literal do Direito, pois algumas vertentes teóricas entendem que o planejamento

tributário será não oponível ao Fisco sempre que a conduta do contribuinte for de acordo com

a letra da lei, todavia, contrária ao “espirito da lei” como um todo. Asserção desse tipo não

pode ser considerada quando se enuncia que norma jurídica é construção de sentido, logo, a

literalidade é apenas o início da construção, não sendo possível existir norma sem que haja o

32

percurso pelos mais altos escalões do sistema, isto é, sem a análise do conjunto. Assim,

considerar oponível ou não determinado planejamento pela dicotomia posta (“letra da lei

versus espírito da lei”) é inconcebível dentro do sistema de referência utilizado;

IV – para afirmar que há ou não insegurança jurídica se torna fundamental saber o que

é segurança jurídica. Sendo a segurança um valor, indispensável conhecer as escolas da

axiologia, as características lógica dos valores, a relação do valor com o Direito etc., para ao

fim e ao cabo desta pesquisa afirmar se há ou não insegurança jurídica quando se trata de

planejamento tributário no Brasil.

Adentrando especificamente no tópico em questão, é importante deixar consignado

que definir o conceito de segurança jurídica é tarefa das mais árduas. O estudo da significação

des princípios, valores, norma jurídica e modelos hermenêuticos forma o instrumental

necessário à consecução de tal objetivo.

Este instrumental teórico serve de suporte ao entendimento da categoria planejamento

tributário e sua inter-relação com o valor segurança jurídica.

Adiante-se, desde logo, que os princípios podem ser tomados como argumentos para

impor posicionamento acerca de construções jurídicas.

Participantes do processo comunicativo do Direito e doutrinadores que emitem

linguagem sobre o objeto Direito Positivo, em argumentações sobre o tema, sempre acabam

invocando os chamados princípios como fundamento de toda e qualquer proposição emitida

no contexto do Direito Positivo ou da própria metalinguagem que a ele se refere.

Os princípios jurídicos, em apertada síntese, podem ser entendidos como normas

carregadas de forte carga axiológica.

Para compreender os princípios, digamos fundamentais (em falta de expressão mais

adequada) do nosso sistema de Direito Positivo, torna-se indispensável o prévio conhecimento

e aplicação de conceitos fundamentais da filosofia, em especial da axiologia, na construção de

normas jurídicas.

Imperioso expor as principais correntes da axiologia e suas características, para em

seguida adotar um conceito de valor, colocando em pauta a relação entre valor e Direito, ou

seja, mostrando como os valores se manifestam no plano sintático, semântico e pragmático do

Direito, identificando, ainda, o valor como elemento integrante das normas jurídicas.

33

Em um segundo momento serão analisados os modelos hermenêuticos propostos por

Carlos Maximiliano e Paulo de Barros Carvalho e seu dialogismo com a filosofia da

linguagem, tanto na fase da filosofia analítica como no giro linguístico pragmático.

O intuito é demonstrar o referencial teórico que fundamenta o conceito de norma

jurídica a ser trabalhado na presente pesquisa que servirá de alicerce ao estudo do campo

objetal.

1.8.1 Teoria dos valores

Situada dentro da filosofia, a teoria dos valores ou axiologia é composta por uma

teoria geral dos valores que contribui com os fundamentos da teoria especial dos valores,

dividida por sua vez em ética, estética e filosofia religiosa. Além do que, a axiologia também

influencia a teoria das concepções de mundo e da concepção de vida, pois, como preceituava

Johannes Hessen, “o sentido da vida humana reside, precisamente, na realização de

valores”.20

Antes de tentar definir o conceito e expor as características do valor, é mister anotar

que, mesmo a teoria dos valores sendo relativamente nova sob essa nomenclatura, desde

Sócrates se tenta explicar o significado do valor.

Desde a antiguidade, passando por Kant e sua filosofia da consciência, por Max

Scheler, Hartmann, Johannes Hessen e, no Brasil, com Miguel Reale, põe-se em pauta o que

são valores, quais as origens e por que se deve obedecer a eles.

Será visto a seguir o posicionamento das principais escolas atuais que se detêm sobre a

temática dos valores, para, posteriormente, como dito, tentar definir, expor as características,

colocar em pauta a relação do valor com o Direito, em todos os planos de linguagem, e por

fim demonstrar o posicionamento dos valores dentro das normas jurídicas do sistema de

Direito Positivo brasileiro.

20 HESSEN, Johannes. Filosofia dos valores. Coimbra: Almedina, 2001, p. 33.

34

1.8.2 Psicologismo axiológico, interpretação sociológica de valores, ontologismo e

Historicismo Axiológico

O psicologismo axiológico possui várias vertentes, porém, podem-se citar as do tipo

hedonista e voluntarista como sendo as principais espécies.

O psicologismo axiológico apregoa que a natureza do valor e sua força vinculadora

são advindas do sujeito, isto é, independem da realidade objetiva. Por outros torneios, dá ao

valor, de modo geral, o sentido de ser ação do homem dirigida a atender-lhe as necessidades

(de várias ordens).

Para os hedonistas, o sentido de valor está relacionado a prazer, pois pode-se dizer que

“valioso é aquilo que nos agrada causando-nos prazer”.21

As do tipo voluntaristas, por seu turno, entendiam que o valor está imbricado com uma

questão de sentimento e de vontade, pois “valioso é aquilo que desejamos e pretendemos

como meta ou propósito a alcançar”.22

A interpretação sociológica dos valores, contrapondo-se ao pensamento anterior, é

denominada do tipo objetiva, haja vista que considera o valor como sendo de origem social-

objetiva, ou seja, o valor é produto da sociedade.

Seu principal mentor foi Durkheim, que trabalhou os valores como resultado da

consciência coletiva. Significando esta algo superior à simples soma dos indivíduos, isto é, a

sociedade forma valores constituindo a vontade coletiva independente da vontade individual.

Traço importante é a relatividade, porque os valores seriam escolhidos por

determinada sociedade por meio da consciência coletiva, podendo ser diferentes e até mesmo

não existir dependendo da consciência coletiva de cada sociedade. Característica não menos

relevante é a obrigatoriedade, pois os valores, não por meio dos indivíduos isoladamente ou

em conjunto, porém, por si só, desde que objetivados pela consciência coletiva, passam a ser

obrigatórios no contexto de determinada sociedade.

Vale frisar que tanto a teoria psicológica quanto a teoria sociológica dos valores

encaram os valores pela perspectiva do “ser” e não do “dever-ser”.

21 GARCÍA, Angeles Mateos. A Teoria dos Valores de Miguel Reale. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 29. 22 Idem.

35

Por outro viés, o ontologismo axiológico possui como expoente Scheler e Hartmann,

para quem os valores seriam independentes do indivíduo e da sociedade, ou seja, seriam

apenas descobertos pelo ser humano. Noutras palavras, de acordo com o ontologismo

axiológico os valores representam um ser ideal em si, independente da realidade circundante.

Os valores são postos como objetos ideais.

A linha que claramente transporta os valores para um pensamento filosófico, em

específico no campo da ética, entende que, de um modo geral, por meio da intuição

emocional, pode-se chegar a tomar conhecimento dos autênticos valores de ordem moral que

direcionam a conduta humana. Ora, quer isso significar que essa corrente encara os valores

pela ótica do “dever-ser”.

Por fim, cabe registrar que, para o ontologismo axiológico, independente do marco

histórico, os valores estão presentes e possuem realidade própria.

Em relação ao Historicismo Axiológico, cabe afirmar que existem várias correntes

históricas e culturais que tentam explicar a origem e a obrigatoriedade dos valores. Todavia,

será abordada a concepção de Miguel Reale, criador do historicismo axiológico.

Para Miguel Reale, tudo que se relaciona a valor tem explicação no chamado poder

nomotético do espírito, querendo significar que o homem conhece e transforma a própria

realidade. E mais, os valores são depositados ao longo da história. Assim, valor, história e

cultura são conceitos diferentes, não se podendo, porém, conhecer uns sem os outros. Logo, a

explicação da própria realidade está entrelaçada por tais conceitos.

Cultura segundo Angeles García, na esteira de Reale, seria “a realidade humana

objetivada pelo espírito ao longo da história”.23 Quer isso dizer que a cultura se desenvolve e

é projetada nos diferentes ciclos históricos. Agora, se a cultura se projeta ao longo da história,

é devido a opções, ou melhor, seleções realizadas pelo homem ao longo dos tempos. Assim,

quando as seleções são objetivadas, ou seja, transcendem o sujeito, está-se tratando do mundo

da cultura.

No historicismo axiológico, o valor só pode ser concebido dentro da cultura que se

manifesta e se desenvolve nos diferentes ciclos histórico-culturais, explicando desta feita a

própria realidade humana, que não se contrapõe à chamada “realidade natural”, sendo apenas

um ponto de vista diferente da mesma realidade.

23 GARCIA, A.M. Op. cit., p. 46.

36

Em Reale, os valores se manifestam nos objetos valiosos, muito embora não sejam os

próprios objetos. Aqui, os valores possuem objetividade relativa, isto é, detêm certa

independência, pois, são depositados nos diversos ciclos histórico-culturais. No entanto,

sempre estão postos em relação ao homem, ou seja, fazendo referência a um sujeito. Vale

reiterar que isso não significa que o valor seja inerente apenas a um sujeito, ao contrário, faz

parte da realidade histórico-cultural.

Em síntese, Reale acredita poder conhecer os valores por meio do conhecimento

racional. Assim, parte-se da intuição extraindo os dados estimativos e organizando-os, isto é,

fazendo ligações entre eles, para chegar ao plano da racionalidade, a qual construirá o

significado de cada valor pertencente a cada ciclo histórico-cultural.

Entretanto, a verificação histórico-cultural é sempre incompleta e relativa. Porque

sempre se parte da intuição emocional, logo, está-se sujeito a inúmeras variáveis.

Incompletas, em virtude de não ser possível esgotar todo o conteúdo axiológico, ou seja, são

interpretações diferentes nos mais variados ciclos histórico-culturais.

Por fim, ao lado do relativismo axiológico, Reale acredita existir invariantes

axiológicas, que são valores que se perpetuam ao longo da história, reconhecidos racional e

coletivamente, e se transformam em valores fixos, como, por exemplo, o direito à vida,

dignidade da pessoa humana, liberdade individual etc.

1.8.3 Características lógicas dos valores

Antes de definir o conceito de valor é necessário expor-lhes as doze características

lógicas iniciadas por Miguel Reale e finalizada por Paulo de Barros Carvalho, como segue.

a) Bipolaridade – os valores sempre aparecem em polos contrapostos, por

exemplo, o belo e o feio.

b) Implicação – intimamente ligada à bipolaridade, significa que os polos se

coimplicam. Assim, sempre utilizando um, automaticamente se remete ao outro, por exemplo,

segurança implica insegurança.

c) Referibilidade – os valores se referem a determinado objeto. Vale informar

neste ponto que, muito embora os valores se manifestem por excelência nos objetos culturais,

37

como expõe Miguel Reale, entende-se que em todas as quatro regiões ônticas (objetos

naturais, ideais, metafísicos e culturais) o valor pode aparecer. Pois, muito embora, por

exemplo, os objetos ideias sejam neutros de valor, não há impedimento para que o ser

humano em um ato de valoração se refira a esses objetos lhes implicando valor.

d) Preferibilidade – o valor denota sempre preferência. Logo, na escala que une o

valor ao desvalor não existe o ponto zero, ou seja, ou se prefere (valor) ou não se prefere

(desvalor).

e) Objetividade – o valor sempre se refere a um objeto, todavia, não se confunde

com ele. Por conseguinte, não se encontram valores soltos, ou seja, desprendidos dos objetos.

f) Inexauribilidade – muito embora o valor seja posto em um objeto, não se

exaure nele. Assim, o mesmo valor pode ser atribuído a tantos objetos quantos necessários.

g) Incomensurabilidade – o valor em si não pode ser mensurado, isto é, não pode

ser medido. Donde o belo, o bem, a igualdade, a justiça, a segurança jurídica e outros tantos

mais são incapazes de ser quantificados.

h) Tendência à graduação hierárquica – os valores, mesmo que em um primeiro

momento estejam desordenados, em um segundo passo, ou seja, na hora em que são

transportados até nossa consciência são ordenados em uma escala hierárquica.

i) Historicidade – valores são depositados pelo homem na história por meio dos

diversos ciclos histórico-culturais.

j) Atributividade – os objetos em si não portam valores: o ser humano em um ato

denominado valoração atribui aos objetos o valor; isto é, trata-se de uma preferência.

k) Indefinibilidade – os valores não possuem gênero próximo; desta feita,

nenhuma ideia os antecede.

l) Vocação para expressar-se em termos normativos – os valores aparecem aos

sentidos e se impulsionam com norma. Quer dizer que em todas as pessoas os valores

aparecem como mandamento que deve ser cumprido. Paulo de Barros Carvalho24:

(...) logo que falamos em justiça, segurança jurídica, em igualdade vem à mente do exegeta aquela ideia de que todos devem cumprir com a justiça, a segurança jurídica, a igualdade etc. É esse pensamento, inerente as estruturas axiológicas, que demonstram esse impulso interno dos valores em se exteriorizarem na forma de norma.

24 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 195.

38

1.8.4 Definição de Valor

Com o embasamento adquirido pelas escolas da axiologia e após o contato com as

características lógicas dos valores, torna-se imperioso tentar realizar a definição do conceito

de valor.

Angeles Mateos García afirma25:

Na axiologia Realeana, o valor desempenha uma tripla função: gnosológica, ontológica e deontológica. A gnosológica manifesta-se no conhecimento da realidade, que é sempre valorativo; a ontológica, na medida que o valor constitui parte da realidade dos objetos culturais, por exemplo; e a deontológica expressa a peculiaridade de que todo valor pode chegar a ser reconhecido como “motivo necessário e indeclinável da ação humana”.

Para Tércio Sampaio Ferraz Junior, os valores são “centros significativos que

expressam uma preferibilidade (abstrata e geral) por certos conteúdos de expectativas, ou

melhor, por certos conjuntos de conteúdos abstratamente integrados num sentido

consistente”.26

Paulo de Barros Carvalho assevera que “valor é um vínculo que se institui entre o

agente do conhecimento e o objeto, tal que o sujeito, movido por uma necessidade, não se

comportará com indiferença, atribuindo-lhes qualidades positivas ou negativas”.27

De todo o exposto, depreende-se que os valores são frutos da história e da cultura,

resultantes de seleções realizadas pelo homem; valores estes sempre tendentes a motivar uma

conduta, expressando preferência ou até não-preferência por certos conteúdos de expectativas

atribuídos a determinado objeto, não se exaurindo nele (objeto).

Oportuno ressaltar que a expressão não-preferência está empregada no sentido de

desvalor, que como visto implica sempre o oposto do valor, ou melhor, é o oposto do valor.

Logo, na temática dos valores, como dito, não existe o ponto zero, isto é, pelo valor se

preferem e pelo desvalor não se preferem certos conteúdos.

25 GARCÍA, A.M. Op. cit., p. 49. 26 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2003, p. 112. 27 CARVALHO, P.B. Op. cit.,2009, p. 175.

39

1.8.5 Valor e direito

O direito como fruto da ação humana é necessariamente um objeto cultural. Desta

feita, obrigatoriamente é plasmado, ou melhor, nesses tipos de objetos se atribuem os valores.

Em outros termos, o homem ser cultural ao enunciar as leis (lato sensu) e ao construir

as normas jurídicas (intérprete) atribui valor ao direito.

Neste ponto, importante frisar que, mesmo o intérprete não podendo chegar à

enunciação, ou seja, no caso em tela, não podendo descobrir na enunciação os valores e

principalmente seu conteúdo, deve, ao construir normas jurídicas, depositar valores com

significações, tomando como ponto de partida o suporte físico deixado pelo legislador no

plano expressional. Nesse aspecto, mesmo sendo um plano lógico-sintático, o intérprete trava

contato com a literalidade textual e automaticamente, mesmo que minimamente, constrói

algum conteúdo das tintas deixadas sobre o papel, podendo, desde já, depositar um quantum

de valor naquelas expressões.

O mesmo se dá com a enunciação-enunciada, o intérprete travando contato com ela

percebe algumas marcas da enunciação deixadas no texto (agente competente, tempo, espaço

etc.) que o ajudarão a entender e a construir os valores que serão depositados pelo próprio

intérprete no ato da elaboração de normas jurídicas.

O valor se encontra em todos os planos de linguagem do Direito, ou seja, no plano

sintático, semântico e pragmático.

No plano sintático, reduzindo o direito a sua expressão mínima, verifica-se que possui

fatos lícitos e ilícitos. Assim, os lícitos vêm marcados com o sinal positivo da licitude

indicando valor. Já os ilícitos vêm marcados com o sinal negativo da ilicitude indicando

desvalor. Em outros termos, normas primárias em seu antecedente possuem fatos lícitos que o

legislador ao recortar da realidade social, representando o povo, quer que aconteçam no

mundo jurídico e que sejam vertidos em linguagem competente, instaurando obrigações,

permissões e proibições. Frisando-se que fatos lícitos são portadores de valor.

Todavia, os fatos ilícitos que estão postos na posição sintática do antecedente da

norma secundária indicam desvalor, algo que o legislador não queria que tivesse ocorrido,

mas que, por circunstâncias outras, se acabaram realizando. Daí concluir-se que fatos ilícitos

são portadores de desvalor.

40

Ainda no plano sintático, passando para o consequente da norma, há três modais

deônticos, não existindo a possibilidade de quarta opção, pois o facultado implica dupla

permissão.

O obrigatório indica uma conduta que a sociedade quer que seja realizada, ou seja,

indica valor. O permitido, por sua vez, indica a possibilidade de realizar, ou seja, também é

valor. Todavia, o proibido indica um desvalor, isto é, o comportamento que a sociedade não

quer que seja realizado.

Por último, vale ressaltar que entre o antecedente e o consequente da norma existe um

modal deôntico neutro. Ocorre que essa causalidade é normativa, ou seja, por questão de

política legislativa o legislador imputou ao antecedente, assim que acontecido no mundo

fenomênico e vertido em linguagem competente, um mandamento com determinada relação

jurídica. Como a causalidade não é natural e sim normativa, ou seja, sendo feita por um ser

humano, o valor estará obrigatoriamente presente.

Ademais, não resta dúvida que o legislador ao enunciar hipótese que implica

mandamento o faz por inúmeros interesses e determinado fim. O fim nada mais é que um

valor, pois representa um valor, entendido como razão de ser da conduta.

No plano semântico do Direito existem manifestações expressas de valor, como, por

exemplo, o enunciado que proclama liberdade, segurança, bem-estar e outros elementos

presentes no preâmbulo da Constituição Federal, assim como aqueles que asseveram que

todos são iguais perante a lei etc.

Há ainda manifestações implícitas, como, por exemplo, o enunciado da isonomia entre

os entes políticos. Pois, pela conjugação dos enunciados expressos do pacto federativo e da

autonomia dos Municípios, chega-se àquele enunciado implícito, ou seja, ao enunciado da

igualdade entre os entes políticos na acepção isonomia (valor).

Outro exemplo é o princípio da anterioridade. Como se verá mais à frente, trata-se de

um limite objetivo. Sendo assim, possui pouca carga axiológica, pois é uma técnica que visa

alcançar um fim que, como dito, constitui valor. Desta feita, a anterioridade (limite objetivo)

busca realizar o valor segurança jurídica (fim).

O plano pragmático é todo composto por valor. Aqui, trata-se da relação dos utentes

da linguagem com as prescrições do Direito Positivo. A cada época (ciclo histórico), os

aplicadores do Direito atribuem novos sentidos às palavras, como, por exemplo, ocorreu com

o signo casamento. Salta aos olhos que a mudança de sentido atribuída pelos utentes aos

41

signos é carregada de valores, sendo que os usuários sofrem influência de toda ordem, seja

política, social, financeira, e acabam trazendo os próprios valores para o mundo jurídico, em

especial para a linguagem jurídica, originando novas definições de termos e acepções

conforme suas ideologias.

1.8.6 Norma jurídica

Adotando a linha de Paulo de Barros Carvalho,28 entende-se que os princípios podem

ter quatro acepções:

a) como norma jurídica carregada de forte carga axiológica;

b) como norma jurídica com alguma carga axiológica e caracterizando-se por ser

um limite objetivo, isto é, dedica-se à realização ou concretização de um fim. Este, como dito

alhures, representa um valor. O limite objetivo é meio para realização do valor. Para ilustrar,

tem-se a regra da anterioridade, um limite objetivo que visa fazer prevalecer o valor da

segurança jurídica;

c) como valor independente da norma jurídica que o carrega;

d) como limite objetivo independente da norma jurídica que o carrega.

Pelo exposto, chega-se à conclusão de que o signo princípio não necessariamente se

identifica com o valor. Eis que o que se busca em Direito fundamentalmente é a realização

dos valores que a sociedade em determinado ciclo histórico-cultural considera relevante.

1.8.7 Ainda sobre norma jurídica: uma visão fundamentada na filosofia da linguagem e

na Teoria Geral do Direito

A contribuição dada à teoria hermenêutica e à interpretação jurídica adotada no país –

consequentemente, a ideia de norma jurídica – se deve, entre outras pessoas, a Carlos

28 CARVALHO, P.B. Op. cit., 2011, p. 151.

42

Maximiliano e Paulo de Barros Carvalho: dois teóricos de tempos diferentes e iluminados

pela filosofia da linguagem.

Carlos Maximiliano em 1924 publica livro que se tornou um clássico: Hermenêutica

e aplicação do Direito.

Paulo de Barros Carvalho, embora não tenha escrito nenhum livro especificamente

sobre hermenêutica, tem a trajetória marcada pelo construtivismo lógico-semântico, que,

grosso modo, analisa o Direito Positivo por meio do instrumental semiótico, ou seja, toma a

linguagem no plano sintático, semântico e pragmático como índice temático para a construção

de normas jurídicas elaboradas a partir de enunciados do Direito Positivo.

O que une esses dois luminares do Direito é que ambos, no momento da feitura das

proposições hermenêuticas, estavam inseridos no contexto da filosofia da linguagem.

Torna-se condição necessária à compreensão do texto de Carlos Maximiliano e de

Paulo de Barros Carvalho conhecer, ainda que de forma sucinta, a filosofia da linguagem.

Para tal escopo, entra em cena um dos maiores expoentes dessa linha filosófica:

Ludwing Wittgenstein. Com efeito, o Tractatus logico-philosophicus e o Investigações

filosóficas corroboram com o entendimento das bases teóricas em questão.

Ainda é necessário acrescentar a presença marcante dos neopositivistas lógicos, que,

também influenciados pela obra de Wittgenstein, dão ênfase à linguagem científica como

meio único de conhecer e interpretar qualquer objeto de conhecimento.

A priori pode-se inferir que é possível compreender a obra de Carlos Maximiliano por

meio do entendimento do Tractatus logico-philosophicus e pelo pensamento dos

neopositivistas lógicos e que o texto de Paulo de Barros Carvalho, embora percorra toda a

extensão da filosofia da linguagem, está vertido principalmente aos domínios da citada obra

Investigações filosóficas, ou seja, está mergulhado no movimento denominado giro

linguístico pragmático.

1.8.8 Tractatus logico-philosophicus

Na filosofia do início do século XX houve grande mudança de paradigma. Passou-se

da filosofia da consciência iniciada em Kant para o prisma da filosofia da linguagem. Agora,

43

a filosofia de uma doutrina passou a ser entendida como uma atividade clarificadora das

expressões.

O grande marco da época foi o Tractatus logico-philosophicus de Ludwing

Wittgenstein, autor que entendia que a filosofia não era uma teoria, mas uma atividade. Sendo

que uma obra filosófica consistiria essencialmente em elucidações.

O Tractatus foi escrito em condições especialíssimas, nas trincheiras da Primeira

Guerra Mundial entre 1914 e 1916. Wittgenstein pertencia a uma das famílias mais ricas de

Viena, e a influência inicial em sua vida filosófica é devida a Friedrich Ludwing Gottlob

Frege e a Bertrand Arthur Wiliam Russell.

A preocupação na filosofia da época é a linguagem, pois se entedia que estava

ocorrendo esvaziamento no discurso. Sônia Mendes29 expõe:

A busca por novas formas de expressão tinha como fundamento uma crítica radical à linguagem, porque se acreditava que ocorrera um ‘esvaziamento’ do discurso. Os pensadores austríacos dessa época acreditavam que esse ‘esvaziamento’ era responsável pelos principais problemas da cultura do império austro-húngaro.

Para Wittgenstein, o mundo é formado unicamente por fatos. Logo, as coisas/objetos

existem somente nos fatos e assevera: “1. O mundo é tudo que é o caso. [...], 2. O que é o

caso, o fato, é a existência de estados de coisas [...]”.30

Noutros termos, as proposições que não detivessem possibilidades lógicas e não

tivessem a possibilidade de ser verificadas no mundo empírico não pertenciam ao mundo.

A título de elucidação, a proposição “a porta é branca” e a proposição a “porta é preta”

representam possibilidades lógicas, haja vista estarem ordenadas corretamente em termos

sintáticos (relação signo com signo). Porém, isso ainda não é suficiente para ser um fato. Para

pertencer à realidade deve haver possibilidade de verificação empírica no mundo

circundante, isto é, deve haver a possibilidade de averiguação acerca da verdade/falsidade das

proposições. Quando da verificação, por hipótese, se chega à conclusão de que na “realidade”

a “porta é branca” é esse “dado” que está sendo representado, ou seja, a proposição é tida

como verdadeira. Já a proposição a “porta é preta” passa a ser denominada uma asserção

falsa.

29 MENDES, Sonia Maria Broglia. A validade jurídica e o giro linguístico. São Paulo, Noeses, 2007, p. 7. 30 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus, Trad. Luis Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Edusp, 1994, p. 135.

44

De outra parte, a asserção “come carne porta a” não é uma possibilidade lógica, ou

seja, a estrutura interna não corresponde a nenhuma estrutura interna existente ou possível na

realidade. Em outros termos, não está organizada corretamente em termos sintáticos.

Assim, disparates (proposições em que a estrutura interna não corresponde real ou

possivelmente a alguma estrutura interna do mundo), proposições sem sentido (que não

podem ser provadas no mundo empírico, como, por exemplo, as proposições metafísicas,

religiosas etc.) e as próprias proposições lógicas (importantes, mas que em nada dizem a

respeito ao mundo) não pertenceriam ao mundo.

Isso tudo demonstra que a linguagem, naquela época, tinha exclusivamente a função

de representar o mundo, isto é, dar-lhe figuração.

Adverte Sônia Mendes31:

Quando Wittgenstein utiliza a expressão ‘figuração da realidade’, ele não está querendo dizer que a proposição funcione como uma fotografia da realidade, mas que a proposição representa o que existe de comum entre a estrutura do mundo e a estrutura da linguagem, isto é, a ‘forma lógica’, que é a forma da realidade. Portanto o que permite que a linguagem represente o mundo é a lógica.

Para Wittgenstein, existia semelhança entre a estrutura da linguagem e a estrutura do

mundo. O mundo era formado por fatos. Logo, um objeto (tomado como categoria lógico-

transcendental) sozinho não pertencia ao mundo, ele deveria juntar-se a outros objetos para

formar o estado de coisas atômico, que por sua vez se juntava a outros átomos para formar o

estado de coisas complexo.

Da mesma forma funcionava a estrutura da linguagem. Um nome sozinho nada

representava, ele devia juntar-se a outros nomes para formar proposições elementares que se

uniam e formavam proposições complexas.

Nessa ordem de ideias, algo pertencia ao mundo quando tivesse organização lógica.

Naquele tempo, conhecer algo era conhecer a estrutura lógica (aspecto sintático) e

saber o que aquela possibilidade lógica significava no mundo (aspecto semântico).

Percebe-se que as questões “filosóficas” sobre verdade e conhecimento são reduzidas

a mera questão de linguagem. As proposições que detivessem correta organização sintática

31 MENDES, S.M.B. Op. cit., p. 12.

45

(possibilidade lógica) e pudessem ser demonstradas no mundo concreto (semântica) eram

tidas como verdadeiras (verdade por correspondência), pertencendo à realidade.

Por fim, vale frisar que Wittgenstein delimitou o que pertencia ao mundo, ou seja, os

fatos, asseverando célebre frase: “Sobre aquilo que não podemos falar é melhor calar”.32 Com

efeito, só se pode falar sobre os fatos que formam o mundo, isto é, a realidade.

1.8.9 Neopositivismo lógico

O neopositivismo lógico ou empirismo lógico faz parte de um movimento analítico

que começou em Viena no início do século XX.

O expoente do empirismo lógico foi Moritz Schlinck, o qual conduziu um grupo de

discussões e debates que mais tarde entrou para a história como o Círculo de Viena.

O Círculo de Viena era formado por cientistas de todas as áreas do conhecimento,

como filosofia, física, matemática, psicologia, sociologia etc.

As ideias do Círculo de Viena, sem sombra de dúvida, foram influenciadas pelas

proposições contidas no Tractatus logico-philosophicus de Wittgenstein.

Os neopositivistas entendiam que apenas por meio da linguagem formalizada, tida

como unívoca, era-se capaz de conhecer um objeto qualquer e emitir proposições acerca dele.

Entre as características desse movimento se observa uma atitude antimetafísica; o

entendimento de que com a linguagem ordinária não se poderia conhecer nada, pois esta era

repleta de ambiguidades e vaguezas; só se considerava como verdadeira aquela proposição

que pudesse ser verificada empiricamente (verdade por correspondência); somente por meio

da linguagem científica, com as próprias expressões unívocas, se era capaz de adquirir o

conhecimento sobre um objeto; atitude fisicalista, pois a física como ciência universal seria

capaz de abranger os conteúdos de outras disciplinas; a filosofia era tida como uma atividade

clarificadora, assim a função do filósofo era fazer análise sintática e semântica dos termos.

No Direito, Hans Kelsen participou de alguns dos encontros que aconteciam em

Viena, e o pensamento dos neopositivistas lógicos claramente se vê na obra deste doutrinador,

32 WITTGENSTEIN, L. Op. cit., p. 281. Trata-se da proposição final da obra.

46

principalmente a busca pela linguagem precisa, isto é, a análise do plano sintático de

linguagem e a intrincada questão da validade das normas jurídicas, que, grosso modo, para

Kelsen eram questão sintática (analisava-se a questão de signo com signo – fundamento de

validade das normas).

É imperioso ressaltar que o método analítico consistia na decomposição dos termos,

isto é, partia-se de enunciados complexos até chegar aos enunciados simples, que não mais

poderiam ser reduzidos, representando apenas um objeto no mundo. E o método de

verificação da verdade/falsidade das proposições era o empírico. Nesse momento, adota-se a

verdade por correspondência (correlação entre a proposição e objeto do mundo).

1.8.10 Investigações filosóficas: giro linguístico pragmático

No início do século XX, a preocupação da filosofia da linguagem era a precisão dos

termos e seus significados. Noutras palavras, sobressai a análise sintática e semântica da

linguagem. Todavia, o lado pragmático da linguagem, isto é, como os usuários utilizavam a

linguagem, foi relegado a segundo plano, ou melhor, em nada interessava para aqueles que

almejavam uma linguagem precisa e escorreita.

Por outro lado, toda a importância da linguagem pragmática ficou desprezada.

Nesse contexto, Wittgenstein altera o plano de análise. Do prisma verificacional e

formal contido no Tractatus logico-philosophicus para o ângulo pragmático contido nas

Investigações filosóficas, obra que, publicada em 1953, representou aquilo que ficou

conhecido como giro linguístico pragmático.

Wittgenstein percebeu que a linguagem não tinha a única função de representar a

realidade. A linguagem possuía inúmeras outras funções, como de comandar, orar, interrogar,

fazer coisas etc.

Agora, a linguagem é instrumento de comunicação entre os homens. Desta feita, a

linguagem ordinária ganhou importância antes não vista.

Em vez de existir uma única proposição capaz de representar um dado do mundo,

passa-se à possibilidade de uma proposição poder ter significados diferentes dependendo do

contexto em que está inserida.

47

São os o denominados “jogos de linguagem”. Segundo Sônia Mendes33:

A teoria dos “jogos de linguagem” entende a linguagem como instrumento que pode ser utilizado em diferentes atividades, quais sejam, dar ordens, fazer promessas, contar mentiras, rezar, discursar e muitas outras mais. Para Wittgenstein, nem a linguagem nem os jogos têm limites ou fronteiras precisas, assim como não existe um único traço comum a todos, que nos possibilitem defini-los.

Assim, o uso das palavras empregadas em dado contexto comunicacional passou a ser

o marco decisivo para entender o significado de determinada proposição.

O que deve ficar desde logo esclarecido é que o uso e o sentido das palavras não ficam

à vontade do emissor e do receptor, ou seja, não podem ser utilizados de modo arbitrário. Pelo

contrário, devem ser utilizados conforme preceitua a regra do jogo que se está utilizando.

Elucidando: uma proposição utilizada no “jogo” jurídico deve ser entendida e aplicada

conforme as regras que o “jogo” jurídico preceitua, não podendo significar algo diferente do

que a regra estipula.

Todavia, a mesma proposição pode ter outro significado, por exemplo, se for utilizada

em um “jogo” econômico ou político. Nesse momento, a regra adotada será a do “jogo”

econômico ou político.

Por fim, deve-se ressaltar que o sentido da proposição deve ser buscado no uso.

Assim, as questões de verdade/falsidade saem da exclusividade da verdade por

correspondência para outro tipo de verdade, ou seja, aquela que é adquirida no contexto em

que se está utilizando a proposição. Logo, uma proposição pode ser verdadeira no “jogo”

social e falsa no “jogo” científico, por exemplo.

Em resumo: Wittgenstein, em suas obras mais importantes, colabora de forma

determinante com a filosofia da linguagem. Nesse sentido, em um primeiro momento entende

que a linguagem formalizada é tida como a única capaz de representar o mundo e que a todo

custo se deve buscar o sentido exato das palavras e das proposições. Aqui, tem-se a

valorização do plano sintático e semântico, ou seja, a linguagem científica seria a única capaz

de figurar a realidade. Já em um segundo passo, as palavras passam a não ter um único

significado, ou seja, um enunciado pode ter significados diferentes dependendo do contexto e

do jogo de linguagem que é utilizado. Aqui se valoriza o aspecto pragmático da linguagem e

há um apego ao uso da linguagem ordinária.

33 MENDES, S.M.B. Op. cit., p. 43.

48

1.8.11 Modelo hermenêutico de Carlos Maximiliano

Segundo Carlos Maximiliano, a hermenêutica jurídica “(...) tem por objeto o estudo e

a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das

expressões do direito”.34

A interpretação seria o momento em que efetivamente se coloca em prática a

sistematização dos métodos elaborados pela teoria hermenêutica. Em analogia, poder-se-ia

afirmar que a hermenêutica está para o sistema da ciência do Direito assim como a

interpretação está para o sistema de Direito Positivo. Quer-se dizer com isso que a

hermenêutica trata de possibilitar, isto é, criar critérios à interpretação do Direito Positivo.

Para Carlos Maximiliano, a aplicação do Direito significa o enquadramento de um

caso concreto à norma. O mecanismo de aplicação se dá passo a passo. Em suas palavras35:

Busca-se, em primeiro lugar, o grupo de tipos jurídicos que se parecem, de um modo geral, com o fato sujeito a exame; reduz depois a investigação aos que revelam semelhança evidente, mais aproximada, por maior número de faces, o último na série gradativa, o que se equipara, mais ou menos ao caso proposto, será o dispositivo colimado.

No sistema proposto por Carlos Maximiliano, existe a essência das coisas. Eis sua

afirmação clássica: “Para atingir, pois o escopo de todo o direito objetivo é força examinar: a)

a norma em sua essência, conteúdo e alcance (quoetio júris, no sentido estrito)(...)”.36

O momento da crítica (fase em que se apura a autenticidade, constitucionalidade de

lei, regulamento ou ato jurídico), da interpretação jurídica (descobrir o sentido e alcance do

texto), do suprimento de lacunas e do exame das questões possíveis de ab-rogação ou

derrogação são as condições necessárias para que ocorra a aplicação do fato à norma. Nas

palavras de Carlos Maximiliano, interpretar é: “Explicar, esclarecer; dar o significado de

vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado;

extrair, de frase, sentença ou norma, tudo que na mesma se contém.37

34 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 13ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 1. 35 Ibidem, p. 7. 36 Idem. 37 Ibidem, p. 9.

49

Desde já se nota que para Carlos Maximiliano as palavras possuem significação de

base, ou seja, cabe ao jurista revelar o significado de determinadas palavras e expressões por

meio do mecanismo denominado interpretação.

Carlos Maximiliano rejeita o brocardo que “lei clara não precisa de interpretação”.

Entende que a hermenêutica não se estende somente a textos defeituosos ou obscuros, pelo

contrário, o objetivo dessa disciplina seria extrair o conteúdo da norma, seu sentido e alcance.

Eis suas palavras: “(...) obscuras ou claras, deficientes ou perfeitas, ambíguas ou isentas de

controvérsia, todas as frases jurídicas aparecem aos modernos como suscetíveis de

interpretação”.38

Na obra de Carlos Maximiliano percebe-se claramente o importante papel atribuído à

jurisprudência. Isso quer dizer que, mesmo o autor trabalhando com a “essência” das coisas,

isto é, cabendo ao jurista extrair do texto do Direito Positivo o verdadeiro sentido e alcance

das expressões, seria por meio da jurisprudência, segundo ao autor, que o Direito evolui. Não

ocorrendo alteração na legislação, o Direito, devido à interpretação jurídica, pode, em

determinado momento histórico, alterar o sentido e alcance das normas jurídicas. O Direito

“viveria pela jurisprudência”.39

Carlos Maximiliano estipula alguns critérios que servem à interpretação dos textos de

Direito Positivo. Enumerando os critérios mais importantes:

a) interpretação literal, em que o jurista se limita à análise da “letra” da lei na

integridade constitutiva. Vale desde logo frisar que o autor condena a aplicação

isolada desse critério. Isso quer dizer que o critério literal deve ser conjugado com

outros critérios, ou seja, nunca poderá ser tomado como o único critério para a

interpretação jurídica;

b) critério histórico, em que se analisa a evolução histórica do ordenamento com

relação a determinado preceito jurídico. Estabelecendo-se dessa forma uma

interpretação pautada na análise evolutiva da legislação. Também este critério não

pode ser tomado como absoluto;

c) critério lógico, em que para descobrir o conteúdo, alcance e sentido das normas,

dispensável o auxílio de qualquer elemento exterior ao Direito. Desta feita, o

38 MAXIMILIANO, C. Op. cit., p. 35. 39 Ibidem, p. 48.

50

intérprete se utilizaria de regras da lógica em geral para extrair normas do Direito

Positivo;

d) critério teleológico em que a finalidade da norma é o elemento fundamental a ser

alcançado pelo jurista. A função do jurista é descobrir não a vontade do legislador,

mais sim a vontade da norma. Em outros termos, a interpretação jurídica deve ser

voltada para a finalidade que a prescrição jurídica pretende alcançar. Neste ponto a

lógica do Direito é de fins e não de meio;

e) critério sistemático, por excelência o mais importante. Embora Carlos Maximiliano,

enfatize que todos devam ser conjugados, ou melhor, percorridos pelo jurista, sem

dúvida alguma este é o mais importante. Este critério consiste em analisar as

prescrições jurídicas postas à interpretação com outras prescrições jurídicas que

possuam conteúdos de análise em comum. Nas palavras de Carlos Maximiliano:

“Consiste o processo sistemático em comparar o dispositivo sujeito a exegese, com

outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto”.40 O

papel do jurista seria a observação do conjunto de prescrições jurídicas, para

posteriormente extrair o conteúdo, sentido e alcance das normas isoladas.

Carlos Maximiliano acredita que o juiz não é um autômato que meramente aplica a lei.

Pelo contrário, seu papel é fundamental, ou seja, de descobrir o sentido e alcance das normas

de Direito que estão nos textos de Direito Positivo.

Imperioso por fim ressaltar que, para Carlos Maximiliano, a “moral” deve ser

considerada pelo intérprete jurídico.

No momento de exegese dos textos normativos, as leis ou os costumes, dependendo do

tipo de ordenamento jurídico, devem necessariamente ser interpretados de acordo com a ética

(utilizada no sentido de moral). Sendo assim, qualquer forma de interpretação contrária à

moral de determinada sociedade, regulada pelo Direito Positivo que se está analisando, jamais

deverá prevalecer.

Em outros termos: estender ou restringir o sentido de determinado texto de Direito

Positivo só pode ser feito se não contrair os princípios da moral.

40 MAXIMILIANO, C. Op. cit., p. 128.

51

1.8.12 Modelo hermenêutico de Paulo de Barros Carvalho

A obra de Paulo de Barros Carvalho está toda imersa na filosofia da linguagem e

fundamenta-se na semiótica: plano sintático (estudo da morfologia, sintaxe, congruência

interna das palavras no enunciado etc.: o estudo das relações de signo com signo), semântico

(estudo do signo com o objeto que ele representa no mundo; valendo ressaltar que o signo

nunca toca o dado representado, assim, esse signo sempre será explicado por outro signo) e

pragmático (como os utentes da linguagem relacionam e usam determinados signos no

contexto comunicacional).

Antes de descrever o modelo hermenêutico de Paulo de Barros Carvalho é importante

afirmar que a posição deste autor é no sentido de que o Direito Positivo trabalha com o código

lícito/ilícito, que a função linguística do sistema do Direito Positivo é de prescrever condutas

intersubjetivas e que no ordenamento do Direito Positivo existem apenas as valências da

validade/invalidade.

As possibilidades das condutas que o Direito estipula são três: o permitido, o

obrigatório e o proibido, não existindo a quarta possibilidade (lei do quarto excluso).

De outra parte, o sistema da ciência do Direito trabalha com as valências de

verdade/falsidade e a sua função linguística aparece em caráter descritivo, ou seja, descreve as

condutas estipuladas pela linguagem-objeto (Direito Positivo). Assim, pode-se considerar que

a ciência do Direito é uma metalinguagem em relação à linguagem do Direito Positivo.

Paulo de Barros Carvalho em seu modelo faz filosofia no Direito, haja vista que se

aproxima e descreve o objeto de análise com preceitos fortíssimos da Teoria Geral do Direito

e da filosofia. Para o autor o único caminho capaz de fugir da vagueza e ambiguidade do

discurso é ir aos altiplanos da filosofia (lógica jurídica) por meio de um processo de

formalização.

Desta forma Carvalho41 assevera:

Mas, enquanto é lícito afirmar-se que o legislador se exprime numa linguagem livre, natural, pontilhada, aqui e ali, de símbolos científicos, o mesmo não se passa com o discurso do cientista do direito. Sua linguagem, sobre ser técnica, é científica, na medida em que as proposições descritivas que emite vêm carregadas da harmonia dos sistemas presididos pela lógica clássica [...] nada obstante, cumpre lembrar que

41 CARVALHO, P.B. Op. cit., 2009, p. 6.

52

o emprego de termos técnicos e o modo científico com que se expressa o jurista não conseguem superar certas dificuldades do vocabulário especializado, como as ambiguidades e o teor de vagueza, que somente serão resolvidos à custa de ingentes esforços semânticos. E o problema persiste no nível da Teoria Geral do Direito, a que chegamos por meio de sucessivas generalizações, pois nela remanescem as palavras e locuções plurissignificativas, que irão desaparecer no altiplano da lógica jurídica. Naquele reduto formal, por haver uma estrutura de linguagem efetivamente unívoca, encontrará o cientista esquemas seguros e precisos para captar o arcabouço da mensagem normativa, uma vez que os termos lógicos têm uma e somente uma significação.

Paulo de Barros Carvalho estipula que todas as normas são sintaticamente

homogêneas, ou seja, uma hipótese que implica um consequente. Formalizando: h c.

Por outro lado, as normas jurídicas são semanticamente heterogêneas, ou seja, o

conteúdo das normas variará conforme a área do Direito em que se está inserido e conforme

as condutas que se estipula. Há variação conforme os conteúdos de significação.

Paulo de Barros Carvalho criou um modelo hermenêutico para a construção das

normas jurídicas, elaborando uma clara diferença entre lei, enunciado e norma.

Lei pode ser tomada em várias acepções, como suporte físico, veículo introdutor de

norma, norma jurídica em sentido restrito etc. Cabendo sempre àquele que estiver utilizando a

expressão “lei” elucidar em que sentido está usando.

Nada obstante, na maioria das vezes adota-se “lei” no sentindo de suporte físico.

Enunciado em suas palavras é “(...) o produto da atividade psicofísica da

enunciação”.42 Em outros termos, são as palavras, os fonemas, grafemas, os parágrafos que

estão dispostos no texto.

Norma jurídica é a construção de sentido elaborada pelo intérprete após entrar em

contato com os enunciados dispostos no texto de Direito Positivo. Uma hipótese implica um

consequente.

Todavia, o processo de construção da norma jurídica não é tão simples. No modelo de

Paulo de Barros Carvalho denominado “percurso gerador de sentido” existem quatro etapas

que devem ser cumpridas pelo intérprete, para que ao fim e ao cabo se consiga construir a

norma jurídica.

42 CARVALHO, P.B. Op. cit. 2009, p. 22.

53

No hermenêutico do autor a norma é construção de sentido. Pois no texto existem

dispostos apenas enunciados, cabendo ao intérprete, por meio de várias idas e vindas ao texto

em análise assim como em textos afins, construir a norma jurídica.

Qualquer intérprete para construir normas jurídicas obrigatoriamente deverá entrar em

contato com os enunciados de determinado texto que pretende analisar.

Paulo de Barros Carvalho denomina de “plano S1, plano da literalidade ou plano da

expressão” o local obrigatório em que se inicia o processo de interpretação que levará à

construção de normas jurídicas.

Aqui, o intérprete, didaticamente, tenta suspender o estudo da significação das frases e

adentra a análise gramatical (morfologia, sintaxe etc.) das estruturas dispostas no texto.

É um campo vasto que muitas vezes no percurso da construção das normas jurídicas,

por alguns intérpretes, é relegado a segundo plano. Porém, trata-se de uma seara fundamental:

primeiramente, porque é o único dado empírico-objetivo que se tem no contexto

comunicacional; por segundo, o estudo das regras gramaticais serve para elucidar e afastar

possíveis incongruências que podem ser geradas na construção das normas jurídicas.

Contradições e contrariedades se dão pela falta de análise desse plano da “literalidade”

textual.

O plano dos enunciados (literalidade) é o campo de excelência onde se introduzem

novos enunciados no Direito Positivo que irão gerar novas normas jurídicas. Ou seja, é por

meio do plano sintático que, na maioria das vezes, o sistema de Direito Positivo é alterado.

Depois de percorrer o “plano S1”, o intérprete deve partir para a construção das

significações dos enunciados com que entra em contato. É chegado o momento do estudo

semântico dos enunciados, ou seja, o que as palavras interligadas no suporte físico querem

significar.

Essa pesquisa de significação dos enunciados dispostos no texto é o chamado “plano

S2” ou “plano de conteúdo”.

Em nosso Direito Positivo existem inúmeros enunciados, como, por exemplo, o artigo

13 da Constituição Federal estipula que a “língua portuguesa é o idioma oficial da República

Federativa do Brasil”. No exemplo dado desse enunciado, ou seja, das tintas deixadas sobre o

papel, é possível a construção de uma significação, que neste contexto denominamos de

proposição jurídica.

54

Caberá ao intérprete construir as significações das palavras postas nos enunciados e

juntá-las para formar a significação do enunciado (proposição jurídica). Todavia, na

construção de sentido do enunciado isolado, ou seja, quando da formação da proposição

jurídica, ainda não se tem uma norma jurídica em sentido estrito. Esta é construída em outro

plano.

Muito embora algumas vezes os enunciados dispostos no texto apareçam em forma

declarativa, quando se constrói seu sentido, esses enunciados sempre aparecem na função

prescritiva. Paulo de Barros Carvalho43:

A forma, ainda que importante, não será decisiva, porque o predomínio é da função e essa estará sempre voltada para regulação de condutas intersubjetivas. Sua prescritividade reside no modo como tal linguagem é empregada, a despeito da composição sintático-gramatical que presidir seu revestimento.

Pelo exposto, debruçar-se no plano de conteúdo dos enunciados é mergulhar no

aspecto semântico da linguagem. Cristalina é a importância desse plano de interpretação.

Passado esse momento, chega-se ao ápice da interpretação, ou melhor, do processo de

construção de sentido.

Se no “plano S2” ainda não há normas jurídicas por falta da implicação deôntica,

quando se adentra o “plano S3” se chega à construção da norma jurídica.

O intérprete depois de construir as proposições jurídicas (sentido dos enunciados) deve

agrupá-las em hipótese que irá implicar uma consequência. Em outros termos, toda norma é

composta por um antecedente que contém a possibilidade da ocorrência de um evento (se for

abstrata) ou de um fato jurídico (se for concreta) que por uma imputação, não física, mas

deôntica, modalizada em estado neutro, implicará um consequente que pelas leis da lógica

jurídica terá uma das três condutas possíveis: o permitido, o obrigatório ou o proibido.

Todavia, para a norma estar construída, ainda é necessário que o intérprete percorra os

escalões mais altos do ordenamento jurídico e traga para dentro da norma os valores

prestigiados pelo ordenamento. Aqui entra a questão axiológica. Nesse momento, está pronta

a norma jurídica em sentido estrito, que na linguagem de Paulo de Barros Carvalho são

“expressões irredutíveis de manifestação do deôntico”, pois como o autor mesmo preceitua:

43 CARVALHO, P.B. Op. cit., 2009, p. 58.

55

“É que os comandos jurídicos, para terem sentido e, portanto, serem compreendidos pelo

destinatário, devem revestir um quantum de estrutura formal”.44

É só com a construção da norma jurídica que temos “mínimo necessário” para

identificar sujeito ativo, sujeito passivo, objeto da prestação, objeto da relação jurídica. E

somente com este instrumental o Direito pode cumprir sua função, isto é, reger condutas

intersubjetivas.

Como o Direito é um objeto cultural, o intérprete, ao construir normas, mesmo o

cientista do Direito, não pode ficar afastado dos valores.

Assim, a axiologia é de fundamental importância, pois mesmo o Direito sendo visto

pela perspectiva “normativista”, quando se constroem normas jurídicas, estas necessariamente

estarão impregnadas de valores.

Desta feita, quando construídas as normas jurídicas em sentido estrito, adentra-se o

denominado “plano S4”, ou seja, de posse da norma construída se deve confrontá-la vertical e

horizontalmente com outras normas. O intuito é verificar a compatibilidade da norma

elaborada com outras de superior hierarquia e analisar as relações de coordenação entre as

normas da mesma hierarquia com o objetivo de averiguar os vínculos que se formam entre

elas.

Nesse plano segundo Paulo de Barros Carvalho, “ teremos o arranjo final que dá status

de conjunto montado na ordem superior do sistema”.45

Pelo exposto, ter transitado pelos quatro planos do “percurso gerador de sentido”

equivale a ter percorrido um árduo processo de interpretação que culmina na construção da

norma jurídica.

No modelo hermenêutico de Paulo de Barros Carvalho, as palavras possuem

significado somente no contexto em que são empregadas e em que os limites para

interpretação jurídica são os horizontes da cultura do intérprete.

Eis suas palavras afirmando que a norma é fruto da construção de sentido: “(...)

tomamos a norma como construção a ‘partir de enunciados’ e não ‘contida ou involucrada nos

enunciados”.46

44 CARVALHO, P.B. Op. cit., 2009, p. 125. 45 Ibidem, p. 132. 46 Ibidem, p. 57.

56

1.8.13 Diferença e aproximação entre o modelo de Carlos Maximiliano e de Paulo de

Barros Carvalho

Carlos Maximiliano no século XX apegado à existência real e concreta das coisas, isto

é, na possibilidade de descobrir a essência dos objetos, adota uma linha interpretativa em que

o papel do jurista seria revelar o conteúdo, sentido e alcance das normas jurídicas.

O autor em questão trabalha com a denominada verdade por correspondência, em que

verdadeira é aquela proposição que no mundo fenomênico é atestada por meio do teste

empírico e que corresponde fielmente à realidade.

Não é absurdo afirmar que a partir dessas premissas o autor cria o método

interpretativo, ou melhor, expõe os critérios de interpretação jurídica, colocando o método

sistemático em um lugar da mais alta importância.

Ademais, o jurista seria o único capaz de expurgar a ambiguidade e vagueza dos

termos jurídicos, isto é, extrairia do texto jurídico a norma jurídica aplicável. É como se a

norma estivesse escondida ali no texto jurídico, e o papel do jurista fosse revelá-la.

Para Carlos Maximiliano nem todo contato do jurista com o texto é interpretação. Para

o autor, como acima aludido, existe o momento da crítica, em que o exame da

constitucionalidade das leis é um prius em relação ao momento de interpretação da lei.

Nesses pontos a obra de Carlos Maximiliano se diferencia da obra de Paulo de Barros

Carvalho. Pois, Carvalho não acredita na essência das coisas. Desta feita, o homem em sua

limitação nunca toca a realidade. Pelo contrário, o homem constrói a realidade por meio do

material disponível, ou seja, dos dados brutos.

Ante o exposto, entre extrair a norma do texto jurídico e construir a norma jurídica

existe uma distância abissal, ou seja, efetivamente correntes filosóficas distintas embasam as

duas linhas jurídicas de interpretação. Em hipótese alguma poder-se-ia afirmar que se está

tratando apenas de uma “simples questão de nomenclatura”, optar por extrair norma ou

construir norma.

Logo, as ideias contidas no Tractatus lógico-philosophicus, especificamente aquelas

que tomam a estrutura da linguagem como figuração do mundo (realidade), acabam

fundamentando as ideias de Carlos Maximiliano. Não se afirma com isso que Carlos

Maximiliano pelo menos conhecia o pensamento de Ludwing Wittgenstein. Porém, as ideias

57

contidas na obra deste servem para fundamentar os enunciados da obra de Carlos

Maximiliano, isto é, a possibilidade do conhecimento da essência das coisas.

Por seu turno, o denominado “Ludwing Wittgenstein II”, ou seja, aquele que muda de

paradigma no livro Investigações filosóficas, serve como pano de fundo para explicar, ou

melhor, fundamentar as ideias hermenêuticas de Paulo de Barros Carvalho, ou seja, insere

este autor no denominado giro linguístico pragmático.

Ilustrando o que acima foi dito, quando se opta pela possibilidade de extração de

norma do texto jurídico se está afirmando que a norma jurídica é um “bombom” e que o papel

do intérprete é exatamente de retirar, ou melhor, desenrolar o bombom da embalagem.

Do contrário, quando se adota a linha do construtivismo, afirma-se categoricamente

que de “uma garrafa de água tampada, quando aberta, jamais se retirará um pensamento”, haja

vista o conceito, pensamento, noção estarem na cabeça do intérprete. Isso quer dizer que da

leitura de palavras insertas em um diário oficial ou de uma sentença, por exemplo, nunca se

extrairá uma norma, pois a norma está na cabeça do intérprete, ou seja, é fruto de construção

deste.

Para Paulo de Barros Carvalho, no preciso instante em que o jurista trava contato com

o texto de Direito Positivo, de forma imediata o processo de interpretação se inicia.

Paulo de Barros Carvalho não separa “crítica” de “interpretação”. O exame da

constitucionalidade das leis se deve à interpretação realizada pelo jurista, pois a construção de

sentido sempre se inicia pela via interpretativa. Logo, averiguar se uma norma é

constitucional ou não necessariamente envolve interpretação jurídica.

Por outro lado, a aproximação dos modelos hermenêuticos em questão se dá nos

aspectos descritos a seguir.

a) tanto Carlos Maximiliano como Paulo de Barros Carvalho negam

peremptoriamente a possibilidade de se interpretar de acordo com a vontade do legislador. O

primeiro afirma categoricamente: “A lei é a vontade transformada em palavras, uma força

constante e vivaz, objetivada e independente do seu prolator; procura-se o sentido imanente

no texto, e não o que o elaborador teve em mira”47.

47 MAXIMILIANO, C. Op. cit., p. 28.

58

E Paulo de Barros Carvalho é enfático ao expor que o jurista nunca toca a enunciação,

no máximo pode chegar às marcas da enunciação deixadas no texto de Direito Positivo. O

único instrumento com que o jurista tem contato é o texto de Direito Positivo, composto por

enunciados do tipo: enunciado-enunciado e enunciação-enunciada. Sendo que esta última

categoria possibilita ao intérprete descobrir quem foi o sujeito competente que criou o texto e

quando e onde isso ocorreu. Todavia, nunca se poderá descobrir a vontade ou intenção desse

sujeito. Corroborando o que foi dito, para Paulo de Barros Carvalho o real é irrepetível e

infindável nos múltiplos aspectos.

No momento da feitura do texto de Direito Positivo, no seu processo, quando

sancionada a lei, por exemplo, a situação que levou à aprovação da lei pelo Congresso e à

sanção do presidente da República jamais se repetirá, pois que já se esvaiu no tempo e no

espaço. O único material que o jurista terá à disposição serão os enunciados de Direito

Positivo, e nada mais.

b) In claris cessat interpretatio (“lei clara não carece de interpretação”. Neste

específico ponto Carlos Maximiliano e Paulo de Barros Carvalho são enfáticos no sentido de

tratar-se de uma irracionalidade pressupor que um dado enunciado de Direito Positivo, por ser

tão “claro/explícito”, não necessitaria interpretação.

Para Paulo de Barros Carvalho, a norma é construção do intérprete, logo, sempre ao

tomar contato com os textos de Direito Positivo, necessariamente haverá um processo de

interpretação jurídica que culminará com a construção da norma.

Por seu turno Carlos Maximiliano preceitua48:

Os domínios da hermenêutica se não estendem só aos textos defeituosos; jamais se limitam ao invólucro verbal: o objetivo daquela disciplina é descobrir o conteúdo da norma, o sentido e o alcance das expressões do direito. Obscuras ou claras, deficientes ou perfeitas, ambíguas ou isentas de controvérsia, todas as frases jurídicas aparecem aos modernos como suscetíveis de interpretação.

c) Carlos Maximiliano adota o critério sistemático como sendo o método mais

adequado de interpretação jurídica. Como alhures delineado, o critério sistemático consiste

em analisar o todo, para que posteriormente se revele a norma jurídica.

48 MAXIMILIANO, C. Op. cit., p. 35.

59

Todavia, quando Paulo de Barros Carvalho estipula como fundamental no processo de

construção da norma jurídica a comparação com outras normas de superior ou mesma

hierarquia, que corresponderia ao plano “S4” do modelo hermenêutico, não se está

distanciando muito do pensamento de Carlos Maximiliano.

Ademais, o ponto de encontro das duas linhas interpretativas consiste no mandamento

hermenêutico que estipula ao jurista o dever de percorrer o sistema jurídico buscando

harmonizar as normas jurídicas que são extraídas ou criadas de acordo com o resto do sistema

jurídico. Isto é, deve-se tentar compatibilizar a norma com o sistema sempre que possível.

d) Tanto Carlos Maximiliano como Paulo de Barros Carvalho, iluminados pela

filosofia da linguagem, necessariamente partem de um modelo kelsiano, embora ambos em

muitos pontos acabam divergindo do teórico de Viena.

e) Carlos Maximiliano e Paulo de Barros Carvalho trabalham cada qual em seu

modelo hermenêutico com essência do objeto/coisa e autorreferência da linguagem

respectivamente. Todavia, ambos entendem que somente por meio do contexto é possível ao

intérprete estipular o alcance da norma (Carlos Maximiliano) ou a construção desta (Paulo de

Barros Carvalho).

f) Ambos entendem que o direito evolui também pela jurisprudência. A respeito

de norma jurídica cabem, por fim, duas observações relevantes. Aceitando a fundamentação

exposta tanto da linha tradicional do Direito acerca do que seja norma jurídica ou da linha

construtivista, em ambos os casos, ou seja, tanto na denominada “extração de normas” como

na “construção de normas”, nunca a norma jurídica estará expressa no texto. Assim, desde

logo, há rejeição à denominada classificação de normas em “implícitas ou expressas”, pois,

tentando manter a coerência do discurso, toda norma no mínimo estará subjacente ao texto.

Por segundo, tomando a classificação difundida no meio jurídico de que na classe das normas

jurídicas estão inseridos como elementos os princípios e as regras, por uma inferência lógica,

todo princípio e toda regra sempre estarão implícitos no texto. No Direito Positivo brasileiro

podem existir enunciados expressos, todavia, princípios e regras, que, como dito, são espécies

de normas, nunca estarão expressos ao texto.

60

1.8.14 Realização dos valores no Direito

O Direito possui inúmeros valores e valores de sobrenível. Estes são considerados os

mais importantes, entre os quais se destaca o valor justiça e segurança jurídica.

Grande questionamento e problematização que ocorre nos dias atuais na doutrina

pátria é tentar realizar/concretizar os denominados princípios da segurança jurídica, isonomia,

justiça.

São apregoadas inúmeras formas, desde as simples conceituações em fundamentos

muitas vezes não filosóficos, até, por exemplo, a técnica de ponderação de princípios.

Ocorre que se estão tratando de autênticos valores e, diga-se, de valores de sobrenível.

Assim, esses valores são realizados pela concretização de outros valores. Para ilustrar, traz-se

à baila o valor segurança jurídica, que será concretizado quando for respeitado o limite

objetivo da anterioridade, da legalidade, da irretroatividade das leis, da não-cumulatividade,

da capacidade contributiva etc.

Outro ponto importante quando se trata de valores são as características lógicas. Isso

porque não é possível identificar e definir conceitos de princípios, tomados agora na acepção

de valor, sem observar as dez características lógicas dos valores que nos são dados pela teoria

axiológica.

Deve ficar retida a seguinte assertiva: no Direito em todos os planos, estão presentes

os valores. Pois não existe dever-ser sem valor. Os valores valem exatamente por aquilo que

são, ou seja, o ser dos valores é valer.

1.8.15 Conclusão parcial

a) Valores são depositados ao longo dos ciclos histórico-culturais.

b) Objetos culturais são plasmados por valores.

c) Direito é um objeto cultural.

d) Direito é composto por valores. Isto é, o valor está presente no plano sintático,

semântico e pragmático.

61

e) O valor possui doze características lógicas.

f) Os valores de sobrenível se realizam pela concretização de outros valores.

g) No Direito a liberdade individual é um valor da espécie invariante axiológica e sua

realização é fundamental para que haja a concretização dos desejos de cada sociedade nos

diversos ciclos históricos culturais.

h) O valor justiça está no ápice do sistema jurídico. Sendo que, na escala hierárquica

do sistema de Direito Positivo, o valor segurança jurídica está imediatamente abaixo do valor

justiça. Logo, concretizando-se o valor segurança jurídica, realiza-se o valor justiça. Desta

feita, justiça e segurança jurídica não estão em polos contrapostos. Pois se trata de hierarquia,

não devendo haver ponderação entre aplicar um ou outro valor, ao contrário, concretizar um

valor para realizar outro mais elevado.

i) Realiza-se o valor segurança jurídica respeitando a anterioridade, legalidade, não-

cumulatividade, irretroatividade, não-confisco, a coisa julgada, o direito adquirido, o ato

jurídico perfeito, a capacidade contributiva, os institutos da decadência e prescrição etc.

j) Princípios podem ser sinônimos de valor e de limites objetivos.

k) Norma jurídica é construção de sentido realizada pelo intérprete, assim, adota-se o

modelo Hermenêutico de Paulo de Barros Carvalho.

l) Norma jurídica individual e concreta deve se subsumir a norma geral e abstrata que

lhe dê fundamento de validade.

m) Positivação de novas categorias jurídicas deve ocorrer por meio do plano S1, no

modelo de Paulo de Barros Carvalho. Os utentes de categorias jurídicas podem até,

eventualmente, alterar as significações destas. Todavia, isso não significa que um expedidor

de normas individuais e concretas (in casu o CARF) pode aplicar e inserir categorias não

positivadas em normas gerais e abstratas.

62

CAPÍTULO 2 – PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO

2.1 GRAMÁTICA HISTÓRICA DA EXPRESSÃO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO

Embora não faça parte do campo objetal de estudo é importante consignar os conceitos

utilizados pela doutrina tributária brasileira ao longo dos últimos anos, pois inúmeras

diferenças conceituais surgiram. Esta análise não será cronológica e tão pouco pretende ser

exaustiva. O que se pretende é demonstrar a alternância de significação dos signos e, ao final,

estipular as notas do conceito da expressão planejamento tributário a ser seguida no presente

trabalho.

A amostragem dos doutrinadores adotou os seguintes critérios: I – foram utilizadas

algumas doutrinas clássicas, como Rubens Gomes de Sousa e Alfredo Augusto Becker; II –

foram utilizadas correntes contrapostas que compreendem o sistema constitucional tributário

de forma diferente, como Marco Aurélio Geco e Alberto Xavier; III – foram consultados

doutrinadores que tratam a mesma palavra de forma diferente, ou seja, estipulam significações

diferentes para o mesmo enunciado, como, por exemplo, Luis Eduardo Schoueri e Heleno

Taveira Tôrres; IV – foram consultados doutrinadores que dão a enunciados diferentes a

mesma significação.

Devido à larga utilização, eis os signos escolhidos: elisão fiscal lícita, elisão fiscal

ilícita, elusão fiscal, evasão fiscal lato sensu, evasão fiscal, evasão fiscal lícita, fraude à lei

fiscal, opção fiscal e planejamento tributário.

Alfredo Augusto Becker49 utiliza como expressões equivalente evasão fiscal, elusão

ou evasão legal contrapondo á fraude fiscal. Grosso modo, o critério utilizado é a licitude da

conduta. Se o particular por meios lícitos não realiza a hipótese de incidência, está se tratando

de evasão fiscal. Acaso o contribuinte viole alguma regra jurídica para que não haja a

incidência da norma tributária, o caso é de fraude à lei.

49 “A evasão é perfeitamente lícita, pois não foi violada nenhuma regra jurídica ou eficácia jurídica; e, por conseguinte, a estrutura jurídica dos atos e contratos deve ser respeitada pelo intérprete da lei tributária. Se o intérprete abstrai a estrutura jurídica para se fixar na realidade econômica, quem pratica o ato ilícito é o intérprete (e não o contribuinte que evadiu o tributo), pois não existe regra jurídica autorizando tal abstração. Fraude, porém, ilícita, porque o contribuinte ergueu a estrutura jurídica ou desprezou a eficácia jurídica (efeitos) resultante da incidência da regra jurídica sobre sua hipótese de incidência. Cf. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: Lejus, 2002, p. 139.

63

Paulo Ayres Barreto50 entende que a conduta lícita de fugir da hipótese de incidência

ou diminuir o montante a pagar a título de tributo constitui elisão fiscal. Evasão, entre outras

coisas, seria a conduta ilícita do particular que consiste em evitar a ocorrência da hipótese

normativa ou de reduzir o valor de tributos a pagar.

Marco Aurélio Greco51 estipula que elisão e planejamento tributário são faces do

mesmo fenômeno, todavia, analisados por ótica diferente. Elisão seria o efeito jurídico de

certo planejamento, que poderia consistir em não pagar tributo ou pagar quantia menor.

Planejamento tributário seria a técnica realizada no mundo social, que possui o objetivo de

não incorrer na hipótese tributária. Por fim, opção fiscal não seria uma espécie de

planejamento, haja vista que toda vez que o legislador estipula possibilidades de escolha pelo

particular, isto é, o caminho a percorrer em termos de tributação, a decisão do particular não

significa planejamento tributário, pois este realizou a hipótese tributária escolhida

previamente pelo legislador. Também, não constitui planejamento os atos ilícitos, evasão

fiscal ou condutas induzidas ou desejadas utilizadas pelo legislador com finalidade extrafiscal.

Hugo de Brito Machado52 trata da evasão fiscal lato sensu, que a divide em evasão

fiscal lícita ou legítima e evasão ilícita. A evasão seria qualquer atitude para não realizar

hipótese normativa tributária. Dividindo-se em evasão lícita, quando os meios empregados

forem de acordo com as regras positivadas, e evasão ilícita, quando desrespeitarem alguma

regra do sistema jurídico.

50 “Elisão tributária consiste no direito subjetivo assegurado ao contribuinte de, por meio lícitos, (i) evitar a ocorrência do fato jurídico tributário; (II) reduzir o montante devido a título de tributo; ou (III) postergar a sua incidência.” BARRETO, Paulo Ayres. Elisão tributária: limites normativos. Tese (Livre-docência em Direito Tributário) – Faculdade de Direito da USP, 2008. p. 241. 51 “As expressões planejamento e elisão tributária indicam perspectivas distintas do mesmo fenômeno. ‘planejamento´ é a atividade exercida pelo contribuinte, enquanto elisão é o efeito de submeter-se a uma menor carga tributária, obtida pelo planejamento. Considerando serem aspectos do mesmo fenômeno, usarei cada um conforme o contexto pertinente sem que signifiquem fenômenos diferentes. Parte da doutrina critica o termo ‘elisão’, preferindo outras palavras para designar o fenômeno da obtenção da menor carga tributária (elusão, evasão lícita etc.). Não obstantes os argumentos doutrinários apresentados, ‘elisão’ não me parece ser um termo incompatível além de ser o termo consagrado no Brasil; por isso, continuarei a utiliza-lo (...)”. GRECO, M.A., Op. cit., p. 13. O autor inclui no rol certas situações que não são casos de planejamentos, vejamos: “a) no conjunto das condutas repelidas, as hipóteses que configurem ilícitos; b) no conjunto das condutas desejadas ou induzidas, aquelas que configurem utilização do tributo com finalidade extrafiscal; e c) no conjunto das condutas positivamente autorizadas, as denominadas opções fiscais”. Ibidem, p. 84. 52 “Expressão ‘evasão tributária’ designa a fuga ao dever de pagar tributos. Tem sentido amplo, e assim abrange tanto as condutas lícitas, quanto as ilícitas. Pode ser acrescida do qualitativo ‘licita’, ou ‘legitima’, para designar apenas as condutas de fuga ao dever tributário sem violação da lei”. MACHADO, Hugo de Brito. Introdução ao planejamento tributário. In: Planejamento tributário fiscal: teoria e prática. São Paulo: Dialética, 1995, p. 51.

64

Rubens Gomes de Sousa53 diferencia evasão fiscal de fraude fiscal utilizando-se do

critério temporal, considerado apto a distinguir essas figuras jurídicas, haja vista que, depois

de ocorrido no mundo fenomênico a hipótese de incidência normativa, qualquer atitude do

particular que consistisse em tentar ocultar a realização da hipótese normativa constituiria

fraude à lei. Já a evasão é a conduta do particular lícita que busca a não realização no mundo

fenomênico da hipótese tributária. Se atitude do particular fosse ilícita, consistiria em infração

a lei. Desta feita, os critérios de licitude e ilicitude também se fazem presentes.

Marcus Abraham54 diferencia elisão fiscal lícita de elisão fiscal ilícita. A diferença

consiste em que a elisão ilícita seria o abuso de forma jurídica, havendo o desrespeito aos

direitos da capacidade contributiva e da solidariedade social, haja vista que o particular

utilizar-se-ia de negócios atípicos para indiretamente infringir preceitos legais e

constitucionais. Todavia, em termos da literalidade haveria respeito ao enunciado expresso da

lei no aspecto formal, mas o conteúdo do ato ou negócio jurídico seria ilegal. Diferenciando-

se da evasão fiscal, que seria a conduta do contribuinte diretamente contrária ao sistema

jurídico.

Luís Eduardo Schoueri55 trata do conceito de elusão, estipulando a sua definição e

colocando-a como sinônimo de elisão fiscal. Sendo a conduta lícita do particular tendente a

pagar a menor quantia de tributo possível.

53 “A fraude fiscal, sob qualquer uma de suas formas, refere-se sempre à obrigação tributária principal (§18), isto é, à obrigação de pagar tributo: quando revista a forma de ocultação do fato gerador, ou de certos dados de importância para o lançamento, toma o nome especifico de sonegação. Por sua vez a evasão tem como característica essencial o fato de ser praticada por meios lícitos: com efeito, se os atos praticados pelo contribuinte forem ilícitos, já constituirão por si mesma uma infração a lei e a evasão deixa de ser não punível; ao contrário, a fraude é sempre punível, porque é por si mesma uma infração, ainda que os atos praticados pelo contribuinte sejam lícitos em si mesmo.” SOUSA, Rubens Gomes de. Compêndio de legislação tributária. 3ª ed. Rio de Janeiro: Financeiras, 196, p. 139. 54 “Assim, não se pode confundir o verdadeiro planejamento fiscal ou economia fiscal, amplamente denominado de elisão lícita, de acordo com as normas expressas na legislação, assim também de acordo com os valores da sociedade e do próprio ordenamento jurídico, enquanto sistema axiológico, da hoje tão combatida elisão fiscal ilícita, que na sua implementação, abusa das formas e dos meios, na maioria das vezes manipulados e artificiais, para atingir seus fins, nem sempre ortodoxos, acarretando diversas consequências maléficas à economia e ao ordenamento jurídico, especialmente pela redução de receitas públicas e a consequente ampliação do ônus tributário sobre os demais contribuintes, frustrando os princípios da capacidade contributiva e do dever fundamental de pagar tributos, violando os valores sociais, de solidariedade e do interesse público(...) Não estamos mais debatendo o que já está pacificado definido como incorreto, irregular ou ilícito. O debate sobre a evasão fiscal, como conduta violadora das regras tributárias de natureza penal (ilícitos tributários), já está ultrapassado. A discussão, hoje, recai sobre o que é duvidoso, sobre o que não há ainda um consenso absoluto: sobre a distinção e identificação da elisão fiscal lícita e a ilícita, enquanto esta última, caracterizada por ser uma conduta que respeita apenas a letra da lei, pela aparência formal que lhe foi conferida, todavia, questionável quanto ao aspecto moral, ético e social, cujos valores, como vimos, já são dotados de efetividade normativa constitucional e infraconstitucional, capazes e suficientes para infirmá-las vício de legalidade.” ABRAHAM, Marcus. O planejamento tributário e o Direito privado. São Paulo: Quartier Latin, 2007. P. 233; 242-3. 55 “Existe uma discussão semântica acerca da conceituação deste comportamento como elisivo ou elusivo. Do ponto de vista estritamente técnico, no comportamento deste contribuinte que se desvia de fatos geradores, o que

65

Heleno Taveira Tôrres56 estipula as notas do que seja elusão, que consistiria na

utilização de meios aparentemente lícitos que, todavia, afrontariam o ordenamento jurídico

como um todo. Ademais, os negócios ou atos realizados pelos particulares não teriam causa

ou motivo jurídico algum, apenas o intuito de pagar a menor quantia possível a título de

tributo.

Alberto Xavier57 denomina evasão fiscal legítima o ato do particular que consiste em

programar a vida tributária com o intuito de pagar menos tributo utilizando-se de negócios

jurídicos indiretos, que são negócios lícitos, denominando de negócio fiscalmente menos

oneroso, desde que ausente o instituto jurídico da simulação.

Agrupam-se as lições doutrinárias em quatro classes não necessariamente excludentes.

I – Tempo: o planejamento tributário se dá sempre antes da ocorrência do fato

gerador.

II – Licitude da conduta diante do sistema jurídico considerado como um todo.

III – Causa negocial: o planejamento tributário tem como premissa a licitude e deve

ter uma causa negocial além da simples tentativa de economia tributária.

IV – licitude da conduta, causa negocial e realização da capacidade contributiva

positiva, como meios de concretização da solidariedade social.

ele faz é eludir o nascimento da obrigação tributária, daí porque parte da doutrina defende, acertadamente, que não há que se falar em elisão, e sim elusão fiscal. Por quê? Porque elisão é substantivo do verbo elidir, o qual significa esconder. Aquele contribuinte que está desviando-se dos fatos geradores não esconde, não elide a obrigação tributária; ele alude, ou seja, ele se desvia dela. Daí porque seria mais correto falar em elusão como contraponto da evasão fiscal. Mas correntemente se adotou o termo elisão e, portanto, nós aqui falaremos em elisão, já compreendendo que o fenômeno é o de eludir, de desviar-se da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária”. SCHOUERI, Luís Eduardo. Planejamento tributário – elisão e evasão fiscal – simulação – abuso de forma – interpretação econômica – negócio jurídico indireto – norma antielisiva. In: AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues (coord.). Curso de Direito Tributário. São Paulo: Celso Bastos, 2002, p. 288-9. 56 “(... ) o fenômeno pelo qual o contribuinte, mediante a organização planejada de atos lícitos, mas desprovidos de ‘causa’ (simulados ou com fraude à lei), tenta evitar a subsunção de ato ou negócio jurídico ao conceito normativo do fato típico e representa a imputação da obrigação tributária. Em modo mais amplo, elusão tributária consiste em usar de negócios jurídicos atípicos ou indiretos desprovidos de ‘causa’ ou organizados com simulação ou fraude à lei, com a finalidade de evitar a incidência de norma tributária impositiva, enquadra-se em regime fiscalmente mais favorável ou obter alguma vantagem fiscal especifica...”. Elisão seriam “as atitudes que possam ser adotadas pelos contribuintes, na estruturação ou reorganização de seus negócios, tendo como finalidade a economia de tributos, evitando a incidência destes, reduzindo ou diferindo o respectivo impacto fiscal, sem qualquer descumprimento frontal ou indireto das leis”. TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Tributário e Direito privado: autonomia privada, simulação e elusão tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 51. 57 XAVIER, Alberto. A evasão legítima: o negócio jurídico indireto em direito fiscal. Revista de Direito Público n. 23. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. p. 236-53.

66

De acordo com as premissas epistemológicas desenvolvidas não há possibilidade de o

sistema jurídico prescrever que de determinada conduta do particular, ao mesmo tempo, seja

considerada “lícita e ilícita”, ou seja, não existe o “meio lícito”.

Algumas condutas recaem em zonas de difícil enquadramento legal. São questões

concretas que muitas vezes não são captadas por linguagem adequada e as provas a ser

produzidas são de difícil constituição. São situações que geram divergência e em grande parte

percorrem toda a via administrativa desembocando no Poder Judiciário, para que este órgão

em última instância constitua determinada conduta dentro do campo do lícito ou do ilícito.

A dificuldade de enquadramento não significa em nenhuma hipótese que a conduta do

contribuinte pode ser lícita na esfera privada e ilícita na seara da tributação, do contrário a

insegurança permearia o sistema jurídico levando-o ao colapso.

Torna-se sem sentido permitir ao particular a realização de conduta (n) e ao mesmo

tempo permitir ao Fisco desconsiderá-la e requalificá-la, ou seja, nomeá-la como sendo de

outra categoria jurídica.

Ademais, não existe no atual sistema jurídico regra ou princípio que autorize a

realização da esdrúxula situação acima posta: requalificar condutas lícitas.

Há no ordenamento jurídico brasileiro a permissão para que o Fisco desconsidere e

requalifique determinados atos e negócios jurídicos realizados pelo particular quando

realizados na esfera do ilícito. Mesmo que tal enquadramento, na prática, seja de difícil

produção.

Postas essas situações, afirma-se: planejamento tributário é a conduta do contribuinte

lícita que não realiza a hipótese de incidência tributária, descrita em norma geral e abstrata.

Sendo que, quando o particular realizar tal conduta, lícita, está automaticamente respeitando

todas as normas do sistema, incluindo os valores da solidariedade social e da liberdade.

A problemática gira em torno do conceito de licitude.

O que seria lícito ao particular realizar? Nos próximos itens serão descritas as

prescrições Constitucionais e legais que estipulam o modo pelo qual o particular pode realizar

negócios jurídicos sem que estes sejam considerados não oponíveis ao Fisco, é dizer: sem que

sejam considerados desconformes ao Direito, isto é, ilícitos.

67

2.2 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1998 E O PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO

2.2.1 Segurança jurídica e planejamento tributário

Vivemos sob a égide de um Estado Constitucional de Direito. Todas as esferas de

poderes estão submetidas aos mandamentos constitucionais. No ordenamento jurídico

brasileiro, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é fonte de validade às

demais normas jurídicas58, tomadas aqui em acepção larga.

“As vigas mestras” da tributação, no Brasil, estão plasmadas na CF/1988. Sendo a

segurança jurídica um dos principais sustentáculos do ordenamento jurídico.

Aceita a premissa acima exposta, concebe-se segurança jurídica como item

indispensável à possibilidade de o Estado tributar e ao mesmo tempo como garantidora dos

limites à tributação. Segundo Roque Carrazza59:

A União, os Estados-membros, os Municípios e o Distrito Federal, ao fazerem uso de suas competências tributárias, são obrigados a respeitar os direito individuais e suas garantias. O contribuinte tem a faculdade de, mesmo sendo tributado pela pessoa política competente, ver respeitados seus direitos públicos subjetivos, constitucionalmente garantidos.

Segurança jurídica é um sobreprincípio, isso quer dizer que está no topo do

ordenamento jurídico. Serve como instrumento de viabilidade ao Direito. Sem ela (segurança)

o Direito não poderia cumprir a função precípua de regular condutas intersubjetivas. O “caos”

estaria instalado acaso não houvesse a estabilização das relações jurídicas e o mínimo de

previsibilidade nas decisões judiciais. Prossegue Roque Carrazza60:

O princípio da segurança jurídica ajuda a promover os valores supremos da sociedade, inspirando a edição e boa aplicação das leis, dos decretos, das portarias, das sentenças, dos atos administrativos etc. De fato, como o direito visa à obtenção da res justa, de que nos falavam os antigos romanos, todas as normas jurídicas, especialmente as que dão efetividade às garantias constitucionais, devem procurar tornar segura a vida das pessoas e das instituições.

58 Verificar a utilização do conceito de norma utilizado no Capítulo I, item 1.8.12. 59 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 24ª ed. rev. ampl. atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 419. 60 Ibidem, p. 425-6.

68

Muito bem, o direito, com sua positividade, confere segurança às pessoas, isto é, “cria condições de certeza e igualdade que habilitam o cidadão a sentir-se senhor de seus próprios atos e atos dos outros” (Tércio Sampaio Ferraz Junior, “segurança jurídica e normas gerais tributárias”, in RD Tributário 17- 18/51). Portanto, a certeza e igualdade são indispensáveis a tal almejada obtenção da segurança jurídica. Com efeito, uma das funções mais relevantes do direito é ‘ conferir certeza à incerteza das relações sociais’ (Becker), subtraindo do campo de atuação do Estado e dos particulares qualquer resquício de arbítrio. Como o Direito é a ‘imputação de efeitos a determinados fatos’ (Kelsen), cada pessoa tem elementos para conhecer previamente as consequências de seus atos. Isto dá a todos a tranquilidade para planejarem o provir, já que se conhecem o modus qual as regras de conduta serão aplicadas. Por outro lado, a certeza que serão respeitados o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito conferem às pessoas a chamada ‘garantia do passado’ – o que leva à irretroatividade do próprio Direito, fenômeno que já estudamos (capítulo VI, item 9). Como se vê, a segurança jurídica acaba por desembocar na confiança que as pessoas devem ter no direito.

Segurança jurídica não é um “princípio isolado” (na falta de uma expressão mais

adequada), pelo contrário, é um valor que permeia todas as normas. Em outra formulação,

entre as finalidades de toda e qualquer norma está a realização da segurança jurídica.

Apenas para ilustrar, qualquer assunto tributário, desde os relacionados com a

competência para tributar, passando pela incidência da tributação, até os atos de lançamento,

arrecadação e fiscalização de tributos, deverá sempre estar permeado pelo valor segurança

jurídica.

Definir o que seja segurança jurídica e como diretamente concretizá-la no Direito

Tributário passam a ser algo muito fluido, isto é, subjetivo, contrariando o próprio conceito,

ou seja, noção de segurança jurídica, caindo em um aparente paradoxo – para realizar o valor

segurança é necessária a utilização de critérios inseguros, fluídos e instáveis.

Todavia, ao aplicar os preceitos da teoria axiológica, em especial as características

lógicas dos valores, o aparente paradoxo desaparece, pois os critérios objetivos serão

responsáveis pela concretização do valor segurança jurídica.

Como alhures mencionado, os valores não estão em linha horizontal, ou seja, no

momento da concretização o homem formado ideologicamente traça verticalmente a

predileção pelos valores.

Entre as características lógicas encontram-se a bipolaridade, coimplicação e tendência

à graduação hierárquica. Logo, o contrário do valor segurança não é o valor justiça ou

injustiça, e o contrário do valor justiça não é o valor segurança ou insegurança. Pois o oposto

(bipolaridade) do valor segurança é a insegurança, o oposto do valor justiça é a injustiça.

69

Continuando o raciocínio, um valor só se concretiza quando o valor da escala

hierárquica imediatamente inferior é realizado. Trata-se de um processo de concretização que

parte de baixo para cima. Segue exemplo e ilustração (Figura 1).

A pirâmide tenta demonstrar a escala de valor de determinado intérprete, em que o

valor justiça é o mais importante do ordenamento jurídico, sendo considerado o feixe terminal

do sistema. Abaixo de justiça se encontra o valor segurança jurídica e, imediatamente abaixo

deste, o valor igualdade, sendo todos valores concretizados no Direito Tributário pelos limites

objetivos postos à tributação.

Figura 1. Valores e limites objetivos

Ao participante do Direito Positivo brasileiro, em especial ao “aplicador” da lei, para

não cair no paradoxo acima exposto (fluidez no momento de concretizar o valor segurança

jurídica), faz-se a seguinte proposta:

a) em primeiro lugar, devem realizar-se os limites objetivos, que são regras,

espécies de normas, que visam realizar um fim (valor), no caso a segurança jurídica. Vale

dizer que os limites objetivos são regras aferíveis empírica e objetivamente, ou seja,

geralmente são menos lacunosos e mais palpáveis do que os valores;

b) concretizando todas as regras (limites objetivos) do microssistema de Direito

Tributário brasileiro (anterioridade, legalidade, irretroatividade, prescrição, capacidade

contributiva etc.), pela perspectiva da teoria dos valores, estar-se-á automaticamente

concretizando o valor segurança jurídica;

70

c) concretizado o valor segurança jurídica, por via oblíqua, estar-se-á realizando o

feixe que dá status de sistema ao direito, isto é, o valor justiça.

Conclui-se a priori que não se ponderam valores diferentes, pelo contrário, realiza-se

dentro da escala hierárquica o valor imediatamente inferior para realizar o valor

imediatamente superior.

2.2.2 Liberdade de iniciativa e planejamento tributário

É inegável a existência e a positivação em âmbito constitucional do direito de se auto-

organizar do particular. Está-se tratando do valor liberdade. O particular é livre, entre outras

coisas, para tentar pagar a menor quantia possível a título de tributo, desde que, adiante-se,

não desrespeite nenhuma regra ou princípio jurídico. O diálogo entre a situação jurídica da

administração pública e do particular comprovará tal afirmação.

Em termos jurídicos, a situação jurídica da administração pública é diferente da do

particular. A asserção delineada é ratificada por meio da interpretação dos enunciados postos

na CF/1988 e do mergulho nos altiplanos da teoria do Direito.

Para compreender a possibilidade do agir do particular, mister se faz compará-la ao

modo de ação prescrita para a administração pública.

Não há dúvidas de que o agir da administração pública é condicionado à realização do

interesse público, ou seja, a busca pela concretização do denominado bem comum.

Para tal escopo a administração pública exerce função pública. Celso Antônio

Bandeira de Melo61 assevera que há função pública “quando alguém está investido no dever

de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto,

manejar os poderes requeridos para supri-las”.

O princípio da supremacia do interesse público sobre o particular é o enunciado que

fundamenta as regras que estabelecem prerrogativas da administração pública em face do

61 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 71.

71

particular, sendo o instrumento primordial que possibilita a realização do denominado

interesse público.62

Por outro lado, o particular não exerce função pública63, sua situação jurídica

simplesmente é de particular.

Ricardo Marcondes Martins64:

Os particulares não possuem o dever de buscar a realização de interesse alheio, mais o direito de buscar realização dos próprios interesses. O sistema jurídico garante-lhes a faculdade de buscar a concretização dos princípios jurídicos relativos aos seus interesses. Essa situação biparte-se em duas prerrogativas. Primeiramente, os particulares gozam da liberdade – respeitadas as restrições impostas pelo ordenamento, ou seja, as várias limitações legais e administrativas – de decidir sobre sua esfera jurídica (...) Em segundo lugar, nessa esfera de liberdade, os particulares, podem buscar a máxima – a seguir demonstrar-se-á que, na verdade, não se trata de uma “máxima” –realização de seus interesses. Um exemplo: incidem no caso o princípio da proteção

62 Segundo Luís Roberto Barroso: “O interesse público primário consiste na melhor da realização possível, à vista da situação concreta a ser apreciada, da vontade constitucional, dos valores fundamentais que ao intérprete cabe preservar ou promover”. BARROSO, Luís Roberto. Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia o interesse público. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. Prefácio, p. XVI. 63 Em algumas hipóteses legais os particulares exercem função pública, como no caso da curatela, tutela etc. 64 MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso de direito e a constitucionalização do direito privado. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 63-4, 96-7. O autor adota ponderação de princípios, inclusive na seara privada, em que o particular, além de ter de respeitar as regras que limitam sua atuação, deve utilizar a ponderação de princípios da seguinte forma: I – “primeira: quando uma pessoa privada edita uma norma jurídica (uma regra), incide o princípio jurídico afetado pela regra editada, de forma similar ao que ocorre no direito público. Nesse caso o princípio possui a seguinte estrutura: em sua hipótese prevê-se a edição de uma regra jurídica pelo particular. Na consequência impõe-se ao particular, editor da regra, o deve de efetuar a ponderação: de apurar, diante das circunstâncias do caso perante o qual a norma é editada, o peso do princípio e, na medida do peso apurado, até que ponto há liberdade. Quer dizer, até que ponto a liberdade é afastada pelo princípio incidente: deve apurar enfim, qual o grau de afetação, admitido pelo sistema normativo, do valor positivado no princípio, considerado seu direito à liberdade, e observar no conteúdo da norma editada o limite apurado. Dá-se aos demais membros da coletividade o direito de exigir do particular editor da regra que cumpra esses deveres. O princípio é nesse caso, norma de estrutura: disciplina a produção de regras jurídicas pelos particulares, o exercício da chamada autonomia privada. (...); II – segunda situação: quando um particular age – não o agir relativo á edição de uma regra, o agir que dá ensejo a fatos materiais e jurídicos – incide também o princípio. A estrutura é muito similar à anterior: na hipótese prevê-se a prática do fato material ou jurídico (por exemplo, flagelar-se). Na consequência impõe-se ao particular, autor do fato, o dever de efetuar a ponderação: de apurar, diante das circunstâncias do caso perante o qual a conduta é realizada (rectius, o fato praticado), o peso do princípio e , na medida do peso apurado, até que ponto há liberdade. Quer dizer, até que ponto a liberdade é afastada pelo princípio incidente. Ele deve apurar, enfim, qual o grau admitido pelo sistema normativo de afetação do valor positivado no princípio, considerado seu direito à liberdade, e observar na sua conduta o limite apurado. Dá-se aos demais membros da coletividade o direito de exigir do agente – do particular que age, que realiza a conduta, e pois, dá ensejo ao fato jurídico – que cumpra esses valores. O princípio nesse caso é norma de conduta: disciplina diretamente a conduta dos particulares e não a produção de normas jurídicas (...)”. Em outros termos: unicamente ligado á sua órbita de autonomia privada, o particular deve também interpretar os princípios jurídicos que se contrapõem à sua liberdade tanto na sua atuação em dada situação concreta ou quando dá realização de negócios jurídicos. Logo, deve ocorrer a “ponderação” especifica entre a liberdade e o princípio que se contrapõe especificamente à atuação concreta do particular, e não a todo e qualquer princípio do sistema jurídico. Sendo que, após a ponderação por ventura fique denotado que o comportamento do particular afeta o sistema normativo, sua conduta ou negócio jurídico não deverá ser realizado, e se concretizado estar-se-á cometendo um ilícito, cabível de sanção pelo Direito”.

72

ao meio ambiente (P1), o princípio do direito à propriedade (P2), o princípio da livre iniciativa econômica (P3). O particular deve obedecer às limitações legais e administrativas expressamente fixadas relativas à proteção do meio ambiente, essas limitações concretizam P1. Respeitadas essas limitações, percebe-se, o particular não é obrigado a apurar a incidência de P1, P2 e P3, Pn e efetuar ponderação. Pode buscar a “máxima realização” de P2 e P3. A diferença, pois entre o interesse público e o interesse individual é que o interesse individual não se compromete com a ponderação de todos princípios incidentes no caso, busca a máxima realização dos princípios que beneficiam a esfera do respectivo individuo; o interesse público busca a máxima realização de todos os princípios incidentes, até mesmo dos princípios que beneficiam a esfera individual. Se o interesse individual consiste na máxima realização de P1, por exemplo, o interesse público consiste na máxima realização de P1, P2, P3, Pn (...) Insiste-se num ponto: a situação do particular não é a situação de função pública, ele não deve simplesmente concretizar da melhor forma possível todos os princípios jurídicos incidentes. Ele é livre para, respeitadas as regras estatais, buscar realização de seus próprios interesses. O sistema lhe impõe que pondere os princípios afetados pela norma que pretende introduzir porque essa é a única forma de apurar até onde é permitido afetar esses princípios, quer dizer, o que o sistema lhe impõe é a apuração e o respeito deste grau. Ele deve apurar pela ponderação se o Direito lhe permite ou não editar a norma que pretende, ou seja, se o grau de afetação dos princípios contrários está na órbita de liberdade que o sistema garante.

Algumas colocações merecem ser feitas: I – compreende-se que ponderar não é nada

mais do que interpretar; II – para aplicação de qualquer regra ou princípio deve haver a

intepretação/ponderação com outras regras e princípios, tanto em âmbito de coordenação

como em subordinação; III – o particular depois de interpretar as regras e princípios, tanto os

contrários como os que colaboram com sua atuação no caso concreto (tanto expedir normas

ou reger sua conduta), é completamente livre para realizar quaisquer movimentos na esfera

pessoal. Diferentemente da administração pública que possui apenas discricionariedade, ou

seja, possibilidade de escolha depois da positivação dos enunciados legais; IV – na órbita do

interesse público faz parte o interesse privado, porém, o inverso não é verdadeiro. No

interesse privado não está necessariamente presente o interesse público, o que existe são

normas constitucionais, legais e administrativas que aumentam ou diminuem o espectro de

atuação privada, realizando-se apenas por via oblíqua o interesse público. Esse é o papel

jurídico do cidadão no Estado Democrático de Direito; V – A administração pública deve

sempre analisar todas as regras e princípios e os meios de concretização para em seguida

poder agir e concretamente realizar o interesse público, inclusive deve analisar o interesse dos

particulares. O particular em si mesmo não necessita utilizar de todo esforço interpretativo

feito pela administração pública, ou seja, no caso concreto limita-se a não infringir nenhuma

norma, haja vista que para concretizar o próprio interesse não precisa averiguar se o interesse

público ou de outros particulares está sendo realizado, como dito, basta não desrespeitar os

enunciados que lhe limitam a atuação, ou seja, as regras e princípios legais e constitucionais.

73

Outra característica que diferencia a situação jurídica da administração pública da do

particular é que este possui autonomia privada para regular juridicamente a própria esfera de

atuação, ou seja, desde que respeite a lei ou a Constituição é permitido agir. Enquanto para

aquela é obrigatório concretizar os comandos constitucionais e legais.

Paulo de Barros Carvalho65:

Cumpre centrar nossas atenções aos conceitos traçados pelos princípios ontológicos do direito, figurando sua importância no contexto do caso ora analisado. Estes princípios, também conhecidos como leis ontológicas, são geralmente apresentados pelas expressões seguintes: ‘tudo que não estiver juridicamente proibido, estará juridicamente permitido’ e ‘tudo que não estiver juridicamente permitido, estará juridicamente proibido’. Entende-se o primeiro como princípio determinante do regime jurídico privado; e o segundo, por outro lado, do sistema normativo público.

Isso significa que o particular possui enorme campo de atuação, tanto para criação do

direito como para utilização das categorias jurídicas. Enquanto a administração pública tem

campo de atuação muito mais restrito, visto que a criação e utilização de institutos normativos

é permitida apenas nos setores em que existe a autorização da Constituição ou da lei para agir.

Realizando a primeira interseção com a temática do planejamento tributário, é

perfeitamente aceitável afirmar: I – o particular é livre (não existe proibição) para realizar

negócios jurídicos única e exclusivamente com o intuito de pagar a menor quantia de tributo,

desde que não desrespeite regra ou princípio jurídico; II – até o presente momento não existe

no sistema jurídico brasileiro nenhuma autorização legal (não existe permissão legal) para que

o Fisco desconsidere atos ou negócios jurídicos realizados pelo particular com o único intuito

de pagar a menor quantia a título de tributo, logo, se o particular não desrespeitar regras e

princípios, a administração pública nada tem a fazer.

Ricardo Marcondes Martins66:

Eis o terreno da autonomia privada: é a possibilidade concedida aos particulares de editar, na esfera de liberdade garantida pelo sistema normativo, normas jurídicas que não são meras concretizações das normas legislativas e constitucionais. A legislação é mera concretização das normas constitucionais e a administração é mera concretização das normas constitucionais e legislativas. Por isso, rigorosamente, não existe autonomia pública, só existe autonomia privada. O poder normativo do Estado não se dá em espaços livres, está vinculado ao cumprimento, à execução da Constituição.

65 CARVALHO, Paulo de Barros. A livre iniciativa no Direito Tributário brasileiro. In: Derivação e positivação no Direito Tributário, São Paulo: Noeses, 2012, p. 66 66 MARTINS, R.M. Op. cit., p. 72.

74

Vale a digressão: a regra é de que a administração pública pode obrigar o particular a

realizar alguma ação ou omissão somente depois da positivação no sistema jurídico de lei,

criada pelo Legislativo, capaz de concretizar as prescrições constitucionais. Salvo se a própria

Constituição prescrever, por meio de regras constitucionais, a ação ou omissão a ser realizada

pelo particular. Interpretação esta que toma como base o enunciado constitucional do artigo

5º, II, CF/8867.

A corrente denominada neoconstitucionalismo68 aceita que a administração pública se

utilize diretamente de um princípio constitucional sem a existência de lei para limitar o

espectro de liberdade do particular em prol de outros princípios constitucionais considerados

fundamentais, como a dignidade da pessoa humana. Todavia, mesmo os adeptos dessa linha

teórica não aceitam que a administração pública obrigue o particular a realizar (fazer)

determinada conduta (n). O caso é do denominado “poder de polícia”, ou seja, a

administração pública, mesmo sem a existência de lei, apenas pode obrigar o particular a não

fazer (omissão) ou a suportar determinada limitação para poder concretizar outros princípios

constitucionais.

Ricardo Marcondes Martins69:

O exercício do poder de polícia (que por si só é excepcional) dá-se pela imposição de abstenções; excepcionalissimamente, pela imposição do dever de suportar, mais jamais pela imposição do dever de fazer. Trata-se de uma conclusão de fundamental importância: no atual estágio da Ciência do Direito admite-se que, excepcionalmente, a Administração imponha, com base diretamente na Constituição, sem o arrimo em lei, aos administrados obrigações de não-fazer. Não importa o peso dos princípios, se não houver lei que imponha obrigação de fazer, a Administração, na ponderação efetuada diante do caso concreto, não poderá fazê-lo. A imposição de deveres comissivos, de obrigações de fazer é incompatível com o poder de polícia.

Segunda interseção com o planejamento tributário: I – toma-se como premissa que a

administração pública somente pode agir com fundamento direto na lei, positivada pelo

Legislativo. Hoje, não existe autorização no sistema jurídico brasileiro para que haja a

desconsideração ou requalificação jurídica de ato ou negócio realizado pelo contribuinte que o

fez com o único intuito de pagar a menor quantia possível a título de tributo; II – aceitando-se,

67 Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...); II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; 68 MARTINS, R.M. Op. cit., passim. 69 Ibidem, p. 114.

75

somente por hipótese, que a administração pública retirasse seu fundamento para agir

diretamente da Constituição, sem a presença de lei, a justificativa deveria estar

completamente calcada na defesa de direitos fundamentais como a dignidade da pessoa, a

proteção à vida, a dignidade do trabalho etc. Desta feita, acaso a administração pública queira

desconsiderar e requalificar determinado negócio jurídico realizado pelo contribuinte que o

fez, dentro de seu campo de liberdade, com a única intenção de pagar menos tributo, como

não há lei que proíba este agir do particular, a administração pública só poderá desconsiderar

e requalificar certos atos ou negócios desde que as atitudes do particular afrontem

comprovadamente algum direito fundamental. Assim, apenas seria possível o desfazimento

(omissão, deixar de fazer,) do ato ou negócio realizado pelo particular ou que ele

passasse a suportar determinada consequência (requalificação do ato ou negócio) em

especialíssimos casos, nunca sendo possível a obrigação da realização de determinada

conduta (ação, hipótese normativa). Pois bem, vale a reflexão, mesmo que não seja em

termos estritamente jurídicos, porém, serve à compreensão: em tema de tributação, a

administração na atualidade visa realizar seu interesse secundário70, no caso a busca por

sucessivos recordes de arrecadação. Prova disso, são os inúmeros recursos simplesmente

protelatórios protocolados com o único intuito de evitar a perda de arrecadação e fiscalizações

visando tão somente bater as metas no setor de fiscalização, muito embora, esta última seja

uma situação de certa forma “implícita”, porém, aqueles que atuam no dia a dia

tributário sabem que se trata da realidade71. Neste momento, a justificativa é a legalidade,

70 MELO, C.A.B. Op. cit., p. 65. “Uma vez reconhecido que os interesses públicos correspondem à dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, que consistem no plexo dos interesses dos indivíduos enquanto partícipes da sociedade (entificada juridicamente no Estado), nisto incluído depósito intertemporal destes mesmos interesses, põe-se a nu a circunstância de que não existe coincidência necessária entre interesse público e o interesse do Estado e demais pessoas de direito público. É que, além de subjetivar estes interesses, o Estado, tal com os demais particulares, é também ele, uma pessoa jurídica, que pois, existe e convive no universo jurídico em concorrência com todos os demais sujeitos de direito. Assim, independentemente do fato de ser, pro definição, encarregado dos interesses públicos, o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhe são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa. Estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob prisma extrajurídico), aos interesses de qualquer outro sujeito. Similares, mas não iguais. Isto porque a generalidade de tais sujeitos pode defender esses interesses individuais, ao passo que o Estado, concebido que é para a realização de interesses públicos (situação, pois, inteiramente diversa das dos particulares), só poderá defender seus próprios interesses privados quando, sobre não se chocarem com os interesses públicos propriamente ditos, coincidam com a realização deles. Tal situação ocorrerá sempre que a norma donde deflui os qualifique como instrumentais ao interesse público e na medida que o sejam, caso em que sua defesa será ipso facto, simultaneamente, a defesa de interesses públicos por concorrerem indissociavelmente para satisfação deles. Esta distinção a que se acaba de aludir, entre interesses públicos propriamente ditos – isto é, interesses primários do Estado – e interesses secundários (que são os últimos a que se aludiu), é de trânsito corrente e moente na doutrina italiana, e há um ponto tal que, hoje, poucos doutrinadores daquele país se ocupam em explicá-los, limitando-se a fazer-lhes menção, como referência a algo óbvio, de conhecimento geral”. 71 Comprova-se o asserto pela portaria a seguir exibida. Em que há determinação para que sejam alcançados recordes arrecadatórios. Existem outros instrumentos normativos semelhantes espelhados. Vide Anexo 1.

76

ou seja, é “obrigação” do Fisco cumpri-la, assim o agente da administração é obrigado a

recorrer, mesmo sabendo da futura improcedência dos recursos e da existência do direito do

particular a não ser tributado daquela forma. Os atos administrativos não se coadunam, na

maioria das situações, com a busca pela concretização do direito fundamental da dignidade da

pessoa humana, do direito à vida ou a da própria solidariedade social. Logo, apenas por meio

das provas carreadas em direito, mediante a análise do caso concreto, e em situações muito

especiais poderia o Fisco desfazer um ato ou negócio do particular pelo motivo de ter o

particular agido com o único intuito de não pagar tributo e desde que esse ato tenha afetado

algum direito fundamental. Assim, o Fisco poderia até desfazer e fazer com que o particular

suporte a requalificação. Todavia, o que deve ser frisado é: o simples agir com o intuito de

tentar pagar o menor tributo possível por si só não afeta em abstrato nenhum direito

fundamental. Logo, por essa elaboração é proibido haver a requalificação e

desconsideração de atos e negócio jurídicos. Estas são as notas que devem ficar retidas.

Paulo de Barros Carvalho72:

A legislação brasileira, no entanto, não admite sobreposição do conteúdo econômico em relação à forma. Sendo lícito o ato – pois não se encontra juridicamente proibido, nem tão pouco infringe prescrição legal alguma – não pode ele ser desconsiderado pela autoridade administrativa, com o argumento de que implicaria menor carga tributária.

Consigna-se que a liberdade de iniciativa está prescrita na Constituição Federal73. Em

três passagens da carta constitucional o signo liberdade inciativa se destaca: I – valor social da

livre inciativa, posta no artigo 1º, IV; II – livre iniciativa posta no artigo 170 caput; III – livre

concorrência prescrita no artigo 170, IV. Em todos os casos há uma significação em comum:

o valor liberdade, todavia, não se trata de uma sobreposição no Direito Positivo do liberalismo 72 CARVALHO, Paulo de Barros A livre iniciativa no Direito Tributário brasileiro. In: Derivação e positivação no Direito Tributário, São Paulo: Noeses, 2012., p. 77. 73 “Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Paragrafo único: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; X-tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único: É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”

77

econômico, haja vista, por exemplo, o valor social da livre inciativa colaborar na formação do

conceito do que seja liberdade de iniciativa.

Adiante-se: liberdade de inciativa é um princípio jurídico que permeia o Texto

Constitucional e encontra limites no próprio Direito Positivo.

Eros Roberto Grau74:

Livre inciativa é termo de conceito extremamente amplo. Não obstante, a inserção no art. 170, caput, tem conduzido à conclusão, restrita, de que toda a livre iniciativa se esgota na liberdade econômica ou de inciativa econômica. Dela- da livre iniciativa – se deve dizer, inicialmente, que expressa desdobramento da liberdade.

Especifique-se:

I – livre iniciativa do artigo primeiro da CF/1988 é fundamento da República

Federativa do Brasil;

II – livre iniciativa do artigo 170 caput é princípio da “ordem econômica” e engloba

tanto a liberdade iniciativa econômica, como social e individual. Assim não deve ser apenas

observada como a liberdade da empresa. Ao contrário, é o valor liberdade em toda

potencialidade. Desta feita, uma das facetas da livre inciativa é a liberdade de inciativa

econômica, em que um dos titulares é a empresa, porém, não somente ela. Ademais, isso não

significa liberdade irrestrita, pois na própria CF e nas leis existem limites a qualquer tipo de

liberdade.

Eros Roberto Grau75:

Insisto em que a liberdade de iniciativa econômica não se identifica apenas com a liberdade de empresa. Pois, é certo que ela abrange todas as formas de produção, individuais ou coletivas (...) Assim, entre as formas de iniciativa econômica encontramos além da iniciativa privada, a iniciativa cooperativa (art. 5º, XVIII e, também, art. 174, §§3º e 4º), a inciativa autogestionária e a iniciativa pública (arts. 173 e 177).

III – livre concorrência seria princípio da ordem econômica.

Tércio Sampaio Ferraz Junior76:

74 GRAU, Roberto Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 203. 75 Ibidem, p. 204. 76 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A economia e o controle do Estado. Parecer publicado no jornal O Estado de S.Paulo. 04/06/1989. In: GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 212.

78

A livre concorrência de que fala a atual Constituição como um dos princípios da ordem econômica (art. 170, IV) não é a do mercado concorrencial oitocentista de estrutura atomística e fluida, isto é, exigência estrita de pluralidade de agentes e influência isolada e dominadora de um ou uns sobre outros. Trata-se, modernamente, de um processo comportamental competitivo que admite gradações tanto de pluralidade quanto de fluidez. É este elemento comportamental – a competitividade – que define a livre concorrência. A competitividade exige, por sua vez, descentralização de coordenação como base da formação dos preços, o que supõe livre iniciativa e apropriação privada dos bens de produção. Neste sentido, a livre concorrência é forma de tutela do consumidor, na medida em que competitividade induz a uma distribuição de recursos a mais baixo preço. De um ponto de vista político, a livre concorrência é garantia de oportunidades iguais a todos os agentes, ou seja, é uma forma de desconcentração de poder. Por fim, de um ângulo social, a competitividade deve gerar extratos intermediários entre grandes e pequenos agentes econômicos, como garantia de uma sociedade mais equilibrada.

Em matéria de planejamento tributário: I – planejamento tributário – elisão/lícito – não

gera desiquilíbrio de mercado, haja vista se tratar de mecanismo de competição permitido

pelo Direito Positivo, assim como o é a qualidade dos serviços e produtos a ser ofertados no

mercado; II – diferenças de concorrências geradas por atitudes ilícitas dos contribuintes –

evasão/ilícito –, são cabíveis de correição pelo Fisco, desconsiderando e requalificando

determinados atos e condutas dos particulares; III – a redução de custos tributários induz a

diminuição de preços ao consumidor, fazendo com que a livre concorrência sirva como

instrumento social ao acesso dos particulares aos bens de consumo.

2.2.3 Capacidade contributiva e planejamento tributário

Capacidade contributiva é regra positivada no artigo 145 §1º da Constituição Federal.

Roque Carrazza77:

A capacidade contributiva à qual alude a Constituição e que a pessoa política é obrigada a levar em conta ao criar, legislativamente, os impostos de sua competência é objetiva, e não subjetiva. É objetiva porque se refere não às condições econômicas reais de cada contribuinte, individualmente considerado, mas as suas manifestações objetivas de riqueza (ter um imóvel, possuir um automóvel, ser proprietário de joias ou obra de arte, operar em Bolsa, praticar operações mercantis etc.).

A Constituição de 1988 enuncia que os impostos deverão ser criados segundo a

capacidade contributiva. Todavia, adota-se a postura de que qualquer tributo ao ser criado

77 CARRAZZA, Roque. Op. cit., p. 90.

79

deve respeitar os ditames da capacidade contributiva. Pois, em verdade, capacidade

contributiva é critério de concretização do valor segurança e igualdade.

Capacidade contributiva é regra destinada ao legislador positivo no momento da

criação em abstrato de tributo e ao aplicador/criador em concreto do tributo (Executivo e

Judiciário). Todavia, indiscutível que o modo de utilização do referido critério será diferente

conforme se trate de uma ou outra categoria.

O legislador positivo pode, respeitado os limites constitucionais, escolher qualquer

manifestação de riqueza e fazê-la apta a ser critério de tributação. Por outro lado, o agente

fiscal não pode, por meio de sua discricionariedade, alterar, modificar ou alargar nenhuma

hipótese tributária, mesmo que haja em nome da capacidade contributiva positiva. Do

contrário, estará desrespeitando a lei ordinária criadora do tributo e a própria competência

constitucional tributária, tão bem delineada pelo legislador constitucional originário.

Sacha Calmon Navarro Coelho78, mesmo adotando a capacidade contributiva

subjetiva79, enfatiza que a capacidade contributiva é meio para realizar a igualdade e por

consequência a justiça fiscal:

Neste passo, recorde-se que, segundo entendemos, é no ideal de justiça que se inspira o princípio da igualdade, cujo conteúdo, por sua vez, é integrado no Direito Tributário pelo princípio da capacidade contributiva, determinando-se desta forma o profundo sentido ético-jurídico do tributo, que não poderá fugir ao que Heinrich Kruse denomina princípio da justiça da imposição, cuja interpretação, afinal cabe ao Poder Judiciário. Ora, se um tributo viola a capacidade contributiva estará desrespeitando a própria isonomia constitucional e a diretriz da justiça (fiscal) de que se reveste o princípio. Por isso entendemos que a injustiça tributária se transmuda em inconstitucionalidade da lei que a tenha estabelecido, por desrespeito à capacidade contributiva e a fortiori à igualdade.

78 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 90. 79 Sacha Calmon Navarro Coelho adota a capacidade contributiva subjetiva: “Do ponto de vista subjetivo, a capacidade econômica se inicia após a dedução das despesas necessárias para a manutenção de uma existência digna para o contribuinte e sua família. Tais gastos pessoais obrigatórios (com alimentação, vestuário, moradia, saúde, dependentes, tendo em vista as relações familiares e pessoais do contribuinte etc.) devem ser cobertos com rendimentos em sentido econômico – mesmo no caso dos tributos incidentes sobre o patrimônio e heranças e doações – que não estão disponíveis para o pagamento de impostos. A capacidade contributiva subjetiva corresponde a um conceito de renda ou patrimônio líquido pessoal, livremente disponível para o consumo e, assim, também para o pagamento de tributo. Dessa forma, se realizam os princípios constitucionalmente exigidos da pessoalidade do imposto, proibição do confisco e igualdade, conforme dispõem os arts. 145§1º, 150, II e IV, da Constituição”. Ibidem, p. 83.

80

Sacha Calmon reforça o entendimento de que ao Executivo e Judiciário é dada tarefa

de concretização do princípio da capacidade contributiva, sendo esta meio para atingimento

da igualdade e justiça fiscal.

Algumas conclusões, ainda que parciais, surgem:

a) capacidade contributiva → manifestação objetiva, pressuposto da hipótese

normativa tributária → dirigida ao legislador, ao Executivo e Judiciário → utilizada como

limite negativo à atuação do Fisco. Proteção do contribuinte. Meio para concretizar a

igualdade e justiça fiscal. Não autoriza a desconsideração da hipótese de incidência, em prol

da realização da capacidade contributiva positiva;

b) capacidade contributiva → manifestação subjetiva, pressuposto da capacidade

econômica “real” do contribuinte → dirigida ao legislador, ao Executivo e Judiciário →

utilizada como limite negativo à atuação do Fisco. Proteção do contribuinte. Meio para

concretizar a igualdade e justiça fiscal. Não autoriza a desconsideração da hipótese normativa

em prol da capacidade contributiva positiva.

Independente da diferença entre as duas correntes analisadas, no específico ponto da

utilização concreta do Executivo/Judiciário, nenhuma das linhas afirma que o contribuinte que

realiza determinado negócio jurídico, que não subsome a determinada hipótese normativa,

pela força positiva da capacidade contributiva teria de arcar com tributo se a operação que

realizou atinge a mesma finalidade da operação tributada. Ou melhor, nenhuma das duas

linhas afirma que a finalidade do negócio jurídico é elemento para qualificar determinada

operação em certa categoria de ato ou negócio jurídico.

Por outro lado, Marco Aurélio Greco80:

Há um terceiro entendimento a ser considerado que defende existir um ângulo positivo do ‘sempre que possível’, no sentido de o preceito conter a previsão de que “só quando não for possível é que pode deixar de ser atendido o princípio da capacidade contributiva”. Ou seja, colocando a tônica no “sempre” e não no “possível”. Sempre que for possível atenda a capacidade contributiva. Vale dizer, se puder demonstrar que era possível atender à capacidade contributiva e isto não foi feito, haverá violação ao dispositivo constitucional. Ou seja, não é apenas quando ela inexistir (limite negativo) que haverá inconstitucionalidade, mas também quando existir, mas não for adequadamente captada, haverá violação ao §1º do artigo 145. Numa visão forte, a expressão está determinando que a capacidade contributiva deve ser, necessariamente, atingida sempre que detectada.

80 GRECO, M.A. Op. cit., p. 327.

81

Marco Aurélio considera que o cidadão tem o dever de contribuir com a manutenção

do Estado por implicação do princípio da solidariedade social. Caberia ao agente fiscal

desconsiderar e requalificar atos e negócios jurídicos pelo fato de que o contribuinte que

possui a mesma riqueza econômica de outro cidadão em idêntica posição não poderia escolher

realizar determinada operação não tributada ou menos tributada, pois deveria ter escolhido a

operação que subsume ao arquétipo tributário de acordo com a capacidade contributiva

positiva. Eis novamente suas palavras:

Quando digo que a capacidade contributiva vai iluminar a interpretação significa que ao interpretar determinado artigo da lei, não devo fazê-lo isoladamente, nem apenas como elemento que está conectado dentro do conjunto formal. É preciso verificar qual manifestação da capacidade contributiva ele quer alcançar. A pergunta a fazer é se a previsão legal está qualificando o nome do contrato ou o perfil do contrato. Assim, da perspectiva da capacidade contributiva, quando a lei estiver se referindo a “compra e venda” , mas ao tipo de manifestação de capacidade contributiva que se dá através da compra e venda. Note-se como muda a interpretação. Uma coisa é interpretar o texto no sentido de que foi alcançado o contrato de compra venda, outra coisa é ser alcançada a manifestação de capacidade contributiva que advém do contrato de compra e venda.

Três situações emergem:

a) caso se entenda “o sempre que possível” do artigo 145, §1º da CF/88 como

sendo a capacidade contributiva positiva, seria até possível aceitar sua existência. Porém, esta

seria dirigida apenas ao legislador ordinário, nunca ao Executivo/Judiciário. Assim, sempre,

positivamente deve o legislador fazer valer a capacidade contributiva, manifestação objetiva

de riqueza;

b) rejeita-se peremptoriamente que capacidade contributiva positiva seja a

autorização para o agente fiscal requalificar atos e negócios jurídicos realizados pelos

contribuintes que possuam a mesma capacidade econômica, porém, decorrente de negócios

jurídicos distintos. Se um contribuinte não realizou a hipótese de incidência da norma geral e

abstrata tributária, não há que cogitar de tributação. De forma nenhuma se estará

desrespeitando a isonomia tributária pelo fato de dois sujeitos com igual capacidade

econômica não arcarem com a mesma carga tributária. Pois a única capacidade contributiva

que pode ser apreendida é a posta na hipótese normativa tributária;

c) capacidade contributiva não é critério apto para determinar o enquadramento

jurídico de determinado ato ou negócio jurídico. O sistema possui códigos próprios e

programas que determinam como realizar tal escopo.

82

Do mesmo modo que é feita a crítica ao “legalismo exacerbado”81, o excesso de

capacidade contributiva pode ser ainda mais maléfico ao sistema jurídico.

Marco Aurélio Greco:

No regime da CF/88, a capacidade contributiva assume importância e caráter muito mais relevante do que anteriormente se lhe reconhecia. No texto atual, a capacidade contributiva, por ser um princípio do sistema tributário, é diretriz positiva de sua conformação. Assim, por dizer respeito à composição estrutural e funcional do sistema, sua aplicação ocorre antes mesmo da aplicação da igualdade tributária (hoje limitação por força do artigo 150, II). Ou seja, a igualdade em matéria tributária foi colocada pelo constituinte como critério para implementação concreta do sistema, cuja conformação é dada pela capacidade contributiva. Isto altera a relação entre os conceitos: antes, eles se conjugavam de modo que, para haver igualdade tributária, se atenderia à capacidade contributiva; hoje, primeiro deve ser perquirida a existência de capacidade contributiva para que a tributação (ao menos em se tratando de impostos) se justifique e , depois, sendo cabível o imposto, este deverá ser instituído sem a violação à igualdade.

Para Marco Aurélio Greco,82 igualdade geral, igualdade tributária e capacidade

contributiva são categorias jurídicas autônomas:

Neste contexto, a igualdade tributária deixa de ser um princípio informador da tributação para se transformar em critério de distribuição da carga tributária, à vista da manifestação de capacidade contributiva. Ou seja, a capacidade contributiva deixa de ser um desdobramento da igualdade, para se vincular diretamente à liberdade e à solidariedade no sentido de busca da justiça. Detectada a capacidade contributiva a ser captada pelo imposto, o poder de tributar deverá ser exercido positivamente no sentido de alcançá-la, ao mesmo tempo em que deverá atender a uma limitação, qual seja, fazê-lo com isonomia, sem discriminações. Em suma, isonomia é critério de atingimento da capacidade contributiva (pelo menos em se tratando de impostos) e parâmetro de aplicação e interpretação das normas que disciplinam o tributo.

Quanta igualdade positivada na Constituição Federal de 1988! O “excesso de

legalismo” não deve ser combatido pelo “excesso de igualitarismo”, postura que se aproxima,

em muito, ao totalitarismo.

Por essa linha de raciocínio, existe a igualdade tributária como limite negativo à

tributação, a capacidade contributiva positiva como princípio geral da tributação e a igualdade

geral como princípio geral do Direito.

Realizando a intersecção com o planejamento tributário pela linha acima exposta:

deverá ser tributado determinado contribuinte se, entre outras coisas, realizou determinada

81 GRECO, M.A. Op. cit., p. 215-216. 82Idem, p. 217-8.

83

operação com o único intuito de “fugir” de determinada hipótese normativa, sendo que, pelo

princípio da capacidade contributiva positiva, deve ser captada a manifestação econômica

indicada em determinada hipótese normativa.

Em outros termos: em planejamento tributário, determinada categoria jurídica passa a

ter certa significação de acordo com a finalidade em que se a utiliza, ou seja, de acordo com a

manifestação de capacidade contributiva positiva manifestada em determinada hipótese

normativa. Sendo um desrespeito à capacidade contributiva positiva a não tributação de

determinado contribuinte, quando sua escolha por determinada operação resulte em menor

carga tributária, pelo único motivo de não querer pagar tributo.

Não está escrito em lugar nenhum que igualdade geral e igualdade tributária são

categorias jurídicas autônomas e independentes que devam ser realizadas a todo custo pelo

legislador e pelo Poder Executivo e Judiciário. O “excesso de igualdade” destoa ainda mais

do Estado Constitucional de Direito, deixando as cores da bandeira nacional próximas ao

vermelho autoritarista, apenas para utilizar os termos de Marco Aurélio Greco.83

O valor igualdade permeia o Direito, e a regra da capacidade contributiva está

prescrita na Constituição de 1988, porém, o adjetivo “positivo” não está prescrito nem em

âmbito legal, quanto mais na seara constitucional.

Capacidade contributiva é regra de tributação que visa a um fim. Este sim é um valor,

qual seja: igualdade tributária.

O adjetivo “tributário” posto ao lado da igualdade serve apenas para denotar a

aplicação da igualdade ao campo tributário e nada mais.

A aplicação da igualdade significa concretizar um dos pilares da Constituição Federal.

Todavia, criar inúmeras separações e projeções diferentes da igualdade significa a utilização

do arbítrio na seara da tributação. Pois o desrespeito às regras prescritas em prol da

“igualdade” ou “justiça social” e a interpretação das regras jurídicas apenas por uma vertente

do sistema – igualdade jurídica – significam o aniquilamento de outros pilares do Direito,

como liberdade e segurança.

Guisa de conclusão preliminar: não ofende a igualdade jurídica a escolha, por certo

contribuinte, de caminho menos oneroso tributariamente, mesmo que o único intuito seja

83 Marco Aurélio Greco defende que a bandeira do Brasil é verde, pois trata-se da mistura do azul, Estado Liberal, com o Amarelo do Estado Social. Cf. GRECO, M.A, Op. cit., 2008, p. 50.

84

pagar menos tributo. Tampouco pode ser a capacidade contributiva “positiva” interpretada

como critério de significação de categorias jurídicas.

O mesmo absurdo seria afirmar que a liberdade é critério de determinação de certa

categoria jurídica. Completo sem sentido jurídico. O sistema jurídico possui regras próprias

que servem de limites à construção da significação dos atos e negócios jurídicos.

2.2.4 Legalidade tributária e planejamento tributário

O objetivo deste item é: I – descrever a legalidade tributária posta na CF/1988; II –

explicitar os problemas que envolvem a legalidade e o planejamento tributário.

Legalidade é regra positivada no sistema constitucional brasileiro cuja finalidade é

fazer valer a segurança jurídica.

A legalidade está posta na CF/1988 tanto no artigo 5º, como alhures indicado, como

no artigo 150, I: “sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à

União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Munícipios: I – exigir ou aumentar tributo sem

lei que os estabeleça (...)”.

No sistema positivo brasileiro, todo e qualquer tributo deve ter critérios estabelecidos

em lei tributária em sentido estrito, ou seja, votada, aprovada e publicada pelo Poder

Legislativo, salvo nos casos em que a própria Constituição estipule o contrário, como, por

exemplo, em algumas situações em que se utiliza medida provisória.84

Paulo Ayres Barreto85:

A Constituição Federal de 1988, ao repartir competência impositiva, atribui poder de tributar aos entes políticos, referindo conceitos ou classes de fatos geradores. Além disso, estabeleceu a garantia de que os cidadãos não sofreram imposição fora dos limites fixados constitucionalmente. Nesse sentido, entendemos que há inequívoca afirmação da legalidade estrita, com determinação constitucionalmente estabelecida para o exercício da atividade de tributos.

No Texto Constitucional não está expresso que o legislador ordinário ao criar tributos

é obrigado a colocar no texto normativo os critérios que fazem nascer em abstrato certo

84 Artigo 62, §2º da CF/88. 85 BARRETO, P.A. Op. cit., 2008, p. 112.

85

tributo. Todavia, após análise atilada do Texto Constitucional infere-se: I – o artigo 14686, III,

“a” e “b” prescreve ao legislador complementar a obrigação, entre outras coisas, de definir os

fatos geradores, base de cálculo e contribuintes dos tributos; II – no Brasil, é a lei aprovada

pelo Legislativo que representa a vontade do povo, fazendo valer os ideais republicanos,

sendo que existe prescrição no artigo 1º paragrafo único da CF/1988: “todo poder emana do

povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da

Constituição”. Assim, qualquer ameaça à liberdade ou ao patrimônio deve ocorrer por meio

de lei, posta pelo Poder Legislativo; III – a criação de tributos por instrumentos secundários87

não teria força normativa para tornar obrigatório pagamento de tributo pelo particular, haja

vista, a prescrição constante do artigo 150, I da CF/88 e a própria limitação posta no artigo

3788 à administração pública, ou seja, só agir nos exatos limites da lei. Se não há lei, não pode

haver execução pela administração pública; IV – eventual delegação por parte do legislativo

ao executivo para criação de tributo seria inconstitucional, pois, por via transversa, estaria a

desrespeitar a regra da legalidade.

Roque Antonio Carrazza89:

(...) tributo, pois, deve nascer da lei (editada, por óbvio, pela pessoa política competente). Tal lei deve conter todos os elementos e supostos da norma jurídica tributária (hipótese de incidência do tributo, seus sujeitos ativo e passivo e suas bases de cálculo e alíquotas), não se discutindo, de forma alguma, a delegação, ao Poder Executivo, da faculdade de defini-los, ainda que em parte. Remarcamos ser de exclusividade da lei, não só a determinação da hipótese de incidência do tributo, como, também, de seus elementos quantitativos (base de cálculo e alíquota). Resta evidente, portanto, que o executivo não poderá apontar- nem mesmo por delegação legislativa- nenhum aspecto essencial da norma jurídica tributária, sob pena de flagrante inconstitucionalidade.

Segue-se a seguinte linha: para existir o ato de nascimento do tributo em abstrato se

faz necessária a movimentação das estruturas legislativas, ou seja, necessita-se da positivação

jurídica que ocorre por meio de um ato de ponência (lei como suporte físico) no mundo

jurídico de enunciados que possibilitarão a construção de determinado tributo.

86 “Art. 146. Cabe à lei complementar: (...); III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, base de cálculo e contribuintes. 87 “Os instrumentos secundários são todos os atos normativos que estão subordinados à lei. Não obrigam os particulares e, quanto aos funcionários públicos, devem-lhe obediência não propriamente em vista de seu conteúdo, mas por obra da lei que determina sejam observados os mandamentos superiores da administração”. CARVALHO, P.B. Op. cit., 2009, p. 107. 88 “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também ao seguinte: (...)” 89 CARRAZZA, R.A. Op. cit., p. 248.

86

Paulo de Barros Carvalho90, por meio de redução eidética91, analisou a estrutura

tributária presente no ordenamento positivo brasileiro. Sendo que a regra da legalidade é

cumprida quando há a presença de seis critérios que formam o denominado “mínimo

necessário” para a existência de qualquer tributo no sistema jurídico.

Ei-los, haja vista não é foco primordial deste trabalho: critério material, espacial e

temporal, que são construídos na posição sintática do antecedente da norma geral e abstrata, e

o critério pessoal (sujeito ativo e passivo) e quantitativo (base de cálculo e alíquota), postos

no consequente. Sem saber qual a materialidade, em que espaço e tempo, quanto se deve

pagar, qual o sujeito apto a instituir o tributo e a quem se deve pagar, uma norma não obriga

ninguém a entregar um valor a título de tributo. A norma não está apta, assim, a regular

conduta intersubjetiva, função primordial do Direito. Retirando quaisquer desses critérios a

instituição da norma jurídica tributária individual e concreta tornar-se-á impossível. Por outro

lado, acaso forem acrescidos outros critérios além dos indicados, estes são dispensáveis à

existência de qualquer tributo.

Enquanto não houver linguagem individual e concreta realizando a subsunção de

alguma conduta ou negócio jurídico a determinado critério material posto na hipótese de

incidência, nenhuma tributação poderá ocorrer. Esse é o modo pelo qual a legalidade em

matéria de Direito Tributário é concretizada.

Na temática de planejamento tributário, algumas questões merecem ser revistas, pois

tendem a confrontar a regra da legalidade tributária nos moldes acima descritos, a saber: I –

não existe a estrita legalidade tributária enunciada expressamente no Direito Positivo

brasileiro, todavia os critérios mínimos para criação de qualquer exação devem estar

prescritos em norma geral e abstrata expedida pelo Poder Legislativo; II – não é permitido ao

Fisco fazer nascer obrigação tributária nos casos em que o particular não realizou o critério

material da hipótese de incidência, mesmo nas situações em que a conduta ou negócio

jurídico realizado manifesta grandeza econômica similar àquela posta no critério material da

hipótese de incidência tributária; III – não é mediante os efeitos de certos negócios jurídicos

que se constrói categoria jurídica. Esta somente existe no Direito Positivo quando composta

por todos seus elementos formadores.

90 CARVALHO, P.B. Op. cit., 2009. 91 Eidético é termo introduzido na filosofia contemporânea com Husserl a partir de Investigações lógicas (1900-1901) para indicar tudo que se refere às essências, que são objeto da investigação fenomenológica. Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 360, 510-2 e 983-4.

87

Aplica-se mutatis mutandis a lição de Paulo de Barros Carvalho92:

Nos chamados fatos geradores complexivos, se pudermos destrinçá-los em seus componentes fácticos, haveremos de concluir que nenhum deles, isoladamente, tem a virtude jurídica de fazer nascer a relação obrigacional tributária; nem metade de seus elementos; nem a maioria e, sequer, a totalidade menos um. O acontecimento só ganha proporção para gerar o efeito da prestação fiscal, mesmo que composto por mil outros fatores que se devam conjugar, num instante em que todos estiverem concretizados e relatados, na forma legalmente estipulada. Ora, isso acontece num determinado momento, num especial marco de tempo. Antes dele, nada de jurídico existe, em ordem ou nascimento da obrigação tributária. Só naquele átimo irromperá o vínculo jurídico que, pelo fenômeno da imputação normativa o legislador associou ao acontecimento do suposto.

2.3 DIREITO DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL

2.3.1 Análise do Artigo 116 parágrafo único do CTN

O Código Tributário Nacional utilizado como lei complementar enuncia no artigo 116,

parágrafo único:

A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária (grifo nosso).

A primeira pergunta surge relacionada com a faculdade ou obrigatoriedade do ato

normativo endereçado ao agente administrativo. É saber, o agente administrativo está em

frente de um ato discricionário ou ato vinculado?

Em um exame literal afirma-se que o agente administrativo possui discricionariedade

para desconsiderar certos atos praticados pelos contribuintes, desde que preenchido o

requisito legal. O enunciado do parágrafo único do artigo 116 do CTN estaria sob a égide do

modal deôntico permitido “Pp”. Ao agente administrativo seria permitido realizar a conduta

de desfazimento de atos ou negócios jurídicos.

92 CARVALHO, P.B. Op. cit., 2009, p. 338.

88

Na linha de raciocínio afirma-se: uma conduta permitida (facultada) não contém um

dever (obrigatoriedade).

É incontroverso que o legislador trabalha com linguagem técnica93. Quer dizer: sem a

devida precisão sintática e semântica. É função do cientista do direito organizar e sistematizar

o feixe de proposições jurídicas encartadas no Direito Positivo pelo político legislador.

Por essa linha de raciocínio, o agente administrativo está por meio do modal deôntico

obrigatório “Op” vinculado e obrigado a realizar a conduta de desfazimento de alguns atos e

negócios jurídicos, sempre que preenchido o requisito legal.

Ato vinculado na esteira de Celso Antônio Bandeira de Melo94:

Ato vinculado é aquele em que, por existir prévia e objetiva tipificação legal do único possível comportamento da administração em face de situação igualmente prevista em termos de objetividade absoluta, a administração, ao expedi-lo não interfere com apreciação subjetiva alguma.

Corrobora-se o entendimento de que o agente fiscal é obrigado a requalificar

determinadas situações ao fato de o subsistema tributário ter seu processo de produção

normativa, em matéria de obrigação tributária (crédito tributário etc.), vinculado estritamente

à Constituição Federal e as leis complementares e ordinárias.

O artigo 142 parágrafo único do CTN estabelece que a atividade do agente

administrativo é plenamente vinculada. Paulo de Barros Carvalho95:

A vinculação do ato administrativo, que, no fundo, é a vinculação do procedimento aos termos estritos da lei, assume as proporções de um limite objetivo a que deverá estar atrelado o agente da administração, mas que realiza, o valor da segurança jurídica. Se a vinculação não é, em si mesma, nesse hemisfério do direito um valor, persegue-o de perto, assumindo a feição bipolar característica dos valores. Na outra ponta está a discricionariedade que, volto a repetir, nesse setor da disciplina jurídica aparece como um desvalor, algo indesejado nos procedimentos que lidam com tributos.

Toda vez que o agente administrativo se encontre diante da possibilidade de realizar

duas ou mais condutas possíveis será obrigado, estará vinculado, terá o dever de desfazer os

93 ARAÚJO, Clarice Von Oertzen. Incidência jurídica. São Paulo: Noeses, 2011, p. 156. “Pretendemos examinar a linguagem empregada para positivação de uma ordem jurídica, a qual não tem uma natureza cientifica, não é eminentemente descritiva, embora trabalhe com um tipo constitutivo de descrição ao tratar da formação dos fatos jurídicos”. 94 MELO, C.A.B. Op. cit., p. 424. 95 CARVALHO, P.B. Op. cit., 2009, p. 389.

89

atos ou negócios jurídicos realizados com dissimulação, haja vista que todo dever (obrigação)

contém um poder, ou seja, uma permissão para fazer.

Utilizando-se de interpretação sistêmica e buscando analisar o direito-objeto por meio

de rigor científico, compreende-se que o agente administrativo é obrigado a realizar o

procedimento de desfazimento de atos e negócios jurídicos toda vez que, aí está a marca da

subjetividade, perceber que o contribuinte, pela dicção do artigo 116, parágrafo único, agiu

com dissimulação.

Obviamente que a linguagem das provas passa a ser elemento indispensável à

requalificação ou não do ato ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte.

Aprofundando a análise do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário

Nacional, ponto fulcral refere-se ao conceito de dissimulação. Para tanto, indaga-se: I – o

conceito de Direito privado, no caso dissimulação, pode ser estipulado pelo Direito

Tributário? II – o conceito de direito privado aplicado ao setor tributário deve ser construído a

partir do plexo de enunciados do Direito privado? III – qual conceito de dissimulação deverá

ser utilizado para fins de aplicação do parágrafo único do artigo 116 do CTN?

Em resposta às indagações, afirma-se que, ainda em caráter preliminar, se reconhece

que o Direito Tributário é um elemento – subsistema – dentro do direito. Como elemento deve

manter coerência e harmonia com o conjunto – sistema de Direito Positivo – e com outros

elementos do sistema. O CTN prescreve duas regras que devem ser interpretadas em conjunto

para que haja o deslinde das indagações:

Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários. Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

Muito embora utilize a expressão “abuso de formas”,96 Sacha Calmon Navarro Coelho

descreve que ao legislador positivo, por meio da prescrição do CTN, é permitido atribuir os

efeitos tributários a determinado negócio jurídico. Isso significa que é levada em consideração

a finalidade do negócio jurídico. Não afirmando com isso que a interpretação econômica

esteja sendo aceita e/ou utilizada.

96 No item 2.4.8 será debatido se o abuso de formas pertence ao sistema jurídico brasileiro ou não.

90

O principal ponto para este autor é que os juízes ou fiscais não estão autorizados a

estipular efeitos fiscais diferentes daqueles positivados na lei. Fique consignado: o artigo 109

do CTN é uma faculdade dirigida ao legislador para implantar a politica fiscal, no sentido de

poder equiparar em termos fiscais negócios jurídicos que possuam a mesma finalidade ou

denotem a mesma manifestação de capacidade contributiva.

Sacha Calmon Navarro Coelho97:

Para evitar o abuso das formas de direito privado, permite-se ao legislador, por exemplo, equiparar a um contrato de locação, para os fins do imposto de renda (em que o aluguel é tributado), um contrato de comodato (cessão de uso gratuita), salvo se entre parentes próximos. O dispositivo visa evitar que, através de ‘negócios jurídicos indiretos’, os particulares elidam a tributação, dizendo ‘comodato’ onde, v.g., exista locação. Outro exemplo é a realização de um contrato de sociedade em que um dos sócios entra com um imóvel e outro com dinheiro, na integralização dos respectivos capitais, seguindo-se o distrato, saindo com o imóvel o sócio que entrou com dinheiro, e com dinheiro o que entrou com o imóvel. A intentio facti era vender imóvel. O contrato de sociedade (intentio juris) foi feito somente para elidir o pagamento do imposto sobre transmissão de bens imóveis, que, no caso da formação e extinção de sociedades, não incide em razão da imunidade constitucional. O art. 109 muniu o legislador de meios para enfrentar o abuso de formas de direito privado não significando conclusivamente, permissão para “interpretação econômica dos fatos geradores” pelos intérpretes (juristas, funcionários do Executivo e juízes). De notar que o legislador fiscal não deforma o conteúdo e o alcance dos institutos, e conceitos e formas de Direito Privado, podendo apenas atribuir-lhes efeitos fiscais. A regra endereça-se ao legislador, nunca aos intérpretes oficiais da lei fiscal (Executivo e Judiciário)”.

No confronto dos dois artigos do CTN surgem quatro regras de interpretação das

normas tributárias e dos respectivos efeitos, como se vê no Quadro 2, a seguir.

É proibido ao subsistema tributário alterar conceitos e definições de Direito privado positivados na Constituição Federal, nas Constituições Estaduais, nas leis orgânicas dos municípios que tratem da temática da competência tributária.

É permitido ao subsistema tributário importar conceitos, definições de direito privado e lhe aplicar efeitos tributários próprios.

Os princípios de Direito privado servem como norte de interpretação dos conceitos e definições de Direito privado, porém, não servem para interpretar normas tributárias.

Ao Direito Tributário é permitido alterar, alargar ou diminuir a extensão do alcance de conceitos e definições de Direito privado, desde que não seja o caso de alterar ou limitar competência tributária.

Quadro 2 – Regras de interpretação das normas tributárias e dos respectivos efeitos do CTN

O ponto fulcral é que os enunciados do Quadro 2, acima delineado, sejam

interpretados de acordo com o atual sistema constitucional tributário. Tais regras jamais

97 COELHO, S.C.N. Op. cit., p. 661-2.

91

podem esvaziar os comandos constitucionais, pelo contrário, devem-lhe dar aplicabilidade

plena.

É inaceitável que leis tributárias de qualquer espécie alterem conceitos de Direito

privado positivados na Constituição Federal. Pois, caso isso aconteça, o Texto Constitucional

tão bem delineado e extremamente pormenorizado seria facilmente alterado, desrespeitando

as regras sintáticas que prescrevem como o sistema e principalmente as normas

constitucionais serão alteradas e produzidas.

Não pode haver desrespeito ao modo de produção de normas jurídicas prescritas. Pois

é obrigatório fazer valer a gramática geratriz de normas, como estipulado por Lourival

Vilanova98, para não ocorrer em vício de ilegalidade e, principalmente, em

inconstitucionalidade.

Ao Direito Tributário é facultado importar conceitos e definições de Direito privado e

lhe aplicar os efeitos que bem lhe aprouver.

Ao Direito Tributário é permitido redefinir conceitos e definições de Direito Civil e

aplicar ao subdomínio tributário, alterando-os, alargando-os ou diminuindo o alcance,

obviamente desde que não alterem competência tributária.

É vedado ao Direito Tributário interpretar e integrar regras tributárias e respectivos

efeitos com a utilização de princípios de Direito privado.

Ademais, a Constituição Federal de 1988 possui regras e princípios específicos ao

campo tributário, que servem, entre outras coisas, como parâmetro de interpretação das regras

tributárias.

Boa-fé, eticidade e socialidade positivados no Código Civil de 2002 sem sombra de

dúvida são extremamente fundamentais ao subsistema de Direito privado – civil. Todavia, em

hipótese nenhuma poderão servir de parâmetro de interpretação das normas e dos respectivos

efeitos tributários, haja vista, como alhures afirmado, que o subsistema tributário possui

princípios e regras próprios, sendo um direito de sobreposição.

Pelo exposto, os princípios de Direito civil servem para interpretação das regras de

Direito privado e nada mais.

98 VILANOVA, Lourival. Estruturas lógicas e o sistema de Direito Positivo. São Paulo: Noeses, 2002, p. 27.

92

Alberto Xavier99:

Com efeito, o que o art. 109 do CTN prescreve é que a interpretação dos institutos, conceitos e formas de direito privado – eventualmente utilizados nas hipóteses de incidência das normas tributárias – devem ser pesquisados, interpretados à luz dos princípios gerais de direito privado, como mandam os cânones clássicos da teoria da interpretação, e não à luz de uma pretensa consideração econômica. Mas – e neste ponto também o legislador mais não fez que seguir ortodoxia estrita – deixou bem sublinhado que os princípios gerais de direito privado não são invocáveis para fixar os efeitos tributários dos institutos em causa. Tais efeitos revestem, na verdade, natureza juspublicística, sendo determinados pelas próprias normas tributárias.

O conceito de dissimulação poderia ser criado a partir de enunciados dados pelo

Direito Tributário, haja vista, não é tema ligado à competência constitucional tributária.

Todavia, não há no Código Tributário Nacional ou em leis tributárias nacionais nenhuma

definição ou elementos que sirvam de suporte à conceituação do que seja dissimulação para o

caso de requalificação de fatos geradores de obrigação tributária ou da natureza de

elementos constitutivos de obrigação tributária. No caso da dissimulação deve ser aplicado

seu conceito de direito privado. No desenvolver dos próximos capítulos será trazido à baila o

conceito de dissimulação utilizado neste trabalho.

O artigo 116 parágrafo único enuncia as expressões “fato gerador” e “natureza dos

elementos constitutivos da obrigação tributária”.

“Fato gerador” é expressão que possui múltiplas significações. Debates acalorados

ocorrem principalmente na doutrina, de que se compreende essa expressão no contexto do

artigo 116 parágrafo único do CTN como sendo a hipótese de incidência tributária.

Inclui-se na hipótese normativa tributária100 o critério material, espacial e territorial.

Em termos mais precisos, o “fato gerador” é na melhor técnica dogmática o critério material

da hipótese normativa tributária. Desta feita, a desconsideração de atos ou negócios jurídicos

realizados com dissimulação, na maioria, é o reenquadramento para determinado critério

material.

Contudo, a não realização no mundo fenomênico de qualquer dos critérios postos na

hipótese tributária (material, espacial e territorial), com a impossibilidade de haver linguagem

competente de acordo com a teoria das provas, faz com que seja impossível o nascimento de

obrigação tributária.

99 XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São Paulo: Dialética, 2001, p. 43. 100 CARVALHO, P.B. Op. cit., 2009.

93

Pelo contexto posto, a requalificação “fato gerador” deverá ser realizada sempre que o

contribuinte agir com dissimulação referente a qualquer dos critérios da hipótese normativa

tributária.

O referido artigo trata também como causa de desconsideração e requalificação da

“natureza dos elementos da obrigação tributária”, por parte do agente fiscal, toda vez que o

contribuinte agir com dissimulação.

O que será “dissimulação da natureza dos elementos da obrigação tributária”?

Alberto Xavier101:

Entendemos que a expressão “dissimulação da natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária” deve ser interpretada em sentido amplo, de modo a abranger a ocorrência do fenômeno simulatório em qualquer elemento da obrigação, de modo que a expressão “natureza” abranja não apenas a sua qualificação jurídica, mas qualquer aspecto relevante de sua identidade.

Partindo dessa premissa, compreende-se que a obrigação tributária102 está posta

sintaticamente na norma individual e concreta, precisamente no consequente normativo.

A obrigação tributária é composta por elementos que denotam a classe geral e abstrata

do consequente da regra matriz de incidência tributária.

Os elementos da obrigação são: sujeito ativo e passivo, base de cálculo e alíquota.

Pelo exposto, o ato ou negócio jurídico realizado com dissimulação pelo contribuinte

que atacar qualquer dos elementos acima delineados poderá ser desconsiderado e

requalificado pelo agente fiscal.

Ainda em relação à dissimulação, o artigo 116 parágrafo único do CTN prescreve que

a requalificação ou desconsideração de atos e negócios jurídicos realizados pelo contribuinte

estarão submetidas ao que for estabelecido em lei ordinária.

Até o presente momento nenhum veículo introdutor de normas inseriu enunciados que

criariam procedimentos à atuação do agente fiscal. Paulo Ayres Barreto103:

É forçoso concluir que, enquanto lei ordinária não disciplinar o procedimento de desconsideração dos negócios jurídicos realizados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador, será inaplicável o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional.

101 XAVIER, A. Op. cit., p. 58. 102 CARVALHO, P.B. Op. cit., 2009. 103 BARRETO, P.A. Op. cit., 2008, p. 239.

94

Em verdade, a falta de lei ordinária causa um problema sintático no referido

dispositivo, haja vista que por falta de regulamentação jurídica se torna impossível a

jurisdicização do fato jurídico ensejador de efeitos jurídicos: tornando ineficaz a aplicação do

artigo 116 parágrafo único do CTN.

Cria-se a dúvida: o agente administrativo, que atua sob o manto da vinculação dos atos

administrativos, como requalificará determinados atos e negócios jurídicos? Quais seriam os

critérios para (re)enquadrar determinada operação? Tais respostas ficam prejudicadas quando

se aceita a ineficácia técnica do artigo em comento.

A solução para dar aplicabilidade ao parágrafo único do artigo 116 do CTN é a

seguinte interpretação: o agente administrativo é livre para requalificar determinados atos e

negócios jurídicos, desde que se utilize das provas admitidas em direito que darão

sustentabilidade tanto para o processo/produto de desconsiderar atos realizados com

dissimulação como para o processo/produto de reenquadramento em outra categoria jurídica.

Sendo que sempre caberá ao Poder Judiciário pôr fim a qualquer demanda relacionada com a

desqualificação e requalificação de atos e negócios jurídicos.

2.3.2 Análise do Artigo 149, VII e artigo 150, §4º do CTN

Prescreve o artigo 149, VII do CTN:

Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos: (...) VII – quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação.

Estes são os casos em que o agente fiscal no uso de atribuições legais e utilizando

como fundamento o substrato probatório deve efetuar o denominado lançamento suplementar

ou de ofício.

Paulo de Barros Carvalho104 em relação ao artigo 149 do CTN assevera:

104 CARVALHO, P.A. Op. cit., 2009, p. 439.

95

O rol do art. 149 é vasto, cobrindo, em boa parte, situações objetivas em que o Estado não pode ficar à mercê de providências que cabem, por lei, ao sujeito passivo. Realmente, não teria sentido comprometer o curso regular da atividade de gestão tributária, protegendo omissões do administrado, nem sempre interessado na eficiência do procedimento controlador que o Poder Público deve exercer às suas prerrogativas. Abre-se, por isso, à Fazenda, uma gama de possibilidades que habilitam a procurar seus legítimos interesses, a despeito da falta de colaboração do sujeito passivo.

Nos casos em que o contribuinte não realizou o autolançamento ou o fez gerando valor

a menor a pagar a título de tributo utilizando-se de dolo, fraude ou simulação, o agente fiscal

deve fazer com que incida o artigo 149 do CTN, justamente para fazer valer os legítimos

interesses fiscais.

Que fraude é a prescrita no artigo em comento? A fraude denominada “penal” ou a

fraude civil? Mesmo a corrente doutrinária105 que se utiliza da consideração econômica no

Direito Tributário, de categorias não positivadas no CTN, assevera que a fraude estipulada no

artigo 149 do CTN é a fraude penal, muito embora, como em momento oportuno ver-se-á

(item 2.4.4), adota a fraude civil como elemento que descaracterizaria qualquer planejamento

tributário.

Segundo Marco Aurélio Greco106:

Que “fraude” é essa prevista no artigo 149, VII? Em que sentido foi utilizada a palavra ‘fraude’ nesse artigo? Antecipo meu entendimento que devemos considerar que o Código Tributário Nacional foi elaborado no auge da primeira fase; pode-se dizer que ele é a catedral da primeira fase. Nessa época, não era concebível existir abuso de direito e fraude à lei em matéria tributária porque só se raciocinava de uma perspectiva formal, aliada a tipicidade fechada e à legalidade estrita. Isto me leva a entender que a noção de “fraude” que lá está incorporada é a noção de fraude penal e não de fraude civil.

A Lei nº 4.502/64 no artigo 72 prescreve:

Art. 72. Fraude é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou a modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do imposto devido a evitar ou diferir seu pagamento.

Dolo passa a ser elemento essencial à constituição da fraude caracterizadora do artigo

149 em destaque.

105 GRECO, M.A. Op. cit., 2008, passim. 106 Ibidem, p. 240.

96

Damásio de Jesus107 expõe: “O dolo, de acordo com a teoria finalista da ação, que

passamos a adotar, é elemento subjetivo do tipo. Integra a conduta, pelo que a ação e a

omissão não constituem simples formas naturalísticas de comportamento, mas ações e

omissões dolosas”.

Embasa a asserção exposta a teoria da vontade, positivada no sistema brasileiro,

prevista no artigo 18, I do Código Penal: “Diz-se o crime doloso, quando o agente quis o

resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”.

Dessa perspectiva, não basta intenção psicológica de realizar determinada conduta, é

necessário vontade manifesta de praticar determinada conduta contrária à lei. Isto é, exige-se

o “querer” realizar ou assumir o risco de produzir determinado resultado que é expresso por

certa conduta.

Em matéria de fraude, prevista no artigo 149, VII, o raciocínio é o mesmo. O

contribuinte que de forma dolosa possui intenção e manifesta vontade por meio da conduta de

impedir/retardar a ocorrência do denominado fato gerador108 tributário ou excluir/modificar

outro elemento da obrigação tributária, como, por exemplo, alterar o critério quantitativo da

base de cálculo etc., utilizando-se em ambos os casos de artifícios dolosos contrários à lei,

comete “fraude penal”.

Marco Aurélio Greco109:

Ora, “impedir ou retardar” a ocorrência de um fato gerador são condutas completamente diferentes de não realizar o fato gerador. Na hipótese de planejamento, o contribuinte, a seus olhos, julga não estar no processo formativo do fato gerador, mas na formação de um outro fato, não qualificado pela lei ou submetido a regime menos oneroso.

No planejamento tributário existe a intenção de realizar um negócio menos oneroso

tributariamente. Não existe dolo pelo simples fato de escolher um negócio menos oneroso

tributariamente; enquanto na fraude existe o intuito doloso de impedir/retardar ou excluir ou

modificar elementos da obrigação tributária.

Em outros termos: no planejamento se escolhe um caminho, negócio ou ato menos

oneroso com o intuito de pagar menos tributos. Na fraude, denominada de “penal”, é utilizado

107 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 287. 108 No presente trabalho “fato gerador” é utilizado como hipótese de incidência quando referido à norma geral e abstrata e como fato jurídico tributário quando referido ao antecedente da norma individual e concreta que gerará a obrigação tributária, 109 GRECO, M.A. Op. cit., p. 258.

97

um caminho que gera tributo a pagar, todavia, no percorrer desse caminho o contribuinte

realiza situações artificiosas que impedem/retardam a ocorrência do fato jurídico tributário ou

que excluam/modifiquem elementos da obrigação tributária.

Caso o contribuinte adultere livros fiscais, falsifique documentos, monte operações

que nunca existiram de acordo com o enredo probatório, nesse momento estará tipificado o

artigo 72 da lei em tela, sempre relacionado com impedir/retardar a ocorrência de fato jurídico

tributário ou excluir/modificar algum elemento da obrigação tributária, haja vista,

independente de outras figuras jurídicas que possam existir, estará ocorrendo fraude à lei

tributária.

Dolo é meio para realização de fraude prevista no artigo 149, VII e consequentemente

de ilícito110. Sempre que existir fraude haverá dolo, porém, nem todo dolo é composto por

fraude. No caso tributário do artigo 149, VII o dolo é pressuposto para realizar a fraude e a

simulação111.

Quando o contribuinte realiza outras figuras como a sonegação, com o fim de não

pagar ou diminuir a carga tributária, pode o agente fiscal efetuar novo lançamento com base

no artigo 149, VII do CTN112?

Pela positivação prevista no artigo em enfoque não pode o agente fiscal realizar novo

lançamento no caso de ilícitos ali não tipificados, como conluio, sonegação etc. Todavia,

todos os atos realizados com dolo que não recebem “tipificação específica”, por ser atos

dolosos, recaem sob manto do artigo 149, VII do CTN, devendo a autoridade administrativa

efetuar novo lançamento. Por mais paradoxal, esse é nosso sistema positivo.

Em relação à simulação, as notas de seu conceito serão postas no item 2.4.6. Pois,

como o Direito Tributário não estipulou as notas de seu conceito, aplicando-se as regras dos

artigos 109 e 110 do CTN, o conceito de simulação será construído a partir de enunciados

positivados no Direito privado.

Isso não quer dizer que condutas ilícitas, sonegação, conluio etc. realizados pelo

contribuinte sejam permitidos pelo microssistema tributário, apenas que não podem ser

usados como substrato formal o artigo 149, VII do CTN.

110 Basta verificar os crimes culposos. Nem todo ilícito decorre do dolo. 111 Simulação será estudada no item 2.4.6. 112 Para ilustrar a lei 4.502/64. “Art. 71. Sonegação é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, o conhecimento por parte da autoridade fazendária: I – da ocorrência do fato gerador da obrigação principal, sua natureza ou circunstâncias materiais; II – das condições pessoais do contribuinte, suscetíveis de afetar a obrigação tributária principal ou o crédito tributário correspondente.”

98

O Artigo 150, §4º do CTN prescreve:

Se a lei não fixar prazo à homologação, será ele de cinco anos, a contar da ocorrência do fato gerador; expirado esse prazo sem que a fazenda Pública se tenha pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.

Analisar-se-á apenas a parte final do artigo, relacionada com o objeto de estudo.

Havendo dolo, fraude ou simulação qual seria o prazo para a Fazenda pública realizar

o lançamento tributário? A postura adotada na presente pesquisa é de sempre aplicar em

primeiro lugar os preceitos do microssistema tributário – Código Tributário Nacional – em

consonância com as prescrições de nível constitucional.

Afirmar que nesses casos não existiria prazo decadencial para lançar significa aceitar a

instabilidade das relações jurídicas, dessa forma, não se concretizando o valor segurança

jurídica. Por outro lado, por que aplicar prazos de direito privado quando existem regras

específicas positivadas no próprio CTN que tornam possível a concretização do artigo 150

,§4º, parte final? Adota-se o entendimento de Paulo de Barros Carvalho113 no sentido de que,

comprovado dolo, fraude ou simulação, a regra do artigo 173, I do CTN deve ser aplicada:

Para nós, diante da lacuna causada pela omissão do legislador ordinário em disciplinar esse prazo, entendemos que a regra que mais condiz com o espirito do sistema é a do art. 173, I do Código Tributário Nacional, isto é, havendo dolo, fraude ou simulação, adequadamente comprovados pelo Fisco, o tempo de que dispõe para efetuar o lançamento de ofício é de cinco anos, a contar do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que poderia ter praticado o lançamento.

A própria Constituição Federal no artigo 146, III, “b”, estipula que decadência e

prescrição são matérias reservadas à lei complementar. O CTN possui status de lei

complementar, enquanto o Código Civil é lei ordinária nacional, logo não apto a tratar dessa

matéria.

O CTN é a base do microssistema tributário. Então, indo ao microssistema do CC

estar-se-á realizando dialogismos entre sistemas, bem visto em algumas situações. Todavia,

neste caso, se o próprio microssistema tributário comporta solução que deem aplicabilidade

ao artigo em destaque, sendo que tal solução vai ao encontro dos ditames constitucionais, não

há necessidade de utilização de elementos exógenos pertencentes ao direito privado.

113 CARVALHO, P.B. Op. cit., 2009, p. 447.

99

2.3.3 Artigo 13 e 14 da Medida Provisória Nº 66 e exposição de motivos da Lei

Complementar nº 104/2001

A partir das premissas desenvolvidas no Capítulo I, adotar-se-ão algumas posturas

hermenêuticas quando do confronto entre a Lei Complementar nº 104/2001, que introduziu no

CTN o artigo 116 parágrafo único positivado no sistema jurídico brasileiro, exposição de

motivos e a Medida Provisória nº 66114, alterada pela Lei nº 10.637/2002.

A Medida Provisória nº 66 tentou positivar no ordenamento jurídico brasileiro

critérios para que o agente fiscal considere determinado ato ou negócio jurídico realizado

pelos contribuintes como “dissimulado”, fazendo com que incida o parágrafo único do artigo

116 do CTN: a) propósito negocial; b) abuso de forma jurídica.

Conforme se depreende da leitura do artigo 14 da MP em questão, tentou-se definir o

que seja propósito negocial e abuso de forma jurídica.

Em um exame perfunctório – estas duas categorias jurídicas serão analisadas no item

2.4.8. respectivamente –, há clara diferença semântica do que seja propósito negocial e abuso

de forma jurídica para medida provisória em tela e o que sejam as duas categorias jurídicas

para doutrina115 que as contempla.

O cerne do problema circunscreve: a Medida Provisória nº 66 especificamente do

artigo 13 a 19 não foi convertida em lei. Duas posturas hermenêuticas surgem. Uma tentando

alargar o conceito do que seja “dissimulação” prevista no CTN adotando os critérios de

propósito negocial e abuso de forma jurídica para defini-la, outra como a de Paulo Ayres

Barreto116:

114 Art. 13. Os atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador de tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária serão desconsiderados, para fins tributários, pela autoridade administrativa competente, observados os procedimentos estabelecidos nos art. 14 a 19 subsequentes. Parágrafo único. O dispositivo neste artigo não inclui atos ou negócios jurídicos em que se verificar a ocorrência de dolo, fraude ou simulação. Art.14. São passíveis de desconsideração os atos ou negócios jurídicos que visem a reduzir o valor de tributo, a evitar ou postergar o seu pagamento ou a ocultar os verdadeiros aspectos do fato gerador ou a real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.§ 1º Para a desconsideração de ato ou negócio jurídico dever-se-á levar em conta, entre outras, a ocorrência de: I – falta de propósito negocial; ou II – abuso de forma.§ 2º Considera-se indicativo de falta de propósito negocial a opção pela forma mais complexa ou mais onerosa, para os envolvidos, entre duas ou mais formas para prática de determinado ato.§ 3 Para o efeito do disposto no inciso II do § 1º, considera-se abuso de forma jurídica a prática de ato ou negócio jurídico indireto que produza o mesmo resultado econômico do ato ou negócio jurídico dissimulado (grifos nossos). 115 GRECO, M.A. Op. cit., passim. 116 BARRETO, P.A. Op. cit., p. 182.

100

Trata-se de uma manifestação firme do Poder Legislativo brasileiro que não pode ser menosprezada na proposta de interpretação do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional. Vale dizer, em duas oportunidades, num interregno de aproximadamente 36 anos, o legislador nacional foi instado a se posicionar sobre a dilargação de limites para a atuação das autoridades administrativas na apreciação dos fatos que dão origem às incidências tributárias e, em ambas oportunidades, rejeitou as propostas que caminhavam nessa direção. Não há silêncio por parte do legislativo nessa matéria. Ao revés, há, de um lado, regramento específico no Código Tributário Nacional (artigos 116, paragrafo único e 149, VII) e há, de outro, refutação expressa do poder competente em relação às tentativas de estabelecer outros limites à elisão tributária.

Nenhuma das posturas deve prosperar. A segunda porque tenta rejeitar os institutos do

propósito negocial e do abuso de formas jurídicas por meio de interpretação histórica ou da

busca pela intenção/vontade do legislador. Pois, ao ser afirmado que o legislador em um curto

lapso temporal rejeitou a positivação de determinadas categorias jurídicas, é porque de certa

forma o ordenamento jurídico quer que os limites para a atuação das autoridades

administrativas caminhem em outra direção, no caso a oposta da não positivação, ou seja, não

utilizar propósito negocial e abuso de forma jurídica como critério para definir

“dissimulação”.

Sedutor o argumento. Todavia, não se trata de ciência dogmática. Afirmar a intenção

do legislador pela não positivação de determinada categoria jurídica não compreende modelo

hermenêutico baseado no construtivismo semiótico.

Nobre intenção, porém, de impossível êxito. Pois, ao adotar as categorias de

enunciação, enunciação-enunciada, enunciado-enunciado, percebe-se que a busca por

internalidades é impossível e desnecessária à finalidade do direito, de regular condutas

intersubjetivas, e nada a mais.

Por outro lado, alargar conceitos por meio de interpretação de artigos de uma MP

cujos artigos não foram convertidos em lei é interpretar desrespeitando um único limite

objetivo que o intérprete/aplicador do direito possui, ou seja, o plano “S1” das literalidades. É

caminhar em terras não sólidas.

A interpretação que se adota é aquela que toma por base o item 1.6 e 1.8.12 desta

pesquisa. Em outras palavras: utilizar propósito negocial e abuso de forma jurídica postos na

MP nº 66, artigo 13 e 14, não convertidos em lei, como critério de interpretação do artigo

116 parágrafo único do CTN agride o sistema jurídico brasileiro, haja vista, alarga o conceito

de “dissimulação”. O próprio Direito Positivo brasileiro estipula as balizas da significação a

ser criada da categoria jurídica “dissimulação”.

Digressão ainda merece ser feita. Trata-se da exposição de motivos da Lei

Complementar 104/2001:

101

6. A inclusão do parágrafo único do artigo 116 faz-se necessária para estabelecer, no âmbito da legislação brasileira, normas que permita á autoridade tributária desconsiderar atos ou negócios jurídicos com a finalidade de elisão, constituindo-se dessa forma, em instrumento eficaz para o combate aos procedimentos de planejamento tributário praticados com abuso de forma ou de direito.

Dois argumentos devem ficar consignados: I – exposição de motivos não é

enunciação-enunciada, como alhures demonstrado, logo, não é veículo introdutor de normas;

II – exposição de motivos não é votada, logo, não é enunciado-enunciado e tampouco é

enunciação-enunciada. Assim, é elemento estranho ao sistema de Direito Positivo.

Pensamento oposto tem Paulo de Barros Carvalho117, que considera exposição de

motivos enunciação-enunciada sendo antecedente do veículo introdutor, logo, tratar-se-ia de

norma jurídica. Vejamos:

Já a Exposição de Motivos costuma dar ênfase ao clima histórico-institucional em que o diploma foi produzido, discutindo, muitas vezes, as teses em confronto na circunstância da elaboração, para justificar (dar os motivos) a eleição de determinada tendência dogmática. Sua extensão é maior do que as duas primeiras categorias, funcionando também como introdução no espírito do tema sobre o qual dispõe o estatuto. A exposição de motivos, constando da enunciação-enunciada, manifesta-se mais próxima ao processo de enunciação do ‘ato de fala’ jurídico, enquanto o Preâmbulo e a ementa nos remetem à enunciação-enunciada, porém, mais inclinadas ao enunciado do que, propriamente, ao processo de enunciação.

Alguns diriam que se trata da intenção do legislador vertida em linguagem pronta para

ser (re)interpretada, não devendo ser menosprezada pelo intérprete/aplicador. No entanto,

quando a “vontade” expressa em texto não jurídico – exposição de motivos – é diferente da

“vontade do legislador” manifestada em texto jurídico votado e aprovado por órgão

competente, qual deve prevalecer?

Pelas premissas expostas, nenhuma das duas. Nunca se conhecerá a “vontade do

legislador”. Constrói-se o texto por meio de ideologia própria, repertório jurídico, tendo como

limite objetivo o texto positivado e limite final os horizontes da cultura do intérprete.

As figuras do abuso de forma jurídica e abuso de direito não foram positivadas no

sistema jurídico pela exposição de motivos da Lei Complementar nº 104/2001.

Não se está afirmando que estas figuras não pertencem ao Direito Positivo, apenas

que, por essa via, não foram inseridas no ordenamento jurídico brasileiro, não merecendo

servir de critério para definição da categoria jurídica “dissimulação”.

Ao fim e ao cabo, o intérprete/aplicador deve construir norma jurídica que imponha

limite ao planejamento tributário a partir do referencial do Direito Positivo, no caso

117 CARVALHO, P.B. Op. cit., 2009, p. 66.

102

Constituição Federal, especialmente o artigo 116 parágrafo único e 149, VII do Código

Tributário Nacional.

Reitera-se: mesmo que por ventura se compreenda que a exposição de motivo faz

parte do Direito Positivo, o artigo em tela sofre de ineficácia sintática, não sendo apto a

regular condutas intersubjetivas.

2.4 DIREITO DO CÓDIGO CIVIL

2.4.1 Conceituação de atos e negócios jurídicos

Primeiramente é necessário expor as teorias que embasam a constituição de qualquer

ato ou negócio jurídico, para em seguida descrever os enunciados positivados no Direito

brasileiro que tratam da formação dos atos e negócios jurídicos, assim como das categorias da

simulação, dissimulação, fraude à lei, abuso de direto etc.

a) Teoria da vontade real – a declaração seria um instrumento da vontade real. Desta

feita, na eventual divergência entre a vontade declarada e a vontade interna, deveria

prevalecer esta última. Linha teórica não seguida, vista que causadora de insegurança jurídica,

pois os destinatários da mensagem ou terceiros facilmente poderiam ter os direitos

desrespeitados com a alegação de que a vontade interna seria diferente da vontade externada.

b) Teoria da declaração – significa que a vontade declarada sempre deve prevalecer

em relação à vontade psíquica. Linha teórica que levada às últimas consequências poderia

causar grandes problemas jurídicos, pois uma palavra colocada de forma diferente poderia

fazer com que os menos desavisados sofressem restrições de diretos sem que ao menos

consentissem com tais restrições.

c) Teoria da responsabilidade – consistiria em transpor ao sujeito emitente da

declaração a própria culpa. Eventual divergência entre a vontade declarada e a vontade interna

se resolveria em prol desta última, respondendo, todavia, o emitente pelos atos perante o

sistema jurídico. Acaso não tenha agido com dolo, a vontade interna do declarante deve

prevalecer, mesmo que responda por perdas e danos. Itamar Gaino118:

118 GAINO, Itamar. A simulação dos negócios jurídicos. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 8.

103

Se aquele emitiu declaração fez acreditar, dolosamente, no conteúdo de uma vontade que, realmente, não tinha, e procurou a divergência com culpa grave, não pode subtrair-se à força obrigatória de sua declaração. Havendo desacordo entre o declarado e o desejado e é o declarante o responsável por este desacordo, não pode ser o negócio invalidado em razão desse comportamento ilícito. Esta consequência impõe-se, porque, de outro modo, a eficácia dos negócios jurídicos à mercê dos contratantes de má-fé ou negligentes.

d) Teoria da confiança – a vontade declarada desperta no âmago dos destinatários e

dos terceiros de boa-fé a confiança que se trata de uma declaração séria. A vontade declarada

deve prevalecer, salvo se o destinatário ou terceiros sabiam do vício e mesmo assim

realizaram o negócio para proveito próprio. Protege-se o destinatário em primeiro lugar.

Adota-se na pesquisa a seguinte postura em relação aos negócios jurídicos: negócio

jurídico é comunicação, como tal, deve haver conexão psicológica entre emissor e

destinatário. O início do percurso jurídico inicia-se com a declaração, antes disso nada de

jurídico existe. Como já dito, a enunciação não faz parte do domínio do jurídico. Os efeitos de

um negócio jurídico são prescritos pelo próprio sistema jurídico e não pela vontade interna

das partes. Negócio jurídico é relação de causa e efeito.

Pelo exposto, quando se realiza um negócio jurídico, há a vinculação da declaração

para com os destinatários e para com os terceiros de boa-fé, de acordo com os próprios

preceitos do sistema jurídico.

Aplica-se o princípio da autorresponsabilidade, que faz com que o agente emissor

tenha responsabilidade pelas declarações que realizou, todavia estas devem sempre prevalecer

pela confiança de que o destinatário e os terceiros de boa-fé depositaram nela. Itamar

Gaino119:

Nega-se apenas que a vontade se encontra, no negócio, em primeiro plano, e que a concordância entre os efeitos jurídicos e a função ou razão (causa) do negócio também deva ela ser querida, como se pretende quando se postula uma vontade individual orientada para os efeitos jurídicos. Efetivamente, não se deve esquecer-se que, no momento em que o negócio se realiza, o processo volitivo deve ter, e normalmente já o fez, percorrido o seu ‘iter’, e atingindo a sua meta definitiva: ele já se esgotou e se concretizou numa resolução firme, e os efeitos são determinados pela ordem jurídica, em conformidade com a função do negócio. O teor de um negócio qualquer mostra que nele ocupa o primeiro plano o regulamento de interesses dispostos para o futuro, ao passo que a vontade apenas está em segundo plano, como dirigida à função prática daquele: ela pertence efetivamente à gênese, mas não ao conteúdo do ato de autonomia como fato social.

119 GAINO, I. Op. cit., p. 11.

104

Classificação dos atos e negócios jurídicos de acordo com o código civil de 2002

realizada por Silvio Venosa120.

Quadro 3 – Fatos jurídicos, classificação de Silvio Venosa

O Quadro 3, acima posto, possui a significação descrita a seguir.

Fato natural seria acontecimento produzido pela natureza gerando consequências

jurídicas. Subdividindo-se em: I – fato natural ordinário: considerado esperado, por exemplo,

a morte; II – fato natural extraordinário: produzido pela natureza de forma inesperada, por

exemplo, a queda de um meteoro na Terra.

Atos jurídicos são acontecimentos produzidos pelo homem por meio da vontade,

gerando consequências jurídicas. Dividindo-se em: I – ato humano lícito: praticado de acordo

com o Direito Positivo; II – ato ilícito: praticado em desrespeito ao sistema de Direito

Positivo.

O ato humano lícito subdivide-se em: I – ato jurídico meramente lício, cuja

consequência do ato está prevista em lei; II – negócio jurídico, em que a consequência é

advinda da vontade das partes.

Embora não esteja presente no Quadro 3, acima, importante expor a existência do

denominado ato fato jurídico. Tratar-se-ia de hipótese intermediária entre o fato natural e o

ato jurídico.

120 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 366.

105

É o fato jurídico realizado por intermédio da atuação humana, todavia, o elemento

vontade estaria ausente. O exemplo clássico é da criança que compra um doce. Esta compra e

venda não possui o elemento vontade por parte da criança.

Silvio Venosa121:

São fatos jurídicos todos os acontecimentos que, de forma direta ou indireta, ocasionam efeitos jurídicos. Nesse contexto, admitimos a existência de fatos jurídicos em geral. São fatos naturais, considerados fatos jurídicos em sentido estrito, os eventos que independem da vontade do homem, podem acarretar efeitos jurídicos. Tal é o caso do nascimento mencionado.... Numa classificação mais estreita, são atos jurídicos (que podem também ser denominados atos humanos ou atos jurígenos) aqueles eventos emanados de uma vontade, quer tenham intenção precípua de ocasionar efeitos jurídicos, quer não. Atos meramente lícitos são os praticados pelo homem sem intenção direta de ocasionar efeitos jurídicos, tais como invenção de um tesouro, plantação em terreno alheio... Quando existe por parte do homem a intenção específica de gerar efeitos jurídicos ao adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos, estamos diante do negócio jurídico. Os atos ilícitos, que promanam direta ou indiretamente da vontade, são os que ocasionam efeitos jurídicos, mas contrários, lato sensu, ao ordenamento.

Tanto a descrição de Silvio Venosa como a significação do gráfico acima posto,

apesar de bastante utilizadas pelos civilistas, merecem algumas ponderações. Vale destacar na

esteira de Paulo de Barros Carvalho122 que não existem fatos puros.

Adota-se a noção de que um fato sempre remete ao passado.123 Sendo o fato a

constituição em linguagem de um evento que ocorreu em determinado tempo e espaço.

Um único evento pode, inclusive ao mesmo tempo, ser tomado como fato social para

determinado sistema social – comunidade do discurso envolvida –, ser um fato contábil para o

sistema da contabilidade, ser um fato jurídico para o direito etc.

Em cada sistema o evento será descrito por um fato que, no caso do direito, será o fato

jurídico, irradiando os efeitos próprios do sistema jurídico. O mesmo mecanismo ocorre no

sistema social, político, econômico, contábil etc.

Paulo de Barros Carvalho124:

121 VENOSA, S.S. Op. cit., p. 366-7. 122 CARVALHO, P.B. Op. cit., 2009, p. 143. 123 Idem. 124 Ibidem, p. 147.

106

Por fim, não nos esquecemos de que a camada linguística do direito está imersa na complexidade do tecido social, cortada apenas para efeito de aproximação cognoscitiva. O real, com sua multiplicidade de suas determinações, só é suscetível de uma representação intuitiva, porém aberta para receber inúmeros recortes cognoscitivos. Com tais ponderações, torna-se hialina a afirmativa de que de um mesmo evento poderá o jurista construir o fato jurídico; como também o contabilista, o fato contábil; e o economista, o fato econômico. Tudo, portanto, sob a dependência do corte que se quer promover naquele evento.

Sem dúvida nenhuma, um evento pode ser capaz de ser apreendido por vários sistemas

(jurídico, contábil, econômico etc.).

Imperiosa torna-se a compreensão da noção de “fato jurídico” como sendo a

“transposição ou requalificação do evento para mundo jurídico” capaz de irradiar

consequências jurídicas. O fato jurídico está localizado na posição sintática de antecedente de

norma individual e concreta e é constituído por linguagem própria do sistema jurídico de

acordo com a gramática geratriz de normas.

Vale dizer, o que não for jurídico, eventos que são apreendidos por outros sistemas e

que são (re)constituídos pelo fato econômico ou contábil, apenas para ilustrar, jamais poderá

ser posto ou utilizado para irradiar efeitos jurídicos. Isso porque a delimitação do fato jurídico

implica rejeição de tudo que não for jurídico, elemento estranho ao direito, haja vista tais

elementos exógenos ao direito ser carentes de significação no mundo jurídico.

Paulo de Barros Carvalho125:

(...) de um mesmo evento pode-se construir um fato jurídico ou um fato contábil; mas um e outro são sobremaneira diferentes, o que impede de inscrever o último como antecedente de norma individual e concreta, dado que representa unidade carente de significação jurídica. O fato capaz de implicar o consequente normativo haverá de ser sempre fato jurídico, mesmo que muitas vezes haja situações em que num e noutro estejam presentes os mesmos conteúdos denotativos. A partir desses dados é que poderemos demarcar o conjunto dos fatos não-jurídicos, onde se demoram os fatos econômicos, os fatos contábeis, os fatos históricos e tantos outros quantas sejam as ciências que os constroem. O critério utilizado para a separação desses dois domínios é justamente a homogeneidade sintática do universo do universo jurídico.

No Direito só existem fatos jurídicos. Os fatos naturais estão fora do sistema jurídico.

Aquele evento ou fato que não depende da vontade do homem, como o nascimento, só tem

interesse e repercussão jurídica quando vertido em linguagem competente: no caso, o registro

125 CARVALHO, P.B. Op. cit., 2009, p. 149.

107

no cartório é o responsável por gerar consequências jurídicas. Antes do registro nada de

jurídico existe. Com o registro, há a linguagem presente do fato jurídico irradiando

consequências jurídicas e trazendo para o jurídico o “evento do nascimento”.

Na classificação ora analisada, os “fatos naturais” independeriam da vontade do

homem para concretização no mundo físico ou social e gerariam consequências jurídicas. É

um sem sentindo aceitar que a imputação normativa, ou seja, antecedente que implica um

consequente, ocorra sem a participação do homem. Isto é, que a aplicação do Direito e a

incidência normativa126 aconteçam sem a participação do agente competente.

Pelo exposto, a categoria de “fato natural” não pertence ao domínio do jurídico. O

item em enfoque não é utilizado no presente trabalho.

Embora a postura adotada seja a acima delineada, segue posição clássica dos civilistas.

Washington de Barros Monteiro127 preceitua em relação ao fato natural ou fato jurídico em

sentido estrito:

Dentre esses fatos, uns são de ordem natural, alheios à vontade humana, ou, para os quais, essa vontade apenas concorre de modo indireto, tais como o nascimento, a maioridade, a interdição e a morte, em relação à pessoa natural; o desabamento de um edifício, o abandono do álveo pelo rio, a aluvião e a avulsão em relação às coisas; o decurso do tempo, o caso fortuito e a força maior, em relação aos direitos em geral.

Os “atos meramente lícitos” seriam aquelas realizações do homem no mundo físico ou

social e que, mesmo sem intenção de gerar efeitos jurídicos, ocasionariam efeitos no sistema

de Direito Positivo. Merece novamente crítica essa classificação, pois o que importa ao

sistema jurídico é a subsunção a alguma hipótese normativa capaz de promover a constituição

do fato jurídico gerador de consequências jurídicas, obviamente desde que vertido em

linguagem competente e de acordo com a teoria das provas. Qualquer atividade do homem na

vida física ou social não é capaz de por si só gerar consequência no sistema de Direito

Positivo.

Os “atos jurídicos” possuem também a espécie “negócio jurídico”, segundo a

classificação civilista ora analisada. “Negócios jurídicos” seriam atos realizados pelo homem

no mundo físico ou social com a intenção de adquirir, resguardar, transferir, modificar ou

extinguir direitos na órbita do sistema jurídico.

126 Vide item 1.5. 127 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. vol. 1. 40ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 174.

108

Nesse ponto vale uma digressão.

O legislador por meio da “porta aberta da hipótese de incidência tributária”128 recorta

eventos externos ao Direito, conforme interesses legislativos, e os coloca em hipóteses de

incidência normativa, norma geral e abstrata. Em verdade, não é intenção ou não de gerar

efeitos que interessam ao Direito.

O encadeamento normativo para produção de efeitos jurídicos ocorre da seguinte

forma: os eventos primeiramente são jurisdicizados em normas gerais e abstratas, a fim de

que no momento subsequente ocorram no mundo fenomênico, para em seguida ser

(re)constituídos pelo fato jurídico, por meio de linguagem competente expedida por agente

credenciado do sistema, irradiando efeitos jurídicos.

A diferenciação de entre “negócio jurídico” e “ato jurídico meramente lícito” pela

vontade de querer gerar efeitos na órbita do direito é insignificante para o sistema de

Direito Positivo, haja vista que quando um dado evento é posto como antecedente de norma

geral e abstrata já ganha a qualificação de jurídico.

A intenção pertence ao mundo pré-jurídico, no sentido de que as pessoas naturais ou

jurídicas podem, conforme ato de vontade ou intenção, realizar uma hipótese normativa. Esta

sim, quando concretizada, ou seja, vertida em linguagem de concreção normativa, é capaz de

irradiar efeitos jurídicos (resguardar, modificar, constituir, transferir, extinguir direitos etc.).

É válido afirmar que o consequente normativo é local onde o fato jurídico relacional129

irradia efeitos jurídicos e sempre será composto por no mínimo dois sujeitos de Direito

colocados em posição sintática oposta. Paulo de Barros Carvalho130:

As relações jurídicas serão necessariamente irreflexivas por reivindicação do próprio campo objetal. É a região ontológica sobre a qual atuam as normas do direito que exige, de maneira decisiva e incontornável, a formação mínima da bilateralidade. Os vínculos jurídicos serão sempre e necessariamente aliorrelativos. Na condição de corpo de regras que se voltam sobre a região material das condutas intersubjetivas, as normas jurídicas não poderiam compadecer-se com laços de um sujeito para com ele mesmo, hábeis para expressar situações intrassubjetivas e, portanto, reflexivas. Estas últimas refogem inteiramente ao quadro de percussão do direito, interessando a outros sistemas de normas como a religião, a moral etc.

128 BECKER, A.A. Op. cit., passim. 129 CARVALHO, P.B. Op. cit., 2009, p. 182-3: “Mantenhamos na retentiva que fatos jurídicos não serão apenas os enunciados protocolares, denotativos, compostos segundo a previsão dos antecedentes de normas gerais e abstratas, mas também os fatos relacionais, igualmente no modo de enunciados protocolares, denotativos e constituídos na conformidade das previsões dos consequentes de normas gerais e abstratas. Ambos revestindo a estrutura enunciativa”. 130 Ibidem, p. 193.

109

Tentar diferenciar “atos jurídicos meramente lícitos” e “negócios jurídicos” pelo efeito

gerado pelo fato jurídico é totalmente inútil. Pois, em qualquer relação jurídica, existirão dois

sujeitos de Direito, no mínimo determináveis, que estabelecem direitos e deveres entre si.

O Direito Positivo é composto por fatos jurídicos irradiadores do fato relacional, ou

seja, consequências jurídicas. Não existe diferença dentro do sistema normativo entre “atos

jurídicos meramente lícitos” e “negócios jurídicos”, tudo é fato jurídico e nada mais.

A única diferença que pode existir é nas consequências dos fatos jurídicos. Na norma

primária um fato jurídico irradia sintaticamente a consequência de proibir, permitir ou proibir

determinada conduta, sendo o conteúdo preenchido semanticamente pelas prescrições

jurídicas. Por seu turno, o descumprimento da norma primária pode ser antecedente de outro

fato jurídico que irradia efeitos jurídicos que podem acarretar uma sanção131 com conteúdo

semântico estipulado pelo Direito, isso no caso das normas primárias sancionadoras. Por fim,

o não cumprimento da norma primária dispositiva e/ou da norma primária sancionadora pode

servir de suporte à construção de fato jurídico que ocasione o efeito da coercibilidade estatal,

no caso das normas secundárias132.

Os “atos jurídicos ilícitos” são, pela classificação indigitada, aqueles que pela vontade

do homem seriam realizados no mundo físico ou social e ocasionariam efeitos jurídicos,

porém contrários ao ordenamento. É impossível, de acordo com as linhas postas, que um ato

do mundo físico ou social gere automaticamente efeitos jurídicos. Logo, impossível adotar a

classificação do item “atos ilícitos” conforme estipulado pela teoria civilista.

O “ato ilícito”, de acordo com as premissas adotadas, é a marca da conduta contrária

ao Direito e surge justamente quando uma conduta prescrita pelo ordenamento positivo é

desrespeitada fazendo com que surja um fato jurídico que gerará sanção para o descumpridor

do dever jurídico, o qual pode se tratar de uma abstenção ou de um fazer para determinado

sujeito de direito.

Para o presente trabalho: qualquer agente credenciado do sistema que promova a

subsunção de determinado acontecimento do mundo fenomênico a uma norma geral e

abstrata, positivando no sistema uma norma individual e concreta, estará constituindo fato

jurídico capaz de irradiar consequências normativas.

131 Esta palavra possui um vasto conteúdo semântico. Neste contexto está sendo utilizada como preceitua Paulo de Barros Carvalho: “providência desfavorável que se associa ao descumprimento de dever juridicamente estabelecido”. Ibidem, p. 44. 132 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Lançamento tributário. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 39-40.

110

No Direito não existem “fatos naturais” que ocorrem apenas no mundo físico ou

social e gerem consequências jurídicas, tampouco existem atos realizados pelo homem,

independentemente da vontade de gerar ou não efeitos jurídicos ou mesmo contrários ao

ordenamento positivo, realizados apenas no mundo físico ou social capazes de irradiar

consequências jurídicas (“atos meramente lícitos”, “negócios jurídicos” ou “atos ilícitos”). O

direito é composto apenas por fatos jurídicos. Um antecedente normativo descreve

determinada situação que irradia os únicos efeitos possíveis133 de obrigar, permitir ou proibir.

Vale a reflexão: adotando por hipótese a diferença entre “atos meramente lícitos” e

“negócios jurídicos”, o processo/produto do planejamento tributário encaixar-se-ia em qual

categoria?

Considerando planejamento tributário o processo realizado pelo contribuinte no

mundo físico ou social que tem a intenção de não pagar ou diminuir determinado valor a

título de tributo, isto é, a intenção de não realizar determinada hipótese normativa tributária

para não gerar efeitos jurídicos-tributários, sendo que ao mesmo tempo, para tal escopo, são

utilizados determinados negócios jurídicos que gerarão consequências normativas no âmbito

do direito privado, uma incorporação, por exemplo, esse processo se encaixaria em qual

categoria: “atos meramente lícitos” ou “negócios jurídicos”? Em ambos? Nenhum?

Não há dúvidas de que existe um “negócio jurídico” em relação ao ato da

incorporação no exemplo dado. Todavia, não é o caso também de um “ato meramente lícito”

em relação ao processo como um todo, haja vista, um ato do mundo físico ou social realizado

por um agente capaz que possui o único interesse de programar a vida sem a intenção de

gerar efeitos tributários,134 sendo que, para tanto, utiliza-se de um “negócio jurídico” que

gerará efeitos na órbita de direito privado dentro deste processo. Perceba-se: as duas

classificações isoladamente são insuficientes para descrever o fenômeno em observação. No

mínimo, dependendo do ponto de vista, poderá tratar-se de “ato meramente lícito”

(planejamento tributário visto pela ótica de seu processo como um todo) ou de um “negócio

jurídico” (operação de direito civil, incorporação no exemplo dado). Valendo afirmar que a

referida classificação dos civilistas não permite sincretismo entre suas espécies.

Na linha do presente trabalho, no processo/produto do “planejamento tributário”

existiria um fato jurídico constituidor do negócio jurídico de Direito privado no exemplo 133 Lei deôntica do quarto excluso. 134 Mais do querer ou não realizar efeitos jurídicos tributários, o processo do planejamento tributário constitui a não intenção de gerar efeito tributário ou no mínimo gerar o efeito tributário de pagar a menor quantia possível a título de tributo.

111

incorporação. Em relação ao aspecto “essencialmente tributário” do planejamento, ou seja,

“não pagar ou pagar menos tributos”, este em princípio está fora do domínio do jurídico. O

“planejamento” adentra o “mundo do jurídico” quando é “desconsiderado” ou “requalificado”

pelo Fisco, de acordo com os limites que o próprio sistema jurídico estipula, constituindo

fatos jurídicos ensejadores de consequência jurídicas.

A todo instante os participantes “entram” e “saem” do sistema jurídico. Sendo que a

tarefa designada ao agente credenciado do sistema é justamente “cortar do mundo externo ao

Direito” os eventos que poderão ser qualificados como fatos jurídicos, ou seja, o agente

competente de dentro do sistema constitui o que seja jurídico. O agente credenciado é o

“porteiro que veste com camisa jurídica tudo que entra na seara jurídica”. Em linguagem

semiótica, cabe ao intérprete/aplicador constituir o objeto imediato por meio de recorte

realizado no objeto dinâmico. Em outros termos: não há trânsito livre entre o mundo do ser

para o mundo do dever-ser. Sendo o antecedente da norma individual e concreta a ponte que o

intérprete/aplicador utiliza para unir os dois mundos.

No planejamento tributário, enquanto o contribuinte “apenas” planeja a vida tributária

de acordo com os próprios interesses realizando negócios jurídicos que não subsumem a

nenhuma hipótese tributária, não gerando nenhuma quantia em termos de tributo a pagar, até

esse momento, nada de jurídico em termos de tributação ocorreu. O mesmo acontece quando

não há desconsideração e requalificação por parte do Fisco de negócios jurídicos realizados

pelo contribuinte, neste caso, nada de jurídico em termos estrito de planejamento tributário

existiu.

O jurídico em termos estrito do planejamento ocorre quando: I – o contribuinte

enquadra determinada operação em determinada hipótese normativa tributária; e/ou II – o

Fisco desconsidera e requalifica determinada operação (negócio jurídico), enquadrando a

operação realizada em certa hipótese normativa tributária que entenda cabível.

2.4.2 Artigo 112 e 113 do Código Civil

Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem. Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

112

Exame apressado dos artigos em enfoque pode passar a inadequada ideia de que cabe

ao intérprete perquirir a “real intenção” de determinada declaração de vontade e não seu

sentido literal. Utilizando-se para tal escopo a boa-fé e os usos do lugar onde foi emitida a

declaração de vontade constituidora de negócio jurídico.

Nenhuma interpretação é eminentemente literal. Muito embora a tinta deixada sobre o

papel seja o único dado objetivo que o intérprete possui para iniciar o labor hermenêutico.

“Plano literal” não é oposto de “plano do sentido”. Ao contrário, índice temático à construção

de sentido de qualquer norma jurídica, no caso, construção de sentido de determinado negócio

jurídico. Por outro lado, a busca de internalidades, como outrora mencionado, é missão

impossível de realizar. Será no contexto e de acordo com as provas admitidas em direito que

se construirá a interpretação de determinado negócio jurídico.

Não há dúvidas de que a boa-fé e os usos do lugar foram positivados no microssistema

de Direito Civil brasileiro. São critérios que ajudarão o intérprete/aplicador na construção da

significação de determinado negócio jurídico, principalmente na verificação da existência ou

não de vícios nos referidos negócios.

Todavia, as duas palavras possuem nível de indeterminação extremamente elevado.

Como utilizar tais critérios? Novamente o contexto do intérprete/aplicador e as provas

admitidas em direito serão os instrumentos utilizados pelo aplicador/intérprete para aferir se

determinado negócio jurídico foi realizado com a boa-fé objetiva e de acordo com os usos do

lugar.

Sem aprofundar o assunto, haja vista não é objeto deste trabalho, boa-fé objetiva e

usos do lugar da celebração do negócio jurídico parecem ser mais mandamento dirigido aos

participantes de negócio jurídicos, momento da feitura e de execução, do que simplesmente

um critério exclusivamente hermenêutico direcionado ao intérprete/aplicador.

2.4.3. Artigo 104 do Código Civil

É importante estabelecer os elementos que formam a classe do evento descrito em

norma geral e abstrata ensejador da possibilidade de criação, extinção, modificação ou

resguardo de direitos no âmbito do subdomínio de direito privado.

113

O Código Civil de 2002 prescreve:

Artigo 104. A validade do negócio jurídico requer: I – Agente capaz; II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III – forma prescrita ou não defesa em lei;

Qualquer fato jurídico de Direito privado na esteira do código, negócio jurídico,

necessita dos elementos, alhures indicados, para formação/validade. São elementos gerais que

necessariamente devem estar presentes.

Na presente pesquisa135 não importa conceituar o que seja existência, validade,

vigência, eficácia de normas jurídicas, categorias estruturantes da Teoria Geral do Direito.

Deve ficar consignado que o artigo 104 do CC de 2002, com os três elementos positivados

(agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não

defesa em lei), é o suporte físico que dá possibilidade à criação da norma jurídica que autoriza

a constituição de “negócios jurídicos”.136

Outros enunciados do Direito Positivo serão congregados ao artigo 104 do CC

autorizando a constituição, pelos particulares, de negócios jurídicos. No entanto, o artigo em

tela é índice temático à construção da norma jurídica autorizadora da constituição de negócios

jurídicos em geral.

Os elementos “agente capaz”, “objeto lícito, possível, determinado ou determinável” e

“forma prescrita ou não defesa em lei” foram amplamente estudados pela doutrina civilista

pátria, sendo que, em relação ao tema objeto de estudo “planejamento tributário”, não há

135 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de Direito Civil. Volume I: parte geral. 13ª ed. São Paulo, 2011, p. 355-6. A doutrina civilista classifica em três planos os negócio jurídicos, tomando sempre como parâmetro o artigo acima delineado. Pablo Stolze Gagliano assevera: “Com efeito, para apreender sistematicamente o tema – e não simplesmente reproduzir regras positivadas – faz-se mister analisá-lo sob os três planos em que pode ser visualizado: a) existência – um negócio jurídico não surge do nada, exigindo-se para que seja considerado como tal, o atendimento a certos requisitos mínimos; b) validade – o fato de um negócio jurídico ser considerado existente não quer dizer que ele seja considerado perfeito, ou seja, com aptidão legal para produzir efeitos; c) eficácia – ainda que um negócio jurídico existente seja considerado válido, ou seja, perfeito para o sistema que o concebeu, isto não importa em produção imediata de efeitos, pois estes podem estar limitados por elementos acidentais da declaração. No plano de existência deve estar presente à manifestação de vontade, quer expressa ou tácita; Os sujeitos que realizam o negócio; o objeto. Os bens jurídicos são objetos das relações jurídicas; forma através do qual o negócio se realiza. No plano de validade devem estar previstos os critérios postos no artigo 104 do Código Civil. No plano de existência para grande parte da doutrina civilista, se trata de fatores de denominados de eficácia ou elementos acidentais, os quais prescreveram até quando se produz ou poderá produzir efeitos os negócios jurídicos. São eles: I – condição; II – termo; III – encargo”. 136 A maioria da doutrina civilista classifica os negócios jurídicos em: I – unilaterais, formados pela vontade de uma só pessoa; II – bilaterais, formados pela vontade de duas pessoas; III – plurilaterais, formados pela vontade de duas pessoas.

114

grandes problemas jurídicos tributários acerca da interpretação e utilização de tais elementos

compositores do negócio jurídico.

Apenas destacando-se que a forma é elemento essencial do negócio. Logo, constrói-se,

também, o conteúdo de negócio jurídico pela percepção de sua forma. Paulo de Barros

Carvalho137: “A forma é o fundo aparecendo”. Em outros termos: os três elementos devem

estar presentes para que seja valido qualquer “negócio jurídico”.

Embora a manifestação de vontade e/ou declaração de vontade seja colocada como

propriedade de existência de negócio jurídico, devido a sua extrema importância ao campo

objetal de estudo será analisada. Silvio Venosa138:

A declaração de vontade é elemento essencial do negócio jurídico. É seu pressuposto. Onde não existir pelo menos aparência de declaração de vontade, não podemos sequer falar de negócio jurídico. A vontade, sua declaração, além de condição de validade, constitui elemento do próprio conceito e, portanto, da própria existência do negócio jurídico.

A doutrina de Direito Civil brasileira, baseada no Código Civil de 1916 e no de 2002,

considera o elemento vontade, ou melhor, a manifestação de vontade como circunstância

indispensável à existência de qualquer negócio jurídico.

Como dito, o tema da manifestação da vontade gera discussões acaloradas que

invadem o objeto de estudo. Pois, dependendo da postura seguida, diferentes resultados serão

obtidos. Utilizando-se da classificação de Silvio Venosa, os elementos constitutivos da

declaração de vontade são a declaração de vontade propriamente dita ou elemento externo e a

vontade ou elemento interno, que seriam “aquele impulso que se projetará no mundo exterior

e pressupõe essa projeção”.139

A vontade interna se subdivide em vontade de ação, vontade de declaração e vontade

negocial.

Preceitua Silvio Venosa140:

A vontade da ação é a querida, desejada, voluntária. Um agente diz ao outro que aceita sua proposta de contrato; faz um aceno de cabeça que significa afirmação, ou levanta o polegar num gesto que significa ´positivo´. O fato de serem tais atos praticados voluntariamente constitui a vontade de ação. Por outro lado, o declarante pode ter agido conscientemente e voluntariamente de acordo com o comportamento negocial, mas sem ter desejado atribuir-lhe o

137 Expressão utilizada no Congresso de Direito Tributário realizado pelo Instituto Geraldo Ataliba. 138 VENOSA, S.S. Op. cit., p. 401. 139 Ibidem, p. 403-4 140 Idem.

115

significado estampado no negócio. É o caso de um individuo, segundo o exemplo do autor lusitano supra citado, que entra em um leilão e vendo um conhecido, lhe faz um cumprimento de cabeça como saudação. Acontece que tal saudação, no leilão, é interpretada, segundo a praxe local, como ofertada ou lanço pelo objeto que está sendo leiloado. Aqui temos a vontade de ação, mas não há vontade de declaração. O ato praticado conscientemente, mas sem a vontade de praticar o negócio jurídico.

Os dois critérios (“vontade de ação” e “vontade de declaração”) não se coadunam com

o sistema de referência utilizado no presente trabalho. A interpretação de determinada ação ou

declaração será realizada no contexto e tomada como base determinadas provas que serão

analisadas pelo intérprete/aplicador.

Jamais se chegará ao plano interno da vontade do declarante, só há acesso, como já

delineado, às marcas da enunciação e nada mais.

O terceiro critério “vontade negocial” enuncia Silvio Venosa141:

O terceiro subelemento é a vontade negocial ou a intenção do resultado. O declarante deve ter a vontade e manifestá-la com o objetivo de praticar determinado negócio e não outro, ou qualquer outro ato. O declarante pode querer comprar o prédio A, quando na verdade o nome do prédio é B. O elemento interno sai distorcido. Há desvio da vontade negocial. (...) Em quaisquer dos casos, podem não coincidir os elementos interno e externo da declaração; há aqui vício no negócio jurídico, que na maioria das vezes poderá anulá-lo, se já não for nulo desde o início.

Aceitando-se o elemento vontade negocial como constituidor dos negócios jurídicos

realizados sob a égide do ordenamento positivo brasileiro, pelos fundamentos expostos nas

premissas, o Direito só poderá averiguar se houve ou não alguma espécie de vício na

formação do negócio jurídico quando do confronto entre a manifestação da vontade expressa

e as provas e circunstâncias que cercam o negócio jurídico.

Sendo a vontade negocial elemento formador e necessário de qualquer negócio

jurídico, algumas ponderações merecem ser feitas a título de argumentação, haja vista, como

dito, vontade interna não pertence ao mundo jurídico.

a) Vontade negocial é a vontade de realizar determinado negócio jurídico e não deve

ser confundida com o propósito negocial, que constitui o motivo extratributário142 autorizador

de planejamentos tributários.

141 VENOSA, S.S. Op. cit., p. 404. 142 Marco Aurélio Greco entende que só pode ser considerado lícito determinado planejamento tributário se existir um motivo extratributário (econômico, político, moral etc.) quando da feitura de determinado negócio jurídico. Vide, GRECO, M.A. Op. cit., p. 185.

116

b) Vontade negocial é a intenção de praticar determinado negócio jurídico, sendo que

deve existir manifestação da vontade demonstrando a intenção de praticar determinado

negócio jurídico. Quando uma pessoa pratica determinado negócio jurídico – expressão da

vontade – e este se coaduna com a intenção do agente no momento da feitura do negócio, o

requisito da vontade negocial está preenchido. Assim, se a intenção do agente é realizar

compra da casa “A” e a compra é materializada pela compra e venda da casa “A” – negócio

jurídico –, a intenção de resultado está presente.

c) O querer pagar ou não menos tributo por meio de planejamento tributário não está

relacionado à vontade negocial. Assim, quando um agente tem a intenção de pagar menos

tributo, e para tal escopo realiza determinados atos ou negócios jurídicos, em nada afeta a

vontade negocial, pois este elemento exige que o negócio realizado – expressão da vontade –

esteja de acordo com o “querer” que levou à prática de determinado negócio jurídico. Em

outros termos: se a vontade interna era realizar o negócio jurídico de compra e venda da

forma como se pretendeu, e se foi realizada a compra e venda da forma quista, respeitado está

o elemento vontade negocial.

d) Trata-se em verdade de dois ângulos de observação: vontade negocial é elemento

interno de formação do negócio jurídico em si, e não critério de utilização de determinado

negócio jurídico. Por exemplo, se o agente compra a casa “A” porque irá residir com esposa

ou amante, ou porque a casa será a nova sede do escritório, ou porque a casa se tornará um

orfanato, ou porque através da compra e venda irá pagar menos tributo, isso em nada tem a

ver com o negócio em si da compra e venda. Ou seja, intenção negocial para os civilistas

significa, no exemplo dado, a intenção de realizar o negócio jurídico compra e venda e

efetivamente realizá-lo por meio de um negócio jurídico – manifestação da vontade – e nada

mais.

Itamar Gaino143 assevera: “A vontade negocial, vontade de conteúdo da declaração ou

intenção de resultado consiste na determinação de realizar um negócio jurídico de conteúdo

correspondente ao verdadeiro significado da declaração exteriorizada”.

Controvérsia existe também acerca da existência ou não no Direito Positivo brasileiro

do elemento causa como formador de negócios jurídicos. No Código de 1916 houve clara

preferência pela vontade como elemento formador de negócios jurídicos. O CC de 2002 no

143 GAINO, I. Op. cit., p. 3.

117

contexto normativo ainda trabalha com a ideia da vontade. Todavia, em artigos pontuais144

prescreve a categoria jurídica causa como partícipe do enredo normativo.

Conforme positivado no sistema jurídico, o motivo determinante, em certa

perspectiva, é elemento formador do negócio jurídico. O motivo determinante é a causa do

negócio jurídico. Sendo a causa nada mais do que o motivo de determinado negócio dirigido a

um determinado fim. O motivo seria pressuposto do negócio e o fim seria o objetivo que

determinado negócio busca alcançar. Assevera Silvio Venosa145:

Numa compra e venda, por exemplo, o comprador pode ter os mais variados motivos para realizar o negócio: pode querer especular no mercado; pode pretender utilizar-se da coisa para seu próprio uso; pode querer adquiri-la para revender. Todos esses motivos, porém, não têm relevância jurídica. O motivo com relevância jurídica será receber a coisa, mediante o pagamento. Para o vendedor, por outro lado, o motivo juridicamente relevante é receber o preço. Pouco importa, para o direito, se o vendedor aplicará o dinheiro recebido no mercado de capitais ou pagará divida.

Aceitando-se a causa como elemento formador do negócio jurídico, deve ficar

consignado: a causa do negócio jurídico é aquela restrita ao negócio em si. Por exemplo, se o

fim do negócio é alienar participação societária por meio da compra e venda, a causa ou

motivo é receber o dinheiro em troca da entrega das ações ou cotas.

Qualquer motivação além da diretamente relacionada com o negócio será irrelevante

ao campo do Direito.

Reflexão: considerando que a causa de um negócio jurídico deva ser qualquer

motivação relacionada ao âmbito de interesse das partes, estar-se-á dando significação ampla

ao conceito de causa como elemento formado dos negócios jurídicos. Isto é, por meio de

visão dinâmica de todas as operações realizadas, estar-se-á aumentando as possibilidades de

significação da causa do negócio jurídico, tomada em acepção ampla. Assim qualquer motivo

não ligado diretamente ao negócio em si poderá ser causa do negócio jurídico.

Alguns doutrinadores146 observando o “filme” dos negócios jurídicos afirmam que o

negócio jurídico pode ter qualquer causa, menos a que queira economizar unicamente

tributos.

144 Código Civil. “Artigo 166. É nulo o negócio jurídico quando: (...) III – O motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito. Artigo 140. O falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como razão determinante.” 145 VENOSA, S.S. Op. cit., p. 413. 146 GRECO, M.A. Op. cit., p. 183-1.

118

Todavia, o alargamento semântico do conceito de causa não ocasiona maiores

implicações à seara tributária, pois não infirma a possibilidade de o particular realizar

negócio jurídico com a única causa de economizar tributos, pelo contrário, o efeito é o

inverso, ratifica essa possibilidade. Como o particular é livre para realizar qualquer negócio

jurídico lícito, inclusive com o único intuito de economizar tributos, estar-se-á utilizando o

conceito amplo de causa, isto é, não restrita ao negócio em si, com a única diferença de

permitir como causa a realização de negócios jurídicos que somente possui o intuito de

economizar tributos.

Realizando o dialogismo com o direito societário, qualquer empresa tem na realização

de negócio jurídico o fim de obtenção de lucro. Dessa forma, a diminuição de tributo a pagar

reduz o custo do negócio, sendo que o lucro, em acepção rasteira da palavra, irá aumentar,

atendendo às finalidades de qualquer negócio. Assim, a finalidade de qualquer negócio na

esfera comercial é obter o lucro. A causa do negócio entre outras coisas poder ser unicamente

a economia de tributos, haja vista, será apta a alcançar a finalidade do negócio – lucro.

Vale ressaltar que se adota a concepção estática de causa nos negócio jurídico, isto é,

basta que haja conformidade entre meios e fins, ligados diretamente ao negócio, para que

esteja presente a motivação – causa – do negócio jurídico.

Por fim, a acepção adotada em nada infirma a utilização de negócio jurídicos indiretos

no direito brasileiro, como se observará em momento oportuno.

2.4.4 Fraude à lei

Eis dicção legal: “Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: (...) VI – tiver por

objetivo fraudar lei imperativa”.

Fraude à lei tem a seguinte significação: prática de negócio jurídico com o intuito de

fazer com que não haja incidência de determinada norma por meio da utilização de outro

suporte normativo que dá contorno.

Marco Aurélio Greco147:

147 GRECO, M.A. Op. cit., p. 241.

119

Na fraude á lei o contribuinte monta determinada estrutura negocial que se enquadre na norma de contorno para, desta forma, numa expressão coloquial “driblar “ a norma contornada. Com isto pretende fazer com que a situação concreta seja regulada pela norma de contorno, com o que ficaria afastada a aplicação da norma de tributação (ou de tributação mais onerosa). Neste caso, não estamos perante conduta ilícita.

Não há como concordar que uma conduta realizada contra o sistema jurídico ou contra

determinada regra jurídica pertença ao campo da licitude. Fraude à lei é conduta ilícita que

ocorre por meio da utilização de regra do sistema com o único intuito de violar o sistema

jurídico. Desta feita, se há violação ao sistema jurídico, estar-se-á tratando do campo do

ilícito.

Discordando do autor citado, para que exista fraude à lei é indispensável o “querer”,

ou seja, a presença do elemento volitivo. No presente caso, o que há é a utilização de uma

regra jurídica para contornar uma proibição posta pelo sistema jurídico. Lembrando sempre

que o “querer” juridicamente é afirmado ou infirmado por meio da linguagem das provas

jurídicas.

A fraude à lei prescrita no artigo em análise é diferente da fraude posta no artigo 149

do CTN, haja vista que esta possui utilização específica no campo tributário, aplicando os

conceitos da Lei n° 4.502/64, denominada de fraude “penal”. Semanticamente há diferença

entre os dois tipos de fraude.

Consigna-se: apenas por utilizar uma regra do sistema, ou seja, fazer com que incida

uma regra do sistema em completo desrespeito as outras regras do sistema não significa que

se esteja dentro do campo da licitude, pois, como já afirmado, o direito se operacionaliza por

relações de coordenação e subordinação.

Por seu turno, Alberto Xavier148:

O mecanismo da fraude à lei assenta no pressuposto que o espirito da lei consiste na proibição do resultado atingido pelo ato jurídico previsto na letra da norma proibitiva, não só através deste ato mas por qualquer outro ato ou conjunto de atos de atinja resultado idêntico ou semelhante. Se se concluir que a lei não quer o resultado, compreende-se que proíba todos os meios a ele conducentes, tanto os expressamente contemplados, como quaisquer outros.

Colocado ao lado a questão de “letra da lei” e “espírito da lei”, o que deve ficar retido

é que na fraude à lei determinado fim é proibido pelo Direito. Qualquer meio utilizado para 148 XAVIER, A. Op. cit., 2001, p. 65.

120

atingir o fim, mesmo aqueles não típicos (atípicos) para atingir determinados fins, é proibido

pelo Direito. Acaso seja utilizado meio atípico para atingir determinadas finalidades proibidas

pelo Direito se estará incorrendo em fraude à lei, ou seja, utilização de norma de contorno

para atingir fim ilícito.

2.4.5 Negócio jurídico indireto

Negócio jurídico indireto encontra suporte no sistema positivo brasileiro no primado

da liberdade de contratar.

Significa que o particular em regra é livre para escolher os negócios jurídicos que

pretender realizar e atingir os fins que almeja, desde que não desrespeite nenhuma regra ou

princípio jurídico.

Na maioria dos casos, os particulares celebram negócios jurídicos típicos para atingir

os fins típicos dos negócios. Todavia, em outras oportunidades os particulares realizam

negócios jurídicos típicos para atingir fins atípicos em relação ao negócio jurídico celebrado.

Esta situação é denominada de negócio jurídico indireto.

Alberto Xavier149:

Denomina-se, negócio jurídico indireto o negócio jurídico que as partes celebram para através dele atingir fins diversos dos que representam a estrutura típica daquele esquema negocial (...) A característica essencial do negócio indireto está na utilização de um negócio típico para realizar um fim distinto do que corresponde à sua causa-função objetiva: daí a referência dos autores ao seu caráter “indireto” ou oblíquo, anômalo ou inusual.

No Brasil é permitida a utilização da figura jurídica do negócio jurídico indireto. Três

questões surgem: a) realização de negócio jurídico atípico150 não se enquadra na categoria do

negócio jurídico indireto; b) negócio jurídico indireto não é equivalente a fraude à lei ou a

fraude “penal”; c) negócio jurídico indireto não é sinônimo de simulação.

149 XAVIER, A. Op. cit., p. 59 150 Posição contrária é a de Itamar Gaino: “os negócios jurídicos indiretos podem ser classificados em atípicos e típicos. Na primeira categoria enquadram-se os negócios indiretos referidos, que não têm no ordenamento regulamentação própria, sendo criados pelas partes no espaço amplo da liberdade negocial. Na segunda categoria situam-se os contratos fiduciários regulados especificamente por lei, como acontece, entre nós, com o contrato de alienação fiduciária (...)”. GAINO, I. Op. cit., p. 52-3.

121

Em relação ao item a) está correto Marco Aurélio Greco151:

A segunda observação é a de que só há negócio indireto quando for utilizado um negócio jurídico típico. Se o negócio jurídico for atípico ele será direito posto que o efeito prático não é mais equivalente ao de outro negócio, mas é o efeito prático dele especificamente decorrente. Falta a característica de ser “indireto”. Sublinho o requisito de o negócio indireto ser um negócio típico porque, invocando a autonomia privada, as partes podem incluir cláusula novas ao negócio jurídico típico ou alterar as que compõem seu modelo. Assim, agem para adequar a vestimenta jurídica aos interesses envolvidos e à realidade fática que os cerca.

Qualquer negócio típico pode atingir fins atípicos, desde que a finalidade não

descumpra nenhuma norma proibitiva e que o negócio realizado seja típico, pois do contrário

de negócio jurídico indireto não se estará tratando.

A utilização de negócios jurídicos atípicos não é vedada pelo Direito. Apenas que, em

matéria tributária, planejamento, a significação do negócio atípico será obtida na contextura

de sua realização. Ou seja, a colheita das provas passa a ser elemento indispensável à

averiguação de que determinado negócio atípico subsume ou não a determinada hipótese

normativa tributária. Isto é, a simples nomenclatura de atípico não torna o negócio jurídico

realizado como incapaz de realizar determinada hipótese normativa tributária.

Todavia, tampouco automática e infalivelmente o negócio atípico a priori se enquadra

em hipótese normativa tributária.

Em relação ao item b) não há dúvidas de que seja vedada a utilização de negócio

jurídico indireto para atingir fim proibido por outra norma jurídica de superior hierarquia ou

que desrespeite o sistema jurídico como um todo. No entanto, em matéria tributária não se

constitui fraude à lei nem fraude “penal” a utilização de negócio jurídico indireto com a única

finalidade de economizar tributos, atingindo fim equivalente ao do realizado por meio de

negócios jurídicos que subsumem a determinada hipótese normativa tributária. Vejamos:

I – não existe a priori proibição no sistema jurídico para realizar planejamentos

tributários com o único intuito de economizar tributos;

II – norma nenhuma obriga o particular quando da realização negócios jurídicos

escolher aqueles que necessariamente irão subsumir a alguma hipótese tributária. Valendo

deixar consignado que o negócio jurídico indireto também não se coaduna com fraude

“penal” prescrita na Lei nº 4.502/64152, haja vista que esta lei determina que a “ação dolosa

151 GRECO, M.A. Op. cit., p. 280. 152 A Lei nº 4.502/64 em seu artigo 72 prescreve: “Art. 72. Fraude é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a

122

que impeça ou retarde a ocorrência do fato gerador” seja tipificada como fraude, ou seja, se

faz presente a ilicitude. Já no negócio jurídico indireto existe a escolha de um caminho lícito

para atingir fins atípicos, também lícitos. Logo, trata-se de categorias jurídicas distintas.

Em relação ao item c), a diferença principal é que no negócio jurídico indireto aquilo

que realmente aparenta ser é realmente querido pelas partes, comprovação feita por meio das

provas em direito, sempre dentro do campo da licitude.

Já na simulação, pertencente ao campo da ilicitude, aquilo que aparenta não é o

desejado pelas partes, sempre de acordo com as provas produzidas. Na simulação existe o

oculto, o real negócio programado pelas partes.

2.4.6 Simulação e dissimulação no Código Civil

Simulação a partir do Código Civil de 2002 é causa que invalida negócio jurídico.

Simulação classicamente tem a seguinte significação: declaração enganosa de vontade

que visa produzir efeito diverso do indicado. Divide-se em: I – absoluta: aquela produzida

para não gerar efeito jurídico algum; II – relativa: aquela em que há dois tipos de negócio,

haja vista ser realizado um negócio com o intuito de encobrir outro. Desta feita temos o

negócio simulado, aquele que aparece ao mundo jurídico, e o negócio dissimulado, o

efetivamente pretendido pelas partes.

É denominada extraversão a declaração, ou melhor, a constituição de nulidade do

negócio simulado, sendo que concomitantemente há a entrada do negócio dissimulado no

mundo jurídico. Em outros termos: desconsidera-se o negócio simulado e utiliza-se do

negócio efetivamente realizado, ou seja, negócio dissimulado que se procurou ocultar,

adentrando este no sistema jurídico.

Classifica-se também a simulação em: I – inocente: quando não existe a intenção de

prejudicar a outra parte; II – maliciosa: quando há intenção de prejudicar; Em ambos os casos

os negócio jurídicos devem ser constituídos nulos153. Essa classificação se tornou inócua,

excluir ou a modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do imposto devido a evitar ou diferir seu pagamento”. 153 Doutrinas clássicas diferenciam ato nulo de ato anulável pelas seguintes propriedades: I – ato nulo: atinge preceitos de ordem pública; pode ser declarado ex offcio pelo juiz; o reconhecimento de nulidade ocorre com a utilização de ação declaratória, sendo que qualquer interessado e o Ministério Público podem propor ação, sendo

123

pois, de acordo com o Código Civil, em havendo simulação, independente do tipo de negócio

deverá ser constituída a nulidade. A simulação e a dissimulação no CC/2002 estão enunciadas

no artigo 167.

Art. 167- É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. § 1º Haverá simulação nos negócios jurídicos quando: I – Aparentarem conferir ou transmitir direito a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; II – Contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; III – Os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados. 2º Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado.

A simulação de acordo com o CC divide-se em simulação absoluta e simulação

relativa (dissimulação). Esta é a conclusão que se constrói a partir do CC.

A palavra simulação gera na mente do intérprete a ideia de fingimento da realidade. É

a tentativa de esconder a “real vontade” quando se utiliza de uma declaração que passará a

imagem da realização de determinado negócio jurídico.

Silvio Rodrigues154 assevera: “Negócio simulado é aquele que aparenta uma aparência

diversa do efetivo querer das partes. Estas fingem um negócio que não pretendem”.

O critério a ser analisado é a divergência entre a vontade e a declaração.

Neste ponto, é imperioso traçar diferença crucial: como chegar à “real vontade” dos

declarantes? Não há dúvida de que tal escopo é impossível. Vejamos.

É sabido que o único dado objetivo que o intérprete possui para buscar encontrar a

“verdadeira vontade dos declarantes” é o documento que dá suporte a determinado negócio

jurídico celebrado. Muito embora, como foi descrito linhas acima, o declarante é responsável

pela emissão de vontade posta em determinado suporte físico, assim como os destinatários e

terceiros confiam nas declarações (teoria da autorresponsabilidade).

O máximo que o hermeneuta alcança é a enunciação-enunciada155 que remete ao

processo de enunciação.

esta de caráter imprescritível; ato nulo não se convalida no tempo e eventuais efeitos de decisão são ex tunc; ato nulo não admite confirmação e sim conversão (artigo 1.700 do Código Civil); II – ato anulável: atinge preceitos de ordem privada; não pode ser declarado de ofício pelo juiz; reconhecimento de um ato anulável ocorre mediante propositura de ação declaratória, sendo que somente os interessados na demanda podem são legitimados e a ação anulatória está sujeita a prazo decadencial; ato anulável se convalida no tempo; decisão de ação anulatória produz efeitos ex nunc; ato anulável admite confirmação, ou seja, pode ser ratificado. 154 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: parte geral. 34ª ed. São Paulo, Saraiva, 2004, p. 294.

124

A enunciação-enunciada, como se demonstrou no item apropriado, contém coordenada

de tempo e espaço, demonstra o sujeito que emitiu determinado ato. Em outros termos, é o

resultado da aplicação da norma de produção jurídica.

Tárek Moysés Moussallem156:

A partir da linguagem do veículo introdutor (enunciação-enunciada), reconstruímos a linguagem do procedimento produtor de enunciados (enunciação), e realizamos o confronto entre esta e a linguagem de produção normativa (fundamento de validade do veículo introdutor) para aferimos se a produção normativa se deu ou não em conformidade com o prescrito no ordenamento).

Em nenhum momento o intérprete toca a “vontade do declarante”. A única

possibilidade é verificar se a norma produzida está de acordo com o processo de produção

normativa estipulado previamente pelo sistema jurídico.

Haverá comparação entre o que foi produzido, por meio dos elementos da enunciação-

enunciada, com as regras de criação e extinção normativa.

Seria um sem sentido descobrir o que se passou na mente do declarante no momento

da feitura de determinado negócio jurídico.

Todavia, Silvio Venosa157 declara:

Há simulação absoluta quando o negócio é inteiramente simulado, quando as partes, na verdade, não desejam praticar ato algum. Não existe negócio encoberto porque realmente nada existe. Não existe ato dissimulado. Existe mero simulacro do negócio: colorem habet, substantiam mero nullam – possui cor, mas a substância não existe. Na simulação relativa, pelo contrário, as partes pretendem realizar um negócio, mas de forma diferente daquela que se apresenta (colorem habet substantiam vero alteram – possui cor mas a substância é outra).

Em matéria tributária, o mesmo se verifica na obra de Alberto Xavier158, quando

destaca os elementos essenciais da simulação: “Os seus elementos essenciais são, pois, (i) a

intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração; (ii) o acordo simulatório

(pactum simulationis); (iii) o intuito de enganar terceiros”.

Dissimulação segundo Itamar Gaino159:

155 Vide item 1.6. 156 Moussallem, T.M. Op. cit., 2006, p. 141. 157 VENOSA, S.S. Op. cit., 237. 158 XAVIER, A. Op. cit., p. 53. 159GAINO, I. Op. cit., p. 31.

125

É aquela em que as partes declaram um determinado negócio, quando na verdade, praticam outro negócio, O negócio declarado, tornado ostensivo ou aparente para conhecimento de terceiros, é chamado “negócio simulado”; enquanto o negócio efetivo, correspondente à verdadeira vontade subjetiva das partes e que permanece oculto, é chamado de “negócio dissimulado”.

O sistema de referência adotado na presente pesquisa não se coaduna com o conceito

clássico de simulação e/ou dissimulação. Devendo haver uma espécie de (re)enquadramento

dos termos empregados na linha teórica seguida na pesquisa.

Realizando tal intento se afirma: simulação é a divergência entre o que efetivamente

foi posto em determinado suporte físico e o intento das partes, todavia, o intento das partes

nada mais é do que pode ser captado pelas provas em direito. Questão fundamental para

identificar a simulação é o chamado “acordo simulatório”.

Identificar a simulação e/ou dissimulação significa constituir um negócio jurídico

como simulado por meio da comprovação da presença do acordo simulatório.

Acordo simulatório segundo Itamar Gaino160:

Acordo simulatório significa a conjugação das vontades das partes no sentido de dar aparência a um determinado negócio, quando em verdade, nenhum negócio elas desejam praticar (simulação absoluta), ou no sentido de dar aparência a um determinado negócio, quando na realidade elas desejam praticar outro, de natureza diversa (simulação relativa).

O acordo simulatório pode ser verbal, escrito, realizado por documento público ou

privado. É ato preparatório da simulação e/ou dissimulação. Se não houver prova da

existência do acordo simulatório, a categoria jurídica da simulação/dissimulação não tem

como ser comprovada em determinado negócio jurídico.

Por uma questão lógica e cronológica o acordo simulatório é anterior ou no máximo

concomitante à realização do negócio simulado. Pois, se for posterior. não se trata de

simulação, haja vista, no máximo o que se pretendeu foi alterar um contrato “verdadeiro”, que

quando de sua realização representou a “vontade das partes”.

Destaca-se que nos casos de dissimulação existem três elementos: I – contrato

simulado; II – acordo simulatório; III – contrato dissimulado. O acordo simulatório é o nexo

160 GAINO, I. Op. cit., p. 36.

126

entre o contrato simulado e o dissimulado. Acaso não se faça presente o acordo simulatório,

estar-se-á em face de dois contratos contraditórios entre si.

Existe ainda outra maneira de identificar os negócios jurídicos e a simulação que

eventualmente os envolve. Trata-se da denominada causa do negócio jurídico, que na

simulação é denominada de causa simulandi.

Compreende-se por causa simulandi o motivo ou o interesse que leva as partes

envolvidas em dada situação do cotidiano a criar um negócio aparente, quando na realidade

não desejam praticar negócio algum ou pretendem ocultar certo negócio jurídico.

Destaca-se que a causa simulandi ou motivo da simulação não se confunde com o

motivo do negócio jurídico ou contrato. Itamar Gaino161:

A causa simulandi não se confunde com a causa do contrato, ainda que ele esteja presente e até seja válido, como acontece na simulação relativa, porque ao contrato ela não se refere, aludindo, isto sim, ao procedimento adotado pelas partes para a criação de uma situação aparente, o qual se compõe, como explicitado em momento próprio, de acordo simulatório, contrato simulado e , quando há, contrato dissimulado.

Do mesmo modo que não se compreende a causa como elemento do negócio jurídico,

não se trabalha com a ideia de causa simulandi como elemento constituidor da simulação em

qualquer uma das espécies.

No diálogo com o Direito Tributário, em especial com o planejamento tributário,

percebe-se que a simulação não necessita de causa, ou seja, motivo para existir. Basta que

determinado negócio aparente encubra a “intenção das partes” posta no acordo simulatório.

Mesmo que se aceite a causa como elemento da simulação, o simples fato de realizar

negócio jurídico denominado de “aparente” pelo motivo de tentar pagar menor quantia de

tributo não constitui em tese simulação. Explica-se: I – os particulares quando realizam

negócio jurídico com o único intuito de pagar menos tributo estão realizando o negócio por

esse motivo. Logo, o negócio realizado “aparente” representa a “real vontade das partes”, não

havendo divergência entre a vontade “interna” e a vontade “externada”; II – existe a

possibilidade da causa de a simulação ser o menor pagamento de tributo. Ocorre nos casos em

que o negócio dissimulado irá gerar tributo maior a pagar, então os particulares realizam

negócio simulado, sendo que a causa da simulação foi o menor pagamento possível de tributo.

161 GAINO, I. Op. cit., p. 57.

127

Neste caso os particulares não “querem” o negócio aparente e, por meio do acordo

simulatório e do contrato dissimulado, regem o negócio jurídico que corresponde “à real

intenção das partes”, estipulando as regras que devem seguir. Neste caso não há o “querer” de

realizar o negócio aparente. A situação posta é diferente quando os particulares realizam

determinado negócio jurídico com o único intuito de pagar menos tributos, mesmo que

existam outros negócios que gerariam tributo a maior a pagar. Desta feita, é lícito aos

particulares realizar os negócios por certa forma que gerem tributo menor a pagar, mesmo que

apenas por esse motivo.

A diferença é muito sútil: I – se o particular desejar realizar um negócio apenas com o

interesse de pagar quantia menor de tributo, nenhum ilícito se faz presente, tampouco a

simulação; II – se os particulares querem realizar o negócio dissimulado (oculto) que gera

maior tributo a pagar, todavia, realizam um negócio aparente que gerará quantia menor de

tributo, a causa da simulação foi o pagamento menor de tributo. Desta feita, somente as

provas em direito é que vão delimitar o campo da simulação ou do negócio lícito que tem

como causa o menor pagamento de tributo possível.

Ressaltando-se que, no sistema de referência adotado, não importa a causa da

simulação (menor pagamento de tributo, por exemplo), apenas que, para haver

simulação/dissimulação, deve haver comprovação da existência do acordo simulatório, que

algumas vezes são verbais.

Por fim, consigna-se: simulação e ou dissimulação está dentro do campo do ilícito.

Fazendo-se presente o elemento volitivo do dolo162.

2.4.7 Abuso de direito e as “cláusulas gerais” do Direito Privado

Deve ficar consignado que a utilização da expressão “cláusula geral” serve apenas

para enfatizar a utilização de certos princípios e regras, haja vista, no Direito Positivo apenas

existem estes dois elementos que compõem a classe das normas jurídicas.

162 As notas do que seja dolo estão no item 2.4.8.

128

Em verdade algumas “cláusulas gerais de Direito privado” são autênticas regras que

estipulam o modo de produção normativa pelos particulares, podendo ser denominadas como

regras de estrutura. Vejamos o artigo 421, 422 e o §1º do 1.228 do Código Civil brasileiro:

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Art. 1.228, §1º. O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com suas finalidades econômicas e sociais.

Tais regras possuem a seguinte significação: I – “se você, particular, quiser realizar e

executar negócios jurídicos, devem ser respeitado os limites sociais do contrato e, exercido o

negócio jurídico, inclusive após sua conclusão, com probidade e boa-fé”; II – “se você,

particular, quiser exercer seu direito de propriedade, devem ser respeitadas as finalidades

econômicas e sociais da propriedade”.

O artigo 187 do Código Civil que serve de suporte físico à teoria do abuso de direito,

também considerado como “cláusula geral de direito privado”, em verdade é uma regra que

prescreve o modo de produção de outras regras pelos particulares. Assim: “Art. 187. Também

comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites

impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos costumes”.

Quem abusa de seu direito comete ilícito. Toda vez que o particular for realizar e

executar atos ou negócios jurídicos deve observar o artigo 187 do Código Civil brasileiro.

Hoje, no sistema positivo brasileiro existem maiores limitações à esfera de atuação privada.

Embora entenda que o artigo 187 do CC/2002 trate de princípios jurídicos formais,

Ricardo Marcondes Martins163 assevera que semanticamente o que há em comum aos

princípios do artigo é que obrigam os particulares a fazer valer, ao estipular e exercer a esfera

privada, os enunciados da função social, fim econômico, boa-fé, probidade e bons costumes.

As cláusulas gerais consistem em princípios formais especiais que restringem o âmbito do princípio formal fundamental da autonomia privada. Elas atribuem um peso aos princípios opostos aos concretizados pelos particulares, vale dizer, aos princípios que se chocam com os interesses egoísticos. Ainda que, cientificamente haja diferença semântica entre as cláusulas gerais, todas elas no conjunto, possuem o mesmo significado: elas obrigam os particulares, no âmbito da liberdade resultante da obediência às limitações legais e administrativas, a observar os princípios colidentes com os princípios relativos á sua esfera de interesses (grifo nosso).

163 MARTINS, R.M. Op. cit., p. 87.

129

O grau de indeterminação dos enunciados do artigo 187 faz surgir inúmeros debates

acerca dos limites da possibilidade da atuação privada. Sendo que quem desrespeita os

enunciados postos no artigo 187 comete um ilícito denominado abuso de direito.

Ao criar, executar e finalizar “atos” ou “negócio jurídico”, o particular que

desrespeitar o artigo 187 não está realizando “negócio lícito” em que o fim agride o sistema

com um todo. Pelo contrário, qualquer criação e execução de regra que desrespeite o artigo

187 é fadada a ser caracterizada como ilícito e nada mais. Não há dúvidas que a qualificação

doutrinária do abuso de direito encontra guarida no CC/2002.

Ricardo Marcondes Martins164:

Enquanto o abuso de poder é uma qualificação doutrinária própria do direito público para edição, pelos agentes públicos, de certos atos jurídicos inválidos, o abuso de direito é uma qualificação doutrinária de direito privado para edição, pelos particulares, de certos atos jurídicos inválidos ou para certas condutas ilícitas dos particulares (...).

Realizando o diálogo com o Direito Tributário, em especial com o planejamento, não

existe regra que proíba o particular de realizar atos ou negócios jurídicos. Todavia, pelo

exposto, tal liberdade é limitada pelo artigo 187, 421 e 422 do Código Civil.

A questão que urge é saber se comete abuso de direito o particular que realiza

negócios jurídicos com o único intuito de economizar tributos.

Preceitua Marco Aurélio Greco165: “Sustentei (...) que toda pessoa tem o direito de

dispor de sua vida como melhor lhe aprouver, porém, no exercício desse direito não poderá

fazê-lo de maneira abusiva, buscando como única ou preponderante finalidade obter um

menor pagamento de tributo”.

No campo do planejamento, para Marco Aurélio Greco, se a única intenção for pagar

menos tributo, o ato é abusivo porque desrespeita a capacidade contributiva positiva e o artigo

187 do Código Civil.

Não se coaduna com tal posição por dois motivos: I – não existe capacidade

contributiva positiva enunciada na Constituição Federal de 1998; II – intenção única de

economizar tributo, salvo melhor juízo, não desrespeita a priori a regra de produção

normativa dos artigos 187, 421, 422 e do §1º do artigo 1.228 do Código Civil, haja vista o

fato de o particular não estar agindo com má-fé (em planejamento todos os atos são 164 MARTINS, R.M. Op. cit., p. 91. 165 GRECO, M.A. Op. cit., p. 203.

130

declarados e postos à disposição do Fisco), contra os costumes, nem tampouco está ocorrendo

em ato que desrespeite a função social do contrato ou que fim econômico ou social de seu

direito não permita que haja auto-organização com o único intuito de reduzir carga tributária.

Caso se faça presente alguma dessas figuras, o ato é ilícito, constituindo abuso de direito.

Desta feita, apenas no exame do caso concreto se poderá afirmar se o particular abusou ou

não de seu direito.

2.4.8 Erro ou ignorância, dolo, coação, lesão, estado de perigo, fraude contra credores

Diferentemente da simulação, do abuso de direito, as categorias analisadas a seguir

possuem apenas relação indireta com o campo objetal de estudo. Por esse motivo, serão

postas apenas as linhas estruturantes dessas categorias.

Erro ou ignorância pode ser considerada a noção falsa sobre determinada pessoa ou

objeto. Trata-se de um erro que vicia a “vontade” do participante do negócio jurídico e que

encontra fundamento no artigo 138 do Código Civil. Divide-se em: I – erro substancial, que

recai sobre qualidade essencial da pessoa ou coisa, podendo ser anulado; II – erro acidental,

que recai sobre qualidade secundária e resolve-se em perdas e danos.

Dolo pode ter a significação do artificio astucioso com a intenção de prejudicar a

vítima. Em outros termos: o dolo é o engano induzido. Podendo ter três subespécies: I.1 –

dolo principal: causa determinante para realização de certo negócio jurídico, podendo ser

anulado; II.1 – dolo acidental: não contamina a vontade, todavia, faz com que a parte realize

negócio jurídico desfavorável em relação à outra parte; sendo resolvido em perdas e danos;

I.2 – dolo bônus: o exagero de qualidade; II.2 – dolo malus: é a intenção de prejudicar; I.3 –

dolo positivo: consistente em uma ação concatenada a prejudicar; II.3 – dolo negativo:

consistente em omissão que intencionalmente prejudica terceiros.

Existe ainda o denominado dolo proveniente de terceiros. Trata-se do artificio

astucioso de terceiros que pode enganar as partes envolvidas no negócio jurídico. Se a parte

que se beneficio do dolo de terceiros tinha conhecimento disso, o negócio poderá ser anulado.

Se a parte que se beneficiou não detinha conhecimento do ato doloso, ao prejudicado serão

cabíveis apenas perdas e danos em relação ao terceiro realizador do ato doloso.

131

Por fim, existe o denominado dolo bilateral, em que todas as partes do negócio agem

com dolo. Neste caso o negócio é válido e não cabem perdas e danos.

Coação está prescrita no artigo 151 e seguintes do CC. Grosso modo, seria a pressão

física ou moral relacionada ao medo de dano iminente e de proporções relevantes à pessoa,

família ou bens do coagido.

Lesão é tratada com a seguinte significação: prestação de uma parte manifestamente

desproporcional ao valor da prestação oposta à outra parte devido a inexperiência ou por

necessidade da parte que sofre a lesão. Está prescrita no CC no artigo 157 e 317.

Estado de perigo está prescrito no artigo 156 do CC. Trata-se da hipótese em que certa

pessoa assume obrigação excessivamente onerosa para salvar a si ou alguém da família de

grave dano conhecido pela outra parte. Importante ficar consignado que, antes de anular ou

extinguir o negócio, deve-se verificar se é possível mantê-lo.

Fraude contra credores seria a prática maliciosa que consiste em tornar o devedor

insolvente. O artigo 195 do CC define o que seja insolvência, valendo afirmar que a

insolvência pode ser “natural” ou “provocada”. São elementos da fraude: I – consilium

fraudis: elemento subjetivo que caracteriza o propósito de fraudar; II – scientia fraudis:

ciência da fraude e/ou ciência do dano, características exigida em negócios onerosos; nos

negócios gratuitos basta provar o prejuízo, não é necessário demonstrar a ciência da fraude,

haja vista se a presume; III – eventos damni: trata-se de elemento objetivo, sendo o prejuízo

causado aos credores do alienante.

2.4.9 Abuso de forma e propósito negocial

Estas duas categorias estão sendo descritas conjuntamente, pois não se encontra

suporte físico em normas gerais e abstratas capazes de qualificá-las como pertencentes aos

domínios do Direito Positivo brasileiro.

Abuso de forma poderia ser considerado vício do negócio jurídico, ou seja, vício entre

a forma adotada e o conteúdo utilizado pela forma. Em outros termos: é como se para cada

forma existisse um conteúdo intrínseco próprio.

132

No Direito brasileiro, a liberdade contratual não é estipulada em exatos números de

negócio jurídicos. A maioria dos negócios jurídicos é realizada por meio de formas atípicas,

ou seja, não previamente delimitado o conteúdo dos negócios a determinadas formas, não

existindo óbice, em regra, à escolha de certos conteúdos a determinadas formas.

Abuso de forma poderia ter também a significação de que, quando se utiliza forma

inadequada para determinado fim, em verdade a significação do negócio se daria pelo

conteúdo e a forma utilizada é considerada inadequada para expressá-lo, devendo ser

caracterizado o negócio pelo conteúdo estipulado. Fundamenta-se tal assertiva com o artigo

170 do Código Civil de 2002. Posição que não pode prosperar: “Art. 170. Se, porém, o

negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que

visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade”.

A regra do artigo em comento concretiza o denominado “princípio da conservação dos

contratos”, prescrevendo que, caso os negócios jurídicos sejam constituídos como nulos,

deverão ser convertidos ou aproveitados quando seus elementos formadores constituírem

também os requisitos básicos de outro negócio jurídico, atendendo à finalidade pretendida

pelas partes, sempre que presente a boa-fé objetiva dos contratantes.

Importante destacar que, para que haja a conversão do negócio em outro, as partes

devem querer o outro negócio, tratando-se de elemento subjetivo. Isso quer dizer que a

terceiros não é permitido pleitear a utilização do novo negócio jurídico por atender a seu

interesse ou finalidade. De outro modo: apenas aos contratantes é permitida a conversão do

negócio constituído em nulo para outro negócio jurídico desde que presentes os elementos

formadores do novo negócio jurídico e desde que se faça presente no documento normativo.

Este artigo de forma alguma positivou no sistema jurídico brasileiro a categoria do

abuso de formas, pois o artigo em tela não se coaduna com os conceitos de abuso de forma

expostos.

Marco Aurélio Greco166, em posição contrária, admite que o Fisco utilize o artigo

como forma de enquadrar determinada operação por parte dos contribuintes.

Nos termos do artigo 170, as partes nunca quiseram expressamente a venda de participação societária; quiseram cisão seletiva, mas se a cisão tiver os elementos da venda de participação societária, subsistirá esta quando: a) o fim a que visavam as partes (transferência patrimonial, aquisição de empreendimento e daquele acervo pela pessoa que ingressou na sociedade); b)permitir supor (vejam que as partes não quiseram, mas a lei será aplicada com base no que se pode supor a partir das

166 GRECO, M.A. Op. cit., p. 523-4.

133

finalidades que manifestaram através do seu comportamento);c) que teriam querido se houvessem previsto a nulidade (ou seja, se as partes soubessem que a cisão seletiva era nula por fraude à lei e for possível supor que, se tivessem conhecimento da nulidade, teriam diretamente feito uma alienação de participação societária, então o negócio é e vale como alienação direta de participação societária) Considera-se ocorrido um negócio jurídico que não expressamente querido, mas que é possível supor que as partes teriam querido. Então, vale o que supõe que teriam querido. Vale o que se “fez” e não ao que se quis. Se isso não é revolução, não sei o que é revolução na teoria dos negócios jurídicos. (grifo nosso).

O artigo 170 do CC apenas prescreve que, se determinado negócio jurídico for

constituído como nulo e existir outro negócio jurídico em que a finalidade se compatibiliza

com a do negócio jurídico nulo, haverá produção de seus efeitos de acordo com a vontade das

partes, construída por meio do negócio jurídico nulo.

Em termos retóricos: utilizando o exemplo de Marco Aurélio Greco acima posto, não

se pode simplesmente afirmar que, como a cisão seletiva é nula, a intenção das partes era a

alienação de participação societária, desde que se poderia afirmar exatamente o oposto, ou

seja, que a intenção ao realizar a cisão foi não efetuar a alienação de participação societária,

ou seja, não recair na incidência sobre ganho de capital. Sendo que jamais se quis realizar a

alienação societária. Desta feita, sempre o elemento subjetivo, isto é, apenas entre as partes,

deve ser analisado para conversão do negócio sem levar-se em consideração o interesse de

terceiros.

Eis o enunciado do nº 13 do Conselho da Justiça Federal (CJF/STJ) na Primeira

Jornada de Direito Civil: “O aspecto objetivo da conversão requer a existência do suporte

fático no negócio a converter-se”.

Em outros termos: a conversão exige tanto a manifestação de vontade das partes, de

acordo com as provas, assim como a existência dos requisitos de validade presentes no

negócio a ser convertido. Essa situação prescrita no CC não introduziu no Direito brasileiro

em nenhuma hipótese o abuso de formas jurídicas.

Propósito negocial é utilizado em três acepções:

a) acaso o contribuinte agisse sem uma razão econômica, o Fisco poderia

desconsiderar os negócios celebrados;

b) no sentido de que cabe ao administrador da empresa o dever de agir para buscar a

maior rentabilidade possível do empreendimento, isto é, economizar tributos, faria parte do

propósito negocial de qualquer empresa;

134

c) como causa do negócio jurídico é o motivo da realização do negócio jurídico;

segundo a doutrina que o embasa167, o negócio jurídico para ser oposto ao Fisco deve ter

qualquer outro motivo do que unicamente economizar tributos.

Nenhuma das significações postas encontra amparo em normas gerais abstratas no

sentido de permitir a requalificação por parte do Fisco dos negócios jurídicos.

Ainda houve a tentativa de positivar no Direito brasileiro as categorias abuso de forma

e propósito negocial, ambas rejeitadas, ou seja, não convertida em lei a MP nº 66.

Apenas destaca-se a significação dada a essas categorias, como segue.

a) “Considera-se indicativo de falta de propósito negocial a opção pela forma mais

complexa ou mais onerosa, para os envolvidos, entre duas ou mais formas para prática de

determinado ato.” Isso quer dizer que falta de propósito negocial significa a escolha de

caminho alternativo não usual e mais complexo por parte do contribuinte, fazendo com que

exista nessa escolha diminuição ou o próprio não pagamento de tributos. Nessa situação

poderia o Fisco por falta de propósito negocial desconsiderar a operação do contribuinte.

b) “Considera-se abuso de forma jurídica a prática de ato ou negócio jurídico indireto

que produza o mesmo resultado econômico do ato ou negócio jurídico dissimulado.” Quer

dizer que, caso o contribuinte escolha realizar um negócio típico para alcançar finalidade

atípica, ou seja, diferente da do negócio típico realizado e o resultado econômico deste

negócio for o resultado econômico de outro negócio típico não realizado pelo contribuinte,

poderia o Fisco desconsiderar o negócio indireto, ou seja, desconsiderar o negócio típico

praticado para alcançar finalidades atípicas e tributar como se o contribuinte tivesse realizado

o negócio típico capaz de irradiar consequências tributárias, desde que ambos os negócios

tenham o mesmo resultado econômico.

Valendo destacar que é usado o termo dissimulação, denotando a ideia de que o

negócio indireto equivaleria a um negócio “simulado” que procurou ocultar negócio

dissimulado, que seria o negócio típico irradiador de consequência tributária, sendo que o

critério para a aplicação da desconsideração seria equivalência econômica dos negócios.

Reitere-se: nenhuma dessas categorias com as respectivas significações encontra

guarida em normas gerais e abstratas, logo, não deve ser aplicada como fundamento para

requalificação de negócios jurídicos praticados pelos contribuintes.

167 GRECO, M.A. Op. cit., passim.

135

2.5. DIREITO DA JURISPRUDÊNCIA ADMINISTRATIVA

A análise empírica pretende: I – estipular a significação do modelo “casa e separa”; o

“passo a passo do planejamento”; II – a subsunção realizada pelo CARF, isto é, em que

suporte geral e abstrato o CARF fundamenta a decisão relacionada aos onze casos168

concretos observados; III – descrever, “com o máximo possível de neutralidade”169, o modo

de utilização das propriedades que fundamentam as decisões do CARF. Não será estipulada

nenhuma significação prévia acerca das propriedades nem tampouco é foco de análise criticar

o modo de utilização das propriedades utilizadas pelo CARF.

A análise dos casos sempre se iniciará com a qualificação do recorrente, a acusação

fiscal relatada nos moldes do voto do relator, ementa, narrativa dos eventos realizados, análise

das propriedades utilizadas e subsunção. No momento subsequente serão descritas quais

propriedades o CARF utilizou no julgamento dos casos e o modo que fez isso.

Vale destacar que a estipulação da acusação fiscal será posta apenas nos limites que

interessam à presente pesquisa – ou seja, enquadramentos decorrentes de outras situações que

não dizem respeito diretamente ao modelo “casa e separa” não serão abordados por simples

questão metodológica.

O mesmo ocorre em relação às decisões do CARF, isto é, discussões não relacionadas

ao mérito, como, por exemplo, nulidades dos autos de infração por vícios que não tocam

diretamente o modelo em análise não serão abordados.

2.5.1 Análise da estruturação do modelo “casa e separa”

Modelo de planejamento tributário utilizado com certa frequência, principalmente no

final da década de 1990, e julgado pelo CARF, desde os idos de 2004, considerado não

oponível ao Fisco.

168 Acaso sejam encontrados outros casos, em nada será invalidada a pesquisa, desde que o intuito é demonstrar a tendência de utilização de certas propriedades pelo CARF e sua fundamentação – não se pretende ter uma visão completa e infalível das decisões do CARF. 169 “Máximo possível de neutralidade”, pois, segundo a teoria axiológica, não existe o ponto zero na escala dos valores – o observador sempre será movido por suas preferências e ideologias.

136

Funcionamento do modelo: determinada pessoa jurídica tem interesse em tornar-se

sócia de certa pessoa jurídica, que pode ser controlada por outra pessoa jurídica ou ter pessoas

físicas no quadro societário. Por sua vez, os antigos sócios não desejam permanecer na

empresa.

Desta feita, em vez de realizar venda direta da participação societária, resolvem

realizar inúmeros atos e negócios jurídicos, que ao fim e ao cabo constituirão a saída dos

antigos sócios e a entrada de novos sócios, porém, sem o pagamento de tributo incidente

sobre o ganho de capital (Quadro 4).

Eis voto que demonstra o entendimento do CARF sobre a operação:

Ao invés de alienação direta, recebe-se um novo sócio, com investimento acima do valor patrimonial, ou seja, com ágio, retirando-se da sociedade incontinente o sócio mais antigo, levando consigo os valores monetários, enquanto o novo sócio permanece com as ações que originalmente pretendia adquirir. Pode ser o total da participação ou apenas parte dela, mas sempre visando escapar do ganho de capital que seria gerado na parte das ações que se pretendia alienar.

Inicia-se pelo padrão de resultado econômico: economia de tributo.

Acusação170 fiscal padrão: I – omissão de rendimentos de ganho de capital na

alienação da participação societária.

A estruturação171da operação consiste em: I – subscrição de ações com ágio,

capitalização do ágio; saída total ou parcial dos antigos sócios da sociedade levando consigo o

ágio aportado.

As variáveis de cada planejamento em concreto geralmente ocorrem em relação ao

início e fim da operação:

I – pressupostos do planejamento são a constituição de nova sociedade ou a associação

em sociedade já existente;

II – no final há saída total ou parcial dos antigos sócios, que podem consistir no

resgate de ações, cisão, permuta etc.

No Quadro 4, a seguir, delineia-se a operação “casa e separa”.

170 Em cada acusação fiscal existem especificidades e diferenças; porém, é posto o padrão referente a esse tipo de operação. 171 Dificilmente um caso concreto conterá em comum todas as especificidades encontradas em outros casos similares: o que será descrito é o padrão de condutas.

137

Quadro 4 – Operação “casa e separa”

Subscrição de ações com ágio por parte de novos sócios (entrantes)

O ágio é destinado às reservas de capital

Contrato prevendo o passo a passo da operação, garantindo o controle acionário aos sócios entrantes, neutralizando os efeitos não desejáveis da cadeia de operações a ser realizadas

Capitalização do ágio (método de equivalência patrimonial)

Valorização das ações dos antigos sócios, excluindo o resultado na operação do lucro real

Há retirada dos antigos sócios, comumente por meio de: 1. cisão; 2. permuta; 3. alienação da participação societária para a própria empresa

Novos sócios controlam a empresa

Os sócios retirantes levam consigo o ágio aportado

Alteração do quadro societário sem que haja alienação direta de ações dos sócios retirantes para os sócios entrantes

Não há ganho de capital tributável!

1

2

3

4

5

Curto intervalo de tem

po

138

2.5.2 Caso KLABIN

Acordão: 1401-00.155

Recorrente: Klabin S.A.

Acusação fiscal172: Imputa à Recorrente o não oferecimento à tributação, no ano calendário 2003 (com reflexos nos anos calendário 2004 e 2005), de rendimentos auferidos na forma de ganho de capital, originados de reestruturação societária considerada, pelo Fisco, como simulação de venda de participação societária. Houve, assim, a exigência, no auto de infração, do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica – IRPJ e da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido — CSLL, acrescidos de correção pela SELIC, multa de oficio qualificada e multa isolada.

Ementa do CARF173:

PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO, SIMULAÇÃO. NEGÓCIO JURÍDICO INDIRETO. A simulação existe quando a vontade declarada no negócio jurídico não se coaduna com a realidade do negócio firmado, Para se identificar a natureza do negócio praticado pelo contribuinte, deve ser identificada qual é a sua causalidade, ainda que esta causalidade seja verificada na sucessão de vários negócios intermediários sem causa, na estruturação das chamadas step transactions. Assim, negócio jurídico sem causa não pode ser caracterizado corno negócio jurídico indireto. O fato gerador decorre da identificação da realidade e dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos, e não de vontades formalmente declaradas pelas partes contratantes ou pelos contribuintes. SIMULAÇÃO A subscrição de novas ações de uma sociedade anônima, com a sua integralização em dinheiro e registro de ágio, para subseqüente retirada da sociedade da sócia originária, com resgate das ações para guarda e posterior cancelamento caracteriza simulação de venda da participação societária.

Relato dos eventos:

Evento 01: A Klabin S.A., denominada agora de KLABIN, juntamente com a empresa

Klabin do Paraná Produtos Florestais S/A, denominada agora de PARANÁ PRODUTOS,

adiante-se, pertencentes ao mesmo grupo econômico, adquiriram, em 22 de outubro de 2002,

a totalidade das ações da empresa Kurguelen Holdings S.A., cujo capital social era de R$

100,00 (cem reais). O capital social fora divido meio a meio entre as duas empresas. Houve

172 Trata-se do relato feito pelo Relator do CARF. 173 Colocou-se apenas parte da ementa que caracteriza a desqualificação e requalificação do negócio jurídico. Decorrências indiretas ou consequências destes atos com multas e outras figuras afins não fazem parte do campo objetal da pesquisa; mesmo constando na ementa, não foi abordado no trabalho.

139

também a alteração da denominação social da adquirida, passando a se chamar Riocell S/A,

denominada agora de RIOCELL.

Evento 02: em dezembro de 2002, por meio de Assembleia Geral Extraordinária, a

RIOCELL aumentou o capital social em R$ 70.105.520,00.

Destaca-se: capital inteiramente subscrito e integralizado pela KLABIN por meio de

bens imóveis, incluindo as terras e acessões pertencentes à Unidade Industrial de Guaíba/RS.

Evento 03: na mesma assembleia houve emissão de 61.905 debêntures, no valor

unitário de R$ 10.000,00, totalizando R$ 619.050,000,00.

Destaca-se: integralmente adquiridas pela KLABIN e pagas por meio da entrega dos

bens móveis que guarneciam a unidade industrial de Guaíba (RS), além de uma parcela paga

em dinheiro no valor de R$ 3.848,69.

Evento 04: em 01 de maio de 2003, a RIOCELL realizou outra assembleia, em que

houve aumento novamente do capital social no valor de R$ 91.755.380,00.

Consigna-se: integralização realizada totalmente pela KLABIN por meio da entrega de

“bens, direitos e obrigações” relativos à unidade Industrial de Guaíba (RS).

Como está descrito no voto:

Neste momento, toda a Unidade Industrial de Guaíba, responsável pelo setor de celulose do Grupo Klabin, havia sido transferida da Klabin S.A. para a Riocell S.A. Com esses aumentos de capital e integralizações, a Riocell S.A. passou a ter um capital social de R$ 161.861,000,00 (cento e sessenta e um milhões, oitocentos e sessenta e um mil reais), distribuídos em 99,99% para a Klabin S.A. e 0,01% para a Klabin do Paraná Produtos Florestais S.A.

Evento 05: houve por parte da KLABIN e por parte da PARANÁ PRODUTOS, a

cessão do direito de subscrição e integralização de ações para as empresas Aracruz Celulose

S.A., denominada agora CELULOSE, e Aracruz Trading S.A., denominada agora de

TRADING. A cessão estava contida em um contrato nominado de Contrato de Investimento e

Outras Avenças. Desta feita, estas duas empresas poderiam subscrever e integralizar ações na

RIOCELL.

Evento 06: em 30 de junho de 2003, o Grupo Aracruz, por meio das empresas

CELULOSE e TRADING, subscreveu e integralizou na RIOCELL os seguintes valores: I –

RS 108.000.000,00 a título de capital e R$ 1.650,728.400,00, a título de ágio, creditado este

valor à reserva de capital. Logo, houve aumento de patrimônio líquido da RIOCELL.

140

Evento 06: em 02 de julho de 2003, a RIOCELL adquiriu ações da KLABIN”, para

permanência em tesouraria e posterior cancelamento, e, também resgatou as debêntures que

haviam sido emitidas. Operação esta em que foi realizado o pagamento à KLABIN da quantia

de R$ 1.126.098.838,07.

Consigna-se: não existiu, pelo ao menos até então, ganho de capital pela KLABIN em

relação à operação em que a RIOCELL adquiriu ações e resgatou as debênture, haja vista,

após a subscrição das ações pelo grupo Aracruz das ações da RIOCELL, a KLABIN, pelo

método de equivalência patrimonial, contabilmente valorizou as ações que possuía na

RIOCELL. Sendo que todos os bens imóveis, móveis e os bens direitos e obrigações relativos

à unidade Industrial de Guaíba/RS passaram a ser da RIOCELL, controlada agora pelo grupo

Aracruz.

Propriedades encontradas no voto do relator174, vencido, que confirmam se tratar

de alienação de participação societária.

A) Propósito negocial: pelas provas carreadas nos autos, não se fazia presente. Sendo

que, segundo consta no voto, é elemento necessário a qualquer operação societária. Assim,

motivo unicamente fiscal não se constituiria em propósito negocial. Eis trecho:

Essa linha de raciocínio conduz à conclusão de que, embora todos os procedimentos adotados pela Recorrente, em uma análise abstrata, correspondam a modelos legalmente previstos, somente foram concretamente adotados para permitir a economia tributária, com a ocultação da intenção de futura venda da Riocell e, por conseguinte, da unidade industrial de Guaíba (grifo nosso).

B) Negócio jurídico indireto: é negada a presença no caso em tela, haja vista, faltaria

o elemento negocial, ou seja, o propósito negocial.

Eis trecho:

No caso em apreço, para que o negócio travado entre a Recorrente e a Aracruz pudesse ser considerado negócio jurídico indireto, seria necessário que existisse substância negocial que permitisse o atendimento da disciplina legal em forma e conteúdo pelo negócio típico escolhido (reestruturação societária) que permitisse a transferência patrimonial realizada (compra e venda).

174 Destaca-se que no presente caso, na parte da operação em si, o voto vencedor seguiu o voto do relator. Por isso, as propriedades do voto vencedor não foram analisadas.

141

C) Análise do conjunto das operações praticadas (step transactions): foi analisada

cadeia de operações e não cada operação de forma isolada. A definição do “fato gerador” se

daria pela causa, considera como efeito das operações realizadas. Eis trecho do voto:

Assim, pela causalidade poderemos definir qual o negócio efetivamente realizado. Dentro dessa perspectiva, o objeto da tributação será o negócio jurídico causal, e não necessariamente o negócio jurídico formal, principalmente quando a forma adotada não reflete a causa de sua utilização” (grifo nosso).

E prossegue: “Ou seja, o fato gerador decorre da identificação da realidade e dos

efeitos dos atos efetivamente ocorridos, e não de vontades formalmente declaradas pelas

partes contratantes ou pelos contribuintes”.

D) Tempo dos atos: levado em consideração para classificar o conjunto de operações

como alienação de participação societária.

E) Atos contrários: subscrição de ações por novo sócio com ágio, para fomento da

empresa, sendo que o sócio antigo resolve rapidamente se retirar.

F) Simulação: provada por meio dos itens A), C), D) e E).

G)Abuso de direito: presente, pois foi realizado negócios com a única intenção de

economizar tributo. Eis trecho: “Assim, ao constituir a Riocell S.A. apenas para abrigar o

ativo que pertencia à Recorrente, para, somente então, poder optar por uma forma fiscalmente

menos onerosa, esta abusou de seu direito”. Para o relator abuso de direito equivale a agir

com o único intuito de querer pagar menos tributo, assemelhando-se ao propósito negocial ou

a falta dele. Eis trecho: “Da mesma forma, a empresa tem direito de se organizar da maneira

que lhe acarretará mais benefícios; porém ela abusa do seu direito quando se organiza apenas

para evitar a incidência da norma tributária”.

H) Capacidade contributiva positiva: o adjetivo “positivo” não é mencionado

expressamente, porém, é utilizado. Eis trecho:

142

Intenção da Carta Constitucional brasileira foi conduzir à aplicação de tal princípio, informando as reais forças econômicas do contribuinte. No caso destes autos, está mais do que nítida a existência da capacidade contributiva, posto ter a Recorrente efetivamente percebido ganho de capital passível de tributação pelo imposto de renda e pela CSLL (grifo nosso). (...) Nítida, também, a aplicação do princípio de isonomia, principalmente para igualar a situação da Recorrente àqueles outros contribuintes que, de fato, quando pretendem alienar participação societária em outra empresa, o fazem por meio do contrato de compra e venda, e não pode meio de simulação de contratos formais que encerram, na verdade, a alienação triangulada de ações e participações societárias. Ou seja, os princípios invocados para afastar o lançamento ora questionado, na verdade o reforça em seus termos, por afastar a simulação, fazendo incidir a norma legal e igualar a situação da Recorrente àqueles que possuem mesma capacidade contributiva quando realizam o fato gerador descrito na norma tributária.

Desta feita, o Fisco teria direito de buscar realizar a capacidade contributiva, ou

melhor, buscar efeitos econômicos produzidos na operação, para poder fazer valer esse

princípio.

Subsunção: não há enquadramento em nenhum enunciado de norma geral e abstrata

de forma expressa. Presume-se, pelas citações doutrinárias do voto, que se esteja aplicando a

simulação prevista no Código Civil.

2.5.3 Caso NACIONAL

Acordão: 101-95537

Recorrente: Nacional Administração e Participações S.A.

Acusação fiscal: venda da participação societária que gerou ganho de capital, logo,

houve omissão de rendimentos por parte da recorrente, que simulou negócios jurídicos.

Havendo auto de infração para exigir IRPJ e CSLL não pagos na operação. Consta do

Relatório do Voto Vencido do Relator:

A fiscalização entendeu que a real intenção da autuada era ceder sua participação em Nacional Supermercados S/A à Sonae Distribuição Brasil S/A, caracterizando como simulados os atos de integralização de capital e cisão. Em conseqüência, desconsiderou-os, bem como o aumento de custo de participação societária que a autuada contabilizara em função deles. Dessa forma, apurou que, no negócio, a autuada obteve um ganho de capital de R$ 266.765.815,25.

Ementa da decisão do CARF:

OPERAÇÃO ÁGIO — SUBSCRIÇÃO DE PARTICIPAÇÃO COM ÁGIO E SUBSEQÜENTE CISÃO — VERDADEIRA ALIENAÇÃO DE PARTICIPAÇÃO

143

— Se os atos formalmente praticados, analisados pelo seu todo, demonstram não terem as partes outro objetivo que não se livrar de uma tributação específica, e seus substratos estão alheios às finalidades dos institutos utilizados ou não correspondem a uma verdadeira vivência dos riscos envolvidos no negócio escolhido, tais atos não são oponíveis ao Fisco, devendo merecer o tratamento tributário que o verdadeiro ato dissimulado produz. Subscrição de participação com ágio, seguida de imediata cisão e entrega dos valores monetários referentes ao ágio, traduz verdadeira alienação de participação societária. PENALIDADE QUALIFICADA — INOCORRÊNCIA DE VERDADEIRO INTUITO DE FRAUDE — ERRO DE PROIBIÇÃO — ARTIGO 112 DO CTN — SIMULAÇÃO RELATIVA – FRAUDE À LEI — Independentemente da patologia presente no negócio jurídico analisado em um planejamento tributário, se simulação relativa ou fraude à lei, a existência de conflitantes e respeitáveis correntes doutrinárias, bem como de precedentes jurisprudenciais contrários à nova interpretação dos fatos pelo seu verdadeiro conteúdo, e não pelo aspecto meramente formal, implica em escusável desconhecimento da ilicitude do conjunto de atos praticados, ocorrendo na espécie o erro de proibição. Pelo mesmo motivo, bem como por ter o contribuinte registrado todos os atos formais em sua escrituração, cumprindo todas as obrigações acessórias cabíveis, inclusive a entrega de declarações quando da cisão, e assim permitindo ao Fisco plena possibilidade de fiscalização e qualificação dos fatos, aplicáveis as determinações do artigo 112 do CTN. Fraude à lei não se confunde com fraude criminal.

Relato dos eventos:

Evento 01: Nacional Administração e Participações S/A, denominado agora de

NACIONAL, possui 100% do capital social de Nacional Supermercados S/A, denominada

agora de SUPERMERCADOS S/A, cujo capita social era de R$ 33.176.000,00

Evento 02: o contrato de associação de 29 de janeiro de 1999 previa que a

NACIONAL transferiria todas as ações que detinha em SUPERMERCADOS S/A para Sonae

Distribuição Brasil S/A, denominada agora de SONAE, pelo preço de R$ 300.000.000,00.

Evento 03: em 30 de março de 1999 SUPERMERCADOS S/A subscreveu aumento de

ações. SONAE integralizou capital social da SUPERMERCADOS S/A aportando pelas ações

adquiridas a quantia de R$ 300.000.000,00, sendo que R$ 296.331.177,00 a título de reserva

de ágio. Passando a ter 9,96% do capital social da empresa.

Evento 04: ato contínuo, a NACIONAL realiza por meio do método de equivalência

patrimonial a reavaliação das ações que possuía na SUPERMERCADOS S/A, gerando custos

a suas ações.

Evento 05: é realizada a cisão parcial da empresa SUPERMERCADOS S/A no dia

seguinte à realização dos eventos 03 e 04. Sendo que a NACIONAL recebeu os R$

144

300.000.000,00 da integralização de capital e a SONAE permaneceu como única acionista da

SUPERMERCADOS S/A.

Propriedades encontradas no voto vencido, relator, que confirmam se tratar de

uma alienação de participação societária.

A) Tempo dos atos. Eis trecho do voto:

Ora, no caso, ocorreu a proximidade temporal dos atos ( uma hora entre a integralização de capital com ágio de cerca de 98% e a incorporação do ágio ao capital, e cisão no dia subseqüente); não havia causa econômica (além da economia fiscal) para o aumento de capital, que foi usado apenas como degrau para a objetivada alienação de participação societária; e seus efeitos foram desfeitos coma cisão. A simulação é incontestável.

B) Falta de propósito negocial: não mencionado expressamente, todavia, fica

demonstrado quando é afirmado que não havia motivo econômico pra realização dos

negócios.

C) Simulação: provada no voto por meio do contrato prévio de associação em que a

NACIONAL se obrigava a alienar a totalidade das ações que detinha na SUPERMERCADOS

S/A, além do tempo curto dos atos e da não existência de causa econômica, apenas economia

fiscal para realização dos atos e negócios celebrados. Por fim, segundo o CARF, no voto do

relator houve “descompasso entre preço e participação pretensamente adquirida” e “falta de

execução material do contrato”, haja vista, o ágio pago não foi aproveitado em beneficio da

empresa, sendo automaticamente destinado à NACIONAL (autuada).

Subsunção: não houve utilização de enunciado expresso que fundamentasse em

norma geral e abstrata, ou seja, o voto, salvo melhor juízo, não realizou a subsunção em

nenhuma norma geral e abstrata. Pelo menos de forma inequívoca não afirmou se

fundamentava a simulação no Código Tributário Nacional ou no Código Civil.

Propriedades encontradas no voto vencedor que confirmam se tratar de uma

alienação de participação societária:

145

A) Capacidade contributiva positiva:. o relator não denomina capacidade

contributiva como de eficácia positiva. Todavia, utiliza a doutrina de Marco Aurélio Greco,

que apregoa a possibilidade de uso positivo do princípio da capacidade contributiva. Eis

trecho do voto referindo-se ao tipo de operação em destaque: “Em todos esses exemplos,

inclusive o caso dos autos, o interesse é exclusivamente de escapar à manifestação patente de

capacidade contributiva, excluindo a necessária imposição da norma tributária”.

Em seguida destaca o relator:

Toda norma tem um caráter positivo de acordo com as suas finalidades. A do ágio vem da necessidade de fomento da sociedade, pelos futuros rendimentos que esta proporcionará ao novo sócio, por isso que o valor em dinheiro entregue à empresa supera o valor patrimonial da ação adquirida (grifo nosso).

B) Propósito negocial: utiliza falta de algum motivo comercial além do

simplesmente tributário para destacar a sua ausência.

C) Análise do conjunto das operações praticadas (Step transactions).

D) Falta do affectio societatis.

E) Desvio objetivo dos negócios realizados: desta feita, os negócios típicos

realizados não alcançaram seus fins típicos. Eis trecho que engloba tanto os itens B), C), D) e

E). Constituindo-se todas essas propriedades em elementos para que haja a dissimulação:

Se os atos formalmente praticados, analisados pelo seu todo, demonstram não terem as partes outro objetivo que não se livrar de uma tributação específica, e seus substratos estão alheios às finalidades dos institutos utilizados ou não correspondem a uma verdadeira vivência dos riscos envolvidos no negócio escolhido, tais atos não são oponíveis ao Fisco, devendo merecer o tratamento tributário que o verdadeiro ato dissimulado produz (grifo nosso).

F) Neutralização dos efeitos indesejáveis: denominada no voto como cláusula de

segurança estipulada. Significa a utilização de contrato prévio aos atos realizados e o curto

intervalo de tempo em que ocorreram as operações.

146

G) Dissimulação: cabe ao Fisco desconsiderar e requalificar o ato para tributar o ato

dissimulado no caso alienação da participação societária. É provada, no caso em exame, pela

conjugação dos itens B), C), D), E) e F). Cabe destacar que expressamente não está descrito

que a capacidade contributiva positiva levou à constatação da dissimulação. Todavia,

percebe-se que de alguma forma influenciou a decisão do julgador.

H) Fraude à lei: não se consegue claramente distinguir dissimulação de Fraude à lei.

Esta para o relator seria um drible na norma tributária. Aplicando por ser benéfico ao

contribuinte a dissimulação ou simulação relativa. Eis trecho:

Ou seja, em matéria tributária, tirante a simulação absoluta, que se externa pela falsidade material ou ideológica dos atos praticados, os vícios das patologias de fraude à lei e simulação relativa muita das vezes se confundem, podendo-se vislumbrar, igualmente, abuso na utilização dos institutos, pois em dissonância com as suas inerentes finalidades.

Subsunção: no voto não houve fundamentação direta em norma geral abstrata. Ou

seja, aplica-se a dissimulação, todavia, não se sabe se enquadrada no Código Tributário

Nacional ou no Código Civil. O máximo que há é citação da exigência constitucional de

balancear princípios, frise-se: capacidade contributiva. Sendo que também é citado o CC

referindo-se a eticidade e boa-fé objetiva e são descritos os novos contornos do tema

simulação no CC/2002. Leva a crer que este instrumento normativo é a norma geral e abstrata

que fundamenta a decisão.

Conclusões relevantes do voto do relator: I – não houve interpretação econômica nem

analogia, haja vista, tratar-se-ia de um único fato. Logo, analogia não poderia ter existido,

pois o fato realizado pelo contribuinte na visão do CARF foi alienação da participação

societária e enquadrou-se na legislação que rege esta categoria. Isto é, não houve aplicação da

tributação de ganho de capital por analogia a outro tipo de operação (subscrição, reserva de

ágio, equalização patrimonial e cisão); II – não houve a denominada interpretação econômica,

pois o negócio jurídico realizado pelo contribuinte, associação em novo negócio e reserva do

ágio, foi neutralizado pelo contrato que estabelecia a venda das ações do sócio que se retirava,

não tendo substância econômica a ser apreciada. Eis trecho do voto:

Para que essas formas de interpretações sejam aplicadas é necessário que os fatos cotejados possuam substrato econômico efetivo, com efeitos semelhantes ou idênticos. No caso, o que se está a fazer é perquirir qual o verdadeiro fato, já que não há conteúdo material pela forma apresentada, pois, como visto acima, todos os efeitos derivados da associação e do ágio conferido nunca puderam ser produzidos, seja por força contratual ou pelo mecanismo adotado na realização do negócio.

147

2.5.4 Caso SOPACO

Acordão: 107-08.837

Recorrentes: DRJ-CURITIBA/PR E SOPACO SOCIEDADE PARANÁ

COMERCIAL E IMPORTADORA LTDA.

Acusação Fiscal: descrita conforme consta no voto do relator:

a) Falta de contabilização do ganho de capital apurado na alienação de investimento, avaliado pelo valor do patrimônio líquido, gerando, em consequência redução indevida do lucro, no valor tributável de R$ 30.204.705,60, gerando o IRPJ de R$ 7.257.176,40. Foi adicionado o ganho de capital indevidamente deduzido, à base de cálculo da CSLL e calculado 93,6573% sobre a base, obtendo-se a CSLL devida de R$ 3.547.932,91; b) Multa isolada de 150%, por falta recolhimento do IRPJ e da CSLL, incidente sobre a base de cálculo estimada em função da receita bruta e acréscimos e/ou balancetes de suspensão ou redução. Enquadramento legal nos arts. 222, 843 e 957 § único, inciso IV, do RIR/99; b) Multa isolada de 150%, por falta recolhimento do IRPJ e da CSLL, incidente sobre a base de cálculo estimada em função da receita bruta e acréscimos e/ou balancetes de suspensão ou redução. Enquadramento legal nos arts. 222, 843 e 957 § único, inciso IV, do RIR/99;(..)

Ementa do CARF175:

SUBSCRIÇÃO DE AÇÕES COM ÁGIO E SUBSEQUENTE CISÃO — ALIENAÇÃO DE PARTICIPAÇÃO SOCIETÁRIA — SIMULAÇÃO. Os negócios jurídicos envolvendo as reorganizações societárias de que tratam os fatos, com subscrição de ações com ágio, seguida de imediata cisão e entrega dos valores monetários referentes ao aumento de capital, precedida de pacto simulatório, e sem vivência dos riscos do negócio jurídico, revelam uma verdadeira alienação de participação societária e caracterizam a simulação, nos termos do art. 102, e seu inciso II, do Código Civil de 1916, uma vez que os atos formais são apenas aparentes e diferem do negócio efetivamente praticado. Tais atos não são oponíveis ao Fisco, e nessa situação é devido o tributo incidente sobre o ganho de capital obtido com a alienação do investimento. PENALIDADE – MULTA ISOLADA – FALTA DE RECOLHIMENTO DO IRPJ SOB BASE ESTIMADA. Não cabe a aplicação concomitante da multa proporcional, incidente sobre o tributo apurado e da multa isolada por falta de recolhimento da estimativa, prevista no art. 44 da Lei n° 9.430/96, § 1°, inciso IV, quando calculadas sobre os mesmos valores, apurados em procedimento fiscal. Incabível a exigência da multa isolada. MULTA QUALIFICADA — EVIDENTE INTUITO DE FRAUDE — INEXISTÊNCIA — IMPROCEDÊNCIA — As operações societárias praticadas pela recorrente, desqualificadas pelo FISCO porque imputadas de dissimuladas (simulação relativa) – porém tidas como possíveis em face de parcela da doutrina e de decisões ainda recentes deste Tribunal, que sustentam tratar-se de negócio jurídico indireto -, pelas suas próprias características, não pode ser considerada como praticadas com evidente intuito de fraude, inclusive porque realizadas com toda publicidade que os atos exigiram. 173)

175 Expõe-se apenas a parte da ementa essencial à pesquisa.

148

Relatos dos eventos:

Evento 01: em 03 de agosto de 1998 é constituída a empresa Semenesone Comercial

LTDA, denominada agora de SEMENESONE com capital social de R$ 100,00.

Evento 02: em 19 de fevereiro de 1999, os sócios da SEMENESONE transferem a

participação para a holding DANTEPEAK e BADENWILLER, pertencente ao grupo

espanhol IF. As novas sócias DANTEPEAK e BADENWILLER no mesmo ato aumentam o

capital social de SEMENESONE para R$ 20.000.000,00, alterando também a razão social

para Fosforeira Brasileira Ltda. (Fosforeira Ltda.), denominada agora de FBL.

Evento 03: a empresa SOPACO era uma holding que reunia seis grupos de sócios

controladores da Companhia de Fósforos Irati, denominada agora de CFI. Vale destacar que a

SOPACO em março de 1999 possuía 99,1% do capital social da CFI.

Evento 04: em 10 de março de 1999, a holding SOPACO constituiu outra holding, a

CFI Participações Societárias S/A, sendo, conforme aparece no relato do voto, daqui para

frente denominada de NEWCO, com o com capital social de R$ 100,00. Sendo que R$ 94,00

foram integralizados pela SOPACO e R$ 6,00 foram integralizados na NEWCO pelos sócios

da SOPACO à razão de R$ 1,00 cada. Vale destacar que o objetivo social da NEWCO era a

participação em outras sociedades.

Evento 05: em 31 de março de 1999, a CFI aprova cisão. A justificativa, segundo a ata

da assembleia-geral, foi que a mesma desenvolveu por muito tempo setores distintos, ou seja,

o setor de industrialização de fósforos e o setor agroflorestal. A empresa concluiu que seria de

grande interesse dos acionistas a exclusão de patrimônio do setor florestal para incorporação

em outra sociedade, que veio a ser a Sopaco Reflorestamentos S/A, cujo capital social

pertencia em 99,91% à SOPACO;

Evento 06: em 06 de abril de 1999, em assembleia-geral AGE, a NEWCO aprova o

aumento do capital social de R$ 100,00 para R$ 6.155.268,00. emitindo ações subscritas

totalmente pela SOPACO. Os outros acionistas da NEWCO desistiram expressamente do

direito de preferência Vale destacar que a integralização se deu em bens, ou seja, com a

participação que possuía na CFI. Agora a SOPACO é sócia majoritária da NEWCO, que por

sua vez controla a CFI. A SOPACO, após subscrição e avaliação, ficou com 99,91% da

NEWCO, equivalente aos R$ 6.155.268,00;

149

Evento 07: em 14 de maio de 1999, a empresa Arthur Andersen Avaliações Ltda.

entrega aos cotistas da FBL laudo de avaliação dos bens do ativo imobilizado da CFI, na data-

base abril de 1999, avaliado em R$ 34.141.566,00. Com o laudo a Fosforeira Brasileira Ltda.

(FLB) justificou o ágio pago na subscrição das ações da NEWCO, realizada em 25 de maio de

1999.

Evento 08: em 25 de maio de 1999, conforme assembleia-geral extraordinária, a

NEWCO aumentou o capital em R$ 36.217.200,00. Sendo emitido 1.046.114 ações ordinárias

nominativas e sem valor nominal, a par dos 6.155.268 existentes emitidas pelo valor de R$

1,00 cada uma. As novas ações foram emitidas com ágio, com preço de emissão no valor

aproximado de R$ 34,62 cada uma. A justificativa para o ágio, segundo a AGE, teria

“fundamento na rentabilidade de resultados futuros da Companhia”. Houve renúncia ao

direito de preferência dos acionistas da NEWCO, sendo que a FLB subscreveu na

integralidade o aumento de capital social. Assim, a SOPACO teve a participação de 99,91%

diluída para 85,5%, enquanto a FBL passou a ter 14,5% do capital social.

Evento 09: a escrituração do ágio na FBL ocorreu em 31 de outubro de 1999, no valor

de R$ 29.405.404,00, a débito da conta ágio investimentos e a crédito da conta da CFI,

subsistindo a participação da empresa FBL na CFI no montante de R$ 6.811.796,00;

Evento 10: em 27.05.99, terceira na AGE, é aprovada a cisão da NEWCO, com a

retirada da SOPACO e cancelamento de 6.155.268 ações ordinárias nominativas sem valor

nominal, equivalente a sua participação, mas com redução do capital social em R$

36.217.200,00, passando de R$ 42.372.468,00 para R$ 6.155.268,00. Logo, a FBL passa a

controlar a NEWCO, que controla a CFI. Possuindo 99,9% do capital social da CFI.

Evento 11: a CFI incorpora a controladora NEWCO em 30 de junho de 1999. Sendo

que, em 29 de novembro de 1999, há deliberação da incorporação da FBL pela CFI. Entre as

justificativas constam a possibilidade de “maior integração e unidade administrativa,

comercial e financeira, bem como redução dos custos administrativos operacionais”. Por fim,

a CFI, muda a razão social para Fosforeira Brasileira S/A.

Propriedades encontradas no voto vencido, relator, que confirmam se tratar de

uma alienação de participação societária.

A) Tempo dos atos: operações concatenadas em curto intervalo de tempo.

150

B) Contrariedade dos atos: ato de subscrição com ágio, que serve ao fomento da

empresa e consequente retirada do antigo sócio, levando consigo o ágio.

C) Falta do affectio societatis: não houve vivência dos risco do negócio jurídico

D) Falta de propósito negocial: embora essa propriedade não tenha sido enunciada

de forma expressa, observa-se quando é afirmado que os negócios realizados foram

motivados “exclusivamente em afastar a incidência tributária, dissimulando o verdadeiro

negócio jurídico pretendido pelas partes” (grifo nosso). E também quando afirma que o

negócio jurídico é desprovido de causa176.

E) Simulação: propriedade presente pela existência de contrato prévio entre as partes

estipulando o passo a passo da operação e a intenção da compra de 100% da participação

societária. Comprova-se pela utilização conjunta das propriedades A), B), C) e D). Eis trecho

do voto:

De todo o exposto, concordo com a acusação fiscal de que os negócios jurídicos envolvendo as reorganizações societárias de que tratam os fatos, constituem simulação ilícita motivada exclusivamente em afastar a incidência tributária, dissimulando o verdadeiro negócio jurídico pretendido e efetivado pelas partes. As operações foram procedidas para dissimular o verdadeiro negócio jurídico, correspondente à vontade negociai das partes, que era a alienação da empresa CFI, da SOPACO para o grupo espanhol IF, envolvendo reorganizações societárias destituídas de causa, cujo único objetivo foi a de evasão fiscal. As diversas operações vieram a mascarar a vontade real de alienação da participação societária, sob a forma de compra e venda, ocorrendo a simulação relativa. Ressalte-se que entre a subscrição de ações e a cisão, com a retirada da SOPACO da sociedade, que levou consigo o valor da subscrição de capital, passaram-se dois dias. Não houve vivência do risco do negócio jurídico.

Subsunção: fundamenta a decisão no artigo 102, II do Código Civil de 1916. Todavia,

na parte dispositiva afirma que é caso de dissimulação. Levando a crer, mesmo que cite

doutrinadores, que diferencia simulação de dissimulação jurídica, que não existe diferença

dos efeitos entre esses dois institutos. Aplicando, inclusive, multa qualificada pela

simulação/dissimulação. Fundamenta ainda a decisão no artigo 51 da Lei nº 7.450/85.

176 Marco Aurélio Greco compreende que a falta de propósito negocial é a realização de negócios jurídicos desprovidos de causa, não necessariamente por motivo econômico. GRECO, M.A. Op. cit., passim.

151

Propriedades encontradas no voto vencedor que confirmam se tratar de uma

alienação de participação societária.

A) Negócio jurídico indireto: não se fez presente esta propriedade, haja vista, os

negócios não se prestaram a outra finalidade a não ser de alienação da participação societária.

Eis trecho do voto:

Negócio jurídico indireto, tal como postulado pela recorrente, teria como pressuposto inarredável a efetiva vivência nos negócios pactuados. Noutras palavras, não se pode falar em negócio jurídico indireto a formulação de uma série de operações societárias estruturas com o objetivo final de alienação de participação societária.

B) Tempo dos atos: atos realizados em curto intervalo de tempo.

C) Atos contrários: subscrição de novas ações com ágio e saída dos antigos sócios.

D) Falta do affectio societatis: não fruição dos riscos do negócio.

E) Análise do conjunto das operações praticadas (Step transactions).

F) Propósito negocial: o negócio não tinha nenhuma causa jurídica em si

considerada.

G) Neutralização dos efeitos indesejáveis: cláusula de segurança – o acordo prévio

celebrado, que em tese garantia participação em 100% do capital social.

H) Dissimulação ou simulação relativa: comprovada pela presença dos elementos

B), C), D), E), F) e H). Eis trecho do voto: “Há dissimulação, falta de substância na forma

escolhida, cláusulas de segurança quanto à produção de efeitos diversos dos verdadeiramente

pretendidos etc.”. Vale dizer que transparece do voto que, nesta propriedade, o dolo não é

elemento presente.

152

I) Fraude à lei: necessária a presença do dolo. Trata-se de um drible na norma

tributária, que também se fez presente. Eis trecho do voto: “O drible na imposição tributária

também está presente”. Todavia, considerando de difícil comprovação que se trata de fraude à

lei ou simulação relativa com fundamento no Código Tributário Nacional, aplicou-se a

“sanção mais benéfica”, ou seja, enquadrou-se como dissimulação.

J) Simulação absoluta: não estava presente. Eis trecho:

Não havendo atos antedatados ou pós-datados, ou falsidade material nos documentos apresentados, afasto de antemão a figura da simulação absoluta, à luz do que dispunha o Código Civil de 1916, vigente à época dos fatos apontados na autuação, bem como pelos contornos das novas regras do Código Civil de 2002.

K) Abuso: não está expresso que se trata do denominado abuso de forma ou abuso de

direito. Apenas que se trata de abuso usar certos negócios e sabidamente não desejar nem

alcançar os fins típicos a que eles se prestam. Eis trecho: “(...) podendo-se vislumbrar,

igualmente, abuso na utilização dos institutos, pois em dissonância com as suas inerentes

finalidades” (grifo nosso).

Subsunção: no voto não houve a fundamentação direta em norma geral abstrata. Ou

seja, aplica-se a dissimulação, todavia, não se sabe se enquadrada no Código Tributário

Nacional ou no Código Civil. O máximo que há é citação da exigência constitucional de

balancear princípios, frise-se: capacidade contributiva. Sendo que também é citado o CC

referindo-se a eticidade e boa-fé objetiva e descritos os novos contornos em matéria de

simulação, que se insere no CC/2002. Leva a crer que este instrumento normativo é a norma

geral e abstrata que fundamenta a decisão Consignou-se que não se trata de simulação

absoluta nem de fraude à lei, logo, não se aplicaria a lei 4502/64177 em especial os artigos 71,

72 e 73.

177 “Art. 71. Sonegação é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, o conhecimento por parte da autoridade fazendária: I – da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, sua natureza ou circunstâncias materiais; II – das condições pessoais de contribuinte, suscetíveis de afetar a obrigação tributária principal ou o crédito tributário correspondente. Art. 72. Fraude é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do imposto devido a evitar ou diferir o seu pagamento. Art. 73. Conluio é o ajuste doloso entre duas ou mais pessoas naturais ou jurídicas, visando qualquer dos efeitos referidos nos arts. 71 e 72.”

153

2.5.5 Caso SHOPPING

Acórdão: 108-09.037.

Recorrente: A&C SHOPPING LTDA. (SUCES. DE DAMA PARTICIPAÇÕES

LTDA).

Acusação fiscal178: está descrito no relatório:

O lançamento apontou as seguintes irregularidades: a) glosa de despesa não comprovada; b) falta de adição à base imponível do resultado de alienação de investimento avaliado pelo patrimônio líquido; c) multas isoladas — falta de pagamento do IRPJ e CSLL incidentes sobre as bases estimadas em função da receita bruta e acréscimos Para o IRRF o lançamento decorreu de pagamento a beneficiário não identificado e sem causa.

Ementa CARF179:

OPERAÇÃO ÁGIO — SUBSCRIÇÃO DE PARTICIPAÇÃO COM ÁGIO E SUBSEQÜENTE CISÃO — VERDADEIRA ALIENAÇÃO DE PARTICIPAÇÃO — Se os atos formalmente praticados, analisados pelo seu todo, demonstram não terem as partes outro objetivo que não se livrar de uma tributação especifica, e seus substratos estão alheios às finalidades dos institutos utilizados ou não correspondem a uma verdadeira vivência dos riscos envolvidos no negócio escolhido, tais atos não são oponíveis ao Fisco, devendo merecer o tratamento tributário que o verdadeiro ato dissimulado produz. Subscrição de participação com ágio, seguida de imediata cisão e entrega dos valores monetários referentes ao ágio, traduz verdadeira alienação de participação societária. PENALIDADE QUALIFICADA – EVIDENTE INTUITO DE FRAUDE — INOCORRÊNCIA — SIMULAÇÃO RELATIVA – A evidência da intenção dolosa, exigida na lei para agravamento da penalidade aplicada, há que aflorar na instrução processual, devendo ser inconteste e demonstrada de forma cabal. O atendimento a todas as solicitações do Fisco e observância da legislação societária, com a divulgação e registro nos órgãos públicos competentes, inclusive com o cumprimento das formalidades devidas junto à Receita Federal, ensejam a intenção de obter economia de impostos, por meios supostamente elisivos, mas não evidenciam má-fé, inerente à prática de atos fraudulentos.

178 A desqualificação e redirecionamento dos negócios realizados pelo contribuinte pelo CARF, no presente caso, faz com que ocorra reflexo em outros campos de tributação, não apenas ligado diretamente com o ganho de capital oriundo da venda de participação societária. Desta feita, a acuação fiscal não é direta em relação à omissão de receitas oriundas de alienação societária. Todavia, essa situação não invalida a pesquisa do caso concreto, haja vista, para que aconteça a solução dos outros “problemas tributários”, o CARF tem de discutir se houve venda de participação societária ou se houve foi subscrição com ágio, seguida de cisão parcial. 179 Foi colocada parte da ementa do CARF que trata diretamente do modelo em análise. Não constam partes relacionadas a assuntos indiretos, pois não fazem parte do campo objetal da pesquisa.

154

Antes de relatar180 os eventos ocorridos, interessante trazer à colação o modo pelo qual

o CARF entende que ocorreu a operação, ou seja, para o CARF de acordo com o relatório

do voto houve:

a) Ganho de capital — a decisão enveredou pelo caminho trilhado pelo autor da ação pretendendo desvendar “a vontade real” escondida no contratos celebrados, presumindo além da lei, quando afirmou que: “a reorganização societária da empresa Sabará Empreendimentos e Participações Ltda. (transformação de limitada para S/A, subscrição de capital com ágio e cisão parcial) foi planejada para dissimular a ocorrência de ganho de capital, decorrente da venda de um ativo operacional liquido por valor infinitamente superior ao seu custo (fls. 478).

Relato dos eventos:

Evento 01: Dama Participações Ltda., denominada agora de DAMA, cujo objeto

social é a “administração e participação em capitais de outras empresas, aquisição de ativos,

exceto financeiro, bens móveis e valores mobiliários”, foi sucedida por A&C Shopping Ltda.,

denominada agora de SHOPPING, possuindo 24% do capital social da empresa Sabará

Empreendimentos e participações Ltda., denominada agora de SABARÁ. Ressalta-se que a

pessoa jurídica Pirâmide Participações Ltda., denominada agora de PIRÂMIDE, e Helan

Participações Ltda., denominada agora de HELAN, possuíam respectivamente 48% e 28% do

capital social da SABARÁ

Juntas, DAMA, PIRÂMIDE e HELAN formavam o grupo PHDPAR.

Evento 02: SABARÁ era controladora (99,99%) da pessoa jurídica Dama

Distribuidora S/A, denominada agora de DAMA DISTRIBUIDORA, empresa que atua no

segmento de supermercados com os nomes fantasia MARTPLUS e EPA.

Evento 03: SABARÁ é transformada de Ltda. para S/A.

Evento 04: adiante-se que o Grupo WRVPAR é composto pelas empresas Arantes

Empreendimentos e Participações Ltda., LM Empreendimentos e Participações Ltda. e VM

Participações Ltda.

180 Cabe deixar consignado que a descrição dos eventos é feita de acordo com o relatório do voto que embasa a decisão do CARF. No presente caso, no relatório não constam as especificidades de data e do detalhamento da operação. Assim, não há com exatidão a descrição da ordem dos eventos que ocorreram, nem tão pouco a precisão de todas as operações envolvidas. Neste caso, procura-se mais descrever a operação como um todo do que estipular os pormenores de datas dos atos e negócios jurídicos realizados. Por isso foi delineada, antes de iniciar o relato dos eventos, a estrutura padrão da operação em tela.

155

Evento 05: foi realizado acordo de acionistas da SABARÁ, sendo que até esse

momento o grupo WRPAR não era sócio da SABARÁ, em que constava entre outras coisas

segundo o CARF:

1 – WRPAR subscreverá ações na controlada e constituirá urna empresa controladora da metade da participação (que veio a ser a NOVO TEMPO EMPREENDIMENTOS E (PARTICIPAÇÕES LTDA). 2 – PHDPAR deverá também constituir uma empresa (que veio a ser a. PHD EMPREENDIMENTOS E PARTICIPAÇÕES LTDA). Ao final, cada grupo venha a deter 50% do controle acionário da empresa SABARÁ (vontade real declarada e realizada). 3 – Por estes 50% o grupo WRVPAR pagaria ao grupo PHDPAR a importância de R$ 48.500.000,00, na proporção de cada participação (foram pagos R$ 48.530.000,00, mas repassado ao grupo PHD um total de R$ 48.490.000,00). 4 – A negociação seria formalizada através do “CONTRATO DE COMPROMISSO DE ASSOCIAÇÃO MEDIANTE A COMPRA E VENDA DE AÇÕES E OUTRAS AVENÇAS” (contrato formal que a sucedida da autuada e seu grupo insistem em afirmar ter sido “verbal”, numa resistência deliberada à sua exibição). 5 – Co-gestão dos dois grupos (em AGE datada de 28/02/2000, esta co-gestão, surpreendentemente, já se materializava). 6 – Faz-se remissão à “CARTA DE INTENÇÕES” e que no item 4 deste acordo estaria a relação de lojas e estabelecimentos (é evidente que o acordo não foi verbal pois possuía até número de cláusulas, mas, conforme já relatado, recusaram-se a apresentar os documentos). 7 – Estipula-se a irrevogabilidade e a irretratabilidade do acordo.

Evento 06: houve aumento do capital social da SABARÁ, com a subscrição com ágio

por parte do grupo WRVPAR, vale repetir, composto pelas empresas Arantes

Empreendimentos e Participações Ltda.; LM Empreendimentos e Participações Ltda. e VM

Participações Ltda. Ademais, os antigos sócios da SABARÁ não quiseram utilizar o direito de

preferência.

Evento 07: os valores subscritos, entre ação e ágio, totalizaram R$ 48.530.000,00.

Evento 08: o ágio foi creditado como reserva de capital.

Evento 09: no mesmo dia da integralização com ágio, foi realizada às 20:00h

assembleia-geral extraordinária deliberando acerca da cisão. Sendo que, em 30 de março de

2000, a SABARÁ deu entrada na Jucemg da ATA AGE, que aprovou a emissão de novas

ações e aumento de capital, dentre outras deliberações, bem como do boletim de subscrições

de ações, ambos datados de 29 de fevereiro de 2000. Sendo que, em 25 de abril de 2000, a

SABARÁ deu entrada na Jucemg da ata da AGE que aprovou a cisão parcial da empresa bem

como do protocolo e justificativa de cisão e do “laudo de avaliação”.

156

Evento 10: verteu-se na Cisão R$ 48.490.000,00, e permaneceram R$ 40.000,00 como

aumento de capital, que, somados ao saldo inicial, totalizaram o saldo final da conta capital

em R$ 60.000,00.

Evento 11: com a cisão, houve redução do capital social da SABARÁ. Isto é, o grupo

PHDPAR – do qual fazia parte a empresa DAMA – reduziu a participação no capital da

companhia SABARÁ.

Evento 12: após todos os atos, o grupo PHDPAR passa ater 50% da SABARÁ; e o

grupo WRPAR também passou a ter 50% da SABARÁ.

Evento 13: vale destacar que a autuada SHOPPING realizou a incorporação181 da

DAMA, sendo sucessora desta.

Propriedades encontradas no voto vencido, relator, que confirmam se tratar de

uma alienação de participação societária.

A) Ágio: a estipulação do valor do ágio foi feito para viabilizar a cisão, desta feita não

tomou por base a rentabilidade futura. Eis trecho do voto: “Na verdade o suposto ágio não se

baseou em expectativa de rentabilidade futura, mas no valor atribuído ao investimento na hora

de sua aquisição. Neste ponto firmei meu convencimento quanto ao negócio jurídico

celebrado”. Por esse motivo, foi considerado tratar-se de alienação da participação societária.

B) Neutralização dos efeitos indesejáveis: existência do prévio acordo de acionista,

garantia de 50% das ações para cada sócio. Eis trecho:

O acordo de acionistas já previa a aquisição de 50% do empreendimento e a co-gestão dos dois grupos em partes iguais, cabendo a cada grupo a indicação de dois membros para o Conselho de Administração e um Diretor Executivo. As partes envolvidas realizaram as operações de emissão de ações com ágio e subscrição de aumento de capital, com ingresso de novos sócios, quando na realidade o negócio realizado foi compra e venda de participação societária.

181 Pela leitura do acórdão não é possível afirmar que houve incorporação por SHOPPING de todas as empresas do grupo PHDPAR. O relatório do voto dá a entender que a empresa HELAN também foi incorporada por SHOPPING. Eis trecho: “Posteriormente, a empresa HELAN, incorporada pela impugnante, reduziu sua participação no quadro social da empresa SABARÁ, através de uma cisão parcial, recebendo aquilo a que tinha direito como acionista”.

157

C) Propósito negocial: expressamente não enunciado, todavia, importante afirmar

que não se discutiu se o contribuinte tinha intenção de realizar outro negócio por motivo

extratributário, mas ficou evidenciado que o contribuinte tinha a intenção de economizar

tributos. Eis trecho: “O que não deixou dúvidas foi a intenção do Recorrente em economizar

imposto”.

D) Fraude à lei: dúvidas a sua presença, pois o contribuinte realizou todos os atos; e

após a cisão a SABARÁ continuou a existir. A empresa SHOPPING incorporou a DAMA,

sendo também acionista de SABARÁ, dando andamento ao negócio. Eis trecho:

Não conseguiu materializar sua vontade mas este é outro aspecto da questão. Contudo não tenho segurança em afirmar que esteve configurado um “evidente” intuito de fraude, como saltou a 'vista nos casos anteriormente analisados por este Colegiado nos quais os negócios eram realizados apenas “de fachada” sem respaldo na verdade material.

E) Dissimulação: fez-se presente. Importante fundamento é que, após a cisão, a

empresa SABARÁ continuou a funcionar, e os antigos sócios permaneceram na SABARÁ.

Além do que, todos os atos até a cisão contaram com a devida publicidade Eis trecho: “Assim

entendo que a matéria sob exame compreendeu uma ‘simulação relativa’ ou ‘dissimulação’, e

a doutrina maciçamente alerta para a dificuldade de definir, com precisão, a linha fronteiriça

que separa o ato elisivo do negócio dissimulado”.

Subsunção: expressamente não se realizou a subsunção da dissimulação em nenhuma

norma geral e abstrata. Fica a ideia que houve dissimulação, porque o ato foi realizado com o

único intuito de economizar tributos, sendo o ágio utilizado de forma diferente do que

permitido em lei.182

182 Lei 6.404/76. “Art. 170 – Depois de realizados 3/4 (três quartos), no mínimo, do capital social, a companhia pode aumentá-lo mediante subscrição pública ou particular de ações. § 1º – O preço de emissão deve ser fixado tendo em vista a cotação das ações no mercado, o valor de patrimônio líquido e as perspectivas de rentabilidade da companhia, sem diluição injustificada da participação dos antigos acionistas, ainda que tenham direito de preferência para subscrevê-las. § 2º – A assembléia geral, quando for de sua competência deliberar sobre o aumento, poderá delegar ao conselho de administração a fixação do preço de emissão de ações a serem distribuídas no mercado. § 3º – A subscrição de ações para realização em bens será sempre procedida com observância do disposto no Art. 8º, e a ela se aplicará o disposto nos §§ 2º e 3º do Art. 98. § 4º – As entradas e as prestações da realização das ações poderão ser recebidas pela companhia independentemente de depósito bancário. § 5º – No aumento de capital observar-se-á, se mediante subscrição pública, o disposto no Art. 82, e se mediante subscrição particular, o que a respeito for deliberado pela assembléia geral ou pelo conselho de administração, conforme dispuser o estatuto.

158

Propriedades encontradas no voto vencedor183 que confirmam se tratar de uma

alienação de participação societária.

A) Propósito negocial: expressamente não enunciado, todavia, importante afirmar

que não foi discutido se o contribuinte tinha intenção de realizar outro negócio por motivo

extratributário, mas ficou evidenciado que o contribuinte pretendia economizar tributos.

B) Dissimulação: existente, pois o contribuinte tinha intuito de economizar tributos.

Eis trecho: “Entendeu-se por considerar a operação de reorganização societária uma

dissimulação da operação efetivamente ocorrida, com vistas à economia tributária, razão pela

qual foi lançado o IRPJ sobre o ganho de capital calculado em decorrência da alienação”.

Subsunção: não enunciada de forma expressa. Segue a linha do voto, vencido, do

relator.

2.5.6. Caso 1770

Acordão: 108-09.793

Recorrente: 1770 Participações S/A

Acusação Fiscal: Está descrito no relatório:

Trata o presente processo dos autos de Infração relativos ao Imposto Sobre a Renda de Pessoa Jurídica (fls. 280 a 283) e a Contribuição Social sobre o Lucro Liquido (fls. 284 a 287), lavrados em 21/12/2005 e cientificados em 22/12/2005, formalizando um crédito tributário no valor total de R$ 281.367.816,22. Este valor inclui principal, multa de oficio de 75% e juros de mora em razão da “falta de contabilização de ganho de capital apurado na alienação de investimento avaliado pelo valor do Patrimônio Líquido.

§ 6º – Ao aumento de capital aplica-se, no que couber, o disposto sobre a constituição da companhia, exceto na parte final do § 2º do Art. 82. 183 Importante afirmar que, somente será descrito as propriedades e a subsunção realizadas ligadas à desconsideração e requalificação dos negócios jurídicos. Assim, o que for ligado ao objeto da pesquisa empírica apenas de forma indireta ou for assunto decorrente da requalificação jurídica não serão analisados, haja vista, fogem do campo objetal.”

159

Ementa CARF:

OPERAÇÃO ÁGIO – SUBSCRIÇÃO DE PARTICIPAÇÃO COM ÁGIO E SUBSEQÜENTE CISÃO – VERDADEIRA ALIENAÇÃO DE PARTICIPAÇÃO – Se os atos formalmente praticados, analisados pelo seu todo, demonstram não terem as partes outro objetivo que não se livrar de uma tributação específica, e seus substratos estão alheios às finalidades dos institutos utilizados ou não correspondem a uma verdadeira vivência dos riscos envolvidos no negócio escolhido, tais atos não são oponíveis ao Fisco, devendo merecer o tratamento tributário que o verdadeiro ato produz. Subscrição de participação com ágio, seguida de imediata cisão e entrega dos valores monetários referentes ao ágio, traduz verdadeira alienação de participação societária (...).

Relato dos eventos:

Evento 01: constituição em 14 de janeiro de 2000 da pessoa jurídica 1770

PARTICIPAÇÕES S.A., denominada agora de 1770. Sócios originários Antônio Sérgio de

Souza e Augusto Antonio Pires Fernandes. Capital social de R$ 1.000,00 integralizado no

percentual de 10%.

Evento 02: em 15 de março de 2000, foi realizada assembleia-geral extraordinária da

1770, em que constam como acionistas a COMPANHIA UNIÃO DOS REFINADORES

AÇÚCAR E CAFÉ, denominada agora de REFINADORES, e COPERSUCAR ARMAZÉNS

GERAIS S/A, denominada agora de COPERSUCAR. Vale dizer que não há menção da

participação societária de cada uma delas na 1770. Por fim, consigna-se como está no

relatório que os:

Srs. Antônio Sérgio de Souza e Augusto Antonio Pires Fernandes eram diretores da 1770 Participações S.A. e foram substituídos por Antonio José Zillo (também diretor da Companhia União dos Refinadores — Açúcar e Café e Copersucar Armazéns Gerais S.A.) e Maurílio Lobo Filho. Houve consolidação do Estatuto Social da 1770 PARTICIPAÇÕES, cujo capital social informado era de R$ 1.000,00. Não há menção ou prova de que o capital foi totalmente integralizado.

Resume-se: 1770 possui como acionistas REFINADORES e COPERSUCAR.

Evento 03: em 13 junho de 2000 a empresa Café Pilão-Caboclo Ltda, denominada

agora de PILÃO-CABOCLO, tem o capital social aumentado de R$ 45.000.000,00 para R$

71.260.000,00. A integralização do capital ocorreu mediante aproveitamento de crédito

mantido em conta corrente pela cotista REFINADORES com a concordância da outra sócia, a

COPERSUCAR.

160

Destaca-se que REFINADORES e COPERSUCAR controlavam tanto a empresa 1770

como a empresa PILÃO-CABOCLO.

Assim, o capital social da PILÃO-CABOCLO era em 13 junho de 2000 de 71.260.000

cotas, sendo que pertenciam à REFINADORES 71.259.900 e à COPERSUCAR 100 cotas.

Evento 04: REFINADORES subscreveu novas ações da 1770. A integralização

ocorreu com a entrega das cotas que detinha na PILÃO-CABOCLO. Logo, a 1770 passou a

controlar a PILÃO-CABOCLO. Conforme consta do voto relator:

(...) em 26/06/2000 a 1770 PARTICIPAÇÕES realizou Assembléia Geral Extraordinária para deliberar sobre o aumento de seu capital social (fls. 134 a 136). A 1770 PARTICIPAÇÕES emitiu 70.007.546 novas ações ordinárias nominativas, sem valor nominal, que foram integralizadas, em sua totalidade pela sócia COMPANHIA UNIÃO DOS REFINADORES AÇÚCAR E CAFÉ, com expressa anuência e concordância da outra acionista, COPERSUCAR. A integralização do aumento de capital foi feita com a entrega, à 1770 PARTICIPAÇÕES, de 71.259.000 cotas da Café Pilão, de propriedade da COMPANHIA UNIÃO DOS REFINADORES AÇÚCAR E CAFÉ. Assim a 1770 PARTICIPAÇÕES passou a ser proprietária da CAFÉ PILÃO-CABOCLO.

Evento 05: aporte financeiro da empresa MERRILD ICAFFE MS, da Dinamarca, na

empresa Café do Ponto Brasil Ltda, denominada agora de CAFÉ, no valor total de R$

399.087.838,00.

Evento 06: em 03 de julho de 2000 houve subscrição de novas ações da 1770 no valor

de R$ 70.001.546,00, mediante emissão de 70.001.546 ações nominativas, sem valor nominal,

a ser subscritas e integralizadas em moeda corrente pelo valor total de R$ 392.460.750,00

com ágio de R$ 322.459.204,00 pela CAFÉ, havendo expressa anuência da COPERSUCAR e

da REFINADORA.

Vale destacar que a justificativa econômica para o pagamento do ágio mencionado foi

baseada em critério econômico financeiro (projeção de rentabilidade futura), sendo levada em

conta a situação e os negócios da sociedade controlada PILÃO-CABOCLO.

O capital social da 1770, totalmente subscrito e integralizado, passou a ser de R$

140.010.092,00. A importância de R$ 322.459.204,00 foi creditada como reserva de ágio.

Vale dizer que, antes da subscrição das ações da 1770 por CAFÉ, A REFINADORA possuía

99.99% do capital social da 1770.

Evento 07: em 04 de julho de 2000, foi realizada assembleia-geral extraordinária da

1770, deliberando a respeito da redução do capital social da companhia, no montante de R$

161

70.001.546,00, mediante o cancelamento de 70.001.546 ações de propriedade da acionista

CAFÉ. Em pagamento ao valor correspondente ao cancelamento das ações, foi aprovada

pelos acionistas a dação em pagamento pela 1770 à CAFÉ de 71.259.900 cotas

representativas do capital social da PILÃO-CABOCLO. Essa operação significou que o

controle acionário da PILÃO-CABOCLO passou para a CAFÉ. Assim, o capital social da

1770 passou a ser R$ 70.008.546,00, totalmente subscrito e integralizado.

Evento 08: em 04 de julho de 2000, firmou-se contrato de mútuo no valor de R$

318.240.819,30, tendo como mutuante a empresa 1770 e como mutuaria a COPERSUCAR.

Propriedades encontradas no voto vencedor que confirmam se tratar de uma

alienação de participação societária.

A) Propósito negocial: mencionado expressamente na decisão. Seria necessária sua

presença para que o negócio realizado fosse considerado oponível ao Fisco:

O exame detalhado da operação realizada pela autuada, ora recorrente, demonstra que o aumento de capital seguido de imediata redução do mesmo não teve nenhum propósito negocial estratégico, a não ser a economia fiscal relativa ao ganho de capital na alienação das cotas da Café Pilão-Caboclo.

B) Tempo dos atos: fez-se presente. Atos praticados em curto intervalo de tempo.

C) Contrariedade dos atos: subscrição de quantia elevada com ágio seguida de

redução de capital. Seria incongruente com o fomento do negócio.

D) Simulação-elusão: fez-se presente com a conjugação dos critérios A), B) e C).

Vale destacar que seriam atos lícitos, todavia, os negócios praticados não teriam outra causa

senão reduzir montante de tributo a pagar. Eis trecho:

Entendo que no caso em pauta ocorreu a chamada simulação-elusão, conforme posição doutrinária acima exposta. O contribuinte, pretendendo valer-se da legislação fiscal vigente, praticou os atos com observância da legislação societária, divulgação e registro nos órgãos públicos competentes. Entretanto, não conseguiu demonstrar qualquer outro objetivo senão a economia fiscal. Não houve propósito negocial algum. Tanto é assim, que em sua defesa a recorrente insiste na adoção da acepção restritiva do termo simulação, e não consegue justificar, do ponto de vista econômico, empresarial, o aumento de capital em um dia (03/07/2000) para a subseqüente redução do mesmo no dia seguinte (04/07/2000).

162

Subsunção: realizada no artigo 149, VII do CTN. Eis trecho: “O lançamento fiscal

realizado justifica-se com base no próprio CTN que em seu artigo 149, inciso VII, prevê a

possibilidade de sua realização quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em

benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação”.

2.5.7. Caso CCLPL

Acordão: 101-96.087.

Recorrente: Cooperativa Central de Laticínios do Paraná LTDA, denominada agora

CCLPL;

Acusação Fiscal: “alienação de R$ 44.000.000 de ações pelo valor de R$1,00 por

ação não passou de operação simulada, tendo o preço sido de R$ 112.458.000,00 recebidos a

recorrente parte em dinheiro e parte com ações do ágio”.

Ementa CARF184:

OPERAÇÃO ÁGIO — SIMULAÇÃO RELATIVA — As operações estruturadas, realizadas em prazo ínfimo, de aporte de capital com ágio, capitalização e alienação, constituem-se em simulação relativa, cujo ato verdadeiro dissimulado foi a alienação das ações. Seu único propósito foi evitar a incidência de ganho de capital.

Relato dos eventos:

Evento 01: constituição em 19 de novembro de 1997 da Empresa Batávia S/A,

denominada agora BATÁVIA, pela CCLPL, detentora de 99,99% do capital social.

Evento 02: em 09 de janeiro de 1998 a CCLPL firmou protocolo de associação com a

Parmalat Ltda., denominada agora de PARMALAT, que se comprometeu a vender 51% da

participação societária. Estipulando-se o passo a passo a ser realizado.

Evento 03: em 03 de abril de 1998, PARMALAT subscreveu 11.903.578 ações da

BATÁVIA pelo valor de R$ 98.000.000,00, sendo que R$ 86.096.422,00 foram destinados à

184 Ementa descrita em parte, haja vista, apenas esta tem relação com o campo objetal da pesquisa.

163

reserva de ágio, conforme assembleia-geral extraordinária realizada às 10:00 horas do mesmo

dia. Logo, a PARMALAT passou a ter participação de 20,49%.

Evento 04: no mesmo dia, às 14:00h, outra assembleia extraordinária deliberou pela

capitalização do ágio, permanecendo ainda a CCLPL com o equivalente à mesma participação

societária. Isto é, houve realização de reavaliação dos investimentos da CCLPL na BATÁVIA

do valor inicial de R$ 46.199.994,00 para o valor R$ 114.657.994,00. Com a capitalização do

ágio, a CCLPL reconheceu a equivalência patrimonial não tributável no montante de R$

68.458.000,00, transformados em ações quando da subscrição.

Evento 05: após a capitalização do ágio, em sequência, a CCLPL alienou para

PARMALAT, pelo valor de R$1,00 por ação, 44.000.000,00 de ações, títulos estes

correspondentes a seu investimento inicial mediante versão de patrimônio.

Evento 06: PARMALAT passou a deter 51% do controle acionário da BATÁVIA.

Propriedades encontradas no voto vencedor que confirmam se tratar de uma

alienação de participação societária.

A) Capacidade contributiva positiva: o relator não denomina capacidade

contributiva como de eficácia positiva. Todavia, utiliza-se da doutrina de Marco Aurélio

Greco, o qual apregoa a possibilidade de uso positivo do princípio da capacidade. Eis trecho:

O ordenamento jurídico tem suas bases muito mais ligadas a interpretações sistemáticas e finalísticas, a ensejar um conjunto sustentado em cena axiologia, ainda que mutável no tempo, do que a restritivas interpretações literais, que insistem em produzir a falácia de que tudo deve estar minuciosamente escrito, como se a tanto o ser humano fosse capaz. Tais interpretações restritivas, que se apoiam, indevidamente, no dito princípio da legalidade estrita e da segurança jurídica, levando ambos ao extremo e deturpando seu conteúdo, apenas fazem sucumbir, como num passe de mágica, a verdadeira capacidade contributiva, e eliminam, com ares de juridicidade, um dever de contribuir, inerente ao convívio em sociedade.

B) Propósito negocial: faz-se presente no julgado, haja vista, para ser lícita a

economia fiscal, deveria haver outro motivo do que a simples intenção de não pagar tributo.

Eis trecho: “Para que seja lícita a economia fiscal decorrente de um conjunto de atos os

mesmos devem possuir conteúdo próprio, com riscos assumidos inerentes aos institutos

adotados, e propósito diverso de simplesmente driblar a aplicação de norma tributária

impositiva”.

164

C) Análise do conjunto das operações praticadas (Step transactions): é observada a

operação como um todo.

D) Affectio societatis: elemento que se fez presente, formando a convicção do

julgador. Eis trecho que comprova tanto o item B), C) e D):

Se os atos formalmente praticados, analisados pelo seu todo, demonstram não terem as partes outro objetivo que não se livrar de uma tributação específica, e seus substratos estão alheios às finalidades dos institutos utilizados ou não correspondem a uma verdadeira vivência dos riscos envolvidos no negócio escolhido, tais atos não são oponíveis ao Fisco, devendo merecer o tratamento tributário que o verdadeiro ato dissimulado produz (grifo nosso).

E) Neutralização dos efeitos indesejáveis: presente no voto e provado por meio do

protocolo de associação, que previa o passo a passo e garantia a aquisição de 51% pela

PARMALAT.

F) Tempo dos atos: negócios realizados em curto intervalo de tempo. Presente e

formador da convicção do julgador.

G) Simulação: presente e utilizada na forma de dissimulação. Provada pela

conjugação de todos os outros itens. Eis trecho:

Presente a simulação, ainda que possa ser qualificada de relativa, dissimulando uma venda através de operações estruturadas de associação sem substrato econômico e fático, deve ser mantida a multa qualificada, o que também impede acolher-se qualquer preliminar de decadência.

Subsunção: considera-se o negócio simulado e dissimulado o negócio de compra e

venda. Todavia, não há o enquadramento em nenhuma norma geral e abstrata. Não se sabe se

o fundamento é o CTN ou o CC, muito menos os artigos ou incisos utilizados.

165

2.5.8 Caso: LEA

Acordão: 104-21.610

Recorrente: LEA REGINA DE OLIVEIRA LOPES

Acusação Fiscal: conforme relatado no voto do relator:

A infração está assim descrita no Auto de Infração: GANHO DE CAPITAL NA ALIENAÇÃO DE BENS E DIREITOS — OMISSÃO DE GANHOS DE CAPITAL NA ALIENAÇÃO DE AÇÕES/QUOTAS NÃO NEGOCIADAS EM BOLSA — Os fatos encontram se descritos conforme RELATÓRIO FISCAL, que faz parte integrante e inseparável deste Auto de Infração.

Ementa do CARF:

(...) IRPF – GANHO DE CAPITAL – ALIENAÇÃO DE PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS – SIMULAÇÃO – Constatada a desconformidade, consciente e pactuada entre as partes que realizaram determinado negócio jurídico, entre o negócio efetivamente praticado e os atos formais de declaração de vontade, resta caracterizada a simulação relativa, devendo-se considerar, para fins de verificação da ocorrência do fato gerador do Imposto de Renda, o negócio jurídico dissimulado. A transferência de participação societária por intermédio de uma seqüência de atos societários caracteriza a simulação, quando esses atos não têm outro propósito senão o de efetivar essa transferência. Em tal hipótese, é devido o imposto sobre ganho de capital obtido com a alienação das ações.

Relato dos eventos:

Evento 01: Lea Regina de Oliveira Lopes, denominada agora de LEA, e outras pessoas

eram acionistas de empresa PEROLI S/A.

Evento 02: em 09 de novembro de 1999, a empresa CHLCC e os acionistas de

PEROLI celebraram contrato por meio do qual a primeira, posta como compradora, manifesta

a intenção de adquirir a totalidade do capital social da empresa PEROLI.

No contrato consta ainda a forma pela qual o negócio seria realizado.

Evento 03: em 19 de novembro de 1999, LEA e os outros acionistas da PEROLI

constituíram a empresa COMPANHIA ROXO, denominada agora de ROXO. A

integralização do capital social ocorreu com entrega da participação societária que possuía na

PEROLI. Desta feita, a empresa ROXO passou a figurar no quadro societário da PEROLI.

166

Consigna-se: LEA e outras pessoas controlam a ROXO, que por sua vez controla a

PEROLI.

Evento 04: em 30 de janeiro de 2000, LEA e os sócios constituíram a ROXO DE

OLIVEIRA, denominada agora de OLIVEIRA. A integralização do capital social se deu com

a participação societária que possuíam na ROXO.

Agora, LEA e sócios controlam a OLIVEIRA, que por sua vez controla a ROXO, que

por seu turno controla a PEROLI.

Evento 05: em 19 de abril de 2000, a empresa ROXO realizou aumento de capital

social. A CHLCC subscreveu 16.284,467 ações pelo preço de emissão de R$ 3,59 por ação.

Vale dizer que foi atribuído o valor de R$ 1,00 ao capital social e o valor de R$ 2,59 a

título de ágio, creditados à reserva de capital para futuro resgate de ações. O total

integralizado foi de R$ 58.462.672,53. Logo, a CHLCC passou a ser acionista da ROXO,

pagando ágio pela ações.

Evento 06: devido ao aumento de capital em ROXO, ocorrido pela subscrição com

ágio, a OLIVEIRA realiza reavaliação dos investimentos na ROXO por meio de equivalência

patrimonial.

Desta feita, contabilmente houve aumento do valor das ações que OLIVEIRA detinha

na ROXO.

Evento 07: OLIVEIRA resgata a totalidade das ações que possuía em ROXO, com

consentimento da CHLCC.

Fundamental: foi pago o valor R$ 2,87 por ação, exatamente a quantia que

correspondente ao ágio pago pela CHLCC quando subscreveu as ações de ROXO. Em toda

essa cadeia de operações não teria ocorrido ganho de capital, pois houve equivalência

patrimonial. Logo, OLIVEIRA sai da ROXO. Sendo que, esta passou a ser controlada pela

CHLCC e controladora da PEROLI.

OLIVEIRA não tem mais participação no quadro societário da ROXO, e por via de

consequência LEA e sócios também não. Sendo que OLIVEIRA levou consigo a quantia de

R$ 17.824.950,56 e a CHLCC passou a ter o controle de 100%, por intermédio da ROXO das

ações da PEROLI.

Propriedades encontradas no voto vencedor que confirmam se tratar de uma

alienação de participação societária.

167

a) Tempo: realização de subscrição, seguida de equalização patrimonial e de

alienação societária, em curtíssimo intervalo de tempo.

B) Ordenação de atos: os atos realizados buscavam desde o início que a CHLCC se

tornasse proprietária da PEROLI.

C) Affectio societatis: não há interesse em associação no negócio no presente caso.

D) Ágio: o valor do ágio não teria sido estipulado de forma correta, apenas no valor

exato para quando da alienação societária.

E) Propósito negocial: a ausência de propósito negocial, muito embora não se use

esse termo, colabora no enquadramento da simulação em especial da dissimulação posto no

código civil. Os itens A), B), C), D) e E) comprovam-se pelo seguinte trecho e são peças

essenciais para que se configure a simulação:

No caso de que se cuida neste processo, para considerar como autênticos os negócios jurídicos de formação sucessiva é preciso fingir, por exemplo, que a constituição da empresa Companhia Roxo, a aquisição de suas cotas pela Recorrente e pelos demais sócios da PEROLI e, posteriormente, a integralização do capital dessa empresa com as ações da PEROLI, se deram por motivação empresarial e não para instrumentalizar a transferência dessas ações para a CHLCC e o recebimento, em contrapartida, do valor de alienação previamente acertado; de que a reavaliação das ações, em valor coincidente com aqueles previamente acertados entre comprador e vendedores é mera coincidência; de que o posterior aumento de capital seguido da subscrição e integralização pela CHLCC se deu motivada pelo interesse negociais de ampliação dos negócios da empresa e pela decisão da CHLCC de se associar a esse projeto; que o valor dessa integralização, em dinheiro, coincidente com o anteriormente acertado entre comprador e vendedores foi mera coincidência; e, finalmente, que a decisão da Recorrente de resgatar as ações imediatamente depois de integralizar o aumento capital, é mero fruto do arrependimento ou da reavaliação de decisões empresariais anteriores (grifo nosso).

F) Neutralização dos efeitos indesejáveis: contrato que garante o controle da

PEROLI pela CHLCC.

168

G) Simulação: no julgado a simulação é conduta ilícita estando fora dos casos de

planejamento tributário. Para o CARF, a dissimulação prevista no CTN no paragrafo único do

artigo 116 deve ser considerada caso de planejamento. Já a do artigo 149 do CTN é conduta

ilícita.

Eis três trechos do CARF referindo-se a elisão utilizando como parâmetro o artigo 116

§ único do CTN que comprovam:

O que é importante reter dessas duas contribuições é que só há falar em elisão fiscal naquelas situações nas quais o ato ou negócio jurídico é efetivamente praticado e não se cogita de qualquer ilicitude, e, portanto, esses atos ou negócios produzem todos os seus efeitos. A aplicação da norma antielisiva se limita, em tal hipótese, a desconsiderar esse ato ou negócio jurídico apenas quanto aos seus efeitos fiscais.

CARF referindo-se à simulação no caso concreto:

O que se verifica a partir de uma análise detida dos fatos relacionados com a matéria em discussão, todavia, é que a conduta da Recorrente configura a prática de simulação, em nada se assemelhando à da elisão fiscal. A Recorrente lança mão de argumentos, válidos para uma situação, quando a situação fática é completamente diversa(..). É claro que a prática da simulação com o propósito de escamotear a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária é conduta ilícita, aliás, referida expressamente no Código Tributário Nacional, no seu art. 149, VII, como hipótese de realização de lançamento de ofício. Portanto, não há falar em elisão fiscal, quando a conduta, por meio da qual o Contribuinte procura obter a economia de tributos, pode ser caracterizada como simulação.

H) Simulação Relativa: aplicada ao caso concreto. Eis trecho:

O caso de que se cuida neste processo subsume-se plenamente à hipótese referida no inciso II do art. 102, acima transcrito. É dizer, os assim chamados negócios jurídicos de formação sucessiva são, em verdade, uma série organizada de cláusulas, condições e declarações não verdadeiras, posto que não expressam compromissos verdadeiros, não traduzem as reais vontades das partes, não têm conteúdo, mas apenas forma.

Subsunção: artigo 102 do Código Civil, II. Assim, a simulação do artigo 149 do CTN,

encontra sua significação no Código Civil.

169

2.5.9 Caso TAVARES

Acordão: 107-09169.

Recorrente: TAVARES E FILHOS ADMINISTRAÇÃO E PARTICIPAÇÕES S.A.

Acusação fiscal185: cobrança de créditos tributários relativos ao Imposto sobre a

Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).

Ementa CARF:

IRPJ/CSL — RESULTADO DA EQUIVALÊNCIA PATRIMONIAL — O ajuste do investimento levado a efeito pela investidora pelo método da equivalência patrimonial, ancorado em ágio recebido pela investida na subscrição de ações, não revela realização de lucros na investida e, portanto, não de ter a natureza atribuída pela investidora, de modo a propiciar custo majorado na alienação do investimento.

Relato dos eventos:

Evento 01: Café Três Corações Ltda., denominada agora de CAFÉ, tinha como sócios

Aprígio Tavares e seus filhos.

Evento 02: em 01 de dezembro de 1999 foi criada, por Aprigio Tavares e filhos, a Três

Corações e Participações Ltda. Posteriormente, passou a ser denominada Tavares e Filhos

Administração e Participações LTDA, denominada agora de TAVARES.

O capital social foi integralizado da seguinte forma: integralização que possuíam na

CAFÉ.

Evento 03: o capital de CAFÉ ficou distribuído da seguinte forma: 3.458.854 cotas, no

valor de R$ 3.548.854,00, pertencentes a TAVARES, e seis cotas no valor R$ 6,00

pertencentes aos pais e filhos (pessoas físicas). Total de 3.458.860 cotas no valor de R$

3.548.860,00.

Evento 04: em 16 de outubro de 2000, CAFÉ foi alterada para CAFÉ S/A. com o

aumento de capital social, com a subscrição de 427.500 ações ordinárias, classe “b”, sem

185 Esta descrita acusação fiscal relacionada diretamente com o modelo de operação em análise. Não significa que outras acusações decorrentes não foram imputadas ao contribuinte.

170

valor nominal. O preço por ação foi estipulado em 182,54, totalizando o valor de R$

78.037.208,00.

Evento 05: em 04 de dezembro de 2000, às 10:00h da manhã, Lantella Representações

Ltda, denominada agora de LANTELLA, representante o grupo holandês Elite Internacional

BV, integraliza em CAFÉ as 427.500 ações por R$ 78.037.208,00. Sendo que R$

77.609.708,00 foram computados como reserva de ágio.

Evento 06: após a integralização por LANTELLA, TAVARES contabiliza aumento do

valor contábil do seu investimento em CAFÉ. Operação realizada pelo método de

equivalência patrimonial, sendo excluído o resultado na apuração do lucro real.

Evento 07: no mesmo dia, TAVARES retira-se da CAFÉ, com resgate no valor de R$

R$ 73.311.266. Logo, não houve ganho de capital na alienação do investimento.

Propriedades encontradas no voto do Relator que confirmam se tratar de uma

alienação de participação societária.

A) Atos contrários: propriedade que se fez presente. Tratou-se de operação

incongruente entre si.

B) Tempo dos atos: operações em curto intervalo de tempo.

C) Análise do conjunto das operações praticadas (Step transactions): presente.

D) Simulação: em relação á desqualificação e requalificação dos negócios jurídicos o

voto não apontou diretamente a propriedade. Passa-se a impressão que houve apenas a

subsunção simples em outra norma tributária.

Subsunção: relacionado ao campo objetal de estudo fica prejudicada, pois não houve

a desqualificação e requalificação dos negócios praticados, mas subsunção direta na norma

que autoriza a tributação do ganho de capital.

171

2.5.10 Caso CCLSP

Acordão: 101-96.523.

Recorrente: COOPERATIVA CENTRAL DE LATICÍNIOS DO ESTADO DE SÃO

PAULO.

Acusação fiscal186: Eis trecho do relatório:

A contribuinte, de forma simulada, teria efetuado a venda de sua unidade localizada em Guaratinguetá-SP para a empresa Prospect Participações LTDA, empresa do grupo “Danone”, pelo valor total de R$ 234.184.000,00, baixando todos os custos de seu ativo permanente, no valor de R$ 23.683.900,00, e apurando ganho de capital de R$ 210.500.100,00.

Ementa do CARF187:

SIMULAÇÃO — GANHO DE CAPITAL — Se as provas constantes dos autos demonstram que a Contribuinte realizou negócio jurídico de forma diversa daquela formalmente declarada, havendo desconformidade entre a realidade fática e a aparência do negócio jurídico, resta caracterizada a ocorrência de simulação, devendo a obrigação tributária ser apurada sobre o negócio jurídico de fato realizado.

Relato dos eventos:

Evento 01: em 11 de dezembro de 2000 a COOPERATIVA CENTRAL DE

LATICÍNIOS DO ESTADO DE SÃO PAULO, denominada agora de CCLSP, transferiu os

ativos e o negócio de produção e comercialização de produtos lácteos frescos para a 1856

Produtora de Leite S.A., denominada agora de 1856.

Houve integralização de ações do capital social na 1856. Logo, a CCLSP tornou-se

detentora de 23.684.000 ações ordinárias classe A, representativas da totalidade do capital da

sociedade 1856 e equivalentes ao valor de R$ 23.684.000,00.

186 Importante destacar que o trecho da acusação fiscal acima descrito, que foi narrado pelo relator, refere-se diretamente ao campo objetal da pesquisa. A acusação fiscal completa não foi utilizada, unicamente por questão metodológica. 187 Coloca-se apenas trecho diretamente ligado ao campo objetal da pesquisa.

172

Evento 02: em 14 de dezembro de 2000 foi aprovado aumento do capital social da

1856 com emissão de 2.395.249 ações ordinárias classe B, integralmente subscritas pela

Prospect Participações Ltda., denominada agora de PROSPECT, pelo valor de R$

234.184.000,00.

Vale destacar que o valor de R$ 2.395.249,00 foi destinado ao aumento do capital

social e o restante, no montante de R$ 231.788.751,00, à reserva de ágio da sociedade. Bem

como houve equivalência patrimonial, ou seja, valorização das ações que CCLSP possuía na

1856.

Evento 03: a 1856 deliberou sobre o resgate das ações classe A, pagando seu valor à

CCLSP.

A CCLSP recebeu da 1856 em dinheiro e créditos, na forma de notas promissórias, no

valor de R$ 234.184.000,00.

Assim, após o resgate, a PROSPECT passou a ser proprietária da totalidade do capital

social da 1856.

Valem destacar dois eventos que colaboraram na tomada de decisão do voto relator:

Todos os atos praticados pela contribuinte se referem à venda da unidade em Guaratinguetá-SP, tais como as Atas de Assembléias, registros contábeis e lançamentos na D1PJ/2001, não havendo, de fato, a transferência para a outra empresa criada e o resgate de ações. O pagamento de parte do valor acordado, através do cheque depositado em 14.12.2000 na conta-corrente n° 60.000-8 da agência n° 0084-1 do Bradesco saiu direto da Prospect Participações Ltda. para a contribuinte, demonstrando que nunca houve o resgate de ações.

Propriedades encontradas no voto do Relator, vencido, que confirmam se tratar

de uma alienação de participação societária.

A) Neutralização dos efeitos indesejáveis: existência de contrato prévio, o qual

demonstrava a intenção de transferência total negócio da CCLSP para a PROSPECT. Vale

dizer que todos os atos estavam previamente determinados. Os atos estipulados só se

realizaram perfeitamente quando da transferência do negócio para PROSPECT.

173

B) Affectio societatis: não estava presente. Eis trecho do voto: “Nenhuma das partes

possuía interesse em deter ações na 1856 Produtora de Leite S.A., conforme se observa

claramente no Instrumento de fls. 17/50”.

C) Abuso de forma188: negócio realizado de forma ilícita pelo contribuinte. Eis

trecho:

Saliente-se que, ao contrário do que defende a contribuinte, no presente caso, não houve a interpretação da substância econômica do ato jurídico, mas a desconstituição de negócio firmado de forma ilícita, com abuso de forma. Embora as operações efetuadas sejam lícitas, se consideradas isoladamente, a sua utilização com a finalidade de encobrir negócio jurídico diverso acarretam na desconsideração do contrato simulado (grifo nosso).

C) Análise do conjunto das operações praticadas (Step transactions): analisou-se o

conjunto das operações.

D) Dissimulação: provada pela caracterização dos itens A), B), C) e D). Eis trecho do

voto:

Assim, as partes pretenderam realizar negócio jurídico de forma diversa daquele representado pelo contrato firmado entre a contribuinte e a Prospect Participações Ltda. Houve a dissimulação do contrato de compra e venda por meio de atos societários sucessivos, havendo a desconformidade entre a realidade fática e a aparência do negócio jurídico, restando caracterizada a ocorrência de simulação, uma vez que o negócio aparente não expressa conteúdo verdadeiro, sendo válido apenas formalmente, observado, inclusive, o art. 167, II do Código Civil.

Subsunção: utiliza-se como suporte abstrato o Código Civil, entendendo que houve

dissimulação. Citado o artigo 167, II.

2.5.11. Caso FEIJÓ

Acordão: 104-21.497.

Recorrente: PAULO AFONSO GIRARDI FEIJÓ

188 A ilicitude seria oriunda da cadeia de atos e negócios, embora os atos isoladamente sejam considerados lícitos. Sendo que o abuso de forma ocorreria pela finalidade de encobrir negócio jurídico oculto, ou seja, dissimulado. Passa a ideia de que abuso de forma está ligado diretamente àa noção de simulação/dissimulação.

174

Acusação fiscal:

Contra o interessado acima identificado foi lavrado, em 02/12/2004, pela Delegacia da Receita Federal em Porto Alegre/RS, o Auto de Infração de fls. 495 a 555 – Volume III, no valor de R$ 1.554.790,80, relativo a Imposto de Renda Pessoa Física do exercício de 2000, ano-calendário de 1999, multa de ofício qualificada (150% – art. 44, inciso II, da Lei nº 9.430/96) e juros de mora, tendo em vista a apuração de ganho de capital.

Ementa do CARF189:

SIMULAÇÃO – CONJUNTO PROBATÓRIO – Se o conjunto probatório evidencia que os atos formais praticados (reorganização societária) divergiam da real intenção subjacente (compra e venda), caracteriza-se a simulação, cujo elemento principal não é a ocultação do objetivo real, mas sim a existência de objetivo diverso daquele configurado pelos atos praticados, seja ele claro ou oculto. OPERAÇÕES ESTRUTURADAS EM 'SEQUÊNCIA – O fato de cada uma das transações, isoladamente e do ponto de vista formal, ostentar legalidade, não garante a legitimidade do conjunto de operações, quando fica comprovado que os atos praticados tinham objetivo diverso daquele que lhes é próprio. AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO EXTRATRIBUTÁRIA – O princípio da liberdade de auto-organização, mitigado que foi pelos princípios constitucionais da isonomia tributária e da capacidade contributiva, não mais endossa a prática de atos sem motivação negocial, sob o argumento de exercício de planejamento tributário.

Relato dos eventos190:

Evento 01: em 29 de janeiro de 1999, a SONAE, juntamente com os acionistas de

EXXTRA, celebraram um “instrumento de associação”, no qual consta que a empresa

SONAE, denominada de compradora, e os acionistas da EXXTRA, denominados vendedores,

e que dispõe entre outras coisas que a SONAE teria interesse em adquirir a totalidade do

capital social de EXXTRA.

Evento 02: transformação de EXXTRA em S/A de capital fechado, conforme consta

do contrato de associação.

Evento 03: os acionistas de EXXTRA, após realizar AGE, deveriam subscrever

aumento de capital social emitindo 109.137 ações, que representariam o valor de R$

11.810.806,14, a ser integralizada por SONAE, conforme consta no contrato de associação.

Destaca-se que essa subscrição ocorreu com ágio.

189 Foi posta apenas a parte relacionada diretamente com o campo objetal da pesquisa. 190 Os eventos são descritos na mesma ordem exibida no CARF.

175

Evento 04: aprovação pelos acionistas antigos e pelo novo acionista SONAE de cisão

parcial de EXXTRA. Sendo que o patrimônio líquido da empresa cindida, no caso EXXTRA,

iria para a holding pertencente aos antigos sócios de EXXTRA. Reitere-se: todos esses

eventos estavam estipulados no contrato de associação. Eis trecho do voto:

Subseqüentemente, os VENDEDORES e a COMPRADORA aprovariam a cisão parcial de EXXTRA mediante a versão de parcela de seu patrimônio líquido que deveria ser constituído ÚNICA E EXCLUSIVAMENTE PELO CAIXA DE EXXTRA, em fundos imediatamente disponíveis, no valor total de R$ 11.810.806,14, a uma empresa holding DE PROPRIEDADE dos VENDEDORES, recentemente constituída, denominada PPL PARTICIPAÇÕES, de tal forma que a COMPRADORA PASSASSE A SER A TITULAR DA TOTALIDADE DO CAPITAL DA EXXTRA APÓS A REFERIDA CISÃO, NA QUAL PERMANECERIAM TODOS OS ATIVOS E PASSIVOS OBJETO DO PRESENTE NEGÓCIO QUE NÃO A PARCELA DO PATRIMÓNIO LÍQUIDO VERTIDO À EMPRESA HOLDING dos VENDEDORES em decorrência da referida cisão parcial.

Propriedades encontradas no voto do Relator que confirmam se tratar de uma

alienação de participação societária.

A) Neutralização dos efeitos indesejáveis: existência de prévio contrato que

garantiria o controle em 100% para SONAE, estipulando o passo a passo da operação.

B) Tempo dos atos: fez-se presente. Isto é, atos realizados em curto intervalo de

tempo.

C) Cisão: parte do pagamento da subscrição das ações realizadas por SONAE foi

direto para a conta dos alienantes após a cisão, logo, isso caracterizaria a compra de

participação societária.

D) Análise do conjunto das operações praticadas (Step transactions): fez-se

presente. Analisou-se a cadeia de atos.

E) Desvio do perfil objetivo das operações: eis trecho que comprova a presença

e também a do item E):

176

Um rápido relance sobre o conjunto de operações acima, realizadas em seqüência, na mesma data e mediante estipulação prévia, permite concluir que as partes envolvidas se utilizaram de um caminho tortuoso para atingir o mesmo objetivo que seria alcançado com uma simples191 operação de compra e venda.

F) Affectio societatis: não se fez presente, mas foi considerado elemento

importante. Eis trecho:

Essa conclusão, óbvia e preliminar, coloca as transações efetuadas no campo das “operações preocupantes” mencionadas por Marco Aurélio Greco (Planejamento Tributário, p. 359, São Paulo: Dialética, 2004), uma vez que não se verifica a disposição efetiva das partes, no sentido de compor uma sociedade (affectio societatis).

G) Negócio jurídico indireto: não se fez presente, pois não se tratava de um negócio

típico para atingir fins diversos. E, sim, dois negócios: o simulado e o dissimulado.

H) Atos contrários entre si: subscrição de ação com ágio e cisão em curtíssimo

intervalo de tempo.

I) Propósito negocial: ausência de motivação extratributária. Entende-se um dos

requisitos para não haver simulação. Os itens D), H) e I) comprovam:

Além disso, outros elementos se prestam a comprovar que o conjunto de operações levado a cabo pelo contribuinte tinha o objetivo único de impedir a ocorrência do fato gerador, simulando situação que, por si só, é inconsistente, a saber: realização de operações em seqüência, porém com um objetivo único subjacente; operações inconsistentes entre si – associação e imediata reorganização societária – efetuadas em um curto espaço de tempo; análise da situação anterior e posterior à realização das operações, indicando os efeitos de uma compra e venda, e não de uma associação/reorganização societária; total ausência de motivação extratributária (grifo nosso).

L) Simulação: cisão irregular, feita pelo valor de mercado, o contribuinte recebeu

parcela do patrimônio liquido muito superior a que tinha direito. Eis trecho do voto:

Ressalte-se que o fato de restar clara no contrato a intenção de realizar operação de compra e venda, ao invés de reorganização societária, não descaracteriza a simulação, cujo elemento principal não é a ocultação da real intenção do agente, mas sim a existência de objetivo diverso daquele configurado pelos atos formais, seja ele claro ou oculto.

191 O grifo não consta no voto, serve apenas para enfatizar o foco de interesse deste trabalho.

177

Importante destacar que o dolo é considerado elemento da simulação. Eis trecho: “É

que o contribuinte empreendeu ações no sentido de impedir dolosamente a ocorrência do fato

gerador. Dolosamente porque o pagamento do preço foi travestido de “aumento de capital por

subscrição de ações com ágio” (grifo nosso),

Ademais, a simulação se prova pela conjugação dos itens A), B), C), D), E), F), G), H)

e I). Destacando-se que o conceito de simulação é aquele aplicado do Código Civil, muito

embora, para comprovar, necessário estar presentes os itens alhures arrolados.

Por fim, destaca-se o conceito de simulação posto no voto, inclusive repisado na

ementa: “Caracteriza-se a simulação, cujo elemento principal não é a ocultação do objetivo

real, mas sim a existência de objetivo diverso daquele configurado pelos atos praticados,

seja ele claro ou oculto” (grifo nosso).

M) Fraude à lei: presente quando se comprova a simulação. Desta feita, está presente

o dolo. Eis trecho: “Diante de todo o exposto, a fiscalização logrou comprovar o evidente

intuito de fraude, materializado pela simulação, o que desloca o enquadramento legal da

decadência, do § 42 do art. 150, do CTN, para o art. 173, inciso I, do mesmo código (...)”

(grifo nosso).

Subsunção: Artigo 150§4 do CTN, haja vista que no voto foi discutido acerca do

prazo decadencial.

2.5.12 Caso MARAMBAIA

Acordão: 101-96.066.

Recorrente: Marambaia Capital S.A.

Acusação fiscal: “A empresa foi acusada de ter praticado omissão de receita

caracterizada pela falta de contabilização da operação de venda de participações, a qual foi

registrada, de forma simulada, como permuta sem pagamento de torna”.

178

Ementa CARF192: “SIMULAÇÃO. Caracterizada a simulação, os atos praticados com

o objetivo de reduzir artificialmente os tributos não são oponíveis ao Fisco, que pode

desconsiderá-los”.

Relato dos eventos:

Evento 01: em 20 de setembro de 1999, Luiz Cezar Fernandes, acionista da

Marambaia, denominada à época de 134 Participações S.A., subscreveu aumento do capital

social em MARAMBAIA em 130 ações sem valor nominal. A integralização ocorreu por

meio de 16.945.931 cotas da sociedade Pactual Participações Ltda., denominada agora

PACTUAL, pelo valor de R$ 10.497.399,14, ao amparo do laudo de avaliação da ACAL

Consultoria e Auditoria S/C.

Evento 02: em 23 de setembro de 1999, a MARAMBAIA vendeu 534 ações da

própria emissão, mantidas em tesouraria193, para Lidô Participações e Serviços Ltda.,

denominado agora de LIDÔ, ao preço de R$ 92.414.695,98.

Evento 03: em 24 de setembro de 1999, MARAMBAIA, por meio de contrato

particular de permuta, deu em permuta, sem pagamento de toma, as 16.945.931 cotas da

PACTUAL e, em contrapartida, recebeu da LIDÔ exatamente as 534 ações de sua emissão

que tinham sido vendidas no dia anterior.

Consigna-se: LIDÔ ficou com a propriedade das cotas de PACTUAL e

MARAMBAIA com o montante de R$ 92.414.695,98.

Propriedades encontradas no voto do Relator que confirmam se tratar de uma

alienação de participação societária.

A) Tempo dos atos: realizados em curto intervalo de tempo. Eis trecho: “Proximidade

temporal dos atos (1 dia) decorrido entre a compra e venda das ações em tesouraria e a

permuta”.

192 Está descrita apenas parte da ementa relacionada diretamente com o campo objetal. 193 Para esclarecimento: o art. 442, IV, do Decreto n° 3.000/1999 estabelece que o lucro na venda de ações em tesouraria, creditado à conta de reserva de capital, não é computado na determinação do lucro real.

179

B) Atos contrários: existiu a incongruência entre os atos, ou seja, atos que não

possuem sequência comercial lógica. Eis trecho: “Há desmedida disparidade entre o valor

pago pelas ações e o ativo da empresa investida; seus efeitos foram desfeitos com a permuta

das ações pelas cotas da Pactual. A simulação é incontestável”.

C) Análise do conjunto das operações praticadas (Step transactions): fez-se

presente. Analisou-se a cadeia de atos.

D) Simulação: ocorrida nas operações praticadas pela pessoa jurídica, sendo não

oponíveis ao Fisco, que deve tributar o resultado do negócio verdadeiro. Aplica enunciados

clássicos: “vontade real e a vontade declarada”. Não trabalha a ideia de causa. Eis trecho:

Realmente, caracterizou-se a hipótese prevista no art. 102 do Código Civil de 1916, pois há divórcio entre a vontade real e a vontade ostensiva. Não há a mais remota possibilidade de se acreditar que a Lidô tenha tido vontade real de investir na Recorrente, adquirindo 534 ações de sua emissão (dum total de 1.010) por R$ 92.414.695,98, quando em todo seu ativo no dia 23/09/1999, existia somente R$ 517,25 em caixa e uma participação societária de R$ 10.497.399,14 (cotas da Pactuai Participações Ltda.). Ato que realmente Marambaia e Lidô pretenderam praticar foi a compra e venda, por aquele valor, das cotas da Pactuai. Para isso, simulou-se a venda das ações em tesouraria, seguida da permuta sem toma.

Subsunção: enquadra-se no artigo 149, VII, do CTN.

2.5.13 Análise conjunta dos casos: propriedades e subsunção

Após a leitura da integra dos votos do CARF relacionados ao modelo de operação

“casa e separa”, verifica-se que todos foram considerados não oponíveis ao Fisco. Situação

esta devida a:

A) Resultado efetivo das operações, economia de tributo: possui a significação

relacionada com o fim obtido, ou seja, depois da realização de inúmeros atos e negócios

jurídicos houve a saída total ou parcial dos antigos sócios e entrada de novos sócios. Sendo

180

que o sócio que se retira não paga ou paga tributo incidente sobre o ganho de capital a menor

do que deveria pagar acaso fosse realizada alienação societária.

É premissa do planejamento que o caminho percorrido reduza o montante de tributo a

pagar. Do contrário, não haverá requalificação jurídica do negócio. Trata-se de um

pressuposto do planejamento segundo visão do CARF.

B) Percurso jurídico mais longo e complexo do que normalmente poderia ter sido

realizado, desviando-se do perfil objetivo: a significação é que o particular realizou série de

atos e negócios jurídicos utilizando caminho não usual para obter o resultado pretendido.

Sendo que os negócios típicos utilizados (subscrição com ágio, equivalência patrimonial,

cisão/alienação/permuta etc.) não seriam os meios usuais postos pelo Direito para alcançar o

fim que se realizou, ou seja, alteração societária com saída e entrada de novos sócios. Embora

não haja vedação expressa para utilização de negócios típicos que alcancem outras

finalidades, esse é o ponto que permeia as decisões do CARF. Surge a seguinte constatação: I

– se existir caminho mais simples para realização pelo particular de negócios jurídicos, sendo

que este caminho reduz a carga tributária, em relação a caminho complexo e não usual, em

tese, nenhum problema haverá se o particular escolher o percurso complexo e não usual; II –

se existir caminho simples e complexo que gere o mesmo valor de tributo, o particular é livre

para escolher o que bem lhe aprouver; III – existência de caminho curto que possibilite a

realização de negócios jurídicos que geram tributo a pagar. Sendo que, o particular

escolhe percorrer o caminho longo e complexo que se desvia da finalidade normal,

gerando diminuição da carga tributária. Esse é o ponto não aceito pelo CARF, ao menos

relacionado ao modelo “casa e separa”.

C) Tempo dos atos e a contrariedade: a significação é que inúmeros atos e negócios

foram realizados em curtíssimo intervalo de tempo, às vezes em horas. Portanto, estaria

demonstrada a não intenção de realizar aqueles negócios, visto que seriam desfeitos ou dariam

continuidade a outros atos e negócios incongruentes ou contrários aos atos ou negócios

anteriores. Vale destacar que apenas em CCLPL não houve operações incongruente, pois os

antigos sócios continuaram na empresa. Muito embora o resultado do planejamento fora o

mesmo para os demais casos, ou seja, a não oponibilidade ao Fisco.

181

D) Neutralização de efeitos indesejáveis194: a significação dada é que o aumento de

capital com a subscrição de ações com ágio serve para fomento da empresa, em que

naturalmente haveria a formação de um novo quadro societário com foco na melhoria do

negócio. Todavia, ocorre que as partes se retiram da sociedade levando o ágio consigo, sem

pagar tributo incidente sobre o ganho de capital. Vale destacar que no caso da CCLPL o ágio

ficou em parte na empresa. De qualquer forma, esta categoria está presente em todos os casos

analisados. Trata-se de uma das propriedades consideradas caracterizadoras da simulação,

sendo que demonstraria o “real interesse das partes”. Em muitos casos, as partes interessadas

no negócio a ser celebrado estabeleciam por contrato particular que o ágio seria destinado ao

resgate de ações a ser delimitado em futura assembleia.

Em muitos casos analisados é garantido por contrato particular o completo controle

acionário da empresa pelos sócios entrantes. Caracterizando-se o “acordo simulatório”.

E) Affectio societatis: sua ausência é índice para falta de propósito negocial. Não

analisadas em todos os casos, porém, presente na maioria. Funciona como elemento de

convicção do julgador.

F) Capacidade contributiva positiva: elemento presente em alguns julgados, como

em NACIONAL, fazendo que o julgador fundamente a decisão na dissimulação do negócio

jurídico.

G) Negócio jurídico indireto: citado como matéria de defesa dos contribuintes,

chegando a ser ponderado pelo CARF, todavia, desconsiderado. Ou seja, entre os negócios

jurídicos pesquisados, nenhum se enquadrou nesta categoria.

194 GRECO, M.A. Op. cit., p. 406. “Outro conjunto de hipóteses que merece atenção é aquela da inclusão – em negócios jurídicos típicos – de clausulas neutralizadoras de seus efeitos indesejáveis. Vale dizer, as partes, por via indireta, não assumem plenamente as consequências que decorrem de negócios típicos; ‘formatam’ o negócio para atender exclusiva ou predominantemente ao seu interesse de sofre menor tributação. Exemplo deste tipo é o de doações (que, pela sua própria natureza, implicam transferência de todos os poderes de usar, gozar e dispor de seus bens) acompanhadas de cláusulas como a outorga pelo donatário de procuração ampla irrevogável (ou por longo período) ao doador para que este continue exercendo atos típicos do titular e (se o caso é de ações de sociedade) a previsão de uma ‘remuneração’ para este mandato equivalente aos dividendos que vierem a ser distribuídos pela sociedade.”

182

H) Abuso de direito: Não citado expressamente, todavia, em KLABIN foi utilizado.

Considerado elemento compositor da fundamentação do CARF. Muito embora seja enunciada

na decisão, houve simulação, que ocorreu entre outras coisas pela presença desta categoria. O

abuso de direito resta configurado quando o único motivo da prática dos negócios jurídicos é

a economia de tributos.

I) Abuso de forma: considerado elemento para que haja a simulação presente em

alguns casos como em CCLSP. Em nenhum julgado isoladamente foi capaz de infirmar o

planejamento tributário. É elemento formador do conceito de simulação.

J) Ágio: utilizado em algumas as decisões. Segundo o CARF, sua utilização é

distorcida quando os sócios que se retiram da sociedade levam consigo todo o ágio

recentemente aportado na empresa, apenas visando a um ganho financeiro particular. Sendo

que a finalidade do ágio consistiria no fomento da empresa, logo haveria uma espécie “de

abuso” na utilização dessa propriedade. Situação verificada em quase todos os casos salvo em

CCLPL.

K) Análise do conjunto das operações praticadas (Step transactions): o CARF

analisou o conjunto de operações praticadas. Todavia, em algumas hipóteses, o corte da

“filmagem” realizada pelo CARF alternou. Isso quer dizer que o CARF ainda não determinou

a partir de qual momento se “filma” uma operação. Em algumas situações se desconsiderou,

para fins tributários de requalificação jurídica, a constituição pelos antigos sócios de novas

sociedades. Analisavam-se as operações partir da subscrição de ações e assim por diante.

L) Propósito negocial: esta figura é considerada pelo CARF como propriedade

indicativa da simulação e também como categoria jurídica capaz de tornar os planejamentos

realizados pelos contribuintes como não oponíveis ao Fisco.

A ausência de propósito negocial se demonstra pela comprovação do item “tempo dos

atos e contrariedade”, ou seja, atos realizados em curto intervalo de tempo e contrários entre

si, e pela ausência do affectio societatis, isto é, as partes não possuíam nenhum vínculo

negocial que poderia mantê-las unidas em sociedade. O propósito negocial também é

183

utilizado como significando a falta de motivação extratributária, isto é, o único intuito de

economizar tributo como causa dos negócios jurídicos.

Mesmo o CARF considerando o propósito negocial como categoria autônoma, na

maioria dos casos o critério determinante para que o planejamento tributário não seja oponível

ao Fisco é da simulação. Dessa forma, o propósito é elemento caracterizador da simulação.

M) Simulação: em todos os casos analisados, salvo em TAVARES, o CARF

expressamente enunciou ter havido simulação por parte do contribuinte. Ou seja, o negócio

simulado (subscrição de ações com ágio, equivalência patrimonial, cisão/alienação ou

permuta) foi realizado para encobrir o negócio dissimulado, isto é, alienação de participação

societária.

Os elementos que caracterizam a simulação foram ausência de motivação

extratributária (ausência de propósito negocial), tempo e contrariedade dos atos, ausência de

affectio societatis) e em outros casos o abuso de forma jurídica e o abuso de direito, como

ficou demonstrado, por exemplo, em CCLSP.

Em 1770 utilizou-se da “simulação-elusão”, que seria aquela lícita em que os atos

eram praticados em curto intervalo de tempo com o único intuito de economizar tributos. O

interessante é que neste caso a simulação é denominada de “lícita”, porém, não oponível ao

Fisco, e enquadrada no artigo 149 do CTN.

Em outras circunstâncias a simulação é meio para materialização da fraude à lei. Logo,

o elemento volitivo dolo estava presente. Verifica-se tal situação no caso FEIJÓ.

Em outros casos, a simulação se diferenciava de fraude à lei justamente por não estar

presente o elemento volitivo do dolo.

Em FEIJÓ, a simulação consistiu em abuso do perfil objetivo das operações. Quer

dizer que simulação significa existência de objetivo diverso daquele configurado pelos atos

praticados. Em MARAMBAIA simulação significa divergência entre a vontade interna e a

vontade declarada.

Grosso modo, o que há de comum nas operações pesquisadas é que todas são

pertencentes, em última análise, à classe simulação e/ou dissimulação.

Existe um padrão de condutas que, independente da nomenclatura dada, são

consideradas, quando reunidas, elementos que tornam o planejamento tributário não oponível

184

ao Fisco, relacionado com a temática “casa e separa”: I – quando o contribuinte tiver à

disposição caminho mais simples e utiliza caminho complexo e não usual, levando a um

estado de coisas idêntico a do caminho mais simples; II – os atos realizados são contrários

entre si e constituídos em curto intervalo de tempo; III – não há nenhuma vivência dos riscos

do negócio; IV – negócios realizados com motivação eminentemente tributária. Nesse padrão,

o CARF tende a desconsiderar atos e negócios jurídicos e os qualifica como alienação de

participação societária por serem atos, em última instância, simulados/dissimulados.

O modelo “casa e separa”, para o CARF, significa a prática de atos inaptos a alcançar

os resultados a que se propunham.

Em relação à subsunção, conclui-se: I – o CARF fundamenta decisões no artigo 149,

VII, do Código Tributário Nacional ou no artigo 167 do Código Civil. Em alguns casos cita o

parágrafo único do artigo 116, todavia, não fundamentou as decisões neste artigo. Em outros

momentos não fundamenta a decisão nem na simulação do CC nem no CTN, isto é, invoca a

capacidade contributiva positiva e os princípios gerais de direito privado como elementos

caracterizadores da simulação/dissimulação. Vale destacar que algumas vezes se afirma que a

simulação se dá por ausência de motivação extratributária, sendo por isso um ato lícito que

apenas deve ser requalificado pelo Fisco.

Por fim, destaca-se que o CARF manteve certa coerência relacionada ao padrão de

condutas, haja vista, se presente as condutas, o planejamento é considerado não oponível ao

Fisco. Isso que dizer que, se não presente, o planejamento deve ser considerado oponível ao

Fisco. Todavia, em CCLPL o final da operação não proporcionou um estado de coisas

idêntico a uma alienação de participação societária, pois ingressaram novos sócios e os

antigos permaneceram com percentual menor. Assim, não houve utilização do ágio como

mero instrumento de ganho financeiro dos sócios retirantes da sociedade, além do que não

seria possível realizar a operação pelo caminho da alienação societária, ou seja, da compra e

venda, sendo que foi aportado elevado valor na empresa que não se destinou aos antigos

sócios. A simples alienação de participação societária não figurava entre os caminhos para

realizar o negócio.

Destaca-se ainda que, em CCLP, foi posto pelo CARF que o caminho percorrido

deveria ser primeiro a alienação societária e em seguida a subscrição de ações com ágio,

afirmando que a existência de um contrato prévio caracterizaria a simulação. Todavia, a

existência de um contrato prévio se faria necessário mesmo que fosse seguido o passo a passo

estipulado pelo CARF. De qualquer forma, em tal contrato não houve neutralização dos

185

efeitos indesejáveis, pelo contrário, houve os efeitos esperados, com formação de novo

quadro societário e ágio para o fomento da empresa. O que o CARF pretendeu foi estipular

uma obrigatoriedade cronológica nas condutas do contribuinte, pois ele não tinha a opção

apenas de realizar o caminho mais curto, ou seja, a simples alienação societária não seria

suficiente para alcançar o fim visado.

O contribuinte tinha a sua escolha: I – subscrição de ações com ágio, capitalização do

ágio e alienação de parte das ações; II – alienação das ações para em sequência o sócio

entrante subscrever novas ações com ágio e haver a capitalização do ágio; III – subscrição

com ágio, alienação das ações e posterior capitalização do ágio. Frise-se: todas ações postas

nos itens acima são lícitas. Sendo que, para realizar tal intento, não poderia ser feito o simples

ato de compra e venda. Entre as opções, algumas gerariam tributo a pagar e outra geraria

economia de tributo. O CARF entendeu que deveria, obrigatoriamente, haver a utilização do

item II por parte do contribuinte. Muito embora: I- o negócio realizado não foi contrário entre

si; II- não houve a neutralização dos efeitos indesejáveis; III- não existiu a possibilidade de

apenas compra e venda direta, ou seja, não havia caminho mais simples a percorrer.

Em SHOPPING, ocorreu situação similar: os antigos sócios permaneceram na

empresa, porém, com 50% do controle. A diferença é que o ágio foi integralmente repassado

aos antigos sócio quando da cisão. Destaca-se, ainda, que o caminho simples, venda de ações,

existia como possiblidade, pelo fato de o valor do ágio ter sido repassado para os sócios.

186

3 CONCLUSÃO

3.1 ENTRE O DIREITO DE NÃO PAGAR E O DEVER DE PAGAR TRIBUTOS

Existe um dever fundamental de pagar tributos? Essa é a questão fulcral que se

interpõe ao debate do tema do planejamento tributário.

Na atualidade, o discurso na doutrina pátria passou do campo da licitude para o campo

da oponibilidade. Permita-nos discordar. Ou o planejamento é lícito, portanto oponível ao

Fisco, ou é ilícito e, portanto, não oponível ao Fisco.

A conclusão é simples: abuso de forma e propósito negocial são categorias não

positivadas em nosso sistema jurídico, não servindo de critérios para as decisões que medeiam

o planejamento tributário.

Retoricamente, mesmo que estivessem presentes no sistema jurídico, estar-se-ia diante

de uma conduta ilícita. Tais categorias constituir-se-iam como regras limitadoras do

planejamento. E, acaso desrespeitadas, um ilícito estaria sendo realizado pelo autor da

conduta.

Abuso de direito existe e está positivado no Código Civil, não há dúvidas. Trata-se de

ilícito. No entanto, não há no Direito Tributário suporte físico para aplicar essa categoria em

matéria de planejamento.

De qualquer forma, ainda que eventualmente seja possível a aplicação, não há dúvidas

de que ao particular é permitido programar a vida negocial com o único intuito de não pagar

tributos, não incorrendo em abuso de direito. É inconcebível que a liberdade de contratar seja

limitada por essa categoria. Frise-se: o abuso de direito obviamente limita a liberdade de

contratar, todavia, não constitui abuso de direito realizar negócios com o único intuito de

economia tributária. Pelo motivo de que nenhuma regra, princípio ou o sistema jurídico

tomado em feição unitária estão sendo desrespeitados. Não há na Constituição Federal

nenhum princípio que obrigue os particulares a realizar hipótese de incidência tributária ou

que, ao realizar negócios, escolham sempre o caminho tributário mais oneroso.

187

A solidariedade social, valor supremo da Carta Magna, não pode ser invocada como

valor de guarida para tal intento. Esta é realizada quando se respeita o sistema jurídico e não

como mecanismo que fundamenta interpretações evidentemente arrecadatórias.

É indubitável que existem limites ao planejamento tributário, todavia, analisando o

direito das normas gerais e abstratas do Código Tributário Nacional, os limites seriam dolo,

fraude ou simulação.

Nos casos analisados, acertadamente o CARF decidiu aplicar a simulação, pois, na

maioria das observações, estava presente o acordo simulatório.

No entanto, o CARF alarga o conceito semântico da palavra simulação quando utiliza

categorias alienígenas como o propósito negocial ou o abuso de forma. Ou quando prescreve

que comete abuso de direito o contribuinte que pretendeu exclusivamente economizar

tributos, inserindo essas categorias como elementos formadores do conceito de simulação e de

dissimulação.

Existe um direito do contribuinte de programar a vida da forma que bem lhe aprouver.

Por outro lado é direito do Fisco de constituir, arrecadar e cobrar pelos tributos devidos.

Vale a digressão: não comete abuso quem programa a vida com o único intuito de

fugir da incidência da norma tributária.

Desrespeita o Fisco os interesses individuais e sociais quando não concretiza as

normas gerais e abstratas da Constituição Federal e do Código Tributário Nacional.

As regras do jogo estão postas, não cabendo a um jogador unilateralmente alterá-las.

Acaso haja mudança legislativa instituindo o propósito negocial e o abuso de formas jurídicas

ou que permitam que o abuso de direito seja aplicado na seara administrativo-tributária, tais

regras deverão ser seguidas pelo Fisco e pelos contribuintes. Todavia, por enquanto não existe

tal aparato normativo.

3.2 O DESCOLAMENTO DA REALIDADE

Como afirmado: o limite ao planejamento é simulação, dolo ou fraude.

As expressões “em tema de planejamento cada caso é um caso” e “é papel do

intérprete analisar exclusivamente os fatos” não são tão verdadeiras. O CARF manteve certa

188

coerência na utilização do padrão de condutas. Presente o padrão, a tendência é que o

planejamento tributário seja constituído como não oponível ao Fisco.

Na análise do padrão de condutas que tornam o planejamento tributário não oponível

ao Fisco, afirma-se: não há insegurança jurídica. Basta que o participante do sistema

jurídico, ao analisar o conjunto de decisões do CARF na temática “casa e separa”, siga as

prescrições. Assim, muito provavelmente, não haverá problema com os agentes fiscais. Isto é,

o padrão estipulado pelo CARF faz valer o primado da segurança jurídica, pois há

previsibilidade, questão-chave na temática da segurança jurídica. Deve o contribuinte: I – ter

motivação extratributária; II – escolher o caminho mais simples para realizar o negócio

jurídico; ou escolher o caminho mais complexo devido à impossibilidade de percorrer o mais

simples; ou em havendo aquela possibilidade (escolha de caminho simples), o contribuinte

não o faça, percorrendo dessa forma o caminho mais complexo e não usual, não apenas pela

intenção de economia tributária; ou que, ao final da operação, não seja constituído um estado

de coisas idêntico ao de uma compra e venda de participação societária; III – não realizar o

negócio em curto intervalo de tempo e não praticar atos contrários entre si; IV – não

neutralizar efeitos indesejáveis; V – ter interesse em associação para vivência dos riscos do

negócio.

Estaticamente, o CARF cria alternância semântica nos conceitos de propósito

negocial, abuso de forma jurídica, abuso de direito, capacidade contributiva positiva,

enquadrando todas essas figuras como elementos que compõem a classe simulação e/ou

dissimulação.

É função do jurista sistematizar os enunciados postos pelo CARF e construir

significações coerentes com o sistema de referência que lhe cerca. Desta feita, constatou-se

que o CARF utilizou-se de propriedades diferentes e com significações variáveis em inúmeros

julgados. Nessa perspectiva, está sendo incoerente, ocasionando insegurança jurídica aos

partícipes do sistema de direito.

Para o CARF, abuso de direito tem a significação de conduta do contribuinte

realizada com o único intuito de pagar menos tributo. Coincidindo com o conceito de falta de

propósito negocial, que seria a conduta do contribuinte que possui como causa do negócio

jurídico a economia de tributos.

189

O abuso de direito e/ou a falta de propósito negocial ocasionariam a simulação e/ou

dissimulação dos negócios jurídicos. Desta feita, tanto o abuso de direito como a falta de

propósito negocial são fatos indiciários para que haja simulação e/ou dissimulação.

Maria Rita Ferragut195:

A prova indiciária é uma espécie de prova indireta que visa demonstrar, a partir da comprovação da ocorrência de fatos secundários, indiciários, a existência ou a inexistência do fato principal. Para que ela exista faz necessária a presença de indícios, a combinação dos mesmos, a realização de inferências indiciárias e, finalmente, a conclusão destas inferências.

Em outras circunstâncias o curto intervalo de tempo e operações contrárias entre si,

conjugadas com a falta de vivência dos riscos do negócio, affectio societatis, e a escolha de

caminho complexo e não usual para atingir fins atípicos são índices para que ocorra a falta de

propósito negocial e consequentemente para a simulação e/ou dissimulação.

Reitere-se: o proposito negocial é fato indiciário para que se comprove a simulação.

Sendo que, ao mesmo tempo, na maioria dos casos, os fatos indiciários comprovam o

propósito negocial, que por sua vez é fato indiciário da simulação. Tornando o propósito

negocial, por ser comprovado por meio de indícios, como prova, na falta de expressão

adequada, “não tão robusta para comprovar a simulação e/ou dissimulação”. Maria Rita

Ferragut196:

Como já tivemos a oportunidade de verificar, a presunção deve tomar, como conteúdo do antecedente do enunciado, indício de existência diretamente conhecida. Mas será possível que esse indício também seja resultado de presunção anterior? Acreditamos que não, pois enfraqueceria em demasiado a prova indireta. O valor de uma presunção perde em intensidade, à medida que se afasta dos fatos indiciários diretamente comprovados. A conclusão, deduzida de um fato diretamente conhecido, é geralmente de maior gravidade e precisão que a conclusão advinda de um fato apenas conhecido.

Abuso de forma que é índice para que haja simulação e/ou dissimulação, ocorre toda

vez que a finalidade do negócio realizado for encobrir negócio jurídico diverso. Igualando-se

ao conceito clássico de dissimulação.

Capacidade contributiva positiva é índice para que haja simulação e/ou dissimulação.

Comprova-se quando, ao final de uma série de atos, se verifica que na verdade o negócio

jurídico realizado foi a alienação da participação societária, posto que determinado negócio

195 FERRAGUT, Maria Rita. Presunções no Direito Tributário. 2ª ed., São Paulo: Quartier Latin 2005, p. 91. 196 Ibidem, p. 145-6.

190

jurídico manifesta a mesma grandeza econômica da compra e venda de ações. Logo, em

verdade trata-se de uma alienação direta de participação societária.

Simulação e/ou dissimulação podem ser configuradas, mediante leitura dos acórdãos

do CARF, pela presença de qualquer das categorias jurídicas descritas ou quando o padrão de

condutas repelidas pelo CARF (as que tornam o planejamento tributário não oponível ao

Fisco) se fazem presentes. Havendo claro alargamento semântico dos termos em enfoque,

pois, pelo que parece, “qualquer categoria jurídica, tomada agora como elemento, pode

formar o conceito de simulação e/ou dissimulação”.

Descrevendo o sistema jurídico de forma dinâmica, ou seja, do processo de

positivação das normas gerais e abstratas até as normas expedidas pelo CARF, percebe-se que

há descompasso entre o texto abstrato e o texto das normas individuais e concretas, havendo

indubitavelmente o “descolamento da realidade”. Há incongruência entre a linguagem das

normas gerais e abstratas em relação à linguagem das normas individuais e concretas

expedidas pelo CARF na temática “casa e separa”.

Pois, muito embora exista o enquadramento pelo CARF, via de regra, no artigo 149 do

CTN ou no artigo 167 do Código Civil, o conceito criado a partir das normas gerais e

abstratas confrontado com o conceito criado a partir das normas individuais e concretas,

sempre a partir da visão do observador, não são congruentes. Isto é, a significação de

simulação e/ou dissimulação para o CARF é diferente da simulação e/ou dissimulação do CC.

Sendo que, inúmeras vezes, o CARF não subsume as decisões em nenhum aparato

normativo. Deixando o contribuinte, em uma visão dinâmica do sistema jurídico, sem a

mínima condição de planejar o futuro.

Ao particular surge a dúvida: deve enquadrar as ações negociais e tributárias em

normas gerais e abstratas ou deve seguir os mandamentos das decisões do CARF? Ambas são

normas válidas, sendo que a individual e concreta não encontra suporte físico que lhe permita

concretizar o direito como deveria ser. As normas do CARF não concretizam as normas

abstratas. Essa é a insegurança jurídica que permeia e “descola” a realidade jurídica, criando

duas linguagens antagônicas.

O descolamento da realidade nada mais é do que o desvalor insegurança jurídica

sobressaindo em relação a seu valor oposto, segurança jurídica.

Em resumo, três espelhos da segurança jurídica e de seu desvalor insegurança

fazem-se presente na pesquisa: I – segurança no padrão de condutas não oponíveis; II –

191

insegurança na classe em que as condutas são postas. Ou seja, mesma significação para

categorias jurídicas distintas e significações das mais variadas para mesma categoria

jurídica; III – insegurança na subsunção das normas individuais e concretas nas normas

gerais e abstratas. Isto é, significações diferentes subsumindo aos mesmos suportes

físicos, significações semelhantes subsumindo em suportes físicos diferentes e

significações postas como fundamento de decisão, todavia, não subsumindo diretamente

em nenhuma norma geral e abstrata.

3.3 CONCLUI-SE

1. Valores são depositados ao longo dos ciclos histórico-culturais.

2. Objetos culturais são plasmados por valores.

3. Direito é um objeto cultural. Seguindo a linha de Miguel Reale, adota-se a

existência da invariante axiológica liberdade individual.

4. Direito é composto por valores. O valor está presente no plano sintático, semântico

e pragmático.

5. O valor possui doze características lógicas.

6. Os valores de sobrenível se realizam pela concretização de outros valores.

7. O valor justiça está no ápice do sistema jurídico. Sendo que, na escala hierárquica

do sistema de Direito Positivo, o valor segurança jurídica está imediatamente abaixo do valor

justiça. Concretizando-se o valor segurança jurídica, realiza-se o valor justiça. Desta feita,

justiça e segurança jurídica não estão em polos contrapostos. Pois se trata de hierarquia, não

devendo haver ponderação entre aplicar um ou outro valor, ao contrário, deve-se concretizar

um valor para realizar outro mais elevado.

8. Realiza-se o valor segurança jurídica, respeitando a anterioridade, legalidade, não-

cumulatividade, irretroatividade, não-confisco, a coisa julgada, o direito adquirido, o ato

jurídico perfeito, a capacidade contributiva, os institutos da decadência e prescrição etc.

9. Princípios podem ser sinônimos de valor e de limites objetivos.

192

10. Realiza-se o valor solidariedade social concretizando limites objetivos estipulados

pelo sistema jurídico, postos em âmbito constitucional.

11. Não está positivada no sistema jurídico a capacidade contributiva positiva

12. Não se constrói categoria jurídica utilizando-se do conceito de capacidade

contributiva. O direito possui regras próprias – gramática geratriz de normas.

10. No Direito, todas as condutas são causais. Se acontecerem determinadas

circunstâncias, deverão acontecer certas consequências.

11. O código do Direito é lícito ou ilícito. Não existe o “meio lícito”.

12. A vontade do legislador ou do particular é construída a partir do texto normativo,

por meio da utilização da linguagem das provas. Não se alcança vontade interna ou subjetiva

do agente. As categorias da enunciação, enunciação-enunciada e enunciado-enunciado

explicam tal desiderato.

10. Norma jurídica é construção de sentido realizada pelo intérprete. Segue-se a linha

construtivista de Paulo de Barros Carvalho, fundamentada no giro linguístico pragmático.

11. Norma jurídica individual e concreta deve subsumir à norma geral e abstrata que

lhe dê fundamento de validade.

12. Positivação de novas categorias jurídicas deve ocorrer por meio do plano S1, no

modelo de Paulo de Barros Carvalho. Os utentes de categorias jurídicas podem até alterar,

eventualmente, as significações dessas categorias. Todavia, isso não significa que um

expedidor de normas individuais e concretas (in casu, o CARF) pode aplicar e inserir

categorias não positivadas em normas gerais e abstratas.

13. Vontade negocial ou causa do negócio jurídico não são sinônimos de propósito

negocial. Utilizado como a realização de qualquer conduta ou negócio jurídico que não

consista unicamente na vontade de economizar tributo.

14. Abuso de forma e propósito negocial não foram positivados no sistema jurídico

brasileiro.

15. Abuso de direito é categoria de Direito Civil não apta a ser aplicada na seara do

planejamento. De qualquer forma, não comete abuso de direito a conduta realizada com o

intuito de não pagar tributos.

193

16. As categorias aptas para que haja desconsideração e requalificação por parte do

Fisco são dolo, fraude e simulação.

17. Dolo é simples conduta volitiva de prejudicar terceiros que se faz presente tanto na

fraude como na simulação.

18. A fraude prevista no Código Tributário Nacional é regulada pelo artigo 72 da Lei

nº 4.502/64.

19. Simulação e dissimulação são reguladas pelo artigo 167 do Código Civil de 2002.

Significa a divergência entre a vontade declarada e a vontade interna. A vontade interna se

constitui com o acordo simulatório. Nunca se chega à vontade psíquica do agente.

20. O CARF mantém coerência no uso do padrão de condutas que tornam o

planejamento tributário não oponível ao Fisco. Segundo o padrão, deve o contribuinte: I – ter

motivação extratributária; II – escolher o caminho mais simples para realizar o negócio

jurídico; ou escolher o caminho mais complexo devido à impossibilidade de percorrer o mais

simples; ou em havendo aquela possibilidade (escolha de caminho simples), o contribuinte

não o faça, percorrendo dessa forma o caminho mais complexo e não usual, não apenas pela

intenção de economia tributária; ou que, ao final da operação, não seja constituído um estado

de coisas idêntico ao de uma compra e venda de participação societária; III – não realizar o

negócio em curto intervalo de tempo e não praticar atos contrários entre si; IV – não

neutralizar efeitos indesejáveis; V – ter interesse em associação para vivência dos riscos do

negócio.

21. Para o CARF, sempre que houver simulação ou dissimulação o planejamento é não

oponível.

22. O CARF alarga os conceitos de simulação e de dissimulação e altera a significação

dos elementos que compõem tais conceitos. Em relação à visão conceitual do que seja

simulação e dissimulação e das propriedades que as compõem, ocorre insegurança jurídica,

pois não há previsibilidade da significação estipulada para essas categorias.

23. Dinamicamente as decisões do CARF ocasionam insegurança jurídica. As

normas individuais e concretas expedidas possuem significação diferente das postas em

normas gerais e abstratas. Quando o CARF subsume as decisões no artigo 149, VI do CTN ou

no Código Civil no artigo 167, ou, como em alguns casos, fundamenta a decisão na

capacidade contributiva positiva e nos princípios de Direito Civil, como a boa-fé etc., em

verdade, cria linguagem em âmbito de concreção que não é compatível em significação com a

194

linguagem abstrata, criando um “descolamento da realidade”. Tal linguagem cria realidade

diferente em relação à linguagem construída nos plexos normativos encartados na

Constituição Federal, no Código Tributário Nacional e no Código Civil. A linguagem do

“Código” é diferente da linguagem do CARF quando se observa a operação “casa e separa”.

195

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ANEXO 1 – Portaria nº 74, de 05 de abril de 2002

Portaria nº 74, de 05 de abril de 2002 Publicada no DOU de 05.04.02 Alterada pela Portaria MF nº 200 de 03.07.02

O MINISTRO DE ESTADO DA FAZENDA, no uso de suas atribuições, e tendo em vista o disposto no art. 2º do Decreto nº 3.390, de 23 de março de 2000, resolve:

Art. 1º A meta anual de arrecadação relativa às receitas administradas pela Secretaria da Receita Federal, para fins da avaliação institucional e do cálculo da correspondente Gratificação de Desempenho de Atividade Tributária - GDAT, a que fazem jus os integrantes da Carreira Auditoria da Receita Federal, será proposta pelo Secretário da Receita Federal até o dia 20 de janeiro do ano a que corresponder e fixada em ato ministerial específico.

§ 1º A meta de arrecadação terá por base os valores efetivamente arrecadados no ano anterior e os efeitos decorrentes de alterações:

I - na legislação tributária;

II - nos seguintes fundamentos macroeconômicos:

a) preço;

b) quantidade;

c) taxa de câmbio;

d) taxa de juros;

e) massa salarial.

§ 2º A meta de arrecadação poderá ser revista, por proposta do Secretário da Receita Federal na superveniência de fatores que tenham influência significativa e direta na sua consecução.

Art. 2º Para fins de apuração e pagamento da GDAT, considerar-se-á a meta de arrecadação fixada para o ano, devendo a parcela da gratificação, correspondente à avaliação institucional, ser:

I - máxima, quando a arrecadação efetivamente realizada se situar no intervalo de 97% a 103% da meta estabelecida;

II - zero, quando a arrecadação efetivamente realizada for igual ou inferior a noventa por cento da meta estabelecida;

III - proporcional e linear, quando a arrecadação efetivamente realizada for superior a noventa e inferior a 97% da meta estabelecida.

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§ 1º Quando a arrecadação efetivamente realizada ultrapassar 103% da meta estabelecida para o ano, o valor excedente não poderá ser aproveitado nos anos subseqüentes.

§ 2º Para fins de cálculo do percentual da gratificação, o resultado decorrente da aplicação do inciso III será considerado até a segunda casa decimal, arredondando-o para o número imediatamente superior, quando a terceira casa decimal for igual ou superior a cinco, sendo desprezada quando inferior.

Art. 3º Com base na meta anual, o Secretário da Receita Federal estabelecerá, até o último dia útil do primeiro decêndio de cada trimestre civil, a meta correspondente ao trimestre.

§ 1º Para efeito de apuração trimestral e pagamento mensal da GDAT, aplicar-se-ão os critérios estabelecidos no artigo anterior.

§ 2º Na hipótese de a arrecadação efetiva do trimestre ser superior a 103% da meta fixada para o período, o valor excedente será:

I - utilizado, parcial ou totalmente, para compensar insuficiência de atingimento de metas de arrecadação de trimestres anteriores do mesmo exercício financeiro;

II - transferido para os trimestres subseqüentes, cumulativamente, respeitado o exercício financeiro.

Art. 4º Os eventuais desvios verificados entre os percentuais da GDAT, atribuídos trimestralmente em decorrência da realização trimestral das metas de arrecadação e os percentuais efetivamente devidos em função da realização das metas anuais, serão objeto de ajuste na remuneração, devendo ser feitas, no mês de fevereiro do ano subseqüente, as compensações referentes a valores da GDAT pagos a menor.

Art. 5º Excepcionalmente, para o ano 2002, prevalecerá a meta de arrecadação proposta pelo Secretário da Receita Federal na vigência da Portaria MF nº 148, de 9 de maio de 2000, ajustado nos termos do Decreto nº 4.120, de 7 de fevereiro de 2002, no valor de R$ 220.067.500.000,00 (duzentos e vinte bilhões, sessenta e sete milhões e quinhentos mil reais).

Art. 6º A Secretaria da Receita Federal estabelecerá os critérios e procedimentos necessários ao cumprimento desta Portaria.

Art. 7º Fica revogada a Portaria MF nº 148, de 2000.

Art. 8º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.

PEDRO SAMPAIO MALAN

Disponível em <http://www.fazenda.gov.br/portugues/legislacao/portarias/2002/portaria074.asp>