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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC SP Josenilde Silva Souza DESFILE DE MODA NOS ESPAÇOS DA CIDADE ABORDAGEM SEMIÓTICA DOS REGIMES DE VISIBILIDADE, DE IDENTIDADE, DE INTERAÇÃO E DE SENTIDO MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA SÃO PAULO 2011

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC SP ... · Desfile de moda nos espaços da cidade: abordagem semiótica dos regimes de visibilidade, de identidade, de interação

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC – SP

Josenilde Silva Souza

DESFILE DE MODA NOS ESPAÇOS DA CIDADE

ABORDAGEM SEMIÓTICA DOS REGIMES DE VISIBILIDADE,

DE IDENTIDADE, DE INTERAÇÃO E DE SENTIDO

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO

2011

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC – SP

JOSENILDE SILVA SOUZA

DESFILE DE MODA NOS ESPAÇOS DA CIDADE

ABORDAGEM SEMIÓTICA DOS REGIMES DE VISIBILIDADE,

DE IDENTIDADE, DE INTERAÇÃO E DE SENTIDO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como

exigência parcial para obtenção do título de Mestre

em Comunicação e Semiótica, sob a orientação da

Professora Doutora Ana Claudia Mei Alves de Oliveira.

SÃO PAULO

2011

SILVA, Josenilde Silva. Desfile de moda nos espaços da cidade: abordagem semiótica dos regimes de visibilidade, de identidade, de interação e de sentido / Josenilde Silva Souza. – 2011. 141 p. : il. : 30 cm.

Orientadora: Ana Claudia Mei Alves de Oliveira.

Dissertação de Mestrado apresentada ao curso de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011.

1. Semiótica. 2. Desfiles de Moda. I. Ana Claudia Mei Alves de Oliveira. II. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Comunicação e Semiótica. III. Título.

Banca Examinadora

____________________________

____________________________

____________________________

À minha pequena Amanda Weiss,

minha musa inspiradora

AGRADECIMENTOS

A Deus,

Aos meus pais, Jorge Rodrigues e Zenilde Souza,

pelo amor e exemplos de vida.

À minha orientadora, Ana Claudia Mei de Oliveira,

por depositar confiança e esperança quando eu pensei em não continuar.

A Luciano Ramos,

pelos momentos difíceis e pelo companheirismo.

Aos meus irmãos, amigos, colegas e alunos,

por fazerem parte da minha trajetória.

E à cidade de São Paulo,

pelas oportunidades profissionais – o sonho de criança do interior da Bahia.

RESUMO

Este trabalho analisa em que medida a escolha de um dado espaço da cidade

para a realização dos desfiles de moda é determinante para instaurar uma

nova configuração plástica e semântica. Na mudança do desfile de espaço

convencional, constituído por uma sala fechada, para um espaço aberto e não

convencional – por exemplo, um viaduto, uma rua ou um jardim –, investigamos

os modos de organização dos desfiles em distintos espaços, e de que maneira

estes modificam a sua estruturação, ao mesmo tempo em que redefinem a

cidade. Nessas modalidades de organização, intervêm significativamente os

parâmetros de espaço público e privado, assim como combinatórias desses

pólos com a categoria de base espaço fechado vs. espaço aberto. A semiótica

narrativa de Algirdas Julien Greimas e as conceituações de Eric Landowski são

o arcabouço teórico e metodológico para dar conta do problema de como os

modos de presença do desfile no espaço urbano agem na produção da

visualidade, da visibilidade e da identidade, bem como nos processos

comunicativos e interativos das performances. Um conjunto de desfiles foi

analisado a partir das seguintes hipóteses: 1) os desfiles constituem processos

sincréticos que articulam distintamente linguagens heterogêneas, a fim de

gerar desdobramentos comunicacionais promovidos pelo arranjo estético do

plano da expressão ao concretizar os investimentos semânticos do conteúdo;

2) as construções discursivas edificam modos de visualidade, de visibilidade e

de identidade dos criadores de moda e das marcas; 3) os desdobramentos dos

lugares da cidade produzem apreensões sensíveis e inteligíveis no público

inserido no discurso e 4) essas escolhas enunciativas são definidoras da

identidade do criador de moda e da marca, assim como do usuário e da cidade.

Registros fotográficos da pesquisadora delinearam o corpus imagético de

quatro desfiles de moda, observados no período compreendido entre 2005 e

2010: Maria Garcia (SPFW, inverno/2010), Cavalera (SPFW, verão/2010),

Fashion Mob (Casa dos Criadores/2010) e Karla Girotto (Fashion Rio,

verão/2005). O objeto deste trabalho resulta da observação direta da

pesquisadora das apresentações, destacando, entre os critérios de análise, a

experiência de ordem estética e estésica que os tipos de interação produzidos

nos espaços montam entre marca, criador de moda e público. Como conclusão

analítica, chegou-se à elaboração de quatro categorias de descrição e análise

dessa construção que faz ser o desfile, o criador de moda e a marca, as quais

poderão ser reoperadas em outros processos comunicacionais.

Palavras-chave: desfile de moda; sociossemiótica; regime de espaço; regime

de visibilidade; regime de interação e de sentido; construção de identidade.

ABSTRACT

This work analyzes to what extent the choice of a certain city space for the

performance of fashion shows is decisive to establish a new plastic and

semantic configuration. In the transition of the conventional space – formed by

an indoor room to an outdoor and unconventional space – for example, a

viaduct, a street or a garden – we investigate the fashion show’s ways of

organizations in different spaces and in what ways they modify their structuring

– and at the same time they redefine the city. In these modalities organizations

the parameters of public and private spaces significantly intervene – as much

as the engagements of these poles with the basic category open vs. closed

space. The narrative semiotics of Algirdas Julien Greimas and the postulations

of Eric Landowski are the theoretical and methodological frameworks used to

handle the problem of how the presence modes of the fashion show in the

urban space act in the production of visuality, visibility and identity, as well as

on the performances’ communicative and interactive processes. A set of fashion

shows was analyzed from the hypothesis: 1) the fashion shows compose

syncretic processes that articulate heterogeneous languages distinctly – in

order to generate communicational developments promoted by the aesthetic

arrangement of the expression plan by accomplishing the semantic investments

of the content; 2) the discursive constructions build new visuality, visibility and

identity modes of the fashion creators and their brands; 3) the city places’

unfolds produce sensible and intelligible apprehensions in the public inserted in

the discourse and 4) these enunciative choices define the identity of the fashion

creator and the brand, as much as its user and the city. Photographic records of

the researcher outlined the imagetic corpus of four fashion shows observed in

the period between 2005 and 2010: Maria Garcia (SPFW Winter/2010),

Cavalera (SPFW Summer/2010), Fashion Mob (Casa dos Criadores/2010) and

Karla Girotto (Fashion Rio, Summer/2005). The object of this research results

from the researcher’s direct observation of the performances, highlighting the

criteria for analysis - the experience of aesthetic and aesthesic order that the

types of interaction produced in the spaces build among brand, fashion creator

and public. The analytical conclusion allowed the elaboration of four description

categories and the analysis of this construction that make the fashion show, the

creator and the brand exist, which will be able to be reoperated in other

communicational processes.

Keywords: fashion show, sociosemiotics, space regime, visibility regime,

interaction and sense regime, identity construction.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Aimée Mullins desfila com próteses nas pernas para Alexander

McQueen, 1999 ............................................................................................... 16

Figura 2 – Desfile em um magazine, em 1903 ............................................... 22

Figura 3 – “Parada de manequins” estáticas num espaço aberto .................. 23

Figura 4 – Chá da tarde na Maison de Jeanne Paquin ................................... 24

Figura 5 – Desfile de Lady Duff Gordon num espaço fechado ....................... 24

Figura 6 - Desfile de Lady Duff Gordon na década de 1910 ........................... 25

Figura 7 – Manequins de Paul Poiret, em 1910 .............................................. 26

Figura 8 – Desfile num magazine, New York, em 1910 .................................. 26

Figura 9 – Chanel preparando o grupo de manequins antes de um desfile ... 27

Figura 10 – Jean Patou treinando suas modelos, em 1924 ............................ 28

Figura 11 – Desfile em um barco, em 1925, na Liverpool Week .................... 29

Figura 12 – Desfile da Maison Balmain, Palácio Pitti, Florença, em 1951 ...... 30

Figura 13 – Desfile da Câmara Sindical da Costura Parisiense em

Estocolmo, em 1959 ........................................................................................ 30

Figura 14 – Desfile de Pierre Balmain, numa adega em Londres, 1965 ........ 31

Figura 15 – Desfile Paco Rabanne, em 1968 ................................................. 32

Figura 16 – Mary Quant com modelos, em 1968 ............................................ 33

Figura 17 – Desfile numa pista de pouso de avião, em Londres, 1965 .......... 35

Figura 18 – Desfile de Miuccia Prada, em 2011, inspirado em Yves Saint

Laurent ............................................................................................................. 37

Figura 19 – desfile de Castelbajac inspirado em Courréges, em 2000 .......... 37

Figura 20 – Desfile de Castelbajac inspirado em Andy Warhol, em 1984 ...... 38

Figura 21 – Desfile espetacular de Thierry Mugler, em Paris, em 1995 ......... 40

Figura 22 – Desfile de Alexander McQueen, em 2001 ................................... 41

Figura 23 – Apresentação com holograma da modelo Kate Moss no desfile

de McQueen, realizado em Paris, em 2006 ..................................................... 42

Figura 24 – O desfile da dupla Viktor & Rolf, transmitido ao vivo pelo site

oficial da grife, em 2009 ................................................................................... 42

Figura 25 – Vídeo-desfile da coleção Outono-Inverno 2011 da Ellus,

para a SPFW, em São Paulo ........................................................................... 43

Figura 26 – Desfile da coleção “Black Hole” da dupla Viktor & Rolf,

apresentada em Paris, em 2001 ...................................................................... 44

Figura 27 – Desfile multimídia da Burberry, em Pequim, em 2011 ................. 44

Figura 28 – Modelos fazendo pose após um desfile para a Casa Canadá,

no Rio de Janeiro, em 1950 ............................................................................. 46

Figura 29 – Modelo desfilando para a Casa Canadá, em 1950 ...................... 46

Figura 30 – Cartaz de 1952 inspirado no grafismo da Semana de Arte

Moderna de 1922 ............................................................................................. 47

Figura 31 – Desfile de Jum Nakao no Phytoervas Fashion, em 1997 ............ 49

Figura 32 – Desfile de Walter Rodrigues, no Rio de Janeiro, em 2007 .......... 51

Figura 33 – Desfile da Blue Man, no Fashion Rio, em julho de 2007 ............. 51

Figura 34 – Passarela em forma de “I” desfile de Madame Vionnet, 1924 ..... 61

Figura 35 – Sala de desfile de moda do Magazine Printemps, passarela em

forma de “I”, em 1937 ...................................................................................... 61

Figura 36 – Passarela em forma de “U”, desfile de Glória Coelho, 2009 ....... 61

Figura 37 – Marina Ximenes no desfile da Maria Garcia ................................ 62

Figura 38 – Desfile de Chalayan, em 2006 ..................................................... 65

Figura 39 – Desfile de Ronaldo Fraga, 2005 .................................................. 68

Figura 40 – Passarela do desfile da marca Maria Garcia, em 2010 ............... 74

Figura 41 – Cenografia do desfile “Neutro”, de Karla Girotto, 2006 ............... 75

Figura 42 – Passarela na via expressa da cidade, desfile Cavalera, 2010 .... 76

Figura 43 – Desfile Fashion Mob, 2010 .......................................................... 78

Figura 44 – Espaço interno do Pavilhão da Bienal em SP ............................. 80

Figura 45 – Bienal de Arquitetura, em 2009 ................................................... 81

Figura 46 – Adventure Sports Fair, em 2008 ……….........……………………. 82

Figura 47 – Mapa de localização do Parque Ibirapuera ................................. 82

Figura 48 – Ambiência do SPFW .................................................................... 83

Figura 49 – Rampa que dá acesso aos pisos de desfiles do SPFW .............. 84

Figura 50 – Café localizado no primeiro piso do SPFW ................................. 77

Figura 51 – Público no pavilhão da Bienal, no SPFW .................................... 85

Figura 52 – Frente do convite que dá acesso ao Pavilhão ............................. 85

Figura 53 – Convite do desfile da marca Maria Garcia ................................... 86

Figura 54 – Começo do desfile da marca Maria Garcia .................................. 87

Figura 55 – Modelos desfilando ao longo da passarela para Maria Garcia .... 89

Figuras 56 – Ângulo do fotógrafo que está posicionado na frente da

passarela de Maria Garcia ............................................................................... 90

Figuras 57 – Ângulo do fotógrafo, posicionado na frente da passarela de

Maria Garcia .................................................................................................... 91

Figura 58 – visão do público sentado ao longo da passarela no desfile de

Maria Garcia .................................................................................................... 92

Figura 59 – Final do desfile ............................................................................. 92

Figura 60 – Desfile da Cavalera, no Rio Tietê, em São Paulo, 2008 .............. 94

Figura 61 - Mapa de localização do desfile Cavalera 2009 ............................ 95

Figura 62 – Vista aérea da parte superior do Elevado Costa e Silva ............. 96

Figura 63 – Desenho geométrico do Elevado Costa e Silva ........................... 97

Figura 64 – Elevado Costa e Silva durante a semana .................................... 98

Figura 65 – Elevado Costa e Silva no domingo, como um espaço de

convivência social ............................................................................................ 98

Figura 66 – Minhocão visto de cima para baixo .............................................. 99

Figura 67 - Convite do desfile da Cavalera, em 2009 ....................................100

Figura 68 – Desfile da Cavalera sobre o Elevado Costa e Silva ...................103

Figura 69 – O público convidado e as cadeiras vermelhas ...........................104

Figura 70 – Convidados e celebridades nas cadeiras vermelhas ................. 105

Figura 71 – Desfile da Cavalera, em 2009 .....................................................107

Figura 72 – Desfile da Cavalera, em 2009 ....................................................108

Figura 73 – Desfile da Cavalera, em 2009 .....................................................109

Figura 74 – Desfile da Cavalera no Elevado, em 2009 ..................................110

Figura 75 – Desfile da Cavalera no Elevado, em 2009 ..................................110

Figura 76 – Acessórios da grife, com estampa da bandeira de São Paulo .. 111

Figura 77– Bebê com peças estilizadas da bandeira de São Paulo ............. 111

Figura 78 – Mais um modelo com roupa estlizada da bandeira paulista ...... 111

Figura 79 – Desfile da Cavalera, em 2009 .................................................... 112

Figura 80 – Final do desfile da Cavalera, em 2009 ...................................... 113

Figura 81 – Mapa de localização do desfile Karla Girotto ............................ 114

Figura 82 – O jardim do MAM no Rio de Janeiro .......................................... 115

Figura 83 – O jardim do MAM no Rio de Janeiro .......................................... 115

Figura 84 – Convite do desfile “Neutro”, verão/2005 .................................... 116

Figura 85 – Desfile “Neutro”, verão/2005 ...................................................... 118

Figura 86 – Detalhe das camas nas paralelas .............................................. 119

Figura 87 – Detalhe da modelo colocando os sapatos na gaiola ................. 119

Figura 88 – Modelo realmente dormindo, como parte da performance ........ 120

Figura 89 – Marilyn Monroe, uma referência de beleza dos anos 50 ........... 120

Figura 90 – Modelo 1 dormindo: plano fechado ............................................ 122

Figura 91 – Modelos dormindo: plano aberto ............................................... 122

Figura 92 – Detalhe da modelo 1 calçando o sapato .................................... 122

Figura 93 – Detalhe da modelo 1 caminhando após se calçar ..................... 122

Figura 94 – Modelo desfilando uma releitura New Look, de Dior, de 1947... 115

Figura 95 – O percurso do desfile Fashion Mob ........................................... 124

Figura 96 – Painel que serve de fundo para fotografias do Fashion Mob .... 125

Figura 97 – O desfile Fashion Mob passando pela estação da Luz ..............127

Figura 98 – As modelos em fila indiana pelas ruas do centro da cidade ...... 128

Figura 99 – A quadratura axiológica ............................................................. 129

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Formantes plásticos – Elevado Costa e Silva ............................... 97

Tabela 2 – Pares de oposição relativos às partes superior e inferior do

Elevado Costa e Silva .................................................................................... 100

SUMÁRIO

1 POR UMA VISIBILIDADE DOS DESFILES DE MODA ........................ 15

2 BREVE HISTÓRICO DOS DESFILES DE MODA ................................ 20

2.1 As origens dos desfiles de moda ................................................ 20

2.2 A trajetória dos desfiles de moda no Brasil ................................ 46

2.3 Os tipos de desfile de moda........................................................ 53

3 ABORDAGEM SEMIÓTICA DO DESFILE DE MODA .......................... 55

3.1 Operacionalização conceitual ..................................................... 55

4 A ATUALIDADE DOS DESFILES DE MODA NO BRASIL .................. 72

4.1 Usos da topologia nos desfiles de moda ................................... 72

4.2 Análise dos desfiles ................................................................... 80

4.2.1 Espaço fechado/privado: Maria Garcia ............................ 80

4.2.2 Espaço aberto/privado: Cavalera ..................................... 94

4.2.3 Espaco aberto/privado: Karla Girotto ............................ 114

4.2.4 Espaço aberto/público: Fashion Mob ............................. 125

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................ 131

BIBLIOGRAFIA .............................................................................................. 135

15

1. POR UMA VISIBILIDADE DOS DESFILES DE MODA

Ao longo de sua trajetória, que acaba de ultrapassar um século, o desfile

de moda deixou de ser mero prolongamento das vitrinas, nas quais as lojas de

roupas mostravam seus produtos em eventos complexos, e se tornou um

diálogo com as artes cênicas, a performance, o marketing e a publicidade de

marca. Atualmente, o desfile ocorre em diferentes espaços e caracteriza-se

pela busca de diversas formas e maneiras de se expressar, com o intuito de

obter visibilidade para os seus produtos.

Os primeiros desfiles de alta costura do país aconteceram em 1944, no

Rio de Janeiro, com a inauguração da Casa Canadá. O objetivo era mostrar as

novas coleções para a imprensa por meio de “manequins vivos”. Contudo, em

São Paulo, em meados da década de 1920, a Mappin Stores da Praça do

Patriarca já realizava desfiles de moda com “modelos vivos” para apresentar as

roupas femininas das coleções semestrais. Se esses eventos dos primeiros

tempos funcionavam apenas como mostruários animados de roupas à venda,

com o passar dos anos, transformaram-se também em vitrinas para o trabalho

dos estilistas.

A trajetória dos desfiles confunde-se com as mudanças observadas no

próprio conceito de fashion designer, segundo o qual a figura do costureiro

passou de artesão a artista e adquiriu o status de autor ou estilista a partir dos

anos 1980. Nesse processo, aquilo que nasceu como simples recurso de

venda foi se diversificando e adquirindo cada vez mais complexidade, a ponto

de pressionar os limites de sua concepção como exibição de produtos, ao

enlaçar-se a determinadas manifestações artísticas e formas de espetáculos

que são atraentes por si mesmas e relativamente descoladas dos produtos que

lhes deram origem.

Em muitas publicações especializadas, por exemplo, vemos entrevistas

como a do estilista inglês Alexander McQueen (Londres, 1969-2010), na qual

ele declarou que usava seus desfiles para desencadear emoções traumáticas e

angústia em sua plateia. Um caso que ratifica suas palavras é o desfile Outono-

Inverno de 1999, em que a atleta norte-americana Aimée Mullins (Pensilvânia

16

1976), que teve suas pernas amputadas com um ano de idade, desfilou com

próteses nas pernas e botas especialmente desenhadas pelo estilista. A

inusitada escolha da modelo desencadeou uma comoção na plateia, ao mesmo

tempo em que proclamava o acesso à moda a outros segmentos de público

alvo.

Figura 1 - Aimée Mullins desfila com próteses nas pernas para McQueen, em 1999.

(Fonte: http://images.mitrasites.com/aimee-mullins.html)

No Brasil, em termos de inovação e distanciamento das formas

corriqueiras e habituais de desfile de moda, podemos citar os trabalhos dos

estilistas Ronaldo Fraga, Jum Nakao e Karlla Girotto, além das marcas

Cavalera e Ellus, que têm recorrido a mecanismos igualmente inusitados e

surpreendentes.

A partir da década de1960, a criação de moda que residia na alta

costura, passa gradativamente à confecção, e a isso se seguiu a necessidade

de ocupar agressivamente a mídia, por força mesmo da ferocidade da

competição entre as marcas. Nesse sentido, os desfiles (fashion shows)

tornaram-se cada vez mais espetaculares e midiáticos para garantir a

sobrevivência dos polos de arte e indústria, que se manterão em permanente

colaboração (GRUMBACH, 2010).

17

Em 1972, na revista Paris Fashion, a jornalista Hébé D‟Orsay profetizava

que costura e prêt-à-porter se assemelham cada vez mais, graças ao avanço

das técnicas de fabricação (...) [e] simplesmente a alta costura deverá se tornar

o aspecto luxuoso do prêt-à-porter. Por seu lado, Didier Grumbach postula:

A alta costura não é uma sobrevivência inútil do passado, mas um trunfo para o futuro da indústria. Nessa nova configuração, os desfiles de moda conservam a sua absoluta necessidade. Será que, para comemorar o seu aniversário de um século, eles inventarão um jeito melhor de valorizar as roupas? Poderia haver para elas um suporte tão excitante quanto o corpo humano? (Grumbach, 2010, p.141)

De fato, mesmo mantendo o desfile em seus componentes básicos −

modelo, roupa, passarela e público –, os seus modos de inserção no espaço

têm criado novas e inesperadas possibilidades, como mostraremos neste

trabalho. Para compreendermos melhor essa nova realidade da indústria da

moda, os paradoxos das aproximações entre o espaço público e o espaço

privado, que têm sidos explorados nos contextos dos desfiles de moda,

optamos por estudá-los pelo viés da teoria e metodologia semiótica de linha

francesa. Os desfiles que fazem parte do nosso corpus foram selecionados em

função dos locais escolhidos pelos estilistas e marcas para apresentar seus

produtos ao público.

Essa teoria nos permitirá tanto o estudo dos enunciados dos desfiles

como o de seus procedimentos enunciativos. Assim, nosso objeto de pesquisa

é capaz de ser abordado semioticamente à altura de suas explorações e

ocorrências diferenciadas, marcadas pela busca de distinção da concorrência.

Como veremos, muito de um desfile torna-se um tipo de ocorrência cujo

sentido é proposto ao público da moda para ser uma vivência em ato, ou seja,

um sentido que é processado na e pela duração do desfile.

Com o propósito de estudar tanto o desfile convencional como os que

têm uma nova organização, este trabalho pretende descrever e interpretar os

modos de presença dos desfiles de moda, em especial, considerando a

participação do público no mundo criado pelo desfile, que projeta distintas

formas de participação. Como essas formas estão plasmadas nas escolhas

discursivas do enunciador? Quais são as astúcias em colocar o público em

18

contato físico com a moda? O que esses modos de interação acrescentam no

sentido de tipos de construção da significação aos desfiles de moda? Como

elaborar uma tipologia que dê conta da extrema diversidade de formas e

linguagens atualmente observada no universo dos desfiles? Na medida em que

os desfiles convencionais continuam a existir na prática mercadológica da

moda, como garantir que essa tipologia possa os incluir ao lado dos não

convencionais, numa categorização capaz de abranger a totalidade dos

desfiles?

Para efetuar tal análise, esta pesquisa percorre um caminho que se

inicia numa breve história da origem dos desfiles de moda no mundo e no

Brasil. A seguir, mergulha-se na abordagem semiótica da estruturação dos

desfiles, tratando os elementos constitutivos e suas articulações sincréticas

para plasmar o plano do conteúdo. Utilizamos como pressupostos teóricos a

semiótica discursiva sob o olhar analítico de Algirdas Julien Greimas e seus

colaboradores, como Jean-Marie Floch e Eric Landowski, que substanciam a

nossa abordagem do sincretismo dos desfiles de toda ambiência visiva do

espaço comunicante, que é articulado como um todo de sentido.

Em semiótica, texto e prática podem ser analisados por seus modos de

presença, que impõem um estudo dos modos de enunciação do enunciado, o

que nos levou a recortar as contribuições das estratégias de enunciação global

de Floch.

A correlação entre esses modos de enunciar e os modos de presença é

apoiada em Landowski, no tocante à formação de um sistema em que os

regimes de sentido se articulam pelos regimes de interação, e em Ana Claudia

de Oliveira, na interpretação das “interações discursivas”.

Nossa busca na semiótica greimasiana tem como objetivo esse encontro

do melhor levantamento dos aspectos pertinentes ao nosso objeto de estudo,

pois é visualizando tais aspectos que se nos mostram os percursos de como

estudá-los. Ou seja, seria necessário identificar, num universo imenso de

opções, quais os desfiles a serem aqui analisados. De acordo com o que dizem

Kathia Castilho e Marcelo M. Martins:

19

a concretização ou figurativização desse destinador manipulador que apontamos como “desfile” pode ser realizada a partir de um estilista-criador ou de uma empresa em particular: nos exemplos apresentados, citamos Mario Queiroz, Ronaldo Loureiro, Fórum e Cavalera. Esses sujeitos, com suas respectivas construções que tratam de tendências, são, por fim a concretização do destinador manipulador da moda de passarela. (CASTILHO e MARTINS, 2005, p. 68)

Tendo essa conceituação como parâmetro, iniciou-se um processo de

seleção que levou em conta determinados critérios preliminares, tais como o

fato do desfile ter sido presenciado pela pesquisadora e a necessidade de

encontrar marcas e “estilistas criadores” que tivessem escolhido lugares bem

diversos entre si para apresentar suas coleções. Foram selecionados, então,

os seguintes desfiles: Maria Garcia (SPFW, inverno/2010), Cavalera (SPFW,

verão/2010), Karlla Girotto (Fashion Rio, verão/2005) e Fashion Mob (Casa dos

Criadores/2010), a partir do critério de uso do espaço de ocorrência do desfile.

Os ambientes e as ambientações vão especificar a sua organização

como definidores dos tipos de desfiles. Cada um desses eventos acontece num

determinado lugar da cidade, ocupado de uma forma própria: num pavilhão do

parque Ibirapuera, durante o São Paulo Fashion Week; ao ar livre, no jardim do

Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; no elevado Costa e Silva, em São

Paulo; e nas ruas do centro paulista. Nesse sentido, são representativos dos

quatro modos possíveis de articulação dos desfiles com o território urbano.

Com esse exercício, objetivamos propor uma tipologia de usos do espaço que

podem orientar diversos outros estudos sobre o assunto.

20

2. BREVE HISTÓRICO DOS DESFILES DE MODA

2.1. As origens dos desfiles de moda

A palavra desfilar, segundo o Dicionário Aurélio (FERREIRA, 2009), tem

como quarta definição “ostentar com alarde, exibir”. Essa definição vem ao

encontro do ato de desfilar, no qual estilistas, grifes e maisons baseiam e

apresentam suas criações e leituras dos anseios de uma sociedade capitalista

que busca freneticamente o novo, o inédito e o consumo. Semestralmente,

cada marca lança no mercado uma nova coleção, com a missão de seduzir o

público, fazendo-o crer que precisa e deve ter aquilo que apresentam. Assim,

temos novos produtos e estilos, novas formas de ser e parecer.

Na verdade, o desfile é apenas a segunda extremidade do processo de

produção e o espetáculo para expor o produto final. Entretanto, há uma rede de

produção, incluindo a indústria têxtil e o mercado de moda. O sistema atual de

moda, com coleções de grande volatilidade lançadas conforme as estações,

tem origem no século XIX, na França. Com a industrialização e o

enriquecimento dos Estados-nações, os burgueses e a monarquia esbanjavam

dinheiro em uma vida luxuosa. Uma das formas de exibição do status social se

fazia através das roupas, que serviam para diferenciar as classes sociais e

despertar a admiração e a inveja.

Observando o mercado, o costureiro inglês instalado em Paris Charles

Frederick Worth (Lincolnshire, 1825-1895) percebeu que, se criasse coleções

de roupas seguindo as estações, a sua clientela compraria mais das suas

peças. Ele, então, passou a lançar duas coleções por ano a partir de 1858.

Atendendo à elite social da época, ele atuava como profissional de alta costura,

comercializando roupas exclusivas, porém, seguindo os modelos da coleção

referente à estação vigente.

Para que suas clientes visualizassem suas propostas, o costureiro

passou a recorrer a modelos que desfilavam as peças. Embora Worth tenha

percebido a necessidade de elaborar peças adequadas às temperaturas, suas

coleções e seus lançamentos não eram marcados em datas pré-estabelecidas.

Segundo o sociólogo francês Gilles Lipovetsky:

21

A verdadeira originalidade de Worth, de quem a moda atual continua herdeira, reside em que, pela primeira vez, modelos inéditos, preparados com antecedência e mudados frequentemente, são apresentados em salões luxuosos aos clientes e executados, após escolha, em suas medidas. Revolução no processo de criação, que foi acompanhada, além disso, de uma inovação capital na comercialização da moda e de que Worth é ainda o iniciador: os modelos, com efeito, são usados e apresentados por mulheres jovens, os futuros manequins, denominados, na época, “sósias”. Sob a iniciativa de Worth, a moda chega à era moderna; tornou-se uma empresa de criação, mas também de espetáculo publicitário. (LIPOVETSKY, 2003, p.71)

Ao criar um sistema de produção e difusão, Worth revolucionou o

processo criativo da moda, sendo um dos primeiros criadores a perceber que a

moda não somente vende roupas, mas também cria a imagem de uma marca,

além de atender aos anseios do seu cliente consumidor. Ávidas pela novidade

e exclusividade, suas clientes foram receptivas à sua proposta de produzir e

vender duas coleções anuais, que eram apresentadas por modelos em

ambiente privado.

O estilista continua sendo reconhecido como o “fundador da alta costura”

até os dias atuais, tendo aberto caminho para outros profissionais da moda,

como os franceses Paul Poiret (Paris, 1879-1944) e Jeanne Paquin (Saint-

Denis, França, 1869-1936).

Visionário, Worth criou tendências. Segundo Georgina O‟hara, (1999, p.

290), “na década de 1860, lançou o vestido-túnica, uma veste que ia até o

joelho e era usada sobre saia longa”. Ele também lutou pela profissionalização

e reconhecimento da alta costura, participando da criação de uma associação

que defendia os interesses do mercado de moda.

Por alta costura entende-se a criação, em escala artesanal, de peças

únicas, elaboradas com produtos sofisticados e bordados exclusivos,

executadas por profissionais altamente especializados, comercializadas com

preços elevados e destinados às classes financeiramente abastadas.

Para atuar como estilista nesse tipo de produção, o profissional deveria

ser membro da “Federação Francesa da Costura, do Prêt-à-porter, dos

Costureiros e dos Criadores de Moda”, além deproduzir, a cada temporada,

trinta e cinco trajes para serem desfilados, empregar pelo menos quinze

funcionários e, de preferência, ter seu ateliê/showroom na França. Atualmente,

22

apenas onze maisons francesas (Adeline André, Anne-Valérie Hash, Chanel,

Christian Dior, Christian Lacroix, Dominique Sirop, Emanuel Ungaro, Jean-Paul

Gaultier, Givenchy, Franck Sorbier e Maurizio Galante) fazem parte da

federação, além de quatro estrangeiras (Elie Saab, Giorgio Armani, Valentino e

Martin Margiela).

O desfile de moda desempenha um papel fundamental na indústria da

moda. Segundo o semioticista Eric Landowski, em sua obra “Presença do

Outro” (2002, p.94), a moda é um princípio de organização social cuja função

essencial consiste, no máximo em classificar: instância normativa, a moda

regulariza a evolução de códigos de comportamento diferenciados.

A partir do século XX, o mercado do prêt-à-porter, seguindo o mesmo

caminho de exibição de produtos adotada pela alta costura, começava a

promover seus primeiros desfiles de moda. Utilizava mulheres como

“manequins vivos”, que se apropriavam do gestual dos manequins expostos

nas vitrinas dos magazines, em desfiles que aconteciam nas lojas de

departamentos, nas quais, inclusive, se iniciou a prática dos desfiles de moda

no Brasil, no início do século XX.

Figura 2 – Desfile em um magazine, em 1903, com a modelo mimetizando a postura de uma manequim de vitrina. Ela caminha ao som de música sobre um palco. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)

Ao analisar os desfiles de moda sob uma perspectiva histórica, percebe-

se que eles significavam, inicialmente, uma tentativa dos costureiros de

quebrar a continuidade nos modos de apresentação de suas criações,

23

usualmente orientados pela mera exposição em vitrinas, isto é, de imagens

paradas.

Figura 3 – Uma “parada de manequins” estáticas num espaço aberto, os desfiles eram apresentados nos jardins em 1913. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)

A couturière Jeanne Paquin pode ser considerada, juntamente com

Worth, pioneira na comunicação de moda moderna. Ela tornava os desfiles

verdadeiros espetáculos apresentados em teatros. Em outras ocasiões,

mandava suas manequins passearem nos lugares de moda ou em pontos de

encontro sociais.

Alguns estilistas contratavam mulheres para exibir suas criações em

locais elegantes, com fizeram Coco Chanel (Saumur – França, 1883-1971) e

Paul Poiret, que foi o primeiro a conceber um desfile no verão e outro no

inverno, além de produzir a primeira apresentação para um fotógrafo e um

jornalista, publicada na revista “Ilustration”. Ele pode ser considerado um dos

precursores do emprego do marketing pessoal, atualmente praticado pelos

estilistas em seus desfiles. Outra prática desses criadores era ceder roupas da

sua coleção para as atrizes do cinema e do teatro ou para as personalidades

femininas formadoras de opinião.

24

Figura 4 – Chá da tarde na Maison de Jeanne Paquin, em que as manequins se misturavam às clientes do estabelecimento. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)

Figura 5 – Lady Duff Gordon promovia seus desfiles nos espaços fechados para atrair mais espectadores homens do que mulheres. Não existe uma passarela fixa. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)

A historiadora inglesa Caroline Evans, em seu artigo “O espetáculo

encantado” (2002), informa que a estilista inglesa Lady Duff Gordon (Londres,

1863-1935), também conhecida como Lucile, foi a responsável pela introdução

do uso de iluminação e música, bem como de um pequeno informe

descrevendo os detalhes das roupas que eram exibidas. Ela inserira seus

“desfiles de manequins” no mercado e no mundo da moda, exportando-os, com

imenso sucesso, de Londres para Nova York e Paris nas primeiras duas

décadas do século XX. Segundo definição da pesquisadora de moda Carol

Garcia:

Lucile foi a primeira a conceber a ideia de desfile como espetáculo ao enviar convites para clientes de ambos os sexos, nomear os trajes

25

sugestivamente e criar uma ambientação própria para a apresentação, detalhes esses que funcionariam dali por diante como coadjuvantes num desfile de moda. Quando as modelos entravam na passarela de Lucile, acompanhadas pela música que ritmava seu caminhar em direção à plateia, uma tensividade armava-se pela variação proxêmica entre manequim e cliente, gerando um encadeamento (de olhar, audição e tato) na continuidade ditada pelo ritmo. (GARCIA, 2005)

De modo geral, os primeiros desfiles não passavam de exibições

enfadonhas, com música de orquestra e chá para os clientes. Entretanto, logo

ganharam textos simples e cenários elaborados como em The Seven Ages of a

Woman, que foi dividido em sete atos, como numa peça teatral (EVANS, 2002).

Para compreender os desfiles na contemporaneidade, é preciso

entender suas transformações no decorrer das décadas, que incidiram nos

seus efeitos de manipulação do público-alvo. Com relação à sua duração, os

desfiles se repetiam ao longo da semana, ao contrário dos desfiles atuais, que

duram em média vinte minutos.

Figura 6 - Desfile de Lady Duff Gordon na década de 1910, num espaço fechado, aproximando as clientes, que ficam sentadas no salão com uma maior aproximação com a modelo e o produto. (Fonte: VILASECA, E. Desfiles de moda: diseño, organización y desarrollo. Barcelona: Promopress, 2010)

Evans (2002) descreve que os desfiles de Lucile duravam em torno de

três horas e eram apresentados, em média, por cinquenta modelos. Por trás do

“espetáculo encantado”, fechavam-se negócios. O fato é que, desde sua

origem, os desfiles de moda buscaram introduzir dramaticidade nas

26

apresentações, como foram pautados os desfiles de Lucile, Poiret, Patou,

Paquin e Chanel.

Figura 7 – Manequins de Paul Poiret, em 1910, no jardim de sua Maison, ainda num espaço é privado. (Fonte: GRUMBACH, D. Histórias da moda. Trad. Dorothée de Bruchard, Joana Canêdo, Flávia Varela e Flávia do Lago. Sao Paulo: Cosac Naify, 2009)

Figura 8 – Desfile num espaço fechado, num magazine em New York, em 1910. Ao lado da passarela carpetada em forma de “T”, podemos perceber a formação de filas. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)

Nos anos 1920, os estilistas franceses Coco Chanel e Jean Patou

desenhavam, num lance de modernidade para seu tempo, um corpo funcional,

antidecorativo, aerodinâmico e disciplinado, que era cultuado nos desfiles. A

repetição serial das modelos na passarela recebia a influência da linguagem

estética modernista, exaltando as belezas da produção em massa (EVANS,

2002).

27

Figura 9 – Chanel preparando o grupo de manequins antes de um desfile, em 1938. As manequins da época costumavam trabalhar para um só costureiro, pois cada ateliê procurava um perfil que representasse seu estilo. (Fonte: CHARLES-ROUX, E. A era Chanel. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2007).

Chanel orientava suas manequins a adotarem uma postura única da

cintura para frente, ombros caídos, um pé na frente do outro, uma mão na

bolsa e a outra gesticulando. Era um corpo-presença na passarela, imaginado

em relação à presença da mulher social. Dessa forma, a manequim começava

a se distanciar da mulher comum, assumindo a figura de um ser especial na

sociedade. Lipovetsky diz que

A moda moderna caracteriza-se pelo fato de que se articulou em torno de duas indústrias novas, com objetivos e métodos, com artigos e prestígios sem dúvida nenhuma incomparáveis, mas que não deixam de formar uma configuração unitária, um sistema homogêneo e regular na história da produção das frivolidades. A alta costura, de um lado, inicialmente chamada de costura, a confecção industrial do outro – tais são as duas chaves da moda de cem anos, sistema bipolar fundado sobre uma criação de luxo e sob medida, opondo-se a uma produção de massa, em série barata, imitando de perto ou de longe os modelos prestigiosos de grifes da alta costura. (LIPOVETSKY, 2003, p.70)

28

Figura 10 – Jean Patou treinando suas modelos, em 1924 (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)

A respeito dessas cópias, em 1921,a estilista francesa Madeleine

Vionnet (Paris, 1876-1975), exasperada com o número de cópias de seus

modelos de roupas, fez um acordo com os ateliês de Eva Boëx, autorizando-os

a reproduzir suas roupas em até três exemplares por peça. Essas condições

visavam evitar a falsificação selvagem e se encaixavam no processo artesanal

de exploração da linha de costura existente (GRUMBACH, 2010).Vionnet

ganhou dois processos judiciais contra falsificadores de seus produtos e

instituiu a criação de uma nova jurisprudência que protegesse as criações de

alta costura.

Em 1930, a estilista italiana Elza Schiaparelli (Roma, 1890-1973) foi a

primeira a contratar uma empresa cinematográfica e a introduzir nos seus

desfiles temas como o circo, o conto de fadas e a Commedia Dell’arte. Tornou-

se pioneira ao usar a música de Vivaldi e Pergolesi, inserir personagens,

artistas e trupes de comediantes, além de gestuais da dança para um show de

brincadeiras e sedução.

Schiaparelli era uma profissional extravagante que gostava de interagir

com os artistas e exibir suas criações. Ela é responsável pela inclusão da cor

“rosa choque” (“Shocking Pink”) no universo da moda e por experimentar

desenhos de impressão de jornal como estampa em suas roupas. Ela mantinha

um diálogo muito próximo entre a moda e as artes plásticas, inserindo-as de

forma teatral e exuberante em suas peças. Chanel, sua maior rival profissional

na época, a chamava de “a artista italiana que faz roupas”.

29

Ao lado das estratégias criadas para dar visibilidade às criações e aos

estilistas em eventos caracterizados pelo espetáculo, a moda faz uso de várias

artes, encontrando novos caminhos para animar a comercialização dos seus

produtos em grandes magazines, galerias parisienses e em exposições

universais. Na análise de Lipovetsky (2003), seria uma tática inovadora do

comércio moderno, fundamentada na teatralização da mercadoria, no reclame

feérico e na solicitação do desejo.

Figura 11 – Desfile em um barco, em 1925, na Liverpool Week. Apesar de este evento ter sido realizado a céu aberto, o desfile aconteceu um espaço fechado pelos limites da embarcação. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)

Com seus manequins de sonho, réplicas vivas e luxuosas das vitrinas

atrativas, a alta costura contribuiu para essa grande revolução comercial

sempre em curso, que consiste em estimular e em justificar a compra e o

consumo através de estratégias de encenação publicitária. Além das artes, a

publicidade e o comércio também vão se imbricar na produção de moda.

30

Figura 12 – Desfile da Maison Balmain no pátio do Palácio Pitti, de Florença, em 1951. A espacialidade deste desfile é fechada, mesmo tendo acontecido ao ar livre, numa praça pública. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)

Figura 13 – Desfile da Câmara Sindical da Costura Parisiense, na prefeitura de Estocolmo, em 1959. Ainda que tenha acontecido em frente ao prédio da prefeitura, com uma passarela elevada, a espacialidade deste desfile é fechada. O desfile chega a ter duração de 1 hora e meia e um jantar era servido para o público presente, com música ao vivo. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006).

Com a quebra da bolsa de valores de Nova York, em 1929, e as duas

Guerras Mundiais, a moda, principalmente a alta costura, sofreu um grande

impacto. Na França, poucas maisons sobreviveram. Contudo, em meados de

1940, o estilista francês Christian Dior (Granville, 1905-1957) lança coleções de

grande impacto, resgatando o prestígio e a soberania da alta costura parisiense

no mundo.

A coleção New look é considerada a responsável pelo renascimento da

alta costura. Sua base são as criações inspiradas nos modelos dos anos de

31

1930 e 1940, tornando-se referência na década de1950. É um estilo

acentuadamente feminino, com ombros redondos e estreitos, cintura muito

marcada, busto e quadris acentuados. A saia é rodada com comprimento

abaixo do joelho.

Tanto as roupas quanto os desfiles de Dior contrastavam com a moda

austera da época. Assim como os de Pierre Balmain (Savoia, 1914-1982), seus

desfiles eram teatralizados e provocavam fascínio nas plateias por suas mise-

en-scènes inteiramente ligadas às encenações teatrais, além de trazer de volta

o uso de cintas, anáguas, barbatanas e luvas, acessórios que haviam sido

eliminados com o “novo corpo” configurado por Poiret. Esse resgate ao

passado e sua capacidade de transformar os acessórios em recursos cênicos

privilegia a postura da modelo em relação ao seu movimento.

Figura 14 – Desfile de Pierre Balmain, realizado numa adega em Londres, em 1965. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)

Na década de 1950 e começo dos anos de 1960, os desfiles da alta

costura parisiense eram realizados no ateliê do próprio estilista ou em algum

salão de gala. Durante a temporada, eles aconteciam na parte da tarde,

apresentando duração média de uma hora e quinze minutos, com as modelos

voltando à passarela para apresentar as roupas aos clientes. Cada estilista

mantinha um grupo de modelos que desfilava para o ateliê, marcando o modo

32

de se portar e sua gestualidade, caracterizando o estilo do criador. Assim, por

exemplo, existia o estilo de desfilar de Yves Saint-Laurent (Oran, Argélia, 1936-

2008) chamado de “estilo Dior”, pois o estilista assumiu, em 1958, o cargo de

criador da marca com a morte de Dior.

Já o estilista ítalo-francês Pierre Cardin (San Biagio, 1922) recrutava

modelos orientais, enquanto o estilista franco-espanhol Paco Rabanne (Pasaia,

1934), nos anos 1960, colocava modelos negras na passarela. Em todos eles,

nota-se uma busca de individualização distintiva da marca.

Figura 15 – Desfile Paco Rabanne, num espaço fechado em 1968. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)

A estilista inglesa Mary Quant (Londres, 1934) lançou, nos anos 60, uma

moda jovem e acessível, inspirada na cultura pop e com a qual teve um grande

sucesso e repercussão na mídia. Ela ainda recebeu a autoria da invenção da

minissaia ao lado do estilista francês André Courrèges (Pau, 1923). De acordo

com Evans (2002), ela fez uma turnê para apresentar sua coleção ao som do

jazz.

Repetindo a ideia para a imprensa de Londres, ela exibiu quarenta looks

em catorze minutos. Segunda as pesquisadoras de moda Carol Garcia e Ana

Paula Miranda (2005), a atividade de stylist como conhecemos atualmente, foi

inventada por Quant. Segundo Marco Sabino, o stylist é o

33

profissional que define a imagem de um desfile, catálogo ou editorial de moda. Sugere e ajuda a selecionar modelos, faz a edição das roupas a serem usadas e ajuda a determinar a maquiagem e o cabelo a serem adotados; nos desfiles, interfere na atitude das modelos e opina sobre cenário e trilha sonora. (2007, p.563)

Figura 16 – Mary Quant, à direita, com modelos, em 1968, vestindo suas próprias criações. Neste desfile, foram exibidos sessenta looks em catorze minutos. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006).

As origens dos desfiles espetaculares estão vinculadas à ascensão dos

criadores do ready-to-wear, também chamado de prêt-à-porter ou “pronto para

vestir”. São profissionais que fazem coleções de roupas para serem adquiridas

prontas e comercializadas em lojas ou magazines. Esse tipo de produção em

série iniciou-se na década de 1950, mas firmou-se e se expandiu pelo mundo

ocidental nos anos de 1960, principalmente em Londres.

Após a Segunda Guerra, o cinema se consolidou como a principal

diversão de massa e a moda, que há anos já se nutria dele para divulgar as

suas tendências, se expandiu como nunca. A maneira como astros e estrelas

se penteavam e se vestiam passou a ser copiado por milhares de admiradores.

Quando, por exemplo, Clarck Gable tirou a camisa e mostrou o peito nu em

Aconteceu naquela noite (1934), a indústria de camisetas quase faliu, porque

boa parte do público masculino se considerou livre daquela convenção.

No final da década de 1950, os jovens – que viveram e sofreram o

impacto da Segunda Guerra – começam a contrariar as determinações de uma

cultura que, para eles, era inaceitável. Uma forma de contestação dessa

geração foi rejeitar as propostas da alta costura. Nos Estados Unidos e no

Brasil, em menor escala, o movimento de ruptura contra o modelo social

34

vigente gerou novos comportamentos e novas expressões culturais, como a

“geração beat”.

Esse movimento norte-americano pregava a vida boêmia, nômade ou em

comunidade, sendo o embrião do movimento hippie. Na área da literatura, o

movimento foi bastante expressivo, celebrando a não conformidade e a

criatividade espontânea. Seu maior represente foi o escritor e poeta Jack

Kerouac, autor da obra clássica e subversiva On the Road.

Na década seguinte, entretanto, a ameaça das convocações para o Vietnã

e a possibilidade de um confronto nuclear deu-lhes as bandeiras do pacifismo,

da liberdade sexual e da contracultura que resultaram numa explosão das

manifestações públicas da juventude. Reunidos em partidos, grupos e

associações mais ou menos articuladas, o movimento jovem invadiu as ruas

em passeatas, espetáculos de massa e manifestações de protesto nas grandes

cidades. Isso influenciaria o comportamento dos jovens no mundo ocidental,

provocando inevitáveis transformações radicais no universo da moda.

A primeira ruptura a ser observada foi o desaparecimento da unicidade

das tendências que tradicionalmente se impunham como determinantes aos

consumidores. Surgiram múltiplas propostas e a forma de se vestir se tornava

cada vez mais ligada ao comportamento individual. Conscientes desse novo

mercado consumidor e de sua voracidade, as empresas desenvolveram

produtos novos e diversificados, voltados para a juventude. Essa faixa etária

passava a ter, então, a sua moda própria, diferente daquela dos mais velhos.

De certa maneira, como um sinal de libertação, a linha principal era contrariar o

que estivesse em moda no mainstream, ou seja, o que era indicado como

fashion nas grandes revistas e lojas de departamento. Nos dizeres de Oliveira,

acompanham essas mutações os anos duros em que não mais os gênios dos grandes criadores da alta costura produzem os ciclos da para um diminuto segmento de privilegiados. Com o prêt-à-porter definido pelos estilistas, que são também em maior número, a reformulação da indústria da moda, para esses tempos com outros anseios e especificações, volta-se para segmentos de público cada vez mais ampliados, abarcando o dos jovens, que exigem uma moda de baixo custo para ela ter acesso a ponto de, no final do século XX, a moda jovem atender a todas as segmentações de mercado e todos os públicos. (2007, p.33)

Por outro lado, com os astronautas pisando no solo lunar, em 1969,

apontava-se para um futuro resplandecente em termos de tecnologia, bem-

35

estar e viagens espaciais. Como reflexo disso, em 1965, o francês André

Courrèges revoluciona o design de moda com uma coleção em que

predominavam roupas de linhas retas, minissaias e botas brancas. Em sua

visão de um futuro clean e aerodinâmico, habitavam as moon girls, de roupas

espaciais, metálicas e fluorescentes.

Na mesma época, o construtivismo do pintor holandês Piet Mondrian

(Amersfoort, 1872-1944) levou Yves Saint-Laurent a criar uma nova

plasticidade para suas roupas, como a dos vestidos tubinho, enquanto o

italiano Emilio Pucci (Florença, 1914-1992) fazia sucesso com suas estampas

psicodélicas, que encontrava eco nos novos hábitos da sociedade.

Figura 17 – Em 1965, em Londres, o desfile busca novos formatos na espacialidade aberta numa pista de pouso de avião. As modelos utilizaram o avião para entra e saída na passarela. (Fonte: VILASECA, E. Desfiles de moda: diseño, organización y desarrollo. Barcelona: Promopress, 2010).

Na segunda metade da década, a indústria da alta costura parecia

encolher. Tanto era assim que, no intervalo de apenas um ano, entre 1966 e

1967, o número de maisons inscritas na Câmara Sindical dos costureiros

parisienses foi reduzido de 39 para 17. Para reagir a essa “onda”, o estilista

Yves Saint Laurent opta por uma transformação para permanecer no mercado,

lançando uma nova coleção, mais comercial, em parceria com uma rede de

butiques de prêt-à-porter de luxo. Por meio do licenciamento e de franquias,

sua marca se espalhou pelo mundo. Sobre isso, Oliveira diz:

O que circula hoje na rua, dando prova de uma republicação do gosto, em uma ruptura completa com a aristocracia da moda como

36

distinção social, sai justamente da passarela dos desfiles das calçadas. Nos anos 1960, com a luz própria do dia iluminado naturalmente as passarelas das ruas, nelas circulavam contravozes de uma uniformização generalizada da sociedade promovida pela industrialização. (2007, p.34)

Nesse sentido, a moda feita na rua pode ser vista como um espaço de

difusão de ideias referentes ao universo mais amplo da moda, estabelecendo

uma ponte com as manifestações concretas da cultura jovem, já que a roupa é

um dos traços mais significativos e expressivos do estilo individual. Acrescenta-

se a ela o tipo de música preferida, as opções estéticas e gestuais, a

decoração e os acessórios. São essas as principais categorias expressivas do

indivíduo, usadas para que ele se sinta aceito na “tribo” em que quer estar

inserido e também para permitir uma demarcação das fronteiras dos grupos

sociais.

A roupa é trabalhada de maneira a construir uma identidade de grupo e

um possível reconhecimento do estilo, alimentando a inspiração de estilistas e

as passarelas da moda que mapeiam ruas, pessoas, identidades, modos de

ser e agir, cujo trabalho pode ser consumido num mercado que abrange desde

lojas de luxo até lojas de departamento.

A espacialidade das ruas cumpre o papel de difusor da moda, assim com

foi a Rua Augusta, em São Paulo, nos anos 1960, na época da Jovem Guarda,

ou as esquinas da Hight-Ashbury, em São Francisco, para o movimento hippie,

ambas nos anos 60, e a Regent Street, em Londres, para os dândis de todas

as épocas.

Nesse contexto da década de 1960, o estilo dos criadores passa a ter

mais importância no mundo do consumo e o tradicional costureiro passou a

ostentar a designação de estilista. A moda jovem e a confecção em geral iam

perdendo espaço e os empresários passavam a necessitar de um esforço

criativo para inventar novos estímulos e satisfazer o constante desejo por

novas formas de vestir.

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Figura 18 – Desfile de Miuccia Prada, em 2011, inspirado em Yves Saint

Laurent.(Fonte: http://samknowsgoodlook.blogspot.com/2011/02/fall-2011-prada-fendi-d.html)

Figura 19 – desfile de Castelbajac inspirado em Courréges, em 2000. (Fonte: SCHVVAAB, C. Talk about fashion. Trans. by David Radzinowicz. Paris: Flammarion, 2010)

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Figura 20 – Desfile de Castelbajac inspirado em Andy Warhol, em 1984.(Fonte:

SCHVVAAB, C. Talk about fashion. Trans. by David Radzinowicz. Paris: Flammarion, 2010).

O fenômeno musical e multicultural dos Beatles foi o mais avassalador de

todos os tempos em termos globais e, evidentemente, na própria Inglaterra.

Era, portanto, natural que Londres assumisse o posto de núcleo da

contracultura e das inovações, a Meca para todos os jovens do planeta, a

capital mundial da moda. Era lá que estava o que havia de mais “moderno”,

onde as diversas diretrizes do novo gosto se cruzavam, desde o rock

psicodélico e progressivo às atrações da cultura indiana. Tudo isso disponível

em lojas diferentes de quaisquer outras, como a trepidante butique Biba, em

Kensington, que era um espelho do que se encontrava pelas ruas da cidade.

No final dos anos 60, porém, o centro mundial da cultura jovem se

transferiu de Londres (Inglaterra) para São Francisco (Estados Unidos) –

cidade portuária e cosmopolita, berço do movimento hippie, que pregava a paz

e o amor como uma força alternativa ao poder do estado: flower power, black

power, gay power e women's lib. Era de lá que vinham os slogans e palavras

de ordem adotadas pela juventude do mundo inteiro.

Se os primeiros desfiles de moda coincidiram com o apogeu da alta

costura, tendo Paris como epicentro que ditava as tendências, nos dias atuais

não existe mais essa hegemonia, graças à diversificação do crescimento

econômico e ao aprimoramento expressivo da moda como elemento de

consumo e como valor simbólico.

Outras cidades cresceram, ganhando também o titulo de capitais da

moda: Londres, Nova York e Milão. Com o crescimento de novos mercados em

39

expansão no Japão, China, Turquia, Índia e Brasil, multiplicaram-se e

diferenciam-se ainda mais os desfiles de moda ao redor do mundo.

A partir da década de 1960, os desfiles começam a se tornar exclusivos

para a imprensa, formadores de opinião e lojistas, e não mais para clientes

particulares. Sendo assim, os desfiles de alta costura passam a fazer parte de

uma estratégia de marketing, ultrapassando a condição de evento voltado para

o comércio. Ou seja, o desfile passa a funcionar no mercado como um

equivalente da pré-estreia que assinala o lançamento de um filme ou da sessão

de autógrafos que antecede a chegada de um best-seller às livrarias.

Foi somente nas décadas 1970 e 1980 que os desfiles de moda se

estruturaram como eventos culturais em escala maior. O estilista japonês

Kenzo Takada (Himeji, 1939), por exemplo, substituiu a passarela por um palco

redondo, trocando a luz artificial pela luz natural. Seu compatriota, Issey Miyake

(Hiroshima, 1938), organizou um desfile para doze mil pessoas em Tóquio. Em

1984, o francês Thierry Mugler (Estrasburgo, 1948) encomendou a um

empresário de rock um show-desfile espetacular para entreter um público de

seis mil pessoas em Paris. Documentado pelo alemão Wim Wenders em A

Identidade de nós mesmos (1989), filme sobre Yoji Yamamoto, a ascensão dos

designers japoneses coincide com o fato dos estilistas de moda passarem a ser

considerados como “autores”, assim como os escritores, dramaturgos e

cineastas.

Nota-se, a partir daí, uma ênfase maior e mais explícita no chamado

“desfile-espetáculo” no qual, por sua vez, além de ligações com o cinema e o

vídeo, destaca-se o relacionamento íntimo com as artes de performance, isto é,

o teatro, o balé e a ópera. Não há uma definição precisa e unanimemente

aceita de performance, por isso, recorremos ao trabalho de RoseLee Goldberg

(2006) para três conceituações a respeito:

A arte da performance é uma arte de ação – aos criar trabalhos nos quais a plateia se confronta com a presença física do artista em tempo real – e numa forma de arte que cessa de existir no instante em que a performance acaba. [...] o meio exige uma presentividade – a presença da plateia em tempo real e conteúdo que reflita agudamente o presente. [...] A arte performática (...) desafia e viola os limites entre disciplinas e gêneros, entre provado e público, entre vida cotidiana e arte, sem obedecer a nenhuma regra. (GOLDBERG, 2006)

40

Foi nesse ponto que surgiram as experiências que dizem respeito à

localização dos desfiles. Por exemplo, o lançamento de outono de McQueen

em 1999 aconteceu num armazém de transportes, representando um

gigantesco container de plástico onde se encenava uma cena do filme O

Iluminado. De fato,

assim como nas representações de palco, os desfiles criados por designers de espetáculo exibem muito mais do que roupas. Na maioria dos casos, interpretam-se como minidramas completos, com personagens, locações específicas, peças musicais relacionadas e temas reconhecíveis. Não raro, o único elemento que separa o desfile de moda de seus correlatos teatrais é seu objetivo básico – funcionar como estratégia de marketing. (DUGGAN, 2002)

Figura 21 – Desfile espetacular de Thierry Mugler, realizado no Cirque d’hiver, Paris, em 1995. (Fonte: GRUMBACH, D. Histórias da moda. Trad. Dorothée de Bruchard, Joana Canêdo, Flávia Varela e Flávia do Lago. São Paulo: Cosac Naify, 2009)

Na Londres dos anos 1990, é importante citar os impactantes desfiles

dos ingleses John Galliano (Gibraltar, 1960) e Alexander McQueen (Londres

1969-2010). Os desfiles passam a funcionar principalmente como vitrinas para

os estilistas − não mais restritos à preocupação de apresentar produtos, mas

com a proposta de comunicar a visão criativa do designer de moda. (EVANS,

2002).

41

Figura 22 – Desfile de Alexander McQueen, em 2001, inspirada no filme Os pássaros, de Hitchcock, em 1993. (Fonte: KNOX, K. Alexander McQueen: genius of a generation. London: A&C Black Publishers Limited, 2010)

Nos anos de 1990, as imagens dos desfiles de moda começam a ser

transmitidas via satélite para o mundo inteiro através das grandes mídias: TV,

jornais e revistas. O fenômeno da moda ganha outro contexto, diversificando o

seu campo de comunicação com a discussão de outros conceitos, como

produção cultural e identidade.

Os desfiles de moda ultrapassam a dimensão de mero mecanismo

comercial para se tornar uma potência comunicativa, envolvendo espetáculo,

cultura e comércio. O teatro da roupa em encenação cede lugar a um teatro de

imagens, de intensidades com uma poética das sinestesias.

A moda, por seu lado, abre mão dos desfiles discretos dos salões de alta

costura em favor dos shows de som e de luz, do espetáculo regido pelo

imprevisível que passa a animar a espera ansiosa da nova apresentação do

criador.

Em 2005, acontece o primeiro desfile com uso de tecnologia digital. O

estilista inglês Alexander McQueen faz um desfile com o holograma, isto é,

uma imagem tridimensional com relevo e profundidade, da modelo inglesa Kate

Moss, presente no meio da passarela. Seguindo a tendência, em 2009, a dupla

holandesa Viktor & Rolf, fundada em 1993, faz seu primeiro desfile por

transmissão online no site da marca. No local do desfile não havia jornalistas,

42

celebridades e nem compradores, apenas as equipes de filmagem e fotografia

acompanharam o espetáculo no local do desfile. Os “convidados” assistiram

pela internet

Figura 23 – Apresentação com holograma da modelo Kate Moss no desfile de McQueen, realizado em Paris, em 2006. O desfile volta-se para a espacialidade fechada. (Fonte:http://oimoda.com.br/news/tag/alexander-mcqueen/page/2)

Figura 24 – O desfile da dupla Viktor & Rolf, transmitido ao vivo pelo site oficial da grife, em 2009. Desfile com formato convencional, ainda na espacialidade fechada. (Fonte: http://www.materialiste.com/en/style/viktor-rolf-printemps-ete-2009)

No Brasil, no desfile Outono-Inverno 2011, a marca Ellus realiza um

desfile inédito com transmissão ao vivo pela internet. A imprensa e os

convidados, devidamente munidos de óculos tridimensionais, foram

43

encaminhados a uma sala de cinema na Bienal para assistir ao vídeo-desfile.

Não havia modelos ao vivo, elas atuavam dentro de uma tela plana, como num

filme.

As marcas e seus estilistas observam que a internet é uma mídia que

possibilita novas configurações e formatos de desfiles, tornando-se um novo

canal de comunicação para os eventos de moda, sem eliminar o aspecto

cênico dos desfiles, mas abrindo ao público acesso imediato ao que acontece

nas passarelas.

Figura 25 – Vídeo-desfile da coleção Outono-Inverno 2011da Ellus, para a SPFW, em São Paulo. (Fonte: site da Ellus)

Os desfiles de moda do começo do século XXI se tornam um espetáculo

da mídia, partindo de um estilo minimalista utilizado por vários estilistas nos

anos 90. A dupla Viktor & Rolf choca o mundo da moda com a coleção Outono-

Inverno 2001/2002 intitulada “Black Hole”, em que todas as roupas são pretas e

os modelos são pintados da mesma cor, criando um efeito de

bidimensionalidade aos corpos. A dupla explica que, com este efeito, somente

as texturas e padrões dos materiais se tornam visíveis. “O aspecto

aparentemente liso obtém certa profundidade, mas sem perspectiva.

Queríamos encontrar maneiras de tornar visíveis formas vazias, tendo o buraco

negro como o nosso exemplo”, concluem.

44

Figura 26 – Desfile da coleção “Black Hole” da dupla Viktor & Rolf, apresentada em Paris, em 2001. (Fonte: http://www.independent.co.uk/life-style/fashion/its-show-time-viktor-amp-rolfs-catwalk-spectaculars-848771.html?action=Gallery&ino=2)

O acesso aos desfiles de moda tornou-se mais democrático graças à

internet. Um bom exemplo dessa prática é o desfile de 1999 da marca norte-

americana de lingerie Victoria’s Secret, em que o público que acompanhava o

jogo final do campeonato da Liga Nacional de Futebol, popularmente chamado

de Super Bowl, foi convidado a assistir ao desfile da marca, ao vivo pela

internet. A apresentação durou 21 minutos, atraindo 1,5 milhão de pessoas.

Outras marcas seguiram o mesmo passo, como a já citada Viktor & Rolf, a

norte-americana Ralph Lauren e a inglesa Burberry.

Figura 27 – Desfile multimídia da Burberry, em Pequim (2011). (Fonte: http://luxosimplesassim.blogspot.com/2011/04/burberry-in-beijin.html)

45

O último desfile da Burberry para o lançamento da coleção Outono-

Inverno 2011/2012 ocorreu em Pequim, capital da China, sendo transmitido ao

vivo pela internet e compartilhado por diversos sites de relacionamento, como o

Facebook e Twitter, além de sites e blogs de moda que puderem retransmiti-los

e um aplicativo exclusivo para o iPad disponibilizado em todas as lojas Apple.

Quanto ao desfile, painéis foram montados de maneira estratégica no

local, inclusive em toda a extensão do teto, com videoclipes e cinematográficos

que transmitiam de guarda-chuvas voando e de modelos virtuais e reais

desfilando e fazendo uma coreografia ao som da chuva e de uma trilha sonora

executada eclética. Ao final do desfile, um show ao vivo com a banda inglesa

Keane. Num trabalho multimídia sem precedentes, é possível identificar nos

vídeos, através da gestualidade das coreografias, filmes consagrados como A

noviça rebelde (1965) e Cantando na chuva (1952).

46

2.2. A trajetória dos desfiles de moda no Brasil

Em 1926, a Mappin Stores, loja inglesa que chegou a São Paulo em

1913, passa a realizar desfiles semestrais denominados de “paradas de

modéles vivants”, com coreografias selecionadas pelo inglês Edward Couch,

responsável pelas vitrinas do magazine. Os desfiles eram abertos ao público.

No Rio de Janeiro, a Casa do Canadá, fundada em 1929, comercializava

roupas das marcas Balenciaga, Dior e Jacques Faith, vindas diretamente da

Europa. Com as dificuldades para importação, abriram a Canadá Luxe, em

1944, considerada a primeira casa de alta costura brasileira. Logo após a

inauguração da loja, passaram a realizar desfiles, realizados a cada nova

estação, para mostrar suas criações para a imprensa local.

Figura 28 – Modelos fazendo pose após um desfile para a Casa Canadá, no Rio de

Janeiro, em 1950. (Fonte: Acervo público do estado de São Paulo)

Figura 29 – Modelo desfilando para a Casa Canadá, em 1950. (Fonte: Acervo público do estado de São Paulo)

47

Figura 30 – Cartaz de 1952, com cromatismo remetendo à bandeira brasileira, com diagramação inspirada no grafismo da Semana da Arte Moderna de 1922.

Nos anos de 1970, em Paris, Kenzo proibia os brasileiros de

frequentarem os seus desfiles. O conflito tem como origem o fato de seus

trabalhos terem sido literalmente copiados por uma grande loja de Copacabana

que, mesmo depois de interpelada na justiça, manteve o nome Kenzo Jap em

sua fachada. O fato ilustra a voracidade do mercado brasileiro que, de um lado,

não poderia consumir determinados filmes e revistas proibidos pela censura do

regime militar e, de outro, incorporava sem crítica todas as influências

sugeridas pelo contexto internacional.

Havia um predomínio do jeans e do imaginário hippie que, por sua vez,

evocava a cultura indiana, com elementos ciganos, árabes e africanos. Entre

nós, foi o momento da valorização dessa etnia, que surge em estampas tribais,

penteados e colares de contas. Os desfiles da marca Blu-blu, de Marina Valls,

por exemplo, eram verdadeiras apoteoses em que a prefeitura fechava a rua

Montenegro – atualmente Vinícius de Moraes – para emular as tradicionais

festas de largo da Bahia ao apresentar, com batucada e banda de música, a

sua linha afro para noite e dia a dia.

Naquele período, destaca-se a ousadia de Zuzu Angel, cujos desfiles

chegavam a assumir ares de manifestações de protesto porque seu filho, o

militante de esquerda Stuart, foi dado como morto pela repressão. Nas

estampas de uma de suas coleções, ela chegava a mostrar anjos negros

48

crivados de balas, armas e tanques militares. Ao final da década, aproveitando

palavras de ordem como “o sonho acabou” e “paz e amor”, formava-se um

conjunto de onze criadores conhecido como o Grupo Moda Rio.

Liderados por José Augusto Bicalho, sua meta era trazer os grandes

desfiles de volta para a cidade, em eventos que associassem o jeito de ser

carioca à ideia de uma festa interminável. Tais eventos aconteciam

principalmente nos hotéis de luxo, como o Copacabana Palace e o Méridian.

As coleções inovavam em desenho e tecidos, mas fugiam de tudo que fosse

demasiadamente caro ou extravagante – no fundo, tratava-se de tomar os

parâmetros do prêt-à-porter parisiense como principal referência.

Os primeiros anos da década de 1980, portanto, são marcados por uma

hegemonia do prêt-à-porter e da moda carioca. Entretanto, com o primeiro

Rock in Rio (1985), a moda brasileira se voltou, ainda que com atraso, para o

punk, o new wave e o dark (gótico) − com todas as suas extravagâncias. Já o

desastre nuclear de Chernobyl (1986) trouxe uma grande preocupação com o

planeta e a ecologia, abrindo espaço para os tecidos naturais e para a cor

branca.

O processo de redemocratização do país e o crescente aumento da

participação popular nas decisões políticas se expressa na moda por meio da

negação do luxo, da opulência e de todos os exageros. Nos anos de 1980,

foram tantas as crises econômicas e tão galopante a inflação, que o período

veio a ser chamado de “década perdida”. Para muitos, essa apreciação vale

também para a moda, que se mostrou carente de brilho e inventividade. A força

das novelas de TV crescia tanto que os figurinistas televisivos chegam a

influenciar a moda.

Esse conjunto de fatores levou a certo retraimento na produção de

desfiles. Em certos casos, surgiram algumas novidades que resultaram

exclusivamente da carência de recursos. Organizados numa espécie de

cooperativa, a Abemoda (Associação Brasileira dos Estilistas de Moda)

organizou um desfile dentro da Fenit Verão 1984/85, realizado no Hotel

Maksoud Plaza, tendo como o tema a cangaceira Maria Bonita. Na ocasião,

49

foram desfilados 125 modelos elaborados por 25 estilistas, sem a presença da

imprensa – foram convidados apenas os confeccionistas. O passo seguinte foi

trocar os desfiles por books de tendências. Conforme citado em Braga e Prado

(2011), o presidente da entidade, José Gayegos, relata:

Por falta de recursos desistimos dos desfiles e então fizemos uma grande exposição na Galeria Artefato na Rua Hadock Lobo. Montamos uma passarela como se fosse uma final de desfile, muito bem iluminada, com manequins de vitrina e espaço para as pessoas poderem transitar entre eles.

Uma outra entidade congênere, a Associação de Alta moda Brasileira

(Aambra), também precisou inovar em matéria de desfile, como o organizado

em 1985 no SENAC. Montou-se uma passarela que se estendia até o lado de

fora do prédio, “para que as manequins mostrassem a moda para as pessoas

que não tinham acesso aos desfiles”, como diz o seu presidente Roberto Issa.

Em 1986, foi montado outro desfile na casa de espetáculos Palladium, mas a

falta de patrocínio fez com que a maioria das roupas fosse emprestada pelos

próprios clientes.

Nos anos de 1990, o surgimento do Calendário Oficial da Moda

Brasileira marcou um “novo” impulso e investimentos nos desfiles de moda. O

Phytoervas Fashion, criado em 1994, foi a primeira tentativa de fixar uma data

no calendário da moda brasileira, sob a tutela da empresária Cristiana

Arcangeli. Em sua primeira edição, participaram as marcas Walter Rodrigues,

Cia do Linho e Alexandre Herchcovitch. A oitava e última edição ocorreu em

1998.

Figura 31 – Desfile de Jum Nakao realizado no Phytoervas Fashion, em 1997 – espaço fechado. (Fonte: http://mondomoda.wordpress.com/2011/03/01/phytoervas-fashion-youtube/)

50

Em 1996 é lançado Morumbi Fashion Brasil, com iniciativa de Paulo

Borges que, em 2000, lançaria o São Paulo Fashion Week (SPFW)

consolidando o calendário da moda brasileira. A capital paulistana recria

paisagens e espacialidades a partir dos desfiles de moda que ocorrem duas

vezes ao ano na cidade. A partir do SPFW, São Paulo passou a ter visibilidade

e a se posicionar entre as principais capitais da moda mundial. Atualmente, faz

parte de um circuito internacional de moda ao lado de Paris, Milão, Londres,

Tóquio e Nova York, o que contribui para uma projeção mundial de marcas e

modelos brasileiros lançados no circuito global.

A semana de moda que, de acordo com a SPTuris, o SPFW realiza na

cidade, movimenta mais de R$ 1,8 bilhão, sendo que R$ 85 milhões

correspondem à movimentação direta em virtude do público presente ao

evento. São, aproximadamente, 100 mil pessoas, sendo que cerca de 38 mil

destes são turistas nacionais/internacionais. A moda ocupa, assim, a própria

cidade de São Paulo, que ganha cada vez mais esse traço identitário na

medida em que dados como esses comprovam o status da capital paulista de

ser a principal cidade latino-americana quando o assunto é moda. Segundo

pesquisa recente da Global Language Monitor, grupo sediado nos Estados

Unidos que rastreia a procura e a presença de palavras na mídia e na Internet.

Participam do evento, a cada edição, uma média de 150 compradores

internacionais, representantes de grandes redes de varejo oriundos da Europa,

Estados Unidos, Oriente Médio, Índia e América Latina. A média de jornalistas

e profissionais de imprensa na cobertura do evento é de mais de 2.100

nacionais e internacionais cadastrados, de dezenas de países, entre Rússia,

França, Japão, Coreia, Itália, Estados Unidos, Alemanha, entre outros.

51

Figura 32 – Desfile no Pier Mauá de Walter Rodrigues, no Rio de Janeiro, em 2007 (Fonte: BRAGA, J. PRADO, L. A. História da Moda no Brasil: das influências às autorreferências. São Paulo, Pyxis Editorial, 2011).

Figura 33 – Desfile da Blue Man, na espacialidade aberta no Fashion Rio em julho de 2007. (Fonte: BRAGA, J. PRADO, L. A. História da Moda no Brasil: das influências às autorreferências. São Paulo, Pyxis Editorial, 2011)

Cerca de 350 modelos desfilaram nas passarelas do São Paulo Fashion

Week, que recebeu um investimento de, aproximadamente, R$ 13 milhões e

atraiu mais de 1,8 milhão de pessoas ao Pavilhão da Bienal, situado no Parque

do Ibirapuera, um local emblemático de São Paulo, que aloca evento no prédio

das bienais de Artes, Design e Arquitetura, que integram a agenda global da

metrópole. As grifes e estilistas que atualmente compõem o SPFW investem

nos desfiles por volta de R$ 7,5 milhões a cada temporada, impulsionando

empregos e negócios.

A indústria brasileira da moda reúne 30 mil empresas, movimenta US$

50 bilhões/ano e emprega 1,7 milhão de brasileiros. É hoje um dos setores que

mais recebe atenção do governo federal para a criação de empregos e

investimentos, sendo responsável por 17% do PIB da indústria de

transformação no país.

52

Este estudo analisa em que medida o deslocamento dos desfiles do

espaço convencional para um espaço inusitado, como, por exemplo, rios,

jardins, viadutos, estações da cidade, é determinante para instaurar uma

fratura na programação dos mesmos (programado: espaço convencional vs.

fratura: espaço inusitado), conforme a proposta teórica de Landowski. Para

levar o público ao espaço de fratura há estratégia de manipulação e pode ou

não ocorrer uma experiência contagiosa, pois vai depender se o público irá

vivenciá-lo.

53

2.3. Os tipos de desfile de moda

Qual a plasticidade do desfile de moda? Quais as qualidades sensíveis

produzidas na sua forma de visibilidade na cidade? O espaço do desfile

começa a partir do sujeito (espectador), que é estabelecido como grau zero da

espacialidade. O público é englobado no desfile e pode se tornar participante

de distintos modos, seja como passante, como morador, como convidado a

participar do evento ou com funções especificas estipuladas para a ocasião.

Na sua constituição, os desfiles são sistemas sincréticos que, em sua

articulação de várias linguagens no plano da expressão para a concretização

do plano de conteúdo, podem gerar desdobramentos comunicativos capazes

de modificar a visualidade e as paisagens urbanas, provocando nos

enunciatários estímulos sensíveis propostos pela mediação do lugar e do

entorno em que acontecem, que deixam de ser só um palco das cenas e se

tornam constituintes do arranjo sincrético. Dessa maneira, são várias

linguagens que sustentam o plano de expressão para criar o plano de conteúdo

como uma totalidade de sentido.

Nesta dissertação, verificamos nos desfiles a existência de linguagens

visuais, sonoras, verbais, plásticas, cinéticas, gestuais, além de espaciais, que

envolvem a arquitetura e ambientação do local no contexto urbano. O cenário

que se posiciona no seio da cidade produz, com suas condições de luz, um

jogo de iluminação natural e artificial, condições térmicas, sonoras e olfativas.

Esse arranjo do destinador voltado para a criação da imagem de moda

em uma passarela diversa vai bem além de uma mera exposição de looks e

torna-se uma estratégia de diferenciação da marca.

O desfile de moda é tomado neste estudo enquanto um texto de alta

complexidade em que um enunciador pode ser configurado por sua seleção e

arranjo da plástica expressiva e do conteúdo com temáticas e figuratividades

articuladas segundo suas preferências estéticas. Este todo de sentido produz

efeitos estésicos e estéticos no seu público, que é o enunciatário instalado no

desfile. Os desfiles devem carregar em seus discursos o efeito de sentido do

novo a partir da apresentação da sua coleção na passarela.

54

Um novo texto surge quando a coleção sai do ateliê do estilista −

instaurando o espaço enunciativo para permitir ao público o acesso à

significação. A nós, analistas, cabe desvendar os procedimentos sincréticos,

temáticos e os de figuratividade para exame da discursividade que o estilista

põe em cena com o propósito intencional de manipular o destinatário,

explorando sua axiologia, gostos e volição para construir a produção de

sentidos do desfile de moda, quer para o público especializado de jornalistas,

quer para os demais difusores do novo da moda que estejam presentes.

O recorte que forma o corpus desta pesquisa seleciona os desfiles de

moda do SPFW edição primavera/verão 2009-2010, a saber: Maria Garcia

(2010), Cavalera (2010), Fashion Mob (2010) e Karlla Girotto (2005). Enquanto

os três primeiros seguem o critério temporal “ano 2010” e a realização em

espaços diversos de São Paulo, o desfile de Karlla Girotto foge dessa

normatização. Realizado no Rio de Janeiro cinco anos antes, esse desfile é

incorporado na análise como antidesfile, e nos permitira refletir sobre sua

ordenação na lógica dos demais desfiles. Com a escolha do corpus, iremos

pensar uma rede de realizações de tipos de desfiles. Primeiro partindo dos dois

deles, que se opõem na sua organização e para superar essas concepções

extremas, e dois que mantêm com esses opostos uma relação de

contrariedade.

Essa tipologia é uma construção semiótica que diagrama os tipos

possíveis a partir do universo dos desfiles realizados no país. Seu propósito,

portanto, é servir de reflexão para outros estudos de campo que pensarão os

desfiles, além de oferecer subsídios para os que buscam maior compreensão

de sua estruturação como todo de sentido, seja pelos organizadores de

desfiles, pela identidade das marcas ou, ainda, pelos que interpretam o papel

dos desfiles de moda na cultura da contemporaneidade.

Destacaremos as estratégias de encantamento usadas para alcançar um

enriquecimento estético e os modos de apresentar o desfile para produzir a

coleção, dois mecanismos organizadores do fazer-fazer e fazer-sentir o

enunciatário. Ocorre, assim, uma maior interação entre o público, o mercado,

os formadores de opinião e o estilista, além de uma ampliação de visibilidade

na mídia.

55

3. ABORDAGEM SEMIÓTICA DO DESFILE DE MODA

3.1. Operacionalização conceitual

Um desfile pode ter uma organização desencadeadora de experiências

sensíveis? Podem elas ter uma elaboração que os tornem ocorrências

estéticas na contemporaneidade? Na tentativa de respostas, tomamos como

ponto de partida a definição de experiência estética tal como concebida por

Greimas em sua obra de 1987, “Da Imperfeição”. O autor compreende

experiência estética como um acontecimento extraordinário inserido na

cotidianidade, que provoca, por conseguinte, uma ruptura de isotopia que

fratura o cotidiano modulado por intencionalidade (regime de manipulação) e

por regulações normativas. Esses procedimentos são definidos por Landowski

enquanto regimes implicados, na medida em que o procedimento de

manipulação implica no de programação.

Enquanto o destinador forte está em nível diferente do sujeito com quem

age, fazendo-o seguir uma ação independente de sua escolha, ou seja, uma

programação para que se opere a sua conjunção com objeto de valor (ov), ele

é levado a buscar sem poder escolher o procedimento de manipulação. Há um

destinador que se volta sobre o destinatário para conhecer seus valores,

gostos e volições, a partir dos quais assume uma construção com a

intencionalidade de agir sobre a volição do sujeito que pode dar seu acordo à

proposição e realizar o fazer proposto. Distinto da imposição do primeiro

procedimento, neste de manipulação a busca negociada produz um contrato de

adesão.

Além desses dois procedimentos, clássicos nos estudos entre os

parceiros da comunicação, Landowski propõe um terceiro procedimento: o do

acidente capaz de quebrar a ordem estabelecida. As três posições postas por

Landowski no diagrama das ações humanas o fizeram, logicamente ir em

busca do subcontrário do procedimento de acidente. Sigamos o esquema:

56

Procedimento da Programação vs Procedimento Acidente

Princípio de regulação Princípio de descontinuidade

Procedimento Manipulação vs Princípio de Intencionalidade

Em relação ao procedimento de manipulação, o par correlato proposto

por Landowski (2004) é o procedimento de ajustamento. Enquanto o princípio

regedor do procedimento de manipulação é a “intencionalidade”, o do

ajustamento é a “sensibilidade”, que se dá com os dois sujeitos em copresença

e os leva a descobrir juntos, na experiência sensível, um sentido descoberto

um pelo outro.

Ao assumirmos, na esteira greimasiana, a noção de experiência estética

como uma “fratura” na continuidade do percurso narrativo do sujeito que é

lançado a uma quebra dos valores estabelecidos, iremos recorrer aos

desenvolvimentos apresentados por Landowski (2005), postulados como

implicado a esse procedimento de acidente – o de fratura de ocorrência

imprevisível e extraordinária. O sujeito passa por um sentir o sentido, em uma

experiência em que o sentido flui entre os dois sujeitos no mesmo nível e pode-

se viver uma troca do que são, que é um sentir que elaboram juntos, levando-

os a descobrir algo que compartilham.

Completando assim o outro lado da gramática narrativa, a semiótica de

Greimas ganhou, com os avanços das pesquisas de Landowski, um maior

alcance, em especial para a análise de objetos complexos de valores e

universo polêmicos, como são os desfiles que fazem uso de uma dinâmica de

procedimentos no seu significar.

Os tipos de interações entre os sujeitos realizadas pelos quatro regimes

que compõem o recorte desta pesquisa possibilitam a transferência de sentidos

não apenas racionais, mas também sensoriais, afetivos e emocionais, advindos

através de dois tipos de contágio, que Landowski define como de sensibilidade

efusiva – o estado de sentir o sentido de um sujeito pela ação do outro sujeito

57

parceiro, que marca uma via sem mediações entre os dois sujeitos –, enquanto

a variante desse contagio pode ocorrer como contagio reativo dado pela

exploração das mediações dos arranjos de linguagens dominados pela

exploração do sensível que sensibiliza, mas voltado para um propósito de

convencimento. A análise do percurso dinâmico das interações propostas nas

relações sociopolíticas e culturais vai nos permitir procedimentos mais

específicos e de alcance da complexidade axiológica que vivemos.

Enraizado nos estudos sociossemióticos, Landowski mostra a

semiotização do fenomenológico viver da experiência estética e apresenta o

conceito de experiência sensível como uma possibilidade de dar conta de

análises semióticas centradas nos regimes de acidente e ajustamento. Com

essa conceituação, o autor apresenta a diversidade dos regimes de presença

do sujeito no e ao mundo, além de regimes de interação, nos quais se

inscrevem os distintos tipos de sujeitos, com o mundo e com os outros sujeitos.

Por meio desses dois regimes complementares, encontram-se meios

para detalhar a apreensão do sentido na experiência do cotidiano e até mesmo

na sua dissolução, na indiferença ou na insignificância, que é a morte do sujeito

no seu estado de busca de construção do sentido das coisas e de si mesmo,

assim como no seu estado de ruptura com o imprevisível, que tem a força pelo

excedente, no sentido de resignificar o seu viver.

Landowski propõe uma forma de análise baseada na ideia de movimento

e de mobilidade dos procedimentos de sentido empregados em uma

construção de objetos e práticas sociais complexas. Esse modelo de análise,

amplificando os regimes de sentido, alargaram as possibilidades de alcance da

semiótica como uma teoria da ação humana cujos regimes de sentido,

homologando os “regimes de interação”, vão permitir compreensão das

espécies de ação humana e de seus imbricamentos.

Assim, Landowski (2001, p.35), a partir de uma “semiótica da

experiência”, não só da experiência estética, mas de toda ordem que pode ser

denominada por ele de sociossemiótica das práticas de vida, promove uma

convocação dos demais semioticistas para refletir sobre experiências

cotidianas presentificadas na constituição de identidades, dos gêneros, dos

estilos de vida, dos gostos e dos modos de presença dos sujeitos em

sociedade. Essa reflexão é originária da captação do sentido enquanto

58

dimensão que o sujeito prova de si e do seu estar no mundo, mediante a qual

se torna possível manter um contato direto com as coisas do cotidiano, do

social e da forma de viver a experiência dialógica que faz ser o sujeito.

Embora a sociossemiótica entenda que, na maior parte de nosso

cotidiano, vivemos dentro da esfera da funcionalidade e da programação, ela

também procura captar o sentido daquilo que não se apresenta na superfície

de modo imediato, mas que, segundo o pesquisador, se apresenta de um

modo em que se opera uma forma de comprometimento entre os sujeitos, pois

é fruto de uma implicação do sujeito com o outro que se relaciona.

A captação desse sentido proposto por Landowski é realizado, portanto,

dentro dessa concepção teórica, por meio da presença do sujeito junto às

coisas ao mundo, ao outro sujeito e a si próprio, promovendo um apreender

sensível de duas qualidades plásticas (no que diz respeito aos componentes

matérico, eidético, cromático, topológico e rítmico) que, no arranjo articulado

dos traços, trazem as marcas do sentir estésico da presença do sentido.

Conforme expõe Landowski (2001, p. 53),

trabalhar na elaboração de uma semiótica do cotidiano e do vivido (isto é, da experiência e das situações) é admitir, de antemão, um forte grau de envolvimento de nossa parte enquanto que analista em relação ao real.

No entanto, ainda segundo o autor, devido aos movimentos puramente

reativos dos indivíduos ao que lhes sucede e estão expostos, assume-se

então, para análise:

uma posição complexa onde sujeito e objeto se interpenetram [...] é somente na e pela prática que se deverá, e poderá ajustar seu próprio regime de olhar a natureza do „objeto‟. Um olhar rigoroso que quer ser tão rigoroso quanto for possível, sabendo, entretanto, que a maior parte de nossos pretensos objetos só faz sentido quando sabemos reconhecer neles tantos outros sujeitos que, por sua vez, também nos olham (LANDOWSKI, 2001, p. 53).

O autor propõe, portanto, uma concepção de olhar que acompanhe a

dinâmica dos sentidos convocados e que os transmita nessa transversal do

sentir. As coisas, os objetos e outros sujeitos se mostram para ser captados,

fazem-se ver nesse seu dar visibilidade de si.

59

No campo da moda, podemos depreender que tal visibilidade vai além

de uma estratégia de marketing, pois o desfile compreende a criação do

ambiente de uma experiência tramada para ser vivida no “aqui” e no “agora”

(cf. OLIVEIRA, 2009, p.65). É como esfera da experiência que se dá no social e

que pode ser partilhada que examinaremos nosso objeto de estudo,

hipotetizando que suas complexas estruturações, com seus arranjos de

linguagens, podem ser descritas pelos regimes de sentido e de interação, de

acordo com o quadro das ideias sociossemióticas de Landowski apresentado

anteriormente.

O desfile é o ponto de entrada simbólica do designer de vestuário

(estilista) no mercado comercial. Ele compreende, portanto, a ligação entre a

produção e o consumo do produto final, obtida a partir de uma determinada

sequência organizada e apresentada durante o desfile.

No desfile, todos que estão presentes em ato querem fazer parte

daquele momento: obter informações a respeito das tendências de moda, dar

notícias e torna-se notícia, o que guarda em si a sintaxe do “ver e ser visto”,

que Landowski define como a trama da visibilidade. Inclusive, há nos desfiles

correlatos a essa trama da ideia de pertencimento a grupos ou a um segmento

distinto social (1992): o público, somente por estar na fila, na espera ou na

plateia, desenvolve o que é mais relevante nos modos de presença social.

Enquanto discurso, cada desfile procura estabelecer uma interação entre

os sujeitos, na qual o destinador-manipulador (sujeito S1, enunciador do

discurso), figurativizado pelo estilista, desenvolve um fazer cognitivo, por meio

do qual intenciona realizar a transformação de certas determinações próprias a

quem ele se dirige, no caso, o destinatário (sujeito S2, enunciatário do

discurso), figurativizado por simulacros criados em linguagens do público-alvo.

O querer desse público também é trabalhado e investido no que lhe é

oferecido como objeto de valor, correspondente à sua volição. Assim, as

imagens do criador e do público estão nas roupas e no desfile que as lança ao

social.

O desfile de moda é um recurso de marketing que dá visibilidade ao

estilista, ao mesmo tempo em que constrói as suas marcas identitárias. Ao

persuadir o enunciatário por um desejo de adquirir “novos” produtos para

acompanhar as “novas” tendências do mercado do consumo, o estilista, como

60

destinador, arquiteta a sua presença no mundo da moda. A manifestação

discursiva do desfile segue uma determinada programação, que tem quebras

por fraturas, das quais irrompe a descontinuidade em forma de novidade. Junto

aos procedimentos de manipulação e de ajustamento, o enunciado é

organizado para obter o envolvimento do enunciatário, conforme define

Oliveira:

A moda manifesta-se não somente, o que é óbvio, a partir da divulgação de suas tendências, mas também da mitificação dos seus criadores, através das coleções nos desfiles de lançamento e também nos corpos das personalidades que desfilam noutros palcos da fama ou, ainda, nos corpos anônimos, desfilando nas passarelas múltiplas da cotidianidade, afora as veiculações incontáveis na mídia impressa e televisiva especializada, assim como nos filmes, peças teatrais, revistas, programações televisivas, nos principais eventos esportivos, nas campanhas políticas, entre tantos outros nos quais a moda figura na agenda para não perder nenhuma das oportunidades de se fazer presente.” (OLIVEIRA, 2002, p. 128)

A circulação de valores de forte ascensão social no ambiente permitir

considerar o desfile examinadamente. Normalmente, o desfile acontece numa

sala fechada, com uma passarela vertical em forma de “T” (figura 8), “I” (figura

34) ou “U” (figura 36), com aproximadamente setenta metros de comprimento e

6 metros de largura. Nas suas laterais, há fileiras de cadeiras, dispostas uma

ao lado da outra, com diferentes níveis de altura, formando uma arquibancada,

na qual irão se sentar diversos tipos de convidados do desfile. Na frente, ou na

“boca da passarela”, encontra-se o local em que se concentram os fotógrafos e

os cinegrafistas dos veículos de comunicação que fazem a cobertura do

desfile. Nas laterais, estão instalados os convidados. Nos fundos, estão

localizadas as salas de apoio, chamadas de backstage, local reservado para as

modelos se prepararem para o desfile e toda a produção de evento, incluindo

roupas, acessórios e maquiagens.

61

Figura 34 – Passarela em forma de I desfile de Madame Vionnet, 1924 (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G.. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)

Figura 35 – Sala de desfile de Moda do Magazine Printemps, passarela em forma de “I”, em 1937. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)

Figura 36 – Passarela em forma de “U” do desfile de moda de Glória Coelho, 2009. (Fonte: http://www.modaparausar.com/)

Tramados no arranjo do plano da expressão nas montagens da

operação tradutora dos temas na figuratividade, os valores estéticos vão

construir a aparência sensível do desfile. Tais valores são essenciais para

62

despertar interesse no público, assim, o procedimento de contágio é

processado para criar um procedimento de manipulação por sedução nos

distintos públicos que assistem o desfile. Os mecanismos de convocação do

publico compreendem as estratégias de envio do convite, dos brindes e até

mesmo dos escolhidos para ocupar a primeira fila. Todas essas ações passam

a fazer parte da identidade da marca, que se estrutura na visibilidade que é

edificada para ser vista, produzindo no outro o querer vê-la.

Entre esses mecanismos, algo que vem ganhando destaque é o convite

de alguma celebridade midiática, para que, com a sua visibilidade, ajude a

transformar o evento em notícia, como por exemplo, no caso do desfile da grife

Maria Garcia (SPFW, inverno/2010). A escolha do destinador foi a participação

da atriz Mariana Ximenes. O recurso é o empréstimo da autoridade à marca,

pois, estando no desfile, ela manifesta seu aval à marca. Na fig.37, pode-se

acompanhar como os fotógrafos invadem a passarela ainda coberta minutos

antes do desfile para captar imagens da atriz.

Figura 37 – Marina Ximenes no desfile da Maria Garcia. (Foto: Nati Canto)

Quanto aos recursos empregados para sensibilizar o enunciatário,

destacamos a utilização da trilha sonora ou de performance musical ao vivo,

que é capaz de agregar o envolvimento do público por criar uma disposição

afetiva, tal como aconteceu no desfile da Fausen Haten (SPFW,

Outono/Inverno 2006), com a participação da cantora Maria Rita avalizando

então a marca com sua identidade.

63

Acrescenta-se a esses recursos o arranjo da dimensão semiótica do

espaço, que articula a localização, posicionamento e distância entre os vários

pontos do desfile. Um campo de estudo da proxêmica envolve a posição dos

sujeitos entre si e entre o espetáculo do passado. O desenho de iluminação é

fundamental na produção desse ambiente, com foco na passarela, na

adequada composição do cenário e na utilização de efeitos cênicos. Essa luz

que ilumina o que não pode não ser visto anima-se pela rítmica dada a

ordenação global.

Essas são algumas das propriedades plásticas que vão ajudar a criar

uma predisposição comunicacional entre o estilista, enquanto destinador-

manipulador e seu público, destinatário-manipulado e sensibilizado, presente

no ambiente do desfile. Nessa ambientação, tudo é estruturado com o objetivo

de atingir o destinatário, a fim de que ele passe por uma experiência da moda

proposta e contribua para a criação e o estabelecimento do “conceito” da

marca.

Quando o desfile propriamente dito começa, em primeiro lugar, sobre a

passarela, desfilam os integrantes da ação performática: os produtos da marca,

que são apresentados enquanto coleção nos corpos dos manequins

selecionados cuidadosamente, pois, na ambientação, eles são os sujeitos nos

quais os “conceitos” da marca são inscritos como objeto de valor para serem

admirados, desejados e sentidos pelo público.

No que diz respeito à narratividade, tem-se uma história contada pela

proposição da coleção, uma sequência de estados que são transformados por

ela. Cada modelo desfila uma transformação da coleção anterior, que é

proposta compondo uma totalidade de sentido da atual coleção que, por sua

vez, é apreendida nas partes integrantes do todo. Como enunciado resultante

de uma enunciação enunciada, verificamos uma sequência narrativa construída

mediante o trabalho de edição do desfile e que corresponde, portanto, à

disposição dos produtos em partes, ordenadas a partir dos propósitos

organizadores do desfile.

Por esse arranjo, o desfile torna-se um instrumento de persuasão do

destinador-manipulador, figurativizado pelo estilista, capaz de convencer o

outro enunciatário do discurso presente no desfile e para o qual o todo de

sentido é montado. É nessa esfera que se entretecem os aspectos conceituais

64

que são interpretados e que vão fazer, ao lado das roupas, interpretações

sobre ela que corroboram para a identidade do estilista e da marca.

O destinador assume-se manipulador do destinatário e, no discurso,

delega o enunciar ao enunciador. Estamos na esfera da construção do texto e

uma interação dialógica é montada entre quem enuncia o enunciado e outro

sujeito. Esse processo, que Ana Claudia de Oliveira (2010) denomina por

“interações discursivas”, funda o tipo de processo interativo entre o enunciador

e enunciatário, que desenvolve em seu desenrolar o processamento da

significação.

O enunciador busca levar o enunciatário em um percurso de aquisição

de competência cognitiva, para que ele passe a ser integrado ao sistema de

valores da indústria de moda. Se ele já possui a competência, esta então é

então alimentada para ser mantida. O enunciatário é intencionalmente

manipulado para dever-saber, querer-saber e crer-poder-saber. Assim

modalizado, ele pode entrar em conjunção com os valores ideológicos

propostos pelo enunciador no enunciado do desfile. Desse modo, o enunciador,

além de manipular seu enunciatário – e, portanto, o potencial consumidor

dessa marca – a saber a respeito de determinada concepção de moda,

figurativizada pela “marca”, além de ter como intencionalidade a meta de

desencadear no enunciatário o desejo de compra. Dessa forma, o enunciador

opera para levar seu enunciatário a dever ou querer adquirir um determinado

objeto de valor, peça de vestuário, a fim de, pela prescrição regime de

programação ou pela volição regime de manipulação, aderir à concepção de

moda construída pelo desfile.

Do ponto de vista econômico, a indústria da moda se utiliza da estratégia

da previsibilidade para apreender antecipadamente as tendências que estarão

em voga em cada estação. O mecanismo dos desfiles, das coleções e das

tendências tem como significado fundamental o marketing das atitudes

culturais, que pode ser definido como uma tentativa de controlar o gosto do

enunciatário. Enfatizamos que se trata de uma tentativa, pois o enunciatário,

apesar de estar inserido em um sistema de coerções ideológicas do mundo da

moda, pode ou não ser mobilizado, portanto, para a tal manipulação. É de seu

livre-arbítrio o fazer interpretativo da manipulação exercida pelo destinador-

manipulador, com a posterior adesão ou não ao conceito de marca proposto.

65

Na verdade, esse mecanismo mostra-se muito mais complexo, seja pela

globalização de mercado, pelo acesso de novas classes ao consumo de luxo,

ou, sobretudo, pela interação com os novos meios de comunicação, que

apresentam estilos e informações inéditas. A moda oferece um modelo

comunicativo para a difusão de ideias, gostos e atitudes coletivas. Podemos

afirmar, assim, que a moda tece uma rede calcada na necessidade de

conformidade e de diferenciação na sua comunicação visual (VOLLI, 2007).

Em seu desfile de 2006, o cipriota Hussein Chalayan (1970) utilizou

recursos tecnológicos para produzir roupas que se metamorfoseavam na

passarela ao simples toque do controle remoto. No último look, reproduzido na

figura 38, o chapéu da modelo “engoliu” a roupa, deixando-a inteiramente nua.

Em um esforço de arriscar a previsão do futuro, o estilista procurou, com essa

estratégia, traduzir na imagem de passarela um claro desejo de se superar pela

exploração de arquiteturas mais ousadas, a ponto, inclusive, de desafiar as

formas naturais do corpo. O ato de colocar em cena tal transformabilidade da

roupa vestida no corpo que se atualiza no ato de realização em que todos

estão em presença causa impacto na plateia. Não é só o ato de mostrar a

roupa. Ao despir a modelo, é a perenidade do corpo que é posta em cena,

sensibilizando a todos com o universo de possibilidades do corpo para além da

proposição da moda. Com ênfase nas infindáveis recriações da moda.

Chalayan afirma que a criação de moda tem que se reinventar

Figura 38 – Desfile de Chalayan, em 2006. (Fonte: SEELING, C. Moda: 150 anos.

Estilistas, designers, marcas. Trad. Isabel Remelgado, Margarida Seiça. Postdam: Ullmann Publishing, 2011)

66

No capitulo intitulado, "La imagem del mundo al revés", presente no livro

Cultura e Explosão (1993), Lotman aborda a moda inserindo-a em uma

concepção de mundo que seria, na dinâmica do não dinâmico, o que, em

termos de Greimas, corresponderia à descontinuidade do contínuo e que pode

ser tomado pela dinâmica de articulações e procedimentos propostos por

Landowski enquanto regimes de sentido. A complexidade do fazer de Chalayan

atualiza o encadeamento com passagens dos procedimentos de manipulação

aos de previsibilidade, além do procedimento de programação ao de

ajustamento que encadeia uma vivencia e proposição de descobrir o novo atual

da criação de moda para o corpo do século XXI.

Lotman considera que uma realização possível desse processo seria a

moda, ao introduzir o princípio dinâmico nas esferas do cotidiano de aparência

de não dinâmica. A moda é um termômetro do desenvolvimento cultural.

Assim, para o autor, a moda é quase uma encarnação visível da novidade in-

motivada, passível de ser interpretada, seja como o domínio dos "caprichos" e

"extravagâncias" ou na criatividade inovadora. (LOTMAN, 1993, p.114)

O estilista é um criador de discurso com a aparência do novo, que o

rearranjo atesta ser uma contínua reinvenção do que já foi moda para produzir

o inesperado que, muitas vezes, não consegue obter no primeiro impacto a

compressão do público. Paradoxalmente, a moda é um fenômeno de elite e um

fenômeno de massa. É interessante observar a oposição entre o domínio do

estilista, que não é inicialmente compreendido, e o triunfo da moda, presente

na aceitação pela grande coletividade.

No âmbito social, é dominante a paixão do medo que compreende o

medo do sujeito passar despercebido por seus pares. Vemos, por conseguinte,

que a moda toma para si o papel de construção identitária, apoiando-se no

coletivo dessa insegurança para se impor e ser seguida como passaporte para

a aceitação social do individuo. Dessa necessidade humana e dessa força

econômica advém a obrigatoriedade nas agendas dos desfiles. Os desfiles são,

pois, tentativas da indústria da moda de revitalizar a sua força de construção

dos acontecimentos espetaculares que tentam ter forte repercussão nas

mídias, palco maior da espetacularização dos espetáculos.

67

Os desfiles são constituídos, essencialmente, de mudanças, podendo

ser definidos como uma sucessão de novidades e de estratégias do novo com

curto prazo. Por outro lado, as nossas práticas cotidianas podem ser vistas

como estando cheias de desfiles que se realizam diariamente fora das

passarelas: na rua, no trabalho, na igreja. Esses outros sentidos de desfilar na

vida é que estão postos na contrapartida, além de também poderem ser

explorados como recurso de sofisticação.

Portanto, dentre todos os eventos da área de moda, os desfiles são os

mais eficazes instrumentos para a promoção do varejo de moda. Caso o desfile

se dê em evento exclusivo, a eficácia aumenta consideravelmente, em

comparação a um desfile inclusivo com a presença de várias marcas, que

recebe o nome de multimarcas (SHIMID, 2004), que é mais uma variante do

desfile de moda que estamos trabalhando.

Em relação ao espaço do desfile de moda, ele é tridimensional em sua

ocorrência no ambiente em que se faz em ato para o seleto público de um

conjunto de destinatários. A seguir, estes se assumem como destinadores

tornam o desfile em mais uma mercadoria, posta em circulação na sociedade

de consumo por seus valores arranjados como objetos de desejo dos

destinatários segmentados que visam atingir. A sua tridimensionalidade,

imediatamente a seguir, é transformada em espaço bidimensional na sua

circulação midiática. Apesar do fato de acontecer na presença de apenas

alguns convidados, as imagens produzidas por esse público de especialistas

são divulgadas nas varias mídias – são esses agentes que, enquanto

destinatários, encadeiam os mecanismos de visibilidade do estilista iniciado no

circuito fechado do desfile, diversificando o seu alcance para os outros espaços

e outros sujeitos.

Assim, o desfile de moda é um acontecimento, cuja função comunicativa

está intimamente ligada à identidade da marca. Aliado a essa função

comunicativa do estilista e da concepção da marca, o desfile compreende

também uma vertente mais comercial, por meio da exposição de peças de

vestuário, que serão mais facilmente assimiladas pelo consumidor. Nesse

âmbito, existem grupos de estilistas que assinam por uma marca, como por

exemplo, Ellus e Forum. De outro lado, há a opção por um trabalho mais

pessoal, na vertente conceitual em que o estilista assina seu nome e

68

desenvolve uma identidade de marca. São exemplos brasileiros dessa vertente

Ronaldo Fraga, Lino Vilaventura, entre outros.

Figura 39 – Desfile de Ronaldo Fraga, 2005. (Fonte: FRAGA, Ronaldo. Coleção Moda

Brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2007).

A cada estação, o estilista procura apresentar o “novo” e superar a

coleção anterior, alimentando a construção da sua imagem individual a partir

de seu modo de apresentação na passarela. É da reiteração desse modo que

se define o estilo do criador e o gênero de sua criação de moda. Ele tece

escolhas que marcam a construção de uma imagem de moda na passarela,

pois a apresentação do desfile não se trata somente de ofertar produtos, mas,

essencialmente, de vender uma imagem, um conceito.

O estilista elabora uma lógica de desafio para realizar uma história

diferente, uma nova proposta de silhueta, tecidos com sabor de novidade. A

identidade de um estilista, na perspectiva de Landowski (2002), deve

permanecer sob as mudanças, rupturas e inovações, constituindo, portanto,

uma forma de invariância sob as variações. Essa invariante, como é reiterada,

determina a construção da identidade, que torna a descontinuidade contínua.

Seguindo essa concepção semiótica é que observamos que, nessas

manifestações, ética e estética estão interligadas. A estética compreende uma

maneira de organizar o mundo sensível, que é traduzido em linguagem, de

forma a expressar e a comunicar um sentido, um afeto, uma emoção capaz de

traduzir a visão do criador, correspondente à ética. O desfile de moda, então,

69

pode ser definido como uma experiência estética em que o estilista/criador

elabora uma maneira de ser, que é denominada éthos, que é primeiramente

experimentado pela plateia ou convidados e depois posto em circulação pelo

fazer interpretativo desses agentes para outros públicos.

Como estrutura, podemos concluir pelos argumentos desenvolvidos que

o desfile de moda é um texto sincrético, pois ele maneja várias linguagens no

plano de expressão (manifestação) para concretizar o plano de conteúdo, ou

seja, os investimentos semânticos com a atualização da axiologia da estética e

da ética. Dessa forma, verificamos nos desfiles a existência de linguagens

audiovisuais, visuais, sonoras, gestuais, musicais, espaciais e cinéticas, que

são plasmadas na arquitetura do cenário com o fazer ver da iluminação.

Todos esses recursos de expressão são articulados pela equipe de

produção, que age em conjunto com o estilista para a criação da imagem de

moda na passarela. Essa produção enunciativa coletiva é que operacionaliza a

coerência do arranjo das marcas identitárias, proposição que vai além de uma

concepção de desfile como mera exposição de looks.

Por conseguinte, graças aos mecanismos de enunciação, o desfile de

moda, por meio de seu enunciador coletivo, é tanto implícito quanto explícito no

enunciado. São criados efeitos estéticos e éticos para o seu enunciatário

(público) os sentir inteligível e sensivelmente por meio da estesia, que Ana

Claudia de Oliveira (1995) define como “condição de sentir o sentido”. O

enunciador do desfile, ao atualizar o discurso do novo a partir da apresentação

de cada uma de suas coleções na passarela, está realizando o seu percurso

narrativo, numa busca contínua por ser provocador de descontinuidades do

ciclo anterior. Assim, só a força do ato de dar descontinuidades para formar a

continuidade do seu modo de fazer é o que nomeia enquanto criador.

Cada novo texto em cada coleção surge, então, quando a coleção

desenvolvida com esses propósitos. As interpretações saem do ateliê do

estilista e, após passarem por uma edição dos looks (roupas, acessórios,

make, hair) e montagem do desfile (ambientação, casting, trilha sonora, ritmo,

gestual, cenário, iluminação), são colocadas em circulação como notícia.

Com esse conjunto de procedimentos, instaura-se a ambientação

enunciativa que permite ao público o acesso à significação dos procedimentos

sincréticos do desfile de moda. O enunciatário está posto, portanto, como alvo

70

do desfile, em um processo de comunicação que desenrola e tece um vínculo

com o público interlocutor que permanece marcado em todo seu

processamento discursivo.

Ao criar relações entre linguagens para construir os sentidos do desfile

de moda – ou sua visão de moda –, o estilista tem por objetivo sua

autoconstrução enquanto sujeito no mundo da moda. Denis Bertrand aborda

essa construção como uma questão de ponto de vista, definido como “o

conjunto dos procedimentos utilizados pelo enunciador para selecionar os

objetos de seu discurso e orientar sua focalização” (2004, p.427).

A noção de ponto de vista é, então, determinante para a criação de uma

angulação específica no desfile, bem como o modo de posicionar a coleção

para o público-alvo no mercado da moda. Esse conceito compreende a relação

modal instaurada pelo sujeito e seu objeto, segundo Bertrand, pelas

“estratégias de estruturação determinadas pelas coerções da textualização (o

que vem antes/o que vem depois, as relações entre as partes e o todo, a

passagem do particular ao geral ou inversamente, etc.)” (2004, p.428).

Seguimos no desenvolvimento dessa conceituação de desfile como a

articulação sincrética materializada na heterogeneidade de constituintes de

várias linguagens em uma ação de fazer ser o sentido, que Oliveira (2009)

define como formador do ponto de vista regedor da totalidade de sentidos. Se o

ponto de vista está inscrito nas interações discursivas, argumenta Oliveira, rege

também a atividade apreensiva do enunciador, que é delegada ao enunciatário.

É a sua sensibilidade e astúcia de conceber uma proposição de seu fazer a

presença do observador, que Bertrand define como um “sujeito cognitivo,

instalado pelo enunciador mediante debreagem, encarregado de receber

informações e transmiti-las” (2004, p.425).

Essa figura discursiva do observador é instaurada no desfile, portanto,

como um “ponto de vista sobre a ação” (GREIMAS; COURTÉS, s.d, p.29). É

esse público de seletos instalados no enunciado que reelabora, em seus

discursos, sanções positivas ou negativas ao que lhes foi comunicado.

Ao analisar alguns desfiles de moda, podemos depreender algumas

artimanhas de encantamento capazes de proporcionar uma experiência

estética, além de apresentar a ética do criador com sua visão do mundo da

moda e dos seres que vestem e circulam a moda em seus corpos.

71

Todo o modo de apresentar o desfile é pensado tendo em vista o fazer

do enunciatário, além de captar, na coleção, as imagens vivenciadas pelo

estilista. O desfile proporciona maior interação entre o público, o mercado, os

formadores de opinião e o estilista, além de ter maior visibilidade na mídia.

Essa interação pode ocorrer também pelo deslocamento dos ambientes,

ou seja, pelo deslocamento da passarela convencional para um espaço não

convencional ou pela utilização de elementos cênicos, ocasionando, assim,

uma imprevisibilidade na construção da narrativa do desfile.

De modo geral, cada evento selecionado neste trabalho será analisado

de maneira a descobrir o seguinte: nos cartazes, como eles estão se

comunicando; nas roupas, como se coloca o enunciatário de cada marca; nos

looks, como a cidade alimentou a sua criação; na cidade, como cada marca se

revela no cenário urbano e, no desfile propriamente dito, como a cidade é vista

por meio dele.

72

4. A ATUALIDADE DOS DESFILES DE MODA NO BRASIL

4.1. Usos da topologia nos desfiles de moda

O desfile de moda caracteriza-se por sua realização como um programa

narrativo (PN) completo, com começo, meio e fim definidos no âmbito da teoria

semiótica pelos regimes narrativos da junção e da união. Passamos agora à

análise do corpus da pesquisa.

Em cada desfile ocorre a entrada e a saída das modelos, que usam de

sua corporeidade e gestualidade para apresentar os produtos da marca. Essa

estruturação é invariante, apesar de serem muitos os modos de presença que

são encenados nos desfiles, seja por modelos “dormindo” em camas – como

ocorreu no desfile intitulado “Neutro”, de Karlla Girotto (Fashion Rio,

verão/2005); seja na atitude de caminhar entre as ruas da cidade – como o

Fashion Mob (Casa dos criadores/2010); seja pelo uso de trilha sonora mixada

com o ruído da cidade, tal como aconteceu no desfile da Cavalera (SPFW,

verão/2010); seja a utilização de trilha sonora composta para o desfile, como

ocorreu no desfile da Maria Garcia (SPFW, inverno/2010).

Como essa diversidade de procedimentos diferentes dos temas,

figuratividades e lugares de realizações pode formar um sistema que

represente os modos de presença dos desfiles de moda de maneira mais

ampla?

Partimos da hipótese que o que diferencia cada desfile que escolhemos

para ser analisado é a maneira como as concepções espacial, actorial e

temporal, ou seja, os procedimentos enunciativos, modificam inteiramente a

relação que vai ser instaurada entre os sujeitos dos desfiles que presenciam a

ação. Ainda consideramos que os lugares em que os desfiles são ambientados

são uma escolha de maior relevância no posicionamento identitário da marca.

Sobretudo, consideramos que os desfiles que rompem com os lugares

expositivos têm mais competência para produzir efeitos de inovação.

Passamos a caracterizar como o desfile da marca Maria Garcia,

realizado no Pavilhão do Ibirapuera em São Paulo (SPFW, inverno/2010),

posiciona-se pelos seus modos de fazer-se presente e visível no social.

73

No que concerne ao componente topológico do plano da expressão, um

desfile pode ser considerado fechado quando acontece em uma ambientação

interna que se interliga ao exterior por portas de entrada e saída. No que

concerne à categoria topológica, que distribui na superfície tridimensional os

demais constituintes do desfile, a saber: formas, cores, materialidades em

articulação, partimos da presença de uma passarela rodeada por cadeiras –um

arranjo explicitador do modo de posicionar e dar visibilidade a um número

limitado de público seleto de convidados sentados aos lados do palco, num

arranjo rigidamente hierarquizado. Segundo Landowski,

quer consideremos para as estratégias da parte observante – suscetível de se mostrar ou de dissimular como tal – ou da parte observada (quer de seu lado, em função de seu caráter mais ou menos observável da instância que o observa, pode, em princípio, regular as condições de sua própria colocação em cena) , nós tocamos agora uma ordem de problemas que ultrapassam o quadro da relação escópica no senso estrito e importam diretamente à dimensão cognitiva propriamente dita… O espaço pragmático, “objetivo”, no qual se inscrevem as relações de “visibilidade”, uma vez assim refletidas pela “consciência” que tomam reciprocamente os sujeitos, se transformam agora em campo de manobras cognitivas (fazer-saber e fazer-crer). (1992, p. 135)

A essas duas manobras cognitivas podem ser acrescentados também o

fazer-sentir, a partir dos desenvolvimentos da dimensão cognitiva em dois

outros ensaios de sociossemiótica de Landowski (2000, 2004).

Na sistemática de alocação dos convidados, aqueles considerados com

um maior status pela assessoria da marca são os que têm lugares reservados

próximos à passarela. A importância da localização espacial, marcada na

posição da cadeira numerada em relação à passarela, traz mais do que a

implicação de que os sujeitos estariam presentes nas específicas posições

para simplesmente assistirem ao desfile de moda. Mediante essa encenação

topológica, os convidados são capazes de ver um ao outro e avaliar, mediante

a disposição dos assentos, o status de cada um na indústria desse monitor de

visibilidade e hierarquia no âmbito da moda. A configuração da passarela é,

portanto, um “ator” de visibilidade, que permite aos convidados, que se

dispõem em relação à passarela, exercer o específico ritual de "ver e ser visto",

que processa a construção identitária dos sujeitos sociais.

Nessa sintaxe da visualidade, está articulada também a ocupação dos

espaços pelos sujeitos, a proxêmica, que compreende, de acordo com Greimas

74

e Courtés, a análise da “disposição dos sujeitos e dos objetos no espaço e,

mais particularmente, o uso que os sujeitos fazem do espaço para fins de

significação” (2008, p. 395). É necessário, pois, na análise dos desfiles,

verificar como essa disposição topológica possibilita os tipos de construção de

visibilidade.

A sala do desfile reúne pessoas que, normalmente, não se encontrariam.

Esses indivíduos passam a vivenciar por alguns minutos, naquela sala fechada,

algumas relações sociais de maneira concreta: no modo de olhar, de ouvir, de

falar, de se repelir, de se tocar etc. No caso do desfile da marca Maria Garcia

(2010), a sala do desfile foi montada em um ambiente fechado.

Figura 40 – Passarela do desfile da marca Maria Garcia, em 2010. A passarela é revestida de linólio com pichações e, ao fundo, uma inclinação que lembra uma pista de manobras de skate. (Foto: Nati Canto)

Os convidados do desfile Maria Garcia estão dispostos de maneira a

seguir a orientação destinada para sentar na cadeira marcada. A cenografia

espacial traz, em sua composição plástica visual, elementos que figurativizam a

cidade. Como elementos topológicos da passarela, observamos a presença de

uma pista de skates, com pichações recobrindo o piso da passarela. A

iluminação artificial, com o cromatismo entre o amarelo e o alaranjado, cria

uma sensação de um dia de verão, embora a temperatura do local não

passasse de 12°C. O limite entre passarela e público é demarcado de modo a

ser respeitado até o final do desfile. Assim, no que corresponde aos elementos

75

estésicos, podemos afirmar que, no desfile da Maria Garcia, são ativados os

sentidos do visual, térmico e sonoro.

Figura 41 – Cenografia do desfile “Neutro”, de Karlla Girotto, 2006. Nota-se a presença de camas gigantes, que estão colocadas de forma paralela, sem a presença de passarela convencional. (Fonte: site da marca Karlla Girotto)

Em uma relação de contrariedade ao desfile Maria Garcia, elegemos

considerar o desfile “Neutro”, da estilista Karlla Girotto, realizado no Jardim do

Museu da Arte Moderna (MAM), durante o Fashion Rio, em 2005. Esse desfile

acontece no espaço aberto, em um lugar de sociabilização, o jardim do MAM.

Podemos caracterizar esse desfile como de espaço aberto na medida

em que ele é aberto à circulação de outros sujeitos, indo, assim, além do

público convidado da marca. Acrescenta-se ainda a presença do transeunte, do

passante que está no parque com a intenção de aproveitar o espaço da

natureza. Dessa maneira, todos se encontram em posição de apreciação do

desfile dado pelo longe e perto de sua instalação. Não há, portanto, as

orientações pré-definidas de marcadores.

O enunciatário é levado a participar daquele momento rompendo a

proxêmica estipulada pela cena genérica de um desfile. O cenário e a

passarela são improvisados na ambientação do jardim e os presentes podem

se aproximar ao ponto de até mesmo tocar as modelos e suas roupas,

enquanto elas figuram produzindo estranhamento maior porque dormem em

uma ação outra que é a dinâmica pré-estabelecida do desfile.

76

A cenografia do desfile “Neutro”, na sua topologia, traz objetos de cena

do espaço privado, como a presença de camas, colchões, criados-mudos,

despertador, caixinhas de música, uma escada e gaiolas, que causam certo

estranhamento, pois não fazem parte do espaço do parque no qual estão

sendo apresentados. No desfile “Neutro” são ativados os sentidos tátil, visual,

olfativo, sonoro e térmico.

Essa oposição básica entre desfile em uma sala fechada – com espaço

privado – e desfile no parque – um espaço aberto e público –, nos levou a

recortar outros desfiles que preenchessem uma sintaxe de ocorrência de

possíveis desfiles pela lógica de relações do quadrado semiótico, numa

visualização de usos possíveis de alocações dos espaços dos desfiles.

Em relação a esse par de opostos “espaço fechado privado” vs. “espaço

aberto público”, por relações de contrariedade, os termos subcontrários são

“espaço fechado público” vs. “espaço aberto privado”, que passam a orientar o

nosso recorte de desfiles como diagrama posicional de suas realizações.

Figura 42 – Passarela na via expressa da cidade, no desfile da Cavalera, 2010. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

Para realizar o recorte de desfiles selecionados para ocupar a base

inferior do quadrado dos modos de presença dos desfiles na cidade, temos

como exemplo o desfile da Cavalera (SPFW, verão/2010). Esse desfile foi

realizado em um espaço público, mais precisamente no Viaduto do Minhocão,

obra viária em si marcada por uma polêmica desde sua implantação na cidade

de São Paulo. Foram utilizados, em sua topologia, objetos de cena do espaço

77

público aberto ao sol, tais como cadeiras de praia e sombreiros. Observamos

também o uso de carros turbinados ao longo da passarela, deslocados da sua

funcionalidade, tal como ocorre com o lugar, a via expressa que a parte oeste a

outros pontos da cidade.

Contudo, em contrariedade com o uso do Jardim do MAM (RJ), o desfile

privatiza o espaço público. Para ter acesso ao desfile, o enunciatário deve

passar por um portão situado logo na entrada do viaduto. Corrobora esse

cerceamento a presença de seguranças e recepcionistas, que controlavam a

entrada restrita do público convidado. O espaço público é, então, modificado e

passa a ser fechado.

Assim, topologicamente, o desfile era caracterizado pelo uso de grades

que separam os elementos internos dos externos ao desfile, separando os

convidados dos não convidados. A partir do número da cadeira, o público vip

poderia ter direito a chegar ao local do desfile utilizando um pequeno carro de

golfe movido a motor elétrico com motorista, o que proporcionaria a esse

convidado vivenciar a paisagem urbana, os grandes prédios, o céu azul, de

forma a se instaurar em um clima de fantasia e não do dia a dia daquele

espaço. Entretanto, a grade de um metro de altura, capaz de separar as

laterais do público e do privado, não impossibilitava a apreciação do desfile

pelas sacadas dos prédios da vizinhança.

A marca Cavalera segue a topologia espacial da localização dos

convidados seguindo o formato do desfile convencional no que tange o

posicionamento do público/enunciatário. Os convidados estão na lateral da

passarela improvisada nas vias de tráfego do viaduto, posicionados de maneira

hierarquizada, mas com a diferença da altura das cadeiras de praia,

posicionadas a vinte centímetros do chão, que dão a sensação de estar numa

praia, a “praia Cavalera”. A relação da proxêmica do desfile da Cavalera é

respeitada.

Dessa forma, o enunciatário é convidado a vivenciar um simulacro de

comunhão com a cidade de São Paulo, fazer parte das diferentes tribos que

compõem a cidade, a partir da escolha do casting do desfile, que privilegia as

diferentes belezas que integram essa cidade: negros, mestiços, pardos e

índios, rostos que traduzem a imagem da cidade de São Paulo por meio da

utilização de maquiagem e cabelos naturais.

78

Ao caminhar na passarela, o ritmo dos modelos tem por objetivo,

portanto, privilegiar a individualização, a identidade de cada um ao desfilar, o

que torna possível a criação de temporalidades distintas na passarela. Temos,

por exemplo, um skatista que entra fazendo manobras, um motociclista

conduzindo sua Harley Davidson a 15 km/h e, na mesma passarela, a

presença de uma mulher que carrega uma criança no colo, crianças e

adolescentes gêmeos e um casal de namorados.

As qualidades plásticas do desfile Cavalera são sentidas

sinestesicamente pelo cheiro da rua, pela paisagem sonora e até pelo paladar,

pois foram distribuídos picolés de sabores variados, o que diminuía também a

sensação de calor, já que a temperatura no dia do desfile chegava a 30°C.

Figura 43 – Desfile Fashion Mob, 2010. (Fonte: site Casa de Criadores)

Para fechar a estruturação do quadrado com desfiles de moda nesse

mapeamento de tipos de realização relacionais que estruturam os pilares para

pensar os usos do espaço pelos desfiles de moda de que nos ocupamos nesta

dissertação, tem-se, em relação de contrariedade ao desfile da Cavalera, o

desfile aberto/aberto da Fashion Mob, em 2010. Esse desfile rompe com a

79

programação de um desfile comum na medida em que ocorre uma quebra de

espacialidade convencional, já que o desfile acontece nas ruas da cidade de

São Paulo.

O enunciado do desfile é estruturado para interagir com as pessoas e a

cidade, explorando os espaços e se ajustando a eles, o que gera uma maior

interação entre o enunciado e o enunciatário. A relação proxêmica entre os

sujeitos é quebrada.

Chegamos, assim, a dois pares de relações, que mantêm uma dinâmica

de relações assim grafados dos eixos das relações de contrariedade ( ) do

quadrado semiótico, designando as relações entre os termos contrários ou

subcontrários. As dêixis agrupam os termos por complementariedade ( ) e

as relações entre os termos contraditórios são marcados ( ) de forma a

visualizá-las:

Fechado fechado Aberto aberto

Fechado aberto Aberto fechado

Essas práticas significantes são capazes de abarcar as definições

modais das condições de interação do desfile com o espaço que se manifesta

e que faz fazer as realizações do público vs. privado, que sela os estados de

lugarização dos desfiles.

80

4.2. Análise dos desfiles

4.2.1. Espaço fechado privado: Maria Garcia

O desfile de moda fechado privado é aquele que se organiza num

espaço convencional. Como manifestação dessa modalidade, a marca Maria

Garcia é a segunda marca dirigida pela estilista Clô Orozco, no lançamento da

coleção inverno/2010, no dia 18 de janeiro de 2010, às 15hs. A apresentação

fez parte do SPFW (de 17 a 22 de janeiro de 2010) que, para esta edição, tinha

programado trinta e sete desfiles.

O ambiente escolhido foi o do interior do Pavilhão Ciccilo Matarazzo,

projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer em 1951, no Parque do Ibirapuera de

São Paulo. O pavilhão é marcado pelo jogo de linhas verticais e horizontais,

atenuadas por curvas sinuosas que marcam a concepção arquitetônica do

interior do grande retângulo do formato prédio. Delineia-se um aparente

labirinto de andares ligados pelas rampas, com o piso de cimento escuro

contrastando com as paredes brancas e oferecendo um ponto de fuga que

garante o caráter monumental do conjunto.

Durante o evento, essa continuidade visual é modificada pela inclusão

das diversas salas de desfile, que interrompem a visualidade original do interior

do edifício, mas sem conseguir ocultá-la ao espalhar as salas de modo irregular

pelos andares.

Figura 44 – Espaço interno do Pavilhão, com uma mostra que as intervenções para a criação do espaço do SPFW impedem a visão de suas curvas e nem altera a profundidade de

campo visual. (Fonte: http://cucadaune.blogspot.com/2009/04/bienal-de-sao-paulo.html)

81

Nos pavilhões do Parque do Ibirapuera, tradicionalmente acontecem

vários eventos culturais que se alternam, ano após ano, com outros dois

eventos de peso: nos anos pares, a Bienal de Artes, e nos ímpares, a Bienal de

Arquitetura. Nesse espaço, ainda acontecem grandes feiras e congressos,

como a Adventure Sports Fair (Fig. 46), que é a maior na área de esportes e

turismo da América Latina.

Interligados por uma longa e sinuosa marquise, todos eles apresentam

uma concepção bastante parecida, com plantas praticamente idênticas. Neles,

o acesso do público se faz por meio de rampas, que se revelaram grandes

problemas na fase de construção.

Os robustos pilotis em “V” marcam o estilo de Niemeyer nos anos 1950.

Com uma distância de 10 metros entre si, esse recurso permite a utilização do

térreo para bares e cafés. A fachada apresenta uma composição sóbria, com

cortina de vidro e brise-soleil de aço, contrastando com a riqueza formal do

espaço interno e a plasticidade da coluna da qual partem as rampas do vazio

central, perpassando a altura total da construção. Essa imponente estrutura dá

ao interior uma aparência monumental e surpreendente, compensando a

sobriedade do exterior.

Fig. 45 – Modificação harmônica da espacialidade original com a Bienal de Arquitetura

(2009. (Fonte: http://nicolevalente.blogspot.com/2009_11_01_archive.html)

82

Fig. 46 – Adventure Sports Fair (2008) torna irreconhecível a arquitetura interior do

Pavilhão. (Fonte: www.adventurefair.com.br)

O conjunto do Parque Ibirapuera foi projetado para ser inaugurado

durante as comemorações do 4º centenário da cidade, em 1954. O tratamento

paisagístico foi entregue a Roberto Burle Marx, que privilegia a interação entre

os usuários e a vegetação. É nesse local emblemático de São Paulo que, no

espaço interno e fechado do Pavilhão, acontece o desfile da marca Maria

Garcia.

Figura 47 – Mapa de localização do Parque Ibirapuera e, dentro dele, o Pavilhão que abriga o desfile fechado da marca Maria Garcia. (Fonte: Google Maps)

O Parque do Ibirapuera fica no bairro de Moema, na zona sul de São

Paulo, dentro de um polígono formado pelas avenidas Vinte Três de Maio,

Quarto Centenário, República do Líbano e Pedro Álvares Cabral. O parque

conta com ciclovia e treze quadras iluminadas, além de pistas destinadas a

cooper, passeios e locais de descanso. Todos esses locais são integrados à

área cultural. Sua área territorial é de 1,584 km², com três lagos artificiais e

interligados, que ocupam 15,7 mil m².

83

Seguindo a tradição de sediar alguns dos acontecimentos mais

importantes de São Paulo no Pavilhão da Bienal, acontece aí o primeiro grande

evento que abre o calendário anual da capital paulista: o São Paulo Fashion

Week, que reúne os nomes mais significativos da atual moda brasileira e traz

para a cidade uma verdadeira constelação de modelos para os desfiles. O

encontro acontece duas vezes por ano − em janeiro, moda outono/inverno e,

em julho, moda primavera/verão − e está incluído no calendário oficial e

mundial de moda.

Figura 48 – Ambiência do SPFW, com diversas salas fechadas, destinadas a abrigar os desfiles, interrompendo a continuidade visual interna do Pavilhão no Ibirapuera. (Fonte: FFW.com.br)

Durante o SPFW, são erguidas paredes nos três pavimentos − térreo,

primeiro andar e segundo andar −, para a separação de cinco salas nas quais

ocorrem os trinta e sete desfiles que serão apresentados durante uma semana.

Em sua modalidade topográfica, cada um deles acontece numa sala ampla,

dotada de ar condicionado e que abriga uma passarela de 30 metros com filas

de cadeiras dispostas em suas laterais. No teto estão presos os spots que

iluminam todo o trajeto das modelos na passarela. O local para os fotógrafos e

cinegrafistas se localiza na parte da frente da passarela – equivalente à “boca

da cena” na linguagem do teatro.

Em termos de cromatismo, as salas têm cor preta nas paredes e no teto.

Isso contrasta com a colorida luminosidade do exterior do saguão – uma vez

que o interior do prédio se acha separado do exterior por meio de vidraças. O

espaço do desfile é praticamente um caixote em forma de paralelepípedo,

84

limitado pelas paredes, com várias portas de entradas e saídas. Uma delas

forma uma passagem que interliga a sala principal ao camarim e bastidores −

lócus interno e privado − e a sala do desfile ao espaço do SPFW, englobando o

externo, que é o público.

Figura 49 – Rampa principal que dá acesso aos dois pisos em que são alocados os

desfiles, funcionando ainda como uma extensão coberta do espaço exterior. (Foto: Nati Canto)

Do térreo para os andares há uma grande entrada que leva a uma

rampa de acesso aos dois outros pisos, traçando um modo de adentrar e de

circunavegar o continente do SPFW. Pelas rampas, somos guiados aos

andares onde se encontram os espaços de socialização, entre eles os lounges

das empresas patrocinadoras do evento, como Fiat, Grendene e a Natura,

além de uma livraria, restaurantes e uma cafeteria, com mesas e cadeiras que

permitem às pessoas sentadas saborearem café e conversas, bem como

postar-se em um ponto ideal para contemplar os fluxos de pessoas que

circulam mais lentamente, instaurando um valor mais local, de mais

proximidade e pertencimento afetivo. A sala de imprensa fica localizada no piso

inferior. No último piso há o FWHouse – local para negócios, em que as

sessenta e seis empresas mostram suas novidades. Estima-se que o evento

movimente cerca R$ 1,2 bilhão em negócios.

85

Figura 50 – Café localizado no primeiro piso do SPFW, exercendo função equivalente

à de um lobby de teatro, de uma pracinha de bairro ou cidade do interior (Foto: Nati Canto)

Durante a semana do SPFW, toda a área interna do Pavilhão no

Ibirapuera é modificada para assumir a identidade deste que é o maior evento

de moda da América Latina − as configurações topográficas instaladas, o

cromatismo, o redesenho da configuração espacial, tudo ali desempenha a

função de dar visibilidade ao discurso do destinador SPFW. Suas

configurações topológicas são formadas pelo princípio do jogo labiríntico, uma

vez que tanto a disposição espacial quanto a cenográfica se organizam pela

justaposição de ambientes.

Figura 51 – Em pé e já antecipando a exibição das modelos, o público ocupa aquele espaço no segundo piso, contíguo a cada uma das salas de desfile. (Foto: Nati Canto)

Diante de cada sala de desfile forma-se uma espécie de antessala, na

qual o público aguarda. As experiências extracotidianas como essa, de

excitante espera pelo desfile, produzem diversos impactos nas pessoas, todas

86

elas unidas entre o global, o nacional e o local, compondo uma realidade

“caleidoscópica” em que um pequeno movimento, uma alteração qualquer,

pode promover outra conformação entre os pares.

Isso não significa que não se manifestem as programações do dia a dia,

pois elas existem e são anunciadas para cada horário, sendo inteiramente

programadas pelo agendamento do que deverá nele ocorrer. Inerente a essa

ordenação, porém, acha-se a desordem, o imprevisto em relação ao que pode

advir e surpreender, como é o caso dos tantos que para aí se locomovem à

espera da chance de conseguir entrar e obter um ingresso para estar no

desfile. Vemos que ocorre a mesma dinâmica processual da espera do

imprevisível no cotidiano, como aponta Oliveira (2008), no estudo sobre a

dinâmica relacional no Metrô de São Paulo. As pessoas se deslocam para o

espaço para serem sobressaltadas pela marca.

Trata-se aqui de chamar atenção para outros modos interacionais,

outros sentidos, como, por exemplo, o daquele não programado, que se dá por

meio das sensibilidades dispostas, potencializando o efeito de sentido de

contágio manifesto pelo processo do ajustamento (Landowski, 2005) entre

aqueles que constroem em ato os sentidos dos lugares. É o caso do SPFW no

Ibirapuera, composto de sobreposições e justaposições de muitas realidades,

tempos e espaços − lugar em que várias narrativas entrecruzam seu espaço.

Figura 52 – Frente do convite que dá acesso ao Pavilhão. A forma circular e a cor negra talvez sirvam para afastar qualquer sugestão eventual a uma das marcas envolvidas.

Para ter acesso ao Pavilhão, é necessária a apresentação de um

convite, que consiste num círculo negro de papel cartão – provavelmente para

87

evitar qualquer referência a qualquer marca em particular, por meio da cor ou

da forma. Mas ter acesso a um lounge não implica também ter acesso a um

desfile. Existe uma pulseira que serve como passe livre para qualquer espaço,

e quem não a possui precisa apresentar o convite específico da marca. Na sala

de desfile, os seguranças posicionados à porta recolhem os convites

padronizados com o logo de destinador do evento e conduzem o público para

os setores ou filas.

Figura 53 – Convite do desfile da marca Maria Garcia, em sua versão impressa e na

forma sólida de uma pequena coroa de metal.

O destinador seleciona determinados convidados, que recebem um

convite personalizado, aproximando mais a marca do seu principal consumidor

(Fig. 53). Nele, vemos os formantes plásticos cromáticos com o uso das cores

preto e ocre. Na parte superior do convite, aparece o logo da marca em forma

de uma coroa e, abaixo, o programa narrativo do desfile com a sua localização.

Em seguida, a marca do SPFW com a tipografia padronizada colorida

marcando o setor e a fila que o convidado deve ocupar. Em seguida, um aviso:

“é imprescindível a apresentação deste” e, abaixo, a frase no imperativo: “Vá

de Táxi”.

88

Esse impresso faz parte da estratégia de sedução do destinador para

orientar o fazer querer ir ao desfile. Assim, o convite leva o sujeito convidado a

acreditar que ele seja diferente dos demais, uma pessoa especial, que tem o

seu lugar no ambiente.

Na categoria eidética, o formato do convite é retangular com o material

de textura fosca, natural e despojado, reiterando a proposta estética do desfile

que engloba as ideias de conforto e praticidade para se viver na cidade. Os

convidados ainda recebem um pingente em forma de coroa de metal para

sentir os valores que a marca deseja passar: com esse brindar com uma coroa,

o destinatário Maria Garcia se fortalece como marca feminina de mulheres

jovens – princesas que, no entanto, compartilham valores de simplicidade,

despojamento e praticidade em suas escolhas.

O público permanece em fila, aguardando o momento de entrar na sala.

Ali, deixam-se ver e ser vistos num jogo velado de exibicionismo, à espera que

algo aconteça. Mediante a entrega do convite, normalmente com a poltrona

numerada, o espectador é guiado por um assistente de palco até as cadeiras,

que se encontram nas laterais e dispostas em fileiras, seguindo o formato de

arquibancada construída em cinco níveis, além de um pequeno elevado ao

fundo da plateia onde ficam as pessoas sem lugar marcado para sentar.

Ao entrar na sala, o sujeito-convidado é solicitado a se sentar e esperar

pelo começo do desfile, participando, assim, de um ritual da moda em que será

apresentada uma coleção obedecendo a um programa narrativo dotado de

começo, meio e fim. A sua visão é frontal, localizada ao lado da passarela, no

formato convencional em forma de “I”.

A destinação dos locais de cada um depende do status do destinatário.

Assim, na primeira fila, ficam os blogueiros e jornalistas, celebridades e

patrocinadores. Na segunda, os convidados da marca, lojistas, fornecedores

parentes e amigos da empresa. E, da terceira em diante, os curiosos, alunos

de moda e o público em geral. A distância entre os sujeitos e a disposição da

passarela no espaço, bem como o seu uso serão de suma importância, pois

ambas são portadoras de sentidos.

89

Como não poderia deixar de ser, a localização das cadeiras mais

próximas da passarela, na primeira fileira, permite uma visão privilegiada do

desfile, isto é, uma melhor aproximação dos detalhes, texturas, matérias-

primas das roupas e recortes das roupas. Seria o que Landowski (2002)

denomina “os sujeitos e objetos caracterizando-se nesse contexto como

entidades chamadas a trocar constantemente entre si suas respectivas

posições actanciais, pelo jogo que aqui se joga: o da sedução”.

Nesse cenário, o destinador enriquece a narrativa do desfile/enunciado e

o transforma em discurso, escolhendo os atores, as divisões de tempo e

espaço, os temas e as figuras, além das linguagens e recursos do plano da

expressão: gestos, trilha sonora, iluminação, cenografia, modelos, beleza,

make up, hair e montagens dos looks.

Assim, ele promoverá a venda de vários produtos envolvidos e vai

agregar valores à marca, a partir da escolha das “figuras” para cobrir os

“temas”. As figuras se destinam a criar o efeito de realidade, ou seja, o desfile

de moda quer fazer crer que o sujeito só poderá “estar na moda” ou

acompanhar a última tendência da moda se consumir determinados produtos

(da marca), seguindo a fórmula “ter para ser”.

Figura 54 – Começo do desfile da marca Maria Garcia, com modelo entrando na

passarela seguindo em direção ao lugar reservado para os fotógrafos. (Foto: Nati Canto)

90

O desfile propriamente dito é organizado numa estrutura convencional,

com duração de cerca de vinte minutos, durante os quais se apresentam de

quarenta e cinco até sessenta looks. De forma frenética, todas as etapas se

articulam para permitirem ampliar a visibilidade do discurso sobre a marca.

Com os recursos instaurados na passarela e a ambiência criada, estão

figurativizam-se alguns espaços públicos da cidade. Por exemplo, por meio do

formato de uma pista de skate de cor ocre, que remete ao papel do convite, e

com pichações em tons marrons, que reconstroem o discurso da moda

contemporânea, fazendo referência à rebeldia do jovem e de grupos sociais, ao

streetwear e a outros elementos urbanos.

Também será permitido “ver”, mediante uma sequência que será

apresentada no desfile, os looks envergados por modelos pré-selecionados

para compor a imagem apresentada na passarela − além da gestualidade, do

ritmo e do movimento corpóreo que vão pontuar cada entrada em cena. O

evento é acompanhado por uma trilha sonora pré-produzida e mixada que tem

a mesma duração do desfile. Existe um compasso entre a gestualidade do

modelo e o ritmo da música.

Figura 55 – Modelos desfilando ao longo da passarela, pisando em figuras que representam as “pichações”, ou seja, os grafites que ocupam boa parte dos muros da cidade. (Foto: Nati Canto)

91

Na próxima sequência, acontece o câmbio de clímax para apreensão

focalizadora da atenção do público. Para isso, há a troca da luminosidade

âmbar, em meia luz, para o foco de refletores que vai iluminar todo o percurso

da passarela, com seu piso revestido de linóleo branco, no caso uma superfície

lisa. Os modelos percorrem a passarela, movimentando seus corpos e

imprimindo um gestual, ao som frenético da trilha sonora.

Os desfiles obedecem a uma continuidade e as orientações dadas pela

articulação dos sintagmas que os compõem e constroem uma narratividade.

Isto é, a entrada e a saída dos modelos de uma extremidade da passarela, até

cumprirem a programação de ação, de movimentos e de gestualidades, e a

indispensável parada de alguns segundos, com o rodopio para a exibição aos

cinegrafistas e fotógrafos posicionados na frente da passarela (na “boca” da

passarela). São eles que terão a melhor angulação do desfile, na qualidade de

responsáveis pelas imagens captadas pelos seus aparatos fotográficos e que

deverão projetar a marca nos meios de comunicação, transformando o

acontecimento, em notícia e demais modalidades jornalísticas.

Figuras 56 e 57 – Ângulo do fotógrafo que está posicionado na frente da passarela para captar detalhes da roupa, da maquiagem e do cabelo. São as imagens produzidas por ele que vão gerar noticias e criar o efeito de sentido da marca. Assim, na sala fechada de desfile, a iluminação artificial com uma boa projeção na passarela será imprescindível para uma maior visibilidade dos produtos. (Fotos: site Maria Garcia)

A roupa que, no seu processo de feitura, é projetada em modo

bidimensional pela modelagem, é apresentada na passarela em modo

92

tridimensional e as imagens de divulgação pelos fotógrafos do desfile vão

retransformar as roupas em imagens bidimensionais publicadas na mídia

impressa. Muitas peças são produzidas apenas para a passarela, tendo não

somente um sentido funcional, mas também estético, ao promover a

construção imagética do desfile. A marca Maria Garcia investe nas escolhas

dos tecidos como moletom, malha e tecido de algodão. Além disso, uma

modelagem não justa ao corpo é somada à busca de conforto e praticidade do

cotidiano, que vão afirmar o discurso de uma marca jovem, que se preocupa

com a estética e qualidade de vida do cliente.

Figura 58 – visão do público sentado ao longo da passarela (Foto: Nati Canto)

Os blogueiros, jornalistas, fotógrafos e todos aqueles que se fazem

presentes na sala do desfile estão juntos no “aqui e agora” do ato. Esses

sujeitos são notícias e, ao mesmo tempo, dão notícias; querem “ver” e são

“vistos”; irão “ter” informação de moda e “ser” informação.

Figura 59 – Final do desfile, quando todas as modelos entram seguidas da estilista, sendo possível observar o conjunto dos looks. (Foto: Nati Canto)

93

O desfile é editado numa sucessão de looks que seguem na passarela

até ser finalizado com a entrada do estilista. O desfile segue uma programação

e termina com palmas e a saída eufórica do público, apressado para entrar em

outra fila e assistir outro desfile. Uma cadência de dependência mútua se

estabelece, portanto, entre os sujeitos e os objetos. Aqueles, por vezes,

também assumem papel de sujeitos, fazendo com que o fluxo de comunicação

seja contínuo.

94

4.2.2. Espaço aberto/privado: Cavalera

Nesta categoria, selecionamos o desfile da marca Cavalera, presente na

27ª São Paulo Fashion Week (SPFW), realizado no Elevado Costa e Silva, em

junho de 2009.

Não é a primeira vez que a grife se apropria do espaço aberto da cidade

de São Paulo. Há algum tempo a marca tem utilizado a mesma estratégia de

visibilidade. Em janeiro de 2006, realizou o desfile nos jardins do Museu

Paulista, conhecido como Museu do Ipiranga. Antes do início do desfile, a

produção do evento distribuiu guarda-chuvas para que o público pudesse

assistir e acompanhar a performance, na qual as modelos caminhavam

contornando o jardim em frente ao museu.

Em julho do mesmo ano, a locação do desfile da coleção masculina

ocorreu na pista de largada do Autódromo de Interlagos e 600 lugares da

arquibancada foram liberados para o público comum.

O rio Tietê foi o cenário do desfile da marca em janeiro de 2008, com o

tema da radiação e o desastre nuclear em Chernobyl, na Ucrânia. Como parte

do espetáculo, a Cavalera incluiu um barco que transportou os jornalistas e

especialistas de moda ao local do desfile, à margem do rio.

Figura 60 – Desfile da Cavalera, no Rio Tietê, em São Paulo, 2008. (Fonte SOMMER, M. Coleção Moda Brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2008)

Todas as locações escolhidas para a realização dos desfiles foram

definidas a partir do tema da coleção, que foi o ponto de partida para a

95

definição e também para as articulações, dinâmicas e experiências estésicas

às quais o público foi exposto. O deslocamento do desfile da Cavalera para o

espaço da rua rompe, assim, o modo tradicional de um desfile ser alocado.

Passamos agora à análise do desfile realizado no Elevado Costa e Silva,

mais conhecido como Minhocão, no centro da cidade. Para uma melhor

compreensão, e por didatismo, vamos inserir dados sobre o elevado que

ajudam na compreensão da espacialidade e topologia do desfile.

O elevado liga a Praça Roosevelt, na Consolação, ao Largo Padre

Péricles, em Perdizes, passando por cima da Rua Amaral Gurgel e da Avenida

São João. Ele tem 3,4 quilômetros de extensão, ligando o centro à zona oeste

e abrangendo quatro bairros: Barra Funda, Vila Buarque, Consolação e Santa

Cecília.

Figura 61 - Mapa de localização do desfile. (Fonte: Google Maps)

Pelo mapa, observamos que, topologicamente, é possível fazer a

relação entre o alto (o viaduto) e o baixo (Avenida São João). O elevado é

dividido por duas vias, separadas por um canteiro central de cimento que serve

para o trânsito de veículos. Durante o dia, ele tem uma iluminação natural e

feixes de sombras dos edifícios próximos a ele, separados por apenas 5 metros

de distância.

No que diz respeito à questão cromática, percebe-se o predomínio do

monocromatismo acinzentado com pinceladas de beges, verdes, amarelos,

96

brancos e azuis, vindas dos prédios antigos e pichados. Forma-se uma imagem

de decadência e de desleixo, com nítidas marcas de poluição, marcados pelo

cromatismo acinzentado sobre toda a estrutura do elevado. Desse modo,

enquanto o cromatismo cinza figurativiza o elevado, as cores constituem o

universo dos prédios. Encontramos uma oposição cromática de neutro vs.

colorido, em que a imobilidade (a moradia) traz cor, ao passo que o cinza

marca a mobilidade (via de carros).

Topologicamente, o elevado se localiza entre os prédios, separando-os

pelas suas alça de acesso. Enquanto os edifícios são vistos verticalmente, o

Minhocão se impõe pela horizontalidade, criando uma dinâmica de alto-baixo-

alto que os olhos inevitavelmente seguem, constituindo, assim, a oposição

vertical vs. horizontal. No que concerne ao formato eidético, observa-se que

os prédios formam colunas eretas, retângulos, enquanto o elevado segue seu

percurso sinuoso e cortante, que dá mobilidade à paisagem. Podemos extrair

dessa categoria a oposição entre retilíneo vs. curvilíneo. Vejamos:

Figura 62 – Vista aérea da parte superior do Elevado Costa e Silva. (Fonte:

http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/kassab-anuncia-projeto-preve-demolicao-minhocao)

97

O Minhocão

prédio

Figura 63 – Desenho geométrico do Elevado Costa e Silva.

Relacionando esses antagonismos presentes em todas as categorias

plásticas, concluímos que são construtores de sentido, formando campos

semânticos distintos. Vejamos o quadro a seguir:

FORMANTES

PLÁSTICOS

MINHOCÃO EDIFÍCIOS

Topológico Horizontal Vertical

Cromático Neutro (cinza) Colorido (verde, amarelo,

azul)

Eidético Curvilíneo Retilíneo

Tabela 1 – Formantes plásticos - Elevado Costa e Silva

A sonoridade também demarca o espaço. Os prédios são cercados pelo

barulho dos carros que circulam sobre o elevado de segunda-feira a sábado,

das 6h30 às 21h00, gerando sons de buzinas, acelerações de motores, freadas

e o som da própria velocidade. Embora aos domingos e feriados seja proibida a

circulação de carros, uma massa de pessoas produz sons contínuos,

misturando-se, assim, os sons de vozes, passos e objetos sonoros. O viaduto

atua como uma caixa de ressonância que gera sons que ecoam dentro dos

prédios que o margeiam.

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Figura 64 – Elevado Costa e Silva durante a semana. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

Mas a presença de pessoas muda a função do elevado, gerando novos

ânimos. A hostilidade dá espaço para a descontração; o barulho cortante e

ensurdecedor torna-se melodia e soneto; o rush desaparece para dar espaço

ao lazer e à integração sociocultural. O descontraído se sobrepõe ao austero,

ao rígido. As fileiras de carros são substituídas por pessoas caminhando,

bicicletas, patinetes, skates.

Figura 65 – Elevado Costa e Silva no domingo, como um espaço de convivência social

(Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

A amplitude do som sofre oscilações por dias e horários. Há também as

paradas tensivas, que acontecem no meio da noite e durante toda madrugada,

produzindo uma parada da continuação, das 21h01 às 6h29, durando 9h30,

correspondendo à continuação da parada. O som está relacionado ao tempo: o

barulho situa-se ao longo do dia, enquanto o silêncio se faz presente a noite.

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Há uma espera tensiva para a chegada do silêncio (parada da continuação) e

também para a chegada do barulho (parada da parada).

Na questão olfativa, o cheiro forte de dióxido de carbono exalado pelos

carros se mistura com os cheiros gerados no ambiente aberto e público que

busca invadir os espaços privados. Porém, há um invólucro que protege e

separa esses dois espaços: as janelas de vidro e as paredes dos prédios. A

tensão é simbolizada por esse elemento intermediador, que atua como

moderador. Atrás deles está o privado, acuado e intimidado; diante dele, o

público, indiferente e hostil.

Agora, vamos fazer um novo recorte no elevado, mostrando-o por baixo.

Nota-se a predominância ainda maior da decadência da zona urbana, com

pouca claridade e sendo sombreada pela via elevada. Ainda sobrevivem

algumas lojas comerciais, há vários labirintos de ruelas que se bifurcam, um

grande fluxo de carros, ônibus, motos, carroças e pessoas (trabalhadores,

moradores, visitantes, transeuntes e mendigos).

Figura 66 – Minhocão visto de cima para baixo.

(Fonte:http://www.apocalipsemotorizado.net/2009/10/13/jardim-suspenso-da-babilonia)

Visto da parte inferior, a perspectiva muda: o viaduto. Suas pistas

formam um teto, uma cobertura e até mesmo uma moradia. Encontramos

nesse patamar térreo relações humano-afetivas em que o homem atua e

interfere no meio. O elevado forma, então, dois cenários que permeiam a

experiência urbana da pluralidade, da participação do cenário privado e

público.

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O Elevado Costa e Silva

Via superior Via inferior

Céu Teto de cimento

Luminosidade Sombra

Calor Frio

Residência Comercial

Prédios Ruas e casas

Carros Carros e pessoas

Hostilidade Hospitalidade

Tabela 2 – Pares de oposição relativos às partes superior e inferior do Elevado Costa e Silva

Agora que temos dados suficientes sobre o elevado, podemos iniciar a

análise do desfile, realizado numa manhã de domingo, tendo como cenário o

Minhocão. A análise do desfile tem como ponto de partida o convite do evento.

Figura 67 - Convite do desfile da Cavalera, em 2009.

A escolha dos formantes plásticos cromáticos recai no uso do preto,

branco, cinza e vermelho (cores da bandeira paulista). Observa-se que tudo

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para o que a grife deseja chamar a atenção está inserido em blocos vermelhos

ou em escritos em vermelho:

A frase que chama as pessoas (“Save the date”) está dentro de um

retângulo vermelho, dando mais destaque à chamada imperativa.

Os meios para se chegar ao local estão em forma de ordens, grafados

em vermelho: “vá de táxi!”, “vá de metrô!”, “vá de bike!”;

Os endereços dos estacionamentos de carro na região também estão

em vermelho;

O nome da marca está dentro de um bloco vermelho, com letras

opulentas;

O símbolo da grife, uma águia de duas cabeças, toda branca, está

disposta sobre um fundo vermelho;

Por fim, um bloco vermelho sem nenhuma mensagem verbal para a cor

chama atenção.

Na categoria eidética, o formato do convite é retangular, com vários

outros retângulos inseridos no espaço, de tamanhos distintos e distribuídos,

topologicamente, nas margens, com maior concentração na parte inferior.

Ainda na questão topológica, chamam a atenção os retângulos

informativos localizados nas margens do convite. São blocos com a mesma

forma geométrica dos prédios que circundam o local. No centro, um mapa, um

percurso em curso, uma via (ou seria uma veia?) de acesso. Esse percurso

que grita em vermelho, dando mobilidade e forma é uma alça de acesso aos

demais dados, conectando-os.

Na parte superior, há uma extensa faixa retangular que vai de uma ponta

a outra, na cor vermelha. Dentro dela, há um texto em inglês, em letras de

forma, dizendo “Save the date”. A fonte da letra não tem serifa em suas bordas.

Na parte inferior, à esquerda, encontra-se um retângulo com um tipo

gráfico sem serifa, em que aparece a autoria desse comando deliberativo com

agenda e data. A marca Cavalera e seu site assumem a voz de quem faz esse

ato.

A cartela de cores do convite reitera estabelece um diálogo com a

bandeira do estado de São Paulo, em que as cores preto, branco e vermelho

se distribuem no retângulo de forma predominante. Mais adiante, veremos esse

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reforço dos formantes eidéticos com vários modelos desfilando com roupas

com a bandeira do estado nas estampas, nos acessórios e nas roupas, num

processo de estilização. E a cor cinza, de onde vem? Do céu da Pauliceia,

conhecida como a cidade da garoa e do céu acinzentado pela poluição e pelos

blocos de concreto que formam os prédios. A visão aérea da cidade pode ser

tomada como configuração de um grande bloco acinzentado, no qual ruas,

prédios e céu formam uma unidade monocromática.

Na análise do texto verbal, podemos traduzir a frase “Save the date”

como “Reserve a data”. O verbo está no imperativo afirmativo. Na verdade, não

é um convite, mas uma intimação. O convite constitui, assim, um dever-fazer.

Ele cria o simulacro do convite e da manipulação por sedução. Entretanto, na

imanência, ele institui uma ordem que manipula por intimidação o destinatário.

Seu autoritarismo é mascarado pelo aspecto estético e pelo uso de uma frase

em língua inglesa, que recorta o púbico que recebe o comando como uma

parte específica da população. Assim, a expressão verbal em inglês identifica

um público elitizado, que reconhece o chamado.

O mesmo acontece quando o convite informa como chegar ao local: “vá

de táxi!”, “vá de metrô!” e “vá de bike!”. O verbo das frases permanece no

imperativo afirmativo, seguido de exclamação, que é utilizada para indicar um

grito, uma emoção forte eufórica e mesmo para facilitar o acesso ao local ao

qual, cotidianamente, só se tem acesso de carro. Curioso observar, porém,

que, ao indicar os estacionamentos, não há a presença do verbo no imperativo

e nem o uso da exclamação, mas uma neutralidade linguística.

Podemos fazer uma leitura dessas frases exclamativas: quem não tem

carro, que se vire. O tratamento demonstra descaso. Depreende-se, assim, que

os organizadores do desfile não estão preocupados com o público que não

possui carro. Entretanto, se o enunciatário possui carro, o evento oferece três

opções de estacionamento com endereços completos, próximos ao local do

desfile. Há uma preocupação com o bem-estar do público que vai de carro.

Sendo uma via pública, o acesso é livre? Não. O convite informa que a

entrada é pela rampa em frente ao metrô Marechal Deodoro. Para passar, é

preciso apresentar o convite. Assim, processa-se uma seleção, uma filtragem,

uma discriminação, uma elitização do público, formado por jornalistas,

empresários, fotógrafos, formadores de opinião, representantes têxteis,

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atacadistas e varejistas. Isto é, somente pessoas da área de produção e

circulação econômica da moda.

Após essa filtragem, a produção do evento disponibiliza cadeiras de

praia e sombrinhas coloridas próximas à mureta do elevado, para que os

convidados se sentem e acompanhem o desfile, numa prática muito próxima

dos transeuntes de domingo que frequentam o local, embora estes não possam

estar presentes ali.

Figura 68 – Desfile da Cavalera sobre o Elevado Costa e Silva. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

O desfile segue uma programação determinada, com horário para

começar, às 12h, e número limitado de convidados posicionados nas laterais

das pistas, como coadjuvantes compondo parte da encenação. Mesmo entre

os convidados, há uma separação hierarquizada: a primeira fila é reservada à

imprensa, às celebridades e aos empresários, enquanto a segunda é para os

compradores e um público heterogêneo que agrupa curiosos, estudantes de

moda, clientes e amigos.

O que iguala as duas fileiras é que elas estão no mesmo nível da

passarela improvisada nas vias de acesso.

Como o desfile foi feito também para ser veiculado pela mídia televisiva

e pela internet, podemos considerar que o público será convertido em actante

do espetáculo, pois ele faz parte do enunciado mostrado do mesmo modo

como na transmissão de um jogo de futebol, em que o comportamento e as

reações da plateia serão importantes para o resultado final da edição.

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Figura 69-O público convidado e as cadeiras vermelhas. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

As cadeiras de praia são vermelhas, feitas de nylon e alumínio. A

estrutura não é sólida, causando certa desestabilidade do corpo ao sentar. Os

convidados sentados têm, diante de si, separados apenas pela pista, outros

convidados. Eles se veem, se observam e, topologicamente, demarcam espaço

e valor. Mas há outro público que os observa: os dos moradores dos prédios.

Sendo assim, o corpo é convocado a se expor e ser visto pelos que estão na

cobertura do desfile, o que torna essa ambientação zona de visibilidade

exponencial dos figurantes da moda.

Para os convidados da primeira fila, os considerados vips (acrônimo de

very important person), a marca reserva presentes, para que se sintam

especiais e diferentes dos demais, que não são contemplados. Cada um deles

recebe um kit-brinde contendo uma camiseta com a frase “I Love SP”, um

guarda-chuva, um release e biscoitos dos patrocinadores. A adoção de brinde

é uma estratégia de marketing que permite uma melhor aproximação com a

marca. Outra estratégia para reforçar a imagem de que a marca é a cara de

São Paulo é a camisa, que vem com uma frase, em inglês, de declaração de

amor à cidade. O público, portanto, é preparado para ser partícipe do

enunciado.

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Figura 70 – Convidados e celebridades instalados nas cadeiras vermelhas. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

Mesmo com toda essa estruturação restritiva, a marca constrói o

simulacro de que todos são convidados para assistir ao espetáculo. Os que

não receberam convite, e por isso não tiveram acesso ao elevado, podem

acompanhar das sacadas dos apartamentos ou das grades colocadas ao longo

do percurso do desfile com a finalidade de demarcar e separar o espaço

público do privado.

A Cavalera faz parecer que mantém um vínculo afetivo com a cidade,

com uma atitude democrática e de inclusão social em seu desfile. Na verdade,

porém, as massas excluídas pela sociedade continuam excluídas pela grife,

fato esse que reforça o status quo da sociedade em que nos inserimos,

discriminatória e excludente. Ela ratifica, assim, o conceito capitalista de ter

para ser. Se você consome, é bem-vindo; caso contrário, fique à margem,

assim como o público sem convite ficou à margem do desfile.

Contemplar o desfile de longe não exclui, entretanto, algumas

experiências estésicas e estéticas proporcionadas pelos sentidos da visão, da

audição, do olfato e da temperatura ambiente. Para os convidados,

acrescentam-se os sentidos do tato e do paladar, pois foram distribuídos

picolés para serem saboreados. Essas experiências estésicas mostram que o

destinador instala no discurso artimanhas para propiciar boas condições para

que o destinatário alvo possa desfrutar de uma lição de moda em local público,

mas recortado pelo público privado.

No desfile, o regime de visibilidade é a “sintaxe do ver” que possibilita a

orientação das dimensões cognitivas. O desfile tem seus dispositivos para que

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a relação de visibilidade ocorra com o “fazer-se ver”: as posições das cadeiras,

localizadas ao longo da passarela/asfalto, que são ocupadas pelos convidados,

que procuram, eles próprios, a “captação do olhar” do outro, assumindo, por

sua conta, o papel de sujeito operador e observador que o plano de expressão

processa em várias instâncias. Vejamos:

a) Os corpos dos convidados sentados são acionados pelos olhos e

ouvidos para mover algumas partes do corpo: seu tronco, braços,

pescoço, cabeça e ouvidos, que devem se movimentar para

acompanhar com seus olhos os modelos desfilando ao longo do trajeto;

b) Os passantes, posicionados em pé ao longo da grade que separa a

esfera pública da privada e que transitam pela via disposta na lateral da

grade, são convocados a “ver”;

c) Os moradores locais têm uma visão de cima para baixo, pois ocupam as

sacadas, a varanda e as janelas dos edifícios da localidade;

d) Os passantes e moradores, abaixo do elevado, percebem as

modificações e quebra da rotina que acontece no elevado;

e) Os fotógrafos são espacialmente posicionados em arquibancadas diante

da passarela para captar os melhores ângulos do desfile, com o objetivo

de produzirem imagens e gerarem notícias para os veículos de

comunicação;

f) Todos os grupos enumerados acima geram suas narrativas a partir de

determinado ângulo (ponto de vista).

Vamos nos deter, então, na construção do percurso narrativo de S1, que

corresponde ao actante do desfile colocado em estado de “ser visto”, e do

actante S2, que ocupa a função do “observador”. Nesse evento, instalado na

rua, os convidados podem ser observados pelos moradores das sacadas e

pelo público comum, composto por pessoas não convidadas. Ao mesmo

tempo, o morador local visualiza de cima para baixo cada uma das arenas de

visibilidade dadas aos fotógrafos, desfile, passantes e convidados. Tanto os

convidados quanto os participantes do desfile da passarela e o público comum

são observadores, cada qual construindo seu ponto de vista.

A percepção do desfile é conduzida pelo enunciador, que está

figurativizado no enunciado pela marca Cavalera, que determina o que pode e

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deve ser visto. Apoiando-nos no sujeito observador cognitivo, debreado pelo

enunciador e que constrói um determinado ponto de vista, torna-se possível a

expansão semântica das imagens percebidas. Assim, o enunciatário, actante

S2, que apresenta a função de observador, posiciona-se no desfile para ser

tocado pelo sensível e pelo inteligível, que se apresenta na visibilidade do

desfile.

Temos assim um modo enunciativo adotado pela localização do desfile

fora do espaço convencional. O cenário abre-se para os sujeitos observadores,

para quem toda enunciação é montada. Os graus de diferenciação dos vários

observadores instaurados no enunciado, múltiplos pelas diferenças de

conhecimento e de posicionamento do que se passa no desfile de moda, fazem

com que o seu fazer interpretativo sofra o impacto da novidade do local, que é

ressemantizador na interpretação de sentidos.

A visualidade tem seu ritmo comandado pela sonorização do desfile, que

define a sua duração em torno de vinte minutos, espaço de tempo em que são

apresentados quarenta e cinco looks, isto é, visuais completos e produzidos.

Figura 71 – Desfile da Cavalera, em 2009. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

O desfile da Cavalera faz o deslocamento do espaço fechado/privado

para o espaço fechado/público e provoca várias alterações na topologia do

desfile convencional, embora o modo operante de apresentação dos seus

produtos mercadológicos seja igual aos dos desfiles convencionais. O cenário

do desfile é o espaço da cidade, com o acréscimo de alguns elementos de

cena que fazem parte da vida urbana, tais como carros, motos e bicicletas.

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A topologia da passarela, localizada entre os acentos dos convidados e

dos prédios dos não convidados, marca a centralidade para a qual convergem

todos os olhares, vindos de diferentes direções e altitudes.

Figura 72 – Desfile da Cavalera, em 2009. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

Sendo um espaço fechado/público, o desfile realizado num local assim

fica vulnerável às mudanças climáticas do tempo e às intempéries do meio. E o

público sente todas essas mudanças táteis, visuais e sonoras, que alteram o

estado anímico das pessoas presentes ao evento.

A pista, palco do desfile, foi dividida em três faixas, criando um

dinamismo na apresentação. O meio fio, que divide as duas pistas de asfalto, é

usado como uma faixa de passarela, porém num nível mais elevado. A

topologia do desfile em forma de “I” se apropria da paisagem do lugar: os

postes, os acostamentos, as sinalizações no chão e as placas de

quilometragens.

O ato do desfile não segue o modelo padrão de disposição e

apresentação de um modelo atrás do outro. Pelo contrário, a coreografia é

intencionalmente desordenada, mimetizando o cotidiano dominical do elevado,

em que as pessoas caminham livremente e se expressam individualmente.

Um casting composto por modelos profissionais e também simpatizantes

da marca, que atuam como actantes comuns do dia a dia da metrópole. Alguns

andam de bicicleta, outros seguem seu percurso sobre patins ou motocicleta.

Há ainda os que simplesmente caminham ou levam seus filhos para um

passeio dominical. São vários agrupamentos sociais e com diferentes

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expressões de si e de valores que atuam no mesmo espaço-tempo, em uma

coabitação integradora.

Figura 73 – Desfile da Cavalera, em 2009. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

Esse tipo de desfile em espaço fechado/público instaura o sujeito-

público, consumidor de moda, como público/privado, mas sem excluir o

público/público. O procedimento de manipulação com um “querer estar na

moda” é posto, assim, no cenário e na encenação pública como um “dever

estar na moda”.

A prescrição do habitante de São Paulo estar na moda está posta, tanto

pelo uso das vestimentas quanto pelo acesso às informações fornecidas pela

mídia. O perfil do público actorizado que a marca constrói é de uma pessoa

que se veste casual e despretensiosamente, mas que está permanentemente

informada pelos veículos de comunicação especializados das tendências de

moda e comportamento, impondo o que deve e pode ser usado.

É claro que quem dita o que se deve e se pode usar é a grife. A

imprensa funciona como um poderoso intermediador, um formador de opinião

que lança ao grande público esses dados, desenvolvendo sentidos de como

querer se apresenta no mundo.

110

Figura 74 – Desfile da Cavalera no Elevado, em 2009. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

Sendo uma marca que vende a imagem de jovialidade, beleza e

esportividade, a Cavalera busca símbolos culturais para ratificar essa imagem

construída. Dessa forma, a marca se faz conhecida e se aproxima de sua

clientela potencial a partir do discurso que confere um elo de sentimento de

comunhão afetiva e de intimidade com a cidade e com seus moradores, num

desfile-passeata, em que todas as bandeiras estão juntas no mesmo esforço

de embelezar-se para ocupar a cidade.

Figura 75 – Desfile da Cavalera no Elevado, em 2009 (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

Retomamos agora a estilização da bandeira do estado de São Paulo.

Para reoperar o seu sentido, o convite sinaliza sua presença através dos

elementos plásticos cromáticos – as mesmas cores da bandeira paulista – e

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eidéticos – o seu formato retangular e o topológico, a distribuição dos

elementos da bandeira de São Paulo.

Figura 76 – Acessórios da grife, com estampa da bandeira de São Paulo. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

Figura 77– Bebê desfilando com peças estilizadas da bandeira de São Paulo. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

Figura 78 – Mais um modelo com roupa estlizada da bandeira paulista. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

No desfile, a bandeira se faz presente nas roupas de homens, mulheres

e crianças, além de acessórios. Assim como os norte-americanos e ingleses, a

Cavalera propõe que o paulistano tenha a mesma atitude de ufanismo, não em

relação ao país, mas à sua cidade, reforçado a imagem de grife paulistana, que

não atua na totalidade do país, mas na segmentação e na exclusão de público

formando a sua ilha de inclusos.

A grife se coloca no mercado de forma elitista e discriminatória, um

posicionamento arriscado caso se tenha em vista a expansão da marca para

outros mercados. O que ela propõe como “identidade Cavalera” é uma

adaptação de valores culturais de países do primeiro mundo. Vejamos:

a) Se a marca busca uma identidade própria e local, por que buscar formas

de expressão iguais a de outros países que dominam cultural e

economicamente o mundo?

b) Por que a presença de uma língua estrangeira no convite para se

comunicar com o convidado, se a língua nacional possui vocabulário

suficiente para se expressar?

c) Se a marca busca crescer mercadologicamente, por que ter sempre

como tema em seus desfiles símbolos da cidade de São Paulo? No caso

112

do Elevado Costa e Silva, por que um símbolo polêmico que trouxe

decadência à região e falta de qualidade de vida aos moradores é

considerado, esteticamente, uma obra de engenharia feia?

d) Não ser paulista ou paulistano é fator excludente de pertencer à

Cavalera, já que este público não tem representação e/ou expressão

dentro da marca?

e) Poderíamos dizer que o discurso da grife propõe que, assim como os

brasileiros se espelham e se subjugam às culturas dominantes, o

brasileiro que não reside em São Paulo deve se espelhar nessa cultura

regional pelo seu papel econômico inegavelmente superior?

Retomando a encenação do desfile, vemos que ele resulta num

particular regime de visibilidade. O formante topológico, por exemplo, é a

própria cena do desfile, delimitando o percurso a ser seguido. As demais

passagens foram bloqueadas por carros antigos e coloridos, que fazem parte

da cena.

A outra estratégia adotada pela Cavalera é a manipulação por sedução

do público-alvo, pregando um discurso de que todos são bem-vindos.

Entretanto, o discurso verbal do dito não encontra veracidade nessa ação,

inclusive, se o sujeito não tem convite, não é bem-vindo, sendo barrado na

entrada. Assim, é um sujeito do querer-ser destituído do poder-ser e do

poder-ter. A ele, é reservado o espaço por detrás das grades que separam o

público do privado.

Figura 79 – Desfile da Cavalera, em 2009. Contraste entre as linhas verticais e

horizontais das filas de cadeiras com os convidados. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

113

As imagens construídas pelo enunciador na atualização do discurso do

“novo” são vivenciadas nas passarelas de moda com os looks da marca, que

se rearranjam com um parecer de novidade, ruptura para continuar a ser

adotado como nova coleção a cada temporada.

A ruptura da programação do desfile convencional acontece não

somente na dimensão espacial, mas na atitude corpórea do casting que remete

aos gestos do cotidiano, sem posturas programadas nas passarelas. Os

modelos seguem um ritmo casual e descontraído, no estilo de vida das tribos

dos streetwears, skatistas, esportistas, grafiteiros, surfistas, ciclistas, mães e

bebês, crianças, músicos, motociclistas e casais de namorados.

Figura 80 – Final do desfile da Cavalera, em 2009. Os modelos desfilam em grupo como uma passeata. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

Para criar esse cenário casual, o grupo de modelos selecionados foi

composto por quinze paulistanos não modelos e trinta modelos profissionais. A

inserção de pessoas comuns, incluindo na passarela pessoas não tão jovens,

como um homem de 45 anos, ratifica e reforça o discurso de diversidade e

miscigenação que a cidade de São Paulo comporta e absorve. A maquiagem,

bem natural, remete ao mesmo discurso de espontaneidade, como se fossem

pessoas do cotidiano transitando livremente pelo lugar. Há coerência e

sincronia entre o dito e o feito, gerando confiança no enunciatário.

Além disso, ao construir cuidadosa e detalhadamente uma aparente

descontração, invadindo uma via feita para circulação de automóveis, elabora-

se uma crítica e um apelo à cidade, para que ela se humanize e abra mais

espaço para as pessoas.

114

4.2.3.Espaco aberto/privado: Karlla Girotto

Figura 81 – Mapa de localização do desfile. (Fonte: Google Maps)

O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro localiza-se no Aterro do

Flamengo, uma faixa de terra construída sobre as águas da Baia da

Guanabara destinada a ligar a zona sul ao Aeroporto Santos Dumont e ao

centro da cidade. Trata-se, de fato, de uma via expressa limitada, de um lado,

pelos antigos edifícios do bairro do Catete e do Flamengo e, de outro lado, por

1.301.308 metros quadrados de jardins ladeados pelo mar. Ao longo de uma

praia artificial, esses jardins foram planejados e executados por Roberto Burle

Marx e incluem playgrounds, teatro ao ar livre, restaurantes, áreas de lazer

esportivo e estacionamentos para atender o Monumento aos Mortos da

Segunda Guerra e o Museu de Arte Moderna.

O projeto do Museu foi concebido pelo arquiteto modernista Affonso

Reydi, tendo sido concluído apenas em 1968. O desenho da obra, traçado

desde 1953, procurava estabelecer um diálogo visual com a paisagem das

montanhas, da baía e do próprio Parque do Flamengo, definido pelo autor

como “uma extensa área conquistada do mar, no coração da cidade”.

De acordo com Lauro Cavalcanti (2001, p.46), a concepção monumental

do Museu inclui a noção de espetáculo e celebração da arte. Assim, segundo o

autor, o Museu:

“procurou não entrar em conflito com a natureza, optando por uma composição predominantemente horizontal, de modo a acentuar o

115

movimentado perfil das montanhas [...] e permitindo manter a continuidade dos jardins até o mar” (CAVALCANTI, 2001, p.46).

Para Laurence Fleming (1996, p.80), biógrafo de Burle Marx, essa

operação realizada ao longo da paisagem permitiu com que os antigos

edifícios, que pareciam debruçados em direção ao mar, aparecessem

dispostos em uma escala mais razoável, privilegiando a horizontalidade do

olhar.

A vegetação escolhida compreende exclusivamente espécies nativas

que, em sua proximidade com o oceano, adquiriam porte monumental, sem

reproduzir, entretanto, o adensamento de uma floresta. Burle Marx dizia que

essa era a forma pela qual ele procurava “trazer a natureza ao alcance do

homem e levar o homem de volta à natureza” (BURLE MARX, 1996, p.77).

Figuras 82 / 83 – O jardim do MAM no Rio de Janeiro. (Fonte: site do MAM/RJ)

Num continente do Jardim no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,

acontece o desfile “Neutro”, como parte da programação dos desfiles de moda

da semana Fashion Rio, verão/2005. Há uma relação entre o destinador e o

destinatário, construída por meio do olhar e das sensações tácteis

proporcionadas pelo ambiente que envolvem o desfile, sendo esse, a um só

tempo, natural e construído.

Ao assistir o desfile “Neutro”, somos transportados para uma dimensão

sensível de alta complexidade: sentimos o vento e a brisa do mar, ouvimos o

murmúrio longínquo dos automóveis e aviões. Viajamos, assim, dentro dessas

experiências estésicas para um futuro simbolizado pelas formas modernistas

116

da arquitetura e, simultaneamente, regressamos para os anos 1950, quando

tudo aquilo nascera, isto é, na origem daquele ambiente e dos vestidos que por

ele desfilam. Para Landowski,

numa espécie de comunhão entre os que representam e os que assistem ao espetáculo, estes últimos se reconhecendo através dos primeiros [...] o valor do espetáculo considerado sob seus diversos aspectos, ao mesmo tempo com ação representada e como comunhão vivida (LANDOWSKI, 2002, p.186)

Aos valores de intimidade, referimo-nos ao espaço interior de uma casa,

mais precisamente, de um dormitório. Dentre os elementos que compõem

esses valores, podemos citar o aconchego e o conforto próprios daquela

concha de morada que nos permite repousar e sonhar em paz. Na casa, o

quarto protege o homem das intempéries do tempo e da imprevisibilidade da

rua, do mundo exterior. Em suma, a casa e o quarto são locais de uma vida

protegida, no limite, um simulacro do útero materno.

Figura 84 – Convite do desfile “Neutro”, verão/2005.

O convite lembra a página de um caderninho, ou ainda, de um diário

íntimo, no qual toda a donzela – especialmente a das décadas de 1950 e 1960

– registrava seus segredos na horizontalidade de suas linhas. No centro, em

caixa alta, aparece o nome da estilista Karlla Girotto. Abaixo, lemos a

localização do desfile e a sua duração. Os desenhos lembram um rascunho ou

um esboço de algo inacabado, já verificado em várias outras criações da

117

autora: a evidência de uma obra em processo, na qual o tempo se esparrama

em formas que podem ou não se definirem.

No que diz respeito ao cromatismo, a presença das cores preta, branca

e vermelha constituem escolhas do enunciador, que se referem às cores da

bandeira do Estado de São Paulo, onde a estilista nasceu. Notamos, assim,

alguns elementos que serão reiterados no desfile de Karlla Girotto:

a) a cama com uma dimensão exagerada e desproporcional ao corpo que

a ocupa;

b) uma pessoa dormindo ao lado de um travesseiro, com o seu corpo

curvado e encolhido, em posição fetal;

c) sobre uma mesinha, um sapato dentro de uma gaiola. Com relação à

figurativização do sapato preso na gaiola, podemos associar que as

imagens de segurança, conforto e luxo têm como corolário a supressão

da liberdade expressa metaforicamente pela gaiola, que, no desfile, é

dourada.

No lado direito do convite, na parte superior direita, observamos uma figura

feminina inacabada. Ainda que acordada, ela olha para o convidado, talvez

estabelecendo uma relação de intimidade determinada pelo olhar (enunciação

enunciada). Há também o registro da palavra “CÉU”, ao lado das montanhas

no canto esquerdo superior, disposto de forma oposta ao que se encontra no

canto direito inferior (que seria, portanto, a terra).

Na parte inferior direita, um corpo feminino desenhado em vermelho,

deitado no andar superior de uma cama beliche (relação explicitada de

superioridade e inferioridade). A partir dos desenhos esboçados no convite, os

convidados se tornam íntimos do sentido do dizer daquele desfile.

118

Figura 85 – Desfile “Neutro”, verão/2005. Jogo do piso horizontal e vertical e entre horizontal e vertical entre as distribuições de camas em desfile. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

O desfile tem início antes mesmo de o público convidado chegar ao

local, o que já é uma ruptura estrutural. Na primeira sequência, às oito horas da

manhã, temos um casting formado por cinco modelos, que se dirigem cada

uma para uma cama. Na segunda sequência, as modelos sentam-se nas

camas, abaixam-se e guardam seus colares de pérolas dentro de caixinhas de

música. Em seguida, as modelos tiram os sapatos e os colocam dentro das

gaiolas que estão em cima dos criados mudos, próximos das camas.

Destacamos a dimensão gigantesca das camas, construindo, portanto, uma

metáfora da oposição de categorias no nível fundamental entre liberdade e

opressão.

Na terceira sequência, elas se deitam e dormem sobre os colchões sem

lençol, viradas para a direita. O cenário nos remete à figurativização de um

quarto, no interior de uma casa, ou um dormitório de colégio interno – lugar de

repouso e proteção. Temos aqui a tensão entre o individual e o coletivo,

remetendo à experiência juvenil de partilhar o “diário íntimo”. Mas na cenografia

do desfile não existem paredes, teto ou portas, o que ocasiona, portanto, uma

dilatação das barreiras entre a vida pública e a vida privada.

As modelos dormem durante cerca de três horas e meia, com seus

corpos expostos a uma iluminação natural, com temperatura em torno de 32°C.

Em uma alusão ao mito da bela adormecida, observamos o congelamento do

fluxo da vida nessa cena. Enquanto elas estão dormindo são vigiadas por um

modelo masculino, que se encontra sentado em um banco. Disposto em uma

119

posição superior às camas, ele observa atentamente as modelos com um

despertador nas mãos. Logo atrás dele, encontra-se uma escada vermelha.

Essa escada é disposta topologicamente na verticalidade, contrapondo-se,

assim, à horizontalidade das camas. Em um curioso semissimbolismo, olhadas

desse ângulo, as camas formam as treze listras que compõem a bandeira do

Estado de São Paulo.

Figura 86 – Detalhe das camas nas paralelas. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

Figura 87 – Detalhe da modelo colocando os sapatos na gaiola. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

A escada que está posicionada ao fundo das camas, nos remete a uma

relação de ligação entre a terra e o céu, sendo também a verticalidade das

paredes da casa, o que separa o exterior-público do interior-privado. Temos,

assim, a figurativização da escada que nos conduz ao céu, em um movimento

duplo de descer ou subir, em uma espécie de caminho para o sonho e para a

solidão.

120

No que toca à materialidade do piso em que se encontram as camas

com o formato retangular, salientamos as suas características plásticas:

rugoso, rústico e irregular. O piso tem por objetivo sedimentar e alicerçar a

base do quarto para as camas não afundarem, contrapondo-se, ainda, ao

jardim disposto ao redor e dominado por uma grama verde e sedosa. A

disposição das pedras, separadas por espaços intermediários, oferecem uma

continuidade até a escada no fundo.

Figura 88 – Modelo realmente dormindo, como parte da performance. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

Figura 89 – Marilyn Monroe, uma referência de beleza dos anos 50. (Fonte: A Beleza do século XX, Cosac Naify, São Paulo: 2002)

Percebemos ainda uma concretização do simulacro da beleza feminina

dos anos 1950 na escolha das modelos, que têm boca marcada, cabelo loiro

121

platinado, olhos pintados com delineador no estilo “gatinha”, pinta preta no

rosto e sobrancelhas mais escuras, contrastando com a pele clara.

Pausando um estranhamento, as modelos dormem, indiferentes ao ruído

da cidade, das vias expressas próximas ao Jardim, dos automóveis, dos

aviões, das pessoas e do tic-tac do relógio, que marca a temporalidade do

desfile, o “agora”, e a espacialidade do “aqui”.

Elas permanecem embaladas em um sono profundo, enquanto os que

olham permanecem à espera de que algo aconteça. Todavia, o tempo vai

passando e as modelos continuam adormecidas, indiferentes ao que acontece

ao seu redor. Cresce nos enunciatários uma expectativa, que passa por

estágios diversos até ir se esvaziado com a inércia das modelos.

Ao contrário de um desfile convencional, essas modelos estão dispostas

em cena deitadas e com os pés nus, produzindo uma quebra que faz o público

curioso se aproximar da cena, ainda mais porque a cena se passa sob um sol

forte que incomoda o público que acompanha o desfile. O arranjo enfatiza a

oposição entre estaticidade e dinamicidade.

Com o sol mudando de posição e as sombras sendo projetadas no chão,

ao meio dia em ponto o despertador toca, depois que o público resistiu e se

manteve esperando por quase quatro horas. Algumas pessoas que

presenciavam o desfile já foram embora, outras continuaram motivados pela

curiosidade.

As modelos que são profissionais despertam de um sono profundo,

espreguiçam seus corpos de um lado ao outro da cama, sem pressa para

levantar. De maneira sequencial, cada modelo senta-se do mesmo lado em

que estão as gaiolas com os pares de sapatos. Elas abrem as caixas de joias e

uma música de caixinha de bailarina ecoa pelo ambiente, misturando-se ao

barulho externo do jardim. As modelos miram-se nos espelhos da caixa,

retocam a maquiagem, que está intacta, abrem as gaiolas, tiram os sapatos e

os calçam, ainda carregando em suas mãos colares de pérolas.

Com uma atitude entre o estado de adormecimento e de estarem

despertas, elas são cada mulher no ato de acordar para estar no mundo. É

assim que elas se levantam, uma a uma, e, seguindo uma sequência de

desfile, saem desse espaço seguindo em direção a cada gaiola, fechando as

portas de cada uma delas e que marca o encerramento do desfile.

122

Figura 90 – Modelo 1 dormindo: plano fechado. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza) Figura 91 – Modelos dormindo: plano aberto. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

Figura 92 – Detalhe da modelo 1 calçando o sapato. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza) Figura 93 – Detalhe da modelo 1 caminhando após se calçar. (Foto: acervo pessoal/Jô

Souza)

Apesar de o desfile voltar-se para a apresentação de uma coleção de

verão e a materialidade das saias serem de tecidos fluidos, as quantidades de

camada de saias dão muito volume, numa tradução do New look criado por

Dior, que pode ser descrito por uma silhueta, do final dos anos 1940 e inicio

dos anos 1950, marcado pela presença de cintura marcada, casaco de fustão

bordado com flores na gola, mangas estruturadas e ombros marcados.

O que vai diferenciar o casting são as roupas, pois os acessórios

colaboram para a homogeneidade do conjunto: luvas de pelica vermelha,

sapatos com bico redondo e cor vermelha com o formato “boneca”, além da

123

peruca loira estilo “Chanel” e a maquiagem anos 50. Essa é a estratégia pela

qual o enunciador chama atenção do enunciatário para os looks de outra época

que se destacam na paisagem verde do jardim ao serem despertados dessa

temporalidade de então, a do agora.

Os acessórios são os principais elementos utilizados aqui para

representar o mundo de meados do século XX. Destaca-se o uso de luvas de

couro, muito usadas pelas mulheres daquela época para evitar manchas de sol

nas mãos, quer durante o verão, quer durante o inverno. A altura da saia fica

um pouco abaixo do joelho, apresentando os formatos godé e evasé com

plissados e balonés. Elas acumulam várias camadas de diferentes tecidos:

algodão, tafetá, cetim de seda e tule, além do uso de plumas nos detalhes. Os

primeiros looks são para ser utilizados durante o dia, ao passo que o último é

um longo para a noite.

O enunciador se coloca no discurso das imagens que ele produz no

enunciado, como um artesão de moda que domina as técnicas de modelagem.

Para isso, ele procura mostrar para o seu enunciatário o seu saber-fazer. Esse

saber-fazer é explicitado pelo enunciado pelo adequado domínio da

modelagem e pelo impecável acabamento que são enfatizados pelo

transparecer o avesso da roupa, no momento em que as modelos estão

deitadas.

Além disso, esse enunciador dá a conhecer as formas femininas, com a

valorização pela marcação do corpo em lugares erógenos, como cintura, seios,

quadris e ombros. O discurso do enunciador potencializa as formas femininas

mais redondas e circulares, bem diferentes dos corpos das modelos que

desfilam atualmente nas passarelas convencionais, obedecendo ao discurso da

beleza promovido pela mídia.

A relação de correspondência que estabelecemos se explicita nas duas

fotos em que a modelo de Dior veste uma saia godê com uma blusa spencer

de manga comprida, com a cintura bem marcada, tendo como acessórios as

luvas e um par de scarpin. Na releitura de Karlla Girotto, o mesmo look

ressurge na passarela com cores vibrantes. Veja os atributos conectados a

seguir:

124

Figura 94 – Modelo desfilando vestida com uma releitura New Look, de Dior, de 1947. Logo atrás, um fotógrafo posicionado para captar do melhor ângulo. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)

Com esses elementos trabalhados, chegamos ao discurso de que o

desfile “Neutro”, em sua imanência, não é neutro. Em uma relação de oposição

a esse, são neutros os demais desfiles convencionais realizados no Fashion

Rio. Um determinado partido é tomado a partir das escolhas do enunciador

para a construção plástica do desfile. E, dessa forma, essas escolhas tornam-

se determinantes para uma maior visibilidade da marca.

Assim, a intencionalidade do desfile é caracterizada pela quebra de

neutralidade, desenvolvendo, portanto, a construção do discurso pela

diferença. Enquanto os desfiles convencionais são acelerados, em um ritmo

frenético, o elemento transformador do desfile Neutro passa a ser a própria

duração do desfile, ou seja, a sua extensão, uma duração que se caracteriza

pela sua monotonia.

125

4.2.4. Espaço aberto/público: Fashion Mob

Na categoria de desfile de espaço aberto/público, se enquadram aqueles

cuja realização ultrapassa os limites da passarela, em uma sala

fechada/privada e ganha as ruas, portanto, o espaço público da cidade, como é

o caso do desfile de moda Fashion Mob, que invadiu a cidade de São Paulo,

ocupando seu espaço público sem que fossem estabelecidas fronteiras. Ao

contrário, promovendo uma interação corpo a corpo com os transeuntes, que

foram assim confrontados com uma outra prática significante, diversa daquelas

habituais de seu viver.

Como sujeitos, os passantes podem ser ativos, na medida em que se

dirigiram voluntariamente para o local com a intenção de observar o evento. Ao

lado desse grupo, enquadram-se ainda convidados, parentes, amigos,

organizadores, patrocinadores, jornalistas etc. Há também os espectadores

passivos, que não imaginavam ver o que estavam assistindo. Como uma forma

de cortejo, esse acontecimento inusitado ocorre em vias centrais de

acessibilidade da cidade, em suas passagens com um tipo de escolha de

espaço para alocar o desfile que surpreende os habitantes pela

imprevisibilidade.

Figura 95 – O percurso do desfile, entre o Largo do Arouche (A) e o Parque da Luz (B) cruza a região mais degradada do centro de São Paulo, beirando a “Cracolândia” até a Estação da Luz (Fonte: Google Maps).

126

A ocorrência do desfile também era captada pelos passantes que

estavam de carro, de moto, de ônibus ou a pé. Ele se iniciava no Largo do

Arouche e seguia em direção ao Parque da Luz, com a participação de setenta

e um criadores apresentando seus trabalhos num desfile que era também uma

competição, uma vez que os escolhidos por um júri concorriam a prêmios.

Desse grupo, faziam parte desde jovens estudantes de moda a costureiras de

bairro e figurinistas, incluindo criações conceituais e trabalhos de viés

sustentável, como um vestido feito de nylon de guarda-chuva.

O evento reuniu centenas de pessoas e era seguido por um trio elétrico.

A sua duração era imprevista, pois dependeria dos acontecimentos que se

sucederiam no trajeto – como a sua passagem por semáforos, fluxos de

pessoas e automóveis, chuva ou todo o tipo de situação não programada que

enfrentaria na sua ocorrência em ato na vida da cidade e seus habitantes. À

primeira vista, esse tipo de desfile poderia parecer um carnaval fora de época

que utilizava roupas criadas pelos estilistas em lugar de fantasias.

Consideramos que a passarela desse desfile é um percurso por uma

parte de São Paulo, com a quebra da “quarta parede” do espaço formal dos

desfiles de moda. Ele é instaurado no “aqui” e “agora” e no “eu” e “tu” desse

encontro urbano e permite, com a sua narratividade de transformação do

estado do lugar a construção de sua visibilidade. O que é dado a ver é a

participação dos sujeitos com sua intensidade corpórea pelo deslocamento de

fluxos da cidade, ao qual ele se interpõe como uma ruptura. A sua ocorrência

em ato interpõe-se no fazer comunicativo como uma novidade. A trilha sonora

é construída pelos tecidos sonoros da cidade, justapostos e sobrepostos:

buzinas, barulhos, ruídos, vozes, sons de motores e mixada ao som do DJ no

trio elétrico que acompanha o desfile. Segundo o site FFW,

dividida em duas imensas filas indianas, a turba formava um cenário alegórico e arrancava palmas e comentários pelo caminho. Nas mesas de bares, lotadas, os clientes não poupavam palavras, tanto parar elogiar as garotas, quanto para comentar algo da “esquisitice”. Nos ônibus, todos os olhos se voltavam para o acontecimento, enquanto um pastor cercado de 5 ou 6 pessoas profetizava aos gritos: “Jesus irá salvá-los”. A movimentação também teve fã cativo: Um morador de rua que seguiu dançando todo o percurso, desferindo seus comentários: “Mulher minha não usava roupa assim, mais de jeito nenhum!”.(novembro de 2010)

127

Em outros termos, ao produzir, dessa forma, comentários do público do

lugar, o evento está dando a sua contribuição para a democratização da cultura

de moda, investindo numa linha oposta ao elitismo que tradicionalmente

acompanha essa atividade. A escolha do local também é fruto dessa

preocupação, pois o local é a área mais polêmica da cidade, para a qual, há

anos, é discutida uma ação de recuperação prometida pelas autoridades aos

habitantes do local e da cidade.

Figura 96 – Painel para servir de fundo para fotografias dos participantes do evento. (Foto: Mainá Pilos)

O destinador Fashion Mob não faz uma seleção de destinatários para

enviar o convite do evento. O público é convocado a participar do desfile pelas

mídias sociais e pelo noticiário da impressa. Existe um discurso de evento

democrático, a ideia de uma moda que esteja ao alcance de todos, a partir da

escolha do local em que acontece o desfile e dos estilistas convidados,

selecionados pelo Fashion Mob.

O convite individual para a participação é substituído por um banner com

o formante cromático rosa metálico, de formato retangular, medindo cerca de

cinco metros de altura por quatro metros de largura, instalado no centro da

praça. Em termos de distribuição topológica, em sua parte superior esquerda

está o logo do evento e o ano da sua realização e, na parte superior direita, o

logo da Prefeitura de São Paulo. Ali, os transeuntes são convocadas a parar,

tirar uma foto e interagir com o evento. O destinatário é, assim, inserido no

convite a partir do ato de fotografar-se tendo como pano de fundo o logo do

evento. Coloca-se na foto como alguém que desfila no Fashion Mob. Dessa

128

maneira, ao se posicionar ali para as fotos, marca a sua presença como se

fosse uma celebridade.

Figura 97 – O desfile Fashion Mob passando pela estação da Luz: o público acompanha como se fosse uma procissão. (Foto: Mainá Pilos)

Em fila indiana, o desfile se mistura à paisagem urbana. Ele segue uma

programação com hora para começar, deixando indeterminada a hora do

encerramento, que depende das surpresas e acontecimentos ao longo da

trajetória. O desfile Fashion Mob promove um vínculo afetivo com a cidade,

assumindo uma postura de socialização. Não existe nenhum tipo de exclusão:

toda a população é convocada a participar. São suas características gerais:

a) os corpos são convocados a se mobilizarem, acionados pelo ritmo do

desfile. Não permanecem sentados, mas participam intensamente do

acontecimento, fazendo parte do ato de desfilar;

b) os passantes pedestres são convocados a ver e a participar da quebra

de rotina;

c) os fotógrafos não estão posicionados em qualquer espaço determinado,

mas se deslocam conforme o andamento do desfile para captar o melhor

ângulo, ora se aproximando, ora se distanciando;

d) a polícia e os seguranças privados acompanham o desfile com a

intenção de evitar algo que saia da programação.

129

Figura 98 – As modelos em fila indiana pelas ruas do centro da cidade. (Foto: Mainá

Pilos).

O desfile Fashion Mob desenvolve o discurso de que a moda também

acontece nas ruas, e não apenas nas passarelas de formato convencional. É

um evento que está sujeito às variações climáticas, que podem ou não interferir

no andar rítmico dos modelos, e à superfície, por vezes rugosa e irregular do

asfalto, que é transformado numa imensa passarela. Não há uma narrativa pré-

estabelecida ou construída em função dos looks. O desfile não segue a

programação de entrada e saída de modelos da passarela, mas todos

caminham em fila indiana, às vezes, irregular, mas sempre com um modelo

atrás do outro. As pessoas que desfilam são convocadas a atuarem como

modelos, já que não são obrigatoriamente profissionais.

No desfile da Cavalera de espaço fechado/público, toda a movimentação

do público e dos modelos era rigidamente planejada, como num roteiro teatral,

concentrando-se num único local em que, numa via pública temporariamente

desativada, se reproduzia a tradicional dualidade palco e plateia. Trata-se de

uma operação semelhante à que aconteceu no carnaval do Rio de Janeiro –

depois, repetida em São Paulo –, com a substituição de uma avenida central da

cidade pelo sambódromo, como espaço a ser ocupado pelos desfiles das

escolas de samba.

Por sua vez, o Fashion Mob, com sua ocupação de espaço

aberto/público, lembra a descontração dos antigos carnavais de rua, em que os

blocos desfilavam em fila indiana, mas andando, desfilando de forma livre, sem

marcação de um desfile convencional, interrompendo o trânsito e o cotidiano

130

das ruas. Em seu planejamento, não há uma história previamente concedida a

ser contada, como no desfile Karlla Girotto, nem uma situação urbana a ser

encenada, como no desfile da Cavalera. Há apenas a proposta de uma série

de looks em fila indiana, destinada a cruzar um trecho do centro da cidade.

131

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As análises desenvolvidas neste trabalho levaram à descrição e à

construção de quatro diferentes modos pelos quais os desfiles de moda podem

se realizar, pensados pelo universo as sua dinâmica de relações. Do eixo da

oposição de base espaço fechado/privado vs. espaço aberto/público por

relações de contrariedade, o eixo da oposição subcontrária espaço

fechado/público vs. espaço aberto/privado, que implica nos polos de oposição

de base.

Esse diagrama das oposições sintáticas, com os seus investimentos

semânticos, mostra os percursos da dinâmica relacional entre os polos, o que

nos possibilitou encontrar, nos desfiles brasileiros, exemplos que ocupam

essas posições lógicas.

Espaço fechado / privado Desfile Maria Garcia

Espaço aberto / público Desfile Fashion Mob

Espaço fechado / público Desfile Cavalera

Espaço aberto / privado Desfile Karlla Girotto

Figura 99 – A quadratura axiológica

Como um trânsito relacional entre essas polaridades, outros desfiles

poderiam ser posicionados, mas a nossa proposta não é cobrir a totalidade dos

modos de manifestação dos desfiles. Conforme o nosso objetivo central,

guiamo-nos por identificar as caracterizações modelares que identificam uma

tipologia para se estudar os desfiles. A partir do jogo de percursos entre as

posições contrárias, contraditórias e implicativas, outros desfiles poderão ser

situados no diagrama e trabalhados em suas estruturações significantes para a

compreensão da significação que produzem.

Com essa sistematização, acreditamos ter contribuído para oferecer aos

estudiosos dos processos comunicacionais dos desfiles de moda, enquanto

132

processos interativos e de sentido, um arcabouço de descrição e análise. O

resultado a que chegamos com essa tipologia pode abarcar todos os possíveis

desfiles em sua ampla diversidade, os quais podem ser pensados pelas

relações para serem enquadrados na dinâmica relacional.

A partir desse estudo categorial dos desfiles de moda, podemos afirmar

que as invariáveis dessa manifestação performática seriam (1) os looks

apresentados na coleção; (2) a iluminação, que pode ser natural ou artificial; (3)

a passarela, que pode ser uma superfície lisa – em um espaço fechado e

privado – ou improvisada na rua, espaço aberto e público; (4) um percurso de

programação, com horário para começar e terminar, incidindo na quebra dessa

regulação as suas diferenciações; (5) a cenografia monta uma ambientação no

espaço em que o desfile se realiza e pode acontecer em um espaço aberto,

como uma rua ou jardim, ou em um espaço fechado, como uma sala; (6) a

trilha sonora que acompanha o desfile pode ser uma música composta

especialmente para ele ou de uma trilha improvisada a partir de outras trilhas

ou de interferências sonoras, como os sons e ruídos da cidade; (7) o casting

formado pelas escolhas das modelos, que podem ou não ser profissionais, é

pensado a partir da proposta significante do criador de moda – assim, nos

desfiles estudados, essas diferenças produzem sentido: enquanto as modelos

de Maria Garcia e de Karlla Girotto são profissionais, no desfile da Cavalera

mesclam-se modelos profissionais com não profissionais e, no Fashion Mob,

são todas não profissionais.

Quanto às variantes, essas não estariam na base estrutural do desfile,

mas relacionadas às escolhas particulares dos espaços de alocação e da

duração do desfile. Quando, por exemplo, o desfile deixa de ser realizado no

espaço fechado e é apresentado num espaço aberto, estará sujeito às

mudanças climáticas ou a um acontecimento qualquer que modifique a sua

construção inicial planejada. Esse é o caso da Fashion Mob, que, para

atravessar de uma rua para outra, dependia da sinalização das ruas, das

intervenções dos passantes e do fluxo de tráfego, ou seja, da imprevisibilidade

das ocorrências que o caracterizam.

133

Os desfiles são uma mídia que produz visibilidade da marca e do criador

e tem forte espetacularização no contemporâneo da sociedade globalizada.

Seu formato de apresentação, avaliamos, está ligado à organização da escolha

do espaço, da disposição dos convidados − de maneira hierárquica ou não, do

posicionamento da passarela reta para desfilar os looks que aparecem numa

sequência rítmica cadenciada, quer por trilha sonora ao vivo ou executada por

um DJ, ou pela sonoridade urbana.

Supomos que esse foi um processo de indução pelo qual chegamos a

uma tipologia que pode abarcar todos os possíveis desfiles, em sua ampla

diversidade. Julgamos que todo e qualquer desfile possa se enquadrar em uma

ou outra das quatro categorias aqui descritas.

134

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