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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC-SP PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM DIREITO ANDRÉIA MAURA BERTOLINE REZENDE DE LIMA A ATUAÇÃO MÉDICA HUMANIZADA NA PROMOÇÃO DA SAÚDE DO PACIENTE COMO FATOR CONTRIBUTIVO PARA A RACIONALIZAÇÃO DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2016

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC-SP©ia Maura... · RESUMO O direito fundamental social à saúde, indissociável do direito à vida, deve receber a proteção

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC-SP

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM DIREITO

ANDRÉIA MAURA BERTOLINE REZENDE DE LIMA

A ATUAÇÃO MÉDICA HUMANIZADA NA PROMOÇÃO DA SAÚDE

DO PACIENTE COMO FATOR CONTRIBUTIVO PARA A

RACIONALIZAÇÃO DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

DOUTORADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2016

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ANDRÉIA MAURA BERTOLINE REZENDE DE LIMA

A ATUAÇÃO MÉDICA HUMANIZADA NA PROMOÇÃO DA SAÚDE

DO PACIENTE COMO FATOR CONTRIBUTIVO PARA A

RACIONALIZAÇÃO DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

DOUTORADO EM DIREITO

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito, sob a orientação da Professora Doutora Regina Vera Villas Bôas.

SÃO PAULO

2016

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BANCA EXAMINADORA

_______________________________________

_______________________________________

_______________________________________

_______________________________________

_______________________________________

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À Júlia, pequena e notável companheira de todos os

momentos.

A Ismael, pelo carinho e incentivo.

À Ilka (in memoriam) e Marina (in memoriam), pelo amor,

dedicação e apoio incondicionais.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, por tudo.

Agradeço à orientadora Dra. Regina Vera Villas Bôas, por acreditar na

importância do cuidado humanizado na saúde para o resgate do acolhimento, do

amor e da valorização do ser humano na sua integralidade.

Agradeço ao Dr. Paulo Sérgio Camin Calixto, pelo suporte, incentivo e

exemplo de determinação e superação das dificuldades.

Agradeço ao Dr. Guilherme Mendes Filho, médico e diretor administrativo do

Instituto Paulista de Cancerologia – IPC, pelo acolhimento e transmissão de

experiências profissionais, que ratificam a importância da atuação médica

humanizada no cuidado com o paciente, para a valorização da vida, da

autodeterminação, da dignidade e do respeito ao semelhante.

Agradeço à Vera Anita Bifulco, psicooncologista do Instituto Paulista de

Cancerologia – IPC, pela oportunidade de conhecer a atuação de uma equipe

multidisciplinar humanizada, cujo acolhimento e cuidado com o paciente amenizam a

dor, o sofrimento e a angústia da terminalidade da vida.

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The good physician treats the

disease; the great physician treats

the patient who has the disease.

William Osler

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RESUMO

O direito fundamental social à saúde, indissociável do direito à vida, deve receber a proteção do Estado através da promoção da saúde, cuja prevenção de doenças encontra-se inserida nas estratégias e diretrizes articuladas para promover a qualidade de vida digna e o bem-estar social. Promover a saúde é favorecer a melhoria da condição de vida dos cidadãos, ponderando as peculiaridades e prioridades da comunidade, inserida num contexto sistêmico de integração com os setores público e privado, que devem alocar recursos com racionalidade e eficiência, dando primazia ao atendimento dos interesses da coletividade. O cuidado em saúde inicia-se com a concepção e deve acompanhar todas as etapas da vida até a sua terminalidade. É um processo contínuo de educação, motivação individual e coletiva direcionado à corresponsabilidade de cada indivíduo, pela escolha do estilo de vida, dentro do contexto do ambiente em que está inserido, respeitando a sua autonomia, crenças e valores morais. Alicerçada na dignidade da pessoa humana, a promoção da saúde direciona-se à atenção primária, que consiste no atendimento das necessidades vitais do ser, visando o acesso universal com equidade e eficiência aos serviços de saúde ou ao tratamento adequado ante o desequilíbrio diagnosticado. O paciente não é um mero objeto de estudo científico e da tecnologia de última geração. O médico, por seu turno, não é apenas um técnico dotado de conhecimento científico e habilidades para tratar do paciente. Partindo da promoção da saúde, através da atenção primária, analisa-se o encontro clínico do paciente com o médico, protagonistas principais de uma relação interpessoal de valorização da vida, de solidariedade ao próximo e de acolhimento de um ser vulnerável e fragilizado diante do desconhecido. É nesse momento que a atuação médica humanizada, centrada na pessoa do paciente e não na patologia, constitui fator contributivo para a racionalização da judicialização da saúde, tema do presente estudo analítico e reflexivo, cujo fundamento legal é o direito à saúde e à vida com dignidade. Racionalizar a judicialização da saúde não se restringe tão somente na crítica ao controle jurisdicional de políticas públicas de saúde e na observância do rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Racionalizar a judicialização da saúde consiste, acima de tudo, na valorização do ser humano na sua integralidade, estabelecendo, com este, uma relação de empatia, confiança e diálogo. Palavras-chave: Direito fundamental social à saúde. Direito à vida com dignidade. Promoção da saúde. Atenção primária. Paciente. Médico. Humanização. Racionalização. Judicialização da saúde.

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ABSTRACT

The fundamental social right to health, which is inseparable from the right to life, must receive the protection of the State through health promotion, whose prevention of diseases is inserted in the strategies and guidelines articulated to promote a decent quality of life and social well-being. To promote health is to promote the improvement of the living conditions of citizens, considering the peculiarities and priorities of the community, inserted in a systemic context of integration with the public and private sectors, which must allocate resources with rationality and efficiency, giving priority to meeting the interests of the collectivity. Health care begins with conception and must accompany all stages of life until its termination. It is a continuous process of individual and collective education and motivation directed to the co-responsibility of each individual for the lifestyle choice, within the context of the environment in which it is inserted, respecting its autonomy, beliefs, and moral values. Based on the dignity of the human person, health promotion is directed at primary care, which consists in meeting the vital needs of the person, aiming at the universal access to health services or appropriate treatment, with equity and efficiency, in the face of the diagnosed disequilibrium. The patient is not a mere object of scientific study and of the latest technology. The doctor, for his part, is not just a technician with scientific knowledge and skills to treat the patient. Starting from the promotion of health through the primary care, we analyze the clinical encounter of the patient with the physician, the main protagonists of an interpersonal relationship that cherishes life, has solidarity with others, and welcomes a vulnerable and fragile being facing the unknown. It is at this moment that humanized medical care, centered on the patient's person and not on his pathology, is a contributory factor to the rationalization of health judicialization, the subject of this analytical and reflexive study, whose legal basis is the right to health and to life with dignity. Rationalizing the judicialization of health is not restricted only in the criticism of the judicial control of public health policies and compliance with the procedures of the National Supplementary Health Agency (ANS). Rationalizing the judicialization of health consists, above all, in the valuing of the human being in its entirety, establishing with it a relationship of empathy, trust and dialogue. Keywords: Fundamental social right to health. Right to life with dignity. Health promotion. Primary care. Patient. Physician. Humanization. Rationalization. Health judicialization.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.................................................................................. 11

2 HISTORICIDADE DA MEDICINA: DO MISTICISMO À

EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA...........................................................

17

2.1 Medicina Antiga: a influência da religião e da magia................... 17

2.2 Medicina Contemporânea: o aprimoramento da tecnologia da

informação a serviço do médico e do paciente............................

25

2.2.1 Prontuário Eletrônico do Paciente: o armazenamento de dados

para o conhecimento do histórico de saúde do paciente e a

relevância da sua utilização pelo médico e equipe

multidisciplinar...................................................................................

26

2.2.2 Telemedicina: a transposição do obstáculo denominado

distância.............................................................................................

28

3 A PROMOÇÃO DA SAÚDE: A EFETIVAÇÃO DE UM DIREITO

FUNDAMENTAL SOCIAL PRIORIZANDO A QUALIDADE DE

VIDA DIGNA......................................................................................

33

3.1 Saúde: um direito fundamental social à qualidade de vida

digna, ao equilíbrio e ao bem-estar social. Um novo conceito

além de ausência de doença ou de enfermidade.........................

33

3.2 A valorização do ser humano na sua totalidade: a eficiência e

a integralidade nos serviços de saúde..........................................

38

3.3 Conferências Internacionais de Promoção da Saúde:

referências para uma qualidade de vida saudável.......................

42

3.3.1 Declaração de Alma-Ata.................................................................... 42

3.3.2 Carta de Ottawa................................................................................. 44

3.3.3 Declaração de Adelaide..................................................................... 46

3.3.4 Declaração de Sundsvall................................................................... 47

3.3.5 Declaração de Jacarta....................................................................... 49

3.3.6 Declaração do México....................................................................... 51

3.3.7 Carta de Banguecoque...................................................................... 53

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3.4 A Promoção da Saúde no Brasil: a interação comunitária com

os setores público e privado em busca do bem-estar social......

55

3.4.1 Programa Saúde da Família (PSF): a ênfase na atenção básica

visando o acesso universal aos serviços de saúde com equidade e

humanização.....................................................................................

57

3.4.2 Sistema de medicina familiar na saúde suplementar: uma proposta

de acesso à atenção primária à saúde com eficiência......................

59

4 PACIENTE: UM SER HUMANO FRAGILIZADO PELO

DESCONHECIDO.............................................................................

62

4.1 O paciente e a doença: a vivência do ser com o desequilíbrio

interior..............................................................................................

63

4.2 O ser e a sua existência: o entender a si mesmo......................... 66

4.2.1 Martin Heidegger............................................................................... 66

4.2.2 Hans- Georg Gadamer...................................................................... 68

4.2.3 Michel Foucault.................................................................................. 69

5 MÉDICO: GUARDIÃO DA SAÚDE E DA VIDA COM

DIGNIDADE.......................................................................................

71

6 DIREITOS E DEVERES DOS CIDADÃOS QUE UTILIZAM OS

SERVIÇOS E PARTICIPAM DAS AÇÕES DE SAÚDE: O

EXERCÍCIO DO DIREITO À SAÚDE INDISSOCIÁVEL DO

DIREITO À VIDA...............................................................................

74

7 CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA (CEM): OS DIREITOS E DEVERES

DO MÉDICO NO COMPROMISSO COM A DIGNIDADE DO SER

HUMANO...........................................................................................

77

8 A ATUAÇÃO MÉDICA HUMANIZADA: FATOR CONTRIBUTIVO

PARA A RACIONALIZAÇÃO DA JUDICIALIZAÇÃO DA

SAÚDE..............................................................................................

83

8.1 Princípio da autonomia: o consentimento informado do

paciente sobre a sua vida e saúde.................................................

87

8.2 Princípio da beneficência: o bem maior denominado vida......... 98

8.3 Princípio da não-maleficência: o respeito ao próximo e a si

mesmo...............................................................................................

103

8.4 Princípio da justiça: o exercício pleno da cidadania.................... 105

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8.5 Empatia, confiança e diálogo: os pilares da atuação médica

humanizada......................................................................................

109

8.5.1 Empatia: colocar-se no lugar do outro para entender a sua

realidade de vida................................................................................

110

8.5.2 Confiança: a integridade e a sinceridade no contato do médico

com o paciente...................................................................................

114

8.5.3 Diálogo: o diferencial na atuação médica humanizada..................... 115

8.6 Literatura e medicina: os textos literários e a formação

humanizada do médico...................................................................

119

8.7 Aristóteles e a Teoria das Virtudes: a conquista do viver

bem....................................................................................................

129

9 CONCLUSÃO.................................................................................... 133

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................. 137

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1 INTRODUÇÃO

A defesa dos direitos sociais como direitos fundamentais se solidificou com a

Carta Magna de 1988, então denominada “constituição cidadã”, em alusão aos

direitos fundamentais sociais, cuja primazia é o estado de bem-estar social.

A ordem social constitucional destaca a saúde como direito de todos e dever

do Estado, garantido por políticas públicas (sociais e econômicas) que visem à

redução do risco de doença e de outros agravos, com acesso universal e igualitário

às ações e serviços destinados à sua promoção, proteção e recuperação (artigo

196, CF).

A sociedade contemporânea enfrenta desafios para promover e atender com

qualidade e presteza as necessidades vitais de seus cidadãos, entre elas, a efetiva

tutela da saúde. O aumento da expectativa de vida e, consequentemente, o

crescimento da população idosa; a diversidade no diagnóstico de patologias e o

avanço tecnológico, que proporcionam o aperfeiçoamento dos métodos diagnósticos

e tratamentos de ponta, encareceram a medicina preventiva e corretiva nas redes

pública e privada de assistência à saúde.

Em consequência, o ônus financeiro despendido sem planejamento

adequado à proteção social à saúde torna insustentável a universalidade e a

isonomia no âmbito público, ao mesmo tempo em que avulta a contraprestação

pecuniária no âmbito privado, dificultando a sua mantença por parte do consumidor

ou reduzindo a cobertura médico-hospitalar do plano contratado, descumprindo as

cláusulas contratuais previamente estabelecidas.

Diante desse cenário fortalecido pela ineficiência estatal na área da saúde,

as desigualdades sociais e os conflitos de interesses individuais e coletivos

contribuem para o aumento de demandas judiciais, que deixam a cargo do Poder

Judiciário o controle jurisdicional das políticas públicas de saúde, função que não lhe

é afeta, o que o torna um órgão controlador das atividades administrativas.

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A despeito da limitação e escassez de recursos orçamentários e da falta de

planejamento adequado de políticas públicas destinadas à atenção básica em saúde

ou da omissão no cumprimento das políticas existentes, o Poder Público não pode

se eximir de prestar assistência à saúde a todos que dela necessitam.

Ocorre que o vultoso dispêndio financeiro de recursos públicos e privados

destinados ao cumprimento de decisões judiciais, em sua grande maioria,

emergenciais, torna insustentável a mantença da judicialização da saúde, o que tem

proporcionado a realização de debates, simpósios e fóruns para o enfrentamento da

questão, de modo a encontrar alternativas eficazes para a sustentabilidade dos

sistemas de saúde público e privado e minimizar as demandas de saúde.

Esse quadro é desafiador e sua relevância social justifica a atuação

consciente e compromissada da sociedade, incluindo os operadores do direito e da

área da saúde, em especial, de modo a contribuir para a melhoria da qualidade dos

serviços de atenção primária à saúde individual e coletiva, visando à suplantação

dos impasses da finitude de recursos e das adversidades sociais através do

estímulo à promoção da saúde e prevenção de doenças.

Nesse contexto, diante dessa inter-relação entre o Direito e a Medicina, o

objetivo do estudo é adentrar o processo clínico da relação médico-paciente e

analisar como a atuação médica humanizada na promoção da saúde do paciente,

centrada no ser humano e não na patologia, pode contribuir para a racionalização da

judicialização da saúde.

À primeira vista, é inconcebível que se possa estabelecer um elo entre a

atuação médica humanizada na relação com o paciente e familiares e a

racionalização da judicialização da saúde, sob os seguintes argumentos: - em que

momento essa atuação vai de encontro à judicialização da saúde? Qual é o

fundamento legal para embasar esta proposição? A humanização não compreende

a essência da profissão de médico, uma vez que lhe compete proteger a vida do

paciente empregando todos os meios necessários e disponíveis à promoção da sua

saúde e ao seu bem-estar? O paciente ou seu representante legal, desde que

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devidamente informado, tem autonomia para decidir sobre a qualidade de vida e

finitude que deseja para si ou familiar?

Fomentar essa discussão estimula o estudo analítico e reflexivo sobre o

tema, pois amplia a comunicação entre as ciências do Direito e da Medicina, tendo

como fundamento legal o direito à saúde e o direito à vida com dignidade, cuja

proteção não é assegurada apenas pela Constituição Federal, mas também, pelo

Código Civil, pelo Código de Defesa do Consumidor, que além de proteger a vida

como direito básico do consumidor, assegura-lhe o respeito à sua dignidade e saúde

através dos princípios da boa-fé, vulnerabilidade e transparência, e pelo Código de

Ética Médica.

É cediço que desde a concepção, o médico tem importante atuação na

promoção e prevenção da saúde do ser humano, pois o orienta a desenvolver

hábitos adequados para uma condição de vida saudável, evitando doenças e

melhorando o bem-estar, o que, certamente, será um fator de grande influência na

garantia de sua longevidade com dignidade, além de contribuir para a redução de

custos com tratamentos, procedimentos, medicamentos e demandas judiciais.

Sob este prisma, realçando o prestígio e a influência do médico na decisão

compartilhada da qualidade de vida adequada a cada paciente, a primeira parte do

estudo será dedicada à historicidade da medicina, iniciando-se pela medicina antiga,

cuja religião e magia esclareciam a origem dos males relacionando-os aos espíritos

maus, feitiçarias e prática de pecados, entre outros, indicando os tratamentos

curativos diante dos recursos disponíveis.

Destacam-se a medicina na Mesopotâmia, no antigo Egito, Chinesa e

Japonesa, Hindu, da antiga Pérsia e greco-romana, cuja influência é inconteste,

pois, superada a fase da superstição, predomina a racionalidade com Hipócrates,

considerado o “Pai da Medicina”.

O estudo prossegue com a medicina contemporânea, cujo desenvolvimento

científico-tecnológico propicia a descoberta e identificação de novas patologias e

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seus princípios ativos, o que contribui para a execução de serviços destinados ao

seu controle, à promoção da saúde e prevenção de doenças.

As inovações tecnológicas na área da medicina também favorecem o

aprimoramento do processo diagnóstico, gerenciando o histórico de saúde eletrônico

do paciente, inclusive à distância, e disponibilizando equipamentos médico-

hospitalares menos invasivos e seguros para a realização de exames clínicos

destinados à promoção da saúde e à prevenção de doenças, ou, ao menos, à

amenização da dor e do sofrimento.

O cuidado em saúde procede com a promoção, que constitui uma

preocupação universal, o que justifica a realização de Conferências Internacionais

centradas nos cuidados primários de saúde, atentando-se às condições

socioeconômicas, culturais e políticas de cada nação, de modo a ponderar os

inconvenientes que interferem no planejamento, desenvolvimento e execução de

políticas públicas estruturadas e eficientes que visem à igualdade de condições no

oferecimento dos cuidados essenciais, sem qualquer discriminação, de modo a

atender os interesses individuais e coletivos.

Dessa maneira, estimula-se a igualdade de condições da população ao

acesso à assistência e atenção básica aos cuidados essenciais para a promoção e

prevenção de doenças, busca do equilíbrio interior e estímulo ao bem-estar social,

com ênfase na melhoria das condições de vida e de labor, determinantes sociais da

saúde, até porque, nos termos da Organização Mundial da Saúde, “a saúde de

todos os povos é essencial para conseguir a paz e a segurança e depende da mais

estreita cooperação das pessoas e dos Estados”.1

A promoção da saúde pátria incentiva a atenção primária à saúde

desenvolvida no Programa Saúde da Família (PSF), composta pelo profissional da

medicina e equipe multidisciplinar; e no sistema de medicina familiar na saúde

suplementar, que podem melhorar a qualidade de atendimento ao paciente e evitar

1Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-

Mundial-da-Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html> Acesso em 13 out. 2015.

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desperdícios, reduzindo a probabilidade do aparecimento de doenças crônicas, cujo

tratamento é de alto custo, além de complexo e contínuo.

Qualquer investimento público ou privado na área da saúde, entretanto,

enfrentará resistência para sua efetivação, caso não se atenha aos seus principais

protagonistas, quais sejam, o paciente e o médico, analisados dentro de um

conjunto de circunstâncias limitadoras de recursos e do tempo de atendimento, o

que dificulta; porém, não impede a construção de uma relação fundamentada no

acolhimento e na comunicação humanizados, em respeito à individualidade, ao

cuidado integral e à compreensão do outro com suas carências e imperfeições.

A despeito das inovações técnico-científicas se intensificarem na área da

saúde, as percepções acerca da saúde e da doença não são acompanhadas na

mesma intensidade pelo paciente, cujas interrogações a respeito das adversidades

da vida, incluindo a doença, conduzem a uma breve exposição sobre o pensamento

dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Michel Foucault a respeito

do ser e sua existência, além de sua participação ativa nas decisões afetas à sua

dignidade e equilíbrio vital frente à patologia que o assola.

Para ajudá-lo a enfrentar as vicissitudes, entra em cena a pessoa do

profissional da medicina com o seu conhecimento científico e habilidade técnica

descodificadores da história clínica do paciente, acompanhada de exame detalhado

e direcionado, primeiramente, à promoção da saúde e prevenção de doenças,

seguido de orientações para o desenvolvimento de hábitos saudáveis, ou, se o caso,

ao tratamento ou procedimento mais adequado ao paciente dentro de suas

limitações reais, que, dependendo da situação, não coaduna com o prolongamento

desnecessário de um sofrimento e tampouco com a medicalização excessiva.

A atuação do profissional da medicina, portanto, não deve ser isolada, mas

sim, humanizada e compartilhada com o paciente e familiares envolvidos na relação.

As partes devem conhecer os seus direitos e deveres dispostos na Carta dos

Direitos dos Usuários da Saúde, bem como o médico deve pautar a sua conduta no

Código de Ética Médica (CEM), um alicerce dos seus direitos e deveres na relação

com o paciente.

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O compromisso do médico com a dignidade da pessoa humana pauta-se

nos princípios bioéticos da autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça,

evidenciados nos pilares da atuação médica humanizada, quais sejam, empatia,

confiança e diálogo, valorizando a pessoa do paciente com a sua patologia e não

somente o caso clínico, avaliando, assim, os reais benefícios que um tratamento,

procedimento ou medicamento podem proporcionar para uma qualidade de vida

digna e a conquista do viver bem.

Diante do exposto, a tese propõe aos operadores do direito e da área da

saúde a reflexão sobre a importância da atuação médica humanizada na promoção

da saúde do paciente como fator contributivo para a racionalização da judicialização

da saúde, considerando que a atenção primária pode estimular a mudança de

hábitos prejudiciais à qualidade de vida saudável, diagnosticar e prevenir doenças,

previamente, ante a manifestação de sintomas pelo paciente.

O acompanhamento da saúde do paciente na sua integralidade é adequado

às suas necessidades, de modo a evitar a prescrição desnecessária de tratamentos

e procedimentos de ponta ou medicalização desmedida, os quais, negados pelo

sistema de saúde público ou privado, são judicializados, o que encarece a estrutura

de saúde, que passa a ser qualificada pelo custo e não pela eficiência e qualidade,

bem como inviabiliza a concretização de políticas públicas de saúde já existentes,

pois os recursos disponíveis são utilizados inadequadamente e ao alvedrio de

decisões judiciais.

A saúde, além de um direito, constitui uma responsabilidade social, cujos

pilares da honestidade, sinceridade, lealdade e transparência recíprocas devem

sustentar as relações que a circundam e afastar o desequilíbrio e eventuais

diferenças entre os homens.

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2 HISTORICIDADE DA MEDICINA: DO MISTICISMO À EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA

2.1 Medicina Antiga: a influência da religião e da magia

O estudo do desenvolvimento da Medicina torna-se necessário para que se

possa compreender a importância de sua evolução desde os primórdios das

civilizações até a atualidade com sua tecnologia avançada, que possibilita a análise

aprofundada da doença ou enfermidade, bem como a interação entre o profissional

de medicina, o paciente e familiares.

Inicialmente será abordada a Medicina da Antiguidade, ou seja, do

primitivismo à antiga Roma. Em continuidade, será abordada a Medicina da

Atualidade.

No primitivismo, a medicina voltava-se para a religião e magia, que

esclareciam a origem dos males, bem como indicavam os tratamentos curativos. Os

motivos dos males relacionavam-se ao cometimento de pecado, irritação dos

espíritos maus e violação de tabus pelo ser humano; como também, pela feitiçaria

feita por um inimigo com a utilização de bonecos com espetos, flechas e agulhas.

Impende salientar que os feiticeiros também eram procurados para realizar curas.

As moléstias eram causadas pelo próprio ser humano, por espíritos ou seres sobrenaturais e por causas naturais. Em consequência, os tratamentos variados concentravam-se no repouso, calor, banhos, ervas e manobras manuais (OLIVEIRA, 1981, p. 02-03).

A prática cirúrgica da trepanação craniana, que foi desenvolvida na pré-

história e que se estende à atualidade pelos povos primitivos, foi encontrada na

França, em 1865 e, posteriormente, na Inglaterra, Espanha, Portugal, Argélia,

Alemanha e outros países.

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Tratava-se de intervenção cirúrgica realizada em vida ou após a morte do

indivíduo, cujas indicações advinham da magia e da religião, com o escopo

terapêutico ou tratamento ativo dos traumatismos cranianos.

Por derradeiro, na pré-história, a arte das cavernas se fez presente na

medicina primitiva através de desenhos encontrados nas cavernas pelos

arqueólogos, que revelavam observação e conhecimento acurados da anatomia dos

animais, entre eles, bois, cavalos, ursos e elefantes.

Na Mesopotâmia, a medicina também estava ligada à magia e religião. A

credibilidade na existência de demônios e espíritos maus incomodavam os povos,

pois as divindades exerciam o domínio sobre a vida, moléstia e saúde.

Em decorrência da falta de conhecimento adequado, acreditava-se que as

moléstias eram provenientes do descumprimento de preceitos religiosos e da não

utilização de amuletos protetores, da punição dos deuses por pecados cometidos,

da feitiçaria e da fatalidade.

O sangue era considerado a principal via para qualquer ação, pois, na

mitologia babilônica, a criação do mundo originou-se do “sangue de um deus que foi

decapitado” (OLIVEIRA, 1981, p. 10).

A magia que dominava os povos também influenciava na figura do médico,

que representava um sacerdote (assipu) dotado de adivinhação, dispondo de

recursos naturais como a água, o fogo, as ervas para proceder ao tratamento do

paciente. O sacrifício de um ser animal para a transferência da doença consistia

uma prática comum a ser utilizada pelo profissional.

O reinado de Hammurabi, no século XVIII a. C., foi o ápice da região

mesopotâmica. Na ocasião, foi constituído o Código de Hammurabi2, documento

2 215º - Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o cura ou se ele

abre a alguém uma incisão com a lanceta de bronze e o olho é salvo, deverá receber dez siclos. 216º - Se é um liberto, ele receberá cinco siclos. 217º - Se é o escravo de alguém, o seu proprietário deverá dar ao médico dois siclos. 218º - Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o mata ou lhe abre uma incisão com a lanceta de bronze e o olho fica perdido, se

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universal que contém normas sobre os direitos e deveres do profissional de

medicina, em especial as recompensas (gratificações) e penalidades decorrentes de

sua atuação.

A figura do médico leigo (asu), que sofria as sanções previstas no Código

de Hammurabi, conduz à reflexão sobre a atuação do profissional de medicina

diante do direito à vida e à dignidade da pessoa humana e a atuação do Direito na

defesa dos interesses pessoais e coletivos do paciente.

Com bem assinala João Bosco Botelho3 em seu artigo “Medicina e Direito no

Código de Hammurabi”, a Medicina e o Direito desenvolveram uma convivência

fiscalizadora com o Código de Hammurabi do final do século 16 a.C., uma vez que

os direitos e deveres dos médicos foram regulamentados, inclusive no tocante às

gratificações e punições severas ao profissional, no caso do mau exercício do seu

mister. O pagamento da penalidade variava em conformidade com a importância

social do enfermo, podendo tornar-se oneroso com castigos severos.

Anota Botelho (2013, p. 01-02) que:

A presença do Direito, no convívio controlador da prática médica, valorizando os bons resultados, está inserida na fundamentação maior manter a vida, refletindo aspiração humana que se perde no tempo. Dessa forma, na Mesopotâmica, no período Hammurabi, apesar de as doenças serem consideradas como mal, associado ao pecado, ocorreu o início do processo laico, para o controle das atividades profissionais, em especial, a da medicina.

Na mesma linha de pensamento, o magistério de Miguel Kfouri Neto (2010,

p.50-51), acerca do Código Hammurabi (1790-1770 a.C.), conceitua-o como “o

lhe deverão cortar as mãos. 219º - Se o médico trata o escravo de um liberto de uma ferida grave com a lanceta de bronze e o mata, deverá dar escravo por escravo. 220º- Se ele abriu a sua incisão com a lanceta de bronze o olho fica perdido, deverá pagar metade de seu preço. 221º- Se um médico restabelece o osso quebrado de alguém os as partes moles doentes, o doente deverá dar ao médico cinco ciclos. 222º Se é um liberto, deverá dar três ciclos. 223º - Se é um escravo, o dono deverá dar ao médico dois ciclos. 224º- Se o médico dos bois e dos burros trata um boi ou um burro de uma grave ferida e o animal se restabelece, o proprietário deverá dar ao médico, em pagamento, um sexto de ciclo.225º- Se ele trata um boi ou um burro de uma grave ferida e o mata, deverá dar um quarto de seu preço ao proprietário. Disponível em: <http://www.culturabrasil.org>zip>hamurabi> Acesso em: 26 jan. 2016. 3 Disponível em: <http://www.historiadamedicina.med.br/?p=785> Acesso em: 26 jan. 2016.

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primeiro documento histórico a tratar do erro médico”. A culpa era inexistente,

porém, se após a intervenção cirúrgica o paciente viesse a óbito, o médico seria

punido.

De se notar que a atuação do médico era centralizada nas atividades

cirúrgicas, no estudo e na análise das moléstias em geral. Essa afirmação decorre

da descoberta de plaquetas cuneiformes contendo descrições de moléstias, tais

como, tuberculose, obstipação intestinal, infecção renal, entre outras.

A adivinhação, segundo Oliveira (1981, p. 15), consistia uma prática comum

para “antecipar o desfecho das moléstias, e predizer a incidência das epidemias”

(medicina preventiva), possibilitando o surgimento da “ciência prognóstica’, de

extrema valia na atualidade, no que diz respeito à relação médico-paciente e a difícil

decisão do tratamento adequado visando à qualidade de vida do enfermo.

Impende consignar, por derradeiro, a preocupação do povo mesopotâmico

com a higiene, incluindo o saneamento básico (rede de esgoto), fundamental para a

saúde e o bem-estar da sociedade.

No antigo Egito, desenvolveu-se a medicina empírico-racional e a medicina

de cunho religioso, pois as moléstias e as epidemias eram justificadas pela

existência de espíritos bons e maus e pelos deuses protetores e vingativos.

Os meios utilizados para a prevenção e a cura envolviam encantamentos, exorcismos, magia, invocações encontradas em papiros médicos e inscrições de monumentos e túmulos, uma vez que a civilização egípcia desenvolveu-se em torno dos mortos, deuses e vivos (OLIVEIRA,1981, p.19-21).

Os deuses egípcios relacionavam-se à natureza e aos deuses da localidade

que tutelavam ou das tribos. Considerava-se o deus Thoth como o criador das

ciências e da medicina.

Na medicina empírico-racional, procedia-se à busca de conhecimentos e

fatos relacionados à medicina rústica e às tradições transmitidas entre gerações,

uma vez que os egípcios focavam-se na moléstia. A figura do profissional de

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medicina centrava-se nos sacerdotes-mágicos, nos feiticeiros e na pessoa do

médico propriamente dito.

Ao apreciar a medicina egípcia, Oliveira (1981, p. 24) destaca a mumificação

destinada à conservação do cadáver em respeito à religião. Ressalta que a

anatomia científica originou-se em Alexandria com Herófilo, considerado o “Pai da

Anatomia”, ao proceder ao exame minucioso de organismos mortos, dissecando-os.

As múmias eram utilizadas também como agentes terapêuticos.

Sobre a terapêutica médica, é imperioso salientar o Papiro Ebers,

“repositório da farmacopeia egípcia” (OLIVEIRA, 1981, p.29), que compreende uma

compilação da anatomia, diagnósticos, sintomas, receitas, tratamentos e moléstias,

entra elas, as moléstias anais.

Destaca-se na medicina egípcia também as intervenções cirúrgicas, a

traumatologia, com especial atenção às fraturas, no intuito de reduzi-las ou contê-

las, a fisiologia, a oftalmologia, a obstetrícia, a utilização de contraceptivos e a

indicação do sexo do feto.

Por derradeiro, de se notar que a medicina egípcia voltou-se ao estudo da

ciência médica, com especial destaque à observação, sem desconsiderar a magia e

o misticismo, ínsitos da cultura do antigo Egito.

A medicina chinesa e japonesa se voltou para o equilíbrio entre as forças

de oposição denominadas Yang masculino, ativo, quente e positivo, e Yin, feminino,

passivo, úmido e negativo.

O Tao, força motriz de toda a existência, atuava na harmonização dos

opostos, sendo certo que o Taoismo como religião atuou na medicina visando os

meios naturais de cura, entre eles, a alimentação saudável e a acupuntura.

O Budismo, por seu turno, introduziu o Yoga, cuja prática do exercício físico

e da meditação possibilita o fortalecimento do corpo e a tranquilidade da mente.

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Em se tratando da conceituação de saúde e de moléstia, Antônio Bernardes

de Oliveira (1981, p. 36) sustenta que:

Brotada do contato com a Natureza a concepção da Harmonia Universal firmada em base religiosa-filosófica gerou o conceito de saúde e moléstia não provocados por espíritos protetores ou maléficos, mas devidos ao equilíbrio ou perturbação dos princípios Yang e Yin, responsáveis que seriam pela vida dos seres e do Universo.

A propedêutica e a terapêutica foram representadas por métodos

tradicionais, tais como, a acupuntura, a “ciência do pulso” e o emprego de vegetais e

minerais. Frise-se que as algas foram utilizadas no tratamento dos bócios causados,

de modo geral, pela falta de iodo, o que provoca o aumento considerável no volume

da glândula tireoide.

Acreditava-se “ser o pulso o ponto fundamental da medicina prática”

(OLIVEIRA, 1981, p.38). Baseando-se no pulso seria possível a identificação da

moléstia, do seu tratamento e previsão de sua evolução.”.

Saliente-se que a medicina chinesa foi pioneira na imunização variólica,

sendo certo que Ko Hung (265-315 d.C.), alquimista chinês, procedeu à primeira

descrição da varíola e da sífilis.

Na China antiga, os médicos não podiam tocar nos doentes, motivo pelo

qual surgiram as denominadas “bonecas médicas”, utilizadas para o sexo feminino

pertencente à classe diferenciada indicar ao médico o local de sua dor.

Por derradeiro, mister se faz acrescentar que a figura do “chefe-médico”,

responsável pela administração e fiscalização do trabalho executado por seus

colegas, podendo aplicar penalidades, surgiu no período de Sung, Wang An-shis

(1021-1086) e constituiu o controle da profissão pelo Estado (OLIVEIRA, 1981, p.

39).

A medicina Hindu foi marcada pela influência da religião que, segundo

Oliveira (1981, p. 45), “partia do princípio da criação do mundo pela graça divina e o

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surgimento do homem pelo dom da inteligência, razão pela qual o espírito era

considerado o fim e o princípio de tudo”.

O deus criador era denominado Brama, que foi considerado o autor dos

Vedas, livros sagrados da Índia, com destaque para o Sânita do Atarva-Veda.

A causa da doença decorria das culpas praticadas na vida ou em vidas

antepassadas e não pelos semelhantes ou deuses. Através desse castigo e

posterior correção, o homem seria liberado do sofrimento (Nirvana).

As plantas medicinais eram utilizadas para cura dos enfermos, sendo certo

que preces e encantamentos eram dirigidos aos deuses ligados à natureza.

Nos ensinamentos de Max Neuburguer, médico austríaco, citado por Oliveira

(1981, p. 46): “Na moléstia o médico é um pai; na convalescença, um amigo; e

quando a saúde se acha restaurada, um guarda”.

Denota-se que a atuação do profissional de medicina interligava-se a

preceitos éticos- morais, pois a confiança depositada no profissional significava a

preservação da vida e da dignidade do paciente.

Destacam-se na medicina Hindu a cirurgia plástica, com ressalva à

amputação do nariz, considerada uma penalidade pela prática de infrações graves;

utilização de formigas para proceder às suturas intestinais e cirurgia veterinária nos

elefantes.

Por derradeiro, insta consignar que o homem de condição social privilegiada,

que se encontrava enfermo, era tratado com maior atenção do que as mulheres e

crianças, o que demonstra a desigualdade de tratamento entre os sexos e o

desrespeito à dignidade da mulher, suprimindo os seus direitos fundamentais.

Na antiga Pérsia, a sociedade dividia-se em quatro classes, quais sejam, a

nobreza, a burguesia, os camponeses e os escravos, que eram tratados por

cirurgiões, herboristas e sacerdotes.

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A religião e a Medicina caminhavam lado a lado, pois as moléstias, inerentes

à parte física, e os pecados, inerentes à parte moral, estavam interligados por uma

relação de causa e efeito.

Os pecados eram punidos com sofrimentos e doenças, cabendo à Medicina a supressão da causa da doença, ao mesmo tempo em que corrigia os seus efeitos. As drogas, por sua vez, eram destinadas a debelar a dor física que atingia o corpo (OLIVEIRA, 1981, p. 51).

A medicina da antiga Grécia passou por duas fases, sendo a primeira

ligada à mitologia e a segunda a Hipócrates, considerado o “Pai da Medicina”. A

mitologia exerceu uma grande influência destacando-se um símbolo denominado

Asclépio (Grécia) ou Esculápio (Roma), que aprendeu sobre as artes médicas com o

centauro Quíron.

Asclépio participou da guerra de Tróia, sendo considerado o deus da

medicina e da cura. O personagem do poeta Homero (IX a.C.) segura um bastão,

tendo uma cobra enrolada em seu corpo.

“Nessa fase, a figura do médico não é destacada, pois os próprios guerreiros

feridos na batalha faziam curativos e procediam à retirada dos dardos uns dos

outros e à contenção de fraturas (OLIVEIRA, 1981, p. 66)”.

Na fase hipocrática, a medicina foi separada da superstição, imperando a

racionalidade. Hipócrates (460-370 a.C.), considerado “Pai da Medicina”, é o

responsável pela elaboração do Corpus Hippocraticum (coleção hipocrática)

composto por setenta livros e cinquenta e nove tratados, aproximadamente, bem

como pela Medicina clínica e o Código de conduta e ética médica (Juramento

Hipocrático), que será analisado oportunamente.

De acordo com Antonio Bernardes de Oliveira (1981, p. 81): “Dentro de suas

limitações, a medicina hipocrática tinha lógica; fundamentava-se nos dados da teoria

humoral e afastava-se totalmente dos recursos às forças sobrenaturais”.

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Impende salientar que “Aristóteles (384-322 a.C.), filósofo grego e discípulo

de Platão, foi considerado o fundador da anatomia comparada. Em suas pesquisas

relacionadas à Biologia, contribuiu para a concepção da crescente complexidade

dos seres vivos (OLIVEIRA, 1981, p.83)”.

Por derradeiro, é salutar acrescentar que as Escolas Médicas surgiram na

Medicina pós-hipocrática, que contribuíram para o estudo acurado da Medicina.

Na medicina da antiga Roma, os conhecimentos médicos dos gregos

penetraram paulatinamente em Roma. Com a queda do Egito, sob o domínio

romano, os profissionais de medicina deixaram Alexandria com destino a Roma.

As escolas médicas que surgiram em Roma, segundo Oliveira (1981, p. 97-

98), “compreendiam um conjunto de médicos cujo segmento das ideias estava

voltado para um determinado chefe ou mestre”.

Por derradeiro, é de suma importância destacar na medicina romana o médico grego Galeno de Pérgamo (130-200 d.C.), que também se voltou para a filosofia romana, tornando-se um grande estudioso da anatomia, fisiologia, patologia, sintomatologia e terapêutica (OLIVEIRA, 1981, p.107-112).

2.2 Medicina Contemporânea: o aprimoramento da tecnologia da informação a serviço do médico e do paciente

No contexto atual, a tecnologia da informação constitui ferramenta de grande

valia para o aprimoramento dos serviços de saúde disponibilizados ao paciente na

esfera pública ou particular, que podem ser menos invasivos e causar menos

desconforto, além de contribuir para a integração do médico com outros profissionais

da área da saúde.

A implementação de recursos de ponta em aparelhos hospitalares

destinados à intervenção cirúrgica clássica ou robótica, aos exames clínicos com

imagens mais precisas, aos tratamentos de maior complexidade e ao monitoramento

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da saúde através de aplicativos, entre outros, pode oferecer serviços eficientes e

eficazes, bem como contribuir para a redução de custos operacionais destinados à

recuperação da saúde, que devem ser investidos na sua promoção e na

integralidade de assistência. No presente estudo serão abordados o prontuário

eletrônico do paciente e a telemedicina.

2.2.1 Prontuário Eletrônico do Paciente: o armazenamento de dados para o conhecimento do histórico de saúde do paciente e a relevância da sua utilização pelo médico e equipe multidisciplinar

O prontuário eletrônico do paciente constitui um recurso oferecido pela

informática para o armazenamento de informações a respeito da saúde do paciente

e dos cuidados que lhe foram dispensados por profissionais da área da saúde.

Segundo Alcion Alves Silva (2009), inicialmente, o documento era utilizado

para o registro das condições clínicas do paciente; todavia, em virtude da

diversificação e especialização de profissionais na área da saúde atuando nos

cuidados com o paciente, a utilização dos dados armazenados foi ampliada e estes

passaram a ser transmitidos à distância, inclusive para outros profissionais em locais

diversos; utilizados em pesquisas clínicas, decisões clínicas e atualização de

profissionais; administração do serviço e como prova documental em ações judiciais

(art. 225 do Código Civil)4

Impende salientar que o presente trabalho tem por escopo enfatizar a

relação médico-paciente e os benefícios da tecnologia no cuidado do enfermo, de

modo a auxiliar o profissional da saúde em suas decisões. Não será abordado,

portanto, a utilização do documento na esfera judicial e tampouco na esfera da

pesquisa clínica, procedimento complexo voltado a discussões de casos clínicos e

protocolos.

4Art. 225. As reproduções fotográficas, cinematográficas, os registros fonográficos e, em geral,

quaisquer outras reproduções mecânicas ou eletrônicas de fatos ou de coisas fazem prova plena destes, se a parte, contra quem forem exibidos, não lhes impugnar a exatidão.

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A confidencialidade do documento é fator relevante, uma vez que os dados

são armazenados com cópia de segurança e contém o histórico do paciente, cujo

acesso ao conteúdo deve ser restrito aos profissionais responsáveis pela assistência

prestada ao enfermo.

Atento a essa questão, Alcion Alves Silva (2009, p.272) enfatiza que:

O sistema de informações deve possuir mecanismos de acesso restrito e limitado a cada perfil de usuário, de acordo com a sua função no processo de assistência ao paciente, mantendo a privacidade, confidencialidade e sigilo profissional.

O processo de assistência ao paciente pode proporcionar-lhe o alívio da dor,

a promoção do restabelecimento da saúde ou o desenvolvimento de hábitos

saudáveis para o prolongamento da vida. A elaboração do prontuário eletrônico

contribui para a execução de um trabalho pormenorizado da pessoa do paciente,

que pode envolver não somente o médico, mas também uma equipe

multiprofissional que irá auxiliá-lo no contato com o enfermo analisando-o na sua

individualidade para emitir um parecer afeto à sua especialidade.

O parecer de cada profissional que se relaciona com o paciente pode

direcionar a escolha por um determinado tratamento em detrimento de outro, como

também as informações transmitidas previnem eventuais efeitos colaterais que

podem ocorrer durante o tratamento.

Essa interação respeita a diversidade de opiniões dos profissionais dentro

da sua especialidade e fortalece o conhecimento do paciente pelo médico na sua

integralidade, pois, a adesão ao tratamento pelo enfermo é um fator relevante na

relação médico-paciente e a colaboração da equipe multidisciplinar beneficia essa

interação.

A complexidade da medicina contemporânea aliada à tecnologia favorece o

contato entre profissionais que compõem uma equipe multidisciplinar e o médico,

privilegiando em primeiro lugar a valorização da pessoa do paciente na sua

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integralidade com a doença, sem desconsiderar a transposição de obstáculos, entre

eles, a distância, que pode dificultar um atendimento de qualidade ao paciente.

2.2.2 Telemedicina: a transposição do obstáculo denominado distância

O aprimoramento dos recursos tecnológicos na área da telecomunicação e

informática tem contribuído para a ampliação e a diversificação da assistência e dos

serviços destinados à atenção primária, prevenção de riscos de doenças, promoção

e recuperação da saúde, em especial nos locais de acesso geográfico dificultoso,

que, em sua grande maioria, são ocupados por comunidades que não dispõem de

recursos mínimos para uma condição de vida saudável.

A tecnologia da informação auxilia os profissionais da saúde proporcionando

meios de contato eletrônicos com outros profissionais para análise de casos clínicos

de maior complexidade e com o paciente, o que possibilita uma interação e

acompanhamento do enfermo e suas peculiaridades, ao mesmo tempo em que

transpõem as barreiras da distância e da locomoção, que podem dificultar o acesso

aos serviços destinados à saúde.

A telemedicina utiliza a telecomunicação e a informática em favor do médico

e do paciente ao facilitar o atendimento do enfermo, cujo tratamento é realizado fora

do ambiente hospitalar, bem como o contato entre profissionais à distância, inclusive

com instituições internacionais, o que favorece a troca de dados e experiências

voltadas ao bem-estar do paciente e à pesquisa científica.

No entender de Alcion Alves Silva (2009, p. 273):

A telemedicina reduz o custo, o tempo e o transporte de pacientes, inclusive em casos emergenciais, pois o contato com o médico é mais célere e, se o caso, o paciente não necessita ser transferido para centros de referência ou internado em hospitais, podendo ser atendido em sua própria comunidade.

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Acrescenta, ainda, que o contato pode ser através da - teleassistência, no

caso de isolamento geográfico do paciente ou limitação de locomoção até o serviço

de saúde do local onde se encontra; - televigilância, que consiste no recebimento

de dados remotos do paciente, como por exemplo, sua frequência cardíaca, recurso

este destinado a pacientes com enfermidades crônicas; - teleconsulta, através de

meio eletrônico, como por exemplo, WhatsApp ou aplicativos similares; e a -

interação entre profissionais, quando o médico, na presença do paciente, solicita

a opinião de outro colega à distância acerca da intervenção clínica a ser adotada no

caso sob exame, fornecendo-lhe eletronicamente os dados necessários.

De se notar, contudo, que a utilização das mídias sociais pelo médico não

substitui a sua presença na anamnese e exame físico, oportunidade em que interage

com o paciente, conhecendo o seu histórico, para estabelecer o diagnóstico.

A bem da verdade, o artigo 37, caput, do Código de Ética Médica veda a

prescrição de tratamento ou outro procedimento sem que se proceda ao exame

direto da pessoa do paciente, exceto em situações de urgência e emergência ou

impossibilidade comprovada de fazê-lo; porém, cessado o impedimento, mister se

faz a sua imediata realização.

A propósito, o parágrafo único do citado artigo dispõe que ao Conselho

Federal de Medicina cabe a regulamentação do atendimento médico a distância

(telemedicina ou outro método), sendo de bom alvitre mencionar a Resolução nº

1.974/20115, que estabelece os critérios que norteiam a propaganda em Medicina,

conceituando os anúncios, divulgação de assuntos relacionados à medicina,

sensacionalismo, autopromoção e proibições concernentes à matéria.

A mencionada Resolução foi alterada pelas Resoluções nº 2.126/20156 e nº

2.133/20157, sendo relevante mencionar a alteração do artigo 13 da Resolução nº

1.974/11 pela Resolução nº 2.126/15, especificamente o seu § 1º, que definiu o que

5 Disponível em:<htt://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2015/2126_2015.pdf> Acesso em: 25

set. 2016. 6 Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2015/2126_2015.pdf> Acesso em:

25 set. 2016. 7 Disponível em:<http://portal.cfm.org.br/images/PDF/resolucaocfmpublicidde.pdf> Acesso em: 25 set.

2016.

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compreende mídias sociais, a saber: sites, blogs, Facebook, Twiter, Instagram, You

Tube, WhatsApp e smiliares.

A respeito, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo –

CREMESP homologou alerta ético na 4743ª Sessão Plenária de 20 de setembro de

20168:

Quando for responder aos seus pacientes por WhatsApp ou aplicativos similares, façam-no desde que conheçam o seu quadro clínico atual com o intuito apenas de orientá-los, com observância ao Código de Ética Médica, particularmente com respeito ao sigilo profissional, não os expondo em grupos.

Nessa linha de intelecção, denota-se que a relação médico-paciente é

pessoal e não deve ser substituída pela tecnologia através de consultas ou

procedimentos por aplicativos, que suprimem o exame direto.

Quanto mais dados a respeito do paciente o médico obtiver, melhor respaldo

terá para suas decisões clínicas, bem como para promover a saúde privilegiando

uma qualidade de vida digna. A tecnologia pode atuar como grande aliada na

complementação de dados do paciente, mas jamais substituirá o conforto, a escuta,

o olhar e o tocar, como bem pondera J. C. Ismael (2002, p.67):

O paciente gosta e precisa ser olhado: quer ter a certeza de que existe para o médico, de que não é apenas mero portador de uma doença registrada numa ficha ou num arquivo de computador. Como a maioria das pessoas, o médico que esqueceu o significado do olhar precisa reaprendê-lo, consciente da enorme importância que tem para o paciente o fato de sentir-se parceiro dessa poderosa forma de comunicação que ganhou, na crescente utilização do computador, mais um inimigo. É uma cena patética: o médico “informatizado”, ao consultar o prontuário exibido no monitor, conduz a consulta hipnotizado por ele, enquanto o paciente, ansioso e desamparado, espera que lhe dirija o olhar.

Uma questão de destaque na medicina moderna e que constitui um desafio

a ser enfrentado pelos profissionais de medicina e pelo direito consumerista, é a

8 Disponível em: <http://www.cremesp.org.br?siteAcao=NoticiasC&id=4220> Acesso em: 30 set.

2016.

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denominada automedicação, não obstante as orientações e constantes propagandas

para alertar o consumidor acerca da sua nocividade.

Em recente artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo9, o consumo de

medicamentos sem a devida prescrição médica, conhecidos como OTC (over the

counter – “em cima do balcão”) tem aumentado no país, correspondendo a R$16,4

bilhões, com a comercialização de quantia superior a um bilhão de unidades

anualmente, o que compreende um terço da totalidade de venda de medicamentos.

A falta de orientação médica e a ingestão sem controle por longo período

pode causar risco à saúde do consumidor, principalmente os analgésicos e anti-

inflamatórios.

Se por um lado esse comportamento gera certo desconforto aos

profissionais de medicina, uma vez que está em jogo a saúde do paciente e o seu

bem-estar, por outro, segundo o artigo, a indústria estimula o autocuidado, isto é, “o

paciente, conhecendo o próprio corpo, seria capaz de tomar decisões como a de

escolher um analgésico para dor de cabeça”.

Ocorre, entretanto, que o consumidor não tem conhecimento técnico-

científico para identificar os malefícios de uma ingestão exagerada de um

determinado medicamento, o que culmina no surgimento de doenças e,

consequentemente, na procura de serviços de saúde da rede pública ou privada.

Em face da precariedade do atendimento e reiteradas recusas em arcar com

despesas médico-hospitalares, o aumento das demandas judiciais é crescente, ou

seja, a denominada judicialização da saúde, que transfere ao Poder Judiciário o

dever de cumprimento dos direitos fundamentais, entre eles, o direito à vida e à

saúde.

A solução, todavia, não está na procedência do pedido judicialmente

formulado, mas sim, na conscientização do Estado, do médico e do paciente de que

9 “Consumo de remédio sem prescrição cresce no país”. Folha de São Paulo, Caderno Saúde ciência,

07 mar. 2016.

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o bem-estar inicia-se com a promoção da saúde e a prevenção dos males que

acometem a população em geral diante dos desafios enfrentados hodiernamente.

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3 A PROMOÇÃO DA SAÚDE: A EFETIVAÇÃO DE UM DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL PRIORIZANDO A QUALIDADE DE VIDA DIGNA

3.1 Saúde: um direito fundamental social à qualidade de vida digna, ao equilíbrio e ao bem-estar social. Um novo conceito além de ausência de doença ou de enfermidade

No ordenamento jurídico pátrio, a saúde constitui um direito fundamental

social. Os direitos fundamentais estão diretamente relacionados ao Estado

Democrático de Direito e compreendem direitos subjetivos que devem ser garantidos

a todos os seres humanos, constituindo prestações positivas do Estado, pois

remetem ao direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

Na lição da jurista portuguesa, Cristina Queiroz (2010, p. 49), os direitos

fundamentais podem ser assim conceituados:

[...] direitos constitucionais, que não devem em primeira linha ser compreendidos numa dimensão “técnica” de limitação do poder do Estado. Devem antes ser compreendidos e inteligidos como elementos definidores e legitimadores de toda a ordem jurídica positiva. Proclamam uma “cultura jurídica” e “política” determinada, numa palavra, um concreto e objectivo “sistema de valores”.

Se os direitos fundamentais constituem um sistema de valores de uma

sociedade que tutela a dignidade da pessoa humana, a Constituição que os

estabelece tem o dever ético de garanti-los a todos os cidadãos, sob pena de

desestruturar os pilares básicos de sustentação moral de um país, quais sejam, a

segurança, a educação e a saúde.

Vidal Serrano Nunes Júnior (2009, p. 70), por sua vez, disserta que os

direitos sociais são:

[...] o subsistema dos direitos fundamentais que, reconhecendo a existência de um segmento social economicamente vulnerável, busca, quer por meio da atribuição de direitos prestacionais, quer pela normatização e regulação das relações econômicas, ou ainda

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pela criação de instrumentos assecuratórios de tais direitos, atribuir a todos os benefícios da vida em sociedade.

Como um direito fundamental social, a saúde prioriza do Estado o

atendimento do mínimo vital necessário à existência com dignidade, exigindo, pois, a

prestação de serviços e a efetivação de políticas públicas eficientes e eficazes, que

valorizem o ser humano na sua integralidade.

Nesse contexto, a definição de saúde tem extrapolado a sua natureza

biológica e ampliado o seu conceito além de ausência de doença, o que é reforçado

no preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS)10, agência

especializada em saúde, fundada em 07 de abril de 1948, com sede em Genebra,

na Suíça: “a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não

consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”.

Essa organização é subordinada à Organização das Nações Unidas (ONU)

e seu escopo precípuo é a garantia a todo ser humano do nível de saúde mais

elevado que for possível.

Resultantes dessa visão que enaltece a totalidade do ser, a qualidade de

vida digna, o equilíbrio e o bem-estar social tornaram-se relevantes indicadores da

definição de saúde, como bem se observa nas palavras de Jennifer Prah Ruger ao

conceituá-la (2006 apud SOUZA, 2013, p. 130):

1.O estado de funcionamento ótimo do organismo, sem evidências de doenças ou anormalidades. 2. O estado de equilíbrio dinâmico no qual esteja em um nível ótimo a capacidade do grupo ou do indivíduo de lidar com todas as circunstâncias da vida. 3.Um estado caracterizado pela integridade anatômica, fisiológica e psicológica; pela capacidade de desempenhar pessoalmente funções de valor no ambiente familiar, de trabalho e na comunidade; pela habilidade para lidar com o stress físico, biológico, psicológico e social; pelo sentimento de bem estar; e pela liberdade do risco de doenças e morte repentina.

10

Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html> Acesso em: 13 out. 2015.

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Essa completude requer o desempenho de funções que favoreçam e ao

mesmo tempo promovam atividades voltadas ao auxílio e à prestação de serviços

administrativos, técnicos e científicos que possam contribuir para o desenvolvimento

da saúde na sua totalidade, inclusive no que tange aos cuidados médicos sob os

pontos de vista preventivo e curativo, incluindo os serviços hospitalares e a

segurança social individual e coletiva.

Ao tecer suas considerações sobre o tema em comento, José Afonso da

Silva (2012, p. 782) enfatiza a importância da medicina preventiva, a saber:

O direito à saúde e o dever do Estado não se limitam à recuperação da saúde, à oferta de Medicina curativa, mas, especialmente, Medicina preventiva, ações e serviços destinados a evitar a doença – o que se vê da cláusula “políticas (...) que visem à redução do risco de doença e de outros agravos”. A ênfase está precisamente aí, na promoção e proteção de uma vida humana saudável, como um direito fundamental, no qual entra, com igual força, a recuperação da saúde.

A conceituação de qualidade de vida é ampla, pois abrange uma hierarquia

de valores individuais e coletivos estabelecida no contexto da cultura de uma

sociedade específica. Esses valores podem variar de uma sociedade para outra, e,

inclusive, dentro da mesma sociedade, em conformidade com os paradigmas,

objetivos, expectativas e inquietações envolvidos em um determinado momento

histórico, cultural, econômico, social e político.

A respeito, Maria Cecília de Souza Minayo, Zulmira de Araújo Hartz e Paulo

Marchiori Buss11, tratando da qualidade de vida e saúde mencionam três fóruns de

referência.

O primeiro deles é o histórico, isto é, em determinado momento do

desenvolvimento econômico, social e tecnológico de uma sociedade distinta esta

dispõe de um padrão de qualidade de vida que diverge da mesma sociedade em

outra fase histórica. O segundo é cultural, ou seja, os valores e necessidades são

construídos e graduados de modo diferente pelos povos, expondo suas tradições. O 11

MINAYO, Maria Cecília de Souza; HARTZ, Zulmira Maria de Araújo; BUSS, Paulo Marchiori. Qualidade de vida e saúde: um debate necessário. Ciência e Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v.5, n.1, p. 9, 2000.

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terceiro se refere às estratificações ou classes sociais, isto é, a ideia de qualidade

de vida relaciona-se ao bem-estar dos níveis superiores e à passagem de um limiar

ao outro.

Sob outro prisma e considerando a complexidade da definição do conceito

de saúde, Paulo Marchiori Buss (2002), em seu artigo denominado Promoção da

Saúde da família,12 com percuciência, afirma que na atualidade os protagonistas da

promoção da saúde são os determinantes gerais que se referem às condições de

saúde, a saber:

[...] a saúde é produto de um amplo espectro de fatores relacionados com a qualidade de vida, incluindo um padrão adequado de alimentação e nutrição, de habitação e saneamento, condições adequadas de trabalho e renda, oportunidades de educação ao longo de toda a vida, ambiente físico limpo, apoio social para famílias e indivíduos, estilo de vida responsável e um espectro adequado de cuidados de saúde. (2002, p. 52)

A Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde - DSS,

segundo Buss13, enfatiza que os determinantes da saúde são pessoais, ou seja,

relacionam-se às condutas de cada indivíduo e seu estilo de vida; e não pessoais,

de abrangência coletiva e interligados às condições políticas, econômicas, sociais,

culturais, ambientais, envolvendo, também, as políticas públicas de saúde e extra-

setoriais.

Os determinantes sociais da saúde constituem importantes indicadores de

desenvolvimento social e econômico de um país, uma vez que estão relacionados

aos recursos que a sociedade oferece aos seus cidadãos. Um maior investimento na

promoção da saúde através do maior acesso da população aos serviços de atenção

básica contribuem para a melhora da qualidade de vida e redução da vulnerabilidade

e riscos à saúde, otimizando os gastos no setor.

12

Promoção da Saúde da Família. Disponível em: <http://www.bvsms.saude.gov.br/bvs/is_digital/is_0103/is 23 (1) 021.pdf> Acesso em: 22 set. 2015. 13

Disponível em: <http://www.who.int/social_determinants/resources/ppt_cndss_bz.pdf> Acesso em: 28 set. 2016.

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37

Corrobora com o disposto ápice a Estatística de Registro Civil 2015 do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, divulgada em 24 de novembro

de 201614, que aponta queda de 4,0% do total de registro de óbitos infantis (2005),

para 2,5% (2015) na faixa etária até um ano de idade. Na faixa etária até cinco anos

de idade, a queda foi de 4,8% para 3,0%.

Esse progresso, estreme de dúvida, decorre do investimento na atenção pré-

natal da gestante e do bebê, prevenindo patologias e agravos, promovendo a saúde

através do cuidado com o corpo e alimentação saudável, bem como tratando

eventuais intercorrências durante a gravidez até o pós-parto.

A saúde, portanto, não compreende apenas um direito, mas, acima de tudo,

uma responsabilidade social do Estado e da sociedade, pois, nas palavras de

Cristina Queiroz (2006, p.63), a realização dos direitos sociais não depende tão

somente de institucionalizar uma ordem jurídica e tampouco de uma mera decisão

política dos órgãos politicamente conformadores, mas sim, da conquista de uma

ordem social em que prevaleça uma distribuição justa dos bens, que será alcançada

progressivamente.

Essa conquista pode tornar-se realidade na área da saúde através da sua

promoção, que garante o maior acesso da população aos serviços e à assistência

integrada de atenção básica à saúde, com atendimento regionalizado, sistematizado

e continuado, que acompanha a vida do paciente, as suas necessidades e as da

comunidade onde vive, propiciando um contato humanizado, receptivo e acolhedor,

em respeito à dignidade humana e ao bem-estar social.

14

Disponível em:<http//www.saladeimprensa.ibge.gov.br> Acesso em: 24 nov. 2016.

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3.2 A valorização do ser humano na sua totalidade: a eficiência e a integralidade nos serviços de saúde

As dificuldades encontradas para o cumprimento do dever do Estado de

garantir o direito à saúde a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país

concentram-se, em grande parte, no trabalho de conscientização da sociedade

acerca da promoção da saúde através da atenção básica como produto social.

A promoção e proteção de uma vida humana saudável deve ser estimulada

pelo Poder Público através da prestação de serviços eficientes de prevenção e de

cuidado com a saúde desde a gestação até a velhice, quando as capacidades

cognitivas são reduzidas ou perdidas no tempo, tornando prejudicada a autonomia

da vontade.

Dentre os princípios do serviço público destaca-se o dever do Estado de não

se escusar em promover a sua prestação, quer diretamente, quer indiretamente

mediante autorização, concessão ou permissão. No caso de omissão, como bem

destaca Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p. 678), “é cabível ação judicial

para obrigar o Estado a agir, ou então, responsabilidade por danos que

eventualmente possa causar em face da inércia”.

A prestação do serviço de saúde pela Administração Pública ou pelo

particular através da concessão do serviço público deve ser executada de forma

adequada e regular, pois, de acordo com o magistério de Diogenes Gasparini (2012,

p. 362) a respeito:

Além do direito ao serviço, também é reconhecido ao usuário o direito a uma prestação regular, que outra coisa não é senão um corolário daquele. De fato, de nada valeria o reconhecimento do direito ao serviço se, ao mesmo tempo, fosse desconhecido o direito a uma prestação regular. Isso parece óbvio, pois, pela execução irregular, pode-se chegar à negação da prestação. Destarte, se instalado e em funcionamento o serviço, o prestador assume a responsabilidade pela normalidade da sua execução e pelos prejuízos que a suspensão ou o mau funcionamento causar aos usuários.

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O caminho para o cumprimento dos deveres do Poder Público, entretanto,

não deveria ser a judicialização, mas sim, a conscientização do prestador de que o

serviço público destina-se ao cidadão, que paga por ele através dos excessivos

encargos tributários exigidos no país. Como bem assenta Bandeira de Mello (2010,

p. 677), “é em função dele, para ele, em seu proveito e interesse que o serviço

existe”.

A ratificar esse entendimento, a Carta Magna é clara ao dispor que as ações

e serviços afetos à área de saúde são de relevância pública e, nos termos da lei,

devem ser regulamentadas, fiscalizadas e controladas pelo Poder Público. A

execução, por sua vez, pode ser feita diretamente pelo Poder Público, por terceiros

ou por pessoa física ou jurídica de direito privado (art. 197, CF).15

O descaso com o direito fundamental social à saúde contribui para a

formação de uma sociedade fragilizada e dependente de políticas sociais acéfalas e

protelatórias do bem-estar coletivo, que necessitam da intervenção do Poder

Judiciário para implementá-las e mantê-las, exigindo o cumprimento por parte da

Administração, que depende de disponibilidade financeira e previsão orçamentária

(reserva do possível), as quais são desconsideradas quando se trata de garantia do

mínimo existencial para uma vida digna ou de urgência.

Destaca-se, a respeito, a decisão do insigne Ministro Celso de Mello, do

Excelso Supremo Tribunal Federal, na ADPF 45/DF, assim ementada:

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA “RESERVA DO “POSSÍVEL”.

15

Art.197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

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NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO “MÍNIMO EXISTENCIAL”. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).16

Como bem anota Carlos Ari Sundfeld (2011, p. 42), “[...] é necessário dividir

o exercício do poder político entre órgãos distintos, que se controlem mutuamente.”

Esse controle mútuo, entretanto, deve ser exercido em conformidade com os

ditames da lei maior, de modo a evitar o comprometimento da harmonia e da

independência entre os poderes que possa afetar a efetivação dos direitos

fundamentais sociais, ainda que se trate do mínimo existencial.

As políticas públicas, portanto, destinam-se ao atendimento do interesse

público que se sobrepõe ao interesse do particular. Partindo desse pressuposto, ao

se proceder à análise dos atos administrativos na área da saúde, impende sopesar

os meios empregados e os fins a serem alcançados, em especial no que tange à

relação custo-benefício.

É de bom alvitre, pois, o juízo de ponderação (ou razoabilidade), cuja

observância aos seus subprincípios constitutivos, quais sejam, adequação,

exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito, vincula os três poderes no

âmbito de sua atuação.

José Joaquim Gomes Canotilho (2003, p. 269-270) os elucida da seguinte

maneira:

a) O princípio da conformidade ou adequação impõe que a medida adoptada para a realização do interesse público deve ser apropriada à prossecução do fim ou fins a ele subjacentes. Consequentemente, a exigência de conformidade pressupõe a investigação e a prova de que o acto do poder público é apto para e conforme os fins justificativos da sua adopção (Zielkonformität,

16

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.45-9- DF, re. Min. Celso de Mello, j.29.04.2004.

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Zwecktauglichkeit). Trata-se, pois, de controlar a relação de adequação medida-fim. [...] b) O princípio da exigibilidade, também conhecido como ‘princípio da necessidade’ ou da ‘menor ingerência possível’, coloca a tónica na ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível. Assim, exigir-se-ia sempre a prova de que, para a obtenção de determinados fins, não era possível adoptar outro meio menos oneroso para o cidadão. [...] c) O princípio da proporcionalidade em sentido estrito. Quando se chegar à conclusão da necessidade e adequação da medida coactiva do poder público para alcançar determinado fim, mesmo neste caso deve perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à ‘carga coactiva’ da mesma. Está aqui em causa o princípio da proporcionalidade em sentido restrito, entendido como princípio da “justa medida”. Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com o objetivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se, pois, de uma questão de ‘medida’ ou ‘desmedida’ para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim.

Qualquer controle a ser exercido sobre as políticas públicas de saúde deve

primar pelo interesse coletivo no atendimento do mínimo existencial, promovendo a

saúde através da atenção básica, que possa oferecer o acesso do maior número de

cidadãos ao cuidado integral humanizado, sem comprometer o funcionamento do

Sistema Único de Saúde – SUS e tampouco sobrecarregar o sistema de saúde

suplementar.

Em defesa do direito fundamental social à saúde, Mariana Filchtiner

Figueiredo (2007, p. 95) é clara ao dispor:

Os valores de preservação da vida humana, a garantia de níveis progressivamente mais altos de saúde, a salvaguarda do patrimônio genético próprio, a proteção da integridade física, mental e emocional, entre outros, conduzem a atuação dos particulares e dos Poderes Públicos na efetivação do direito à saúde. Com efeito, impõem a abstenção de comportamentos lesivos à saúde, no mais amplo sentido, assim como a promoção e a consecução de medidas tendentes a efetivar esse direito fundamental social, inclusive mediante prestações materiais específicas.

O reconhecimento da carência de recursos e atenção à área da saúde

potencializou a realização de Conferências Internacionais para o estabelecimento de

estratégias e diretrizes que são referências mundiais de promoção da saúde visando

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a qualidade de vida saudável através da participação de toda a sociedade, o que

reforça o conceito de saúde não apenas como direito, mas, acima de tudo, como

responsabilidade social.

3.3 Conferências Internacionais de Promoção da Saúde: referências para uma qualidade de vida saudável

Para promover a saúde com o escopo de desenvolver ideias e políticas

públicas estruturadas e eficientes, a Conferência Internacional sobre Promoção da

Saúde realiza encontros periódicos internacionais. Nessas conferências é elaborado

um documento denominado Declaração ou Carta que estabelece os paradigmas

para uma saúde sustentável.

No presente trabalho serão mencionadas somente as seis Conferências

Internacionais sobre Promoção da Saúde e seus pontos mais relevantes. Inclui-se,

entretanto, a Declaração de Alma-Ata, cujo conteúdo influenciou as demais.

3.3.1 Declaração de Alma-Ata

A Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde foi

realizada na União Soviética no ano de 1978.

Na ocasião foi elaborada a Declaração de Alma-Ata17, que ratifica que a

saúde é um direito humano fundamental, razão pela qual os cuidados primários são

cuidados essenciais para uma qualidade de vida saudável. A meta social mundial é

a consecução do mais elevado nível possível de saúde, considerando a notável

desigualdade existente no estado de saúde dos povos. A promoção e proteção da

saúde dos povos é de suma importância para o contínuo desenvolvimento

17

Disponível em: <http://www.bioeticaediplomacia.org/wp-content/uploads/2013/.../alma-ata.pdf> Acesso em: 22 set. 20 15.

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econômico e social, de modo a contribuir para uma boa qualidade de vida e a paz

mundial. A comunidade tem o direito e o dever de participar de forma individual ou

coletiva no planejamento e na execução dos cuidados de saúde. Essa

responsabilidade também é do governo, que deve adotar medidas sanitárias e

sociais adequadas. A meta do governo até o ano 2000 é atingir um nível de saúde

que possibilite a todos os povos uma vida social e econômica produtiva. Para o

alcance desta meta os cuidados primários de saúde (cuidados essenciais) baseados

em métodos e tecnologias práticas, com fundamentação científica e aceitação social

são colocados à disposição dos indivíduos e famílias que fazem parte da

comunidade, compreendendo o primeiro contato destes com o sistema nacional de

saúde e o primeiro elemento de um processo contínuo de assistência à saúde.

Os cuidados primários de saúde refletem as condições econômicas e as

características socioculturais e políticas do país e suas respectivas comunidades,

baseando-se na aplicação dos resultados expressivos da pesquisa social,

biomédica, serviços de saúde e experiência em saúde pública. Os cuidados

primários de saúde direcionam-se aos problemas de saúde da comunidade

oferecendo-lhe serviços voltados à proteção, cura e reabilitação, conforme as

necessidades locais.

Desenvolvem um planejamento de educação da comunidade em relação aos

problemas cruciais de saúde envolvendo métodos para a prevenção e controle, bem

como promovem a distribuição de alimentos e alimentação saudável. Os cuidados

com a água e saneamento básico, saúde materno-infantil, incluindo o planejamento

familiar, como também imunização contra doenças infecciosas, prevenção e controle

de doenças endêmicas, tratamento de doenças e lesões habituais e fornecimento de

medicamentos considerados imprescindíveis também fazem parte do planejamento

de educação.

Frise-se que tais cuidados também abrangem os setores ligados à

agricultura, pecuária, produção de alimentos, indústria, educação, habitação, obras

públicas, comunicações e outros. A efetiva participação da comunidade se faz

necessária, inclusive no que tange à utilização de recursos disponíveis a nível local

e nacional.

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44

Para que esses cuidados se desenvolvam, compete aos governos

desenvolver políticas, estratégias e planos nacionais para sustentá-los em

composição com outros setores. A cooperação de todos os países para assegurar

os cuidados primários de saúde a todas as comunidades se faz necessária, pois a

saúde do povo de qualquer país beneficiará aos demais. O investimento nos

cuidados primários de saúde através da utilização dos recursos mundiais é de

extrema valia, principalmente quando o recurso financeiro empregado destina-se a

armamentos.

3.3.2 Carta de Ottawa

A Primeira Conferência Internacional Sobre Promoção da Saúde foi

realizada no Canadá (Ottawa) no mês de novembro do ano de 1986.

Na ocasião, foi elaborada a Carta de Ottawa18, focalizada especialmente

nas necessidades afetas à saúde nos países industrializados, sem desconsiderar as

necessidades de outras regiões do mundo. A capacitação da comunidade para a

sua participação ativa na melhoria de sua qualidade de vida e saúde é o foco da

mencionada carta. Promover a saúde compreende capacitar a comunidade a fim de

que possa atuar na melhoria de sua qualidade de vida e saúde, identificando suas

pretensões, satisfazendo suas necessidades e modificando de modo favorável o

meio ambiente visando o bem-estar global. A saúde é um recurso para a vida e não

um objetivo de viver.

Para que esse trabalho seja executado, existem recursos fundamentais que

não podem ser desconsiderados, tais como, paz, habitação, educação, alimentação,

renda, ecossistema estável, recursos sustentáveis, justiça social e equidade. O

desenvolvimento social, econômico e pessoal estão atrelados à saúde, pois tais

fatores podem contribuir ou prejudicar a saúde, razão pela qual a promoção da

18

Disponível em: <http://www.bvms.saude.gov.br/bvs/publicações/cartas–promoção.pdf> Acesso em: 14 ago. 2015.

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saúde tem por escopo a sua defesa, propiciando, assim, que tais fatores sejam

favoráveis.

A equidade em saúde também é um dos objetivos da promoção da saúde

para reduzir as diferenças no estado de saúde da população e compete às pessoas

controlar os fatores determinantes da saúde. Para tanto, a promoção da saúde

requer uma ação coordenada do governo, setores saúde, sociais e econômicos,

organizações voluntárias e não-governamentais, autoridades locais, indústria e

mídia. A participação da população se faz necessária, quer individualmente, quer

entre famílias e comunidades.

A responsabilidade pela promoção da saúde deve ser compartilhada entre

todos os envolvidos objetivando a criação de um sistema de saúde que contribua

para a conquista de um elevado nível de saúde, o que somente será possível

através da focalização das necessidades do indivíduo, como pessoa integral que é.

Para tanto, foram firmados compromissos com a promoção da saúde, quais

sejam, atuação no campo das políticas públicas saudáveis e advogando um

compromisso político em relação à saúde e à equidade em todos os setores; ação

contra a produção de alimentos prejudiciais à saúde, a degradação dos recursos

naturais; as condições ambientais e de vida não-saudáveis e a má nutrição, de

modo a centrar a atenção nos novos temas de saúde pública que envolvem a

poluição, trabalho perigosos, habitação e assentamentos rurais; atuar pela

diminuição do fosso existente no que concerne às condições de saúde dos povos e

lutar contra as desigualdades em saúde; reconhecer as pessoas como o principal

recurso para a saúde visando capacitá-las para que se mantenham saudáveis, bem

como sua família e amigos; reorientar os serviços de saúde, incentivando a

participação e colaboração de outros setores e da comunidade; reconhecer a saúde

e sua manutenção como o maior desafio e o principal investimento social dos

governos, dedicando-se à ecologia e diferentes maneiras de vida.

O compromisso por uma forte aliança em saúde pública se faz necessário e

requer uma ação internacional. A justiça social e a equidade constituem pré-

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46

requisitos para a saúde bem como a advocacia e a mediação como processos para

atingi-la.

3.3.3 Declaração de Adelaide

A Segunda Conferência Internacional Sobre Promoção da Saúde foi

realizada em Adelaide (Austrália), no período de 5-9 de abril de 1988.

Na ocasião, foi elaborada a Declaração de Adelaide19, voltada para as

políticas públicas, dando continuidade às orientações de Alma-Ata e Ottawa.

As políticas públicas saudáveis se preocupam com a saúde, a equidade e a

responsabilidade no que tange ao impacto na saúde. Tem por principal escopo a

criação de um ambiente saudável a fim de que as pessoas vivam de maneira

saudável. Elas também possibilitam a realização de escolhas saudáveis por parte

dos cidadãos, bem como propiciam um ambiente físico e social mais adequado à

saúde. Os setores governamentais devem dar grande ênfase à saúde como fator

essencial na formulação das suas políticas, assumindo assim, a responsabilidade

por suas decisões políticas.

A responsabilidade pública pela saúde constitui um elemento essencial para

o incremento das políticas públicas saudáveis, bem como a ação comunitária,

motivo pelo qual a integração dos setores econômico e social se faz necessária.

Nesses termos, mister se faz a constituição de novas alianças entre todos os setores

de modo a estimular ações voltadas para a promoção da saúde. A participação dos

governos é de suma importância visando a atuação de organizações e associações

voltadas para a melhoria da saúde da população.

Os pré-requisitos para o compromisso com a saúde pública global são: a paz

e a justiça social; alimentação nutritiva e água potável; educação e habitação

19

Disponível em:<http://www.saudepublica.web.pt/05-promocaosaude/Dec_Adelaide.htm> Acesso em: 14 ago. 2015.

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condignas; papel ativo na sociedade e rendimento adequado e a conservação de

recursos e proteção ao ecossistema.

Para o reconhecimento de uma saúde global, torna-se necessário

compreender a interdependência dentro e entre os países, pois os desafios futuros a

serem enfrentados relacionam-se às providências para uma distribuição equitativa

de recursos; criação e preservação de condições saudáveis no setor habitacional e

no trabalho a fim de assegurar a saúde para todos; o encorajamento da colaboração

no que diz respeito à paz, aos direitos humanos, à justiça social, à ecologia e ao

desenvolvimento sustentável, em todo o globo; a colaboração deve ser incentivada

nos diversos setores com o objetivo de atingir uma melhor saúde e as políticas

públicas saudáveis devem propiciar que os avanços tecnológicos dos cuidados de

saúde auxiliem no processo de concretização da equidade.

O apoio aos países em desenvolvimento constitui um dos aspectos mais

importantes deste processo.

3.3.4 Declaração de Sundsvall

A terceira Conferência Internacional de Promoção da Saúde foi realizada

em Sundsvall (Suécia), no período de 9 a 15 de junho de 1991.

Na ocasião, foi elaborada a Declaração de Sundsvall20, focalizada no

engajamento ativo de todos os povos para a promoção de ambientes mais

favoráveis à saúde. A convocação para a ação é dirigida a políticos, ativistas e

defensores do setor saúde, do meio ambiente e da justiça social, que devem unir

forças e formar uma aliança voltada para o objetivo de atingir a Saúde Para Todos

no Ano de 2000.

20

Disponível em: <http://molar.crb.ucp.pt/cursos/.../21.../Declarações/4-Sundsvall.pdf> Acesso em: 23 set. 2015.

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48

Em se tratando de saúde, o termo “ambientes favoráveis” relaciona-se aos

aspectos físico e social. As ações, para a criação de ambientes favoráveis,

envolvem as dimensões físicas, sociais, espirituais, econômicas e políticas, devendo

ser coordenadas no nível local, nacional e internacional.

Tratando-se da dimensão social, esta inclui as maneiras pelas quais normas,

costumes e processos sociais afetam a saúde. O crescente isolamento social, a

perda de significados e propósitos coerentes da vida e a perda de valores

tradicionais e herança cultural estão mudando, o que representa uma ameaça à

saúde.

A dimensão econômica requer o reescalonamento dos recursos para o

alcance da meta Saúde Para Todos no Ano 2000 e o desenvolvimento sustentável.

A necessidade de utilização do conhecimento do sexo feminino em todos os setores,

inclusive o político e o econômico, se faz necessária para o desenvolvimento de

infraestrutura positiva para ambientes favoráveis à saúde.

Dois princípios fundamentais são necessários para o alcance da meta Saúde

Para Todos no Ano 2000, quais sejam, priorizar a equidade, incluindo todos os seres

humanos, pois o mundo industrializado deve pagar o débito humano e ambiental que

acumulou por meio da exploração do mundo em desenvolvimento. O segundo

compreende ações do setor público voltadas para a criação de ambientes favoráveis

à saúde, considerando a interdependência entre todos os seres vivos e o

gerenciamento dos recursos naturais, considerando as necessidades das futuras

gerações. Não se pode esquecer dos povos indígenas, que devem ser envolvidos

nas atividades voltadas ao desenvolvimento sustentável.

Para tanto, mister se faz reforçar as ações sociais através da participação

comunitária, em especial pelos grupos organizados pelo sexo feminino; a

capacitação da comunidade e indivíduos para maior participação na tomada de

decisão e controle sobre a sua saúde e ambiente; mediação dos interesses em

conflito na sociedade visando assegurar o acesso igualitário a ambientes favoráveis

à saúde. O elemento chave para a realização de mudanças políticas, econômicas e

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sociais é a educação focada na equidade em especial o respeito à cultura, classe

social e gênero.

O estabelecimento de novos mecanismos para a prestação de contas dos

setores saúde e ambiente devem ser construídos com fundamento no

desenvolvimento sustentável da saúde.

Concluiu a Conferência que a saúde, ambiente e desenvolvimento humano

estão interligados, sendo certo que desenvolver implica na melhoria da qualidade de

vida e saúde, bem como na preservação da sustentabilidade do meio ambiente,

pois, somente uma ação global, baseada na parceria de todas as nações,

assegurará o futuro de nosso planeta.

3.3.5 Declaração de Jacarta

A quarta Conferência Internacional de Promoção da Saúde foi realizada

em Jacarta (Indonésia) no período de 21 a 25 de julho de 1997.

Na ocasião, foi elaborada a Declaração de Jacarta21 realizada em um país

em desenvolvimento, sendo a primeira Conferência Internacional a proceder à

inclusão do setor privado no apoio à promoção da saúde.

A saúde constitui um direito humano fundamental e essencial para o

desenvolvimento dos setores social e econômico. Sua meta principal é o aumento

das expectativas de saúde e a redução da lacuna quanto à expectativa de saúde

entre os países e grupos. O desafio a ser enfrentado é o reexame dos determinantes

da saúde e a identificação das direções e estratégias para encarar a promoção da

saúde no século XXI.

21

Disponível em: <http://www.mpba.mp.br/atuacao/cidadania/.../declaracao_jacarta.pdf> Acesso em: 23 set. 2015.

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50

A exigência prévia e indispensável para a promoção da saúde é o

reconhecimento dos pré-requisitos relacionados à saúde, quais sejam, a paz, abrigo,

instrução, segurança social, relações sociais, alimento, renda, direito de voz das

mulheres, um ecossistema estável, uso sustentável dos recursos, justiça social,

respeito aos direitos humanos e equidade. Destaca-se a pobreza como a maior

ameaça à saúde.

A promoção da saúde deve evoluir para fazer frente aos determinantes da

saúde, pois as estratégias de promoção da saúde podem modificar estilos de vida,

bem como as condições sociais, econômicas e ambientais que determinam a saúde.

Promover a saúde é obter maior equidade em saúde.

Os enfoques abrangentes do desenvolvimento da saúde são os mais

eficientes; as localidades oferecem oportunidades práticas para a implementação de

estratégias abrangentes; a participação é essencial para apoiar o esforço, pois a

população deve se envolver com a ação de promoção de saúde e tomada de

decisão, sendo certo que o aprendizado sobre saúde impulsiona a participação.

A atuação eficaz ao combate às ameaças emergentes à saúde requer a

cooperação e criação de parcerias entre os diversos setores em todos os níveis do

governo nas sociedades em condições de igualdade.

A promoção da responsabilidade social envolvendo os setores público e

privado se faz necessária a fim de evitar prejuízos à saúde de outros indivíduos;

proteger o meio ambiente e assegurar o uso sustentável dos recursos, restringir a

produção e o comércio de produtos e substâncias prejudiciais e a prática de

mercado insalubre; salvaguardar a pessoa, quer no mercado, quer no local de

trabalho; incluir uma avaliação do impacto sobre a saúde focado na equidade como

parte da elaboração de políticas.

O aumento de investimentos para o estímulo à saúde requer um enfoque

multissetorial, que incluam recursos adicionais para a educação, habitação e setor

saúde. Novas propostas devem ser formuladas, sendo certo que a cooperação é

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essencial, bem como a consolidação e expansão de parcerias em prol da saúde que

compartilhem especializações, habilidades e recursos.

A promoção da saúde efetua-se pelo e com o povo e não sobre e para o

povo, razão pela qual a capacidade comunitária se faz necessária para influenciar os

determinantes da saúde.

Para a promoção mundial da saúde, mister se faz uma aliança mundial,

cujas prioridades incluem o aumento da sensibilização sobre a mudança dos

determinantes da saúde; criação de atividades de colaboração e de redes para o

desenvolvimento sanitário; mobilização de recursos para a promoção da saúde;

acumulação de conhecimentos sobre as melhores práticas; facilitação do

aprendizado compartilhado; promoção de solidariedade em ação e transparência e

responsabilidade pública de prestação de contas.

3.3.6 Declaração do México

A Quinta Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde foi

realizada na cidade do México (México), no período de 5 a 9 de junho de 2000.

Na ocasião, foi elaborada a Declaração do México22 e assinada pelos

ministros da saúde presentes, com o seguinte conteúdo: - reconhecem que a

consecução do nível de saúde mais alto possível é um elemento positivo para o

aproveitamento da vida e necessário para o desenvolvimento social, econômico e a

equidade; - reconhecem que a promoção da saúde e do desenvolvimento social é

um dever e responsabilidade central dos governos, compartilhada por todos os

setores da sociedade; - estão conscientes de que, nos últimos anos, através dos

esforços sustentados dos governos e sociedades em conjunto, houve uma melhoria

significativa da saúde e progresso na provisão de serviços de saúde em muitos

países do mundo; - constatam que, apesar desse progresso, ainda persistem muitos

22

Disponível em: <http://www.ergonomianotrabalho.com.br/artigos/Mexico.pdf> Acesso em 22 set. 2015.

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problemas de saúde que prejudicam o desenvolvimento social e econômico e que,

portanto, devem ser urgentemente resolvidos para promover uma situação mais

equitativa em termos de saúde e bem-estar; - estão conscientes de que, ao mesmo

tempo, doenças novas ou que ressurgem ameaçam o progresso registrado na área

da saúde; - constatam a necessidade urgente de abordar os determinantes sociais,

econômicos e ambientais da saúde, sendo preciso fortalecer os mecanismos de

colaboração para a promoção da saúde em todos os setores e níveis da sociedade;

- concluem que a promoção da saúde deve ser um componente fundamental das

políticas e programas públicos em todos os países na busca de equidade e melhor

saúde para todos e constatam as amplas indicações de que as estratégias de

promoção da saúde são eficazes.

Recomendam, portanto, as seguintes ações: - colocar a promoção da saúde

como prioridade fundamental das políticas e programas locais, regionais, nacionais e

internacionais; - assumir um papel de liderança para assegurar a participação ativa

de todos os setores e da sociedade civil na implementação das ações de promoção

da saúde que fortaleçam e ampliem as parcerias na área da saúde; - apoiar a

preparação de planos de ação nacionais para promoção da saúde, se preciso

utilizando a capacidade técnica da OMS e de seus parceiros nessa área. Esses

planos variarão de acordo com o contexto nacional, mas seguirão uma estrutura

básica estabelecida de comum acordo durante a Quinta Conferência Global sobre

Promoção da Saúde, podendo incluir entre outros - identificação das prioridades de

saúde e estabelecimento de políticas e programas públicos para implantá-las; -

apoio às pesquisas que ampliem o conhecimento sobre as áreas prioritárias; -

mobilização de recursos financeiros e operacionais que fortaleçam a capacidade

humana e institucional para o desenvolvimento, implementação, monitoramento e

avaliação dos planos de ação nacionais.); - estabelecer ou fortalecer redes nacionais

e internacionais que promovam a saúde; - defender a ideia de que os órgãos da

ONU sejam responsáveis pelo impacto em termos de saúde da sua agenda de

desenvolvimento e informar ao direitos – geral da Organização Mundial da Saúde,

para fins do relatório a ser apresentado à 107ª sessão da Diretoria Executiva, o

progresso na execução dessas ações.

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53

3.3.7 Carta de Banguecoque

A Sexta Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde foi realizada

em Banguecoque (Tailândia), no período de 5 a 11 de agosto de 2005.

Na ocasião foi elaborada a Carta de Banguecoque23, que afirma que o

cerne do desenvolvimento global e nacional são as políticas e alianças capazes de

capacitar as comunidades para melhorar a saúde e a equidade.

Os valores, princípios e estratégias da Carta de Ottawa são desenvolvidos

pela Carta de Banguecoque, sendo certo que os grupos alvo incluem todos os níveis

dos governos e classe política, sociedade civil, setor privado, organizações

internacionais e comunidade com intervenção na saúde pública.

O desfrute de um estado de saúde mais elevado sem qualquer

discriminação constitui um direito fundamental do ser humano, sendo certo que a

saúde constitui um determinante da qualidade de vida, incluindo o bem-estar mental

e espiritual.

Os fatores críticos que influenciam a saúde relacionam-se ao aumento das

desigualdades em cada país e entre diferentes países; novos padrões de consumo e

de comunicação; processos de comercialização, alterações ambientais a nível global

e a urbanização. Outro fator que influencia a saúde inclui as mudanças rápidas e

frequentemente adversas nas áreas social, econômica e demográfica.

A globalização possibilita a abertura de novas oportunidades que incluem a

otimização das tecnologias de informação e de comunicação e a melhoria do pros

processos de governação e de partilha de experiências. Para gerir os desafios da

globalização, mister se faz garantir a coerência das políticas adotadas por todos os

níveis de governo; todos os órgãos das Nações Unidas e outras organizações,

incluindo o setor privado.

23

Disponível em: <http://www.saudepublica.web.pt/05-PromocaoSaude/Dec_Bangkok.htm> Acesso em: 22 set. 2015.

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54

A participação ativa da sociedade civil e o progresso na direção de um

mundo mais saudável implicam em medidas políticas enérgicas e atividades

permanentes de promoção da saúde.

Todos os setores devem atuar para defender a saúde alicerçada nos direitos

humanos e solidariedade; investir de modo sustentado em políticas, ações e

infraestruturas dirigidas aos determinantes da saúde; adquirir capacidades no

desenvolvimento de políticas, de liderança, de práticas de promoção da saúde, de

transferência de conhecimento e pesquisa, e de educação sanitária; legislar e criar

normas reguladoras que assegurem um nível elevado de proteção para a redução

de danos, e garantam a todas as pessoas os princípios de equidade e bem-estar em

saúde e viabilizar alianças e parcerias com a sociedade civil, organizações públicas

e privadas, não governamentais e internacionais, que garantam a sustentabilidade

das ações.

Estabeleceu-se quatro compromissos chave que devem contribuir para

que a promoção da saúde seja – de importância primordial para a agenda de

desenvolvimento global/mundial; - uma responsabilidade central e inquestionável de

todos os governos; - um objetivo fundamental para a sociedade civil e comunidade

em geral e – um requisito de boas práticas empresariais. A promoção da saúde deve

ser parte integrante das políticas nacionais e externas, como também, das relações

internacionais, incluindo situações de guerra e conflito.

Compete, pois, aos governos local, regional e nacional dar prioridade aos

investimentos em saúde dentro e fora do setor e financiar as ações de promoção da

saúde, com a participação da comunidade e da sociedade civil nas fases de

delineamento, implementação e execução das atividades, bem como do setor

empresarial.

Nesse passo, as parcerias e alianças são importantes para agregar pessoas

e organizações para o alcance de metas e realização de ações conjuntas visando a

melhora da saúde dos povos.

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55

A Carta de Banguecoque, por conseguinte, solicita que todos os líderes

façam uma aliança mundial voltada para a promoção da saúde, entabulando

assumindo compromissos e ações a nível local e mundial.

Pautando-se nesse contexto internacional de promoção da saúde com a

efetiva participação e integração de todos os segmentos da sociedade e da

Administração visando a superação das deficiências na área da saúde e a prestação

de serviços de qualidade, mister se faz a análise da promoção da saúde no Brasil.

3.4 A Promoção da Saúde no Brasil: a interação comunitária com os setores público e privado em busca do bem-estar social

Promover saúde consiste, primeiramente, no oferecimento de condições

mínimas de infraestrutura de saneamento básico e educação à população que se

estende dos grandes centros às comunidades ribeirinhas. Essa atuação, entretanto,

não é apenas uma política de Estado, uma vez que requer o envolvimento

consciente de cada cidadão na escolha do estilo de vida que deseja para si e na

proteção ao ambiente natural.

No Brasil, a Lei Orgânica da Saúde – nº 8.080/9024, regula o Sistema Único

de Saúde – SUS, instituído pela Constituição da República de 1988, para

racionalizar os serviços oferecidos no setor, dispondo sobre as condições para a

promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos

serviços correspondentes em todo o território Nacional.

As diretrizes do SUS consistem na descentralização (político-administrativa),

atendimento integral e participação da comunidade (art. 198, incisos I-III, da CF),25

além da obediência aos seus princípios basilares, quais sejam, da universalidade,

24

Disponível em: <http://www.conselho.saude.gov.br lei8080_190990> Acesso em: 06 jun. 2015. 25

Art.198, caput e incisos I-III: As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I- descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II- atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III- participação da comunidade.

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integralidade de assistência e igualdade (art. 7º, incisos, II e IV, da Lei nº 8.80/90)26,

sendo solidária a responsabilidade dos entes federativos no que concerne às ações

e serviços públicos de saúde.

A efetividade das diretrizes e dos princípios basilares do SUS é possível

através da participação conjunta da sociedade e da Administração, pois, como bem

salienta Marcus Augusto Perez (apud BUCCI, 2006, p. 169):

[...] a participação serve justamente para romper com o distanciamento entre a sociedade e a Administração, aproximando-a dos conflitos sociais e políticos e proporcionando aos administrados uma gestão responsiva, dinâmica, atenta à pluralidade dos interesses sociais, com vistas voltadas à efetivação dos direitos fundamentais, fator essencial para a eficiência das atividades do bem-estar que devem ser conduzidas pela Administração e para sua legitimidade, tanto em função da adesão racional da sociedade a um conjunto de medidas concretas, políticas ou programas que esta ajudou a formular, decidir e muitas vezes a executar, como em razão da eficiência dessa atuação conjunta.

Nessa esteira de pensamento e imbuída no desenvolvimento dos cuidados

de atenção básica à saúde foi aprovada a Política Nacional de Atenção Básica

(Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011)27, cujos princípios gerais caracterizam-

se em ações de saúde individuais e coletivas para promoção e recuperação da

saúde, prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de

danos e manutenção da saúde.

O foco é a atenção integral à saúde e aos seus determinantes, contando

com a participação social, tornando cada indivíduo sujeito do processo dos cuidados

básicos de sua saúde e da comunidade em que vive, bem como possibilitando o

acesso do maior número possível de cidadãos aos serviços de saúde atentando-se

às necessidades da população local.

26

Art. 7º, caput e incisos I, II e IV: As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art.198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: I- universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; II- integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; e IV- igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie. 27

Disponível em: <http://www.saude.mt.gov.br arquivo portarias> Acesso em: 30 set. 2016.

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3.4.1 Programa Saúde da Família (PSF): a ênfase na atenção básica visando o acesso universal aos serviços de saúde com equidade e humanização

O cuidado integral à saúde fundamenta-se no respeito ao ser humano na

sua totalidade, incluindo a sua corresponsabilidade com a sua saúde e as

necessidades da comunidade em que vive, uma vez que a integralidade de

assistência disposta no artigo 7º, II, da Lei nº 8.080/90 refere-se às ações e serviços

contínuos de prevenção, seguidos dos curativos.

Michael Kidd (2016, p. 198-200) sustenta que “o investimento na promoção

da saúde requer a alocação de recursos destinados, primeiramente, à atenção

primária às demandas e necessidades de cada região geográfica do país, em

especial, à facilitação do acesso à rede de serviços de saúde”.

Nesta seara é relevante o estudo de Leavell e Clarck (1976) sobre a

Medicina Preventiva estabelecendo três níveis de prevenção, a saber: primária,

secundária e terciária. A prevenção primária relaciona-se à promoção da saúde e

proteção específica; a secundária ao diagnóstico e tratamento precoce e a terciária à

reabilitação.28

Denota-se que a prevenção primária está interligada à qualidade de vida

saudável, cuja promoção deve ser estimulada de modo contínuo a partir da infância

até o envelhecimento, a fim de educar e conscientizar cada indivíduo acerca da

responsabilidade com a sua saúde para evitar doenças.

Na prevenção secundária, o infortúnio relacionado à saúde já foi detectado e

necessita do seu rastreamento; ao passo que, na prevenção terciária, o foco é a

reabilitação, em razão de sequelas decorrentes de uma determinada patologia.

A atuação do Ministério da Saúde junto aos estados, municípios e Distrito

Federal é voltada à formação de Unidade(s) Básica(s) de Saúde - UBS, com ou sem

saúde da família; porém, com responsabilidade sanitária que garanta os princípios

28

Ministério da Saúde. Caderno de Atenção Primária- Rastreamento n. 29, 2010. Disponível em: <http://www.bvsms.saude.gov.br bvs publicacoes.pdf > Acesso em: 24 mar. 2015.

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da atenção básica, em especial, promoção, prevenção reabilitação e manutenção da

saúde, entre outros. Os municípios são responsáveis pela implantação do programa,

com o apoio das secretarias estaduais de saúde e do Ministério da Saúde.

A atenção básica tem na saúde da família a sua estratégia principal, cujas

diretrizes são organizadas em conformidade com o Sistema Único de Saúde,

priorizando a atuação integral, contínua e organizada dos serviços de saúde

descentralizados em respeito ao princípio da equidade.

A preocupação com o ser humano na sua integralidade constitui um estímulo

à participação da comunidade, que exerce o controle das atividades desenvolvidas a

fim de que a operacionalização do programa alcance o maior número possível da

população, bem como atenda os problemas de maior frequência e relevância em

saúde de cada território.

A equipe multidisciplinar é composta, no mínimo, por um médico generalista

(ou especialista em saúde da família), enfermeiro generalista (ou especialista em

saúde da família), auxiliar ou técnico de enfermagem e agentes comunitários de

saúde. Pode ser acrescentado um cirurgião-dentista generalista (ou especialista em

saúde da família) e auxiliar ou técnico em saúde bucal. Estimula-se a capacitação e

educação permanente dos profissionais, além de uma remuneração adequada ao

trabalho executado.

O campo de atuação não se vincula ao aspecto sanitário tão somente, mas,

principalmente, ao educacional, através de ações educativas de conscientização do

cuidado com a saúde no âmbito individual e coletivo, para a escolha de uma vida

saudável, cujo estímulo deve ter início com a gestação a fim de que as novas

gerações possam ter melhor condição de vida e de convívio em sociedade.

Como política pública de saúde, o programa saúde da família enfrenta

escassez de recursos repassados pelo Ministério da Saúde, o que dificulta o

fornecimento de equipamentos e materiais adequados ao atendimento dos princípios

básicos propostos, a uniformização nacional do prontuário eletrônico do paciente

para a redução de custos, sem desconsiderar comunidades cuja complexidade dos

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problemas de saúde não são atendidos por falta de infraestrutura e profissionais de

saúde qualificados.

A despeito desses desafios, facilitar o acesso do maior número de cidadãos

ao atendimento básico de saúde através de um programa educativo que desenvolva,

primeiramente, a corresponsabilidade de cada indivíduo com o seu bem-estar e,

consequentemente, com o da coletividade, constitui uma dinâmica de construção

coletiva à atenção à saúde de qualidade, dignidade e solidariedade entre a parceria

pública e privada.

3.4.2 Sistema de medicina familiar na saúde suplementar: uma proposta de acesso à atenção primária à saúde com eficiência

A assistência à saúde é livre à iniciativa privada, nos termos do artigo 19929

da Carta Magna, uma vez que é cediço que o Estado não dispõe de condições

orçamentárias para garantir o acesso à saúde a todo cidadão brasileiro.

Os planos privados de assistência à saúde são regulamentados pela Lei nº

9.656/98 e controlados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar- ANS, criada

pela Lei no. 9.961, de 28.1.2000 e ANVISA - Agência Nacional de Vigilância

Sanitária, criada pela Lei no.9.782, de 26.01.1999, que exercem poder de polícia

com o escopo de impor limitações administrativas e fiscalizar as operadoras de

saúde na prestação dos serviços de natureza securitária ao consumidor, que lhe

paga um valor mensal (prêmio), para o fornecimento do serviço contratado.

O sistema de saúde suplementar também constitui um fator de aumento da

judicialização da saúde, em decorrência de descumprimento do contrato por parte

das operadoras de planos de saúde, o que tem causado descontentamento dos

consumidores, que recorrem à justiça para o cumprimento da vontade previamente

estabelecida entre as partes contratantes.

29

Art.199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

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As divergências, em sua grande maioria, centralizam-se na negativa de

cobertura de tratamentos e procedimentos não cobertos pelo plano contratado ou

que não se encontram elencados no rol de procedimentos da ANS, ou então, de

medicamentos de tecnologia de ponta, cujo custo não é coberto ou é inviável para o

fim a que se destina.

Os conflitos de interesses não propiciam benefícios às partes envolvidas,

pois, ao mesmo tempo em que oneram o sistema de saúde suplementar,

comprometendo os demais segurados, não satisfazem um atendimento integralizado

e humanizado, que proporcione ao consumidor um tratamento adequado durante

toda a vida.

O sistema de medicina familiar,30 segundo notícia da Universidade Aberta do

SUS (UNA-SUS), é um estímulo ao atendimento básico de saúde com eficiência e

celeridade, com referência na Holanda, Inglaterra, Canadá e Espanha. O sistema é

desenvolvido pela Unimed e Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do

Brasil – Cassi.

De início, o sistema atuaria em consultas de rotina ou situações inusitadas,

como por exemplo, sinusite e problemas gastrointestinais. O segurado seria

atendido por um médico clínico geral em atenção primária.

Em se tratando de um problema de saúde que pode ser solucionado sem a

necessidade de um médico especialista, o cuidado básico é executado com

acompanhamento contínuo durante toda a vida. Caso contrário, após a anamnese e

o exame clínico, diagnosticada eventual patologia, o segurado será direcionado ao

médico especialista.

O acompanhamento do tratamento ou procedimento é coordenado pelo

médico de atenção primária, equipe e especialista, de modo que o segurado será

assistido em sua integralidade com eficiência e presteza. Certamente, o

30

Disponível em: <http://www.unasus.gov.br/noticia/planos-de-saude-adotam-sistemade-medicina-familiar> Acesso em: 01 out. 2016.

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acompanhamento do paciente é integrado ao seu prontuário eletrônico, cujos dados

constituem uma preciosa ferramenta para a prestação de um serviço de qualidade.

Trata-se de um trabalho de promoção da saúde, que deve acompanhar o

segurado desde o primeiro contato, de modo a prevenir patologias e estimular uma

qualidade de vida saudável, com corresponsabilidade e autonomia do segurado no

cuidado com a sua saúde.

Promover saúde, acima de tudo, é desenvolver medidas sociais e

educativas de prevenção, recuperação e manutenção da saúde, através do

acolhimento e formação de vínculo de cuidado para um tratamento adequado que

deve ser para toda a vida, isto é, desde a gestação até o envelhecimento do ser.

O acolhimento e o vínculo de cuidado se iniciam no encontro do paciente

com o médico, protagonistas principais da relação interpessoal humanizada,

centrada na visão holística do ser humano e no respeito à sua autonomia para

decidir sobre sua própria vida.

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4 PACIENTE: UM SER HUMANO FRAGILIZADO PELO DESCONHECIDO

Do latim (patiens, patientis), registra De Placido e Silva (1984, p. 298, vols.

III e IV) que paciente é aquele que “sofre ou que suporta”. Refere ainda que na

terminologia médica, é o “que suporta ou que vai sofrer uma operação cirúrgica” e,

em todos os sentidos, “é sempre designação dada à pessoa que vai sentir os efeitos

da ação, em regra praticada por outrem”.

O sentimento e o sofrimento do paciente centralizam-se na situação de

desequilíbrio que assola sua mente e corpo. A busca do equilíbrio perdido o conduz

ao processo de introspecção, isto é, de reflexão sobre si mesmo, de suas agruras e

inseguranças diante do desconhecido que o atemoriza.

É nesse momento que as experiências vividas por este frágil e debilitado ser

vêm a tona e passam a ser compartilhadas com aqueles que estão ao seu redor,

entre eles, o médico, pelo qual nutre confiança para expor a sua individualidade e

privacidade e do qual espera respeito por sua integridade física e por seus valores

éticos e morais.

O sofrimento atrelado à dor suportada pelo paciente não envolve apenas um

fator biológico, ou seja, um mal-estar que toma conta do corpo, mas também, fatores

culturais e sociais que envolvem o ser na sua totalidade.

Nesse diapasão, Roselyne Rey (2012, p. 21) ao tratar da dor destaca a

importância da análise do ser na sua integralidade:

[...] a dor, quando ela é intensa, durável, ou simplesmente crônica, implica sempre o ser integralmente: ela não se limita à parte dolente, mas é o indivíduo em sua unidade que é atingido pela dor, seu caráter que é obscurecido, sua lucidez intelectual que fica amortecida.

Acrescentando ainda as palavras de Montaigne (1533-1592 apud REY,

2012, p. 21):

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(...) os sofrimentos que nos tocam simplesmente pelo espírito me afligem muito menos do que a maior parte dos homens: [...] mas os sofrimentos verdadeiramente essenciais e corporais, eu os experimento muito mais intensamente.

Se o tratamento eficaz da dor envolve a observação e a compreensão do

ser na sua totalidade, é salutar a interação do médico com o ambiente sociocultural

em que o paciente está inserido, de modo a propiciar a aceitação do tratamento que,

sob o ponto de vista terapêutico, é o mais adequado, efetivo e humanizado porque

assegura o respeito à sua integridade físico-psíquica, intelectual e moral.

4.1 O paciente e a doença: a vivência do ser com o desequilíbrio interior.

As doenças surgiram a partir do momento em que o homem passou a viver

em grandes grupos, o que contribuiu para a formação das civilizações. Os seres

humanos viviam em contato com a natureza e dela retiravam o necessário à sua

sobrevivência e de sua família sem afrontá-la.

No decorrer do tempo, dispondo de tecnologia avançada e de extrema

sofisticação, bem como diversificando os seus interesses materiais, o homem

passou a controlar a natureza utilizando-a sem limitações, contribuindo para os

desmatamentos, poluição atmosférica em decorrência dos gases emitidos, o que

prejudica o ar respirado, elemento indispensável para assegurar a vida terrestre.

Esse descontrole no lidar com a natureza interfere na qualidade de vida dos

seres humanos, expondo em risco as civilizações existentes no planeta.

Ao conceituar doença, Nicola Abbagnano (2007, p. 344) a define como

“expressão significativa da situação existencial do homem”.

A complexidade da definição é cristalina, pois não se relaciona somente ao

aspecto biológico da doença em si, mas também, ao emocional, social e cultural,

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envolvendo o ser humano na sua totalidade, considerando o meio em que vive, a

família, os demais indivíduos com quem se relaciona no cotidiano e o trabalho.

O conflito interno e externo no qual o indivíduo encontra-se inserido o torna

frágil e debilitado perante a comunidade onde vive e a sociedade como um todo.

A doença contribui para o isolamento social, pois o doente tem receio da

rejeição dos demais pares. O sentimento de impotência técnica também expõe o

paciente a situações de constrangimento e insegurança.

Se a doença é vista como uma anormalidade, é certo que necessita ser

enfrentada e tratada com todos os cuidados necessários, inclusive para não tornar o

paciente mero objeto de procedimentos e tratamentos fadados ao insucesso.

Ao tratar sobre Doença versus Enfermidade na Clínica Geral, Cecil G.

Helman (2009), pesquisador assistente em Antropologia na Universidade de

College, Londres, define doença e enfermidade sob o ponto de vista do paciente

frente às suas limitações acerca do conhecimento de si mesmo.

Afirma que:

[...] doenças são vistas como “coisas” abstratas ou entidades independentes que têm propriedades específicas e uma identidade recorrente em qualquer configuração em que possam aparecer. Isto é, assume-se que elas sejam universais em sua forma, progresso e conteúdo... Enfermidade inclui não somente sua experiência de saúde debilitada, mas o significado que ele confere àquela experiência. Enfermidade, portanto, é a perspectiva do paciente sobre sua saúde debilitada, a perspectiva que é muito diferente do modelo de doença. (2009, p. 120)31

De se notar que a análise do conceito de doença é objetiva, ou seja,

compreende um conceito abstrato, que pode ser refutado mundialmente, ao passo

que a enfermidade envolve uma análise subjetiva, isto é, está relacionada ao

indivíduo isoladamente ou a um grupo de indivíduos.

31

Disponível em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/campos/article/dounload/.../13029.pdf> Acesso em: 10 set. 2015.

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As expectativas do paciente e familiares extrapolam a esfera emocional

alcançando as esferas social e cultural. O envolvimento com o mal que o acomete o

conduz a uma reflexão do eu, enquanto ser que dispõe do livre arbítrio para decidir

sobre sua vida.

Nessa esteira de pensamento, Thorwald Dethlefsen e Rudiger Dahlke (2007,

p. 17) conceituam doença:

[...] a doença é um estado do ser humano que indica que, na sua consciência, ela não está mais em ordem, ou seja, sua consciência registra que não há harmonia. Essa perda de equilíbrio interior se manifesta no corpo como um sintoma. Sendo assim, o sintoma é um sinal e um transmissor de informação, pois, com seu aparecimento, ele interrompe o fluxo da nossa vida e nos obriga a prestar-lhe atenção. O sintoma avisa que, como seres humanos, como seres anímicos, nós estamos doentes, isto é, o equilíbrio de nossas forças anímicas interiores está comprometido. O sintoma nos informa que está faltando alguma coisa.

Cassell (1978 apud HELMAN, 2009) considera enfermidade “o que o

paciente sente quando ele vai ao médico” e doença “o que o paciente tem ao voltar

para casa do consultório médico”. “Doença, então, é algo que um órgão tem;

enfermidade é algo que um homem tem”.32

Nesse contexto, a enfermidade é a interação do ser humano no aspecto

holístico e sua doença. É o resultado de fatores biológicos, psicológicos, sociais e

culturais vivenciados no cotidiano que, muitas vezes, o colocam em situações

conflitantes envolvendo escolhas e decisões fundamentais para a descoberta do

sentido do viver.

Assim entendida, a questão converge para a definição do ser e sua

existência dentro da sua concepção de vida.

O ser, na sua complexidade, interpreta a doença em conformidade com a

definição científica desta, não descartando a ausência do conhecimento técnico-

científico acerca do diagnóstico, prognóstico, procedimentos e tratamentos

32

Ibid., p.120.

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disponíveis. A enfermidade, por sua vez, envolve um sentimento interno de mal estar

ou dor ímpar e, por conseguinte, imensurável sob o ponto de vista da limitada

percepção humana.

Pablo González Blasco (2011, p.26), ao versar sobre a vivência do paciente

com a doença destaca que:

[...] o doente não se esgota na doença. Estar doente é uma condição, e não um modo de ser. A condição de estar doente será vivenciada de acordo com o ser – no sentido metafísico, ontológico da palavra- de quem é afetado por ela. Daí que a doença se nos apresente sempre personalizada, instalada em alguém concreto, numa pessoa determinada, que vivenciará a sua doença de acordo com o seu ser pessoal.

As interrogações do homem ao lidar com as adversidades da vida, incluindo

a doença, envolvem a razão da sua existência e a consciência de sua escolhas ao

longo da vida.

Nesse passo, uma breve exposição do pensamento de Heidegger, Gadamer

e Foucault a respeito do ser e de sua participação nas decisões que interferem na

sua dignidade e no seu equilíbrio vital ante a perturbação (doença) que o assola se

faz necessária. A questão não envolve uma análise filosófica e tampouco

psicanalítica a respeito do ser, cuja complexidade da definição não é objeto deste

trabalho.

4.2 O ser e a sua existência: o entender a si mesmo

4.2.1 Martin Heidegger

Filósofo alemão (1889 -1976) que marcou o século XX e escreveu diversas

obras, dentre elas, Ser e Tempo, escrita no ano de 1927. A preocupação com o ser,

sua existência e verdade influenciaram sua obra em busca do sentido do ser.

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Para Heidegger (2012, p. 139), “o homem é o Dasein – ser aí, sendo que

sua essência reside em sua existência, cabendo-lhe, pois, responder pelo próprio

ser”.

Norberto Keppe (2010, p. 220), psicanalista, ao discorrer sobre Heidegger

afirma que “sua análise da vida cotidiana do homem envolve três aspectos de suma

importância, a saber: facticidade, existencialidade e ruína”.

Afirma que o estar no mundo sem a participação da própria vontade constitui

a facticidade; a existencialidade é evidenciada através dos atos de apropriação de

tudo o que existe no mundo; enquanto a ruína é o desvio de cada indivíduo do seu

projeto essencial, em virtude das vicissitudes do cotidiano, que o distraem e

perturbam, o que o torna preguiçoso e covarde e culmina por deixá-lo viver na

banalidade, de modo a ser um ente afastado de si mesmo.

De se notar que o ser e o mundo (ser-no-mundo) estão interligados, razão

pela qual o homem necessita trabalhar com sua existência tendo como ponto de

partida o seu próprio interior. Ao se relacionar com o outro, o homem também busca

entender a si mesmo e o mundo ao seu redor.

A reflexão da sua existência é de grande valia, uma vez que o homem tem a

liberdade de fazer suas próprias escolhas. A inércia, por seu turno, expõe o homem

ao medo, à angústia de decidir sobre sua vida e, consequentemente, decidir sobre

seu próprio destino diante dos valores que considera relevantes para si mesmo. Há

que se evitar que o homem não venha a se satisfazer com ideias preconcebidas do

outro, aceitando-as passivamente por se sentir exilado de si mesmo.

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4.2.2 Hans- Georg Gadamer

Filósofo alemão (1900-2002), de grande destaque no século XX e discípulo

de Heidegger, desenvolveu a denominada teoria da hermenêutica filosófica, cuja

arte da compreensão é o cerne do seu pensamento.

Para a compreensão de si mesmo e do outro, torna-se necessário,

primeiramente, o entendimento entre eles, que ocorre através do diálogo. A

hermenêutica filosófica constitui um processo de interpretação das experiências

vividas no cotidiano, que são manifestadas através da palavra, da linguagem e da

tradição.

A hermenêutica não é, pois, apenas uma disciplina auxiliar que cumpre a função de uma importante ferramenta metodológica para todas as ciências. Penetra até o mais íntimo da filosofia, que não é apenas pensamento lógico e investigação metodológica, mas sempre persegue uma lógica do diálogo. O pensamento é a conversação da alma consigo mesma. Assim definiu Platão o pensamento, e tal significa, simultaneamente, que pensar é ouvir as respostas que damos a nós mesmos ou que nos são dadas, quando trazemos à pergunta o que é incompreensível. Entender o incompreensível e, sobretudo, entender o que quer ser entendido, engloba a totalidade da nossa capacidade de meditar, que oferece sempre nas religiões, na arte dos povos, na torrente da nossa tradição histórica novas respostas e desperta, com cada resposta, uma nova pergunta. Isto é a hermenêutica como filosofia. (GADAMER, 2009, p.181)

Para Gadamer (2009), o ser humano vive em um estado de equilíbrio e

harmonia. A doença corresponde a perda desse equilíbrio, ou seja, o homem sente

que algo o perturba. A doença é uma experiência do paciente consigo mesmo,

inclusive para o restabelecimento do equilíbrio natural que considera perdido.

O doente deixa de ser o mesmo que era antes. Singulariza-se e desprende-se da sua situação vital. No entanto, permanece ligado a ela na sua esperança de um regresso, como acontece com todo aquele que perdeu algo. Se a recuperação do equilíbrio natural ocorrer com êxito, o maravilhoso processo de restabelecimento devolve também ao convalescente o equilíbrio vital no qual previamente se sentia ele mesmo. (2009, p. 56)

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De se notar que a doença não está relacionada tão somente à questão afeta

à ciência médica, mas, primeiramente, ao próprio paciente, isto é, à sua experiência

com essa perturbação que almeja se libertar, até porque, preleciona Gadamer

(2009, p. 56) que a doença também envolve “um processo relacionado com a

história da vida do indivíduo e com a sociedade”.

Nesse contexto, ao perceber que algo não está bem, o paciente procura

restabelecer o equilíbrio da vida e da vontade de viver. Ele não sucumbe à

perturbação (doença) que o desestabiliza, mas sim, procura meios de solucionar ou

ao menos amenizar os incômodos que ela provoca.

4.2.3 Michel Foucault

Filósofo francês (1926-1984) que, ao tratar das ciências humanas, é enfático

ao dispor sobre o homem enquanto ser vivo que interage com suas experiências,

desenvolvendo a capacidade de poder representar a vida, a saber:

[...] é esse ser vivo que, do interior da vida à qual pertence inteiramente e pela qual é atravessado em todo o seu ser, constitui representações graças às quais ele vive e a partir das quais detém esta estranha capacidade de poder se representar justamente a vida. (FOUCAULT, 2007, p.487)

Para Foucault (2014, p. 07), a perturbação é apresentada ao profissional de

medicina pelo próprio doente, uma vez que “o conhecimento das doenças é a

bússola do médico” e “quem desejar conhecer a doença deve subtrair o indivíduo

com suas qualidades singulares”.

Acentua o filósofo que a doença não representa nada mais do que a

“coleção dos sintomas” (2014, p.100), que compreende a doença significada.

É a essência do ser que deve ser abstraída para que se possa tornar visível

o que permanece envolto na dúvida, na incerteza, no medo, de não se fazer

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compreender e ser compreendido, até porque a doença envolve um todo indivisível,

não obstante as singularidades do ser doente e a sua fragilidade frente ao mal que

lhe acomete.

A par disso, o filósofo apresenta um novo conceito da arte da medicina, do

conhecimento do indivíduo doente e da sociedade no qual se encontra inserido, a

saber:

A medicina não deve mais ser apenas o corpus de técnicas da cura e do saber que elas requerem; envolverá, também, um conhecimento do homem saudável, isto é, ao mesmo tempo uma experiência do homem não doente e uma definição do homem modelo. Na gestão da existência humana, tomo uma postura normativa que não a autoriza apenas a distribuir conselhos de vida equilibrada, mas a reger as relações físicas e morais do indivíduo e da sociedade em que vive. Situa-se nessa zona fronteiriça, mas soberana para o homem moderno, em que uma felicidade orgânica, tranquila, sem paixão e vigorosa se comunica de pleno direito com a ordem de uma nação, o vigor de seus exércitos, a fecundidade de seu povo e a marcha paciente de seu trabalho. (FOUCAULT, 2014, p.37-38)

A arte da medicina que requer um procedimento acurado de observação e

investigação do paciente extrapolando a doença expressa através do corpo para

alcançar a pessoa que expressa as suas lamentações, o seu sofrimento e a sua dor

diante do desconhecido é exercida pelo médico, um defensor da saúde e a vida

digna de ser vivida.

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5 MÉDICO: GUARDIÃO DA SAÚDE E DA VIDA COM DIGNIDADE

A medicina, no decorrer do século XVIII, centrava-se na saúde com o

escopo de propiciar a cura do paciente. A relação médico-paciente era tecnicista, ou

seja, o médico exercia a sua função aplicando todo o seu conhecimento científico

para o restabelecimento da saúde do paciente.

Com o passar do tempo, precisamente entre os séculos XIX e XX, a atuação

permaneceu centrada no poder do corpo, tornando-se a descoberta da pessoa um

grande desafio para o século XXI, como bem salienta o médico americano Eric J.

Cassell (1991 apud CAPRARA e FRANCO, 1999):33

A tarefa da medicina no século XXI será a descoberta da pessoa, encontrar as origens da doença e do sofrimento, com este conhecimento desenvolver métodos para o alívio da dor, e ao mesmo tempo, revelar o poder da própria pessoa, assim como nos séculos XIX e XX foi revelado o poder do corpo.

A visão do paciente como ser portador de determinada doença adicionada

ao conhecimento científico do médico e à alta tecnologia na área da saúde,

prepondera na relação médico-paciente, o que dificulta a comunicação entre as

partes envolvidas, em prejuízo do paciente vulnerável aos sentimentos de

insegurança e medo diante do desconhecido.

Partindo da análise da integridade físico-psíquica, mental e social do

paciente, a sua interação com o médico passou a ser objeto de preocupação,

inclusive para garantia de qualidade de vida digna, ainda que o ser humano se

encontre em fase terminal.

Nessa linha de argumentação, mister se faz distinguir os conceitos de tratar

e de cuidar, uma vez que o tratar relaciona-se diretamente ao conhecimento técnico

–científico do médico; ao passo que o cuidar envolve o ser na sua integralidade,

33

“A Relação paciente-médico: para uma humanização da prática médica”. Caderno Saúde Pública: Rio de Janeiro, 15(3), jul-set.1999, p.647-654.

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centrando a preocupação na pessoa do paciente e seus familiares, suas

necessidades e angústias.

Dentro desse contexto, Elma Zoboli (apud BERTACHINI; PESSINI, 2011, p.

64), ao discorrer sobre o tratar e o cuidar ensina:

No “tratar”, o paciente reduz-se a um diagnóstico feito por um profissional da saúde que se relaciona com um “número de leito”. Trata-se de apenas mais um caso. [...] No mote do “cuidar”, o profissional da saúde presta atenção global e continuada a um doente, que é, antes de tudo, uma pessoa, um ser único e insubstituível. O trabalho centra-se em prover atenção ao que a pessoa necessite, e não somente ao requerido pela doença. O paciente não é só um caso a mais, mas uma pessoa única, singular, em uma situação particular e que carece e merece ser assistida de maneira individualizada, integral e respeitosa.

Se o núcleo central do ato de tratar é o conhecimento técnico-científico do

médico, é possível inferir que o início de sua atuação é a concepção do ser

estendendo-se até a sua morte, o que se denomina tratamento vertical. Ocorre que

no ciclo natural da vida a eventual constatação do diagnóstico de uma determinada

doença, seguido do seu prognóstico, pode entrelaçar a atuação tecnicista à atuação

humanística, dando-se início ao denominado tratamento horizontal, que consiste,

primeiramente, na análise da interação do ser humano com a sua patologia,

estendendo-se aos familiares.

A confluência entre os tratamentos é benéfica para o médico e para o

paciente e familiares, pois alicerça uma relação intersubjetiva, que fortalece a

capacidade de interação entre a atuação profissional e a atuação interpessoal

humanizada. O médico e o paciente, muito embora sejam sujeitos dotados de

autonomia nessa relação, tornam-se parceiros na busca pela solução mais

adequada, funcional e eficiente para tratar do mal que os aflige.

As partes envolvidas passam a se relacionar despidas de qualquer

formalidade, uma vez que a patologia constitui uma ameaça que conduz à reflexão

da importância da vida, de sua qualidade e, em alguns casos, de seu

prolongamento, ainda que com dor e sofrimento.

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Nesse momento, o tratar e o cuidar alicerçam os laços da dignidade, do

respeito, do acolhimento e da compreensão do outro e de sua fragilidade, tornando-

se o diferencial da prestação de serviços de saúde com qualidade:

‘Cuidado em saúde’ é o tratar, o respeitar, o acolher, o atender o ser humano em seu sofrimento - em grande medida fruto de sua fragilidade social -, mas com a qualidade e resolutividade de seus problemas. O ‘cuidado em saúde’ é uma ação integral fruto do ’entre-relações’ de pessoas, ou seja, ação integral como efeitos e repercussões de interações positivas entre usuários, profissionais e instituições, que são traduzidas em atitudes, tais como: tratamento digno e respeitoso, com qualidade, acolhimento e vínculo.34

O cuidado em saúde prioriza, em primeiro lugar, o interesse pelo outro, que

envolve a atenção e a participação conjunta para aliviar a sua dor emocional e a

ansiedade patológica decorrentes da perda do controle sobre a própria vida e o seu

significado. O temor e a insegurança causados por esse desequilíbrio favorece a

integração psicossocial e espiritual do médico e do paciente, com acompanhamento

dos familiares, dando-lhe suporte para exercer a sua autonomia e aderir ao

tratamento proposto.

O cuidado em saúde não se inicia no momento em que o paciente foi

diagnosticado com resultado positivo para determinada patologia, mas sim, com a

promoção da saúde e prevenção de doenças, uma vez que cada indivíduo tem

corresponsabilidade por sua saúde e pela escolha do seu modo de viver, o que,

consequentemente, influenciará no bem-estar da coletividade.

O cuidado em saúde é, pois, um compromisso assumido pelo indivíduo e

pela sociedade em parceria com os profissionais de saúde, em especial, o médico, a

quem compete conhecer e respeitar os direitos e deveres dos pacientes e nortear a

sua conduta nos direitos e deveres sistematizados no Código de Ética Médica

(CEM).

34

PINHEIRO, Roseni. Cuidado em Saúde. Disponível em: <http://www.sites.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/cuisau.html> Acesso em: 27 abr. 2016.

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6 DIREITOS E DEVERES DOS CIDADÃOS QUE UTILIZAM OS SERVIÇOS E PARTICIPAM DAS AÇÕES DE SAÚDE: O EXERCÍCIO DO DIREITO À SAÚDE INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA

Os direitos dos cidadãos que utilizam os serviços de saúde do setor público

ou privado estão assegurados pelos princípios basilares do Estado Democrático de

Direito, entre os quais, a dignidade da pessoa humana e a cidadania.

Enquanto a dignidade da pessoa humana assegura o respeito ao ser na sua

totalidade (físico-psíquico, mental e social), a cidadania proporciona aos indivíduos a

titularidade dos direitos fundamentais e a participação ativa no seu exercício.

Esposando o entendimento de que a cidadania fundamenta-se no

reconhecimento do indivíduo como integrante da sociedade estatal, José Afonso da

Silva (2012, p. 38) afirma que:

A cidadania, assim considerada, consiste na consciência de pertinência à sociedade estatal como titular dos direitos fundamentais, da dignidade como pessoa humana, da integração participativa no processo do poder, com a igual consciência de que essa situação subjetiva envolve também deveres de respeito à dignidade do outro, de contribuir para o aperfeiçoamento de todos.

O respeito à integridade físico-psíquica não envolve apenas o ser dotado de

vontade e de capacidade para exercer os atos da vida civil, mas também, remonta-

se à sua interação com o ambiente que o cerca relacionado ao trabalho, ao lazer, à

família, à segurança, entre outros.

Persiste o entendimento de relacionar a integridade físico-psíquica apenas

ao fator saúde, relegando para patamar secundário as demais áreas da vida do

indivíduo, que o completam enquanto ser único e integrante de um contexto

sociocultural.

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As responsabilidades do cotidiano, a carga exaustiva de labor, muitas vezes

acompanhada de pressão emocional, contribuem para o desgaste do ser humano

culminando por deixá-lo vulnerável à ocorrência de doenças.

É nesse momento que a proteção dos direitos dos cidadãos que utilizam os

serviços e participam das ações de saúde se faz necessária para a integralidade e o

cuidado em saúde, que possam causar um impacto considerável na promoção da

saúde e prevenção de doenças.

A Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde35 assegura ao cidadão a

viabilidade de usufruir de um sistema de saúde público ou privado organizado,

ordenado, eficaz e, acima de tudo, humanizado, visando a garantia da promoção,

prevenção e proteção da saúde.

De se notar que o paciente não é visto apenas como um ser enfermo e

debilitado; pelo contrário, primeiramente, a sua condição de pessoa, ser único e

inigualável, é preservada, o que favorece o respeito à sua individualidade e

privacidade, como bem assenta Wilson Ricardo Ligiera (2012, p. 32):

Os direitos do paciente, outrossim, são os direitos do próprio ser humano. O fato de estar enfermo não lhe retira a condição de pessoa, nem lhe subtrai a dignidade a ele inerente. Ao contrário, é exatamente por estar debilitado, que o ordenamento jurídico deve proporcionar-lhe meios mais eficazes de defesa e salvaguarda de seus direitos.

Ao lado dos direitos, seguem os deveres dos cidadãos que utilizam os

serviços e participam das ações de saúde, que tornam o paciente sujeito de

obrigações para consigo mesmo e perante o profissional de saúde, tornando-o

corresponsável no cuidado com a sua vida e saúde, assumindo as consequências

que o descaso pode ocasionar, a saber: - dever de zelar pelo seu estado de saúde; -

dever de fornecer aos profissionais de saúde todas as informações necessárias para

a obtenção de um diagnóstico correto e um tratamento adequado; - dever de

respeitar os direitos dos outros pacientes; - dever de colaborar com os profissionais

35

Disponível em:<http://www.conselho.saude.gov.br livros A...> Acesso em: 10 out. 2016.

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de saúde, respeitando as indicações que lhe são recomendadas e - dever de

respeitar as regras de funcionamento dos serviços de saúde.36

Nessa esteira de pensamento, Ronald Dworkin (2014, p. 311) enuncia dois

princípios éticos que entende ser fundamentais para o bem viver:

O primeiro é um princípio de respeito por si mesmo. Cada pessoa deve levar a sério sua própria vida: deve aceitar que é importante que sua vida seja uma execução bem-sucedida, e não uma oportunidade perdida. O segundo é um princípio de autenticidade. Cada um tem a responsabilidade pessoal e especial de identificar quais devem ser os critérios de sucesso em sua própria vida; tem a responsabilidade pessoal de criar essa vida por meio de uma narrativa ou de um estilo coerentes com os quais ele mesmo concorde. Juntos, os dois princípios constituem uma concepção da dignidade humana: a dignidade exige o respeito por si mesmo e a autenticidade.

O cumprimento desses direitos no rigor da lei constitui o maior desafio dos

profissionais de saúde em face do contexto econômico, social e cultural do país;

porém, devem ser exercidos considerando as peculiaridades das comunidades e

selecionando as prioridades a serem atendidas.

36

Disponível em: <http:// www2.nefron.com.br>. Acesso em: 15.mai.2015

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7 CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA (CEM): OS DIREITOS E DEVERES DO MÉDICO NO COMPROMISSO COM A DIGNIDADE DO SER HUMANO

Os direitos dos médicos estão previstos no Capítulo II, itens I a X do Código

de Ética Médica (Resolução do Conselho Federal de Medicina-CFM, de 7 de

setembro de 2009).

De início, o médico tem o direito de exercer a profissão sem discriminação

de qualquer espécie (I), bem como a requerer desagravo público ao Conselho

Regional de Medicina na hipótese de ser desrespeitado no exercício da profissão

(VII).

A remuneração justa e digna (X), que representa o reconhecimento do seu

trabalho, é um dos maiores desafios enfrentados pela carreira, uma vez que

qualquer profissional tem o direito de viver com dignidade e suprir as suas

necessidades mínimas e de sua família.

Remunerar dignamente, entretanto, não é o suficiente para que o

profissional da medicina seja estimulado a exercer as suas atividades, mas sim,

deve vir acompanhada de uma infraestrutura adequada (pública ou privada), que

possibilite condições mínimas de trabalho em prol da saúde do paciente,

preservando a dignidade de ambos. Caso contrário, nada obsta a sua recusa em

permanecer no local e a suspensão de suas atividades, ressalvadas as urgências e

emergências, devendo, entretanto, comunicar a Comissão de Ética e ao Conselho

Regional de Medicina para as providências que entenderem cabíveis (IV e V).

O descaso com a saúde pública e privada não deve obstar a atuação

consciente e coerente do profissional, sob pena de causar prejuízo ao paciente que

se encontra sob os seus cuidados. A relação deve primar pelo respeito e consolidar

a confiança entre as partes, incluindo os familiares ou o representante legal do

paciente, razão pela qual compete ao médico, considerando sua experiência e

capacidade profissional, estipular o tempo que entende ser necessário para o

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atendimento do paciente (VIII), indicando o procedimento adequado, respeitando a

legislação vigente (II).

O médico não é obrigado a executar um ato que contrarie a sua consciência,

porém, há que se atentar aos casos cuja atuação médica deve ser imediata, como

por exemplo, o paciente exposto ao risco imediato de óbito (IX).

O médico tem o direito de proceder à internação e à assistência do seu

paciente em nosocômio público ou privado, ainda que não pertença ao quadro de

profissionais do local, respeitando, entretanto, as normas técnicas do Conselho

Regional de Medicina da pertinente jurisdição (VI).

Assiste ao médico, também, o direito a indicar falhas em normas, contratos e

práticas internas das instituições em que labora, caso as considere indignas ao

exercício da profissão, ou que possam prejudica-lo, bem como ao paciente e

terceiros. Deverá encaminhar-se aos órgãos competentes e, obrigatoriamente, à

Comissão de Ética e ao Conselho Regional de Medicina de sua jurisdição (III).

É de bom alvitre ponderar que a existência de um código de ética que

oriente a conduta de um profissional é um paradigma a ser observado, todavia,

tornar-se-á letra morta caso ausente o compromisso, a misericórdia e a compaixão

para com o próximo.

Ao tecer comentários acerca do Código de Ética Médica, Genival Veloso de

França (2010, p. 01) afirma com percuciência:

[...] não deve representar apenas um repositório de artigos da “ética codificada”, disciplinando a essência e a natureza da conduta médica, mas, antes e acima de tudo, um compromisso do médico em favor da sociedade e, em particular, do ser humano, como quem conscientemente assume uma dívida no interesse superior do conjunto da comunidade.

Os deveres, por seu turno, encontram-se elencados no Capítulo V, que trata

da Relação com Pacientes e Familiares, artigos 31 a 42.

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79

O dever relaciona-se ao cumprimento de uma obrigação imposta ao

profissional a fim de que desempenhe as suas atividades com zelo e respeito pelo

próximo.

A expressão ética profissional é conceituada por De Plácido e Silva (1984, p.

223, vols. I e II) como: “[...] a soma de deveres, que estabelece a norma de conduta

do profissional no desempenho de suas atividades e em suas relações com o cliente

e todas as demais pessoas com quem possa ter trato”.

Ao estabelecer normas de conduta, o Código de Ética Médica demonstra

preocupação com os infortúnios que podem ocorrer durante o exercício das

atividades do profissional, muito embora seja dotado de conhecimento e habilidades

para lidar com situações inusitadas.

Os riscos são inerentes a qualquer profissão e podem expor o profissional a

uma condição de impotência e fragilidade, ao mesmo tempo em que possibilitam o

enfrentamento de desafios, uma vez que, no entender de Elen Geraldes (2008, p.

74), os riscos, “[...] legitimam a ciência e a tecnologia porque representam desafios”.

As vedações impostas ao profissional da medicina tem por escopo a

proteção ao paciente e à sua liberdade para decidir sobre a sua vida e como deseja

conduzi-la até o final.

Ressalvada a hipótese de iminente risco de morte, o profissional da

medicina não pode desrespeitar o paciente ou seu representante legal de decidir

livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas (art. 31 do

CEM).

É vedado ao médico deixar de fazer uso de todos os meios disponíveis de

diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do

paciente (art. 32 do CEM). Aliás, a liberdade do exercício da profissão é amplamente

garantida pela Carta Magna vigente em seu artigo 5º, inciso XIII, in verbis: “é livre o

exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações

profissionais, que a lei estabelecer”.

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O médico não pode deixar de dar atendimento a paciente que procure seus

cuidados profissionais em caso de urgência ou emergência, quando não houver

outro profissional ou serviço médico em condições de fazê-lo (artigo 33 do CEM).

Urge diferenciar o conceito de urgência e de emergência, uma vez que, em

ambos os casos, faz-se necessário o pronto atendimento do paciente, como bem

destaca Genival Veloso de França (2014, p. 236):

Conceituam urgência como “a ocorrência imprevista de agravo à saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo portador necessita de assistência imediata”. E emergência como “a constatação médica de condições de agravo à saúde que impliquem risco iminente de vida ou sofrimento intenso, exigindo, portanto, tratamento imediato”.

A informação a ser dada ao paciente acerca do diagnóstico, prognóstico,

riscos e objetivos do tratamento constitui um dever, salvo quando a comunicação

direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, comunicar o seu responsável

legal (artigo 34 do CEM). É vedado ao profissional exagerar na gravidade do

diagnóstico ou prognóstico, complicar a terapêutica, ou exceder-se na visitação,

consultas ou outros procedimentos profissionais (artigo 35 do CEM).

O abandono do paciente pelo profissional é vedado (artigo 36, caput, do

CFM), porém, desentendimentos podem ocorrer em qualquer relacionamento

profissional, prejudicando-o, em especial quando se trata de decidir o que é melhor

para vida de terceiro que se encontra sob os seus cuidados.

Nesse caso, é assegurado ao profissional o direito de renunciar ao

atendimento, com a comunicação prévia ao paciente ou responsável legal,

assegurando, entretanto, a continuidade dos cuidados e fornecendo todas as

informações pertinentes ao profissional que o suceder (§ 1º). Exceto por motivo justo

comunicado ao paciente ou aos familiares, o profissional não poderá abandonar o

paciente portador de moléstia crônica ou incurável, devendo assisti-lo nos cuidados

paliativos (§ 2º).

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81

O exame direto do paciente é necessário para que o profissional possa

prescrever-lhe tratamento ou outros procedimentos, com exceção à urgência ou

emergência e eventual impossibilidade de realizá-lo, desde que comprovada.

Cessado o impedimento, deverá fazê-lo imediatamente (artigo 37 do CEM).

O pudor do paciente não pode ser desrespeitado pelo profissional que o

atende e que está sob os seus cuidados profissionais (artigo 38 do CEM). O

profissional não pode desrespeitar a fragilidade do paciente diante de uma situação

de incerteza sobre a sua vida e o que deseja para si.

A oposição à composição de junta médica ou segunda opinião requerida

pelo paciente ou representante legal é vedada ao profissional da medicina (artigo 39

do CEM). Assegura-se ao paciente o direito de ouvir outra opinião a respeito do

diagnóstico e tratamentos disponíveis que possam proporcionar-lhe benefícios, ao

invés de um prolongamento da vida com sofrimento injustificado.

É vedado ao médico fazer uso de situações decorrentes da relação médico-

paciente com o intuito de obter qualquer vantagem física, emocional, financeira ou

de qualquer outra natureza (artigo 40 do CEM). O profissional tem o dever de zelar

pela saúde do paciente que se encontra sob os seus cuidados, até porque detém o

conhecimento científico e técnico para curá-lo, se o caso, ou amenizar a sua dor.

O médico não pode abreviar a vida do paciente, ainda que por sua

solicitação ou de seu representante legal (artigo 41 do CEM), até porque, nos casos

de doença incurável ou terminal, deve oferecer os cuidados paliativos disponíveis,

atentando-se, entretanto, as ações diagnósticas ou terapêuticas prescindíveis,

considerando, todavia, a vontade expressa do paciente ou de seu representante

legal no caso de impossibilidade (parágrafo único).

A vontade expressa do paciente capaz e que não esteja em risco iminente

de vida deve ser considerada pelo profissional, pois ninguém deve ser obrigado a

suportar dor e sofrimento contrários à sua vontade, devendo ser preservada a sua

dignidade.

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No entender de Rui Nunes e Helena Pereira de Melo (2011, p. 31):

[...] a dignidade da pessoa, na sua diversidade, e nos direitos que dela emanam, é o alicerce do próprio Estado de Direito. Trata-se, porventura, do único valor absoluto, e inalienável, numa sociedade secular e pluralista. Uma sociedade onde as pessoas se encontram com distintas mundividências, como verdadeiros “estranhos morais”.

Por fim, o paciente tem o direito de decidir livremente sobre método

conceptivo, o que não pode ser desrespeitado pelo médico, que deverá esclarecê-lo,

entretanto, a respeito da indicação, segurança, reversibilidade e risco de cada

método (artigo 42 do CEM).

A preocupação com a pessoa do paciente e o respeito à sua autonomia para

decidir sobre a sua vida, desde que seja capaz de fazê-lo, associada à conduta ética

profissional responsável contribuem para a humanização da atuação médica, um

desafio da medicina contemporânea e fator contributivo para racionalizar a

judicialização da saúde.

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83

8 A ATUAÇÃO MÉDICA HUMANIZADA: FATOR CONTRIBUTIVO PARA A RACIONALIZAÇÃO DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

“Possa eu jamais me esquecer de que o paciente é meu semelhante,

transido de dor. Que jamais o considere mero receptáculo de doença”. (Maimônides-

século XII)

Na medicina hodierna, a humanização da atuação médica constitui um

desafio acadêmico na formação do profissional diante dos avanços tecnológicos à

sua disposição, uma vez que o médico atua como intermediador entre a tecnologia e

o paciente, como sustenta Pablo González Blasco (apud BLASCO; BENEDETTO;

REGINATO, 2015, p.406) ao discorrer sobre O humanismo médico: Em busca de

uma humanização sustentável da medicina:

As advertências provenientes do paciente dificilmente recaem no aspecto técnico da medicina, até porque o paciente não possui habitualmente recursos para avaliar corretamente deficiências dessa ordem. As carências que o paciente constata são, em última análise, carências na pessoa do médico, detentor do conhecimento e intermediário entre a tecnologia e o paciente. As insuficiências não são de ordem técnica, mas humana. Torna-se necessário vestir a ciência com trajes humanos, dissolver no aconchego afetuoso a técnica moderna e os medicamentos que o paciente deverá utilizar. Quanto tal não acontece, as insuficiências são sempre do profissional, e o prejuízo é do paciente, que acaba sofrendo de indigestões científicas nada reconfortantes.

A evolução tecnológica causou uma transformação considerável no

relacionamento do homem com a natureza, proporcionando melhorias na sua

condição de vida. O homem primitivo vivia em contato direto com o meio ambiente,

que lhe garantia a subsistência, desde que empregasse sua força. A despeito de

uma vida simples, a capacidade intelectual do homem não pode ser subestimada,

sendo certo que através da observação e da experiência diárias, o homem descobriu

a possibilidade de intervir na natureza, controlando-a, e dela obter recursos para o

seu bem-estar.

Esse controle, entretanto, facilitou a ocorrência de riscos naturais,

instrumentais e industriais no entender de Elio Sgreccia (2014, p. 391):

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Se na era tecnológica a intervenção do homem na natureza intensificou a ocorrência de risco de catástrofes, é certo que com o aprofundamento dos conhecimentos científicos foi possível um melhor controle dos prejuízos causados, de modo a prevenir maiores riscos à saúde e à existência da coletividade.

Diante desse quadro, Sgreccia (2014, p. 393-394) enfoca princípios éticos

de referência, que compreendem o bem comum como bem de cada pessoa; “o

terapêutico; a liberdade e responsabilidade e, por fim, a solidariedade e

subsidiariedade”.

O princípio do bem comum como bem de cada pessoa parte da premissa de

que o início da sociedade resulta da essência da pessoa, isto é, do seu interior,

motivo pela qual o bem da coletividade é o escopo precípuo da ética social para o

alcance do bem de cada ser que a compõe. A plenitude de uma sociedade é

alcançada no momento da integração dos seres que a estruturam e passam a

assumir o compromisso pelo crescimento e desenvolvimento de cada semelhante,

respeitando suas peculiaridades e diversidades.

O princípio terapêutico, por sua vez, permite a intervenção na qualidade de

vida da pessoa, desde que inevitável para o seu integral bem-estar; a área de

atuação seja delimitada tão somente à doença; inexistam outros meios de

tratamento da patologia; seja elevada a probabilidade da intervenção proporcionar

um resultado bem-sucedido e, acima de tudo, haja a concordância do enfermo.

De se notar que a intervenção cirúrgica e a escolha de procedimentos

terapêuticos invasivos que possam causar prejuízo ao bem-estar do ser humano

constituem os últimos recursos a serem utilizados, salvo se imprescindíveis à

qualidade de vida digna.

O princípio de liberdade e responsabilidade é contra a supressão da própria

vida ou de terceiro sob o argumento da liberdade, uma vez que a vida é o alicerce

da liberdade. A intervenção na vida física de terceiro sem o seu consentimento

prévio ou de seu responsável legal, no caso de incapacidade, também é repudiada

por este princípio, o que denota que a autonomia privada deve ser respeitada em se

tratando do próprio corpo.

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O princípio de solidariedade e subsidiariedade reporta-se ao respeito à

dignidade da pessoa, o que torna cada ser responsável mutuamente pelo bem um

do outro, bem como pela comunidade como um todo. A solidariedade constitui um

dos objetivos fundamentais da República (artigo 3º, inciso I, da CF) e deve ser

integrada no conceito de subsidiariedade, que, segundo Sgreccia (2014, p.394),

compreende não só o respeito das capacidades dinâmicas de cada ser

individualmente e dos grupos intermediários, mas também, o dever de ajudar os

menos favorecidos.

O desenvolvimento tecnológico contribuiu também para o avanço do

conhecimento científico na esfera das ciências naturais e humanas. Paulatinamente,

o progresso da ciência necessitou de diretrizes para proteção da humanidade e

garantia do direito à vida, à saúde, à disposição do próprio corpo e à própria morte

com dignidade.

O controle e o acompanhamento das experiências científicas realizadas com

seres humanos tornaram-se imprescindíveis a fim de evitar que a humanidade

ficasse refém de interesses escusos e prejudiciais à vida com dignidade, bem como

às diversidades existentes entre os seres humanos e que permeiam a convivência

em sociedade em busca da realização do bem comum.

A complexidade na tomada de decisões afetas à qualidade de vida e ao

bem-estar do homem extrapola a esfera individual e alcança o coletivo no âmbito da

ciência e da ética. Nesse contexto, ganha destaque a Bioética (ética da vida), que

integra o conhecimento biológico aos valores humanos, na concepção de Van

Rensselder Potter, em sua obra Bioethics. Bridge to the future (1971).37

A bioética constitui um ramo da ética que estuda a pessoa humana na sua

integralidade, em reverência à sua dignidade, direitos, garantias e liberdade,

considerados indispensáveis em todas as dimensões que integram o ser, quais

sejam, biológica, psicológica, social e espiritual, favorecendo, por conseguinte, a

37

Bioética – Uma ponte para o futuro. Disponível em: <http://www.ghente.org/bioetica/index.htm> Acesso em: 02 mai. 2016.

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integração multidisciplinar e pluralista entre diversas áreas do conhecimento, entre

elas, direito e medicina.

As questões éticas fomentadas pelo aperfeiçoamento da ciência e da

tecnologia, envolvendo seres humanos, culminaram na Declaração Universal sobre

Bioética e Direitos Humanos, aclamada na 33º sessão da Conferência Geral da

UNESCO, em 19 de outubro de 200538, que reconheceu a articulação entre a ética e

os direitos humanos ao se tratar de bioética, até porque a excelência técnico-

científica deve vir acompanhada do humanismo solidário.

A qualidade de vida e o bem-estar da humanidade estão diretamente

interligados à saúde e, é certo, que não se submetem apenas e tão somente às

investigações das ciências naturais e humanas, mas, também, aos fatores sócio-

econômico-culturais em que se encontra inserida, o que justifica o estabelecimento

de critérios que não devem ser centralizados apenas na higidez biológica, até

porque a análise do homem na sua integralidade contribui para o aprimoramento

técnico-científico.

A bioética norteia a atuação médica humanizada, estabelecendo os

princípios da autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça, que devem ser

observados na conduta profissional e contribuem como fator de racionalização da

judicialização da saúde, partindo do pressuposto de que o paciente deve conhecer

sua patologia e monitorá-la, isto é, compartilhar com o profissional os meios

disponíveis para tratamento, com autonomia para refletir sobre a doença e escolher

o que quer para sua vida, em conformidade com seus próprios valores.

Assinala Bernard Lown (2008, p.95) que:

Qualquer que seja a explicação, não há absolutamente nenhuma justificativa para atacar os pacientes com linguajar que os debilita e acovarda. O paciente jamais deve ser compelido pelo medo a fazer uma dificultosa escolha. Para que haja parceria em medicina, o sócio principal tem que ser o paciente, que não deve ser impedido de pronunciar a palavra decisiva, a última palavra.

38

Disponível em:<http://www.unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf> Acesso em: 10 fev. 2014.

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87

Ao que se infere, o médico deve ter o controle e não o poder absoluto sobre

a condução da relação com o paciente, pois é o detentor do conhecimento técnico,

que, atrelado ao humanismo solidário, é de extrema valia para alicerçar a confiança

e a responsabilidade que deve existir entre as partes. Entretanto, a participação

ativa do paciente na tomada de decisões não deve ser desconsiderada pelo

profissional, sob o ponto de vista de que se trata de um ser único, cuja trajetória de

vida foi alterada pelo desequilíbrio que o afronta.

8.1 Princípio da autonomia: o consentimento informado do paciente sobre a sua vida e saúde

O conceito de autonomia expressa em seu bojo a possibilidade de fazer algo

ou de agir sem estar subordinado a alguma coisa ou alguém. Autonomia, no

entender de Ivan Horcaio (2008, p. 264): “[...] é a faculdade que possui determinada

pessoa, ou instituição, para traçar as normas de sua conduta, sem que sinta

imposições restritivas de ordem estranha”.

A capacidade de direito é inerente a todo ser humano (artigo 1º do Código

Civil)39. Para o exercício desta autonomia, entretanto, o paciente deve dispor de

capacidade de fato?

Como bem salienta Silvio de Salvo Venosa (2012, p. 139):

Todo ser humano é sujeito de direitos, portanto, podendo agir pessoalmente ou por meio de outra pessoa que o represente. Nem todos os homens, porém, são detentores da capacidade de fato. Essa assim chamada capacidade de fato ou de exercício é a aptidão para pessoalmente o indivíduo adquirir direitos e contrair obrigações. Sob esse aspecto, entram em conta diversos fatores referentes à idade e ao estado de saúde da pessoa.

Tratando-se de uma situação que envolve um ser humano que deve fazer

escolhas sobre qualidade de vida e terminalidade, determinar a capacidade de

39

Art. 1º Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.

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decisão é uma questão complexa, que não requer tão somente capacidade de fato,

uma simples formalidade.

Luciana Dadalto (2013, p.73), afirma que, “[...] o discernimento e não a

capacidade de fato é um requisito essencial do consentimento informado”.

Esse discernimento, entretanto, deve ser observado dentro de um contexto

de apreciação clínica, como bem assentam Albert R. Jonsen, Mark Siegler e William

J. Winslade (2012, p. 63):

Em um cenário médico, a capacidade de um paciente de consentir ou recursar atendimento exige a habilidade de compreender informações relevantes, avaliar a situação médica e suas possíveis consequências, comunicar uma opção e se engajar em uma deliberação racional acerca dos seus próprios valores em relação às recomendações do médico sobre opções de tratamento. Os pacientes que claramente possuem estas habilidades podem tomar decisões sobre seu atendimento e seu direito de fazê-lo deve ser respeitado. Os pacientes que claramente não possuem tais habilidades, porque, por exemplo, estão comatosos, inconscientes ou estão desorientados e em delírio, são incapazes de fazer escolhas informadas aceitáveis. Para eles, é necessário haver um tomador de decisão substituto.

Frise-se, todavia que, no caso de impedimento do exercício dos atos da vida

civil, por incapacidade absoluta (artigo 3º do Código Civil)40 ou relativa (artigo 4º do

Código Civil)41, a pessoa deverá ser representada por seus genitores ou

representantes legais, condição esta que não pode ser interpretada de outra

maneira, sob pena de se ferir interesse de terceiro.

A autonomia do paciente para tomar decisões a respeito de sua vida e

saúde, em conformidade com os seus valores morais e pessoais, não pode ser

desconsiderada pelo médico, não obstante detenha a autoridade em relação ao 40

Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I- os menores de 16(dezesseis) anos; II- os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiver o necessário discernimento para a prática desses atos; III- os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. 41

Art. 4º São incapazes, relativamente, a certos atos, ou à maneira de os exercer: I- os maiores de 16 (dezesseis) e menores de 18 (dezoito) anos; II- os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III- os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; os pródigos. Parágrafo único: A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.

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conhecimento e habilidade técnica, que não devem ser usados, entretanto, como

sinônimos de dominação do profissional e submissão do paciente.

Ronald Dworkin (2009, p. 319-320), com precisão, acentua o direito de cada

indivíduo estruturar sua própria vida em conformidade com seus próprios valores, a

saber:

A autonomia estimula e protege a capacidade geral das pessoas de conduzir suas vidas de acordo com uma percepção individual de seu próprio caráter, uma percepção do que é importante para elas. Talvez o principal valor dessa capacidade só se concretize quando uma vida realmente manifesta uma integridade e uma autenticidade absolutas. Mas o direito à autonomia protege e estimula essa capacidade em qualquer circunstância, permitindo que as pessoas que a têm decidam em que medida, e de que maneira, procurarão concretizar esse objetivo.

Como se percebe, o exercício da autonomia deve vir acompanhado da

responsabilidade individual pelas decisões tomadas, o que justifica a preocupação

do estabelecimento de medidas especiais para proteção dos direitos e interesses

dos incapazes, conforme preleciona o artigo 5º, da Declaração Universal sobre

Bioética e Direitos Humanos.42

O sinergismo entre a exposição técnica do médico e o entendimento do

paciente capaz de decidir sobre sua sujeição a determinado procedimento,

tratamento ou ingestão de medicamento indicado à sua patologia deve ser

acompanhado de informação, ressaltando-se, entretanto, que o acesso à

informação, por si só, não é suficiente para o convencimento do paciente, sendo

necessário, também, sua compreensão, o que somente é possível através da

linguagem clara e precisa do profissional.

A informação possibilita a aproximação das partes envolvidas, que passam a

interagir e a refletir conjuntamente sobre o diagnóstico, prognóstico e tratamentos

disponíveis. Não se pode olvidar que o avanço tecnológico facilitou o acesso do

42

Art. 5º A autonomia das pessoas no que respeita à tomada de decisões, desde que assumam a respectiva responsabilidade e respeitem a autonomia dos outros, deve ser respeitada. No caso das pessoas incapazes de exercer a sua autonomia, devem ser tomadas medidas especiais para proteger os seus direitos e interesses.

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paciente aos meios de comunicação, que se tornaram fontes de transmissão de

dados e conhecimentos sobre saúde, qualidade de vida e doenças, esclarecendo,

inclusive, suas causas e sintomas.

Ocorre que os meios de comunicação podem favorecer interpretações

equivocadas a respeito de determinada patologia, suas causas e sintomas, bem

como de tratamentos, aumentando a possibilidade de risco de dano à integridade

física do paciente, além de abalar a confiança e a segurança no profissional da área

da saúde que o acompanha.

No escólio de Cláudia Lima Marques (2014, p. 841-842), a informação é um

direito e um processo interativo entre as partes envolvidas, que se denomina

comunicação, senão vejamos:

Nas relações entre leigos e experts, consumidores e fornecedores, um dos agentes econômicos detém a informação, sabe algo, e pode comunicar este algo para o outro ou omitir, pode fazê-lo de boa-fé e lealmente, informando de forma completa, suficiente e adequada, informando sobre os riscos, os perigos, os efeitos, as chances e tudo o mais que for essencial para exercitar o seu direito de escolha; ou não informar, não compartilhar a informação que detém. Daí ser o dever de informar oriundo da boa-fé e altamente valorado na complexa sociedade de riscos e da informação contemporânea, uma maneira de o direito reequilibrar a relação de consumo.

O entendimento de Bruno Miragem (2014, p. 135), a respeito do dever de

informar nas relações de consumo, acompanha a eminente doutrinadora,

acrescentando, ainda, que “a boa-fé objetiva, princípio do direito do consumidor (art.

4º, III, do CDC)43 impele o fornecedor ao cumprimento de um dever de informar

qualificado, isto é, não basta apenas e tão somente o mero oferecimento de

informações, sendo necessário também a efetiva compreensão do consumidor”.

Assim agindo, o médico fortalece o respeito e a consideração do paciente

por sua sensibilidade técnica e humana, bem como por sua transparência e

43

Art. 4º, III. harmonização dos interesses dos participantes das relações de consume e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art.170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.

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lealdade. Ao se preocupar em conhecer os conflitos físicos, sociais, emocionais e

espirituais que envolvem o paciente, o profissional assegura-lhe a liberdade para

decidir sobre sua vida e seus problemas interpessoais.

A transparência inserta no artigo 4º, caput do Código de Defesa do

Consumidor possibilita ao consumidor e ao fornecedor um relacionamento claro e

nítido no que tange aos interesses e expectativas de cada um.

Na prática corrente, o dever de informar, direito básico do consumidor

inserido no artigo 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor44, exprime o princípio

da transparência ao exigir que os contratos que regulam as relações consumeristas

prestem informações adequadas e translúcidas acerca dos produtos e serviços, isto

é, explícitas e inteligíveis, pois, caso contrário, não obrigarão os consumidores (art.

46, do Código de Defesa do Consumidor)45, como também, serão interpretadas de

maneira mais favorável ao consumidor (artigo 47, do Código de Defesa do

Consumidor).46

Nessa senda, a Quinta Câmara Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do

Estado do Rio Grande do Sul decidiu:

APELAÇÃO CÍVEL. SEGURO. PLANO DE SAÚDE. DIREITO DO MÉDICO E DO PACIENTE OPTAREM PELO TRATAMENTO. AVASTIN. AUSÊNCIA DE CLÁUSULA DE EXCLUSÃO DE COBERTURA. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. DESCUMPRIMENTO DO DEVER DE INFORMAR. 1.O contrato de seguro ou plano de saúde tem por objeto a cobertura de risco contratado, ou seja, o evento futuro e incerto que poderá gerar o dever de indenizar por parte da seguradora. Outro elemento essencial desta espécie contratual é a boa-fé, na forma do art.422 do Código Civil, caracterizada pela lealdade e clareza das informações prestadas pelas partes. 2.Há perfeita incidência normativa do Código de Defesa do Consumidor nos contratos atinentes aos planos ou seguros de saúde, como aquele avençado entre as partes, podendo se definir como sendo um serviço a cobertura do seguro médico ofertada pela

44

Art. 6º, III. São direitos básicos do consumidor: III- a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem. 45

Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance. 46

Art.47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.

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demandada, consubstanciada no pagamento dos procedimentos clínicos decorrentes de riscos futuros estipulados no contrato aos seus clientes, os quais são destinatários finais deste serviço. Inteligência do art. 35-G da Lei 9.656/98. Aliás, sobre o tema em lume o STJ editou a súmula n.469, dispondo esta que: aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde. 3.A partir do diagnóstico de glioblastoma multiforme, não cabia a ré questionar se o tratamento escolhido pela médica do autor era o mais adequado ou não. 4.É direito do médico indicar o tratamento que entende adequado para a patologia que o paciente apresenta, bem como é direito deste último escolher se submeter aquele. Inteligência dos artigos 21 do Código de Ética Médica e 15 do Código Civil. 5.Ademais, não há qualquer referência expressa no contrato entabulado entre as partes de exclusão de cobertura de tratamento. 6.Restrições de direito devem estar expressas, legíveis e claras no contrato, o que não ocorreu no caso em tela, em afronta ao dever de informar consagrado na legislação consumerista. Ressalte-se que a vedação de cobertura não consta taxativamente no contrato, e cláusulas restritivas de direito não dão margem a interpretações extensivas. 7.A omissão no contrato quanto à exclusão de cobertura deve ser interpretada de forma favorável ao consumidor. Inteligência do art. 47 do Código de Defesa do Consumidor. 8. Além disso, também é descabida a negativa securitária por parte da demandada, sob o fundamento de o tratamento ser experimental, pois o que importa para solução do litígio é a existência de cobertura à patologia apresentada pelo contratante, e não o fármaco ministrado. 9.Tratamento necessário para o demandante tenha qualidade de vida e retome a sua jornada normal. Tutela que visa à proteção da vida, bem jurídico maior a ser garantido, atendimento ao princípio da dignidade humana. Negado provimento ao apelo.47

A lisura deve nortear a relação médico-paciente a fim de que o doente possa

se sentir seguro para externar o seu desequilíbrio, as suas emoções e, acima de

tudo, estabelecer um vínculo consistente de confiança no profissional que o atende.

Desde o primeiro contato entre as partes, a transparência das informações

transmitidas pelo paciente ao profissional que o atende deve nortear a relação, em

especial no que tange à exposição do desequilíbrio que o aflige. A sinceridade do

paciente contribui para que o profissional possa conhecê-lo e identificar-se com suas

emoções.

47

Apelação Cível n. 70055677108, rel. Des. Jorge Luiz Lopes do Canto, v.u., j.30.10.2013.

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O ato de conhecer e entender o outro requer perspicácia do profissional, de

modo a facilitar o entrosamento com o paciente, aproximando-o do médico. A

veracidade das informações contribui para a compreensão da patologia, da

exposição dos procedimentos ou tratamentos disponíveis, dos riscos envolvidos,

bem como dos benefícios.

Releva salientar que as explanações devem ser feitas em conformidade com

a capacidade de entendimento do paciente, a quem cabe a decisão do caminho que

deseja trilhar, sob pena de afronta ao princípio da autonomia, que assegura ao

paciente o direito de consentir livre e espontaneamente com a execução de

determinado procedimento ou tratamento proposto pelo profissional da medicina,

desde que devidamente informado.

A eficácia do dever de informar não se resume apenas e tão somente à

possibilidade de propiciar ao paciente a tomada de decisões sérias e conscientes a

respeito de sua vida, mas também, delimita a responsabilidade de cada parte da

relação, no que tange à prevenção e conscientização dos efeitos colaterais que

poderão surgir no decorrer do tratamento.

No relacionamento terapêutico, pois, o dever de informação deve ser

efetivamente cumprido antes e depois da intervenção pelo profissional, de modo que

o paciente tenha conhecimento das possíveis consequências do ato em si e até

colabore para o seu restabelecimento, o que não se confunde com uma singela

comunicação, que pode causar-lhe eventual dano, cuja responsabilidade será do

profissional que o atendeu.

O dever de informar respeita a dignidade do paciente -consumidor à medida

que fortalece a sua vontade livre e consciente de externar sua decisão sobre o

tratamento que deseja ser submetido e a escolha da qualidade de vida que almeja

para si até a finitude.

No caso de incapacidade, o representante legal ou familiares que tenham

conhecimento da situação devem receber as informações adequadas ao seu

entendimento e satisfatórias à tomada de decisão em lugar do paciente.

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A busca do tratamento mais eficaz, que valorize o ser humano na sua

integralidade, deve ser compartilhada passo a passo pelas partes envolvidas nessa

relação, uma vez que a adesão ao tratamento ou intervenção pelo paciente é de

fundamental importância. O estímulo para o seu consentimento é a certeza de que o

profissional defende os seus interesses e que ambos prosseguem rumo ao caminho

direcionado à mantença da vida que o paciente considera digna de ser vivida.

Aliás, o próprio conceito da palavra consentimento, segundo Antonio

Houaiss e Mauro de Salles Villar (2009, p. 527), envolve um acordo de vontades

com o escopo de alcançar um objetivo comum, a saber:

[...] ato ou efeito de consentir; manifestação favorável a que (alguém) faça (algo); permissão, licença [...]; manifestação de que se aprova (algo); anuência, aquiescência, concordância [...]; tolerância, condescendência; uniformidade de opiniões, concordância de declarações, acordo de vontade das partes para se alcançar um objetivo comum [...]

Urge salientar, que nada obstante a convergência das opiniões, o tratamento

eficaz não está obrigatoriamente vinculado à cura do paciente, mas sim, ao seu

bem-estar, pois, não se pode prever, antecipadamente, os resultados de

determinado procedimento escolhido em detrimento de outro, até porque não é

crível que se possa uniformizar as experiências vivenciadas por cada ser,

individualmente, ainda que submetido a procedimentos técnicos padronizados e

destinados ao tratamento de determinada patologia.

Pondera João Vaz Rodrigues (2001) que o consentimento informado e

esclarecido do paciente, como requisito para a prática de determinado ato médico,

não se trata de mera anuência, expressa ou tácita, à avaliação ou intervenção

proposta pelo profissional, destinada à prevenção, detecção, atenuação ou cura da

patologia que o acomete.

Partindo desse entendimento, Vaz Rodrigues (2001, p. 256-258) traz à

colação dois critérios denominados “padrão médico e padrão do doente médio”,

que devem ser confrontados e considerados para que se possa aferir se o paciente

está habilitado a consentir com um determinado tratamento ou intervenção.

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Em conformidade com o padrão médico, a informação será considerada

suficiente tomando-se como referência a conduta médica profissional adequada

àquela circunstância e que seria adotada por qualquer outro profissional médico em

circunstância análoga. Como exemplo, tem-se a intervenção cirúrgica denominada

ligadura de trompas, método de esterilização definitivo, que evita o contato do óvulo

com o espermatozoide, o que não significa a ablação do órgão genital feminino. A

paciente deve ser cientificada da dificuldade de engravidar após a cirurgia, pois a

chance de recanalização das trompas é remota, bem como a reversibilidade do

procedimento.

A respeito e com fundamento no artigo 226, § 7º, da CF48, que trata do

planejamento familiar, a Nona Câmara de Direito Privado do Egrégio Tribunal de

Justiça do Estado de São Paulo decidiu:

[...] A esterilização sem autorização do esterilizado é prática absurda e atenta contra o já mencionado dispositivo constitucional que protege o planejamento familiar e que veda qualquer forma coercitiva de planejamento que não perpasse pela livre decisão do casal.49

Insta salientar que a Lei Federal nº 9.263/96, em seu artigo 10, §§ 1º e 5º50

disciplina acerca da esterilização impondo penalidades e outras providências.

No padrão do doente médio, considera-se suficiente a informação em

conformidade com as necessidades do homem comum. O essencial deve ser

razoavelmente esclarecido a qualquer paciente diante de determinada circunstância,

para que possa tomar sua decisão sem qualquer ingerência externa. Entretanto, as

necessidades podem variar de um paciente para outro no caso concreto (critério do

paciente concreto), estendendo-se as informações para esclarecimentos e

explicações detalhadas e direcionadas, personalizando-as.

48

Art. 226, § 7º. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. 49

Apelação Cível n. 0000668-78.2010.8.26.0435, rel. Des. Piva Rodrigues, j.10.03.2015. 50

Art. 10, §§ 1º e 5º. § 1º É condição para que se realize a esterilização o registro da expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado, após a informação a respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes. § 5º Na vigência da sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges.

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A customização do contato do profissional da saúde com o paciente

possibilita a exposição de seus receios e expectativas futuras diante de um

tratamento ou intervenção proposta, sobre o qual não dispõe de conhecimento

técnico para visualizar a solução mais adequada.

Nesse compasso, Luciana Mendes Pereira Roberto (2009, p. 167) sintetiza

os pressupostos do consentimento informado, ressaltando:

O que edifica a capacidade para consentir a respeito de um tratamento de saúde é a possibilidade de o paciente racionalmente decidir sobre os valores (custo-benefício do tratamento), os fatos, as alternativas (consequências e riscos), a autodeterminação pertinente à informação recebida e a possibilidade concreta de consentir perante determinado tratamento.

Tratando-se da pessoa do paciente, pois, a manifestação volitiva de ser

submetido a determinado tratamento ou intervenção constitui um direito, ao passo

que, para o médico, sob o ponto de vista científico e do conhecimento prático obtido

através das experiências acumuladas no decorrer da vida profissional, é dever legal

e moral a informação completa e a comunicação fidedigna com o paciente, de modo

a proceder à explanação dos prós e contras de todos os recursos disponíveis para o

tratamento de determinada patologia, ainda que não haja perspectiva de recobro.

Preceitua Gilberto Bergstein (2013, p. 111) que:

[...] o consentimento informado será eficaz apenas e tão somente caso seja fundamentado no conhecimento advindo da informação completa e efetivamente compreensível por seu destinatário. Esse conhecimento, formado a partir de uma informação de qualidade (completa e compreensível), consistirá a base a partir da qual poderá haver assunção de riscos legítima por parte do paciente – isto é, de maneira autodeterminada. É o consentimento informado, portanto, que traçará a linha divisória e a delimitação dos riscos que deverão ser suportados por cada uma das partes: médico e paciente.

A jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça desse

entendimento não se afasta, conforme se observa no v. Acórdão da Quarta Turma:

RESPONSABILIDADE CIVIL. Médico. Consentimento informado. A despreocupação do facultativo em obter do paciente seu consentimento informado pode significar - nos casos mais graves –

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negligência no exercício profissional. As exigências do princípio do consentimento informado devem ser atendidas com maior zelo na medida em que aumenta o risco, ou o dano.51

Dessume-se, por todo o exposto, que a autonomia não se dissocia da

integridade psicofísica, como bem destaca Ana Carolina Brochado Teixeira (2010, p.

54) a respeito:

A higidez psíquica é fundamental para que se tenha a vontade válida, que o consentimento para os atos que expressam a liberdade de escolha possa produzir efeitos no mundo jurídico. Se esta estiver presente, todos os atos incidentes sobre a integridade física são válidos, desde que atendam a uma opção livre e consciente do sujeito, como expressão da autonomia corporal. Quando isso ocorre, mesmo que haja abalo à integridade física, a saúde está sendo preservada, tutelada, promovida, pois atende a um apelo de liberdade consciente daquele indivíduo detentor de discernimento que fez determinadas opções em sua vida que, segundo seu projeto pessoal, atende à realização da sua personalidade.

Frise-se, entretanto, que se houver diretivas antecipadas de vontade,

regulamentada pela Resolução do Conselho Federal de Medicina – CFM n.

1.995/201252, em face da ausência de legislação específica no ordenamento jurídico

pátrio, mister se faz a sua observância.

As diretivas antecipadas de vontade externam de maneira prévia, livre e

expressa a disposição do paciente a cuidados e tratamentos que deseja ou não

receber no momento da sua incapacidade de comunicação (art. 1º), que deverão ser

consideradas pelo médico em suas decisões (art. 2º). Na hipótese de nomeação de

representante legal pelo paciente para esta finalidade, as informações transmitidas

ao médico devem ser consideradas, salvo se em desacordo com os preceitos

ditados pelo Código de Ética Médica (art. 2º, §§ 1º e 2º).

As diretivas antecipadas de vontade prevalecerão sobre qualquer outro

parecer não médico, incluindo a vontade dos familiares (art. 2º, § 3º). Cabe ao

médico registrar no prontuário as diretivas comunicadas diretamente pelo paciente

(art. 2º, § 4º).

51

Recurso Especial n. 436.827, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, v.u., j. 01.10.2002 52

Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2012/1995_2012.pdf> Acesso em: 06 set. 2015.

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Na falta de conhecimento das diretivas, inexistindo representante legal

designado ou familiares disponíveis ou, ainda, na falta de consenso entre estes, o

Comitê de Bioética da instituição será acionado pelo médico. No caso de sua falta, o

médico acionará a Comissão de Ética Médica do nosocômio ou o Conselho Regional

e Federal de Medicina, de modo a fundamentar sua decisão sobre divergências

éticas, se entender necessário e conveniente (art. 2º, § 5º).

Saliente-se que, não obstante o registro no prontuário médico do paciente,

nada obsta que as diretivas antecipadas de vontade sejam registradas em cartório, o

que se denomina testamento vital, definido por Ernesto Lippmann (2013, p. 17)

como: ”(...) declaração escrita da vontade de um paciente quanto aos tratamentos

aos quais ele não deseja ser submetido caso esteja impossibilitado de se

manifestar”.

8.2 Princípio da beneficência: o bem maior denominado vida

A beneficência é o princípio mais significativo na relação médico- paciente,

pois o médico deve trabalhar em prol da saúde e do bem-estar do paciente que

confia aos seus cuidados o seu bem maior denominado vida.

À luz desse princípio, o médico deve priorizar o máximo de benefícios e o

mínimo de prejuízos diante das possibilidades existentes para tratar e cuidar do

paciente.53 Nesse processo, o conhecimento técnico do profissional deve associar-

se à sua conduta zelosa e consciente de proceder à análise acurada da situação

concreta diagnosticada, sopesando os benefícios de um determinado tratamento ou

intervenção e os prováveis malefícios, cujas sequelas poderão tornar-se

irreversíveis.

Se algum arrependimento houver, que não seja de sua própria consciência

cobrando-lhe a ausência de uma postura comprometida com a ética e a moral que

53

Centro de bioética do CREMESP, São Paulo. Princípios bioéticos. A Autonomia, Não-Maleficência, Beneficência, Justiça e Equidade. Disponível em: <http://www.bioetica.org.br/?siteAcao =Publicacoes&acao=detalhes_capitulos&cod_ca...> Acesso em: 20 abr. 2014.

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devem permear a relação com o paciente, cuja vulnerabilidade resta patente, pois

não dispõe de condições para proceder à análise acurada do produto que está

adquirindo ou do serviço oferecido.

A fim de resguardar o consumidor, a doutrina pátria reconhece três espécies

de vulnerabilidade, isto é, técnica, jurídica e fática.

A vulnerabilidade técnica está relacionada à falta de conhecimento técnico

do consumidor no que tange ao produto ou serviço que pretende adquirir ou utilizar,

uma vez que é o seu destinatário final. Na relação médico-paciente, a

vulnerabilidade do enfermo resta patente, pois, além de não dispor de conhecimento

técnico-científico na área da medicina, o que é reservado ao médico, a sua

vulnerabilidade também esta relacionada à indefinição de sua vida e, na maioria das

vezes, à interrupção abrupta dos projetos que planejou e tencionava executar.

A vulnerabilidade jurídica, por sua vez, compreende a falta de conhecimento

jurídico preciso por parte do consumidor quanto aos seus direitos e deveres diante

de uma determinada relação de consumo.

Em sua grande maioria, os pacientes desconhecem os seus direitos e os

deveres do profissional da medicina, o que não deveria ocorrer, pois, revelado o

diagnóstico de determinada patologia, mister se faz que o paciente compartilhe com

o médico os tratamentos disponíveis, a fim de que decida o caminho a ser trilhado,

em respeito à sua autonomia. A participação ativa do paciente é de extrema valia

para que se sinta motivado a enfrentar o tratamento escolhido e controlar as suas

expectativas de cura.

A vulnerabilidade fática ou econômica reconhece a fraqueza do

consumidor diante da potencialidade econômica do fornecedor, do monopólio sobre

determinado produto ou serviço, cuja essencialidade é indispensável. Na relação

médico-paciente, a vulnerabilidade fática do consumidor usuário de plano de saúde

é axiomática, diante de um contrato de adesão cujas cláusulas são previamente

estabelecidas, sem possibilidade de alteração, o que somente poderá ocorrer por

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meio da judicialização, ante a precariedade do diálogo entre as partes contratantes,

em especial, do prestador do serviço avençado.

Nessa esteira de pensamento, decidiram os integrantes da Nona Câmara

Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná:

APELAÇÃO CÍVEL – PLANO DE SAÚDE – NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DE ANGIOPLASTIA DE RAMO INTRACRANIANO E COLOCAÇÃO DE STENT – INOBSERVÂNCIA DO CDC – VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR- IMPOSSIBILIDADE DO PLANO DITAR O TRATAMENTO A SER MINISTRADO AO ARREPIO DA RECOMENDAÇÃO DO MÉDICO QUE ASSITE À PACIENTE- VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA- LIBERDADE DE ESCOLHA DO TRATAMENTO MÉDICO, PELO PACIENTE, COMO DECORRÊNCIA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA- NEGATIVA INDEVIDA DE COBERTURA- DEVER DE RESSARCIR- DANOS MORAIS CONFIGURADOS- VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ- PRECEDENTES DO STJ E DESTE COLEGIADO – RECURSOS CONHECIDOS – APELAÇÃO (1) PROVIDA E APELAÇÃO (2) DESPROVIDA.54

É de bom alvitre mencionar a vulnerabilidade informacional reconhecida por

Cláudia Lima Marques (2014, p. 335):

Decorrente de uma sociedade de consumo globalizada e imediatista, cuja tecnologia avançada requer uma informação acurada sobre o produto oferecido ou serviço a ser prestado pelos fornecedores, [...] os quais, mais do que experts, são os únicos verdadeiramente detentores da informação.

Zygmunt Bauman (2011, p. 210), ao tratar da ética no mundo de

consumidores, esposa o mesmo entendimento ao reforçar que a preferência dos

consumidores da atualidade é, “[...] pelo consumo imediato, a satisfação imediata e

o lucro imediato”.

Saliente-se que a vulnerabilidade não deve ser confundida com a

hipossuficiência do consumidor, prevista no artigo 6º, inciso VIII, do CDC55, que não

54

Apelação Cível n. 1018220-8, rel. Des. Horácio Ribas Teixeira, v.u., j.11.07.2013. 55

Art. 6º, VIII. São direitos básicos do consumidor: VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências.

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se relaciona aos benefícios da assistência judiciária gratuita concedidos àquele que

é pobre na acepção jurídica do termo (Lei nº1060/50), mas sim, à falta de

conhecimento técnico acerca do produto ou serviço que adquiriu (hipossuficiência

técnica) e à impossibilidade de produção de prova que ratifique a pretensão do

consumidor deduzida em juízo contra o fornecedor (hipossuficiência fática), que, na

concepção de Flávio Tartuce e Daniel Amorim Assumpção Neves (2014, p. 36), “(...)

constitui um plus, um algo a mais, que traz a ele mais um benefício, qual seja a

possibilidade de pleitear, no campo judicial, a inversão do ônus de provar (...)”.

A extensão do domínio clínico, pois, envolve interesse e dedicação fraternal

pelo outro, conforme entendimento do médico francês Charles-Louis Dumas (1765-

1813 apud FOUCAULT, 2014, p. 95-96), equiparando-se aos cuidados de um pai

com o destino do seu estimado filho:

Desvendar o princípio e a causa de uma doença em meio à confusão e à obscuridade dos sintomas; conhecer sua natureza, suas formas, suas complicações; distinguir, no primeiro golpe de vista, todas as suas características e diferenças; separar, por uma análise rápida e delicada, tudo o que lhe é estranho; prever os acontecimentos vantajosos e nocivos que devem sobrevir durante o curso de sua duração; governar os momentos favoráveis que a natureza suscite para operar a solução; avaliar as forças da vida e a atividade dos órgãos; aumentar ou diminuir, de acordo com a necessidade, sua energia; determinar com precisão quando é preciso agir e quando convém esperar; decidir-se com segurança entre vários métodos de tratamento que oferecem vantagens e inconvenientes; escolher aquele cuja aplicação parece permitir mais rapidez, mais concordância, mais certeza no sucesso; aproveitar a experiência; perceber as ocasiões; combinar todas as possibilidades, calcular todos os casos; tornar-se senhor dos doentes e de suas afecções; aliviar suas penas; acalmar suas inquietações; adivinhar suas necessidades; suportar seus caprichos; atuar sobre seu caráter e dirigir sua vontade, não como um titular cruel que reina sobre escravos, mas como um pai terno que vela pelo destino de seus filhos.

Robert Veatch, professor do Instituto Kennedy de Ética da Universidade

Georgetown – EUA no ano de 1972, elucidou quatro modelos de relação médico-

paciente em conformidade com o envolvimento do profissional e a tomada de

decisões pelo paciente, a saber: Sacerdotal, Engenheiro, Colegial e

Contratualista.

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O modelo Sacerdotal, na definição do mestre, aproxima-se do princípio da

beneficência ao assumir o profissional a postura paternalista, ou seja, muito embora

esteja disposto a ouvir o paciente, suas opiniões não são consideradas no momento

da decisão do que é mais adequado ao tratamento de determinada patologia. O

profissional da saúde detém a autoridade e o poder de dominar o paciente

submisso. Esse modelo é tradicional e considerado de baixo envolvimento na

tomada de decisão.

No modelo Engenheiro, o profissional assume uma postura de

acomodação, uma vez que detém tão somente a sua autoridade técnica no que

tange à transmissão das informações adequadas ao paciente e que o caso requer.

Compete ao paciente, entretanto, o poder de decisão, prestando-lhe o médico o

serviço de executar o que foi decidido. O baixo envolvimento na tomada de decisão

é característico desse modelo, que se presta única e exclusivamente ao

fornecimento de informações.

O modelo Colegial, por seu turno, diferencia-se dos modelos anteriores no

que concerne ao alto envolvimento na tomada de decisão, pois o poder é

compartilhado de maneira igualitária pelo médico e o paciente. A figura de

autoridade reservada ao profissional é afastada pelas partes, que negociam as

propostas apresentadas em busca da solução mais adequada para o deslinde da

questão afeta à saúde e ao bem-estar do paciente.

Por derradeiro, no modelo Contratualista, o médico não deixa de lado a sua

autoridade, preservando-a diante do paciente, uma vez que detém o conhecimento

técnico e as habilidades necessárias para proceder à tomada de decisões

adequadas ao tratamento de uma determinada patologia diagnosticada em seu

paciente, que também participa desse processo trocando informações e expondo

seus valores morais e pessoais. No caso, o envolvimento entre as partes é

considerado médio ou alto, dependendo do compromisso assumido entre ambas

para a escolha da direção a ser seguida rumo à estabilização do desequilíbrio que

acomete o paciente. 56

56

Disponível em: <http://www.ufrgs.br/bioetica/relacao.htm> Acesso em: 25 mai. 2015

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O comprometimento das partes não pode ser um simples consentimento

livre e informado para que se proceda à determinado tratamento ou intervenção. Há

que se esgotar todos os meios de informação disponíveis a fim de que a escolha

seja livre e consciente e totalmente afastada de qualquer ingerência externa.

8.3 Princípio da não-maleficência: o respeito ao próximo e a si mesmo

O princípio da não-maleficência não constitui o oposto do princípio da

beneficência, pois ambos se completam quando se trata da relação médico-

paciente. Deriva do aforismo hipocrático primum non nocere (primeiro não

prejudicar), isto é, qualquer ato médico deve causar ínfimo prejuízo ao paciente, o

que justifica toda a cautela empregada pelo profissional no que concerne à análise

dos riscos e efeitos colaterais de determinada terapêutica.

Evitar prejuízo no sentido da não-maleficência também conduz à reflexão

acerca do dever ético do médico não rotular o paciente como um doente, sob pena

de transformá-lo no denominado doente imaginado, conceito difundido pelo médico

italiano, Marco Bobbio (2016), nos casos em que o profissional trata uma patologia

imaginada, isto é, que poderá ou não se desenvolver, ou ainda, muito embora

existente a patologia, o profissional não oferece alternativas que não estejam

dispostas nas publicações científicas.

Nessa linha de raciocínio e preocupado com o seu bem-estar, o doente

imaginado torna-se um potencial contribuinte para o aumento descontrolado da

judicialização da saúde, uma vez que a preocupação com a saúde é obsessiva e o

conduz à dependência de assistência médica, incluindo exames clínicos,

tratamentos e medicamentos de última tecnologia, que não podem ser sustentados

pelo sistema de saúde público ou privado, sob pena do interesse individual

sobrepor-se ao interesse coletivo.

Com percuciência, Bobbio (2016, p. 34-35) argumenta:

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[...] quanto mais indivíduos um médico convencer da precariedade de seu bem-estar, mais aumentarão as necessidades, os “clientes” e os negócios. Os verdadeiros doentes, aqueles que estão mal, que sofrem de uma patologia limitadora ou aguda, aqueles que estão inexoravelmente caminhando para a morte, são poucos, felizmente. Se a medicina se ocupasse somente deles, o afluxo nos hospitais e laboratórios seria redimensionado, menos medicamentos seriam vendidos e menos exames seriam feitos.

A plenitude da pessoa humana deve ser respeitada, tanto que o paciente

não pode sofrer qualquer constrangimento que o conduza à aceitação de tratamento

médico ou intervenção cirúrgica que exponha sua vida em risco (art. 15 do Código

Civil),57 gerado ou intensificado por delimitada prática médica.

Em artigo publicado na revista Veja, enfocou-se sobre a moderna oncologia

centrada na redução de tratamentos nos casos de tumores iniciais e de pouco risco

de agressividade ao paciente. Muito embora constitua um desafio para o médico e

para o paciente, já que o câncer traz consigo o estigma da morte, a redução de

tratamentos e, em alguns casos específicos, a decisão de não tratar, pode

proporcionar uma qualidade de vida mais digna, uma vez que os efeitos colaterais

de determinadas terapias, tais como, a radioterapia e a quimioterapia, podem ser

violentos e causar grandes prejuízos ao organismo humano.

Urge salientar, que cada caso concreto deve ser analisado isoladamente,

pois o paciente deve se conscientizar da possibilidade de recorrência da doença,

que não pode ser descartada. A reação do paciente em reduzir os tratamentos

propostos, incluindo a ingestão de drogas, ou de não se tratar, reforça a

necessidade de informação adequada sobre as vantagens e desvantagens dessa

decisão, o que não afasta o controle minucioso da patologia através de exames de

rotina.58

Essa liberdade, entretanto, não é absoluta, uma vez que o paciente pode se

encontrar em situação que altere o nível de consciência e o impeça de manifestar a

57

Art.15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. 58

CULMINALE, Natália. Câncer – Quando tratar menos é melhor”. Veja, 27 jan. 2016.

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sua vontade, como por exemplo, o coma, que provoca a inconsciência, ou seja,

completa letargia de si e do que está ao seu redor.

Diante de um quadro de iminente risco de morte, por exemplo, o médico não

pode escusar-se do dever de decidir, não obstante ser-lhe vedado o desrespeito ao

direito do paciente ou de seu representante legal de, livremente, tomar a decisão

sobre a prática diagnóstica ou terapêutica que considera mais conveniente (art. 31

do Código de Ética Médica)59

Nesse sentido direcionou-se a VI Jornada de Direito Civil STJ ao tratar da

Parte Geral do Código Civil:

533. O paciente plenamente capaz poderá deliberar sobre todos os aspectos concernentes a tratamento médico que possa lhe causar risco de vida, seja imediato ou mediato, salvo as situações de emergência ou no curso de procedimentos médicos cirúrgicos que não possam ser interrompidos.

Em suma, entre o direito à vida e o direito à liberdade de decidir o que é

melhor para si, desde que o paciente seja devidamente capaz, deve preponderar o

direito à vida, sagrado e inviolável. Exceção à urgência ou emergência, o ato médico

necessita de consentimento prévio e esclarecido do paciente, e, qualquer

posicionamento em contrário, importará em manifesto desrespeito à dignidade da

pessoa humana.

8.4 Princípio da justiça: o exercício pleno da cidadania

A condição indispensável à efetividade desse princípio é a equidade no que

diz respeito ao tratamento adequado a ser dispensado a todo indivíduo que

necessita de assistência.

59

Art. 31. É vedado ao médico: Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.

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106

Na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, a igualdade

fundamental de todo ser humano em se tratando de dignidade e direitos deve ser

respeitada para que sejam tratados de forma justa e equitativa (art. 10º).

Ensina Maura Roberti (2007) que o princípio da justiça vincula-se ao

princípio da igualdade, que “garante a distribuição justa, equitativa e universal dos

direitos, dando a cada um o que é seu, os iguais devendo ser tratados igualmente,

ao passo que os desiguais desigualmente, na medida em que se desigualam”. (p.

67) É a chamada “igualdade substancial”.

O conceito de justiça não esta desvinculado das diferenças existentes entre

os grupos que compõem uma sociedade. A igualdade disposta na Carta Magna, em

seu artigo 5º, caput, constitui igualdade (formal) de pessoas perante a lei, ou seja, a

lei prevê o tratamento igualitário a todas as pessoas, desconsiderando, entretanto,

as diversidades dos grupos existentes no seio da sociedade.

Para Aristóteles (2007, p. 146), o justo “significa aquilo que é legal e aquilo

que é igual e equitativo”, ao passo que o injusto “significa aquilo que é ilegal e aquilo

que é desigual e não equitativo”.

Em que pese o antagonismo, a convivência entre o justo e o injusto existe

desde os primórdios da civilização e a sua negação é utópica e pode conduzir a

sociedade ao caos, como bem esclarece Aristóteles (2007, p. 151-152):

[...] a justiça envolve, ao menos, quatro termos, ou seja, especificamente: dois indivíduos para os quais há justiça e duas porções que são justas. E haverá a mesma igualdade entre as porções tal como entre os indivíduos, uma vez que a proporção entre as porções será igual à proporção entre os indivíduos, pois não sendo as pessoas iguais, não terão porções iguais – é quando os iguais detêm ou recebem porções desiguais, ou indivíduos desiguais [detêm ou recebem] porções iguais, que surgem conflitos e queixas.

Na concepção de John Rawls (2008, p. 73), há dois princípios de justiça que

regem a outorga de direitos e deveres e regulamentam a distribuição dos benefícios

sociais e econômicos, a saber:

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Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de iguais liberdades fundamentais que seja compatível com um sistema similar de liberdades para as outras pessoas. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem estar dispostas de tal modo que tanto (a) se possa razoavelmente esperar que se estabeleçam em benefício de todos como (b) estejam vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos.

Castanheira Neves, citado por Luís Pedro Pereira Coutinho (2009, p. 532),

ao tratar de ordem com sentido de direito, não a afasta do princípio da justiça,

afirmando:

[...] é uma ordem cujo aglutinador “imperativo” reside num “princípio da ética igualação das pessoas”, ao qual se pode dar também o nome de princípio da justiça, já que a justiça nada mais é do que “a exigência, normativamente integrante e dinâmica, do reconhecimento de cada um perante os outros e da responsabilidade de cada um perante os outros na coexistência em um mesmo todo comunitário constituído por todos”. Assim, o Direito como Direito é uma ordem de justiça, uma ordem através da qual os homens exprimem o seu mútuo reconhecimento como entes de imprescindível dignidade.

O princípio da justiça relaciona-se ao exercício efetivo da cidadania, que se

constrói paulatinamente, pois, no entender de José Murilo de Carvalho (2013, p. 12),

“[...] a construção da cidadania tem a ver com a relação das pessoas com o Estado

e com a nação. As pessoas se tornavam cidadãs à medida que passavam a se

sentir parte de uma nação e de um Estado”.

Sobre o assunto em foco é oportuno trazer à baila os ensinamentos de

Ricardo Castilho (2009), que, ao versar sobre a justiça social, acentua a

necessidade do indivíduo considerar-se membro de uma determinada comunidade,

que o aceita como seu integrante, a fim de que sua atuação seja voltada para o bem

comum:

A obrigação dos indivíduos para com a comunidade, dever de agir em consonância com o Bem Comum, aceita como ponto de partida o suposto de que o sujeito passivo do liame obrigacional de Justiça Social se considera membro daquela específica sociedade. Da mesma maneira, pressupõe-se, para o aperfeiçoamento da relação de dever tratada, que o indivíduo seja considerado pela comunidade como seu membro. O que passa, aqui, é a necessidade de o ser humano aceitar a comunidade como legítima credora de seus deveres, por qualificar a si próprio como integrante dela e, ao mesmo

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tempo, a imprescindibilidade de a sociedade também aceitar o indivíduo como seu participante, atribuindo-lhe, em contrapartida, os mesmos direitos atribuídos aos demais cidadãos – reflexos dos deveres a eles também cabíveis (2009, p. 54).

Essa percepção deve ser trabalhada pelo próprio Estado na medida em que

o cidadão é estimulado à participação ativa no governo exigindo a sua efetiva

atuação na concretização dos direitos e garantias fundamentais, até porque,

segundo Hannah Arendt, invocada por Eugênia Sales Wagner (2007, p. 116): “[...]

liberdade política [no âmbito da sociedade] ou significa ‘participar do governo’ ou não

significa nada”.

Partindo desse pressuposto, Dalmo de Abreu Dallari (2013, p. 292) acentua

o surgimento de um novo constitucionalismo fundamentado na “supremacia da

pessoa humana”, afastando-se na prática qualquer “discriminação ou privilégio”, de

modo que não se restrinja tão somente “a meras afirmações teóricas ou formais”.

Acrescenta, ainda, o eminente jurista:

[...] para o novo constitucionalismo a Constituição tem fundamentos éticos, jurídicos e sociais que se encontram em todas as sociedades e em todos os seres humanos. Evidentemente, em vista da extrema variedade de condições materiais e de características culturais, seria impossível e mesmo contraditório pretender a definição de uma Constituição-padrão válida para todos os tempos e todos os lugares. O que se faz necessário é que em cada circunstância o constitucionalismo leve em conta o conjunto das peculiaridades éticas, jurídicas e sociais do povo, sem perder de vista e sem afrontar tudo o que é essencial à pessoa humana para preservação de sua dignidade. (DALLARI, 2013, p.309).

O princípio da justiça deve constituir a base para repensar a concretização

do direito à saúde em todos os aspectos, inclusive na atuação médica humanizada,

através da conceituada cidadania ativa de Giovanni Moro, citado por Guido Giarelli

(2014, p.34), cuja atenção precípua esta voltada para “o indivíduo como pessoa, ser

humano único e não apenas com um papel social” (paciente-consumidor), o que não

afasta, entretanto, a sua responsabilidade e compromisso com o seu bem-estar e o

do semelhante, pois, como bem acentua Giarelli (2014, p. 35):

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Um/a cidadão/ã ativo/a é alguém capaz de estabelecer um equilíbrio entre direitos e responsabilidades, o que implica o reconhecimento de que numa sociedade todos os indivíduos são mutuamente dependentes e que, ao fazerem uma contribuição positiva para a sociedade através da participação na sua vida, eles estão ajudando a si mesmos e aos outros. A cidadania ativa é o elemento unificador que mantém a sociedade unida, uma vez que permite que as pessoas se concentrem para além do seu próprio interesse. Isso implica a responsabilidade de assegurar que ninguém é socialmente excluído, especialmente os mais fracos, as pessoas com deficiência e os doentes.

Em suma, no contexto do princípio da justiça exercer a cidadania é conhecer

os seus direitos, sem esquecer de suas responsabilidades, de modo a assumir o

compromisso de participação ativa na efetivação dos direitos fundamentais sociais

para o alcance do bem-estar social.

8.5 Empatia, confiança e diálogo: os pilares da atuação médica humanizada

No exercício da profissão, o escopo precípuo da atuação médica constitui a

saúde do ser humano e das coletividades humanas, em benefício da qual deverá

agir com o máximo de zelo, com o melhor de sua capacidade profissional e sem

qualquer discriminação (artigo 2º da Lei nº 12.842/13).60

As ações profissionais do médico serão desenvolvidas no campo da atenção

à saúde a fim de promovê-la, protegê-la e recuperá-la, bem como para a prevenção,

o diagnóstico e o tratamento das doenças, e, por fim, a reabilitação dos enfermos e

portadores de deficiências (parágrafo único, I,II e III).

O contato inicial entre o médico e o paciente é marcado por medo e

insegurança frente ao desconforto e o desequilíbrio que o incomodam. O conhecer o

outro e com este estabelecer uma relação de empatia e confiança não é imediato,

até porque, o paciente terá que expor a sua intimidade a alguém que não conhece,

muito embora acredite tratar-se de um profissional com conhecimento e habilidade

técnica para descobrir o mal que o aflige.

60

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br_Ato2011-2014> Acesso em: 12 mar. 2015.

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O médico, com o máximo de zelo e cautela, procura destacar o papel do

paciente na relação tornando-o protagonista da sua saúde, do seu próprio cuidado e

bem-estar, de modo a alicerçar a importância da sua participação ativa no processo

de interação com a sua patologia.

O convívio deve ser harmonioso e eivado de respeito e consideração pela

limitação do paciente no que tange ao conhecimento e compreensão da patologia e

à aceitação do tratamento indicado, diante da possibilidade de acesso à tecnologia

avançada através dos meios de comunicação, entre eles, a internet.

A atuação coerente e prudente do médico deve pautar-se no diálogo com o

paciente, ou seja, no saber ouvir e interpretar o que está sendo dito, considerando a

sua trajetória de vida, os valores pessoais relacionados ao medo, à angústia de uma

patologia, à insegurança, à esperança e à expectativa de cura e, em alguns casos, a

interrupção abrupta de um projeto de vida.

Na relação médico-paciente, a sensibilidade técnica e humana do

profissional permite tratar o ser humano com a sua patologia e não apenas a

patologia em si. Esse tratamento será estendido ao representante legal ou

familiares, que, direta ou indiretamente, participam do tratamento e da tomada de

decisões afetas à qualidade de vida do doente.

8.5.1 Empatia: colocar-se no lugar do outro para entender a sua realidade de vida

Na definição de Antonio Houaiss e Mauro de Salles Villar (2009, p. 740),

empatia é, “[...] processo de identificação em que o indivíduo se coloca no lugar do

outro e, com base em suas próprias suposições ou impressões, tenta compreender

o comportamento do outro”.

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Colocar-se no lugar do outro constitui uma arte que se desenvolve na

academia e prossegue na prática cotidiana. Requer o envolvimento com o outro, o

entender o outro a partir de sua ansiedade, angústia, insegurança, incerteza e dor.

O elo que será estabelecido entre o paciente e o médico não representa tão

somente a confiança no conhecimento científico e habilidades para diagnosticar e

tratar, mas sim, no ato de cuidar e se envolver com o ser humano imperfeito e frágil

que se encontra sob os seus cuidados, esquecendo-se dos estereótipos impostos

pela sociedade, que dificultam a transposição da empatia, no entender de Roman

Krznaric (2015, p. 68):

O que todos os estereótipos têm em comum, quer sejam produto de política, religião, nacionalismo ou outras forças, é um esforço para desumanizar, para anular a individualidade, impedir-nos de olhar alguém nos olhos e saber seu nome. A consequência é criar uma cultura da indiferença na qual a empatia tem dificuldade em penetrar.

Ao atender o paciente, todavia, o profissional deve se acautelar a fim de que

suas emoções não prejudiquem a relação e tampouco interfiram nos procedimentos

necessários ao tratamento prescrito.

Em recente artigo publicado na Revista Ser Médico, o profissional Marco

Antônio de Carvalho Filho ensina os alunos da graduação, através do atendimento

simulado de consulta médica, a lidarem com suas emoções no contato com o

paciente. Segundo o professor, o ser humano não aprendeu a lidar com as suas

emoções, o que pode culminar no distanciamento do médico quanto à pessoa do

paciente a fim de se proteger, prejudicando a ambos. Afirma, ainda, que o

distanciamento emocional atrapalha a realização profissional, pois, a oportunidade

de prestar ajuda a alguém somente é vivida em sua plenitude se houver conexão

com a pessoa ajudada.61

É cristalino o entendimento de que o profissional da medicina, em nenhum

momento, impedirá que as suas emoções interfiram na relação com o paciente,

entretanto, o equilíbrio é imprescindível para que o profissional não se sinta

61

“Projeto da Unicamp, que ensina alunos de Medicina a lidar de forma positiva com suas emoções ao atender pacientes, mostra que sim”. Revista Ser Médico, n.72, ano XVIII, jul-set, 2015, p.34-37.

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impotente e conheça as suas limitações, sem deixar de lado, entretanto, a empatia

com a dor e o sofrimento do outro, isto é, muito embora o médico não possa sentir a

dor do paciente, uma vez que é subjetiva e pessoal, procura colocar-se no seu lugar

com o intuito de conhecê-lo e ajudá-lo.

Ao ter percepção de que o médico se preocupa com o sofrimento e

frustrações do paciente, que se encontra diante de uma situação desconfortante, o

profissional da medicina possibilita a descoberta do outro, sem dissimulações que

comprometam a relação.

Doutrina abalizada comunga esse entendimento e reforça os

relacionamentos interpessoais na área da saúde, de acordo com Paula Costa Mosca

Macedo (apud DINIZ, 2013, p. 199):

Onde houver doença, sempre haverá a irradiação do universo emocional daquele que dela padece, podendo ser manifestação de sofrimento, desesperança, dor, preocupação, raiva e até negação da realidade, mas, inexoravelmente, o profissional será afetado por essas demandas emocionais e a elas responderá com sua própria subjetividade. A partir da empatia, pode-se criar um campo relacional de entendimento, evitando-se formas de reação mais primitivas por parte do profissional.

Salienta, entretanto, que a empatia requer um desenvolvimento emocional, a

fim de preservação do pensamento e da racionalidade para que se possa lidar com

as diferenças e os conflitos que a empatia não pode evitar:

Ser empático não é criar condições para uma relação harmoniosa nem conquistar o outro com uma espécie de sedução agradável; ser empático é, antes de tudo, uma possibilidade pessoal na relação com o outro, que requer desenvolvimento emocional e profundo respeito tanto naquilo que se refere ao objetivo determinado (o cuidado) quanto ao lidar com as diferenças e os conflitos que a própria empatia suscita (MACEDO, 2013, p. 198).

Na condição de paciente, o profissional da medicina também encontra

dificuldades em aceitar e lidar com a patologia que o acomete, uma vez que dispõe

de conhecimento científico para entendê-la, o que o torna impotente, angustiado e

vulnerável, segundo Alexandrina Maria Augusto da Silva Meleiro (2001, p. 240), que

desenvolveu um estudo a respeito:

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O paciente-médico, diante de complicações tanto de um tratamento clínico quanto cirúrgico, traz em si a carga da dúvida, sofrendo dessa forma mais que os outros. Suas angústias e preocupações justificam sua postura de desaprovação da condução do tratamento, de menor confiança na prescrição médica, seguindo-a, pouco, de maior preocupação com os efeitos colaterais e de desejar ser informado sobre a medicação prescrita. Essa postura mais exigente (cliente especial) faz com que ele seja considerado pelos próprios colegas como “o pior paciente para ser tratado”, e nem sempre é compreendida pela própria classe médica, favorecendo a perpetuação desse preceito.

De se ver que na prática, a empatia solidifica o relacionamento com o

semelhante e proporciona benefício mútuo para as partes, pois, esteja o profissional

da medicina na condição de paciente ou não, colocar-se no lugar do outro e

sensibilizar-se pelo seu sofrimento possibilitará a compreensão e a aceitação de

suas limitações e a busca constante do equilíbrio das suas emoções.

Norbert Bensaid (1977, p. 130) bem descreve esse quadro ao versar sobre a

consulta médica:

Escutar não é o suficiente, é preciso entender, sentir, compreender, quer dizer, apagar-se. Não é fácil. Não nos é ensinado a fazê-lo, e tudo, no decorrer do dia, nos tenta a afirmarmo-nos e, ao mesmo tempo, protegermo-nos. Tudo: a confiança e a angústia do doente, nosso poder e impotência, nosso saber e ignorância, a invulnerabilidade que os doentes nos emprestam - eles ficam escandalizados quando adoecemos - e a nossa vulnerabilidade real, nosso medo de ser atingido, por nossa vez, pelas doenças cujos estragos constatamos. Aceitar que o doente fale de si, e não somente de uma doença, é aceitar, e suportar, que ele fale de nós e nos conteste. Aceitar, entender o que ele diz, é recusar interpormo-nos entre seu discurso e nós, para que seu discurso nos deixe intactos.

O ato de repensar a vida diante de uma situação de desconforto conduz o

ser humano à percepção e reflexão sobre o que almeja para si e para o seu

semelhante diante da dor e do sofrimento que os acometem, pois, como bem

salientam Geraldo José Ballone, Ida Vani Ortolani e Eurico Pereira Neto (2007, p.

17):

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114

[...] a qualidade e a intensidade das percepções refletem, muitas vezes, fatores pessoais de quem percebe, tais como suas necessidades, emoções, atitudes e valores. Isso quer dizer que nós percebemos de acordo com aquilo que somos (personalidade) e de acordo com o jeito que estamos (situação emocional atual).

8.5.2 Confiança: a integridade e a sinceridade no contato do médico com o paciente

Para que se possa estabelecer uma relação de confiança, primeiramente,

mister se faz conhecer o outro e respeitá-lo como ser humano falível e, por

conseguinte, passível de erros. A exposição fidedigna dos fatos faz parte dessa

relação e deve pautá-la desde o início.

O conceito de confiança relaciona-se à idoneidade moral de uma pessoa

que, no caso profissional, consiste na sua reputação, seriedade e boa conduta, o

que é perfilhado por De Plácido e Silva (1984, p. 503, vols. I e II) ao defini-la,

juridicamente, como: “[...] o conceito intimo a respeito do critério, do caráter e da boa

conduta de uma pessoa, em quem, por esta razão, se deposita fé em sua ação ou

em seu bom procedimento”.

A confiança na conduta do profissional da medicina facilita a nudez do

paciente, que, com singeleza, expõe suas dificuldades, constrangimentos e

frustrações evidenciando a sua carência física, psíquica e social.

O sentimento de isolamento e abandono do paciente envolve o seu círculo

de amizades, colegas de labor e, principalmente, a exposição da família diante de

uma situação inesperada. A insegurança no que tange à compreensão e aceitação

da patologia e posterior tratamento é extensiva à família do paciente, que não dispõe

de conhecimento técnico-científico para o acompanhamento adequado e os

cuidados necessários.

O dilema do paciente em expor o problema à família pode agravar sua

saúde, tornando-o mais vulnerável à exposição a outras patologias. É nesse

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115

momento que a confiança mútua entre o paciente e o profissional é de extrema valia

para esclarecer a família acerca da patologia que o acomete, do prognóstico, do

tratamento ou tratamentos disponíveis e, por derradeiro, do medo que o aflige.

Esse esclarecimento, todavia, não assegura o estreitamento da convivência

familiar e a aceitação dos fatos; pelo contrário, pode causar rejeição e posterior

abandono.

A interação do profissional com o paciente e familiares lastreada na

confiança mútua solidifica a relação e contribui para o prosseguimento do tratamento

com segurança e credibilidade, ao mesmo tempo em que minimiza intervenções

desnecessárias.

O estabelecimento de um vínculo significativo entre o profissional, paciente e

familiares decorre da confiança e favorece o diálogo entre as partes, a exposição de

dúvidas e, consequentemente, os esclarecimentos com sinceridade e sem

parcimônia.

8.5.3 Diálogo: o diferencial na atuação médica humanizada

A tecnologia avançada da sociedade contemporânea proporciona meios de

comunicação social eletrônicos, que conduzem ao individualismo e à indiferença

para com o semelhante.

A despeito de facilitar o cotidiano do homem moderno, a comodidade o isola

e dificulta o contato direto entre os indivíduos, que envolve o tocar, o sentir e o

dialogar.

Para Gadamer (2015, p. 503), “[...] a linguagem é o medium universal em

que se realiza a própria compreensão. A forma de realização da compreensão é a

interpretação”.

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Interpretar advém do latim interpretor, que significa “[...] explicar, traduzir,

compreender, avaliar e decidir (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 1099)”.

Na relação médico-paciente, a interpretação acompanhada da compreensão

denomina-se “olhar clínico”, que, segundo Michel Foucault (2014, p. 118):

O olhar se realizará em sua verdade própria e terá acesso à verdade das coisas, se se coloca em silêncio sobre elas; se tudo se cala em torno do que vê. O olhar clínico tem esta paradoxal propriedade de ouvir uma linguagem no momento em que percebe um espetáculo. Na clínica, o que se manifesta é originariamente o que fala.

“A linguagem é a manifestação do pensamento de pessoa a pessoa através

da fala, da escrita e por sinais. Se a linguagem traduz o pensamento, nela está

contida a manifestação da vontade (DE PLÁCIDO E SILVA, 1984, p. 93, vols. III e

IV)”, pois, Melius est sensum magis quam verba amplecti62 (NEVES, 1996, p. 334).

O silêncio também pode ser interpretado como algo que a pessoa quer

transmitir, mas não consegue, uma vez que não está preparada para ouvir a

resposta.

A relação médico-paciente requer cuidado, atenção e disposição, em

especial, do profissional da medicina. Não obstante a consulta médica ser marcada

com antecedência, salvo eventual urgência, o tempo dedicado ao paciente é ínfimo,

desde a consulta inicial. Não se trata de consulta com médico particular, cujo valor é

dispendioso, mas sim, de assistência médica pública e privada (operadoras de

planos de saúde).

No início da relação, as partes se apresentam e entabulam breve conversa

técnica. O profissional questiona o paciente a respeito do mal-estar que o incomoda.

O paciente, por seu turno, confiando no conhecimento técnico-científico e nas

habilidades do profissional, expressa com objetividade os sintomas que o afligem. O

profissional o examina com brevidade, solicita exames e prescreve medicamentos

para aliviar o mal-estar, se o caso.

62

Melhor é ater-se ao sentido da palavra que à sua escrita.

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O paciente, externando compreensão no que tange às orientações do

profissional, retira-se do consultório levando consigo a lista de exames que deverá

providenciar com presteza; pois, caso contrário, o seu estado de saúde pode se

agravar.

Gadamer (2006, p. 132-133) entende que, “[...] a fala somente é o que ela é,

quando for diálogo, quando houver uma troca recíproca entre pergunta e resposta”.

Acrescenta o filósofo, que o conceituado “médico da família” inexiste na

atualidade e o “horário de consulta” é inadequado ao diálogo, pois o profissional, na

maioria das vezes, encontra-se absorto “por uma conversa importante com outro

paciente e pelo seu tratamento”, enquanto os demais o aguardam ansiosamente na

sala de espera.

Para Ildo Meyer (2016, p. 110), preocupados em demonstrar ao paciente o

seu conhecimento técnico-científico ou na pressa de liberá-lo, alguns profissionais

fornecem diagnósticos e tratamentos não se preocupando com a escuta, ocorrendo

apenas e tão somente, “uma captura do paciente/sujeito/outro, que será

transformado em conceito/objeto/doença”.

Nessa linha de pensamento, na entrevista publicada no jornal Folha de São

Paulo, o professor de medicina Dr. Abraham Verghese, da Universidade de Stanford

(EUA), afirma que a utilização da tecnologia na atualidade impede a conexão entre o

profissional e o paciente. Assegura que a preocupação dos profissionais volta-se

para o paciente virtual, que denominou “iPatient”, ou seja, “aquele que consta nos

registros eletrônicos”, deixando de lado o “paciente real” que está na cama

hospitalar.

No entender do professor, o exame físico realizado com cuidado transmite a

atenção que o paciente espera do profissional e contribui para a solicitação criteriosa

de exames, reduzindo os custos do sistema de saúde. Acrescenta, por derradeiro,

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118

que cada corpo humano tem sua história e cabe ao profissional “entender a doença

sob a perspectiva do paciente”.63

Depreende-se do exposto que o diálogo é o alicerce que sustenta a relação

médico-paciente, reforçando os elos de empatia e confiança no profissional. Dessa

forma, o diálogo representa a arte de saber ouvir e ser ouvido, cujo aprendizado

requer o respeito à individualidade do paciente contribuindo como fator de

racionalização da judicialização da saúde.

O contato acolhedor, o afeto e a escuta efetiva do médico fortalecem o

vínculo de confiança na atuação ética e humanizada do profissional, contribuindo

para a conscientização do paciente na importância da qualidade de vida saudável e

na sua capacidade de cuidar de sua saúde, através da prática de hábitos saudáveis,

o que pode “redefinir o curso de uma enfermidade e valer uma vida”, como bem

acentua Ildo Meyer (2016, p. 164):

Quase nunca o tempo é o responsável pela falta de afeto na consulta médica. Dez ou quinze minutos de acolhimento, atenção integral e escuta efetiva, facilitando a condução discursiva do paciente, sem julgá-lo como tolo, inverossímil ou absurdo podem contribuir para a fidelização do tratamento e deixar saudade, mesmo se tratando de atendimentos na rede pública. O que o paciente não mais aceita é a hora inteira de consulta médica, sem um único gesto de acolhimento, proximidade existencial ou abraço de olhares. Insensibilidade e indiferença não criando a possibilidade de um encontro de qualidade. Gestos como um aperto de mão, afago na cabeça de uma criança, toque delicado ao realizar um exame, respeito à privacidade do corpo- história do outro, podem, em poucos instantes, redefinir o curso de uma enfermidade e valer uma vida.

Caso contrário, a ausência de respeito dificulta a relação, tornando o contato

mera requisição de exames clínicos, medicamentos, procedimentos e tratamentos

em geral, além de internações, que, caso negadas pelo sistema de saúde público ou

suplementar, são postuladas através de ações judiciais.

63

“Na era do paciente virtual, médicos deixaram o exame físico de lado”. Folha de São Paulo, Saúde + ciência, 1 jul.2015.

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Ensina Perestrello (1996, p. 96) que:

É preciso respeitar a sua individualidade, sua pessoa, começando por ouvir o que a pessoa tem a dizer. Portanto, ao lado das perguntas referidas, as quais constituem o interrogatório dirigido, há que deixar o doente falar e – importantíssimo – ouvi-lo. Ouvi-lo, ainda que as declarações sejam dispersas e pareçam supérfluas, porque poderão proporcionar uma visão significativa da pessoa do doente.

Se a medicina é a arte através da qual se expressam sentimentos,

pensamentos, sensações e ideais do médico e do paciente, a sua interação com a

literatura contribui para a formação humanizada do profissional e a visão holística do

enfermo.

8.6 Literatura e medicina: os textos literários e a formação humanizada do médico

O emérito docente de clínica médica da Universidade Federal do Estado do

Rio de Janeiro (Unirio), Dr. Mário Barreto Correa Lima, em sintonia com o literato

Paulo César dos Santos Leal, publicaram a obra intitulada Disciplina Literatura e

Medicina. A pesquisa do contexto médico em textos literários: uma leitura

transdiscursiva (2013), que versa sobre a interação entre Literatura e Medicina, sob

o prisma da relevância da formação humanizada do profissional da medicina desde

a graduação, através da análise de textos literários.

Na concepção dos autores, a transdisciplinaridade e a transdiscursividade

promovem a integração das diversas áreas de conhecimento, complementando-as,

o que favorece o acadêmico no trato com a patologia, a dor, as emoções, a morte e

o seu papel social, entre outros.

Em conformidade com o tema desenvolvido neste trabalho, serão

destacadas as seguintes obras literárias: - A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói

(1886), e - O Doente Imaginário, de Molière (1673).

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As narrativas que serão transcritas, entretanto, foram extraídas da leitura

integral das obras clássicas mencionadas, seguidas de interpretação própria

relacionada à tese que se busca defender, fundamentada na atuação médica

humanizada como fator contributivo para a racionalização da judicialização da

saúde.

Frise-se que em nenhum momento pretendeu-se o aprofundamento da

análise dos textos literários dentro do contexto médico desenvolvido na obra dos

mencionados autores.

A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói (1886), ilustra o vácuo existente na

relação médico-paciente quando ausente o diálogo. O protagonista é um respeitado

e exemplar magistrado que cumpre seus deveres com honestidade e severidade.

Contraiu núpcias com Prascóvia Fiodorovna Michel, com quem manteve um

relacionamento conjugal conturbado. Certa vez, ao ser promovido, encontrou uma

casa que o satisfazia, bem como sua família. Iniciou, então, a reforma do local para

posterior mudança. Ao orientar um funcionário que laborava na obra, subiu na

escada, momento em que “deu um passo em falso, escorregou, mas, como era ágil

e forte, conseguiu se aprumar e apenas bateu de lado na moldura da janela”.

Ivan Ilitch vivia com saúde e tranquilidade, não obstante os frequentes atritos

com a esposa. Ocorre que o lado esquerdo do ventre passou a incomodá-lo,

tornando-o cada vez mais irritado, sendo orientado pela esposa a consultar um

médico renomado, o que concordou, marcando consulta.

É imperioso, nesse instante, transcrever a percepção do protagonista no

contato com o profissional:

Tudo se passou como previa e como se passa sempre: a longa espera, o ar doutoral tão seu conhecido, pois era o ar que gastava no tribunal, a percussão, a auscultação, as perguntas de praxe, que pediam respostas formuladas de antemão e perfeitamente inúteis, e a importância com que dava a entender: basta que se submeta a nós e tudo resolveremos – sabemos muito bem como se resolvem esses casos, sempre da mesma maneira para qualquer paciente.

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Exatamente como no tribunal. Assim como representava uma farsa diante dos acusados, o famoso médico representava para ele. O clínico dizia: isto e aquilo indicam que o senhor tem isto ou aquilo; mas se o exame não confirmar que o senhor tem isto e aquilo, devemos levantar a hipótese de ter isto ou aquilo. E supondo-se que sofre disto ou daquilo, então... e assim por diante (TOLSTÓI, 2013, p. 38-39).

Percebe-se que a inquietação do paciente gravitava em torno do desconforto

que sentia, mas o profissional o ignorava, faltando-lhe com a devida atenção e

respeito:

Não estava em pauta a vida de Ivan Ilitch, mas sim decidir pelo rim ou pelo ceco. E o facultativo brilhantemente resolveu, segundo pareceu a Ivan Ilitch, a favor do ceco, ressalvando, porém, que um exame completo de urina poderia fornecer novos subsídios para a possível reconsideração do diagnóstico. Exatamente o que Ivan Ilitch fizera mil vezes, e com o mesmo brilhantismo, em relação a um acusado. De maneira igualmente brilhante, o médico fez a sua conclusão e, triunfante, e até jubilosamente, olhou por cima dos óculos para o acusado. Mas Ivan Ilitch, pela conclusão científica, inferiu que as coisas andavam mal para seu lado, embora isto fosse indiferente para o médico e talvez para todo mundo. E a conclusão chocou-o profundamente, despertando nele um grande sentimento de comiseração por si mesmo e de ódio ao médico, pelo pouco caso com que encarava matéria de tamanha importância (TOLSTÓI, 2013, p. 39).

O distanciamento do profissional em relação às emoções de Ivan Ilitch é

patente, provocando-lhe indignação e revolta:

Calado ficara. Levantou-se, pôs o dinheiro da consulta na mesa, deu um suspiro e só então falou: - Nós os doentes talvez façamos muitas perguntas inconvenientes. Todavia, aventuro-me a perguntar se o que tenho é grave ou não? O médico olhou-o severamente por trás dos óculos, fechando um olho, como se dissesse: ”Acusado, se não se restringir às perguntas que lhe foram formuladas, serei obrigado a mandá-lo retirar do recinto”. Mas, na verdade, respondeu: - Eu já disse ao senhor aquilo que considero necessário e oportuno. A análise da urina indicará o restante.- E fez-lhe uma saudação de despedida (TOLSTÓI, 2013, p. 39).

Observa-se que o protagonista faz comparações entre a sua conduta como

magistrado e a conduta do profissional da medicina, ambas denotando frieza e o

cumprimento do sacerdócio sem benevolência e complacência pelo próximo.

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Após a consulta, Ivan Ilitch ocupa-se com as orientações do médico, leitura

de obras de medicina e consulta a outros clínicos, pois a dor não amenizava, não

obstante tentar se convencer de sua melhora.

Ao consultar outros profissionais, tinha a sensação de piora do quadro

clínico, o que acentuava o medo, as dúvidas e incertezas, tornando-o incrédulo

quanto ao tratamento prescrito:

Um médico homeopata externou uma opinião diferente de todos e, por uma semana, Ivan Ilitch tomou, às escondidas, o remédio que ele receitara. Passada a semana, não sentindo nenhuma melhora, perdeu tanto a confiança no tratamento homeopático quanto no alopático e ficou mais abatido (TOLSTÓI, 2013, p. 42).

O tempo transcorria e Ivan Ilitch sentia em sua alma a chegada do fim, mas

não foi capaz de compreender a razão de tudo o que estava acontecendo. Pensou

que não vivera como deveria e sofria com a mentira aceita por todos que estavam

ao seu redor, qual seja, de que se encontrava doente e não moribundo. Irritava-se

por participar dessa farsa.

O pânico tomou conta do ser que se sentia abandonado pela família, amigos

e médicos (dor social). É nesse instante que se percebe a necessidade do enfermo

de receber a atenção e o carinho da família. O único que o acompanhava e o

compreendia era o escravo Guerássim, que estava sob o seu domínio, e o fazia

sentir-se reconfortado ao seu lado:

Via que ninguém tinha piedade dele, porque ninguém tentava sequer compreender a sua situação. Somente Guerássim compreendeu-o e compadeceu-se. E era por isto que Ivan Ilitch só se sentia bem na companhia dele. Mostrava-se aliviado quando Guerássim segurava-lhe as pernas, às vezes por uma noite inteira [...] (TOLSTÓI, 2013, p. 56).

A impotência diante da morte, inevitável, e a solidão que sentia pelo descaso

daqueles que lhe eram caros debilitava-o diariamente, até porque se sentia incapaz

de externar sua carência emocional e espiritual, pois, como sói acontecer, foi um

profissional austero e severo e assim conduziu sua vida até o óbito:

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Momentos havia, depois de demorados sofrimentos, em eu queria acima de tudo, por mais que se envergonhasse de confessá-lo, ver-se tratado como se fosse uma criança doente. Queria ser acarinhado, mimado, beijado, tal como se faz com as crianças. Sabia que era um juiz importante, dono já de uma barba grisalha e que por isto mesmo o que ambicionava era impossível, mas ainda sim ambicionava. E no comportamento de Guerássim para com ele havia qualquer coisa próxima daquilo que queria e de tal forma sentia-se um pouco confortado. Ivan Ilitch queria chorar, queria ser acariciado e consolado, mas quando chegava o seu colega Chebek, em vez de lágrimas e enternecimentos, Ivan Ilitch punha no rosto uma máscara de seriedade, dignidade e profundeza e, pela força do hábito, trocava opiniões sobre determinado acórdão da Corte de Apelação e obstinadamente defendia seu ponto de vista. A falsidade à sua volta e dentro dele envenenou mais do que tudo os seus derradeiros dias (TOLSTÓI, 2013, p. 57).

As visitas que recebia do médico o tornavam mais cético e ratificavam o seu

óbito, pois a dor moral era lancinante se comparada à dor física. As pessoas não

interpretavam suas emoções, o seu olhar e suas parcas palavras, o que dificultava a

compreensão e, consequentemente, o diálogo. O contato limitava-se as conversas

efêmeras entre médico e paciente, conforme se observa:

- Muito bem, como vai? Ivan Ilitch tem a nítida impressão de que o médico gostaria de dizer: “Como vão os negócios?” Como isto, porém, não tem propósito ali, diz: - Como passou a noite? Ivan Ilitch olha para o médico, como a perguntar: ”Será crível que você não tenha vergonha de mentir?” Mas o médico não quer saber de tal pergunta e Ivan Ilitch se queixa: - Tão mal como ontem. A dor não cessa. Se fosse possível fazer alguma coisa para atenuá-la... “Todos os doentes são a mesma coisa [...] (TOLSTÓI, 2013, p. 60).

Apesar de as injeções de morfina e ópio aliviarem temporariamente o mal-

estar, o paciente permanecia inerte e relembrava sobre sua vida desde a infância

até o presente, e tudo parecia insignificante: “E quanto mais longe da infância e mais

perto do presente, tanto mais as alegrias que vivera lhe pareciam insignificantes e

vazias (TOLSTÓI, 2013, p. 66)”.

Dessume-se que somente o protagonista sentiu a denominada “dor total”

que, Cicely Saunders, citada por Luciana Berthachini e Leo Pessini no texto

Conhecendo o que são os cuidados paliativos: conceitos fundamentais (2011, p. 47),

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conceituou como um “complexo de elementos físicos, emocionais, sociais e

espirituais da pessoa humana”.

É o momento em que o eu, com o corpo deteriorado, sem controle do que

esta ao seu redor, isolado e abandonado, se coloca face a face com suas

singularidades e, ato contínuo, passa a refletir sobre o sentido e o significado do seu

viver, em razão da sua natureza finita.

Le Malade Imaginaire (O Doente Imaginário), dramaturgia francesa de

Molière (1673, p. 18), “[...] é um protesto da inteligência e do corpo contra a

implacável destruição imposta pela doença, contra a impotência humana, contra a

exploração de alguns da miserável condição humana”.

Trata-se de uma peça teatral encenada em Paris, cujo protagonista e doente

imaginário é a pessoa de Argan.

No segundo prólogo (1674), o cenário campestre apresenta poesias pastoris

(éclogas), quase sempre na forma de diálogos. Destaca-se a “Queixa da Pastora”,

que não encontra medicamento para suavizar as penas que a incomodam. Faunos e

Egípcios participam do seu lamento, que expressa sua insatisfação com o

profissional da medicina, tratando o seu conhecimento técnico-científico como pura

utopia, ilusão ou fantasia (p. 36-37):

Vosso mais alto saber não passa de pura quimera, Vãos e pouco sábios médicos; Vós não podeis curar, com vosso grande falar em latim A dor que me desespera: Vosso mais alto saber não passa de pura quimera. Ai de mim! Não ouso revelar Meu martírio de amor Ao pastor por quem suspiro, E só ele poderia me acudir. Não pretendais terminá-lo Médicos ignorantes, vós não saberíeis o que fazer: Vosso mais alto saber não passa de pura quimera. Esse remédio incerto, de quem o homem vulgar Crê que conheceis a virtude admirável, Para o mal que me aflige nada tem de salutar;

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E todo vosso falatório só pode ser ouvido Por um Doente imaginário.

Vosso mais alto saber não passa de pura quimera, Vãos e poucos sábios médicos; Vós não podeis curar, com vosso grande falar em latim A dor que me desespera; Vosso mais alto saber não passa de pura quimera.

As economias de Argan se desvanecem paulatinamente com a astúcia de

Purgon (médico) e Fleurant (boticário), diante da prescrição desenfreada de

medicamentos e clisteres (p.15), o que ratifica a nosomifalia do protagonista.

No Ato I, Cena V, evidenciando um egoísmo ímpar e para facilitar as

consultas médicas, prescrição de receitas e aquisição de medicamentos, Argan

tenciona casar sua filha Angèlique com um futuro profissional da medicina, sobrinho

de Purgon, argumentando:

[...] estando enfermo e adoentado como estou, quero ter um genro e aliados médicos para ter bons apoios contra a minha doença, ter na família as fontes dos remédios necessários e das consultas e receitas. É para mim que lhe dou este médico: e uma boa filha deve ficar feliz com aquilo que é útil (MOLIÈRE, 2014, p. 55).

No Ato II, Cena V, ao entabular uma conversa com Diafoirus (médico e

genitor de um pretende de sua filha), indagando-o sobre a futura formação

profissional de seu filho no curso de medicina, Diafoirus, evidenciando insatisfação

com os pacientes nobres, que entendem que o médico tem o dever de curá-los,

demonstra simpatia no trato com o público, conveniente e tolerante:

-Para falar francamente, a nossa profissão junto aos nobres nunca me pareceu agradável, e sempre achei que era melhor para nós ficarmos junto ao público. O público é mais cômodo. O senhor não tem de responder por seus atos e, contanto que siga a regra da arte, não somos culpados pelo que acontece. Mas o que há de chato com os nobres é que quando ficam doentes, querem a todo custo que os seus médicos os curem (MOLIÈRE, 2014, p. 93).

No Ato III, Cena III, em conversa com Béralde, seu irmão médico, ao expor

sua pretensão em casar a filha com um médico, em benefício próprio e da família, o

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irmão, indignado, repreende seu comportamento, pois, ao que tudo indica, Béralde

está incrédulo no que tange à doença de Argan.

No seu entender, Argan é um hipocondríaco estimulado por Purgon,

conforme se observa na conversa entabulada entre os irmãos:

-Será possível que sereis sempre apaixonado dos vossos boticários e médicos, e que vá querer ser doente apesar das pessoas e da natureza? -Como entende isso, meu irmão? -Entendo, meu irmão, que não vejo pessoa que esteja menos doente do que vós, e que eu não pediria melhor constituição do que a vossa. Uma grande prova de que andais bem, e que tendes um corpo perfeitamente bem regulado, é que com todos os remédios que já tomastes, ainda não conseguistes estragar a vossa saúde. Vê que não estais morto com todos os medicamentos que lhe fizeram tomar. -Mas sabeis, meu irmão, que é isto que me conserva, e que o senhor Purgon disse que eu sucumbiria se ele ficasse somente três dias sem me tratar? -Se não tomais cuidado ele lhe tratará tanto que o enviará ao outro mundo. (MOLIÈRE, 2014, p.115).

Intrigado com a sinceridade do irmão, Argan o indaga a respeito de sua

credulidade na medicina. Nesse instante, Béralde inicia com Argan um diálogo

percuciente:

-Não, meu irmão, e não creio que pela sua salvação seja necessário acreditar. -Como! Não acha verdadeiro algo reconhecido por todo o mundo e que todos os séculos reverenciaram? -Além de não considerá-la verdadeira, acho, cá entre nós, que é uma das maiores loucuras que há entre os homens, e, a ver as coisas como filósofo, não vejo farsa mais ridícula do que um homem que quer meter-se a curar outro. -Por que não crês, meu irmão, que um homem possa curar outro? -Pela razão, meu irmão, de que os mecanismos da nossa máquina são mistérios, até hoje, em que os homens nada enxergam, e que a natureza colocou em frente de nossos olhos véus por demais espessos para entendermos alguma coisa. -Os médicos então não sabem nada, na sua opinião? -Sabem, meu irmão. Eles sabem, em sua maioria, línguas antigas, sabem falar belo latim, sabem nomear em grego todas as doenças, defini-las e dividi-las; mas no que tange a curá-las, isso é que não sabem (MOLIÈRE, 2014, p. 116).

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A insistência de Argan em convencer o irmão de sua imaginária doença e

de que o médico tem conhecimento técnico-científico para detectá-la e curá-la resta

patente no diálogo entre ambos:

-Mas é preciso pelo menos convir que deste assunto os médicos sabem mais do que os outros. -Eles sabem, meu irmão, o que lhe disse, que não curam muita coisa, e que toda a excelência da arte deles consiste num pomposo jargão, num linguajar especioso que lhe dá palavras por razões e promessas por efeitos. -Mas afinal, meu irmão, há pessoas tão sábias e tão inteligentes quanto vós e vemos que na doença todos apelam para os médicos. -É um traço da fraqueza humana e não da verdade de sua arte (MOLIÈRE, 2014, p. 116).

Para convencer Béralde da conduta ética de Purgon, Argan afirma que o

irmão tem certa animosidade com o profissional. Nesse momento, para afrontá-lo,

Argan o indaga sobre o que fazer quando se está doente, o que Béralde responde:

“nada, meu irmão”.

Inconformado, Argan não entende o significado do vazio da resposta do

irmão e insiste na pergunta:

-Nada? -Nada. É preciso só manter-se em descanso. A natureza, por si própria, quando a deixamos operar, tira-se aos poucos da desordem em que caiu. É a nossa inquietude, a nossa impaciência, que tudo estraga, e quase todos os homens morrem dos seus remédios, e não da sua doença. -Mas é preciso reconhecer, meu irmão, que se pode ajudar a natureza com certas coisas. -Meu Deus, meu irmão, são puras ideias em que queremos acreditar, e de todos os tempos, introduziram-se entre os homens belas imaginações que vamos crer porque nos agradam, e seria desejável que fossem verdadeiras. Quando um médico lhe fala de ajudar, socorrer, aliviar a natureza, de tirar-lhe o que prejudica e dar-lhe o que falta, de restabelecê-la na plena facilidade de suas funções; quando ele lhe fala em purificar o sangue, refrescar as entranhas e o cérebro, desinchar o baço, ordenar o peito, consertar o fígado, fortificar o coração, em restabelecer e conservar o calor natural e em ter segredos para prolongar a vida muitos anos, ele está contando-lhe justamente o romance da medicina. Mas, quando se dá importância à verdade e à experiência, não se encontra nada disto tudo, e ficamos como nestes belos sonhos que deixam, ao despertar, a saudade de havermos acreditado (MOLIÈRE, 2014, p. 118).

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Demonstrando irritação com a soberba de Béralde, o protagonista o desafia

asseverando que a ciência mundial está somente em sua cabeça, bem como que

quer saber mais dos que os outros profissionais da área da medicina. Béralde, com

muita paciência, responde ao irmão:

-Nos discursos e nos fatos são dois tipos de gente os vossos grandes médicos: ouçam-nos falar, os mais hábeis do mundo; vejam-nos agir, os mais ignorantes dos homens. -Eu, meu irmão, não tenho por profissão combater a medicina, e cada um, assumindo o risco, pode acreditar no que quiser. O que digo, é cá entre nós, e teria desejado poder tirá-lo um pouco do erro em que estais, e, para diverti-lo, levá-lo a assistir no caso algumas das comédias de Molière (MOLIÈRE, 2014, p. 118).

Nesse momento crucial, Argan dirige-se a Béralde criticando as comédias de

Molière, pois, na sua linha de raciocínio, ele deseja “divertir-se com pessoas

honestas como os médicos”. Béralde, sem parcimônia, responde ao irmão: “Não é

dos médicos que ele brinca, mas do ridículo da medicina (MOLIÈRE, 2014, p. 118)”.

Convém mencionar a breve conversa entre Fleurant (boticário) e Béralde

(Cena IV), quando o primeiro se dirige à residência de Argan para proceder à

lavagem prescrita por Purgon. Béralde convence o irmão a deixar para outra

oportunidade para que possa descansar. Argan, então, dispensa Fleurant, que,

inconsolável, volta-se para Béralde dizendo:

-Como o senhor se atreve em opor-se às receitas da medicina e impedir-me de aplicar o meu clister? Sois bem jocosos em ter este atrevimento. -Ora, senhor; bem se vê que não estais acostumado a falar com rostos (MOLIÈRE, 2014, p. 120).

A predisposição das partes, em saber ouvir e ser ouvida, contribuiu para que

Argan fosse convencido por Béralde de que era um doente imaginário, cuja

fragilidade emocional e a ausência do olhar clínico de Purgon, culminariam em

torná-lo um doente em potencial, caso persistisse na ingestão medicamentosa

desenfreada.

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Nesse contexto literário, observa-se que um fator contributivo para a

judicialização da saúde na sociedade contemporânea é a ausência da linguagem na

relação médico-paciente, que envolve a compreensão e a intepretação das suas

fragilidades e emoções, inerentes a todo ser humano.

A conduta mercantilista do profissional que almeja transformar o doente

imaginário em doente potencial, também contribui para a judicialização da saúde, à

medida que a excessiva prescrição de medicamentos e indicação de procedimentos

ou tratamentos de tecnologia avançada não são disponibilizados pelo Sistema Único

de Saúde – SUS ou são negados pelos planos ou seguros de saúde.

A judicialização assenta-se em casos concretos, cuja primazia é o interesse

individual em detrimento do interesse coletivo. O bem comum torna-se secundário, o

que propicia a fragmentação dos serviços públicos e privados na área da saúde. A

consequência nefasta é a falta de recursos, precariedade do atendimento e a

insatisfação dos profissionais da área da saúde e consumidores.

8.7 Aristóteles e a Teoria das Virtudes: a conquista do viver bem

Aristóteles (384 a.C-322 a.C.), filósofo grego natural de Estagira, foi

discípulo de Platão na Academia Platônica (Liceu) e preceptor de Alexandre, o

Grande.

O conceito de felicidade para o filósofo grego é o “viver bem”, um fim em si

mesmo e não um meio para alcançar determinado fim, como bem assenta Mortimer

J. Adler (2010, p. 99), “[...] é o fim último ou definitivo de todas as nossas ações na

vida – o bem que buscamos por causa dele mesmo e não de outro bem ulterior”.

A conquista do “viver bem”, todavia e, segundo Adler (2010), requer a

atuação conjunta de outros bens, que representam os meios para a conquista do fim

último que é a felicidade. São eles: “bens corporais (saúde, vitalidade e vigor),- bens

externos ou riqueza (alimentação, bebida, vestuário e sono) e - bens da mente

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(psicológicos), que se reportam ao saber prático e as capacidades, entre elas, o

pensamento (2010, p.101-103)”.

Infere-se que os bens elencados estão concatenados, uma vez que o

almejado “viver bem” carece de equilíbrio e reflexão contínua do ser, no que se

refere as suas escolhas e decisões afetas à satisfação de suas necessidades

prementes, bem como da sociedade em que se encontra inserido, visando o bem

estar social.

A virtude e a vida completas compõem a felicidade plena no entender de

Aristóteles. A Teoria das Virtudes aristotélica divide-se em: virtudes intelectuais e

virtudes morais.

As virtudes intelectuais compreendem a sabedoria, o entendimento e a

prudência; ao passo que as virtudes morais ou éticas envolvem a generosidade e

a temperança.

O intelecto é produzido e aprimorado pelo indivíduo através das experiências

vivenciadas no cotidiano e pela sua disposição e interesse em aprofundar-se no

conhecimento por meio da leitura e da observação acurada do que está ao redor.

As virtudes morais ou éticas, por seu turno, são desenvolvidas através do

hábito de escolher o que é certo, em detrimento do que é errado e prejudicial.

As decisões e escolhas certas dos bens que estão a disposição do indivíduo

caminham em direção à conquista do “viver bem”, ao passo que as decisões e

escolhas erradas, que Aristóteles denomina ”vícios”, caminharão em direção oposta.

(ADLER, 2010, p. 109).

Nesse contexto, o filósofo grego conduz à reflexão sobre a temperança, isto

é, a mediania entre os extremos, uma vez que conduz ao equilíbrio e ao bom senso,

que auxiliam o indivíduo no discernimento para a escolha de bons hábitos,

esforçando-se, pois, para afastar-se dos vícios, dos prazeres e das paixões que o

afligem.

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De se notar que cada indivíduo, sem exceção, é o autor e protagonista da

sua história, sendo que a sua determinação e empenho para fazer as escolhas e

decisões corretas, espontâneas e conscientes, definirão o desfecho de sua obra.

É certo que o imprevisível não deve ser interpretado precipitadamente como

uma escolha ou decisão certa ou errada do indivíduo, pois este é surpreendido pelo

inesperado, sendo coerente, pois, a análise do contexto do ocorrido.

A elaboração dessa história não requer apenas a participação do homem,

pois na sua criação e desenvolvimento a contribuição da família, do círculo de

amizades e da sociedade em geral não pode ser suprimida.

A virtude moral da generosidade também requer o equilíbrio entre os

extremos, quais sejam a avareza e a extravagância. A escolha certa para a busca do

“viver bem” é um conflito diário da vida humana, que requer uma solução lastreada

na sabedoria e na mediania.

Na atuação médica humanizada, as virtudes intelectuais e morais ou éticas

orientam a conduta do profissional da medicina, em especial, a prudência (sabedoria

prática), do latim prudentia (previsão, sagacidade).

Oscar Wilde (2014), ao versar sobre a prudência, estabelece uma relação da

sua importância com a confiança, a cautela e a distinção, esta última, em certas

circunstâncias, é mais vital do que a sinceridade.

Em situações de extrema gravidade envolvendo o paciente, o médico deve

direcionar sua conduta com prudência a fim de evitar conflitos entre as partes,

incluindo os familiares do paciente, que podem culminar no retrocesso de eventual

tratamento.

Em publicação científica na Revista Biomédica64, Fátima Geovanini e

Marlene Braz (2013) abordam sobre os Conflitos éticos na comunicação de más

64

Revista Bioética – Conselho Federal de Medicina – nº 3, volume 21, 2013, p. 455-462.

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132

notícias em oncologia, doença que qualificam como “um problema de saúde

pública”, em face do seu crescimento mundial.

Segundo as pesquisadoras, no decorrer do trabalho científico realizado com

um seleto grupo de profissionais oncologistas de diferentes gerações e com atuação

na rede pública e privada, a preocupação precípua foi a formação de uma deleitável

relação médico-paciente, considerada fundamental para a condução do tratamento e

transmissão da patologia que o acomete, a fim de evitar eventual piora do estado

físico e emocional.

A dificuldade em aceitar a finitude da vida por parte do paciente e familiares

favorece conflitos éticos que conduzem o profissional a revelar o diagnóstico sem

clareza e objetividade, disseminando a denominada “mentira piedosa” ou “falsidade

benevolente”.

É nesse momento que a experiência do profissional, acompanhada de

cautela e sensatez, contribui para a ponderação dos meios disponíveis e posterior

escolha ou decisão virtuosa, cujo risco e prejuízo não são descartados; porém,

podem ser minimizados, sem desrespeito à autonomia do paciente.

Sustenta René Descartes (2003, p. 67) que a disposição da vontade do ser

humano deve sempre estar voltada a:

[...] uma firme e constante resolução de fazer exatamente todas as coisas que julgarmos serem as melhores e empregar todas as forças de nosso espírito em conhecê-las bem. É só nisso que consistem todas as virtudes; é só isso que, propriamente falando, merece louvor e glória; enfim, é só disso que resulta sempre o maior e mais sólido contentamento da vida. Assim, estimo que é nisso que consiste o soberano bem.

De todo o exposto, concluiu-se que os extremos revelam-se desfavoráveis,

ou seja, entre a “mentira piedosa” e a “verdade escancarada”, é de bom alvitre a

“verdade prudente”, conceituada como, “a colocação da verdade possível e

adequada às necessidades individuais de cada paciente”.

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9 CONCLUSÃO

A proteção dos direitos e garantias fundamentais elencados na Constituição

da República de 1988 constitui um desafio a ser enfrentado na sociedade hodierna

para o efetivo exercício da cidadania.

O direito fundamental social à saúde, inseparável do direito à vida, requer do

Poder Estatal uma atuação comprometida com o princípio da dignidade da pessoa

humana, disponibilizando ao cidadão um tratamento adequado ao atendimento de

suas necessidades vitais, que assegure o mínimo existencial na área da saúde.

A melhora na condição de vida dos cidadãos vincula-se à infraestrutura

sanitária básica, lastreada nos determinantes sociais da saúde, como também na

sua promoção, consubstanciada no acompanhamento do ser desde a concepção

prolongando-se até a sua finitude, educando-o e conscientizando-o da importância

do desenvolvimento de hábitos saudáveis e favoráveis à qualidade de vida digna e

ao bem-estar social.

A promoção da saúde, pois, é um compromisso público que envolve a

participação comunitária e a integração dos setores público e privado na alocação

de recursos destinados ao ‘cuidado em saúde’, com ênfase nas ações e programas

de saúde da família, atentando-se às peculiaridades do contexto social, ambiental,

cultural e econômico em que está inserida.

Estabelecidas as diretrizes e estratégias para promover a saúde, mister se

faz definir a estrutura dos serviços e ações que serão oferecidos, considerando o

encontro clínico entre o paciente e o médico, guardião da saúde e da vida com

dignidade.

A vivência do ser com um desequilíbrio interior constitui um estímulo à

reflexão da sua existência, incluindo as escolhas feitas ao longo da vida. O

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sentimento de impotência diante do desequilíbrio conduz o paciente a interpretações

subjetivas acerca do desconhecido que o atemoriza.

É nesse momento de fragilidade e vulnerabilidade do paciente que o

encontro clínico com o médico constitui fator contributivo para a racionalização da

judicialização da saúde, na medida em que o profissional oferece uma assistência

humanizada centrada na pessoa do paciente, incentivando a manutenção da sua

saúde através do cuidado adequado às suas reais necessidades.

A atuação médica humanizada não considera o paciente um mero caso

clínico, cujo estudo científico contribui para o aprimoramento do conhecimento; pelo

contrário, a conduta do profissional fundamenta-se na ética, no bom senso, na

prudência e no sentimento de solidariedade.

A construção dos pilares da atuação médica humanizada constitui um

processo contínuo de empatia, confiança e diálogo com o paciente, valorizando o

ser humano na sua integralidade, aprofundando-se nas entranhas da sua

singularidade, complexidade, limitações e emoções, compreendendo as suas

necessidades e respeitando a sua autonomia sobre o direito à sua própria vida, que

nada mais é do que o direito à vida digna.

A atuação médica humanizada não constitui uma característica essencial da

profissão, mas sim, uma habilidade que se desenvolve e se aperfeiçoa no contato

com o paciente e familiares que participam da relação. Requer do profissional uma

troca recíproca de afeto, respeito e consideração pelo ser único e dotado de

personalidade própria, acompanhado de suas peculiaridades, o que o torna mais

sensível aos sentimentos de sofrimento e dor.

A interação do ser humano com o seu semelhante é complexa, pois cada ser

traz consigo os valores e crenças transmitidos no contato e na convivência com a

família, os quais, posteriormente, são compartilhados em sociedade. Ao ser

confrontado por um desequilíbrio interior, a vulnerabilidade e a fragilidade do ser o

conduzem à procura de auxílio, afeto e compreensão.

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O conhecimento técnico-científico e as habilidades do profissional aliados à

sua experiência possibilitam a percepção das expectativas do paciente desde o

primeiro contato e direcionam a comunicação a ser estabelecida entre as partes

para que se proceda à anamnese seguida do exame clínico, procedimentos que

requerem a atuação pessoal do médico e não devem ser substituídos pelos meios

eletrônicos de comunicação.

A despeito do avanço tecnológico na medicina contemporânea disponibilizar

ao médico recursos de última geração no que tange a tratamentos, procedimentos e

medicamentos destinados à qualidade de vida saudável, à prevenção ou à cura de

doenças, o processo terapêutico não deve se sobrepor ao processo educacional de

formação de hábitos saudáveis a ser desenvolvido e valorizado na promoção da

saúde.

Caso contrário, os custos da saúde pública e suplementar serão elevados,

sem resultado análogo na qualidade de vida e bem- estar do indivíduo e da

coletividade, uma vez que o tecnicismo constitui um incentivo ao ajuizamento

descontrolado de demandas judiciais para o deferimento de tratamentos,

procedimentos ou medicamentos sem a observância acurada das necessidades do

paciente e dos benefícios substanciais futuros, o que inviabiliza a prestação de

serviços de qualidade e acentua as desigualdades sociais na área da saúde.

Constatado o diagnóstico, cabe ao profissional estabelecer os objetivos e as

metas a serem alcançadas e, com transparência, informá-las detalhadamente ao

paciente, compartilhando-as, de modo que se torne corresponsável no cuidado com

a sua saúde.

O respeito ao ser humano na sua integralidade, incluindo os seus direitos,

deveres, garantias e liberdade para a adesão terapêutica proposta pelo médico,

deve pautar-se nos princípios da autonomia, beneficência, não-maleficência e

justiça.

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O paciente ou seu representante legal, devidamente informado e dotado de

discernimento, tem autonomia para escolher dentre as possibilidades apresentadas

pelo médico àquela que lhe propicie o direito à vida digna.

A atuação do médico é limitada, sendo certo que o bem maior denominado

vida prevalece sobre o prolongamento de um sofrimento. Ademais, não se trata de

questionar se a última palavra deve ser do profissional ou do paciente, pois,

sopesando os benefícios e os malefícios, a clareza do tratamento deve preponderar

inclusive contra o bom senso técnico.

Promover a saúde é uma responsabilidade social e uma vez oferecida as

condições mínimas necessárias ao atendimento primário, a valorização do ser

humano na sua totalidade e o respeito à vida com dignidade constituem a virtude

soberana do profissional da medicina na prática do bem, o que ratifica a importância

da atuação médica humanizada como fator contributivo para a racionalização da

judicialização da saúde.

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