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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC-SP
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM DIREITO
ANDRÉIA MAURA BERTOLINE REZENDE DE LIMA
A ATUAÇÃO MÉDICA HUMANIZADA NA PROMOÇÃO DA SAÚDE
DO PACIENTE COMO FATOR CONTRIBUTIVO PARA A
RACIONALIZAÇÃO DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE
DOUTORADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2016
ANDRÉIA MAURA BERTOLINE REZENDE DE LIMA
A ATUAÇÃO MÉDICA HUMANIZADA NA PROMOÇÃO DA SAÚDE
DO PACIENTE COMO FATOR CONTRIBUTIVO PARA A
RACIONALIZAÇÃO DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE
DOUTORADO EM DIREITO
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito, sob a orientação da Professora Doutora Regina Vera Villas Bôas.
SÃO PAULO
2016
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________
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_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
À Júlia, pequena e notável companheira de todos os
momentos.
A Ismael, pelo carinho e incentivo.
À Ilka (in memoriam) e Marina (in memoriam), pelo amor,
dedicação e apoio incondicionais.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, por tudo.
Agradeço à orientadora Dra. Regina Vera Villas Bôas, por acreditar na
importância do cuidado humanizado na saúde para o resgate do acolhimento, do
amor e da valorização do ser humano na sua integralidade.
Agradeço ao Dr. Paulo Sérgio Camin Calixto, pelo suporte, incentivo e
exemplo de determinação e superação das dificuldades.
Agradeço ao Dr. Guilherme Mendes Filho, médico e diretor administrativo do
Instituto Paulista de Cancerologia – IPC, pelo acolhimento e transmissão de
experiências profissionais, que ratificam a importância da atuação médica
humanizada no cuidado com o paciente, para a valorização da vida, da
autodeterminação, da dignidade e do respeito ao semelhante.
Agradeço à Vera Anita Bifulco, psicooncologista do Instituto Paulista de
Cancerologia – IPC, pela oportunidade de conhecer a atuação de uma equipe
multidisciplinar humanizada, cujo acolhimento e cuidado com o paciente amenizam a
dor, o sofrimento e a angústia da terminalidade da vida.
The good physician treats the
disease; the great physician treats
the patient who has the disease.
William Osler
RESUMO
O direito fundamental social à saúde, indissociável do direito à vida, deve receber a proteção do Estado através da promoção da saúde, cuja prevenção de doenças encontra-se inserida nas estratégias e diretrizes articuladas para promover a qualidade de vida digna e o bem-estar social. Promover a saúde é favorecer a melhoria da condição de vida dos cidadãos, ponderando as peculiaridades e prioridades da comunidade, inserida num contexto sistêmico de integração com os setores público e privado, que devem alocar recursos com racionalidade e eficiência, dando primazia ao atendimento dos interesses da coletividade. O cuidado em saúde inicia-se com a concepção e deve acompanhar todas as etapas da vida até a sua terminalidade. É um processo contínuo de educação, motivação individual e coletiva direcionado à corresponsabilidade de cada indivíduo, pela escolha do estilo de vida, dentro do contexto do ambiente em que está inserido, respeitando a sua autonomia, crenças e valores morais. Alicerçada na dignidade da pessoa humana, a promoção da saúde direciona-se à atenção primária, que consiste no atendimento das necessidades vitais do ser, visando o acesso universal com equidade e eficiência aos serviços de saúde ou ao tratamento adequado ante o desequilíbrio diagnosticado. O paciente não é um mero objeto de estudo científico e da tecnologia de última geração. O médico, por seu turno, não é apenas um técnico dotado de conhecimento científico e habilidades para tratar do paciente. Partindo da promoção da saúde, através da atenção primária, analisa-se o encontro clínico do paciente com o médico, protagonistas principais de uma relação interpessoal de valorização da vida, de solidariedade ao próximo e de acolhimento de um ser vulnerável e fragilizado diante do desconhecido. É nesse momento que a atuação médica humanizada, centrada na pessoa do paciente e não na patologia, constitui fator contributivo para a racionalização da judicialização da saúde, tema do presente estudo analítico e reflexivo, cujo fundamento legal é o direito à saúde e à vida com dignidade. Racionalizar a judicialização da saúde não se restringe tão somente na crítica ao controle jurisdicional de políticas públicas de saúde e na observância do rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Racionalizar a judicialização da saúde consiste, acima de tudo, na valorização do ser humano na sua integralidade, estabelecendo, com este, uma relação de empatia, confiança e diálogo. Palavras-chave: Direito fundamental social à saúde. Direito à vida com dignidade. Promoção da saúde. Atenção primária. Paciente. Médico. Humanização. Racionalização. Judicialização da saúde.
ABSTRACT
The fundamental social right to health, which is inseparable from the right to life, must receive the protection of the State through health promotion, whose prevention of diseases is inserted in the strategies and guidelines articulated to promote a decent quality of life and social well-being. To promote health is to promote the improvement of the living conditions of citizens, considering the peculiarities and priorities of the community, inserted in a systemic context of integration with the public and private sectors, which must allocate resources with rationality and efficiency, giving priority to meeting the interests of the collectivity. Health care begins with conception and must accompany all stages of life until its termination. It is a continuous process of individual and collective education and motivation directed to the co-responsibility of each individual for the lifestyle choice, within the context of the environment in which it is inserted, respecting its autonomy, beliefs, and moral values. Based on the dignity of the human person, health promotion is directed at primary care, which consists in meeting the vital needs of the person, aiming at the universal access to health services or appropriate treatment, with equity and efficiency, in the face of the diagnosed disequilibrium. The patient is not a mere object of scientific study and of the latest technology. The doctor, for his part, is not just a technician with scientific knowledge and skills to treat the patient. Starting from the promotion of health through the primary care, we analyze the clinical encounter of the patient with the physician, the main protagonists of an interpersonal relationship that cherishes life, has solidarity with others, and welcomes a vulnerable and fragile being facing the unknown. It is at this moment that humanized medical care, centered on the patient's person and not on his pathology, is a contributory factor to the rationalization of health judicialization, the subject of this analytical and reflexive study, whose legal basis is the right to health and to life with dignity. Rationalizing the judicialization of health is not restricted only in the criticism of the judicial control of public health policies and compliance with the procedures of the National Supplementary Health Agency (ANS). Rationalizing the judicialization of health consists, above all, in the valuing of the human being in its entirety, establishing with it a relationship of empathy, trust and dialogue. Keywords: Fundamental social right to health. Right to life with dignity. Health promotion. Primary care. Patient. Physician. Humanization. Rationalization. Health judicialization.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.................................................................................. 11
2 HISTORICIDADE DA MEDICINA: DO MISTICISMO À
EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA...........................................................
17
2.1 Medicina Antiga: a influência da religião e da magia................... 17
2.2 Medicina Contemporânea: o aprimoramento da tecnologia da
informação a serviço do médico e do paciente............................
25
2.2.1 Prontuário Eletrônico do Paciente: o armazenamento de dados
para o conhecimento do histórico de saúde do paciente e a
relevância da sua utilização pelo médico e equipe
multidisciplinar...................................................................................
26
2.2.2 Telemedicina: a transposição do obstáculo denominado
distância.............................................................................................
28
3 A PROMOÇÃO DA SAÚDE: A EFETIVAÇÃO DE UM DIREITO
FUNDAMENTAL SOCIAL PRIORIZANDO A QUALIDADE DE
VIDA DIGNA......................................................................................
33
3.1 Saúde: um direito fundamental social à qualidade de vida
digna, ao equilíbrio e ao bem-estar social. Um novo conceito
além de ausência de doença ou de enfermidade.........................
33
3.2 A valorização do ser humano na sua totalidade: a eficiência e
a integralidade nos serviços de saúde..........................................
38
3.3 Conferências Internacionais de Promoção da Saúde:
referências para uma qualidade de vida saudável.......................
42
3.3.1 Declaração de Alma-Ata.................................................................... 42
3.3.2 Carta de Ottawa................................................................................. 44
3.3.3 Declaração de Adelaide..................................................................... 46
3.3.4 Declaração de Sundsvall................................................................... 47
3.3.5 Declaração de Jacarta....................................................................... 49
3.3.6 Declaração do México....................................................................... 51
3.3.7 Carta de Banguecoque...................................................................... 53
3.4 A Promoção da Saúde no Brasil: a interação comunitária com
os setores público e privado em busca do bem-estar social......
55
3.4.1 Programa Saúde da Família (PSF): a ênfase na atenção básica
visando o acesso universal aos serviços de saúde com equidade e
humanização.....................................................................................
57
3.4.2 Sistema de medicina familiar na saúde suplementar: uma proposta
de acesso à atenção primária à saúde com eficiência......................
59
4 PACIENTE: UM SER HUMANO FRAGILIZADO PELO
DESCONHECIDO.............................................................................
62
4.1 O paciente e a doença: a vivência do ser com o desequilíbrio
interior..............................................................................................
63
4.2 O ser e a sua existência: o entender a si mesmo......................... 66
4.2.1 Martin Heidegger............................................................................... 66
4.2.2 Hans- Georg Gadamer...................................................................... 68
4.2.3 Michel Foucault.................................................................................. 69
5 MÉDICO: GUARDIÃO DA SAÚDE E DA VIDA COM
DIGNIDADE.......................................................................................
71
6 DIREITOS E DEVERES DOS CIDADÃOS QUE UTILIZAM OS
SERVIÇOS E PARTICIPAM DAS AÇÕES DE SAÚDE: O
EXERCÍCIO DO DIREITO À SAÚDE INDISSOCIÁVEL DO
DIREITO À VIDA...............................................................................
74
7 CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA (CEM): OS DIREITOS E DEVERES
DO MÉDICO NO COMPROMISSO COM A DIGNIDADE DO SER
HUMANO...........................................................................................
77
8 A ATUAÇÃO MÉDICA HUMANIZADA: FATOR CONTRIBUTIVO
PARA A RACIONALIZAÇÃO DA JUDICIALIZAÇÃO DA
SAÚDE..............................................................................................
83
8.1 Princípio da autonomia: o consentimento informado do
paciente sobre a sua vida e saúde.................................................
87
8.2 Princípio da beneficência: o bem maior denominado vida......... 98
8.3 Princípio da não-maleficência: o respeito ao próximo e a si
mesmo...............................................................................................
103
8.4 Princípio da justiça: o exercício pleno da cidadania.................... 105
8.5 Empatia, confiança e diálogo: os pilares da atuação médica
humanizada......................................................................................
109
8.5.1 Empatia: colocar-se no lugar do outro para entender a sua
realidade de vida................................................................................
110
8.5.2 Confiança: a integridade e a sinceridade no contato do médico
com o paciente...................................................................................
114
8.5.3 Diálogo: o diferencial na atuação médica humanizada..................... 115
8.6 Literatura e medicina: os textos literários e a formação
humanizada do médico...................................................................
119
8.7 Aristóteles e a Teoria das Virtudes: a conquista do viver
bem....................................................................................................
129
9 CONCLUSÃO.................................................................................... 133
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................. 137
11
1 INTRODUÇÃO
A defesa dos direitos sociais como direitos fundamentais se solidificou com a
Carta Magna de 1988, então denominada “constituição cidadã”, em alusão aos
direitos fundamentais sociais, cuja primazia é o estado de bem-estar social.
A ordem social constitucional destaca a saúde como direito de todos e dever
do Estado, garantido por políticas públicas (sociais e econômicas) que visem à
redução do risco de doença e de outros agravos, com acesso universal e igualitário
às ações e serviços destinados à sua promoção, proteção e recuperação (artigo
196, CF).
A sociedade contemporânea enfrenta desafios para promover e atender com
qualidade e presteza as necessidades vitais de seus cidadãos, entre elas, a efetiva
tutela da saúde. O aumento da expectativa de vida e, consequentemente, o
crescimento da população idosa; a diversidade no diagnóstico de patologias e o
avanço tecnológico, que proporcionam o aperfeiçoamento dos métodos diagnósticos
e tratamentos de ponta, encareceram a medicina preventiva e corretiva nas redes
pública e privada de assistência à saúde.
Em consequência, o ônus financeiro despendido sem planejamento
adequado à proteção social à saúde torna insustentável a universalidade e a
isonomia no âmbito público, ao mesmo tempo em que avulta a contraprestação
pecuniária no âmbito privado, dificultando a sua mantença por parte do consumidor
ou reduzindo a cobertura médico-hospitalar do plano contratado, descumprindo as
cláusulas contratuais previamente estabelecidas.
Diante desse cenário fortalecido pela ineficiência estatal na área da saúde,
as desigualdades sociais e os conflitos de interesses individuais e coletivos
contribuem para o aumento de demandas judiciais, que deixam a cargo do Poder
Judiciário o controle jurisdicional das políticas públicas de saúde, função que não lhe
é afeta, o que o torna um órgão controlador das atividades administrativas.
12
A despeito da limitação e escassez de recursos orçamentários e da falta de
planejamento adequado de políticas públicas destinadas à atenção básica em saúde
ou da omissão no cumprimento das políticas existentes, o Poder Público não pode
se eximir de prestar assistência à saúde a todos que dela necessitam.
Ocorre que o vultoso dispêndio financeiro de recursos públicos e privados
destinados ao cumprimento de decisões judiciais, em sua grande maioria,
emergenciais, torna insustentável a mantença da judicialização da saúde, o que tem
proporcionado a realização de debates, simpósios e fóruns para o enfrentamento da
questão, de modo a encontrar alternativas eficazes para a sustentabilidade dos
sistemas de saúde público e privado e minimizar as demandas de saúde.
Esse quadro é desafiador e sua relevância social justifica a atuação
consciente e compromissada da sociedade, incluindo os operadores do direito e da
área da saúde, em especial, de modo a contribuir para a melhoria da qualidade dos
serviços de atenção primária à saúde individual e coletiva, visando à suplantação
dos impasses da finitude de recursos e das adversidades sociais através do
estímulo à promoção da saúde e prevenção de doenças.
Nesse contexto, diante dessa inter-relação entre o Direito e a Medicina, o
objetivo do estudo é adentrar o processo clínico da relação médico-paciente e
analisar como a atuação médica humanizada na promoção da saúde do paciente,
centrada no ser humano e não na patologia, pode contribuir para a racionalização da
judicialização da saúde.
À primeira vista, é inconcebível que se possa estabelecer um elo entre a
atuação médica humanizada na relação com o paciente e familiares e a
racionalização da judicialização da saúde, sob os seguintes argumentos: - em que
momento essa atuação vai de encontro à judicialização da saúde? Qual é o
fundamento legal para embasar esta proposição? A humanização não compreende
a essência da profissão de médico, uma vez que lhe compete proteger a vida do
paciente empregando todos os meios necessários e disponíveis à promoção da sua
saúde e ao seu bem-estar? O paciente ou seu representante legal, desde que
13
devidamente informado, tem autonomia para decidir sobre a qualidade de vida e
finitude que deseja para si ou familiar?
Fomentar essa discussão estimula o estudo analítico e reflexivo sobre o
tema, pois amplia a comunicação entre as ciências do Direito e da Medicina, tendo
como fundamento legal o direito à saúde e o direito à vida com dignidade, cuja
proteção não é assegurada apenas pela Constituição Federal, mas também, pelo
Código Civil, pelo Código de Defesa do Consumidor, que além de proteger a vida
como direito básico do consumidor, assegura-lhe o respeito à sua dignidade e saúde
através dos princípios da boa-fé, vulnerabilidade e transparência, e pelo Código de
Ética Médica.
É cediço que desde a concepção, o médico tem importante atuação na
promoção e prevenção da saúde do ser humano, pois o orienta a desenvolver
hábitos adequados para uma condição de vida saudável, evitando doenças e
melhorando o bem-estar, o que, certamente, será um fator de grande influência na
garantia de sua longevidade com dignidade, além de contribuir para a redução de
custos com tratamentos, procedimentos, medicamentos e demandas judiciais.
Sob este prisma, realçando o prestígio e a influência do médico na decisão
compartilhada da qualidade de vida adequada a cada paciente, a primeira parte do
estudo será dedicada à historicidade da medicina, iniciando-se pela medicina antiga,
cuja religião e magia esclareciam a origem dos males relacionando-os aos espíritos
maus, feitiçarias e prática de pecados, entre outros, indicando os tratamentos
curativos diante dos recursos disponíveis.
Destacam-se a medicina na Mesopotâmia, no antigo Egito, Chinesa e
Japonesa, Hindu, da antiga Pérsia e greco-romana, cuja influência é inconteste,
pois, superada a fase da superstição, predomina a racionalidade com Hipócrates,
considerado o “Pai da Medicina”.
O estudo prossegue com a medicina contemporânea, cujo desenvolvimento
científico-tecnológico propicia a descoberta e identificação de novas patologias e
14
seus princípios ativos, o que contribui para a execução de serviços destinados ao
seu controle, à promoção da saúde e prevenção de doenças.
As inovações tecnológicas na área da medicina também favorecem o
aprimoramento do processo diagnóstico, gerenciando o histórico de saúde eletrônico
do paciente, inclusive à distância, e disponibilizando equipamentos médico-
hospitalares menos invasivos e seguros para a realização de exames clínicos
destinados à promoção da saúde e à prevenção de doenças, ou, ao menos, à
amenização da dor e do sofrimento.
O cuidado em saúde procede com a promoção, que constitui uma
preocupação universal, o que justifica a realização de Conferências Internacionais
centradas nos cuidados primários de saúde, atentando-se às condições
socioeconômicas, culturais e políticas de cada nação, de modo a ponderar os
inconvenientes que interferem no planejamento, desenvolvimento e execução de
políticas públicas estruturadas e eficientes que visem à igualdade de condições no
oferecimento dos cuidados essenciais, sem qualquer discriminação, de modo a
atender os interesses individuais e coletivos.
Dessa maneira, estimula-se a igualdade de condições da população ao
acesso à assistência e atenção básica aos cuidados essenciais para a promoção e
prevenção de doenças, busca do equilíbrio interior e estímulo ao bem-estar social,
com ênfase na melhoria das condições de vida e de labor, determinantes sociais da
saúde, até porque, nos termos da Organização Mundial da Saúde, “a saúde de
todos os povos é essencial para conseguir a paz e a segurança e depende da mais
estreita cooperação das pessoas e dos Estados”.1
A promoção da saúde pátria incentiva a atenção primária à saúde
desenvolvida no Programa Saúde da Família (PSF), composta pelo profissional da
medicina e equipe multidisciplinar; e no sistema de medicina familiar na saúde
suplementar, que podem melhorar a qualidade de atendimento ao paciente e evitar
1Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-
Mundial-da-Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html> Acesso em 13 out. 2015.
15
desperdícios, reduzindo a probabilidade do aparecimento de doenças crônicas, cujo
tratamento é de alto custo, além de complexo e contínuo.
Qualquer investimento público ou privado na área da saúde, entretanto,
enfrentará resistência para sua efetivação, caso não se atenha aos seus principais
protagonistas, quais sejam, o paciente e o médico, analisados dentro de um
conjunto de circunstâncias limitadoras de recursos e do tempo de atendimento, o
que dificulta; porém, não impede a construção de uma relação fundamentada no
acolhimento e na comunicação humanizados, em respeito à individualidade, ao
cuidado integral e à compreensão do outro com suas carências e imperfeições.
A despeito das inovações técnico-científicas se intensificarem na área da
saúde, as percepções acerca da saúde e da doença não são acompanhadas na
mesma intensidade pelo paciente, cujas interrogações a respeito das adversidades
da vida, incluindo a doença, conduzem a uma breve exposição sobre o pensamento
dos filósofos Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Michel Foucault a respeito
do ser e sua existência, além de sua participação ativa nas decisões afetas à sua
dignidade e equilíbrio vital frente à patologia que o assola.
Para ajudá-lo a enfrentar as vicissitudes, entra em cena a pessoa do
profissional da medicina com o seu conhecimento científico e habilidade técnica
descodificadores da história clínica do paciente, acompanhada de exame detalhado
e direcionado, primeiramente, à promoção da saúde e prevenção de doenças,
seguido de orientações para o desenvolvimento de hábitos saudáveis, ou, se o caso,
ao tratamento ou procedimento mais adequado ao paciente dentro de suas
limitações reais, que, dependendo da situação, não coaduna com o prolongamento
desnecessário de um sofrimento e tampouco com a medicalização excessiva.
A atuação do profissional da medicina, portanto, não deve ser isolada, mas
sim, humanizada e compartilhada com o paciente e familiares envolvidos na relação.
As partes devem conhecer os seus direitos e deveres dispostos na Carta dos
Direitos dos Usuários da Saúde, bem como o médico deve pautar a sua conduta no
Código de Ética Médica (CEM), um alicerce dos seus direitos e deveres na relação
com o paciente.
16
O compromisso do médico com a dignidade da pessoa humana pauta-se
nos princípios bioéticos da autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça,
evidenciados nos pilares da atuação médica humanizada, quais sejam, empatia,
confiança e diálogo, valorizando a pessoa do paciente com a sua patologia e não
somente o caso clínico, avaliando, assim, os reais benefícios que um tratamento,
procedimento ou medicamento podem proporcionar para uma qualidade de vida
digna e a conquista do viver bem.
Diante do exposto, a tese propõe aos operadores do direito e da área da
saúde a reflexão sobre a importância da atuação médica humanizada na promoção
da saúde do paciente como fator contributivo para a racionalização da judicialização
da saúde, considerando que a atenção primária pode estimular a mudança de
hábitos prejudiciais à qualidade de vida saudável, diagnosticar e prevenir doenças,
previamente, ante a manifestação de sintomas pelo paciente.
O acompanhamento da saúde do paciente na sua integralidade é adequado
às suas necessidades, de modo a evitar a prescrição desnecessária de tratamentos
e procedimentos de ponta ou medicalização desmedida, os quais, negados pelo
sistema de saúde público ou privado, são judicializados, o que encarece a estrutura
de saúde, que passa a ser qualificada pelo custo e não pela eficiência e qualidade,
bem como inviabiliza a concretização de políticas públicas de saúde já existentes,
pois os recursos disponíveis são utilizados inadequadamente e ao alvedrio de
decisões judiciais.
A saúde, além de um direito, constitui uma responsabilidade social, cujos
pilares da honestidade, sinceridade, lealdade e transparência recíprocas devem
sustentar as relações que a circundam e afastar o desequilíbrio e eventuais
diferenças entre os homens.
17
2 HISTORICIDADE DA MEDICINA: DO MISTICISMO À EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA
2.1 Medicina Antiga: a influência da religião e da magia
O estudo do desenvolvimento da Medicina torna-se necessário para que se
possa compreender a importância de sua evolução desde os primórdios das
civilizações até a atualidade com sua tecnologia avançada, que possibilita a análise
aprofundada da doença ou enfermidade, bem como a interação entre o profissional
de medicina, o paciente e familiares.
Inicialmente será abordada a Medicina da Antiguidade, ou seja, do
primitivismo à antiga Roma. Em continuidade, será abordada a Medicina da
Atualidade.
No primitivismo, a medicina voltava-se para a religião e magia, que
esclareciam a origem dos males, bem como indicavam os tratamentos curativos. Os
motivos dos males relacionavam-se ao cometimento de pecado, irritação dos
espíritos maus e violação de tabus pelo ser humano; como também, pela feitiçaria
feita por um inimigo com a utilização de bonecos com espetos, flechas e agulhas.
Impende salientar que os feiticeiros também eram procurados para realizar curas.
As moléstias eram causadas pelo próprio ser humano, por espíritos ou seres sobrenaturais e por causas naturais. Em consequência, os tratamentos variados concentravam-se no repouso, calor, banhos, ervas e manobras manuais (OLIVEIRA, 1981, p. 02-03).
A prática cirúrgica da trepanação craniana, que foi desenvolvida na pré-
história e que se estende à atualidade pelos povos primitivos, foi encontrada na
França, em 1865 e, posteriormente, na Inglaterra, Espanha, Portugal, Argélia,
Alemanha e outros países.
18
Tratava-se de intervenção cirúrgica realizada em vida ou após a morte do
indivíduo, cujas indicações advinham da magia e da religião, com o escopo
terapêutico ou tratamento ativo dos traumatismos cranianos.
Por derradeiro, na pré-história, a arte das cavernas se fez presente na
medicina primitiva através de desenhos encontrados nas cavernas pelos
arqueólogos, que revelavam observação e conhecimento acurados da anatomia dos
animais, entre eles, bois, cavalos, ursos e elefantes.
Na Mesopotâmia, a medicina também estava ligada à magia e religião. A
credibilidade na existência de demônios e espíritos maus incomodavam os povos,
pois as divindades exerciam o domínio sobre a vida, moléstia e saúde.
Em decorrência da falta de conhecimento adequado, acreditava-se que as
moléstias eram provenientes do descumprimento de preceitos religiosos e da não
utilização de amuletos protetores, da punição dos deuses por pecados cometidos,
da feitiçaria e da fatalidade.
O sangue era considerado a principal via para qualquer ação, pois, na
mitologia babilônica, a criação do mundo originou-se do “sangue de um deus que foi
decapitado” (OLIVEIRA, 1981, p. 10).
A magia que dominava os povos também influenciava na figura do médico,
que representava um sacerdote (assipu) dotado de adivinhação, dispondo de
recursos naturais como a água, o fogo, as ervas para proceder ao tratamento do
paciente. O sacrifício de um ser animal para a transferência da doença consistia
uma prática comum a ser utilizada pelo profissional.
O reinado de Hammurabi, no século XVIII a. C., foi o ápice da região
mesopotâmica. Na ocasião, foi constituído o Código de Hammurabi2, documento
2 215º - Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o cura ou se ele
abre a alguém uma incisão com a lanceta de bronze e o olho é salvo, deverá receber dez siclos. 216º - Se é um liberto, ele receberá cinco siclos. 217º - Se é o escravo de alguém, o seu proprietário deverá dar ao médico dois siclos. 218º - Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o mata ou lhe abre uma incisão com a lanceta de bronze e o olho fica perdido, se
19
universal que contém normas sobre os direitos e deveres do profissional de
medicina, em especial as recompensas (gratificações) e penalidades decorrentes de
sua atuação.
A figura do médico leigo (asu), que sofria as sanções previstas no Código
de Hammurabi, conduz à reflexão sobre a atuação do profissional de medicina
diante do direito à vida e à dignidade da pessoa humana e a atuação do Direito na
defesa dos interesses pessoais e coletivos do paciente.
Com bem assinala João Bosco Botelho3 em seu artigo “Medicina e Direito no
Código de Hammurabi”, a Medicina e o Direito desenvolveram uma convivência
fiscalizadora com o Código de Hammurabi do final do século 16 a.C., uma vez que
os direitos e deveres dos médicos foram regulamentados, inclusive no tocante às
gratificações e punições severas ao profissional, no caso do mau exercício do seu
mister. O pagamento da penalidade variava em conformidade com a importância
social do enfermo, podendo tornar-se oneroso com castigos severos.
Anota Botelho (2013, p. 01-02) que:
A presença do Direito, no convívio controlador da prática médica, valorizando os bons resultados, está inserida na fundamentação maior manter a vida, refletindo aspiração humana que se perde no tempo. Dessa forma, na Mesopotâmica, no período Hammurabi, apesar de as doenças serem consideradas como mal, associado ao pecado, ocorreu o início do processo laico, para o controle das atividades profissionais, em especial, a da medicina.
Na mesma linha de pensamento, o magistério de Miguel Kfouri Neto (2010,
p.50-51), acerca do Código Hammurabi (1790-1770 a.C.), conceitua-o como “o
lhe deverão cortar as mãos. 219º - Se o médico trata o escravo de um liberto de uma ferida grave com a lanceta de bronze e o mata, deverá dar escravo por escravo. 220º- Se ele abriu a sua incisão com a lanceta de bronze o olho fica perdido, deverá pagar metade de seu preço. 221º- Se um médico restabelece o osso quebrado de alguém os as partes moles doentes, o doente deverá dar ao médico cinco ciclos. 222º Se é um liberto, deverá dar três ciclos. 223º - Se é um escravo, o dono deverá dar ao médico dois ciclos. 224º- Se o médico dos bois e dos burros trata um boi ou um burro de uma grave ferida e o animal se restabelece, o proprietário deverá dar ao médico, em pagamento, um sexto de ciclo.225º- Se ele trata um boi ou um burro de uma grave ferida e o mata, deverá dar um quarto de seu preço ao proprietário. Disponível em: <http://www.culturabrasil.org>zip>hamurabi> Acesso em: 26 jan. 2016. 3 Disponível em: <http://www.historiadamedicina.med.br/?p=785> Acesso em: 26 jan. 2016.
20
primeiro documento histórico a tratar do erro médico”. A culpa era inexistente,
porém, se após a intervenção cirúrgica o paciente viesse a óbito, o médico seria
punido.
De se notar que a atuação do médico era centralizada nas atividades
cirúrgicas, no estudo e na análise das moléstias em geral. Essa afirmação decorre
da descoberta de plaquetas cuneiformes contendo descrições de moléstias, tais
como, tuberculose, obstipação intestinal, infecção renal, entre outras.
A adivinhação, segundo Oliveira (1981, p. 15), consistia uma prática comum
para “antecipar o desfecho das moléstias, e predizer a incidência das epidemias”
(medicina preventiva), possibilitando o surgimento da “ciência prognóstica’, de
extrema valia na atualidade, no que diz respeito à relação médico-paciente e a difícil
decisão do tratamento adequado visando à qualidade de vida do enfermo.
Impende consignar, por derradeiro, a preocupação do povo mesopotâmico
com a higiene, incluindo o saneamento básico (rede de esgoto), fundamental para a
saúde e o bem-estar da sociedade.
No antigo Egito, desenvolveu-se a medicina empírico-racional e a medicina
de cunho religioso, pois as moléstias e as epidemias eram justificadas pela
existência de espíritos bons e maus e pelos deuses protetores e vingativos.
Os meios utilizados para a prevenção e a cura envolviam encantamentos, exorcismos, magia, invocações encontradas em papiros médicos e inscrições de monumentos e túmulos, uma vez que a civilização egípcia desenvolveu-se em torno dos mortos, deuses e vivos (OLIVEIRA,1981, p.19-21).
Os deuses egípcios relacionavam-se à natureza e aos deuses da localidade
que tutelavam ou das tribos. Considerava-se o deus Thoth como o criador das
ciências e da medicina.
Na medicina empírico-racional, procedia-se à busca de conhecimentos e
fatos relacionados à medicina rústica e às tradições transmitidas entre gerações,
uma vez que os egípcios focavam-se na moléstia. A figura do profissional de
21
medicina centrava-se nos sacerdotes-mágicos, nos feiticeiros e na pessoa do
médico propriamente dito.
Ao apreciar a medicina egípcia, Oliveira (1981, p. 24) destaca a mumificação
destinada à conservação do cadáver em respeito à religião. Ressalta que a
anatomia científica originou-se em Alexandria com Herófilo, considerado o “Pai da
Anatomia”, ao proceder ao exame minucioso de organismos mortos, dissecando-os.
As múmias eram utilizadas também como agentes terapêuticos.
Sobre a terapêutica médica, é imperioso salientar o Papiro Ebers,
“repositório da farmacopeia egípcia” (OLIVEIRA, 1981, p.29), que compreende uma
compilação da anatomia, diagnósticos, sintomas, receitas, tratamentos e moléstias,
entra elas, as moléstias anais.
Destaca-se na medicina egípcia também as intervenções cirúrgicas, a
traumatologia, com especial atenção às fraturas, no intuito de reduzi-las ou contê-
las, a fisiologia, a oftalmologia, a obstetrícia, a utilização de contraceptivos e a
indicação do sexo do feto.
Por derradeiro, de se notar que a medicina egípcia voltou-se ao estudo da
ciência médica, com especial destaque à observação, sem desconsiderar a magia e
o misticismo, ínsitos da cultura do antigo Egito.
A medicina chinesa e japonesa se voltou para o equilíbrio entre as forças
de oposição denominadas Yang masculino, ativo, quente e positivo, e Yin, feminino,
passivo, úmido e negativo.
O Tao, força motriz de toda a existência, atuava na harmonização dos
opostos, sendo certo que o Taoismo como religião atuou na medicina visando os
meios naturais de cura, entre eles, a alimentação saudável e a acupuntura.
O Budismo, por seu turno, introduziu o Yoga, cuja prática do exercício físico
e da meditação possibilita o fortalecimento do corpo e a tranquilidade da mente.
22
Em se tratando da conceituação de saúde e de moléstia, Antônio Bernardes
de Oliveira (1981, p. 36) sustenta que:
Brotada do contato com a Natureza a concepção da Harmonia Universal firmada em base religiosa-filosófica gerou o conceito de saúde e moléstia não provocados por espíritos protetores ou maléficos, mas devidos ao equilíbrio ou perturbação dos princípios Yang e Yin, responsáveis que seriam pela vida dos seres e do Universo.
A propedêutica e a terapêutica foram representadas por métodos
tradicionais, tais como, a acupuntura, a “ciência do pulso” e o emprego de vegetais e
minerais. Frise-se que as algas foram utilizadas no tratamento dos bócios causados,
de modo geral, pela falta de iodo, o que provoca o aumento considerável no volume
da glândula tireoide.
Acreditava-se “ser o pulso o ponto fundamental da medicina prática”
(OLIVEIRA, 1981, p.38). Baseando-se no pulso seria possível a identificação da
moléstia, do seu tratamento e previsão de sua evolução.”.
Saliente-se que a medicina chinesa foi pioneira na imunização variólica,
sendo certo que Ko Hung (265-315 d.C.), alquimista chinês, procedeu à primeira
descrição da varíola e da sífilis.
Na China antiga, os médicos não podiam tocar nos doentes, motivo pelo
qual surgiram as denominadas “bonecas médicas”, utilizadas para o sexo feminino
pertencente à classe diferenciada indicar ao médico o local de sua dor.
Por derradeiro, mister se faz acrescentar que a figura do “chefe-médico”,
responsável pela administração e fiscalização do trabalho executado por seus
colegas, podendo aplicar penalidades, surgiu no período de Sung, Wang An-shis
(1021-1086) e constituiu o controle da profissão pelo Estado (OLIVEIRA, 1981, p.
39).
A medicina Hindu foi marcada pela influência da religião que, segundo
Oliveira (1981, p. 45), “partia do princípio da criação do mundo pela graça divina e o
23
surgimento do homem pelo dom da inteligência, razão pela qual o espírito era
considerado o fim e o princípio de tudo”.
O deus criador era denominado Brama, que foi considerado o autor dos
Vedas, livros sagrados da Índia, com destaque para o Sânita do Atarva-Veda.
A causa da doença decorria das culpas praticadas na vida ou em vidas
antepassadas e não pelos semelhantes ou deuses. Através desse castigo e
posterior correção, o homem seria liberado do sofrimento (Nirvana).
As plantas medicinais eram utilizadas para cura dos enfermos, sendo certo
que preces e encantamentos eram dirigidos aos deuses ligados à natureza.
Nos ensinamentos de Max Neuburguer, médico austríaco, citado por Oliveira
(1981, p. 46): “Na moléstia o médico é um pai; na convalescença, um amigo; e
quando a saúde se acha restaurada, um guarda”.
Denota-se que a atuação do profissional de medicina interligava-se a
preceitos éticos- morais, pois a confiança depositada no profissional significava a
preservação da vida e da dignidade do paciente.
Destacam-se na medicina Hindu a cirurgia plástica, com ressalva à
amputação do nariz, considerada uma penalidade pela prática de infrações graves;
utilização de formigas para proceder às suturas intestinais e cirurgia veterinária nos
elefantes.
Por derradeiro, insta consignar que o homem de condição social privilegiada,
que se encontrava enfermo, era tratado com maior atenção do que as mulheres e
crianças, o que demonstra a desigualdade de tratamento entre os sexos e o
desrespeito à dignidade da mulher, suprimindo os seus direitos fundamentais.
Na antiga Pérsia, a sociedade dividia-se em quatro classes, quais sejam, a
nobreza, a burguesia, os camponeses e os escravos, que eram tratados por
cirurgiões, herboristas e sacerdotes.
24
A religião e a Medicina caminhavam lado a lado, pois as moléstias, inerentes
à parte física, e os pecados, inerentes à parte moral, estavam interligados por uma
relação de causa e efeito.
Os pecados eram punidos com sofrimentos e doenças, cabendo à Medicina a supressão da causa da doença, ao mesmo tempo em que corrigia os seus efeitos. As drogas, por sua vez, eram destinadas a debelar a dor física que atingia o corpo (OLIVEIRA, 1981, p. 51).
A medicina da antiga Grécia passou por duas fases, sendo a primeira
ligada à mitologia e a segunda a Hipócrates, considerado o “Pai da Medicina”. A
mitologia exerceu uma grande influência destacando-se um símbolo denominado
Asclépio (Grécia) ou Esculápio (Roma), que aprendeu sobre as artes médicas com o
centauro Quíron.
Asclépio participou da guerra de Tróia, sendo considerado o deus da
medicina e da cura. O personagem do poeta Homero (IX a.C.) segura um bastão,
tendo uma cobra enrolada em seu corpo.
“Nessa fase, a figura do médico não é destacada, pois os próprios guerreiros
feridos na batalha faziam curativos e procediam à retirada dos dardos uns dos
outros e à contenção de fraturas (OLIVEIRA, 1981, p. 66)”.
Na fase hipocrática, a medicina foi separada da superstição, imperando a
racionalidade. Hipócrates (460-370 a.C.), considerado “Pai da Medicina”, é o
responsável pela elaboração do Corpus Hippocraticum (coleção hipocrática)
composto por setenta livros e cinquenta e nove tratados, aproximadamente, bem
como pela Medicina clínica e o Código de conduta e ética médica (Juramento
Hipocrático), que será analisado oportunamente.
De acordo com Antonio Bernardes de Oliveira (1981, p. 81): “Dentro de suas
limitações, a medicina hipocrática tinha lógica; fundamentava-se nos dados da teoria
humoral e afastava-se totalmente dos recursos às forças sobrenaturais”.
25
Impende salientar que “Aristóteles (384-322 a.C.), filósofo grego e discípulo
de Platão, foi considerado o fundador da anatomia comparada. Em suas pesquisas
relacionadas à Biologia, contribuiu para a concepção da crescente complexidade
dos seres vivos (OLIVEIRA, 1981, p.83)”.
Por derradeiro, é salutar acrescentar que as Escolas Médicas surgiram na
Medicina pós-hipocrática, que contribuíram para o estudo acurado da Medicina.
Na medicina da antiga Roma, os conhecimentos médicos dos gregos
penetraram paulatinamente em Roma. Com a queda do Egito, sob o domínio
romano, os profissionais de medicina deixaram Alexandria com destino a Roma.
As escolas médicas que surgiram em Roma, segundo Oliveira (1981, p. 97-
98), “compreendiam um conjunto de médicos cujo segmento das ideias estava
voltado para um determinado chefe ou mestre”.
Por derradeiro, é de suma importância destacar na medicina romana o médico grego Galeno de Pérgamo (130-200 d.C.), que também se voltou para a filosofia romana, tornando-se um grande estudioso da anatomia, fisiologia, patologia, sintomatologia e terapêutica (OLIVEIRA, 1981, p.107-112).
2.2 Medicina Contemporânea: o aprimoramento da tecnologia da informação a serviço do médico e do paciente
No contexto atual, a tecnologia da informação constitui ferramenta de grande
valia para o aprimoramento dos serviços de saúde disponibilizados ao paciente na
esfera pública ou particular, que podem ser menos invasivos e causar menos
desconforto, além de contribuir para a integração do médico com outros profissionais
da área da saúde.
A implementação de recursos de ponta em aparelhos hospitalares
destinados à intervenção cirúrgica clássica ou robótica, aos exames clínicos com
imagens mais precisas, aos tratamentos de maior complexidade e ao monitoramento
26
da saúde através de aplicativos, entre outros, pode oferecer serviços eficientes e
eficazes, bem como contribuir para a redução de custos operacionais destinados à
recuperação da saúde, que devem ser investidos na sua promoção e na
integralidade de assistência. No presente estudo serão abordados o prontuário
eletrônico do paciente e a telemedicina.
2.2.1 Prontuário Eletrônico do Paciente: o armazenamento de dados para o conhecimento do histórico de saúde do paciente e a relevância da sua utilização pelo médico e equipe multidisciplinar
O prontuário eletrônico do paciente constitui um recurso oferecido pela
informática para o armazenamento de informações a respeito da saúde do paciente
e dos cuidados que lhe foram dispensados por profissionais da área da saúde.
Segundo Alcion Alves Silva (2009), inicialmente, o documento era utilizado
para o registro das condições clínicas do paciente; todavia, em virtude da
diversificação e especialização de profissionais na área da saúde atuando nos
cuidados com o paciente, a utilização dos dados armazenados foi ampliada e estes
passaram a ser transmitidos à distância, inclusive para outros profissionais em locais
diversos; utilizados em pesquisas clínicas, decisões clínicas e atualização de
profissionais; administração do serviço e como prova documental em ações judiciais
(art. 225 do Código Civil)4
Impende salientar que o presente trabalho tem por escopo enfatizar a
relação médico-paciente e os benefícios da tecnologia no cuidado do enfermo, de
modo a auxiliar o profissional da saúde em suas decisões. Não será abordado,
portanto, a utilização do documento na esfera judicial e tampouco na esfera da
pesquisa clínica, procedimento complexo voltado a discussões de casos clínicos e
protocolos.
4Art. 225. As reproduções fotográficas, cinematográficas, os registros fonográficos e, em geral,
quaisquer outras reproduções mecânicas ou eletrônicas de fatos ou de coisas fazem prova plena destes, se a parte, contra quem forem exibidos, não lhes impugnar a exatidão.
27
A confidencialidade do documento é fator relevante, uma vez que os dados
são armazenados com cópia de segurança e contém o histórico do paciente, cujo
acesso ao conteúdo deve ser restrito aos profissionais responsáveis pela assistência
prestada ao enfermo.
Atento a essa questão, Alcion Alves Silva (2009, p.272) enfatiza que:
O sistema de informações deve possuir mecanismos de acesso restrito e limitado a cada perfil de usuário, de acordo com a sua função no processo de assistência ao paciente, mantendo a privacidade, confidencialidade e sigilo profissional.
O processo de assistência ao paciente pode proporcionar-lhe o alívio da dor,
a promoção do restabelecimento da saúde ou o desenvolvimento de hábitos
saudáveis para o prolongamento da vida. A elaboração do prontuário eletrônico
contribui para a execução de um trabalho pormenorizado da pessoa do paciente,
que pode envolver não somente o médico, mas também uma equipe
multiprofissional que irá auxiliá-lo no contato com o enfermo analisando-o na sua
individualidade para emitir um parecer afeto à sua especialidade.
O parecer de cada profissional que se relaciona com o paciente pode
direcionar a escolha por um determinado tratamento em detrimento de outro, como
também as informações transmitidas previnem eventuais efeitos colaterais que
podem ocorrer durante o tratamento.
Essa interação respeita a diversidade de opiniões dos profissionais dentro
da sua especialidade e fortalece o conhecimento do paciente pelo médico na sua
integralidade, pois, a adesão ao tratamento pelo enfermo é um fator relevante na
relação médico-paciente e a colaboração da equipe multidisciplinar beneficia essa
interação.
A complexidade da medicina contemporânea aliada à tecnologia favorece o
contato entre profissionais que compõem uma equipe multidisciplinar e o médico,
privilegiando em primeiro lugar a valorização da pessoa do paciente na sua
28
integralidade com a doença, sem desconsiderar a transposição de obstáculos, entre
eles, a distância, que pode dificultar um atendimento de qualidade ao paciente.
2.2.2 Telemedicina: a transposição do obstáculo denominado distância
O aprimoramento dos recursos tecnológicos na área da telecomunicação e
informática tem contribuído para a ampliação e a diversificação da assistência e dos
serviços destinados à atenção primária, prevenção de riscos de doenças, promoção
e recuperação da saúde, em especial nos locais de acesso geográfico dificultoso,
que, em sua grande maioria, são ocupados por comunidades que não dispõem de
recursos mínimos para uma condição de vida saudável.
A tecnologia da informação auxilia os profissionais da saúde proporcionando
meios de contato eletrônicos com outros profissionais para análise de casos clínicos
de maior complexidade e com o paciente, o que possibilita uma interação e
acompanhamento do enfermo e suas peculiaridades, ao mesmo tempo em que
transpõem as barreiras da distância e da locomoção, que podem dificultar o acesso
aos serviços destinados à saúde.
A telemedicina utiliza a telecomunicação e a informática em favor do médico
e do paciente ao facilitar o atendimento do enfermo, cujo tratamento é realizado fora
do ambiente hospitalar, bem como o contato entre profissionais à distância, inclusive
com instituições internacionais, o que favorece a troca de dados e experiências
voltadas ao bem-estar do paciente e à pesquisa científica.
No entender de Alcion Alves Silva (2009, p. 273):
A telemedicina reduz o custo, o tempo e o transporte de pacientes, inclusive em casos emergenciais, pois o contato com o médico é mais célere e, se o caso, o paciente não necessita ser transferido para centros de referência ou internado em hospitais, podendo ser atendido em sua própria comunidade.
29
Acrescenta, ainda, que o contato pode ser através da - teleassistência, no
caso de isolamento geográfico do paciente ou limitação de locomoção até o serviço
de saúde do local onde se encontra; - televigilância, que consiste no recebimento
de dados remotos do paciente, como por exemplo, sua frequência cardíaca, recurso
este destinado a pacientes com enfermidades crônicas; - teleconsulta, através de
meio eletrônico, como por exemplo, WhatsApp ou aplicativos similares; e a -
interação entre profissionais, quando o médico, na presença do paciente, solicita
a opinião de outro colega à distância acerca da intervenção clínica a ser adotada no
caso sob exame, fornecendo-lhe eletronicamente os dados necessários.
De se notar, contudo, que a utilização das mídias sociais pelo médico não
substitui a sua presença na anamnese e exame físico, oportunidade em que interage
com o paciente, conhecendo o seu histórico, para estabelecer o diagnóstico.
A bem da verdade, o artigo 37, caput, do Código de Ética Médica veda a
prescrição de tratamento ou outro procedimento sem que se proceda ao exame
direto da pessoa do paciente, exceto em situações de urgência e emergência ou
impossibilidade comprovada de fazê-lo; porém, cessado o impedimento, mister se
faz a sua imediata realização.
A propósito, o parágrafo único do citado artigo dispõe que ao Conselho
Federal de Medicina cabe a regulamentação do atendimento médico a distância
(telemedicina ou outro método), sendo de bom alvitre mencionar a Resolução nº
1.974/20115, que estabelece os critérios que norteiam a propaganda em Medicina,
conceituando os anúncios, divulgação de assuntos relacionados à medicina,
sensacionalismo, autopromoção e proibições concernentes à matéria.
A mencionada Resolução foi alterada pelas Resoluções nº 2.126/20156 e nº
2.133/20157, sendo relevante mencionar a alteração do artigo 13 da Resolução nº
1.974/11 pela Resolução nº 2.126/15, especificamente o seu § 1º, que definiu o que
5 Disponível em:<htt://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2015/2126_2015.pdf> Acesso em: 25
set. 2016. 6 Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2015/2126_2015.pdf> Acesso em:
25 set. 2016. 7 Disponível em:<http://portal.cfm.org.br/images/PDF/resolucaocfmpublicidde.pdf> Acesso em: 25 set.
2016.
30
compreende mídias sociais, a saber: sites, blogs, Facebook, Twiter, Instagram, You
Tube, WhatsApp e smiliares.
A respeito, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo –
CREMESP homologou alerta ético na 4743ª Sessão Plenária de 20 de setembro de
20168:
Quando for responder aos seus pacientes por WhatsApp ou aplicativos similares, façam-no desde que conheçam o seu quadro clínico atual com o intuito apenas de orientá-los, com observância ao Código de Ética Médica, particularmente com respeito ao sigilo profissional, não os expondo em grupos.
Nessa linha de intelecção, denota-se que a relação médico-paciente é
pessoal e não deve ser substituída pela tecnologia através de consultas ou
procedimentos por aplicativos, que suprimem o exame direto.
Quanto mais dados a respeito do paciente o médico obtiver, melhor respaldo
terá para suas decisões clínicas, bem como para promover a saúde privilegiando
uma qualidade de vida digna. A tecnologia pode atuar como grande aliada na
complementação de dados do paciente, mas jamais substituirá o conforto, a escuta,
o olhar e o tocar, como bem pondera J. C. Ismael (2002, p.67):
O paciente gosta e precisa ser olhado: quer ter a certeza de que existe para o médico, de que não é apenas mero portador de uma doença registrada numa ficha ou num arquivo de computador. Como a maioria das pessoas, o médico que esqueceu o significado do olhar precisa reaprendê-lo, consciente da enorme importância que tem para o paciente o fato de sentir-se parceiro dessa poderosa forma de comunicação que ganhou, na crescente utilização do computador, mais um inimigo. É uma cena patética: o médico “informatizado”, ao consultar o prontuário exibido no monitor, conduz a consulta hipnotizado por ele, enquanto o paciente, ansioso e desamparado, espera que lhe dirija o olhar.
Uma questão de destaque na medicina moderna e que constitui um desafio
a ser enfrentado pelos profissionais de medicina e pelo direito consumerista, é a
8 Disponível em: <http://www.cremesp.org.br?siteAcao=NoticiasC&id=4220> Acesso em: 30 set.
2016.
31
denominada automedicação, não obstante as orientações e constantes propagandas
para alertar o consumidor acerca da sua nocividade.
Em recente artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo9, o consumo de
medicamentos sem a devida prescrição médica, conhecidos como OTC (over the
counter – “em cima do balcão”) tem aumentado no país, correspondendo a R$16,4
bilhões, com a comercialização de quantia superior a um bilhão de unidades
anualmente, o que compreende um terço da totalidade de venda de medicamentos.
A falta de orientação médica e a ingestão sem controle por longo período
pode causar risco à saúde do consumidor, principalmente os analgésicos e anti-
inflamatórios.
Se por um lado esse comportamento gera certo desconforto aos
profissionais de medicina, uma vez que está em jogo a saúde do paciente e o seu
bem-estar, por outro, segundo o artigo, a indústria estimula o autocuidado, isto é, “o
paciente, conhecendo o próprio corpo, seria capaz de tomar decisões como a de
escolher um analgésico para dor de cabeça”.
Ocorre, entretanto, que o consumidor não tem conhecimento técnico-
científico para identificar os malefícios de uma ingestão exagerada de um
determinado medicamento, o que culmina no surgimento de doenças e,
consequentemente, na procura de serviços de saúde da rede pública ou privada.
Em face da precariedade do atendimento e reiteradas recusas em arcar com
despesas médico-hospitalares, o aumento das demandas judiciais é crescente, ou
seja, a denominada judicialização da saúde, que transfere ao Poder Judiciário o
dever de cumprimento dos direitos fundamentais, entre eles, o direito à vida e à
saúde.
A solução, todavia, não está na procedência do pedido judicialmente
formulado, mas sim, na conscientização do Estado, do médico e do paciente de que
9 “Consumo de remédio sem prescrição cresce no país”. Folha de São Paulo, Caderno Saúde ciência,
07 mar. 2016.
32
o bem-estar inicia-se com a promoção da saúde e a prevenção dos males que
acometem a população em geral diante dos desafios enfrentados hodiernamente.
33
3 A PROMOÇÃO DA SAÚDE: A EFETIVAÇÃO DE UM DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL PRIORIZANDO A QUALIDADE DE VIDA DIGNA
3.1 Saúde: um direito fundamental social à qualidade de vida digna, ao equilíbrio e ao bem-estar social. Um novo conceito além de ausência de doença ou de enfermidade
No ordenamento jurídico pátrio, a saúde constitui um direito fundamental
social. Os direitos fundamentais estão diretamente relacionados ao Estado
Democrático de Direito e compreendem direitos subjetivos que devem ser garantidos
a todos os seres humanos, constituindo prestações positivas do Estado, pois
remetem ao direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Na lição da jurista portuguesa, Cristina Queiroz (2010, p. 49), os direitos
fundamentais podem ser assim conceituados:
[...] direitos constitucionais, que não devem em primeira linha ser compreendidos numa dimensão “técnica” de limitação do poder do Estado. Devem antes ser compreendidos e inteligidos como elementos definidores e legitimadores de toda a ordem jurídica positiva. Proclamam uma “cultura jurídica” e “política” determinada, numa palavra, um concreto e objectivo “sistema de valores”.
Se os direitos fundamentais constituem um sistema de valores de uma
sociedade que tutela a dignidade da pessoa humana, a Constituição que os
estabelece tem o dever ético de garanti-los a todos os cidadãos, sob pena de
desestruturar os pilares básicos de sustentação moral de um país, quais sejam, a
segurança, a educação e a saúde.
Vidal Serrano Nunes Júnior (2009, p. 70), por sua vez, disserta que os
direitos sociais são:
[...] o subsistema dos direitos fundamentais que, reconhecendo a existência de um segmento social economicamente vulnerável, busca, quer por meio da atribuição de direitos prestacionais, quer pela normatização e regulação das relações econômicas, ou ainda
34
pela criação de instrumentos assecuratórios de tais direitos, atribuir a todos os benefícios da vida em sociedade.
Como um direito fundamental social, a saúde prioriza do Estado o
atendimento do mínimo vital necessário à existência com dignidade, exigindo, pois, a
prestação de serviços e a efetivação de políticas públicas eficientes e eficazes, que
valorizem o ser humano na sua integralidade.
Nesse contexto, a definição de saúde tem extrapolado a sua natureza
biológica e ampliado o seu conceito além de ausência de doença, o que é reforçado
no preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS)10, agência
especializada em saúde, fundada em 07 de abril de 1948, com sede em Genebra,
na Suíça: “a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não
consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”.
Essa organização é subordinada à Organização das Nações Unidas (ONU)
e seu escopo precípuo é a garantia a todo ser humano do nível de saúde mais
elevado que for possível.
Resultantes dessa visão que enaltece a totalidade do ser, a qualidade de
vida digna, o equilíbrio e o bem-estar social tornaram-se relevantes indicadores da
definição de saúde, como bem se observa nas palavras de Jennifer Prah Ruger ao
conceituá-la (2006 apud SOUZA, 2013, p. 130):
1.O estado de funcionamento ótimo do organismo, sem evidências de doenças ou anormalidades. 2. O estado de equilíbrio dinâmico no qual esteja em um nível ótimo a capacidade do grupo ou do indivíduo de lidar com todas as circunstâncias da vida. 3.Um estado caracterizado pela integridade anatômica, fisiológica e psicológica; pela capacidade de desempenhar pessoalmente funções de valor no ambiente familiar, de trabalho e na comunidade; pela habilidade para lidar com o stress físico, biológico, psicológico e social; pelo sentimento de bem estar; e pela liberdade do risco de doenças e morte repentina.
10
Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html> Acesso em: 13 out. 2015.
35
Essa completude requer o desempenho de funções que favoreçam e ao
mesmo tempo promovam atividades voltadas ao auxílio e à prestação de serviços
administrativos, técnicos e científicos que possam contribuir para o desenvolvimento
da saúde na sua totalidade, inclusive no que tange aos cuidados médicos sob os
pontos de vista preventivo e curativo, incluindo os serviços hospitalares e a
segurança social individual e coletiva.
Ao tecer suas considerações sobre o tema em comento, José Afonso da
Silva (2012, p. 782) enfatiza a importância da medicina preventiva, a saber:
O direito à saúde e o dever do Estado não se limitam à recuperação da saúde, à oferta de Medicina curativa, mas, especialmente, Medicina preventiva, ações e serviços destinados a evitar a doença – o que se vê da cláusula “políticas (...) que visem à redução do risco de doença e de outros agravos”. A ênfase está precisamente aí, na promoção e proteção de uma vida humana saudável, como um direito fundamental, no qual entra, com igual força, a recuperação da saúde.
A conceituação de qualidade de vida é ampla, pois abrange uma hierarquia
de valores individuais e coletivos estabelecida no contexto da cultura de uma
sociedade específica. Esses valores podem variar de uma sociedade para outra, e,
inclusive, dentro da mesma sociedade, em conformidade com os paradigmas,
objetivos, expectativas e inquietações envolvidos em um determinado momento
histórico, cultural, econômico, social e político.
A respeito, Maria Cecília de Souza Minayo, Zulmira de Araújo Hartz e Paulo
Marchiori Buss11, tratando da qualidade de vida e saúde mencionam três fóruns de
referência.
O primeiro deles é o histórico, isto é, em determinado momento do
desenvolvimento econômico, social e tecnológico de uma sociedade distinta esta
dispõe de um padrão de qualidade de vida que diverge da mesma sociedade em
outra fase histórica. O segundo é cultural, ou seja, os valores e necessidades são
construídos e graduados de modo diferente pelos povos, expondo suas tradições. O 11
MINAYO, Maria Cecília de Souza; HARTZ, Zulmira Maria de Araújo; BUSS, Paulo Marchiori. Qualidade de vida e saúde: um debate necessário. Ciência e Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v.5, n.1, p. 9, 2000.
36
terceiro se refere às estratificações ou classes sociais, isto é, a ideia de qualidade
de vida relaciona-se ao bem-estar dos níveis superiores e à passagem de um limiar
ao outro.
Sob outro prisma e considerando a complexidade da definição do conceito
de saúde, Paulo Marchiori Buss (2002), em seu artigo denominado Promoção da
Saúde da família,12 com percuciência, afirma que na atualidade os protagonistas da
promoção da saúde são os determinantes gerais que se referem às condições de
saúde, a saber:
[...] a saúde é produto de um amplo espectro de fatores relacionados com a qualidade de vida, incluindo um padrão adequado de alimentação e nutrição, de habitação e saneamento, condições adequadas de trabalho e renda, oportunidades de educação ao longo de toda a vida, ambiente físico limpo, apoio social para famílias e indivíduos, estilo de vida responsável e um espectro adequado de cuidados de saúde. (2002, p. 52)
A Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde - DSS,
segundo Buss13, enfatiza que os determinantes da saúde são pessoais, ou seja,
relacionam-se às condutas de cada indivíduo e seu estilo de vida; e não pessoais,
de abrangência coletiva e interligados às condições políticas, econômicas, sociais,
culturais, ambientais, envolvendo, também, as políticas públicas de saúde e extra-
setoriais.
Os determinantes sociais da saúde constituem importantes indicadores de
desenvolvimento social e econômico de um país, uma vez que estão relacionados
aos recursos que a sociedade oferece aos seus cidadãos. Um maior investimento na
promoção da saúde através do maior acesso da população aos serviços de atenção
básica contribuem para a melhora da qualidade de vida e redução da vulnerabilidade
e riscos à saúde, otimizando os gastos no setor.
12
Promoção da Saúde da Família. Disponível em: <http://www.bvsms.saude.gov.br/bvs/is_digital/is_0103/is 23 (1) 021.pdf> Acesso em: 22 set. 2015. 13
Disponível em: <http://www.who.int/social_determinants/resources/ppt_cndss_bz.pdf> Acesso em: 28 set. 2016.
37
Corrobora com o disposto ápice a Estatística de Registro Civil 2015 do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, divulgada em 24 de novembro
de 201614, que aponta queda de 4,0% do total de registro de óbitos infantis (2005),
para 2,5% (2015) na faixa etária até um ano de idade. Na faixa etária até cinco anos
de idade, a queda foi de 4,8% para 3,0%.
Esse progresso, estreme de dúvida, decorre do investimento na atenção pré-
natal da gestante e do bebê, prevenindo patologias e agravos, promovendo a saúde
através do cuidado com o corpo e alimentação saudável, bem como tratando
eventuais intercorrências durante a gravidez até o pós-parto.
A saúde, portanto, não compreende apenas um direito, mas, acima de tudo,
uma responsabilidade social do Estado e da sociedade, pois, nas palavras de
Cristina Queiroz (2006, p.63), a realização dos direitos sociais não depende tão
somente de institucionalizar uma ordem jurídica e tampouco de uma mera decisão
política dos órgãos politicamente conformadores, mas sim, da conquista de uma
ordem social em que prevaleça uma distribuição justa dos bens, que será alcançada
progressivamente.
Essa conquista pode tornar-se realidade na área da saúde através da sua
promoção, que garante o maior acesso da população aos serviços e à assistência
integrada de atenção básica à saúde, com atendimento regionalizado, sistematizado
e continuado, que acompanha a vida do paciente, as suas necessidades e as da
comunidade onde vive, propiciando um contato humanizado, receptivo e acolhedor,
em respeito à dignidade humana e ao bem-estar social.
14
Disponível em:<http//www.saladeimprensa.ibge.gov.br> Acesso em: 24 nov. 2016.
38
3.2 A valorização do ser humano na sua totalidade: a eficiência e a integralidade nos serviços de saúde
As dificuldades encontradas para o cumprimento do dever do Estado de
garantir o direito à saúde a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país
concentram-se, em grande parte, no trabalho de conscientização da sociedade
acerca da promoção da saúde através da atenção básica como produto social.
A promoção e proteção de uma vida humana saudável deve ser estimulada
pelo Poder Público através da prestação de serviços eficientes de prevenção e de
cuidado com a saúde desde a gestação até a velhice, quando as capacidades
cognitivas são reduzidas ou perdidas no tempo, tornando prejudicada a autonomia
da vontade.
Dentre os princípios do serviço público destaca-se o dever do Estado de não
se escusar em promover a sua prestação, quer diretamente, quer indiretamente
mediante autorização, concessão ou permissão. No caso de omissão, como bem
destaca Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p. 678), “é cabível ação judicial
para obrigar o Estado a agir, ou então, responsabilidade por danos que
eventualmente possa causar em face da inércia”.
A prestação do serviço de saúde pela Administração Pública ou pelo
particular através da concessão do serviço público deve ser executada de forma
adequada e regular, pois, de acordo com o magistério de Diogenes Gasparini (2012,
p. 362) a respeito:
Além do direito ao serviço, também é reconhecido ao usuário o direito a uma prestação regular, que outra coisa não é senão um corolário daquele. De fato, de nada valeria o reconhecimento do direito ao serviço se, ao mesmo tempo, fosse desconhecido o direito a uma prestação regular. Isso parece óbvio, pois, pela execução irregular, pode-se chegar à negação da prestação. Destarte, se instalado e em funcionamento o serviço, o prestador assume a responsabilidade pela normalidade da sua execução e pelos prejuízos que a suspensão ou o mau funcionamento causar aos usuários.
39
O caminho para o cumprimento dos deveres do Poder Público, entretanto,
não deveria ser a judicialização, mas sim, a conscientização do prestador de que o
serviço público destina-se ao cidadão, que paga por ele através dos excessivos
encargos tributários exigidos no país. Como bem assenta Bandeira de Mello (2010,
p. 677), “é em função dele, para ele, em seu proveito e interesse que o serviço
existe”.
A ratificar esse entendimento, a Carta Magna é clara ao dispor que as ações
e serviços afetos à área de saúde são de relevância pública e, nos termos da lei,
devem ser regulamentadas, fiscalizadas e controladas pelo Poder Público. A
execução, por sua vez, pode ser feita diretamente pelo Poder Público, por terceiros
ou por pessoa física ou jurídica de direito privado (art. 197, CF).15
O descaso com o direito fundamental social à saúde contribui para a
formação de uma sociedade fragilizada e dependente de políticas sociais acéfalas e
protelatórias do bem-estar coletivo, que necessitam da intervenção do Poder
Judiciário para implementá-las e mantê-las, exigindo o cumprimento por parte da
Administração, que depende de disponibilidade financeira e previsão orçamentária
(reserva do possível), as quais são desconsideradas quando se trata de garantia do
mínimo existencial para uma vida digna ou de urgência.
Destaca-se, a respeito, a decisão do insigne Ministro Celso de Mello, do
Excelso Supremo Tribunal Federal, na ADPF 45/DF, assim ementada:
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA “RESERVA DO “POSSÍVEL”.
15
Art.197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
40
NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO “MÍNIMO EXISTENCIAL”. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).16
Como bem anota Carlos Ari Sundfeld (2011, p. 42), “[...] é necessário dividir
o exercício do poder político entre órgãos distintos, que se controlem mutuamente.”
Esse controle mútuo, entretanto, deve ser exercido em conformidade com os
ditames da lei maior, de modo a evitar o comprometimento da harmonia e da
independência entre os poderes que possa afetar a efetivação dos direitos
fundamentais sociais, ainda que se trate do mínimo existencial.
As políticas públicas, portanto, destinam-se ao atendimento do interesse
público que se sobrepõe ao interesse do particular. Partindo desse pressuposto, ao
se proceder à análise dos atos administrativos na área da saúde, impende sopesar
os meios empregados e os fins a serem alcançados, em especial no que tange à
relação custo-benefício.
É de bom alvitre, pois, o juízo de ponderação (ou razoabilidade), cuja
observância aos seus subprincípios constitutivos, quais sejam, adequação,
exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito, vincula os três poderes no
âmbito de sua atuação.
José Joaquim Gomes Canotilho (2003, p. 269-270) os elucida da seguinte
maneira:
a) O princípio da conformidade ou adequação impõe que a medida adoptada para a realização do interesse público deve ser apropriada à prossecução do fim ou fins a ele subjacentes. Consequentemente, a exigência de conformidade pressupõe a investigação e a prova de que o acto do poder público é apto para e conforme os fins justificativos da sua adopção (Zielkonformität,
16
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.45-9- DF, re. Min. Celso de Mello, j.29.04.2004.
41
Zwecktauglichkeit). Trata-se, pois, de controlar a relação de adequação medida-fim. [...] b) O princípio da exigibilidade, também conhecido como ‘princípio da necessidade’ ou da ‘menor ingerência possível’, coloca a tónica na ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível. Assim, exigir-se-ia sempre a prova de que, para a obtenção de determinados fins, não era possível adoptar outro meio menos oneroso para o cidadão. [...] c) O princípio da proporcionalidade em sentido estrito. Quando se chegar à conclusão da necessidade e adequação da medida coactiva do poder público para alcançar determinado fim, mesmo neste caso deve perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à ‘carga coactiva’ da mesma. Está aqui em causa o princípio da proporcionalidade em sentido restrito, entendido como princípio da “justa medida”. Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com o objetivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se, pois, de uma questão de ‘medida’ ou ‘desmedida’ para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim.
Qualquer controle a ser exercido sobre as políticas públicas de saúde deve
primar pelo interesse coletivo no atendimento do mínimo existencial, promovendo a
saúde através da atenção básica, que possa oferecer o acesso do maior número de
cidadãos ao cuidado integral humanizado, sem comprometer o funcionamento do
Sistema Único de Saúde – SUS e tampouco sobrecarregar o sistema de saúde
suplementar.
Em defesa do direito fundamental social à saúde, Mariana Filchtiner
Figueiredo (2007, p. 95) é clara ao dispor:
Os valores de preservação da vida humana, a garantia de níveis progressivamente mais altos de saúde, a salvaguarda do patrimônio genético próprio, a proteção da integridade física, mental e emocional, entre outros, conduzem a atuação dos particulares e dos Poderes Públicos na efetivação do direito à saúde. Com efeito, impõem a abstenção de comportamentos lesivos à saúde, no mais amplo sentido, assim como a promoção e a consecução de medidas tendentes a efetivar esse direito fundamental social, inclusive mediante prestações materiais específicas.
O reconhecimento da carência de recursos e atenção à área da saúde
potencializou a realização de Conferências Internacionais para o estabelecimento de
estratégias e diretrizes que são referências mundiais de promoção da saúde visando
42
a qualidade de vida saudável através da participação de toda a sociedade, o que
reforça o conceito de saúde não apenas como direito, mas, acima de tudo, como
responsabilidade social.
3.3 Conferências Internacionais de Promoção da Saúde: referências para uma qualidade de vida saudável
Para promover a saúde com o escopo de desenvolver ideias e políticas
públicas estruturadas e eficientes, a Conferência Internacional sobre Promoção da
Saúde realiza encontros periódicos internacionais. Nessas conferências é elaborado
um documento denominado Declaração ou Carta que estabelece os paradigmas
para uma saúde sustentável.
No presente trabalho serão mencionadas somente as seis Conferências
Internacionais sobre Promoção da Saúde e seus pontos mais relevantes. Inclui-se,
entretanto, a Declaração de Alma-Ata, cujo conteúdo influenciou as demais.
3.3.1 Declaração de Alma-Ata
A Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde foi
realizada na União Soviética no ano de 1978.
Na ocasião foi elaborada a Declaração de Alma-Ata17, que ratifica que a
saúde é um direito humano fundamental, razão pela qual os cuidados primários são
cuidados essenciais para uma qualidade de vida saudável. A meta social mundial é
a consecução do mais elevado nível possível de saúde, considerando a notável
desigualdade existente no estado de saúde dos povos. A promoção e proteção da
saúde dos povos é de suma importância para o contínuo desenvolvimento
17
Disponível em: <http://www.bioeticaediplomacia.org/wp-content/uploads/2013/.../alma-ata.pdf> Acesso em: 22 set. 20 15.
43
econômico e social, de modo a contribuir para uma boa qualidade de vida e a paz
mundial. A comunidade tem o direito e o dever de participar de forma individual ou
coletiva no planejamento e na execução dos cuidados de saúde. Essa
responsabilidade também é do governo, que deve adotar medidas sanitárias e
sociais adequadas. A meta do governo até o ano 2000 é atingir um nível de saúde
que possibilite a todos os povos uma vida social e econômica produtiva. Para o
alcance desta meta os cuidados primários de saúde (cuidados essenciais) baseados
em métodos e tecnologias práticas, com fundamentação científica e aceitação social
são colocados à disposição dos indivíduos e famílias que fazem parte da
comunidade, compreendendo o primeiro contato destes com o sistema nacional de
saúde e o primeiro elemento de um processo contínuo de assistência à saúde.
Os cuidados primários de saúde refletem as condições econômicas e as
características socioculturais e políticas do país e suas respectivas comunidades,
baseando-se na aplicação dos resultados expressivos da pesquisa social,
biomédica, serviços de saúde e experiência em saúde pública. Os cuidados
primários de saúde direcionam-se aos problemas de saúde da comunidade
oferecendo-lhe serviços voltados à proteção, cura e reabilitação, conforme as
necessidades locais.
Desenvolvem um planejamento de educação da comunidade em relação aos
problemas cruciais de saúde envolvendo métodos para a prevenção e controle, bem
como promovem a distribuição de alimentos e alimentação saudável. Os cuidados
com a água e saneamento básico, saúde materno-infantil, incluindo o planejamento
familiar, como também imunização contra doenças infecciosas, prevenção e controle
de doenças endêmicas, tratamento de doenças e lesões habituais e fornecimento de
medicamentos considerados imprescindíveis também fazem parte do planejamento
de educação.
Frise-se que tais cuidados também abrangem os setores ligados à
agricultura, pecuária, produção de alimentos, indústria, educação, habitação, obras
públicas, comunicações e outros. A efetiva participação da comunidade se faz
necessária, inclusive no que tange à utilização de recursos disponíveis a nível local
e nacional.
44
Para que esses cuidados se desenvolvam, compete aos governos
desenvolver políticas, estratégias e planos nacionais para sustentá-los em
composição com outros setores. A cooperação de todos os países para assegurar
os cuidados primários de saúde a todas as comunidades se faz necessária, pois a
saúde do povo de qualquer país beneficiará aos demais. O investimento nos
cuidados primários de saúde através da utilização dos recursos mundiais é de
extrema valia, principalmente quando o recurso financeiro empregado destina-se a
armamentos.
3.3.2 Carta de Ottawa
A Primeira Conferência Internacional Sobre Promoção da Saúde foi
realizada no Canadá (Ottawa) no mês de novembro do ano de 1986.
Na ocasião, foi elaborada a Carta de Ottawa18, focalizada especialmente
nas necessidades afetas à saúde nos países industrializados, sem desconsiderar as
necessidades de outras regiões do mundo. A capacitação da comunidade para a
sua participação ativa na melhoria de sua qualidade de vida e saúde é o foco da
mencionada carta. Promover a saúde compreende capacitar a comunidade a fim de
que possa atuar na melhoria de sua qualidade de vida e saúde, identificando suas
pretensões, satisfazendo suas necessidades e modificando de modo favorável o
meio ambiente visando o bem-estar global. A saúde é um recurso para a vida e não
um objetivo de viver.
Para que esse trabalho seja executado, existem recursos fundamentais que
não podem ser desconsiderados, tais como, paz, habitação, educação, alimentação,
renda, ecossistema estável, recursos sustentáveis, justiça social e equidade. O
desenvolvimento social, econômico e pessoal estão atrelados à saúde, pois tais
fatores podem contribuir ou prejudicar a saúde, razão pela qual a promoção da
18
Disponível em: <http://www.bvms.saude.gov.br/bvs/publicações/cartas–promoção.pdf> Acesso em: 14 ago. 2015.
45
saúde tem por escopo a sua defesa, propiciando, assim, que tais fatores sejam
favoráveis.
A equidade em saúde também é um dos objetivos da promoção da saúde
para reduzir as diferenças no estado de saúde da população e compete às pessoas
controlar os fatores determinantes da saúde. Para tanto, a promoção da saúde
requer uma ação coordenada do governo, setores saúde, sociais e econômicos,
organizações voluntárias e não-governamentais, autoridades locais, indústria e
mídia. A participação da população se faz necessária, quer individualmente, quer
entre famílias e comunidades.
A responsabilidade pela promoção da saúde deve ser compartilhada entre
todos os envolvidos objetivando a criação de um sistema de saúde que contribua
para a conquista de um elevado nível de saúde, o que somente será possível
através da focalização das necessidades do indivíduo, como pessoa integral que é.
Para tanto, foram firmados compromissos com a promoção da saúde, quais
sejam, atuação no campo das políticas públicas saudáveis e advogando um
compromisso político em relação à saúde e à equidade em todos os setores; ação
contra a produção de alimentos prejudiciais à saúde, a degradação dos recursos
naturais; as condições ambientais e de vida não-saudáveis e a má nutrição, de
modo a centrar a atenção nos novos temas de saúde pública que envolvem a
poluição, trabalho perigosos, habitação e assentamentos rurais; atuar pela
diminuição do fosso existente no que concerne às condições de saúde dos povos e
lutar contra as desigualdades em saúde; reconhecer as pessoas como o principal
recurso para a saúde visando capacitá-las para que se mantenham saudáveis, bem
como sua família e amigos; reorientar os serviços de saúde, incentivando a
participação e colaboração de outros setores e da comunidade; reconhecer a saúde
e sua manutenção como o maior desafio e o principal investimento social dos
governos, dedicando-se à ecologia e diferentes maneiras de vida.
O compromisso por uma forte aliança em saúde pública se faz necessário e
requer uma ação internacional. A justiça social e a equidade constituem pré-
46
requisitos para a saúde bem como a advocacia e a mediação como processos para
atingi-la.
3.3.3 Declaração de Adelaide
A Segunda Conferência Internacional Sobre Promoção da Saúde foi
realizada em Adelaide (Austrália), no período de 5-9 de abril de 1988.
Na ocasião, foi elaborada a Declaração de Adelaide19, voltada para as
políticas públicas, dando continuidade às orientações de Alma-Ata e Ottawa.
As políticas públicas saudáveis se preocupam com a saúde, a equidade e a
responsabilidade no que tange ao impacto na saúde. Tem por principal escopo a
criação de um ambiente saudável a fim de que as pessoas vivam de maneira
saudável. Elas também possibilitam a realização de escolhas saudáveis por parte
dos cidadãos, bem como propiciam um ambiente físico e social mais adequado à
saúde. Os setores governamentais devem dar grande ênfase à saúde como fator
essencial na formulação das suas políticas, assumindo assim, a responsabilidade
por suas decisões políticas.
A responsabilidade pública pela saúde constitui um elemento essencial para
o incremento das políticas públicas saudáveis, bem como a ação comunitária,
motivo pelo qual a integração dos setores econômico e social se faz necessária.
Nesses termos, mister se faz a constituição de novas alianças entre todos os setores
de modo a estimular ações voltadas para a promoção da saúde. A participação dos
governos é de suma importância visando a atuação de organizações e associações
voltadas para a melhoria da saúde da população.
Os pré-requisitos para o compromisso com a saúde pública global são: a paz
e a justiça social; alimentação nutritiva e água potável; educação e habitação
19
Disponível em:<http://www.saudepublica.web.pt/05-promocaosaude/Dec_Adelaide.htm> Acesso em: 14 ago. 2015.
47
condignas; papel ativo na sociedade e rendimento adequado e a conservação de
recursos e proteção ao ecossistema.
Para o reconhecimento de uma saúde global, torna-se necessário
compreender a interdependência dentro e entre os países, pois os desafios futuros a
serem enfrentados relacionam-se às providências para uma distribuição equitativa
de recursos; criação e preservação de condições saudáveis no setor habitacional e
no trabalho a fim de assegurar a saúde para todos; o encorajamento da colaboração
no que diz respeito à paz, aos direitos humanos, à justiça social, à ecologia e ao
desenvolvimento sustentável, em todo o globo; a colaboração deve ser incentivada
nos diversos setores com o objetivo de atingir uma melhor saúde e as políticas
públicas saudáveis devem propiciar que os avanços tecnológicos dos cuidados de
saúde auxiliem no processo de concretização da equidade.
O apoio aos países em desenvolvimento constitui um dos aspectos mais
importantes deste processo.
3.3.4 Declaração de Sundsvall
A terceira Conferência Internacional de Promoção da Saúde foi realizada
em Sundsvall (Suécia), no período de 9 a 15 de junho de 1991.
Na ocasião, foi elaborada a Declaração de Sundsvall20, focalizada no
engajamento ativo de todos os povos para a promoção de ambientes mais
favoráveis à saúde. A convocação para a ação é dirigida a políticos, ativistas e
defensores do setor saúde, do meio ambiente e da justiça social, que devem unir
forças e formar uma aliança voltada para o objetivo de atingir a Saúde Para Todos
no Ano de 2000.
20
Disponível em: <http://molar.crb.ucp.pt/cursos/.../21.../Declarações/4-Sundsvall.pdf> Acesso em: 23 set. 2015.
48
Em se tratando de saúde, o termo “ambientes favoráveis” relaciona-se aos
aspectos físico e social. As ações, para a criação de ambientes favoráveis,
envolvem as dimensões físicas, sociais, espirituais, econômicas e políticas, devendo
ser coordenadas no nível local, nacional e internacional.
Tratando-se da dimensão social, esta inclui as maneiras pelas quais normas,
costumes e processos sociais afetam a saúde. O crescente isolamento social, a
perda de significados e propósitos coerentes da vida e a perda de valores
tradicionais e herança cultural estão mudando, o que representa uma ameaça à
saúde.
A dimensão econômica requer o reescalonamento dos recursos para o
alcance da meta Saúde Para Todos no Ano 2000 e o desenvolvimento sustentável.
A necessidade de utilização do conhecimento do sexo feminino em todos os setores,
inclusive o político e o econômico, se faz necessária para o desenvolvimento de
infraestrutura positiva para ambientes favoráveis à saúde.
Dois princípios fundamentais são necessários para o alcance da meta Saúde
Para Todos no Ano 2000, quais sejam, priorizar a equidade, incluindo todos os seres
humanos, pois o mundo industrializado deve pagar o débito humano e ambiental que
acumulou por meio da exploração do mundo em desenvolvimento. O segundo
compreende ações do setor público voltadas para a criação de ambientes favoráveis
à saúde, considerando a interdependência entre todos os seres vivos e o
gerenciamento dos recursos naturais, considerando as necessidades das futuras
gerações. Não se pode esquecer dos povos indígenas, que devem ser envolvidos
nas atividades voltadas ao desenvolvimento sustentável.
Para tanto, mister se faz reforçar as ações sociais através da participação
comunitária, em especial pelos grupos organizados pelo sexo feminino; a
capacitação da comunidade e indivíduos para maior participação na tomada de
decisão e controle sobre a sua saúde e ambiente; mediação dos interesses em
conflito na sociedade visando assegurar o acesso igualitário a ambientes favoráveis
à saúde. O elemento chave para a realização de mudanças políticas, econômicas e
49
sociais é a educação focada na equidade em especial o respeito à cultura, classe
social e gênero.
O estabelecimento de novos mecanismos para a prestação de contas dos
setores saúde e ambiente devem ser construídos com fundamento no
desenvolvimento sustentável da saúde.
Concluiu a Conferência que a saúde, ambiente e desenvolvimento humano
estão interligados, sendo certo que desenvolver implica na melhoria da qualidade de
vida e saúde, bem como na preservação da sustentabilidade do meio ambiente,
pois, somente uma ação global, baseada na parceria de todas as nações,
assegurará o futuro de nosso planeta.
3.3.5 Declaração de Jacarta
A quarta Conferência Internacional de Promoção da Saúde foi realizada
em Jacarta (Indonésia) no período de 21 a 25 de julho de 1997.
Na ocasião, foi elaborada a Declaração de Jacarta21 realizada em um país
em desenvolvimento, sendo a primeira Conferência Internacional a proceder à
inclusão do setor privado no apoio à promoção da saúde.
A saúde constitui um direito humano fundamental e essencial para o
desenvolvimento dos setores social e econômico. Sua meta principal é o aumento
das expectativas de saúde e a redução da lacuna quanto à expectativa de saúde
entre os países e grupos. O desafio a ser enfrentado é o reexame dos determinantes
da saúde e a identificação das direções e estratégias para encarar a promoção da
saúde no século XXI.
21
Disponível em: <http://www.mpba.mp.br/atuacao/cidadania/.../declaracao_jacarta.pdf> Acesso em: 23 set. 2015.
50
A exigência prévia e indispensável para a promoção da saúde é o
reconhecimento dos pré-requisitos relacionados à saúde, quais sejam, a paz, abrigo,
instrução, segurança social, relações sociais, alimento, renda, direito de voz das
mulheres, um ecossistema estável, uso sustentável dos recursos, justiça social,
respeito aos direitos humanos e equidade. Destaca-se a pobreza como a maior
ameaça à saúde.
A promoção da saúde deve evoluir para fazer frente aos determinantes da
saúde, pois as estratégias de promoção da saúde podem modificar estilos de vida,
bem como as condições sociais, econômicas e ambientais que determinam a saúde.
Promover a saúde é obter maior equidade em saúde.
Os enfoques abrangentes do desenvolvimento da saúde são os mais
eficientes; as localidades oferecem oportunidades práticas para a implementação de
estratégias abrangentes; a participação é essencial para apoiar o esforço, pois a
população deve se envolver com a ação de promoção de saúde e tomada de
decisão, sendo certo que o aprendizado sobre saúde impulsiona a participação.
A atuação eficaz ao combate às ameaças emergentes à saúde requer a
cooperação e criação de parcerias entre os diversos setores em todos os níveis do
governo nas sociedades em condições de igualdade.
A promoção da responsabilidade social envolvendo os setores público e
privado se faz necessária a fim de evitar prejuízos à saúde de outros indivíduos;
proteger o meio ambiente e assegurar o uso sustentável dos recursos, restringir a
produção e o comércio de produtos e substâncias prejudiciais e a prática de
mercado insalubre; salvaguardar a pessoa, quer no mercado, quer no local de
trabalho; incluir uma avaliação do impacto sobre a saúde focado na equidade como
parte da elaboração de políticas.
O aumento de investimentos para o estímulo à saúde requer um enfoque
multissetorial, que incluam recursos adicionais para a educação, habitação e setor
saúde. Novas propostas devem ser formuladas, sendo certo que a cooperação é
51
essencial, bem como a consolidação e expansão de parcerias em prol da saúde que
compartilhem especializações, habilidades e recursos.
A promoção da saúde efetua-se pelo e com o povo e não sobre e para o
povo, razão pela qual a capacidade comunitária se faz necessária para influenciar os
determinantes da saúde.
Para a promoção mundial da saúde, mister se faz uma aliança mundial,
cujas prioridades incluem o aumento da sensibilização sobre a mudança dos
determinantes da saúde; criação de atividades de colaboração e de redes para o
desenvolvimento sanitário; mobilização de recursos para a promoção da saúde;
acumulação de conhecimentos sobre as melhores práticas; facilitação do
aprendizado compartilhado; promoção de solidariedade em ação e transparência e
responsabilidade pública de prestação de contas.
3.3.6 Declaração do México
A Quinta Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde foi
realizada na cidade do México (México), no período de 5 a 9 de junho de 2000.
Na ocasião, foi elaborada a Declaração do México22 e assinada pelos
ministros da saúde presentes, com o seguinte conteúdo: - reconhecem que a
consecução do nível de saúde mais alto possível é um elemento positivo para o
aproveitamento da vida e necessário para o desenvolvimento social, econômico e a
equidade; - reconhecem que a promoção da saúde e do desenvolvimento social é
um dever e responsabilidade central dos governos, compartilhada por todos os
setores da sociedade; - estão conscientes de que, nos últimos anos, através dos
esforços sustentados dos governos e sociedades em conjunto, houve uma melhoria
significativa da saúde e progresso na provisão de serviços de saúde em muitos
países do mundo; - constatam que, apesar desse progresso, ainda persistem muitos
22
Disponível em: <http://www.ergonomianotrabalho.com.br/artigos/Mexico.pdf> Acesso em 22 set. 2015.
52
problemas de saúde que prejudicam o desenvolvimento social e econômico e que,
portanto, devem ser urgentemente resolvidos para promover uma situação mais
equitativa em termos de saúde e bem-estar; - estão conscientes de que, ao mesmo
tempo, doenças novas ou que ressurgem ameaçam o progresso registrado na área
da saúde; - constatam a necessidade urgente de abordar os determinantes sociais,
econômicos e ambientais da saúde, sendo preciso fortalecer os mecanismos de
colaboração para a promoção da saúde em todos os setores e níveis da sociedade;
- concluem que a promoção da saúde deve ser um componente fundamental das
políticas e programas públicos em todos os países na busca de equidade e melhor
saúde para todos e constatam as amplas indicações de que as estratégias de
promoção da saúde são eficazes.
Recomendam, portanto, as seguintes ações: - colocar a promoção da saúde
como prioridade fundamental das políticas e programas locais, regionais, nacionais e
internacionais; - assumir um papel de liderança para assegurar a participação ativa
de todos os setores e da sociedade civil na implementação das ações de promoção
da saúde que fortaleçam e ampliem as parcerias na área da saúde; - apoiar a
preparação de planos de ação nacionais para promoção da saúde, se preciso
utilizando a capacidade técnica da OMS e de seus parceiros nessa área. Esses
planos variarão de acordo com o contexto nacional, mas seguirão uma estrutura
básica estabelecida de comum acordo durante a Quinta Conferência Global sobre
Promoção da Saúde, podendo incluir entre outros - identificação das prioridades de
saúde e estabelecimento de políticas e programas públicos para implantá-las; -
apoio às pesquisas que ampliem o conhecimento sobre as áreas prioritárias; -
mobilização de recursos financeiros e operacionais que fortaleçam a capacidade
humana e institucional para o desenvolvimento, implementação, monitoramento e
avaliação dos planos de ação nacionais.); - estabelecer ou fortalecer redes nacionais
e internacionais que promovam a saúde; - defender a ideia de que os órgãos da
ONU sejam responsáveis pelo impacto em termos de saúde da sua agenda de
desenvolvimento e informar ao direitos – geral da Organização Mundial da Saúde,
para fins do relatório a ser apresentado à 107ª sessão da Diretoria Executiva, o
progresso na execução dessas ações.
53
3.3.7 Carta de Banguecoque
A Sexta Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde foi realizada
em Banguecoque (Tailândia), no período de 5 a 11 de agosto de 2005.
Na ocasião foi elaborada a Carta de Banguecoque23, que afirma que o
cerne do desenvolvimento global e nacional são as políticas e alianças capazes de
capacitar as comunidades para melhorar a saúde e a equidade.
Os valores, princípios e estratégias da Carta de Ottawa são desenvolvidos
pela Carta de Banguecoque, sendo certo que os grupos alvo incluem todos os níveis
dos governos e classe política, sociedade civil, setor privado, organizações
internacionais e comunidade com intervenção na saúde pública.
O desfrute de um estado de saúde mais elevado sem qualquer
discriminação constitui um direito fundamental do ser humano, sendo certo que a
saúde constitui um determinante da qualidade de vida, incluindo o bem-estar mental
e espiritual.
Os fatores críticos que influenciam a saúde relacionam-se ao aumento das
desigualdades em cada país e entre diferentes países; novos padrões de consumo e
de comunicação; processos de comercialização, alterações ambientais a nível global
e a urbanização. Outro fator que influencia a saúde inclui as mudanças rápidas e
frequentemente adversas nas áreas social, econômica e demográfica.
A globalização possibilita a abertura de novas oportunidades que incluem a
otimização das tecnologias de informação e de comunicação e a melhoria do pros
processos de governação e de partilha de experiências. Para gerir os desafios da
globalização, mister se faz garantir a coerência das políticas adotadas por todos os
níveis de governo; todos os órgãos das Nações Unidas e outras organizações,
incluindo o setor privado.
23
Disponível em: <http://www.saudepublica.web.pt/05-PromocaoSaude/Dec_Bangkok.htm> Acesso em: 22 set. 2015.
54
A participação ativa da sociedade civil e o progresso na direção de um
mundo mais saudável implicam em medidas políticas enérgicas e atividades
permanentes de promoção da saúde.
Todos os setores devem atuar para defender a saúde alicerçada nos direitos
humanos e solidariedade; investir de modo sustentado em políticas, ações e
infraestruturas dirigidas aos determinantes da saúde; adquirir capacidades no
desenvolvimento de políticas, de liderança, de práticas de promoção da saúde, de
transferência de conhecimento e pesquisa, e de educação sanitária; legislar e criar
normas reguladoras que assegurem um nível elevado de proteção para a redução
de danos, e garantam a todas as pessoas os princípios de equidade e bem-estar em
saúde e viabilizar alianças e parcerias com a sociedade civil, organizações públicas
e privadas, não governamentais e internacionais, que garantam a sustentabilidade
das ações.
Estabeleceu-se quatro compromissos chave que devem contribuir para
que a promoção da saúde seja – de importância primordial para a agenda de
desenvolvimento global/mundial; - uma responsabilidade central e inquestionável de
todos os governos; - um objetivo fundamental para a sociedade civil e comunidade
em geral e – um requisito de boas práticas empresariais. A promoção da saúde deve
ser parte integrante das políticas nacionais e externas, como também, das relações
internacionais, incluindo situações de guerra e conflito.
Compete, pois, aos governos local, regional e nacional dar prioridade aos
investimentos em saúde dentro e fora do setor e financiar as ações de promoção da
saúde, com a participação da comunidade e da sociedade civil nas fases de
delineamento, implementação e execução das atividades, bem como do setor
empresarial.
Nesse passo, as parcerias e alianças são importantes para agregar pessoas
e organizações para o alcance de metas e realização de ações conjuntas visando a
melhora da saúde dos povos.
55
A Carta de Banguecoque, por conseguinte, solicita que todos os líderes
façam uma aliança mundial voltada para a promoção da saúde, entabulando
assumindo compromissos e ações a nível local e mundial.
Pautando-se nesse contexto internacional de promoção da saúde com a
efetiva participação e integração de todos os segmentos da sociedade e da
Administração visando a superação das deficiências na área da saúde e a prestação
de serviços de qualidade, mister se faz a análise da promoção da saúde no Brasil.
3.4 A Promoção da Saúde no Brasil: a interação comunitária com os setores público e privado em busca do bem-estar social
Promover saúde consiste, primeiramente, no oferecimento de condições
mínimas de infraestrutura de saneamento básico e educação à população que se
estende dos grandes centros às comunidades ribeirinhas. Essa atuação, entretanto,
não é apenas uma política de Estado, uma vez que requer o envolvimento
consciente de cada cidadão na escolha do estilo de vida que deseja para si e na
proteção ao ambiente natural.
No Brasil, a Lei Orgânica da Saúde – nº 8.080/9024, regula o Sistema Único
de Saúde – SUS, instituído pela Constituição da República de 1988, para
racionalizar os serviços oferecidos no setor, dispondo sobre as condições para a
promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos
serviços correspondentes em todo o território Nacional.
As diretrizes do SUS consistem na descentralização (político-administrativa),
atendimento integral e participação da comunidade (art. 198, incisos I-III, da CF),25
além da obediência aos seus princípios basilares, quais sejam, da universalidade,
24
Disponível em: <http://www.conselho.saude.gov.br lei8080_190990> Acesso em: 06 jun. 2015. 25
Art.198, caput e incisos I-III: As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I- descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II- atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III- participação da comunidade.
56
integralidade de assistência e igualdade (art. 7º, incisos, II e IV, da Lei nº 8.80/90)26,
sendo solidária a responsabilidade dos entes federativos no que concerne às ações
e serviços públicos de saúde.
A efetividade das diretrizes e dos princípios basilares do SUS é possível
através da participação conjunta da sociedade e da Administração, pois, como bem
salienta Marcus Augusto Perez (apud BUCCI, 2006, p. 169):
[...] a participação serve justamente para romper com o distanciamento entre a sociedade e a Administração, aproximando-a dos conflitos sociais e políticos e proporcionando aos administrados uma gestão responsiva, dinâmica, atenta à pluralidade dos interesses sociais, com vistas voltadas à efetivação dos direitos fundamentais, fator essencial para a eficiência das atividades do bem-estar que devem ser conduzidas pela Administração e para sua legitimidade, tanto em função da adesão racional da sociedade a um conjunto de medidas concretas, políticas ou programas que esta ajudou a formular, decidir e muitas vezes a executar, como em razão da eficiência dessa atuação conjunta.
Nessa esteira de pensamento e imbuída no desenvolvimento dos cuidados
de atenção básica à saúde foi aprovada a Política Nacional de Atenção Básica
(Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011)27, cujos princípios gerais caracterizam-
se em ações de saúde individuais e coletivas para promoção e recuperação da
saúde, prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de
danos e manutenção da saúde.
O foco é a atenção integral à saúde e aos seus determinantes, contando
com a participação social, tornando cada indivíduo sujeito do processo dos cuidados
básicos de sua saúde e da comunidade em que vive, bem como possibilitando o
acesso do maior número possível de cidadãos aos serviços de saúde atentando-se
às necessidades da população local.
26
Art. 7º, caput e incisos I, II e IV: As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art.198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: I- universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; II- integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; e IV- igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie. 27
Disponível em: <http://www.saude.mt.gov.br arquivo portarias> Acesso em: 30 set. 2016.
57
3.4.1 Programa Saúde da Família (PSF): a ênfase na atenção básica visando o acesso universal aos serviços de saúde com equidade e humanização
O cuidado integral à saúde fundamenta-se no respeito ao ser humano na
sua totalidade, incluindo a sua corresponsabilidade com a sua saúde e as
necessidades da comunidade em que vive, uma vez que a integralidade de
assistência disposta no artigo 7º, II, da Lei nº 8.080/90 refere-se às ações e serviços
contínuos de prevenção, seguidos dos curativos.
Michael Kidd (2016, p. 198-200) sustenta que “o investimento na promoção
da saúde requer a alocação de recursos destinados, primeiramente, à atenção
primária às demandas e necessidades de cada região geográfica do país, em
especial, à facilitação do acesso à rede de serviços de saúde”.
Nesta seara é relevante o estudo de Leavell e Clarck (1976) sobre a
Medicina Preventiva estabelecendo três níveis de prevenção, a saber: primária,
secundária e terciária. A prevenção primária relaciona-se à promoção da saúde e
proteção específica; a secundária ao diagnóstico e tratamento precoce e a terciária à
reabilitação.28
Denota-se que a prevenção primária está interligada à qualidade de vida
saudável, cuja promoção deve ser estimulada de modo contínuo a partir da infância
até o envelhecimento, a fim de educar e conscientizar cada indivíduo acerca da
responsabilidade com a sua saúde para evitar doenças.
Na prevenção secundária, o infortúnio relacionado à saúde já foi detectado e
necessita do seu rastreamento; ao passo que, na prevenção terciária, o foco é a
reabilitação, em razão de sequelas decorrentes de uma determinada patologia.
A atuação do Ministério da Saúde junto aos estados, municípios e Distrito
Federal é voltada à formação de Unidade(s) Básica(s) de Saúde - UBS, com ou sem
saúde da família; porém, com responsabilidade sanitária que garanta os princípios
28
Ministério da Saúde. Caderno de Atenção Primária- Rastreamento n. 29, 2010. Disponível em: <http://www.bvsms.saude.gov.br bvs publicacoes.pdf > Acesso em: 24 mar. 2015.
58
da atenção básica, em especial, promoção, prevenção reabilitação e manutenção da
saúde, entre outros. Os municípios são responsáveis pela implantação do programa,
com o apoio das secretarias estaduais de saúde e do Ministério da Saúde.
A atenção básica tem na saúde da família a sua estratégia principal, cujas
diretrizes são organizadas em conformidade com o Sistema Único de Saúde,
priorizando a atuação integral, contínua e organizada dos serviços de saúde
descentralizados em respeito ao princípio da equidade.
A preocupação com o ser humano na sua integralidade constitui um estímulo
à participação da comunidade, que exerce o controle das atividades desenvolvidas a
fim de que a operacionalização do programa alcance o maior número possível da
população, bem como atenda os problemas de maior frequência e relevância em
saúde de cada território.
A equipe multidisciplinar é composta, no mínimo, por um médico generalista
(ou especialista em saúde da família), enfermeiro generalista (ou especialista em
saúde da família), auxiliar ou técnico de enfermagem e agentes comunitários de
saúde. Pode ser acrescentado um cirurgião-dentista generalista (ou especialista em
saúde da família) e auxiliar ou técnico em saúde bucal. Estimula-se a capacitação e
educação permanente dos profissionais, além de uma remuneração adequada ao
trabalho executado.
O campo de atuação não se vincula ao aspecto sanitário tão somente, mas,
principalmente, ao educacional, através de ações educativas de conscientização do
cuidado com a saúde no âmbito individual e coletivo, para a escolha de uma vida
saudável, cujo estímulo deve ter início com a gestação a fim de que as novas
gerações possam ter melhor condição de vida e de convívio em sociedade.
Como política pública de saúde, o programa saúde da família enfrenta
escassez de recursos repassados pelo Ministério da Saúde, o que dificulta o
fornecimento de equipamentos e materiais adequados ao atendimento dos princípios
básicos propostos, a uniformização nacional do prontuário eletrônico do paciente
para a redução de custos, sem desconsiderar comunidades cuja complexidade dos
59
problemas de saúde não são atendidos por falta de infraestrutura e profissionais de
saúde qualificados.
A despeito desses desafios, facilitar o acesso do maior número de cidadãos
ao atendimento básico de saúde através de um programa educativo que desenvolva,
primeiramente, a corresponsabilidade de cada indivíduo com o seu bem-estar e,
consequentemente, com o da coletividade, constitui uma dinâmica de construção
coletiva à atenção à saúde de qualidade, dignidade e solidariedade entre a parceria
pública e privada.
3.4.2 Sistema de medicina familiar na saúde suplementar: uma proposta de acesso à atenção primária à saúde com eficiência
A assistência à saúde é livre à iniciativa privada, nos termos do artigo 19929
da Carta Magna, uma vez que é cediço que o Estado não dispõe de condições
orçamentárias para garantir o acesso à saúde a todo cidadão brasileiro.
Os planos privados de assistência à saúde são regulamentados pela Lei nº
9.656/98 e controlados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar- ANS, criada
pela Lei no. 9.961, de 28.1.2000 e ANVISA - Agência Nacional de Vigilância
Sanitária, criada pela Lei no.9.782, de 26.01.1999, que exercem poder de polícia
com o escopo de impor limitações administrativas e fiscalizar as operadoras de
saúde na prestação dos serviços de natureza securitária ao consumidor, que lhe
paga um valor mensal (prêmio), para o fornecimento do serviço contratado.
O sistema de saúde suplementar também constitui um fator de aumento da
judicialização da saúde, em decorrência de descumprimento do contrato por parte
das operadoras de planos de saúde, o que tem causado descontentamento dos
consumidores, que recorrem à justiça para o cumprimento da vontade previamente
estabelecida entre as partes contratantes.
29
Art.199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
60
As divergências, em sua grande maioria, centralizam-se na negativa de
cobertura de tratamentos e procedimentos não cobertos pelo plano contratado ou
que não se encontram elencados no rol de procedimentos da ANS, ou então, de
medicamentos de tecnologia de ponta, cujo custo não é coberto ou é inviável para o
fim a que se destina.
Os conflitos de interesses não propiciam benefícios às partes envolvidas,
pois, ao mesmo tempo em que oneram o sistema de saúde suplementar,
comprometendo os demais segurados, não satisfazem um atendimento integralizado
e humanizado, que proporcione ao consumidor um tratamento adequado durante
toda a vida.
O sistema de medicina familiar,30 segundo notícia da Universidade Aberta do
SUS (UNA-SUS), é um estímulo ao atendimento básico de saúde com eficiência e
celeridade, com referência na Holanda, Inglaterra, Canadá e Espanha. O sistema é
desenvolvido pela Unimed e Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do
Brasil – Cassi.
De início, o sistema atuaria em consultas de rotina ou situações inusitadas,
como por exemplo, sinusite e problemas gastrointestinais. O segurado seria
atendido por um médico clínico geral em atenção primária.
Em se tratando de um problema de saúde que pode ser solucionado sem a
necessidade de um médico especialista, o cuidado básico é executado com
acompanhamento contínuo durante toda a vida. Caso contrário, após a anamnese e
o exame clínico, diagnosticada eventual patologia, o segurado será direcionado ao
médico especialista.
O acompanhamento do tratamento ou procedimento é coordenado pelo
médico de atenção primária, equipe e especialista, de modo que o segurado será
assistido em sua integralidade com eficiência e presteza. Certamente, o
30
Disponível em: <http://www.unasus.gov.br/noticia/planos-de-saude-adotam-sistemade-medicina-familiar> Acesso em: 01 out. 2016.
61
acompanhamento do paciente é integrado ao seu prontuário eletrônico, cujos dados
constituem uma preciosa ferramenta para a prestação de um serviço de qualidade.
Trata-se de um trabalho de promoção da saúde, que deve acompanhar o
segurado desde o primeiro contato, de modo a prevenir patologias e estimular uma
qualidade de vida saudável, com corresponsabilidade e autonomia do segurado no
cuidado com a sua saúde.
Promover saúde, acima de tudo, é desenvolver medidas sociais e
educativas de prevenção, recuperação e manutenção da saúde, através do
acolhimento e formação de vínculo de cuidado para um tratamento adequado que
deve ser para toda a vida, isto é, desde a gestação até o envelhecimento do ser.
O acolhimento e o vínculo de cuidado se iniciam no encontro do paciente
com o médico, protagonistas principais da relação interpessoal humanizada,
centrada na visão holística do ser humano e no respeito à sua autonomia para
decidir sobre sua própria vida.
62
4 PACIENTE: UM SER HUMANO FRAGILIZADO PELO DESCONHECIDO
Do latim (patiens, patientis), registra De Placido e Silva (1984, p. 298, vols.
III e IV) que paciente é aquele que “sofre ou que suporta”. Refere ainda que na
terminologia médica, é o “que suporta ou que vai sofrer uma operação cirúrgica” e,
em todos os sentidos, “é sempre designação dada à pessoa que vai sentir os efeitos
da ação, em regra praticada por outrem”.
O sentimento e o sofrimento do paciente centralizam-se na situação de
desequilíbrio que assola sua mente e corpo. A busca do equilíbrio perdido o conduz
ao processo de introspecção, isto é, de reflexão sobre si mesmo, de suas agruras e
inseguranças diante do desconhecido que o atemoriza.
É nesse momento que as experiências vividas por este frágil e debilitado ser
vêm a tona e passam a ser compartilhadas com aqueles que estão ao seu redor,
entre eles, o médico, pelo qual nutre confiança para expor a sua individualidade e
privacidade e do qual espera respeito por sua integridade física e por seus valores
éticos e morais.
O sofrimento atrelado à dor suportada pelo paciente não envolve apenas um
fator biológico, ou seja, um mal-estar que toma conta do corpo, mas também, fatores
culturais e sociais que envolvem o ser na sua totalidade.
Nesse diapasão, Roselyne Rey (2012, p. 21) ao tratar da dor destaca a
importância da análise do ser na sua integralidade:
[...] a dor, quando ela é intensa, durável, ou simplesmente crônica, implica sempre o ser integralmente: ela não se limita à parte dolente, mas é o indivíduo em sua unidade que é atingido pela dor, seu caráter que é obscurecido, sua lucidez intelectual que fica amortecida.
Acrescentando ainda as palavras de Montaigne (1533-1592 apud REY,
2012, p. 21):
63
(...) os sofrimentos que nos tocam simplesmente pelo espírito me afligem muito menos do que a maior parte dos homens: [...] mas os sofrimentos verdadeiramente essenciais e corporais, eu os experimento muito mais intensamente.
Se o tratamento eficaz da dor envolve a observação e a compreensão do
ser na sua totalidade, é salutar a interação do médico com o ambiente sociocultural
em que o paciente está inserido, de modo a propiciar a aceitação do tratamento que,
sob o ponto de vista terapêutico, é o mais adequado, efetivo e humanizado porque
assegura o respeito à sua integridade físico-psíquica, intelectual e moral.
4.1 O paciente e a doença: a vivência do ser com o desequilíbrio interior.
As doenças surgiram a partir do momento em que o homem passou a viver
em grandes grupos, o que contribuiu para a formação das civilizações. Os seres
humanos viviam em contato com a natureza e dela retiravam o necessário à sua
sobrevivência e de sua família sem afrontá-la.
No decorrer do tempo, dispondo de tecnologia avançada e de extrema
sofisticação, bem como diversificando os seus interesses materiais, o homem
passou a controlar a natureza utilizando-a sem limitações, contribuindo para os
desmatamentos, poluição atmosférica em decorrência dos gases emitidos, o que
prejudica o ar respirado, elemento indispensável para assegurar a vida terrestre.
Esse descontrole no lidar com a natureza interfere na qualidade de vida dos
seres humanos, expondo em risco as civilizações existentes no planeta.
Ao conceituar doença, Nicola Abbagnano (2007, p. 344) a define como
“expressão significativa da situação existencial do homem”.
A complexidade da definição é cristalina, pois não se relaciona somente ao
aspecto biológico da doença em si, mas também, ao emocional, social e cultural,
64
envolvendo o ser humano na sua totalidade, considerando o meio em que vive, a
família, os demais indivíduos com quem se relaciona no cotidiano e o trabalho.
O conflito interno e externo no qual o indivíduo encontra-se inserido o torna
frágil e debilitado perante a comunidade onde vive e a sociedade como um todo.
A doença contribui para o isolamento social, pois o doente tem receio da
rejeição dos demais pares. O sentimento de impotência técnica também expõe o
paciente a situações de constrangimento e insegurança.
Se a doença é vista como uma anormalidade, é certo que necessita ser
enfrentada e tratada com todos os cuidados necessários, inclusive para não tornar o
paciente mero objeto de procedimentos e tratamentos fadados ao insucesso.
Ao tratar sobre Doença versus Enfermidade na Clínica Geral, Cecil G.
Helman (2009), pesquisador assistente em Antropologia na Universidade de
College, Londres, define doença e enfermidade sob o ponto de vista do paciente
frente às suas limitações acerca do conhecimento de si mesmo.
Afirma que:
[...] doenças são vistas como “coisas” abstratas ou entidades independentes que têm propriedades específicas e uma identidade recorrente em qualquer configuração em que possam aparecer. Isto é, assume-se que elas sejam universais em sua forma, progresso e conteúdo... Enfermidade inclui não somente sua experiência de saúde debilitada, mas o significado que ele confere àquela experiência. Enfermidade, portanto, é a perspectiva do paciente sobre sua saúde debilitada, a perspectiva que é muito diferente do modelo de doença. (2009, p. 120)31
De se notar que a análise do conceito de doença é objetiva, ou seja,
compreende um conceito abstrato, que pode ser refutado mundialmente, ao passo
que a enfermidade envolve uma análise subjetiva, isto é, está relacionada ao
indivíduo isoladamente ou a um grupo de indivíduos.
31
Disponível em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/campos/article/dounload/.../13029.pdf> Acesso em: 10 set. 2015.
65
As expectativas do paciente e familiares extrapolam a esfera emocional
alcançando as esferas social e cultural. O envolvimento com o mal que o acomete o
conduz a uma reflexão do eu, enquanto ser que dispõe do livre arbítrio para decidir
sobre sua vida.
Nessa esteira de pensamento, Thorwald Dethlefsen e Rudiger Dahlke (2007,
p. 17) conceituam doença:
[...] a doença é um estado do ser humano que indica que, na sua consciência, ela não está mais em ordem, ou seja, sua consciência registra que não há harmonia. Essa perda de equilíbrio interior se manifesta no corpo como um sintoma. Sendo assim, o sintoma é um sinal e um transmissor de informação, pois, com seu aparecimento, ele interrompe o fluxo da nossa vida e nos obriga a prestar-lhe atenção. O sintoma avisa que, como seres humanos, como seres anímicos, nós estamos doentes, isto é, o equilíbrio de nossas forças anímicas interiores está comprometido. O sintoma nos informa que está faltando alguma coisa.
Cassell (1978 apud HELMAN, 2009) considera enfermidade “o que o
paciente sente quando ele vai ao médico” e doença “o que o paciente tem ao voltar
para casa do consultório médico”. “Doença, então, é algo que um órgão tem;
enfermidade é algo que um homem tem”.32
Nesse contexto, a enfermidade é a interação do ser humano no aspecto
holístico e sua doença. É o resultado de fatores biológicos, psicológicos, sociais e
culturais vivenciados no cotidiano que, muitas vezes, o colocam em situações
conflitantes envolvendo escolhas e decisões fundamentais para a descoberta do
sentido do viver.
Assim entendida, a questão converge para a definição do ser e sua
existência dentro da sua concepção de vida.
O ser, na sua complexidade, interpreta a doença em conformidade com a
definição científica desta, não descartando a ausência do conhecimento técnico-
científico acerca do diagnóstico, prognóstico, procedimentos e tratamentos
32
Ibid., p.120.
66
disponíveis. A enfermidade, por sua vez, envolve um sentimento interno de mal estar
ou dor ímpar e, por conseguinte, imensurável sob o ponto de vista da limitada
percepção humana.
Pablo González Blasco (2011, p.26), ao versar sobre a vivência do paciente
com a doença destaca que:
[...] o doente não se esgota na doença. Estar doente é uma condição, e não um modo de ser. A condição de estar doente será vivenciada de acordo com o ser – no sentido metafísico, ontológico da palavra- de quem é afetado por ela. Daí que a doença se nos apresente sempre personalizada, instalada em alguém concreto, numa pessoa determinada, que vivenciará a sua doença de acordo com o seu ser pessoal.
As interrogações do homem ao lidar com as adversidades da vida, incluindo
a doença, envolvem a razão da sua existência e a consciência de sua escolhas ao
longo da vida.
Nesse passo, uma breve exposição do pensamento de Heidegger, Gadamer
e Foucault a respeito do ser e de sua participação nas decisões que interferem na
sua dignidade e no seu equilíbrio vital ante a perturbação (doença) que o assola se
faz necessária. A questão não envolve uma análise filosófica e tampouco
psicanalítica a respeito do ser, cuja complexidade da definição não é objeto deste
trabalho.
4.2 O ser e a sua existência: o entender a si mesmo
4.2.1 Martin Heidegger
Filósofo alemão (1889 -1976) que marcou o século XX e escreveu diversas
obras, dentre elas, Ser e Tempo, escrita no ano de 1927. A preocupação com o ser,
sua existência e verdade influenciaram sua obra em busca do sentido do ser.
67
Para Heidegger (2012, p. 139), “o homem é o Dasein – ser aí, sendo que
sua essência reside em sua existência, cabendo-lhe, pois, responder pelo próprio
ser”.
Norberto Keppe (2010, p. 220), psicanalista, ao discorrer sobre Heidegger
afirma que “sua análise da vida cotidiana do homem envolve três aspectos de suma
importância, a saber: facticidade, existencialidade e ruína”.
Afirma que o estar no mundo sem a participação da própria vontade constitui
a facticidade; a existencialidade é evidenciada através dos atos de apropriação de
tudo o que existe no mundo; enquanto a ruína é o desvio de cada indivíduo do seu
projeto essencial, em virtude das vicissitudes do cotidiano, que o distraem e
perturbam, o que o torna preguiçoso e covarde e culmina por deixá-lo viver na
banalidade, de modo a ser um ente afastado de si mesmo.
De se notar que o ser e o mundo (ser-no-mundo) estão interligados, razão
pela qual o homem necessita trabalhar com sua existência tendo como ponto de
partida o seu próprio interior. Ao se relacionar com o outro, o homem também busca
entender a si mesmo e o mundo ao seu redor.
A reflexão da sua existência é de grande valia, uma vez que o homem tem a
liberdade de fazer suas próprias escolhas. A inércia, por seu turno, expõe o homem
ao medo, à angústia de decidir sobre sua vida e, consequentemente, decidir sobre
seu próprio destino diante dos valores que considera relevantes para si mesmo. Há
que se evitar que o homem não venha a se satisfazer com ideias preconcebidas do
outro, aceitando-as passivamente por se sentir exilado de si mesmo.
68
4.2.2 Hans- Georg Gadamer
Filósofo alemão (1900-2002), de grande destaque no século XX e discípulo
de Heidegger, desenvolveu a denominada teoria da hermenêutica filosófica, cuja
arte da compreensão é o cerne do seu pensamento.
Para a compreensão de si mesmo e do outro, torna-se necessário,
primeiramente, o entendimento entre eles, que ocorre através do diálogo. A
hermenêutica filosófica constitui um processo de interpretação das experiências
vividas no cotidiano, que são manifestadas através da palavra, da linguagem e da
tradição.
A hermenêutica não é, pois, apenas uma disciplina auxiliar que cumpre a função de uma importante ferramenta metodológica para todas as ciências. Penetra até o mais íntimo da filosofia, que não é apenas pensamento lógico e investigação metodológica, mas sempre persegue uma lógica do diálogo. O pensamento é a conversação da alma consigo mesma. Assim definiu Platão o pensamento, e tal significa, simultaneamente, que pensar é ouvir as respostas que damos a nós mesmos ou que nos são dadas, quando trazemos à pergunta o que é incompreensível. Entender o incompreensível e, sobretudo, entender o que quer ser entendido, engloba a totalidade da nossa capacidade de meditar, que oferece sempre nas religiões, na arte dos povos, na torrente da nossa tradição histórica novas respostas e desperta, com cada resposta, uma nova pergunta. Isto é a hermenêutica como filosofia. (GADAMER, 2009, p.181)
Para Gadamer (2009), o ser humano vive em um estado de equilíbrio e
harmonia. A doença corresponde a perda desse equilíbrio, ou seja, o homem sente
que algo o perturba. A doença é uma experiência do paciente consigo mesmo,
inclusive para o restabelecimento do equilíbrio natural que considera perdido.
O doente deixa de ser o mesmo que era antes. Singulariza-se e desprende-se da sua situação vital. No entanto, permanece ligado a ela na sua esperança de um regresso, como acontece com todo aquele que perdeu algo. Se a recuperação do equilíbrio natural ocorrer com êxito, o maravilhoso processo de restabelecimento devolve também ao convalescente o equilíbrio vital no qual previamente se sentia ele mesmo. (2009, p. 56)
69
De se notar que a doença não está relacionada tão somente à questão afeta
à ciência médica, mas, primeiramente, ao próprio paciente, isto é, à sua experiência
com essa perturbação que almeja se libertar, até porque, preleciona Gadamer
(2009, p. 56) que a doença também envolve “um processo relacionado com a
história da vida do indivíduo e com a sociedade”.
Nesse contexto, ao perceber que algo não está bem, o paciente procura
restabelecer o equilíbrio da vida e da vontade de viver. Ele não sucumbe à
perturbação (doença) que o desestabiliza, mas sim, procura meios de solucionar ou
ao menos amenizar os incômodos que ela provoca.
4.2.3 Michel Foucault
Filósofo francês (1926-1984) que, ao tratar das ciências humanas, é enfático
ao dispor sobre o homem enquanto ser vivo que interage com suas experiências,
desenvolvendo a capacidade de poder representar a vida, a saber:
[...] é esse ser vivo que, do interior da vida à qual pertence inteiramente e pela qual é atravessado em todo o seu ser, constitui representações graças às quais ele vive e a partir das quais detém esta estranha capacidade de poder se representar justamente a vida. (FOUCAULT, 2007, p.487)
Para Foucault (2014, p. 07), a perturbação é apresentada ao profissional de
medicina pelo próprio doente, uma vez que “o conhecimento das doenças é a
bússola do médico” e “quem desejar conhecer a doença deve subtrair o indivíduo
com suas qualidades singulares”.
Acentua o filósofo que a doença não representa nada mais do que a
“coleção dos sintomas” (2014, p.100), que compreende a doença significada.
É a essência do ser que deve ser abstraída para que se possa tornar visível
o que permanece envolto na dúvida, na incerteza, no medo, de não se fazer
70
compreender e ser compreendido, até porque a doença envolve um todo indivisível,
não obstante as singularidades do ser doente e a sua fragilidade frente ao mal que
lhe acomete.
A par disso, o filósofo apresenta um novo conceito da arte da medicina, do
conhecimento do indivíduo doente e da sociedade no qual se encontra inserido, a
saber:
A medicina não deve mais ser apenas o corpus de técnicas da cura e do saber que elas requerem; envolverá, também, um conhecimento do homem saudável, isto é, ao mesmo tempo uma experiência do homem não doente e uma definição do homem modelo. Na gestão da existência humana, tomo uma postura normativa que não a autoriza apenas a distribuir conselhos de vida equilibrada, mas a reger as relações físicas e morais do indivíduo e da sociedade em que vive. Situa-se nessa zona fronteiriça, mas soberana para o homem moderno, em que uma felicidade orgânica, tranquila, sem paixão e vigorosa se comunica de pleno direito com a ordem de uma nação, o vigor de seus exércitos, a fecundidade de seu povo e a marcha paciente de seu trabalho. (FOUCAULT, 2014, p.37-38)
A arte da medicina que requer um procedimento acurado de observação e
investigação do paciente extrapolando a doença expressa através do corpo para
alcançar a pessoa que expressa as suas lamentações, o seu sofrimento e a sua dor
diante do desconhecido é exercida pelo médico, um defensor da saúde e a vida
digna de ser vivida.
71
5 MÉDICO: GUARDIÃO DA SAÚDE E DA VIDA COM DIGNIDADE
A medicina, no decorrer do século XVIII, centrava-se na saúde com o
escopo de propiciar a cura do paciente. A relação médico-paciente era tecnicista, ou
seja, o médico exercia a sua função aplicando todo o seu conhecimento científico
para o restabelecimento da saúde do paciente.
Com o passar do tempo, precisamente entre os séculos XIX e XX, a atuação
permaneceu centrada no poder do corpo, tornando-se a descoberta da pessoa um
grande desafio para o século XXI, como bem salienta o médico americano Eric J.
Cassell (1991 apud CAPRARA e FRANCO, 1999):33
A tarefa da medicina no século XXI será a descoberta da pessoa, encontrar as origens da doença e do sofrimento, com este conhecimento desenvolver métodos para o alívio da dor, e ao mesmo tempo, revelar o poder da própria pessoa, assim como nos séculos XIX e XX foi revelado o poder do corpo.
A visão do paciente como ser portador de determinada doença adicionada
ao conhecimento científico do médico e à alta tecnologia na área da saúde,
prepondera na relação médico-paciente, o que dificulta a comunicação entre as
partes envolvidas, em prejuízo do paciente vulnerável aos sentimentos de
insegurança e medo diante do desconhecido.
Partindo da análise da integridade físico-psíquica, mental e social do
paciente, a sua interação com o médico passou a ser objeto de preocupação,
inclusive para garantia de qualidade de vida digna, ainda que o ser humano se
encontre em fase terminal.
Nessa linha de argumentação, mister se faz distinguir os conceitos de tratar
e de cuidar, uma vez que o tratar relaciona-se diretamente ao conhecimento técnico
–científico do médico; ao passo que o cuidar envolve o ser na sua integralidade,
33
“A Relação paciente-médico: para uma humanização da prática médica”. Caderno Saúde Pública: Rio de Janeiro, 15(3), jul-set.1999, p.647-654.
72
centrando a preocupação na pessoa do paciente e seus familiares, suas
necessidades e angústias.
Dentro desse contexto, Elma Zoboli (apud BERTACHINI; PESSINI, 2011, p.
64), ao discorrer sobre o tratar e o cuidar ensina:
No “tratar”, o paciente reduz-se a um diagnóstico feito por um profissional da saúde que se relaciona com um “número de leito”. Trata-se de apenas mais um caso. [...] No mote do “cuidar”, o profissional da saúde presta atenção global e continuada a um doente, que é, antes de tudo, uma pessoa, um ser único e insubstituível. O trabalho centra-se em prover atenção ao que a pessoa necessite, e não somente ao requerido pela doença. O paciente não é só um caso a mais, mas uma pessoa única, singular, em uma situação particular e que carece e merece ser assistida de maneira individualizada, integral e respeitosa.
Se o núcleo central do ato de tratar é o conhecimento técnico-científico do
médico, é possível inferir que o início de sua atuação é a concepção do ser
estendendo-se até a sua morte, o que se denomina tratamento vertical. Ocorre que
no ciclo natural da vida a eventual constatação do diagnóstico de uma determinada
doença, seguido do seu prognóstico, pode entrelaçar a atuação tecnicista à atuação
humanística, dando-se início ao denominado tratamento horizontal, que consiste,
primeiramente, na análise da interação do ser humano com a sua patologia,
estendendo-se aos familiares.
A confluência entre os tratamentos é benéfica para o médico e para o
paciente e familiares, pois alicerça uma relação intersubjetiva, que fortalece a
capacidade de interação entre a atuação profissional e a atuação interpessoal
humanizada. O médico e o paciente, muito embora sejam sujeitos dotados de
autonomia nessa relação, tornam-se parceiros na busca pela solução mais
adequada, funcional e eficiente para tratar do mal que os aflige.
As partes envolvidas passam a se relacionar despidas de qualquer
formalidade, uma vez que a patologia constitui uma ameaça que conduz à reflexão
da importância da vida, de sua qualidade e, em alguns casos, de seu
prolongamento, ainda que com dor e sofrimento.
73
Nesse momento, o tratar e o cuidar alicerçam os laços da dignidade, do
respeito, do acolhimento e da compreensão do outro e de sua fragilidade, tornando-
se o diferencial da prestação de serviços de saúde com qualidade:
‘Cuidado em saúde’ é o tratar, o respeitar, o acolher, o atender o ser humano em seu sofrimento - em grande medida fruto de sua fragilidade social -, mas com a qualidade e resolutividade de seus problemas. O ‘cuidado em saúde’ é uma ação integral fruto do ’entre-relações’ de pessoas, ou seja, ação integral como efeitos e repercussões de interações positivas entre usuários, profissionais e instituições, que são traduzidas em atitudes, tais como: tratamento digno e respeitoso, com qualidade, acolhimento e vínculo.34
O cuidado em saúde prioriza, em primeiro lugar, o interesse pelo outro, que
envolve a atenção e a participação conjunta para aliviar a sua dor emocional e a
ansiedade patológica decorrentes da perda do controle sobre a própria vida e o seu
significado. O temor e a insegurança causados por esse desequilíbrio favorece a
integração psicossocial e espiritual do médico e do paciente, com acompanhamento
dos familiares, dando-lhe suporte para exercer a sua autonomia e aderir ao
tratamento proposto.
O cuidado em saúde não se inicia no momento em que o paciente foi
diagnosticado com resultado positivo para determinada patologia, mas sim, com a
promoção da saúde e prevenção de doenças, uma vez que cada indivíduo tem
corresponsabilidade por sua saúde e pela escolha do seu modo de viver, o que,
consequentemente, influenciará no bem-estar da coletividade.
O cuidado em saúde é, pois, um compromisso assumido pelo indivíduo e
pela sociedade em parceria com os profissionais de saúde, em especial, o médico, a
quem compete conhecer e respeitar os direitos e deveres dos pacientes e nortear a
sua conduta nos direitos e deveres sistematizados no Código de Ética Médica
(CEM).
34
PINHEIRO, Roseni. Cuidado em Saúde. Disponível em: <http://www.sites.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/cuisau.html> Acesso em: 27 abr. 2016.
74
6 DIREITOS E DEVERES DOS CIDADÃOS QUE UTILIZAM OS SERVIÇOS E PARTICIPAM DAS AÇÕES DE SAÚDE: O EXERCÍCIO DO DIREITO À SAÚDE INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA
Os direitos dos cidadãos que utilizam os serviços de saúde do setor público
ou privado estão assegurados pelos princípios basilares do Estado Democrático de
Direito, entre os quais, a dignidade da pessoa humana e a cidadania.
Enquanto a dignidade da pessoa humana assegura o respeito ao ser na sua
totalidade (físico-psíquico, mental e social), a cidadania proporciona aos indivíduos a
titularidade dos direitos fundamentais e a participação ativa no seu exercício.
Esposando o entendimento de que a cidadania fundamenta-se no
reconhecimento do indivíduo como integrante da sociedade estatal, José Afonso da
Silva (2012, p. 38) afirma que:
A cidadania, assim considerada, consiste na consciência de pertinência à sociedade estatal como titular dos direitos fundamentais, da dignidade como pessoa humana, da integração participativa no processo do poder, com a igual consciência de que essa situação subjetiva envolve também deveres de respeito à dignidade do outro, de contribuir para o aperfeiçoamento de todos.
O respeito à integridade físico-psíquica não envolve apenas o ser dotado de
vontade e de capacidade para exercer os atos da vida civil, mas também, remonta-
se à sua interação com o ambiente que o cerca relacionado ao trabalho, ao lazer, à
família, à segurança, entre outros.
Persiste o entendimento de relacionar a integridade físico-psíquica apenas
ao fator saúde, relegando para patamar secundário as demais áreas da vida do
indivíduo, que o completam enquanto ser único e integrante de um contexto
sociocultural.
75
As responsabilidades do cotidiano, a carga exaustiva de labor, muitas vezes
acompanhada de pressão emocional, contribuem para o desgaste do ser humano
culminando por deixá-lo vulnerável à ocorrência de doenças.
É nesse momento que a proteção dos direitos dos cidadãos que utilizam os
serviços e participam das ações de saúde se faz necessária para a integralidade e o
cuidado em saúde, que possam causar um impacto considerável na promoção da
saúde e prevenção de doenças.
A Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde35 assegura ao cidadão a
viabilidade de usufruir de um sistema de saúde público ou privado organizado,
ordenado, eficaz e, acima de tudo, humanizado, visando a garantia da promoção,
prevenção e proteção da saúde.
De se notar que o paciente não é visto apenas como um ser enfermo e
debilitado; pelo contrário, primeiramente, a sua condição de pessoa, ser único e
inigualável, é preservada, o que favorece o respeito à sua individualidade e
privacidade, como bem assenta Wilson Ricardo Ligiera (2012, p. 32):
Os direitos do paciente, outrossim, são os direitos do próprio ser humano. O fato de estar enfermo não lhe retira a condição de pessoa, nem lhe subtrai a dignidade a ele inerente. Ao contrário, é exatamente por estar debilitado, que o ordenamento jurídico deve proporcionar-lhe meios mais eficazes de defesa e salvaguarda de seus direitos.
Ao lado dos direitos, seguem os deveres dos cidadãos que utilizam os
serviços e participam das ações de saúde, que tornam o paciente sujeito de
obrigações para consigo mesmo e perante o profissional de saúde, tornando-o
corresponsável no cuidado com a sua vida e saúde, assumindo as consequências
que o descaso pode ocasionar, a saber: - dever de zelar pelo seu estado de saúde; -
dever de fornecer aos profissionais de saúde todas as informações necessárias para
a obtenção de um diagnóstico correto e um tratamento adequado; - dever de
respeitar os direitos dos outros pacientes; - dever de colaborar com os profissionais
35
Disponível em:<http://www.conselho.saude.gov.br livros A...> Acesso em: 10 out. 2016.
76
de saúde, respeitando as indicações que lhe são recomendadas e - dever de
respeitar as regras de funcionamento dos serviços de saúde.36
Nessa esteira de pensamento, Ronald Dworkin (2014, p. 311) enuncia dois
princípios éticos que entende ser fundamentais para o bem viver:
O primeiro é um princípio de respeito por si mesmo. Cada pessoa deve levar a sério sua própria vida: deve aceitar que é importante que sua vida seja uma execução bem-sucedida, e não uma oportunidade perdida. O segundo é um princípio de autenticidade. Cada um tem a responsabilidade pessoal e especial de identificar quais devem ser os critérios de sucesso em sua própria vida; tem a responsabilidade pessoal de criar essa vida por meio de uma narrativa ou de um estilo coerentes com os quais ele mesmo concorde. Juntos, os dois princípios constituem uma concepção da dignidade humana: a dignidade exige o respeito por si mesmo e a autenticidade.
O cumprimento desses direitos no rigor da lei constitui o maior desafio dos
profissionais de saúde em face do contexto econômico, social e cultural do país;
porém, devem ser exercidos considerando as peculiaridades das comunidades e
selecionando as prioridades a serem atendidas.
36
Disponível em: <http:// www2.nefron.com.br>. Acesso em: 15.mai.2015
77
7 CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA (CEM): OS DIREITOS E DEVERES DO MÉDICO NO COMPROMISSO COM A DIGNIDADE DO SER HUMANO
Os direitos dos médicos estão previstos no Capítulo II, itens I a X do Código
de Ética Médica (Resolução do Conselho Federal de Medicina-CFM, de 7 de
setembro de 2009).
De início, o médico tem o direito de exercer a profissão sem discriminação
de qualquer espécie (I), bem como a requerer desagravo público ao Conselho
Regional de Medicina na hipótese de ser desrespeitado no exercício da profissão
(VII).
A remuneração justa e digna (X), que representa o reconhecimento do seu
trabalho, é um dos maiores desafios enfrentados pela carreira, uma vez que
qualquer profissional tem o direito de viver com dignidade e suprir as suas
necessidades mínimas e de sua família.
Remunerar dignamente, entretanto, não é o suficiente para que o
profissional da medicina seja estimulado a exercer as suas atividades, mas sim,
deve vir acompanhada de uma infraestrutura adequada (pública ou privada), que
possibilite condições mínimas de trabalho em prol da saúde do paciente,
preservando a dignidade de ambos. Caso contrário, nada obsta a sua recusa em
permanecer no local e a suspensão de suas atividades, ressalvadas as urgências e
emergências, devendo, entretanto, comunicar a Comissão de Ética e ao Conselho
Regional de Medicina para as providências que entenderem cabíveis (IV e V).
O descaso com a saúde pública e privada não deve obstar a atuação
consciente e coerente do profissional, sob pena de causar prejuízo ao paciente que
se encontra sob os seus cuidados. A relação deve primar pelo respeito e consolidar
a confiança entre as partes, incluindo os familiares ou o representante legal do
paciente, razão pela qual compete ao médico, considerando sua experiência e
capacidade profissional, estipular o tempo que entende ser necessário para o
78
atendimento do paciente (VIII), indicando o procedimento adequado, respeitando a
legislação vigente (II).
O médico não é obrigado a executar um ato que contrarie a sua consciência,
porém, há que se atentar aos casos cuja atuação médica deve ser imediata, como
por exemplo, o paciente exposto ao risco imediato de óbito (IX).
O médico tem o direito de proceder à internação e à assistência do seu
paciente em nosocômio público ou privado, ainda que não pertença ao quadro de
profissionais do local, respeitando, entretanto, as normas técnicas do Conselho
Regional de Medicina da pertinente jurisdição (VI).
Assiste ao médico, também, o direito a indicar falhas em normas, contratos e
práticas internas das instituições em que labora, caso as considere indignas ao
exercício da profissão, ou que possam prejudica-lo, bem como ao paciente e
terceiros. Deverá encaminhar-se aos órgãos competentes e, obrigatoriamente, à
Comissão de Ética e ao Conselho Regional de Medicina de sua jurisdição (III).
É de bom alvitre ponderar que a existência de um código de ética que
oriente a conduta de um profissional é um paradigma a ser observado, todavia,
tornar-se-á letra morta caso ausente o compromisso, a misericórdia e a compaixão
para com o próximo.
Ao tecer comentários acerca do Código de Ética Médica, Genival Veloso de
França (2010, p. 01) afirma com percuciência:
[...] não deve representar apenas um repositório de artigos da “ética codificada”, disciplinando a essência e a natureza da conduta médica, mas, antes e acima de tudo, um compromisso do médico em favor da sociedade e, em particular, do ser humano, como quem conscientemente assume uma dívida no interesse superior do conjunto da comunidade.
Os deveres, por seu turno, encontram-se elencados no Capítulo V, que trata
da Relação com Pacientes e Familiares, artigos 31 a 42.
79
O dever relaciona-se ao cumprimento de uma obrigação imposta ao
profissional a fim de que desempenhe as suas atividades com zelo e respeito pelo
próximo.
A expressão ética profissional é conceituada por De Plácido e Silva (1984, p.
223, vols. I e II) como: “[...] a soma de deveres, que estabelece a norma de conduta
do profissional no desempenho de suas atividades e em suas relações com o cliente
e todas as demais pessoas com quem possa ter trato”.
Ao estabelecer normas de conduta, o Código de Ética Médica demonstra
preocupação com os infortúnios que podem ocorrer durante o exercício das
atividades do profissional, muito embora seja dotado de conhecimento e habilidades
para lidar com situações inusitadas.
Os riscos são inerentes a qualquer profissão e podem expor o profissional a
uma condição de impotência e fragilidade, ao mesmo tempo em que possibilitam o
enfrentamento de desafios, uma vez que, no entender de Elen Geraldes (2008, p.
74), os riscos, “[...] legitimam a ciência e a tecnologia porque representam desafios”.
As vedações impostas ao profissional da medicina tem por escopo a
proteção ao paciente e à sua liberdade para decidir sobre a sua vida e como deseja
conduzi-la até o final.
Ressalvada a hipótese de iminente risco de morte, o profissional da
medicina não pode desrespeitar o paciente ou seu representante legal de decidir
livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas (art. 31 do
CEM).
É vedado ao médico deixar de fazer uso de todos os meios disponíveis de
diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do
paciente (art. 32 do CEM). Aliás, a liberdade do exercício da profissão é amplamente
garantida pela Carta Magna vigente em seu artigo 5º, inciso XIII, in verbis: “é livre o
exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações
profissionais, que a lei estabelecer”.
80
O médico não pode deixar de dar atendimento a paciente que procure seus
cuidados profissionais em caso de urgência ou emergência, quando não houver
outro profissional ou serviço médico em condições de fazê-lo (artigo 33 do CEM).
Urge diferenciar o conceito de urgência e de emergência, uma vez que, em
ambos os casos, faz-se necessário o pronto atendimento do paciente, como bem
destaca Genival Veloso de França (2014, p. 236):
Conceituam urgência como “a ocorrência imprevista de agravo à saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo portador necessita de assistência imediata”. E emergência como “a constatação médica de condições de agravo à saúde que impliquem risco iminente de vida ou sofrimento intenso, exigindo, portanto, tratamento imediato”.
A informação a ser dada ao paciente acerca do diagnóstico, prognóstico,
riscos e objetivos do tratamento constitui um dever, salvo quando a comunicação
direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, comunicar o seu responsável
legal (artigo 34 do CEM). É vedado ao profissional exagerar na gravidade do
diagnóstico ou prognóstico, complicar a terapêutica, ou exceder-se na visitação,
consultas ou outros procedimentos profissionais (artigo 35 do CEM).
O abandono do paciente pelo profissional é vedado (artigo 36, caput, do
CFM), porém, desentendimentos podem ocorrer em qualquer relacionamento
profissional, prejudicando-o, em especial quando se trata de decidir o que é melhor
para vida de terceiro que se encontra sob os seus cuidados.
Nesse caso, é assegurado ao profissional o direito de renunciar ao
atendimento, com a comunicação prévia ao paciente ou responsável legal,
assegurando, entretanto, a continuidade dos cuidados e fornecendo todas as
informações pertinentes ao profissional que o suceder (§ 1º). Exceto por motivo justo
comunicado ao paciente ou aos familiares, o profissional não poderá abandonar o
paciente portador de moléstia crônica ou incurável, devendo assisti-lo nos cuidados
paliativos (§ 2º).
81
O exame direto do paciente é necessário para que o profissional possa
prescrever-lhe tratamento ou outros procedimentos, com exceção à urgência ou
emergência e eventual impossibilidade de realizá-lo, desde que comprovada.
Cessado o impedimento, deverá fazê-lo imediatamente (artigo 37 do CEM).
O pudor do paciente não pode ser desrespeitado pelo profissional que o
atende e que está sob os seus cuidados profissionais (artigo 38 do CEM). O
profissional não pode desrespeitar a fragilidade do paciente diante de uma situação
de incerteza sobre a sua vida e o que deseja para si.
A oposição à composição de junta médica ou segunda opinião requerida
pelo paciente ou representante legal é vedada ao profissional da medicina (artigo 39
do CEM). Assegura-se ao paciente o direito de ouvir outra opinião a respeito do
diagnóstico e tratamentos disponíveis que possam proporcionar-lhe benefícios, ao
invés de um prolongamento da vida com sofrimento injustificado.
É vedado ao médico fazer uso de situações decorrentes da relação médico-
paciente com o intuito de obter qualquer vantagem física, emocional, financeira ou
de qualquer outra natureza (artigo 40 do CEM). O profissional tem o dever de zelar
pela saúde do paciente que se encontra sob os seus cuidados, até porque detém o
conhecimento científico e técnico para curá-lo, se o caso, ou amenizar a sua dor.
O médico não pode abreviar a vida do paciente, ainda que por sua
solicitação ou de seu representante legal (artigo 41 do CEM), até porque, nos casos
de doença incurável ou terminal, deve oferecer os cuidados paliativos disponíveis,
atentando-se, entretanto, as ações diagnósticas ou terapêuticas prescindíveis,
considerando, todavia, a vontade expressa do paciente ou de seu representante
legal no caso de impossibilidade (parágrafo único).
A vontade expressa do paciente capaz e que não esteja em risco iminente
de vida deve ser considerada pelo profissional, pois ninguém deve ser obrigado a
suportar dor e sofrimento contrários à sua vontade, devendo ser preservada a sua
dignidade.
82
No entender de Rui Nunes e Helena Pereira de Melo (2011, p. 31):
[...] a dignidade da pessoa, na sua diversidade, e nos direitos que dela emanam, é o alicerce do próprio Estado de Direito. Trata-se, porventura, do único valor absoluto, e inalienável, numa sociedade secular e pluralista. Uma sociedade onde as pessoas se encontram com distintas mundividências, como verdadeiros “estranhos morais”.
Por fim, o paciente tem o direito de decidir livremente sobre método
conceptivo, o que não pode ser desrespeitado pelo médico, que deverá esclarecê-lo,
entretanto, a respeito da indicação, segurança, reversibilidade e risco de cada
método (artigo 42 do CEM).
A preocupação com a pessoa do paciente e o respeito à sua autonomia para
decidir sobre a sua vida, desde que seja capaz de fazê-lo, associada à conduta ética
profissional responsável contribuem para a humanização da atuação médica, um
desafio da medicina contemporânea e fator contributivo para racionalizar a
judicialização da saúde.
83
8 A ATUAÇÃO MÉDICA HUMANIZADA: FATOR CONTRIBUTIVO PARA A RACIONALIZAÇÃO DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE
“Possa eu jamais me esquecer de que o paciente é meu semelhante,
transido de dor. Que jamais o considere mero receptáculo de doença”. (Maimônides-
século XII)
Na medicina hodierna, a humanização da atuação médica constitui um
desafio acadêmico na formação do profissional diante dos avanços tecnológicos à
sua disposição, uma vez que o médico atua como intermediador entre a tecnologia e
o paciente, como sustenta Pablo González Blasco (apud BLASCO; BENEDETTO;
REGINATO, 2015, p.406) ao discorrer sobre O humanismo médico: Em busca de
uma humanização sustentável da medicina:
As advertências provenientes do paciente dificilmente recaem no aspecto técnico da medicina, até porque o paciente não possui habitualmente recursos para avaliar corretamente deficiências dessa ordem. As carências que o paciente constata são, em última análise, carências na pessoa do médico, detentor do conhecimento e intermediário entre a tecnologia e o paciente. As insuficiências não são de ordem técnica, mas humana. Torna-se necessário vestir a ciência com trajes humanos, dissolver no aconchego afetuoso a técnica moderna e os medicamentos que o paciente deverá utilizar. Quanto tal não acontece, as insuficiências são sempre do profissional, e o prejuízo é do paciente, que acaba sofrendo de indigestões científicas nada reconfortantes.
A evolução tecnológica causou uma transformação considerável no
relacionamento do homem com a natureza, proporcionando melhorias na sua
condição de vida. O homem primitivo vivia em contato direto com o meio ambiente,
que lhe garantia a subsistência, desde que empregasse sua força. A despeito de
uma vida simples, a capacidade intelectual do homem não pode ser subestimada,
sendo certo que através da observação e da experiência diárias, o homem descobriu
a possibilidade de intervir na natureza, controlando-a, e dela obter recursos para o
seu bem-estar.
Esse controle, entretanto, facilitou a ocorrência de riscos naturais,
instrumentais e industriais no entender de Elio Sgreccia (2014, p. 391):
84
Se na era tecnológica a intervenção do homem na natureza intensificou a ocorrência de risco de catástrofes, é certo que com o aprofundamento dos conhecimentos científicos foi possível um melhor controle dos prejuízos causados, de modo a prevenir maiores riscos à saúde e à existência da coletividade.
Diante desse quadro, Sgreccia (2014, p. 393-394) enfoca princípios éticos
de referência, que compreendem o bem comum como bem de cada pessoa; “o
terapêutico; a liberdade e responsabilidade e, por fim, a solidariedade e
subsidiariedade”.
O princípio do bem comum como bem de cada pessoa parte da premissa de
que o início da sociedade resulta da essência da pessoa, isto é, do seu interior,
motivo pela qual o bem da coletividade é o escopo precípuo da ética social para o
alcance do bem de cada ser que a compõe. A plenitude de uma sociedade é
alcançada no momento da integração dos seres que a estruturam e passam a
assumir o compromisso pelo crescimento e desenvolvimento de cada semelhante,
respeitando suas peculiaridades e diversidades.
O princípio terapêutico, por sua vez, permite a intervenção na qualidade de
vida da pessoa, desde que inevitável para o seu integral bem-estar; a área de
atuação seja delimitada tão somente à doença; inexistam outros meios de
tratamento da patologia; seja elevada a probabilidade da intervenção proporcionar
um resultado bem-sucedido e, acima de tudo, haja a concordância do enfermo.
De se notar que a intervenção cirúrgica e a escolha de procedimentos
terapêuticos invasivos que possam causar prejuízo ao bem-estar do ser humano
constituem os últimos recursos a serem utilizados, salvo se imprescindíveis à
qualidade de vida digna.
O princípio de liberdade e responsabilidade é contra a supressão da própria
vida ou de terceiro sob o argumento da liberdade, uma vez que a vida é o alicerce
da liberdade. A intervenção na vida física de terceiro sem o seu consentimento
prévio ou de seu responsável legal, no caso de incapacidade, também é repudiada
por este princípio, o que denota que a autonomia privada deve ser respeitada em se
tratando do próprio corpo.
85
O princípio de solidariedade e subsidiariedade reporta-se ao respeito à
dignidade da pessoa, o que torna cada ser responsável mutuamente pelo bem um
do outro, bem como pela comunidade como um todo. A solidariedade constitui um
dos objetivos fundamentais da República (artigo 3º, inciso I, da CF) e deve ser
integrada no conceito de subsidiariedade, que, segundo Sgreccia (2014, p.394),
compreende não só o respeito das capacidades dinâmicas de cada ser
individualmente e dos grupos intermediários, mas também, o dever de ajudar os
menos favorecidos.
O desenvolvimento tecnológico contribuiu também para o avanço do
conhecimento científico na esfera das ciências naturais e humanas. Paulatinamente,
o progresso da ciência necessitou de diretrizes para proteção da humanidade e
garantia do direito à vida, à saúde, à disposição do próprio corpo e à própria morte
com dignidade.
O controle e o acompanhamento das experiências científicas realizadas com
seres humanos tornaram-se imprescindíveis a fim de evitar que a humanidade
ficasse refém de interesses escusos e prejudiciais à vida com dignidade, bem como
às diversidades existentes entre os seres humanos e que permeiam a convivência
em sociedade em busca da realização do bem comum.
A complexidade na tomada de decisões afetas à qualidade de vida e ao
bem-estar do homem extrapola a esfera individual e alcança o coletivo no âmbito da
ciência e da ética. Nesse contexto, ganha destaque a Bioética (ética da vida), que
integra o conhecimento biológico aos valores humanos, na concepção de Van
Rensselder Potter, em sua obra Bioethics. Bridge to the future (1971).37
A bioética constitui um ramo da ética que estuda a pessoa humana na sua
integralidade, em reverência à sua dignidade, direitos, garantias e liberdade,
considerados indispensáveis em todas as dimensões que integram o ser, quais
sejam, biológica, psicológica, social e espiritual, favorecendo, por conseguinte, a
37
Bioética – Uma ponte para o futuro. Disponível em: <http://www.ghente.org/bioetica/index.htm> Acesso em: 02 mai. 2016.
86
integração multidisciplinar e pluralista entre diversas áreas do conhecimento, entre
elas, direito e medicina.
As questões éticas fomentadas pelo aperfeiçoamento da ciência e da
tecnologia, envolvendo seres humanos, culminaram na Declaração Universal sobre
Bioética e Direitos Humanos, aclamada na 33º sessão da Conferência Geral da
UNESCO, em 19 de outubro de 200538, que reconheceu a articulação entre a ética e
os direitos humanos ao se tratar de bioética, até porque a excelência técnico-
científica deve vir acompanhada do humanismo solidário.
A qualidade de vida e o bem-estar da humanidade estão diretamente
interligados à saúde e, é certo, que não se submetem apenas e tão somente às
investigações das ciências naturais e humanas, mas, também, aos fatores sócio-
econômico-culturais em que se encontra inserida, o que justifica o estabelecimento
de critérios que não devem ser centralizados apenas na higidez biológica, até
porque a análise do homem na sua integralidade contribui para o aprimoramento
técnico-científico.
A bioética norteia a atuação médica humanizada, estabelecendo os
princípios da autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça, que devem ser
observados na conduta profissional e contribuem como fator de racionalização da
judicialização da saúde, partindo do pressuposto de que o paciente deve conhecer
sua patologia e monitorá-la, isto é, compartilhar com o profissional os meios
disponíveis para tratamento, com autonomia para refletir sobre a doença e escolher
o que quer para sua vida, em conformidade com seus próprios valores.
Assinala Bernard Lown (2008, p.95) que:
Qualquer que seja a explicação, não há absolutamente nenhuma justificativa para atacar os pacientes com linguajar que os debilita e acovarda. O paciente jamais deve ser compelido pelo medo a fazer uma dificultosa escolha. Para que haja parceria em medicina, o sócio principal tem que ser o paciente, que não deve ser impedido de pronunciar a palavra decisiva, a última palavra.
38
Disponível em:<http://www.unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf> Acesso em: 10 fev. 2014.
87
Ao que se infere, o médico deve ter o controle e não o poder absoluto sobre
a condução da relação com o paciente, pois é o detentor do conhecimento técnico,
que, atrelado ao humanismo solidário, é de extrema valia para alicerçar a confiança
e a responsabilidade que deve existir entre as partes. Entretanto, a participação
ativa do paciente na tomada de decisões não deve ser desconsiderada pelo
profissional, sob o ponto de vista de que se trata de um ser único, cuja trajetória de
vida foi alterada pelo desequilíbrio que o afronta.
8.1 Princípio da autonomia: o consentimento informado do paciente sobre a sua vida e saúde
O conceito de autonomia expressa em seu bojo a possibilidade de fazer algo
ou de agir sem estar subordinado a alguma coisa ou alguém. Autonomia, no
entender de Ivan Horcaio (2008, p. 264): “[...] é a faculdade que possui determinada
pessoa, ou instituição, para traçar as normas de sua conduta, sem que sinta
imposições restritivas de ordem estranha”.
A capacidade de direito é inerente a todo ser humano (artigo 1º do Código
Civil)39. Para o exercício desta autonomia, entretanto, o paciente deve dispor de
capacidade de fato?
Como bem salienta Silvio de Salvo Venosa (2012, p. 139):
Todo ser humano é sujeito de direitos, portanto, podendo agir pessoalmente ou por meio de outra pessoa que o represente. Nem todos os homens, porém, são detentores da capacidade de fato. Essa assim chamada capacidade de fato ou de exercício é a aptidão para pessoalmente o indivíduo adquirir direitos e contrair obrigações. Sob esse aspecto, entram em conta diversos fatores referentes à idade e ao estado de saúde da pessoa.
Tratando-se de uma situação que envolve um ser humano que deve fazer
escolhas sobre qualidade de vida e terminalidade, determinar a capacidade de
39
Art. 1º Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.
88
decisão é uma questão complexa, que não requer tão somente capacidade de fato,
uma simples formalidade.
Luciana Dadalto (2013, p.73), afirma que, “[...] o discernimento e não a
capacidade de fato é um requisito essencial do consentimento informado”.
Esse discernimento, entretanto, deve ser observado dentro de um contexto
de apreciação clínica, como bem assentam Albert R. Jonsen, Mark Siegler e William
J. Winslade (2012, p. 63):
Em um cenário médico, a capacidade de um paciente de consentir ou recursar atendimento exige a habilidade de compreender informações relevantes, avaliar a situação médica e suas possíveis consequências, comunicar uma opção e se engajar em uma deliberação racional acerca dos seus próprios valores em relação às recomendações do médico sobre opções de tratamento. Os pacientes que claramente possuem estas habilidades podem tomar decisões sobre seu atendimento e seu direito de fazê-lo deve ser respeitado. Os pacientes que claramente não possuem tais habilidades, porque, por exemplo, estão comatosos, inconscientes ou estão desorientados e em delírio, são incapazes de fazer escolhas informadas aceitáveis. Para eles, é necessário haver um tomador de decisão substituto.
Frise-se, todavia que, no caso de impedimento do exercício dos atos da vida
civil, por incapacidade absoluta (artigo 3º do Código Civil)40 ou relativa (artigo 4º do
Código Civil)41, a pessoa deverá ser representada por seus genitores ou
representantes legais, condição esta que não pode ser interpretada de outra
maneira, sob pena de se ferir interesse de terceiro.
A autonomia do paciente para tomar decisões a respeito de sua vida e
saúde, em conformidade com os seus valores morais e pessoais, não pode ser
desconsiderada pelo médico, não obstante detenha a autoridade em relação ao 40
Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I- os menores de 16(dezesseis) anos; II- os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiver o necessário discernimento para a prática desses atos; III- os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. 41
Art. 4º São incapazes, relativamente, a certos atos, ou à maneira de os exercer: I- os maiores de 16 (dezesseis) e menores de 18 (dezoito) anos; II- os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III- os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; os pródigos. Parágrafo único: A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.
89
conhecimento e habilidade técnica, que não devem ser usados, entretanto, como
sinônimos de dominação do profissional e submissão do paciente.
Ronald Dworkin (2009, p. 319-320), com precisão, acentua o direito de cada
indivíduo estruturar sua própria vida em conformidade com seus próprios valores, a
saber:
A autonomia estimula e protege a capacidade geral das pessoas de conduzir suas vidas de acordo com uma percepção individual de seu próprio caráter, uma percepção do que é importante para elas. Talvez o principal valor dessa capacidade só se concretize quando uma vida realmente manifesta uma integridade e uma autenticidade absolutas. Mas o direito à autonomia protege e estimula essa capacidade em qualquer circunstância, permitindo que as pessoas que a têm decidam em que medida, e de que maneira, procurarão concretizar esse objetivo.
Como se percebe, o exercício da autonomia deve vir acompanhado da
responsabilidade individual pelas decisões tomadas, o que justifica a preocupação
do estabelecimento de medidas especiais para proteção dos direitos e interesses
dos incapazes, conforme preleciona o artigo 5º, da Declaração Universal sobre
Bioética e Direitos Humanos.42
O sinergismo entre a exposição técnica do médico e o entendimento do
paciente capaz de decidir sobre sua sujeição a determinado procedimento,
tratamento ou ingestão de medicamento indicado à sua patologia deve ser
acompanhado de informação, ressaltando-se, entretanto, que o acesso à
informação, por si só, não é suficiente para o convencimento do paciente, sendo
necessário, também, sua compreensão, o que somente é possível através da
linguagem clara e precisa do profissional.
A informação possibilita a aproximação das partes envolvidas, que passam a
interagir e a refletir conjuntamente sobre o diagnóstico, prognóstico e tratamentos
disponíveis. Não se pode olvidar que o avanço tecnológico facilitou o acesso do
42
Art. 5º A autonomia das pessoas no que respeita à tomada de decisões, desde que assumam a respectiva responsabilidade e respeitem a autonomia dos outros, deve ser respeitada. No caso das pessoas incapazes de exercer a sua autonomia, devem ser tomadas medidas especiais para proteger os seus direitos e interesses.
90
paciente aos meios de comunicação, que se tornaram fontes de transmissão de
dados e conhecimentos sobre saúde, qualidade de vida e doenças, esclarecendo,
inclusive, suas causas e sintomas.
Ocorre que os meios de comunicação podem favorecer interpretações
equivocadas a respeito de determinada patologia, suas causas e sintomas, bem
como de tratamentos, aumentando a possibilidade de risco de dano à integridade
física do paciente, além de abalar a confiança e a segurança no profissional da área
da saúde que o acompanha.
No escólio de Cláudia Lima Marques (2014, p. 841-842), a informação é um
direito e um processo interativo entre as partes envolvidas, que se denomina
comunicação, senão vejamos:
Nas relações entre leigos e experts, consumidores e fornecedores, um dos agentes econômicos detém a informação, sabe algo, e pode comunicar este algo para o outro ou omitir, pode fazê-lo de boa-fé e lealmente, informando de forma completa, suficiente e adequada, informando sobre os riscos, os perigos, os efeitos, as chances e tudo o mais que for essencial para exercitar o seu direito de escolha; ou não informar, não compartilhar a informação que detém. Daí ser o dever de informar oriundo da boa-fé e altamente valorado na complexa sociedade de riscos e da informação contemporânea, uma maneira de o direito reequilibrar a relação de consumo.
O entendimento de Bruno Miragem (2014, p. 135), a respeito do dever de
informar nas relações de consumo, acompanha a eminente doutrinadora,
acrescentando, ainda, que “a boa-fé objetiva, princípio do direito do consumidor (art.
4º, III, do CDC)43 impele o fornecedor ao cumprimento de um dever de informar
qualificado, isto é, não basta apenas e tão somente o mero oferecimento de
informações, sendo necessário também a efetiva compreensão do consumidor”.
Assim agindo, o médico fortalece o respeito e a consideração do paciente
por sua sensibilidade técnica e humana, bem como por sua transparência e
43
Art. 4º, III. harmonização dos interesses dos participantes das relações de consume e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art.170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.
91
lealdade. Ao se preocupar em conhecer os conflitos físicos, sociais, emocionais e
espirituais que envolvem o paciente, o profissional assegura-lhe a liberdade para
decidir sobre sua vida e seus problemas interpessoais.
A transparência inserta no artigo 4º, caput do Código de Defesa do
Consumidor possibilita ao consumidor e ao fornecedor um relacionamento claro e
nítido no que tange aos interesses e expectativas de cada um.
Na prática corrente, o dever de informar, direito básico do consumidor
inserido no artigo 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor44, exprime o princípio
da transparência ao exigir que os contratos que regulam as relações consumeristas
prestem informações adequadas e translúcidas acerca dos produtos e serviços, isto
é, explícitas e inteligíveis, pois, caso contrário, não obrigarão os consumidores (art.
46, do Código de Defesa do Consumidor)45, como também, serão interpretadas de
maneira mais favorável ao consumidor (artigo 47, do Código de Defesa do
Consumidor).46
Nessa senda, a Quinta Câmara Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul decidiu:
APELAÇÃO CÍVEL. SEGURO. PLANO DE SAÚDE. DIREITO DO MÉDICO E DO PACIENTE OPTAREM PELO TRATAMENTO. AVASTIN. AUSÊNCIA DE CLÁUSULA DE EXCLUSÃO DE COBERTURA. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. DESCUMPRIMENTO DO DEVER DE INFORMAR. 1.O contrato de seguro ou plano de saúde tem por objeto a cobertura de risco contratado, ou seja, o evento futuro e incerto que poderá gerar o dever de indenizar por parte da seguradora. Outro elemento essencial desta espécie contratual é a boa-fé, na forma do art.422 do Código Civil, caracterizada pela lealdade e clareza das informações prestadas pelas partes. 2.Há perfeita incidência normativa do Código de Defesa do Consumidor nos contratos atinentes aos planos ou seguros de saúde, como aquele avençado entre as partes, podendo se definir como sendo um serviço a cobertura do seguro médico ofertada pela
44
Art. 6º, III. São direitos básicos do consumidor: III- a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem. 45
Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance. 46
Art.47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.
92
demandada, consubstanciada no pagamento dos procedimentos clínicos decorrentes de riscos futuros estipulados no contrato aos seus clientes, os quais são destinatários finais deste serviço. Inteligência do art. 35-G da Lei 9.656/98. Aliás, sobre o tema em lume o STJ editou a súmula n.469, dispondo esta que: aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde. 3.A partir do diagnóstico de glioblastoma multiforme, não cabia a ré questionar se o tratamento escolhido pela médica do autor era o mais adequado ou não. 4.É direito do médico indicar o tratamento que entende adequado para a patologia que o paciente apresenta, bem como é direito deste último escolher se submeter aquele. Inteligência dos artigos 21 do Código de Ética Médica e 15 do Código Civil. 5.Ademais, não há qualquer referência expressa no contrato entabulado entre as partes de exclusão de cobertura de tratamento. 6.Restrições de direito devem estar expressas, legíveis e claras no contrato, o que não ocorreu no caso em tela, em afronta ao dever de informar consagrado na legislação consumerista. Ressalte-se que a vedação de cobertura não consta taxativamente no contrato, e cláusulas restritivas de direito não dão margem a interpretações extensivas. 7.A omissão no contrato quanto à exclusão de cobertura deve ser interpretada de forma favorável ao consumidor. Inteligência do art. 47 do Código de Defesa do Consumidor. 8. Além disso, também é descabida a negativa securitária por parte da demandada, sob o fundamento de o tratamento ser experimental, pois o que importa para solução do litígio é a existência de cobertura à patologia apresentada pelo contratante, e não o fármaco ministrado. 9.Tratamento necessário para o demandante tenha qualidade de vida e retome a sua jornada normal. Tutela que visa à proteção da vida, bem jurídico maior a ser garantido, atendimento ao princípio da dignidade humana. Negado provimento ao apelo.47
A lisura deve nortear a relação médico-paciente a fim de que o doente possa
se sentir seguro para externar o seu desequilíbrio, as suas emoções e, acima de
tudo, estabelecer um vínculo consistente de confiança no profissional que o atende.
Desde o primeiro contato entre as partes, a transparência das informações
transmitidas pelo paciente ao profissional que o atende deve nortear a relação, em
especial no que tange à exposição do desequilíbrio que o aflige. A sinceridade do
paciente contribui para que o profissional possa conhecê-lo e identificar-se com suas
emoções.
47
Apelação Cível n. 70055677108, rel. Des. Jorge Luiz Lopes do Canto, v.u., j.30.10.2013.
93
O ato de conhecer e entender o outro requer perspicácia do profissional, de
modo a facilitar o entrosamento com o paciente, aproximando-o do médico. A
veracidade das informações contribui para a compreensão da patologia, da
exposição dos procedimentos ou tratamentos disponíveis, dos riscos envolvidos,
bem como dos benefícios.
Releva salientar que as explanações devem ser feitas em conformidade com
a capacidade de entendimento do paciente, a quem cabe a decisão do caminho que
deseja trilhar, sob pena de afronta ao princípio da autonomia, que assegura ao
paciente o direito de consentir livre e espontaneamente com a execução de
determinado procedimento ou tratamento proposto pelo profissional da medicina,
desde que devidamente informado.
A eficácia do dever de informar não se resume apenas e tão somente à
possibilidade de propiciar ao paciente a tomada de decisões sérias e conscientes a
respeito de sua vida, mas também, delimita a responsabilidade de cada parte da
relação, no que tange à prevenção e conscientização dos efeitos colaterais que
poderão surgir no decorrer do tratamento.
No relacionamento terapêutico, pois, o dever de informação deve ser
efetivamente cumprido antes e depois da intervenção pelo profissional, de modo que
o paciente tenha conhecimento das possíveis consequências do ato em si e até
colabore para o seu restabelecimento, o que não se confunde com uma singela
comunicação, que pode causar-lhe eventual dano, cuja responsabilidade será do
profissional que o atendeu.
O dever de informar respeita a dignidade do paciente -consumidor à medida
que fortalece a sua vontade livre e consciente de externar sua decisão sobre o
tratamento que deseja ser submetido e a escolha da qualidade de vida que almeja
para si até a finitude.
No caso de incapacidade, o representante legal ou familiares que tenham
conhecimento da situação devem receber as informações adequadas ao seu
entendimento e satisfatórias à tomada de decisão em lugar do paciente.
94
A busca do tratamento mais eficaz, que valorize o ser humano na sua
integralidade, deve ser compartilhada passo a passo pelas partes envolvidas nessa
relação, uma vez que a adesão ao tratamento ou intervenção pelo paciente é de
fundamental importância. O estímulo para o seu consentimento é a certeza de que o
profissional defende os seus interesses e que ambos prosseguem rumo ao caminho
direcionado à mantença da vida que o paciente considera digna de ser vivida.
Aliás, o próprio conceito da palavra consentimento, segundo Antonio
Houaiss e Mauro de Salles Villar (2009, p. 527), envolve um acordo de vontades
com o escopo de alcançar um objetivo comum, a saber:
[...] ato ou efeito de consentir; manifestação favorável a que (alguém) faça (algo); permissão, licença [...]; manifestação de que se aprova (algo); anuência, aquiescência, concordância [...]; tolerância, condescendência; uniformidade de opiniões, concordância de declarações, acordo de vontade das partes para se alcançar um objetivo comum [...]
Urge salientar, que nada obstante a convergência das opiniões, o tratamento
eficaz não está obrigatoriamente vinculado à cura do paciente, mas sim, ao seu
bem-estar, pois, não se pode prever, antecipadamente, os resultados de
determinado procedimento escolhido em detrimento de outro, até porque não é
crível que se possa uniformizar as experiências vivenciadas por cada ser,
individualmente, ainda que submetido a procedimentos técnicos padronizados e
destinados ao tratamento de determinada patologia.
Pondera João Vaz Rodrigues (2001) que o consentimento informado e
esclarecido do paciente, como requisito para a prática de determinado ato médico,
não se trata de mera anuência, expressa ou tácita, à avaliação ou intervenção
proposta pelo profissional, destinada à prevenção, detecção, atenuação ou cura da
patologia que o acomete.
Partindo desse entendimento, Vaz Rodrigues (2001, p. 256-258) traz à
colação dois critérios denominados “padrão médico e padrão do doente médio”,
que devem ser confrontados e considerados para que se possa aferir se o paciente
está habilitado a consentir com um determinado tratamento ou intervenção.
95
Em conformidade com o padrão médico, a informação será considerada
suficiente tomando-se como referência a conduta médica profissional adequada
àquela circunstância e que seria adotada por qualquer outro profissional médico em
circunstância análoga. Como exemplo, tem-se a intervenção cirúrgica denominada
ligadura de trompas, método de esterilização definitivo, que evita o contato do óvulo
com o espermatozoide, o que não significa a ablação do órgão genital feminino. A
paciente deve ser cientificada da dificuldade de engravidar após a cirurgia, pois a
chance de recanalização das trompas é remota, bem como a reversibilidade do
procedimento.
A respeito e com fundamento no artigo 226, § 7º, da CF48, que trata do
planejamento familiar, a Nona Câmara de Direito Privado do Egrégio Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo decidiu:
[...] A esterilização sem autorização do esterilizado é prática absurda e atenta contra o já mencionado dispositivo constitucional que protege o planejamento familiar e que veda qualquer forma coercitiva de planejamento que não perpasse pela livre decisão do casal.49
Insta salientar que a Lei Federal nº 9.263/96, em seu artigo 10, §§ 1º e 5º50
disciplina acerca da esterilização impondo penalidades e outras providências.
No padrão do doente médio, considera-se suficiente a informação em
conformidade com as necessidades do homem comum. O essencial deve ser
razoavelmente esclarecido a qualquer paciente diante de determinada circunstância,
para que possa tomar sua decisão sem qualquer ingerência externa. Entretanto, as
necessidades podem variar de um paciente para outro no caso concreto (critério do
paciente concreto), estendendo-se as informações para esclarecimentos e
explicações detalhadas e direcionadas, personalizando-as.
48
Art. 226, § 7º. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. 49
Apelação Cível n. 0000668-78.2010.8.26.0435, rel. Des. Piva Rodrigues, j.10.03.2015. 50
Art. 10, §§ 1º e 5º. § 1º É condição para que se realize a esterilização o registro da expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado, após a informação a respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes. § 5º Na vigência da sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges.
96
A customização do contato do profissional da saúde com o paciente
possibilita a exposição de seus receios e expectativas futuras diante de um
tratamento ou intervenção proposta, sobre o qual não dispõe de conhecimento
técnico para visualizar a solução mais adequada.
Nesse compasso, Luciana Mendes Pereira Roberto (2009, p. 167) sintetiza
os pressupostos do consentimento informado, ressaltando:
O que edifica a capacidade para consentir a respeito de um tratamento de saúde é a possibilidade de o paciente racionalmente decidir sobre os valores (custo-benefício do tratamento), os fatos, as alternativas (consequências e riscos), a autodeterminação pertinente à informação recebida e a possibilidade concreta de consentir perante determinado tratamento.
Tratando-se da pessoa do paciente, pois, a manifestação volitiva de ser
submetido a determinado tratamento ou intervenção constitui um direito, ao passo
que, para o médico, sob o ponto de vista científico e do conhecimento prático obtido
através das experiências acumuladas no decorrer da vida profissional, é dever legal
e moral a informação completa e a comunicação fidedigna com o paciente, de modo
a proceder à explanação dos prós e contras de todos os recursos disponíveis para o
tratamento de determinada patologia, ainda que não haja perspectiva de recobro.
Preceitua Gilberto Bergstein (2013, p. 111) que:
[...] o consentimento informado será eficaz apenas e tão somente caso seja fundamentado no conhecimento advindo da informação completa e efetivamente compreensível por seu destinatário. Esse conhecimento, formado a partir de uma informação de qualidade (completa e compreensível), consistirá a base a partir da qual poderá haver assunção de riscos legítima por parte do paciente – isto é, de maneira autodeterminada. É o consentimento informado, portanto, que traçará a linha divisória e a delimitação dos riscos que deverão ser suportados por cada uma das partes: médico e paciente.
A jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça desse
entendimento não se afasta, conforme se observa no v. Acórdão da Quarta Turma:
RESPONSABILIDADE CIVIL. Médico. Consentimento informado. A despreocupação do facultativo em obter do paciente seu consentimento informado pode significar - nos casos mais graves –
97
negligência no exercício profissional. As exigências do princípio do consentimento informado devem ser atendidas com maior zelo na medida em que aumenta o risco, ou o dano.51
Dessume-se, por todo o exposto, que a autonomia não se dissocia da
integridade psicofísica, como bem destaca Ana Carolina Brochado Teixeira (2010, p.
54) a respeito:
A higidez psíquica é fundamental para que se tenha a vontade válida, que o consentimento para os atos que expressam a liberdade de escolha possa produzir efeitos no mundo jurídico. Se esta estiver presente, todos os atos incidentes sobre a integridade física são válidos, desde que atendam a uma opção livre e consciente do sujeito, como expressão da autonomia corporal. Quando isso ocorre, mesmo que haja abalo à integridade física, a saúde está sendo preservada, tutelada, promovida, pois atende a um apelo de liberdade consciente daquele indivíduo detentor de discernimento que fez determinadas opções em sua vida que, segundo seu projeto pessoal, atende à realização da sua personalidade.
Frise-se, entretanto, que se houver diretivas antecipadas de vontade,
regulamentada pela Resolução do Conselho Federal de Medicina – CFM n.
1.995/201252, em face da ausência de legislação específica no ordenamento jurídico
pátrio, mister se faz a sua observância.
As diretivas antecipadas de vontade externam de maneira prévia, livre e
expressa a disposição do paciente a cuidados e tratamentos que deseja ou não
receber no momento da sua incapacidade de comunicação (art. 1º), que deverão ser
consideradas pelo médico em suas decisões (art. 2º). Na hipótese de nomeação de
representante legal pelo paciente para esta finalidade, as informações transmitidas
ao médico devem ser consideradas, salvo se em desacordo com os preceitos
ditados pelo Código de Ética Médica (art. 2º, §§ 1º e 2º).
As diretivas antecipadas de vontade prevalecerão sobre qualquer outro
parecer não médico, incluindo a vontade dos familiares (art. 2º, § 3º). Cabe ao
médico registrar no prontuário as diretivas comunicadas diretamente pelo paciente
(art. 2º, § 4º).
51
Recurso Especial n. 436.827, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, v.u., j. 01.10.2002 52
Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2012/1995_2012.pdf> Acesso em: 06 set. 2015.
98
Na falta de conhecimento das diretivas, inexistindo representante legal
designado ou familiares disponíveis ou, ainda, na falta de consenso entre estes, o
Comitê de Bioética da instituição será acionado pelo médico. No caso de sua falta, o
médico acionará a Comissão de Ética Médica do nosocômio ou o Conselho Regional
e Federal de Medicina, de modo a fundamentar sua decisão sobre divergências
éticas, se entender necessário e conveniente (art. 2º, § 5º).
Saliente-se que, não obstante o registro no prontuário médico do paciente,
nada obsta que as diretivas antecipadas de vontade sejam registradas em cartório, o
que se denomina testamento vital, definido por Ernesto Lippmann (2013, p. 17)
como: ”(...) declaração escrita da vontade de um paciente quanto aos tratamentos
aos quais ele não deseja ser submetido caso esteja impossibilitado de se
manifestar”.
8.2 Princípio da beneficência: o bem maior denominado vida
A beneficência é o princípio mais significativo na relação médico- paciente,
pois o médico deve trabalhar em prol da saúde e do bem-estar do paciente que
confia aos seus cuidados o seu bem maior denominado vida.
À luz desse princípio, o médico deve priorizar o máximo de benefícios e o
mínimo de prejuízos diante das possibilidades existentes para tratar e cuidar do
paciente.53 Nesse processo, o conhecimento técnico do profissional deve associar-
se à sua conduta zelosa e consciente de proceder à análise acurada da situação
concreta diagnosticada, sopesando os benefícios de um determinado tratamento ou
intervenção e os prováveis malefícios, cujas sequelas poderão tornar-se
irreversíveis.
Se algum arrependimento houver, que não seja de sua própria consciência
cobrando-lhe a ausência de uma postura comprometida com a ética e a moral que
53
Centro de bioética do CREMESP, São Paulo. Princípios bioéticos. A Autonomia, Não-Maleficência, Beneficência, Justiça e Equidade. Disponível em: <http://www.bioetica.org.br/?siteAcao =Publicacoes&acao=detalhes_capitulos&cod_ca...> Acesso em: 20 abr. 2014.
99
devem permear a relação com o paciente, cuja vulnerabilidade resta patente, pois
não dispõe de condições para proceder à análise acurada do produto que está
adquirindo ou do serviço oferecido.
A fim de resguardar o consumidor, a doutrina pátria reconhece três espécies
de vulnerabilidade, isto é, técnica, jurídica e fática.
A vulnerabilidade técnica está relacionada à falta de conhecimento técnico
do consumidor no que tange ao produto ou serviço que pretende adquirir ou utilizar,
uma vez que é o seu destinatário final. Na relação médico-paciente, a
vulnerabilidade do enfermo resta patente, pois, além de não dispor de conhecimento
técnico-científico na área da medicina, o que é reservado ao médico, a sua
vulnerabilidade também esta relacionada à indefinição de sua vida e, na maioria das
vezes, à interrupção abrupta dos projetos que planejou e tencionava executar.
A vulnerabilidade jurídica, por sua vez, compreende a falta de conhecimento
jurídico preciso por parte do consumidor quanto aos seus direitos e deveres diante
de uma determinada relação de consumo.
Em sua grande maioria, os pacientes desconhecem os seus direitos e os
deveres do profissional da medicina, o que não deveria ocorrer, pois, revelado o
diagnóstico de determinada patologia, mister se faz que o paciente compartilhe com
o médico os tratamentos disponíveis, a fim de que decida o caminho a ser trilhado,
em respeito à sua autonomia. A participação ativa do paciente é de extrema valia
para que se sinta motivado a enfrentar o tratamento escolhido e controlar as suas
expectativas de cura.
A vulnerabilidade fática ou econômica reconhece a fraqueza do
consumidor diante da potencialidade econômica do fornecedor, do monopólio sobre
determinado produto ou serviço, cuja essencialidade é indispensável. Na relação
médico-paciente, a vulnerabilidade fática do consumidor usuário de plano de saúde
é axiomática, diante de um contrato de adesão cujas cláusulas são previamente
estabelecidas, sem possibilidade de alteração, o que somente poderá ocorrer por
100
meio da judicialização, ante a precariedade do diálogo entre as partes contratantes,
em especial, do prestador do serviço avençado.
Nessa esteira de pensamento, decidiram os integrantes da Nona Câmara
Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná:
APELAÇÃO CÍVEL – PLANO DE SAÚDE – NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DE ANGIOPLASTIA DE RAMO INTRACRANIANO E COLOCAÇÃO DE STENT – INOBSERVÂNCIA DO CDC – VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR- IMPOSSIBILIDADE DO PLANO DITAR O TRATAMENTO A SER MINISTRADO AO ARREPIO DA RECOMENDAÇÃO DO MÉDICO QUE ASSITE À PACIENTE- VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA- LIBERDADE DE ESCOLHA DO TRATAMENTO MÉDICO, PELO PACIENTE, COMO DECORRÊNCIA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA- NEGATIVA INDEVIDA DE COBERTURA- DEVER DE RESSARCIR- DANOS MORAIS CONFIGURADOS- VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ- PRECEDENTES DO STJ E DESTE COLEGIADO – RECURSOS CONHECIDOS – APELAÇÃO (1) PROVIDA E APELAÇÃO (2) DESPROVIDA.54
É de bom alvitre mencionar a vulnerabilidade informacional reconhecida por
Cláudia Lima Marques (2014, p. 335):
Decorrente de uma sociedade de consumo globalizada e imediatista, cuja tecnologia avançada requer uma informação acurada sobre o produto oferecido ou serviço a ser prestado pelos fornecedores, [...] os quais, mais do que experts, são os únicos verdadeiramente detentores da informação.
Zygmunt Bauman (2011, p. 210), ao tratar da ética no mundo de
consumidores, esposa o mesmo entendimento ao reforçar que a preferência dos
consumidores da atualidade é, “[...] pelo consumo imediato, a satisfação imediata e
o lucro imediato”.
Saliente-se que a vulnerabilidade não deve ser confundida com a
hipossuficiência do consumidor, prevista no artigo 6º, inciso VIII, do CDC55, que não
54
Apelação Cível n. 1018220-8, rel. Des. Horácio Ribas Teixeira, v.u., j.11.07.2013. 55
Art. 6º, VIII. São direitos básicos do consumidor: VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências.
101
se relaciona aos benefícios da assistência judiciária gratuita concedidos àquele que
é pobre na acepção jurídica do termo (Lei nº1060/50), mas sim, à falta de
conhecimento técnico acerca do produto ou serviço que adquiriu (hipossuficiência
técnica) e à impossibilidade de produção de prova que ratifique a pretensão do
consumidor deduzida em juízo contra o fornecedor (hipossuficiência fática), que, na
concepção de Flávio Tartuce e Daniel Amorim Assumpção Neves (2014, p. 36), “(...)
constitui um plus, um algo a mais, que traz a ele mais um benefício, qual seja a
possibilidade de pleitear, no campo judicial, a inversão do ônus de provar (...)”.
A extensão do domínio clínico, pois, envolve interesse e dedicação fraternal
pelo outro, conforme entendimento do médico francês Charles-Louis Dumas (1765-
1813 apud FOUCAULT, 2014, p. 95-96), equiparando-se aos cuidados de um pai
com o destino do seu estimado filho:
Desvendar o princípio e a causa de uma doença em meio à confusão e à obscuridade dos sintomas; conhecer sua natureza, suas formas, suas complicações; distinguir, no primeiro golpe de vista, todas as suas características e diferenças; separar, por uma análise rápida e delicada, tudo o que lhe é estranho; prever os acontecimentos vantajosos e nocivos que devem sobrevir durante o curso de sua duração; governar os momentos favoráveis que a natureza suscite para operar a solução; avaliar as forças da vida e a atividade dos órgãos; aumentar ou diminuir, de acordo com a necessidade, sua energia; determinar com precisão quando é preciso agir e quando convém esperar; decidir-se com segurança entre vários métodos de tratamento que oferecem vantagens e inconvenientes; escolher aquele cuja aplicação parece permitir mais rapidez, mais concordância, mais certeza no sucesso; aproveitar a experiência; perceber as ocasiões; combinar todas as possibilidades, calcular todos os casos; tornar-se senhor dos doentes e de suas afecções; aliviar suas penas; acalmar suas inquietações; adivinhar suas necessidades; suportar seus caprichos; atuar sobre seu caráter e dirigir sua vontade, não como um titular cruel que reina sobre escravos, mas como um pai terno que vela pelo destino de seus filhos.
Robert Veatch, professor do Instituto Kennedy de Ética da Universidade
Georgetown – EUA no ano de 1972, elucidou quatro modelos de relação médico-
paciente em conformidade com o envolvimento do profissional e a tomada de
decisões pelo paciente, a saber: Sacerdotal, Engenheiro, Colegial e
Contratualista.
102
O modelo Sacerdotal, na definição do mestre, aproxima-se do princípio da
beneficência ao assumir o profissional a postura paternalista, ou seja, muito embora
esteja disposto a ouvir o paciente, suas opiniões não são consideradas no momento
da decisão do que é mais adequado ao tratamento de determinada patologia. O
profissional da saúde detém a autoridade e o poder de dominar o paciente
submisso. Esse modelo é tradicional e considerado de baixo envolvimento na
tomada de decisão.
No modelo Engenheiro, o profissional assume uma postura de
acomodação, uma vez que detém tão somente a sua autoridade técnica no que
tange à transmissão das informações adequadas ao paciente e que o caso requer.
Compete ao paciente, entretanto, o poder de decisão, prestando-lhe o médico o
serviço de executar o que foi decidido. O baixo envolvimento na tomada de decisão
é característico desse modelo, que se presta única e exclusivamente ao
fornecimento de informações.
O modelo Colegial, por seu turno, diferencia-se dos modelos anteriores no
que concerne ao alto envolvimento na tomada de decisão, pois o poder é
compartilhado de maneira igualitária pelo médico e o paciente. A figura de
autoridade reservada ao profissional é afastada pelas partes, que negociam as
propostas apresentadas em busca da solução mais adequada para o deslinde da
questão afeta à saúde e ao bem-estar do paciente.
Por derradeiro, no modelo Contratualista, o médico não deixa de lado a sua
autoridade, preservando-a diante do paciente, uma vez que detém o conhecimento
técnico e as habilidades necessárias para proceder à tomada de decisões
adequadas ao tratamento de uma determinada patologia diagnosticada em seu
paciente, que também participa desse processo trocando informações e expondo
seus valores morais e pessoais. No caso, o envolvimento entre as partes é
considerado médio ou alto, dependendo do compromisso assumido entre ambas
para a escolha da direção a ser seguida rumo à estabilização do desequilíbrio que
acomete o paciente. 56
56
Disponível em: <http://www.ufrgs.br/bioetica/relacao.htm> Acesso em: 25 mai. 2015
103
O comprometimento das partes não pode ser um simples consentimento
livre e informado para que se proceda à determinado tratamento ou intervenção. Há
que se esgotar todos os meios de informação disponíveis a fim de que a escolha
seja livre e consciente e totalmente afastada de qualquer ingerência externa.
8.3 Princípio da não-maleficência: o respeito ao próximo e a si mesmo
O princípio da não-maleficência não constitui o oposto do princípio da
beneficência, pois ambos se completam quando se trata da relação médico-
paciente. Deriva do aforismo hipocrático primum non nocere (primeiro não
prejudicar), isto é, qualquer ato médico deve causar ínfimo prejuízo ao paciente, o
que justifica toda a cautela empregada pelo profissional no que concerne à análise
dos riscos e efeitos colaterais de determinada terapêutica.
Evitar prejuízo no sentido da não-maleficência também conduz à reflexão
acerca do dever ético do médico não rotular o paciente como um doente, sob pena
de transformá-lo no denominado doente imaginado, conceito difundido pelo médico
italiano, Marco Bobbio (2016), nos casos em que o profissional trata uma patologia
imaginada, isto é, que poderá ou não se desenvolver, ou ainda, muito embora
existente a patologia, o profissional não oferece alternativas que não estejam
dispostas nas publicações científicas.
Nessa linha de raciocínio e preocupado com o seu bem-estar, o doente
imaginado torna-se um potencial contribuinte para o aumento descontrolado da
judicialização da saúde, uma vez que a preocupação com a saúde é obsessiva e o
conduz à dependência de assistência médica, incluindo exames clínicos,
tratamentos e medicamentos de última tecnologia, que não podem ser sustentados
pelo sistema de saúde público ou privado, sob pena do interesse individual
sobrepor-se ao interesse coletivo.
Com percuciência, Bobbio (2016, p. 34-35) argumenta:
104
[...] quanto mais indivíduos um médico convencer da precariedade de seu bem-estar, mais aumentarão as necessidades, os “clientes” e os negócios. Os verdadeiros doentes, aqueles que estão mal, que sofrem de uma patologia limitadora ou aguda, aqueles que estão inexoravelmente caminhando para a morte, são poucos, felizmente. Se a medicina se ocupasse somente deles, o afluxo nos hospitais e laboratórios seria redimensionado, menos medicamentos seriam vendidos e menos exames seriam feitos.
A plenitude da pessoa humana deve ser respeitada, tanto que o paciente
não pode sofrer qualquer constrangimento que o conduza à aceitação de tratamento
médico ou intervenção cirúrgica que exponha sua vida em risco (art. 15 do Código
Civil),57 gerado ou intensificado por delimitada prática médica.
Em artigo publicado na revista Veja, enfocou-se sobre a moderna oncologia
centrada na redução de tratamentos nos casos de tumores iniciais e de pouco risco
de agressividade ao paciente. Muito embora constitua um desafio para o médico e
para o paciente, já que o câncer traz consigo o estigma da morte, a redução de
tratamentos e, em alguns casos específicos, a decisão de não tratar, pode
proporcionar uma qualidade de vida mais digna, uma vez que os efeitos colaterais
de determinadas terapias, tais como, a radioterapia e a quimioterapia, podem ser
violentos e causar grandes prejuízos ao organismo humano.
Urge salientar, que cada caso concreto deve ser analisado isoladamente,
pois o paciente deve se conscientizar da possibilidade de recorrência da doença,
que não pode ser descartada. A reação do paciente em reduzir os tratamentos
propostos, incluindo a ingestão de drogas, ou de não se tratar, reforça a
necessidade de informação adequada sobre as vantagens e desvantagens dessa
decisão, o que não afasta o controle minucioso da patologia através de exames de
rotina.58
Essa liberdade, entretanto, não é absoluta, uma vez que o paciente pode se
encontrar em situação que altere o nível de consciência e o impeça de manifestar a
57
Art.15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. 58
CULMINALE, Natália. Câncer – Quando tratar menos é melhor”. Veja, 27 jan. 2016.
105
sua vontade, como por exemplo, o coma, que provoca a inconsciência, ou seja,
completa letargia de si e do que está ao seu redor.
Diante de um quadro de iminente risco de morte, por exemplo, o médico não
pode escusar-se do dever de decidir, não obstante ser-lhe vedado o desrespeito ao
direito do paciente ou de seu representante legal de, livremente, tomar a decisão
sobre a prática diagnóstica ou terapêutica que considera mais conveniente (art. 31
do Código de Ética Médica)59
Nesse sentido direcionou-se a VI Jornada de Direito Civil STJ ao tratar da
Parte Geral do Código Civil:
533. O paciente plenamente capaz poderá deliberar sobre todos os aspectos concernentes a tratamento médico que possa lhe causar risco de vida, seja imediato ou mediato, salvo as situações de emergência ou no curso de procedimentos médicos cirúrgicos que não possam ser interrompidos.
Em suma, entre o direito à vida e o direito à liberdade de decidir o que é
melhor para si, desde que o paciente seja devidamente capaz, deve preponderar o
direito à vida, sagrado e inviolável. Exceção à urgência ou emergência, o ato médico
necessita de consentimento prévio e esclarecido do paciente, e, qualquer
posicionamento em contrário, importará em manifesto desrespeito à dignidade da
pessoa humana.
8.4 Princípio da justiça: o exercício pleno da cidadania
A condição indispensável à efetividade desse princípio é a equidade no que
diz respeito ao tratamento adequado a ser dispensado a todo indivíduo que
necessita de assistência.
59
Art. 31. É vedado ao médico: Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.
106
Na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, a igualdade
fundamental de todo ser humano em se tratando de dignidade e direitos deve ser
respeitada para que sejam tratados de forma justa e equitativa (art. 10º).
Ensina Maura Roberti (2007) que o princípio da justiça vincula-se ao
princípio da igualdade, que “garante a distribuição justa, equitativa e universal dos
direitos, dando a cada um o que é seu, os iguais devendo ser tratados igualmente,
ao passo que os desiguais desigualmente, na medida em que se desigualam”. (p.
67) É a chamada “igualdade substancial”.
O conceito de justiça não esta desvinculado das diferenças existentes entre
os grupos que compõem uma sociedade. A igualdade disposta na Carta Magna, em
seu artigo 5º, caput, constitui igualdade (formal) de pessoas perante a lei, ou seja, a
lei prevê o tratamento igualitário a todas as pessoas, desconsiderando, entretanto,
as diversidades dos grupos existentes no seio da sociedade.
Para Aristóteles (2007, p. 146), o justo “significa aquilo que é legal e aquilo
que é igual e equitativo”, ao passo que o injusto “significa aquilo que é ilegal e aquilo
que é desigual e não equitativo”.
Em que pese o antagonismo, a convivência entre o justo e o injusto existe
desde os primórdios da civilização e a sua negação é utópica e pode conduzir a
sociedade ao caos, como bem esclarece Aristóteles (2007, p. 151-152):
[...] a justiça envolve, ao menos, quatro termos, ou seja, especificamente: dois indivíduos para os quais há justiça e duas porções que são justas. E haverá a mesma igualdade entre as porções tal como entre os indivíduos, uma vez que a proporção entre as porções será igual à proporção entre os indivíduos, pois não sendo as pessoas iguais, não terão porções iguais – é quando os iguais detêm ou recebem porções desiguais, ou indivíduos desiguais [detêm ou recebem] porções iguais, que surgem conflitos e queixas.
Na concepção de John Rawls (2008, p. 73), há dois princípios de justiça que
regem a outorga de direitos e deveres e regulamentam a distribuição dos benefícios
sociais e econômicos, a saber:
107
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de iguais liberdades fundamentais que seja compatível com um sistema similar de liberdades para as outras pessoas. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem estar dispostas de tal modo que tanto (a) se possa razoavelmente esperar que se estabeleçam em benefício de todos como (b) estejam vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos.
Castanheira Neves, citado por Luís Pedro Pereira Coutinho (2009, p. 532),
ao tratar de ordem com sentido de direito, não a afasta do princípio da justiça,
afirmando:
[...] é uma ordem cujo aglutinador “imperativo” reside num “princípio da ética igualação das pessoas”, ao qual se pode dar também o nome de princípio da justiça, já que a justiça nada mais é do que “a exigência, normativamente integrante e dinâmica, do reconhecimento de cada um perante os outros e da responsabilidade de cada um perante os outros na coexistência em um mesmo todo comunitário constituído por todos”. Assim, o Direito como Direito é uma ordem de justiça, uma ordem através da qual os homens exprimem o seu mútuo reconhecimento como entes de imprescindível dignidade.
O princípio da justiça relaciona-se ao exercício efetivo da cidadania, que se
constrói paulatinamente, pois, no entender de José Murilo de Carvalho (2013, p. 12),
“[...] a construção da cidadania tem a ver com a relação das pessoas com o Estado
e com a nação. As pessoas se tornavam cidadãs à medida que passavam a se
sentir parte de uma nação e de um Estado”.
Sobre o assunto em foco é oportuno trazer à baila os ensinamentos de
Ricardo Castilho (2009), que, ao versar sobre a justiça social, acentua a
necessidade do indivíduo considerar-se membro de uma determinada comunidade,
que o aceita como seu integrante, a fim de que sua atuação seja voltada para o bem
comum:
A obrigação dos indivíduos para com a comunidade, dever de agir em consonância com o Bem Comum, aceita como ponto de partida o suposto de que o sujeito passivo do liame obrigacional de Justiça Social se considera membro daquela específica sociedade. Da mesma maneira, pressupõe-se, para o aperfeiçoamento da relação de dever tratada, que o indivíduo seja considerado pela comunidade como seu membro. O que passa, aqui, é a necessidade de o ser humano aceitar a comunidade como legítima credora de seus deveres, por qualificar a si próprio como integrante dela e, ao mesmo
108
tempo, a imprescindibilidade de a sociedade também aceitar o indivíduo como seu participante, atribuindo-lhe, em contrapartida, os mesmos direitos atribuídos aos demais cidadãos – reflexos dos deveres a eles também cabíveis (2009, p. 54).
Essa percepção deve ser trabalhada pelo próprio Estado na medida em que
o cidadão é estimulado à participação ativa no governo exigindo a sua efetiva
atuação na concretização dos direitos e garantias fundamentais, até porque,
segundo Hannah Arendt, invocada por Eugênia Sales Wagner (2007, p. 116): “[...]
liberdade política [no âmbito da sociedade] ou significa ‘participar do governo’ ou não
significa nada”.
Partindo desse pressuposto, Dalmo de Abreu Dallari (2013, p. 292) acentua
o surgimento de um novo constitucionalismo fundamentado na “supremacia da
pessoa humana”, afastando-se na prática qualquer “discriminação ou privilégio”, de
modo que não se restrinja tão somente “a meras afirmações teóricas ou formais”.
Acrescenta, ainda, o eminente jurista:
[...] para o novo constitucionalismo a Constituição tem fundamentos éticos, jurídicos e sociais que se encontram em todas as sociedades e em todos os seres humanos. Evidentemente, em vista da extrema variedade de condições materiais e de características culturais, seria impossível e mesmo contraditório pretender a definição de uma Constituição-padrão válida para todos os tempos e todos os lugares. O que se faz necessário é que em cada circunstância o constitucionalismo leve em conta o conjunto das peculiaridades éticas, jurídicas e sociais do povo, sem perder de vista e sem afrontar tudo o que é essencial à pessoa humana para preservação de sua dignidade. (DALLARI, 2013, p.309).
O princípio da justiça deve constituir a base para repensar a concretização
do direito à saúde em todos os aspectos, inclusive na atuação médica humanizada,
através da conceituada cidadania ativa de Giovanni Moro, citado por Guido Giarelli
(2014, p.34), cuja atenção precípua esta voltada para “o indivíduo como pessoa, ser
humano único e não apenas com um papel social” (paciente-consumidor), o que não
afasta, entretanto, a sua responsabilidade e compromisso com o seu bem-estar e o
do semelhante, pois, como bem acentua Giarelli (2014, p. 35):
109
Um/a cidadão/ã ativo/a é alguém capaz de estabelecer um equilíbrio entre direitos e responsabilidades, o que implica o reconhecimento de que numa sociedade todos os indivíduos são mutuamente dependentes e que, ao fazerem uma contribuição positiva para a sociedade através da participação na sua vida, eles estão ajudando a si mesmos e aos outros. A cidadania ativa é o elemento unificador que mantém a sociedade unida, uma vez que permite que as pessoas se concentrem para além do seu próprio interesse. Isso implica a responsabilidade de assegurar que ninguém é socialmente excluído, especialmente os mais fracos, as pessoas com deficiência e os doentes.
Em suma, no contexto do princípio da justiça exercer a cidadania é conhecer
os seus direitos, sem esquecer de suas responsabilidades, de modo a assumir o
compromisso de participação ativa na efetivação dos direitos fundamentais sociais
para o alcance do bem-estar social.
8.5 Empatia, confiança e diálogo: os pilares da atuação médica humanizada
No exercício da profissão, o escopo precípuo da atuação médica constitui a
saúde do ser humano e das coletividades humanas, em benefício da qual deverá
agir com o máximo de zelo, com o melhor de sua capacidade profissional e sem
qualquer discriminação (artigo 2º da Lei nº 12.842/13).60
As ações profissionais do médico serão desenvolvidas no campo da atenção
à saúde a fim de promovê-la, protegê-la e recuperá-la, bem como para a prevenção,
o diagnóstico e o tratamento das doenças, e, por fim, a reabilitação dos enfermos e
portadores de deficiências (parágrafo único, I,II e III).
O contato inicial entre o médico e o paciente é marcado por medo e
insegurança frente ao desconforto e o desequilíbrio que o incomodam. O conhecer o
outro e com este estabelecer uma relação de empatia e confiança não é imediato,
até porque, o paciente terá que expor a sua intimidade a alguém que não conhece,
muito embora acredite tratar-se de um profissional com conhecimento e habilidade
técnica para descobrir o mal que o aflige.
60
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br_Ato2011-2014> Acesso em: 12 mar. 2015.
110
O médico, com o máximo de zelo e cautela, procura destacar o papel do
paciente na relação tornando-o protagonista da sua saúde, do seu próprio cuidado e
bem-estar, de modo a alicerçar a importância da sua participação ativa no processo
de interação com a sua patologia.
O convívio deve ser harmonioso e eivado de respeito e consideração pela
limitação do paciente no que tange ao conhecimento e compreensão da patologia e
à aceitação do tratamento indicado, diante da possibilidade de acesso à tecnologia
avançada através dos meios de comunicação, entre eles, a internet.
A atuação coerente e prudente do médico deve pautar-se no diálogo com o
paciente, ou seja, no saber ouvir e interpretar o que está sendo dito, considerando a
sua trajetória de vida, os valores pessoais relacionados ao medo, à angústia de uma
patologia, à insegurança, à esperança e à expectativa de cura e, em alguns casos, a
interrupção abrupta de um projeto de vida.
Na relação médico-paciente, a sensibilidade técnica e humana do
profissional permite tratar o ser humano com a sua patologia e não apenas a
patologia em si. Esse tratamento será estendido ao representante legal ou
familiares, que, direta ou indiretamente, participam do tratamento e da tomada de
decisões afetas à qualidade de vida do doente.
8.5.1 Empatia: colocar-se no lugar do outro para entender a sua realidade de vida
Na definição de Antonio Houaiss e Mauro de Salles Villar (2009, p. 740),
empatia é, “[...] processo de identificação em que o indivíduo se coloca no lugar do
outro e, com base em suas próprias suposições ou impressões, tenta compreender
o comportamento do outro”.
111
Colocar-se no lugar do outro constitui uma arte que se desenvolve na
academia e prossegue na prática cotidiana. Requer o envolvimento com o outro, o
entender o outro a partir de sua ansiedade, angústia, insegurança, incerteza e dor.
O elo que será estabelecido entre o paciente e o médico não representa tão
somente a confiança no conhecimento científico e habilidades para diagnosticar e
tratar, mas sim, no ato de cuidar e se envolver com o ser humano imperfeito e frágil
que se encontra sob os seus cuidados, esquecendo-se dos estereótipos impostos
pela sociedade, que dificultam a transposição da empatia, no entender de Roman
Krznaric (2015, p. 68):
O que todos os estereótipos têm em comum, quer sejam produto de política, religião, nacionalismo ou outras forças, é um esforço para desumanizar, para anular a individualidade, impedir-nos de olhar alguém nos olhos e saber seu nome. A consequência é criar uma cultura da indiferença na qual a empatia tem dificuldade em penetrar.
Ao atender o paciente, todavia, o profissional deve se acautelar a fim de que
suas emoções não prejudiquem a relação e tampouco interfiram nos procedimentos
necessários ao tratamento prescrito.
Em recente artigo publicado na Revista Ser Médico, o profissional Marco
Antônio de Carvalho Filho ensina os alunos da graduação, através do atendimento
simulado de consulta médica, a lidarem com suas emoções no contato com o
paciente. Segundo o professor, o ser humano não aprendeu a lidar com as suas
emoções, o que pode culminar no distanciamento do médico quanto à pessoa do
paciente a fim de se proteger, prejudicando a ambos. Afirma, ainda, que o
distanciamento emocional atrapalha a realização profissional, pois, a oportunidade
de prestar ajuda a alguém somente é vivida em sua plenitude se houver conexão
com a pessoa ajudada.61
É cristalino o entendimento de que o profissional da medicina, em nenhum
momento, impedirá que as suas emoções interfiram na relação com o paciente,
entretanto, o equilíbrio é imprescindível para que o profissional não se sinta
61
“Projeto da Unicamp, que ensina alunos de Medicina a lidar de forma positiva com suas emoções ao atender pacientes, mostra que sim”. Revista Ser Médico, n.72, ano XVIII, jul-set, 2015, p.34-37.
112
impotente e conheça as suas limitações, sem deixar de lado, entretanto, a empatia
com a dor e o sofrimento do outro, isto é, muito embora o médico não possa sentir a
dor do paciente, uma vez que é subjetiva e pessoal, procura colocar-se no seu lugar
com o intuito de conhecê-lo e ajudá-lo.
Ao ter percepção de que o médico se preocupa com o sofrimento e
frustrações do paciente, que se encontra diante de uma situação desconfortante, o
profissional da medicina possibilita a descoberta do outro, sem dissimulações que
comprometam a relação.
Doutrina abalizada comunga esse entendimento e reforça os
relacionamentos interpessoais na área da saúde, de acordo com Paula Costa Mosca
Macedo (apud DINIZ, 2013, p. 199):
Onde houver doença, sempre haverá a irradiação do universo emocional daquele que dela padece, podendo ser manifestação de sofrimento, desesperança, dor, preocupação, raiva e até negação da realidade, mas, inexoravelmente, o profissional será afetado por essas demandas emocionais e a elas responderá com sua própria subjetividade. A partir da empatia, pode-se criar um campo relacional de entendimento, evitando-se formas de reação mais primitivas por parte do profissional.
Salienta, entretanto, que a empatia requer um desenvolvimento emocional, a
fim de preservação do pensamento e da racionalidade para que se possa lidar com
as diferenças e os conflitos que a empatia não pode evitar:
Ser empático não é criar condições para uma relação harmoniosa nem conquistar o outro com uma espécie de sedução agradável; ser empático é, antes de tudo, uma possibilidade pessoal na relação com o outro, que requer desenvolvimento emocional e profundo respeito tanto naquilo que se refere ao objetivo determinado (o cuidado) quanto ao lidar com as diferenças e os conflitos que a própria empatia suscita (MACEDO, 2013, p. 198).
Na condição de paciente, o profissional da medicina também encontra
dificuldades em aceitar e lidar com a patologia que o acomete, uma vez que dispõe
de conhecimento científico para entendê-la, o que o torna impotente, angustiado e
vulnerável, segundo Alexandrina Maria Augusto da Silva Meleiro (2001, p. 240), que
desenvolveu um estudo a respeito:
113
O paciente-médico, diante de complicações tanto de um tratamento clínico quanto cirúrgico, traz em si a carga da dúvida, sofrendo dessa forma mais que os outros. Suas angústias e preocupações justificam sua postura de desaprovação da condução do tratamento, de menor confiança na prescrição médica, seguindo-a, pouco, de maior preocupação com os efeitos colaterais e de desejar ser informado sobre a medicação prescrita. Essa postura mais exigente (cliente especial) faz com que ele seja considerado pelos próprios colegas como “o pior paciente para ser tratado”, e nem sempre é compreendida pela própria classe médica, favorecendo a perpetuação desse preceito.
De se ver que na prática, a empatia solidifica o relacionamento com o
semelhante e proporciona benefício mútuo para as partes, pois, esteja o profissional
da medicina na condição de paciente ou não, colocar-se no lugar do outro e
sensibilizar-se pelo seu sofrimento possibilitará a compreensão e a aceitação de
suas limitações e a busca constante do equilíbrio das suas emoções.
Norbert Bensaid (1977, p. 130) bem descreve esse quadro ao versar sobre a
consulta médica:
Escutar não é o suficiente, é preciso entender, sentir, compreender, quer dizer, apagar-se. Não é fácil. Não nos é ensinado a fazê-lo, e tudo, no decorrer do dia, nos tenta a afirmarmo-nos e, ao mesmo tempo, protegermo-nos. Tudo: a confiança e a angústia do doente, nosso poder e impotência, nosso saber e ignorância, a invulnerabilidade que os doentes nos emprestam - eles ficam escandalizados quando adoecemos - e a nossa vulnerabilidade real, nosso medo de ser atingido, por nossa vez, pelas doenças cujos estragos constatamos. Aceitar que o doente fale de si, e não somente de uma doença, é aceitar, e suportar, que ele fale de nós e nos conteste. Aceitar, entender o que ele diz, é recusar interpormo-nos entre seu discurso e nós, para que seu discurso nos deixe intactos.
O ato de repensar a vida diante de uma situação de desconforto conduz o
ser humano à percepção e reflexão sobre o que almeja para si e para o seu
semelhante diante da dor e do sofrimento que os acometem, pois, como bem
salientam Geraldo José Ballone, Ida Vani Ortolani e Eurico Pereira Neto (2007, p.
17):
114
[...] a qualidade e a intensidade das percepções refletem, muitas vezes, fatores pessoais de quem percebe, tais como suas necessidades, emoções, atitudes e valores. Isso quer dizer que nós percebemos de acordo com aquilo que somos (personalidade) e de acordo com o jeito que estamos (situação emocional atual).
8.5.2 Confiança: a integridade e a sinceridade no contato do médico com o paciente
Para que se possa estabelecer uma relação de confiança, primeiramente,
mister se faz conhecer o outro e respeitá-lo como ser humano falível e, por
conseguinte, passível de erros. A exposição fidedigna dos fatos faz parte dessa
relação e deve pautá-la desde o início.
O conceito de confiança relaciona-se à idoneidade moral de uma pessoa
que, no caso profissional, consiste na sua reputação, seriedade e boa conduta, o
que é perfilhado por De Plácido e Silva (1984, p. 503, vols. I e II) ao defini-la,
juridicamente, como: “[...] o conceito intimo a respeito do critério, do caráter e da boa
conduta de uma pessoa, em quem, por esta razão, se deposita fé em sua ação ou
em seu bom procedimento”.
A confiança na conduta do profissional da medicina facilita a nudez do
paciente, que, com singeleza, expõe suas dificuldades, constrangimentos e
frustrações evidenciando a sua carência física, psíquica e social.
O sentimento de isolamento e abandono do paciente envolve o seu círculo
de amizades, colegas de labor e, principalmente, a exposição da família diante de
uma situação inesperada. A insegurança no que tange à compreensão e aceitação
da patologia e posterior tratamento é extensiva à família do paciente, que não dispõe
de conhecimento técnico-científico para o acompanhamento adequado e os
cuidados necessários.
O dilema do paciente em expor o problema à família pode agravar sua
saúde, tornando-o mais vulnerável à exposição a outras patologias. É nesse
115
momento que a confiança mútua entre o paciente e o profissional é de extrema valia
para esclarecer a família acerca da patologia que o acomete, do prognóstico, do
tratamento ou tratamentos disponíveis e, por derradeiro, do medo que o aflige.
Esse esclarecimento, todavia, não assegura o estreitamento da convivência
familiar e a aceitação dos fatos; pelo contrário, pode causar rejeição e posterior
abandono.
A interação do profissional com o paciente e familiares lastreada na
confiança mútua solidifica a relação e contribui para o prosseguimento do tratamento
com segurança e credibilidade, ao mesmo tempo em que minimiza intervenções
desnecessárias.
O estabelecimento de um vínculo significativo entre o profissional, paciente e
familiares decorre da confiança e favorece o diálogo entre as partes, a exposição de
dúvidas e, consequentemente, os esclarecimentos com sinceridade e sem
parcimônia.
8.5.3 Diálogo: o diferencial na atuação médica humanizada
A tecnologia avançada da sociedade contemporânea proporciona meios de
comunicação social eletrônicos, que conduzem ao individualismo e à indiferença
para com o semelhante.
A despeito de facilitar o cotidiano do homem moderno, a comodidade o isola
e dificulta o contato direto entre os indivíduos, que envolve o tocar, o sentir e o
dialogar.
Para Gadamer (2015, p. 503), “[...] a linguagem é o medium universal em
que se realiza a própria compreensão. A forma de realização da compreensão é a
interpretação”.
116
Interpretar advém do latim interpretor, que significa “[...] explicar, traduzir,
compreender, avaliar e decidir (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 1099)”.
Na relação médico-paciente, a interpretação acompanhada da compreensão
denomina-se “olhar clínico”, que, segundo Michel Foucault (2014, p. 118):
O olhar se realizará em sua verdade própria e terá acesso à verdade das coisas, se se coloca em silêncio sobre elas; se tudo se cala em torno do que vê. O olhar clínico tem esta paradoxal propriedade de ouvir uma linguagem no momento em que percebe um espetáculo. Na clínica, o que se manifesta é originariamente o que fala.
“A linguagem é a manifestação do pensamento de pessoa a pessoa através
da fala, da escrita e por sinais. Se a linguagem traduz o pensamento, nela está
contida a manifestação da vontade (DE PLÁCIDO E SILVA, 1984, p. 93, vols. III e
IV)”, pois, Melius est sensum magis quam verba amplecti62 (NEVES, 1996, p. 334).
O silêncio também pode ser interpretado como algo que a pessoa quer
transmitir, mas não consegue, uma vez que não está preparada para ouvir a
resposta.
A relação médico-paciente requer cuidado, atenção e disposição, em
especial, do profissional da medicina. Não obstante a consulta médica ser marcada
com antecedência, salvo eventual urgência, o tempo dedicado ao paciente é ínfimo,
desde a consulta inicial. Não se trata de consulta com médico particular, cujo valor é
dispendioso, mas sim, de assistência médica pública e privada (operadoras de
planos de saúde).
No início da relação, as partes se apresentam e entabulam breve conversa
técnica. O profissional questiona o paciente a respeito do mal-estar que o incomoda.
O paciente, por seu turno, confiando no conhecimento técnico-científico e nas
habilidades do profissional, expressa com objetividade os sintomas que o afligem. O
profissional o examina com brevidade, solicita exames e prescreve medicamentos
para aliviar o mal-estar, se o caso.
62
Melhor é ater-se ao sentido da palavra que à sua escrita.
117
O paciente, externando compreensão no que tange às orientações do
profissional, retira-se do consultório levando consigo a lista de exames que deverá
providenciar com presteza; pois, caso contrário, o seu estado de saúde pode se
agravar.
Gadamer (2006, p. 132-133) entende que, “[...] a fala somente é o que ela é,
quando for diálogo, quando houver uma troca recíproca entre pergunta e resposta”.
Acrescenta o filósofo, que o conceituado “médico da família” inexiste na
atualidade e o “horário de consulta” é inadequado ao diálogo, pois o profissional, na
maioria das vezes, encontra-se absorto “por uma conversa importante com outro
paciente e pelo seu tratamento”, enquanto os demais o aguardam ansiosamente na
sala de espera.
Para Ildo Meyer (2016, p. 110), preocupados em demonstrar ao paciente o
seu conhecimento técnico-científico ou na pressa de liberá-lo, alguns profissionais
fornecem diagnósticos e tratamentos não se preocupando com a escuta, ocorrendo
apenas e tão somente, “uma captura do paciente/sujeito/outro, que será
transformado em conceito/objeto/doença”.
Nessa linha de pensamento, na entrevista publicada no jornal Folha de São
Paulo, o professor de medicina Dr. Abraham Verghese, da Universidade de Stanford
(EUA), afirma que a utilização da tecnologia na atualidade impede a conexão entre o
profissional e o paciente. Assegura que a preocupação dos profissionais volta-se
para o paciente virtual, que denominou “iPatient”, ou seja, “aquele que consta nos
registros eletrônicos”, deixando de lado o “paciente real” que está na cama
hospitalar.
No entender do professor, o exame físico realizado com cuidado transmite a
atenção que o paciente espera do profissional e contribui para a solicitação criteriosa
de exames, reduzindo os custos do sistema de saúde. Acrescenta, por derradeiro,
118
que cada corpo humano tem sua história e cabe ao profissional “entender a doença
sob a perspectiva do paciente”.63
Depreende-se do exposto que o diálogo é o alicerce que sustenta a relação
médico-paciente, reforçando os elos de empatia e confiança no profissional. Dessa
forma, o diálogo representa a arte de saber ouvir e ser ouvido, cujo aprendizado
requer o respeito à individualidade do paciente contribuindo como fator de
racionalização da judicialização da saúde.
O contato acolhedor, o afeto e a escuta efetiva do médico fortalecem o
vínculo de confiança na atuação ética e humanizada do profissional, contribuindo
para a conscientização do paciente na importância da qualidade de vida saudável e
na sua capacidade de cuidar de sua saúde, através da prática de hábitos saudáveis,
o que pode “redefinir o curso de uma enfermidade e valer uma vida”, como bem
acentua Ildo Meyer (2016, p. 164):
Quase nunca o tempo é o responsável pela falta de afeto na consulta médica. Dez ou quinze minutos de acolhimento, atenção integral e escuta efetiva, facilitando a condução discursiva do paciente, sem julgá-lo como tolo, inverossímil ou absurdo podem contribuir para a fidelização do tratamento e deixar saudade, mesmo se tratando de atendimentos na rede pública. O que o paciente não mais aceita é a hora inteira de consulta médica, sem um único gesto de acolhimento, proximidade existencial ou abraço de olhares. Insensibilidade e indiferença não criando a possibilidade de um encontro de qualidade. Gestos como um aperto de mão, afago na cabeça de uma criança, toque delicado ao realizar um exame, respeito à privacidade do corpo- história do outro, podem, em poucos instantes, redefinir o curso de uma enfermidade e valer uma vida.
Caso contrário, a ausência de respeito dificulta a relação, tornando o contato
mera requisição de exames clínicos, medicamentos, procedimentos e tratamentos
em geral, além de internações, que, caso negadas pelo sistema de saúde público ou
suplementar, são postuladas através de ações judiciais.
63
“Na era do paciente virtual, médicos deixaram o exame físico de lado”. Folha de São Paulo, Saúde + ciência, 1 jul.2015.
119
Ensina Perestrello (1996, p. 96) que:
É preciso respeitar a sua individualidade, sua pessoa, começando por ouvir o que a pessoa tem a dizer. Portanto, ao lado das perguntas referidas, as quais constituem o interrogatório dirigido, há que deixar o doente falar e – importantíssimo – ouvi-lo. Ouvi-lo, ainda que as declarações sejam dispersas e pareçam supérfluas, porque poderão proporcionar uma visão significativa da pessoa do doente.
Se a medicina é a arte através da qual se expressam sentimentos,
pensamentos, sensações e ideais do médico e do paciente, a sua interação com a
literatura contribui para a formação humanizada do profissional e a visão holística do
enfermo.
8.6 Literatura e medicina: os textos literários e a formação humanizada do médico
O emérito docente de clínica médica da Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro (Unirio), Dr. Mário Barreto Correa Lima, em sintonia com o literato
Paulo César dos Santos Leal, publicaram a obra intitulada Disciplina Literatura e
Medicina. A pesquisa do contexto médico em textos literários: uma leitura
transdiscursiva (2013), que versa sobre a interação entre Literatura e Medicina, sob
o prisma da relevância da formação humanizada do profissional da medicina desde
a graduação, através da análise de textos literários.
Na concepção dos autores, a transdisciplinaridade e a transdiscursividade
promovem a integração das diversas áreas de conhecimento, complementando-as,
o que favorece o acadêmico no trato com a patologia, a dor, as emoções, a morte e
o seu papel social, entre outros.
Em conformidade com o tema desenvolvido neste trabalho, serão
destacadas as seguintes obras literárias: - A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói
(1886), e - O Doente Imaginário, de Molière (1673).
120
As narrativas que serão transcritas, entretanto, foram extraídas da leitura
integral das obras clássicas mencionadas, seguidas de interpretação própria
relacionada à tese que se busca defender, fundamentada na atuação médica
humanizada como fator contributivo para a racionalização da judicialização da
saúde.
Frise-se que em nenhum momento pretendeu-se o aprofundamento da
análise dos textos literários dentro do contexto médico desenvolvido na obra dos
mencionados autores.
A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói (1886), ilustra o vácuo existente na
relação médico-paciente quando ausente o diálogo. O protagonista é um respeitado
e exemplar magistrado que cumpre seus deveres com honestidade e severidade.
Contraiu núpcias com Prascóvia Fiodorovna Michel, com quem manteve um
relacionamento conjugal conturbado. Certa vez, ao ser promovido, encontrou uma
casa que o satisfazia, bem como sua família. Iniciou, então, a reforma do local para
posterior mudança. Ao orientar um funcionário que laborava na obra, subiu na
escada, momento em que “deu um passo em falso, escorregou, mas, como era ágil
e forte, conseguiu se aprumar e apenas bateu de lado na moldura da janela”.
Ivan Ilitch vivia com saúde e tranquilidade, não obstante os frequentes atritos
com a esposa. Ocorre que o lado esquerdo do ventre passou a incomodá-lo,
tornando-o cada vez mais irritado, sendo orientado pela esposa a consultar um
médico renomado, o que concordou, marcando consulta.
É imperioso, nesse instante, transcrever a percepção do protagonista no
contato com o profissional:
Tudo se passou como previa e como se passa sempre: a longa espera, o ar doutoral tão seu conhecido, pois era o ar que gastava no tribunal, a percussão, a auscultação, as perguntas de praxe, que pediam respostas formuladas de antemão e perfeitamente inúteis, e a importância com que dava a entender: basta que se submeta a nós e tudo resolveremos – sabemos muito bem como se resolvem esses casos, sempre da mesma maneira para qualquer paciente.
121
Exatamente como no tribunal. Assim como representava uma farsa diante dos acusados, o famoso médico representava para ele. O clínico dizia: isto e aquilo indicam que o senhor tem isto ou aquilo; mas se o exame não confirmar que o senhor tem isto e aquilo, devemos levantar a hipótese de ter isto ou aquilo. E supondo-se que sofre disto ou daquilo, então... e assim por diante (TOLSTÓI, 2013, p. 38-39).
Percebe-se que a inquietação do paciente gravitava em torno do desconforto
que sentia, mas o profissional o ignorava, faltando-lhe com a devida atenção e
respeito:
Não estava em pauta a vida de Ivan Ilitch, mas sim decidir pelo rim ou pelo ceco. E o facultativo brilhantemente resolveu, segundo pareceu a Ivan Ilitch, a favor do ceco, ressalvando, porém, que um exame completo de urina poderia fornecer novos subsídios para a possível reconsideração do diagnóstico. Exatamente o que Ivan Ilitch fizera mil vezes, e com o mesmo brilhantismo, em relação a um acusado. De maneira igualmente brilhante, o médico fez a sua conclusão e, triunfante, e até jubilosamente, olhou por cima dos óculos para o acusado. Mas Ivan Ilitch, pela conclusão científica, inferiu que as coisas andavam mal para seu lado, embora isto fosse indiferente para o médico e talvez para todo mundo. E a conclusão chocou-o profundamente, despertando nele um grande sentimento de comiseração por si mesmo e de ódio ao médico, pelo pouco caso com que encarava matéria de tamanha importância (TOLSTÓI, 2013, p. 39).
O distanciamento do profissional em relação às emoções de Ivan Ilitch é
patente, provocando-lhe indignação e revolta:
Calado ficara. Levantou-se, pôs o dinheiro da consulta na mesa, deu um suspiro e só então falou: - Nós os doentes talvez façamos muitas perguntas inconvenientes. Todavia, aventuro-me a perguntar se o que tenho é grave ou não? O médico olhou-o severamente por trás dos óculos, fechando um olho, como se dissesse: ”Acusado, se não se restringir às perguntas que lhe foram formuladas, serei obrigado a mandá-lo retirar do recinto”. Mas, na verdade, respondeu: - Eu já disse ao senhor aquilo que considero necessário e oportuno. A análise da urina indicará o restante.- E fez-lhe uma saudação de despedida (TOLSTÓI, 2013, p. 39).
Observa-se que o protagonista faz comparações entre a sua conduta como
magistrado e a conduta do profissional da medicina, ambas denotando frieza e o
cumprimento do sacerdócio sem benevolência e complacência pelo próximo.
122
Após a consulta, Ivan Ilitch ocupa-se com as orientações do médico, leitura
de obras de medicina e consulta a outros clínicos, pois a dor não amenizava, não
obstante tentar se convencer de sua melhora.
Ao consultar outros profissionais, tinha a sensação de piora do quadro
clínico, o que acentuava o medo, as dúvidas e incertezas, tornando-o incrédulo
quanto ao tratamento prescrito:
Um médico homeopata externou uma opinião diferente de todos e, por uma semana, Ivan Ilitch tomou, às escondidas, o remédio que ele receitara. Passada a semana, não sentindo nenhuma melhora, perdeu tanto a confiança no tratamento homeopático quanto no alopático e ficou mais abatido (TOLSTÓI, 2013, p. 42).
O tempo transcorria e Ivan Ilitch sentia em sua alma a chegada do fim, mas
não foi capaz de compreender a razão de tudo o que estava acontecendo. Pensou
que não vivera como deveria e sofria com a mentira aceita por todos que estavam
ao seu redor, qual seja, de que se encontrava doente e não moribundo. Irritava-se
por participar dessa farsa.
O pânico tomou conta do ser que se sentia abandonado pela família, amigos
e médicos (dor social). É nesse instante que se percebe a necessidade do enfermo
de receber a atenção e o carinho da família. O único que o acompanhava e o
compreendia era o escravo Guerássim, que estava sob o seu domínio, e o fazia
sentir-se reconfortado ao seu lado:
Via que ninguém tinha piedade dele, porque ninguém tentava sequer compreender a sua situação. Somente Guerássim compreendeu-o e compadeceu-se. E era por isto que Ivan Ilitch só se sentia bem na companhia dele. Mostrava-se aliviado quando Guerássim segurava-lhe as pernas, às vezes por uma noite inteira [...] (TOLSTÓI, 2013, p. 56).
A impotência diante da morte, inevitável, e a solidão que sentia pelo descaso
daqueles que lhe eram caros debilitava-o diariamente, até porque se sentia incapaz
de externar sua carência emocional e espiritual, pois, como sói acontecer, foi um
profissional austero e severo e assim conduziu sua vida até o óbito:
123
Momentos havia, depois de demorados sofrimentos, em eu queria acima de tudo, por mais que se envergonhasse de confessá-lo, ver-se tratado como se fosse uma criança doente. Queria ser acarinhado, mimado, beijado, tal como se faz com as crianças. Sabia que era um juiz importante, dono já de uma barba grisalha e que por isto mesmo o que ambicionava era impossível, mas ainda sim ambicionava. E no comportamento de Guerássim para com ele havia qualquer coisa próxima daquilo que queria e de tal forma sentia-se um pouco confortado. Ivan Ilitch queria chorar, queria ser acariciado e consolado, mas quando chegava o seu colega Chebek, em vez de lágrimas e enternecimentos, Ivan Ilitch punha no rosto uma máscara de seriedade, dignidade e profundeza e, pela força do hábito, trocava opiniões sobre determinado acórdão da Corte de Apelação e obstinadamente defendia seu ponto de vista. A falsidade à sua volta e dentro dele envenenou mais do que tudo os seus derradeiros dias (TOLSTÓI, 2013, p. 57).
As visitas que recebia do médico o tornavam mais cético e ratificavam o seu
óbito, pois a dor moral era lancinante se comparada à dor física. As pessoas não
interpretavam suas emoções, o seu olhar e suas parcas palavras, o que dificultava a
compreensão e, consequentemente, o diálogo. O contato limitava-se as conversas
efêmeras entre médico e paciente, conforme se observa:
- Muito bem, como vai? Ivan Ilitch tem a nítida impressão de que o médico gostaria de dizer: “Como vão os negócios?” Como isto, porém, não tem propósito ali, diz: - Como passou a noite? Ivan Ilitch olha para o médico, como a perguntar: ”Será crível que você não tenha vergonha de mentir?” Mas o médico não quer saber de tal pergunta e Ivan Ilitch se queixa: - Tão mal como ontem. A dor não cessa. Se fosse possível fazer alguma coisa para atenuá-la... “Todos os doentes são a mesma coisa [...] (TOLSTÓI, 2013, p. 60).
Apesar de as injeções de morfina e ópio aliviarem temporariamente o mal-
estar, o paciente permanecia inerte e relembrava sobre sua vida desde a infância
até o presente, e tudo parecia insignificante: “E quanto mais longe da infância e mais
perto do presente, tanto mais as alegrias que vivera lhe pareciam insignificantes e
vazias (TOLSTÓI, 2013, p. 66)”.
Dessume-se que somente o protagonista sentiu a denominada “dor total”
que, Cicely Saunders, citada por Luciana Berthachini e Leo Pessini no texto
Conhecendo o que são os cuidados paliativos: conceitos fundamentais (2011, p. 47),
124
conceituou como um “complexo de elementos físicos, emocionais, sociais e
espirituais da pessoa humana”.
É o momento em que o eu, com o corpo deteriorado, sem controle do que
esta ao seu redor, isolado e abandonado, se coloca face a face com suas
singularidades e, ato contínuo, passa a refletir sobre o sentido e o significado do seu
viver, em razão da sua natureza finita.
Le Malade Imaginaire (O Doente Imaginário), dramaturgia francesa de
Molière (1673, p. 18), “[...] é um protesto da inteligência e do corpo contra a
implacável destruição imposta pela doença, contra a impotência humana, contra a
exploração de alguns da miserável condição humana”.
Trata-se de uma peça teatral encenada em Paris, cujo protagonista e doente
imaginário é a pessoa de Argan.
No segundo prólogo (1674), o cenário campestre apresenta poesias pastoris
(éclogas), quase sempre na forma de diálogos. Destaca-se a “Queixa da Pastora”,
que não encontra medicamento para suavizar as penas que a incomodam. Faunos e
Egípcios participam do seu lamento, que expressa sua insatisfação com o
profissional da medicina, tratando o seu conhecimento técnico-científico como pura
utopia, ilusão ou fantasia (p. 36-37):
Vosso mais alto saber não passa de pura quimera, Vãos e pouco sábios médicos; Vós não podeis curar, com vosso grande falar em latim A dor que me desespera: Vosso mais alto saber não passa de pura quimera. Ai de mim! Não ouso revelar Meu martírio de amor Ao pastor por quem suspiro, E só ele poderia me acudir. Não pretendais terminá-lo Médicos ignorantes, vós não saberíeis o que fazer: Vosso mais alto saber não passa de pura quimera. Esse remédio incerto, de quem o homem vulgar Crê que conheceis a virtude admirável, Para o mal que me aflige nada tem de salutar;
125
E todo vosso falatório só pode ser ouvido Por um Doente imaginário.
Vosso mais alto saber não passa de pura quimera, Vãos e poucos sábios médicos; Vós não podeis curar, com vosso grande falar em latim A dor que me desespera; Vosso mais alto saber não passa de pura quimera.
As economias de Argan se desvanecem paulatinamente com a astúcia de
Purgon (médico) e Fleurant (boticário), diante da prescrição desenfreada de
medicamentos e clisteres (p.15), o que ratifica a nosomifalia do protagonista.
No Ato I, Cena V, evidenciando um egoísmo ímpar e para facilitar as
consultas médicas, prescrição de receitas e aquisição de medicamentos, Argan
tenciona casar sua filha Angèlique com um futuro profissional da medicina, sobrinho
de Purgon, argumentando:
[...] estando enfermo e adoentado como estou, quero ter um genro e aliados médicos para ter bons apoios contra a minha doença, ter na família as fontes dos remédios necessários e das consultas e receitas. É para mim que lhe dou este médico: e uma boa filha deve ficar feliz com aquilo que é útil (MOLIÈRE, 2014, p. 55).
No Ato II, Cena V, ao entabular uma conversa com Diafoirus (médico e
genitor de um pretende de sua filha), indagando-o sobre a futura formação
profissional de seu filho no curso de medicina, Diafoirus, evidenciando insatisfação
com os pacientes nobres, que entendem que o médico tem o dever de curá-los,
demonstra simpatia no trato com o público, conveniente e tolerante:
-Para falar francamente, a nossa profissão junto aos nobres nunca me pareceu agradável, e sempre achei que era melhor para nós ficarmos junto ao público. O público é mais cômodo. O senhor não tem de responder por seus atos e, contanto que siga a regra da arte, não somos culpados pelo que acontece. Mas o que há de chato com os nobres é que quando ficam doentes, querem a todo custo que os seus médicos os curem (MOLIÈRE, 2014, p. 93).
No Ato III, Cena III, em conversa com Béralde, seu irmão médico, ao expor
sua pretensão em casar a filha com um médico, em benefício próprio e da família, o
126
irmão, indignado, repreende seu comportamento, pois, ao que tudo indica, Béralde
está incrédulo no que tange à doença de Argan.
No seu entender, Argan é um hipocondríaco estimulado por Purgon,
conforme se observa na conversa entabulada entre os irmãos:
-Será possível que sereis sempre apaixonado dos vossos boticários e médicos, e que vá querer ser doente apesar das pessoas e da natureza? -Como entende isso, meu irmão? -Entendo, meu irmão, que não vejo pessoa que esteja menos doente do que vós, e que eu não pediria melhor constituição do que a vossa. Uma grande prova de que andais bem, e que tendes um corpo perfeitamente bem regulado, é que com todos os remédios que já tomastes, ainda não conseguistes estragar a vossa saúde. Vê que não estais morto com todos os medicamentos que lhe fizeram tomar. -Mas sabeis, meu irmão, que é isto que me conserva, e que o senhor Purgon disse que eu sucumbiria se ele ficasse somente três dias sem me tratar? -Se não tomais cuidado ele lhe tratará tanto que o enviará ao outro mundo. (MOLIÈRE, 2014, p.115).
Intrigado com a sinceridade do irmão, Argan o indaga a respeito de sua
credulidade na medicina. Nesse instante, Béralde inicia com Argan um diálogo
percuciente:
-Não, meu irmão, e não creio que pela sua salvação seja necessário acreditar. -Como! Não acha verdadeiro algo reconhecido por todo o mundo e que todos os séculos reverenciaram? -Além de não considerá-la verdadeira, acho, cá entre nós, que é uma das maiores loucuras que há entre os homens, e, a ver as coisas como filósofo, não vejo farsa mais ridícula do que um homem que quer meter-se a curar outro. -Por que não crês, meu irmão, que um homem possa curar outro? -Pela razão, meu irmão, de que os mecanismos da nossa máquina são mistérios, até hoje, em que os homens nada enxergam, e que a natureza colocou em frente de nossos olhos véus por demais espessos para entendermos alguma coisa. -Os médicos então não sabem nada, na sua opinião? -Sabem, meu irmão. Eles sabem, em sua maioria, línguas antigas, sabem falar belo latim, sabem nomear em grego todas as doenças, defini-las e dividi-las; mas no que tange a curá-las, isso é que não sabem (MOLIÈRE, 2014, p. 116).
127
A insistência de Argan em convencer o irmão de sua imaginária doença e
de que o médico tem conhecimento técnico-científico para detectá-la e curá-la resta
patente no diálogo entre ambos:
-Mas é preciso pelo menos convir que deste assunto os médicos sabem mais do que os outros. -Eles sabem, meu irmão, o que lhe disse, que não curam muita coisa, e que toda a excelência da arte deles consiste num pomposo jargão, num linguajar especioso que lhe dá palavras por razões e promessas por efeitos. -Mas afinal, meu irmão, há pessoas tão sábias e tão inteligentes quanto vós e vemos que na doença todos apelam para os médicos. -É um traço da fraqueza humana e não da verdade de sua arte (MOLIÈRE, 2014, p. 116).
Para convencer Béralde da conduta ética de Purgon, Argan afirma que o
irmão tem certa animosidade com o profissional. Nesse momento, para afrontá-lo,
Argan o indaga sobre o que fazer quando se está doente, o que Béralde responde:
“nada, meu irmão”.
Inconformado, Argan não entende o significado do vazio da resposta do
irmão e insiste na pergunta:
-Nada? -Nada. É preciso só manter-se em descanso. A natureza, por si própria, quando a deixamos operar, tira-se aos poucos da desordem em que caiu. É a nossa inquietude, a nossa impaciência, que tudo estraga, e quase todos os homens morrem dos seus remédios, e não da sua doença. -Mas é preciso reconhecer, meu irmão, que se pode ajudar a natureza com certas coisas. -Meu Deus, meu irmão, são puras ideias em que queremos acreditar, e de todos os tempos, introduziram-se entre os homens belas imaginações que vamos crer porque nos agradam, e seria desejável que fossem verdadeiras. Quando um médico lhe fala de ajudar, socorrer, aliviar a natureza, de tirar-lhe o que prejudica e dar-lhe o que falta, de restabelecê-la na plena facilidade de suas funções; quando ele lhe fala em purificar o sangue, refrescar as entranhas e o cérebro, desinchar o baço, ordenar o peito, consertar o fígado, fortificar o coração, em restabelecer e conservar o calor natural e em ter segredos para prolongar a vida muitos anos, ele está contando-lhe justamente o romance da medicina. Mas, quando se dá importância à verdade e à experiência, não se encontra nada disto tudo, e ficamos como nestes belos sonhos que deixam, ao despertar, a saudade de havermos acreditado (MOLIÈRE, 2014, p. 118).
128
Demonstrando irritação com a soberba de Béralde, o protagonista o desafia
asseverando que a ciência mundial está somente em sua cabeça, bem como que
quer saber mais dos que os outros profissionais da área da medicina. Béralde, com
muita paciência, responde ao irmão:
-Nos discursos e nos fatos são dois tipos de gente os vossos grandes médicos: ouçam-nos falar, os mais hábeis do mundo; vejam-nos agir, os mais ignorantes dos homens. -Eu, meu irmão, não tenho por profissão combater a medicina, e cada um, assumindo o risco, pode acreditar no que quiser. O que digo, é cá entre nós, e teria desejado poder tirá-lo um pouco do erro em que estais, e, para diverti-lo, levá-lo a assistir no caso algumas das comédias de Molière (MOLIÈRE, 2014, p. 118).
Nesse momento crucial, Argan dirige-se a Béralde criticando as comédias de
Molière, pois, na sua linha de raciocínio, ele deseja “divertir-se com pessoas
honestas como os médicos”. Béralde, sem parcimônia, responde ao irmão: “Não é
dos médicos que ele brinca, mas do ridículo da medicina (MOLIÈRE, 2014, p. 118)”.
Convém mencionar a breve conversa entre Fleurant (boticário) e Béralde
(Cena IV), quando o primeiro se dirige à residência de Argan para proceder à
lavagem prescrita por Purgon. Béralde convence o irmão a deixar para outra
oportunidade para que possa descansar. Argan, então, dispensa Fleurant, que,
inconsolável, volta-se para Béralde dizendo:
-Como o senhor se atreve em opor-se às receitas da medicina e impedir-me de aplicar o meu clister? Sois bem jocosos em ter este atrevimento. -Ora, senhor; bem se vê que não estais acostumado a falar com rostos (MOLIÈRE, 2014, p. 120).
A predisposição das partes, em saber ouvir e ser ouvida, contribuiu para que
Argan fosse convencido por Béralde de que era um doente imaginário, cuja
fragilidade emocional e a ausência do olhar clínico de Purgon, culminariam em
torná-lo um doente em potencial, caso persistisse na ingestão medicamentosa
desenfreada.
129
Nesse contexto literário, observa-se que um fator contributivo para a
judicialização da saúde na sociedade contemporânea é a ausência da linguagem na
relação médico-paciente, que envolve a compreensão e a intepretação das suas
fragilidades e emoções, inerentes a todo ser humano.
A conduta mercantilista do profissional que almeja transformar o doente
imaginário em doente potencial, também contribui para a judicialização da saúde, à
medida que a excessiva prescrição de medicamentos e indicação de procedimentos
ou tratamentos de tecnologia avançada não são disponibilizados pelo Sistema Único
de Saúde – SUS ou são negados pelos planos ou seguros de saúde.
A judicialização assenta-se em casos concretos, cuja primazia é o interesse
individual em detrimento do interesse coletivo. O bem comum torna-se secundário, o
que propicia a fragmentação dos serviços públicos e privados na área da saúde. A
consequência nefasta é a falta de recursos, precariedade do atendimento e a
insatisfação dos profissionais da área da saúde e consumidores.
8.7 Aristóteles e a Teoria das Virtudes: a conquista do viver bem
Aristóteles (384 a.C-322 a.C.), filósofo grego natural de Estagira, foi
discípulo de Platão na Academia Platônica (Liceu) e preceptor de Alexandre, o
Grande.
O conceito de felicidade para o filósofo grego é o “viver bem”, um fim em si
mesmo e não um meio para alcançar determinado fim, como bem assenta Mortimer
J. Adler (2010, p. 99), “[...] é o fim último ou definitivo de todas as nossas ações na
vida – o bem que buscamos por causa dele mesmo e não de outro bem ulterior”.
A conquista do “viver bem”, todavia e, segundo Adler (2010), requer a
atuação conjunta de outros bens, que representam os meios para a conquista do fim
último que é a felicidade. São eles: “bens corporais (saúde, vitalidade e vigor),- bens
externos ou riqueza (alimentação, bebida, vestuário e sono) e - bens da mente
130
(psicológicos), que se reportam ao saber prático e as capacidades, entre elas, o
pensamento (2010, p.101-103)”.
Infere-se que os bens elencados estão concatenados, uma vez que o
almejado “viver bem” carece de equilíbrio e reflexão contínua do ser, no que se
refere as suas escolhas e decisões afetas à satisfação de suas necessidades
prementes, bem como da sociedade em que se encontra inserido, visando o bem
estar social.
A virtude e a vida completas compõem a felicidade plena no entender de
Aristóteles. A Teoria das Virtudes aristotélica divide-se em: virtudes intelectuais e
virtudes morais.
As virtudes intelectuais compreendem a sabedoria, o entendimento e a
prudência; ao passo que as virtudes morais ou éticas envolvem a generosidade e
a temperança.
O intelecto é produzido e aprimorado pelo indivíduo através das experiências
vivenciadas no cotidiano e pela sua disposição e interesse em aprofundar-se no
conhecimento por meio da leitura e da observação acurada do que está ao redor.
As virtudes morais ou éticas, por seu turno, são desenvolvidas através do
hábito de escolher o que é certo, em detrimento do que é errado e prejudicial.
As decisões e escolhas certas dos bens que estão a disposição do indivíduo
caminham em direção à conquista do “viver bem”, ao passo que as decisões e
escolhas erradas, que Aristóteles denomina ”vícios”, caminharão em direção oposta.
(ADLER, 2010, p. 109).
Nesse contexto, o filósofo grego conduz à reflexão sobre a temperança, isto
é, a mediania entre os extremos, uma vez que conduz ao equilíbrio e ao bom senso,
que auxiliam o indivíduo no discernimento para a escolha de bons hábitos,
esforçando-se, pois, para afastar-se dos vícios, dos prazeres e das paixões que o
afligem.
131
De se notar que cada indivíduo, sem exceção, é o autor e protagonista da
sua história, sendo que a sua determinação e empenho para fazer as escolhas e
decisões corretas, espontâneas e conscientes, definirão o desfecho de sua obra.
É certo que o imprevisível não deve ser interpretado precipitadamente como
uma escolha ou decisão certa ou errada do indivíduo, pois este é surpreendido pelo
inesperado, sendo coerente, pois, a análise do contexto do ocorrido.
A elaboração dessa história não requer apenas a participação do homem,
pois na sua criação e desenvolvimento a contribuição da família, do círculo de
amizades e da sociedade em geral não pode ser suprimida.
A virtude moral da generosidade também requer o equilíbrio entre os
extremos, quais sejam a avareza e a extravagância. A escolha certa para a busca do
“viver bem” é um conflito diário da vida humana, que requer uma solução lastreada
na sabedoria e na mediania.
Na atuação médica humanizada, as virtudes intelectuais e morais ou éticas
orientam a conduta do profissional da medicina, em especial, a prudência (sabedoria
prática), do latim prudentia (previsão, sagacidade).
Oscar Wilde (2014), ao versar sobre a prudência, estabelece uma relação da
sua importância com a confiança, a cautela e a distinção, esta última, em certas
circunstâncias, é mais vital do que a sinceridade.
Em situações de extrema gravidade envolvendo o paciente, o médico deve
direcionar sua conduta com prudência a fim de evitar conflitos entre as partes,
incluindo os familiares do paciente, que podem culminar no retrocesso de eventual
tratamento.
Em publicação científica na Revista Biomédica64, Fátima Geovanini e
Marlene Braz (2013) abordam sobre os Conflitos éticos na comunicação de más
64
Revista Bioética – Conselho Federal de Medicina – nº 3, volume 21, 2013, p. 455-462.
132
notícias em oncologia, doença que qualificam como “um problema de saúde
pública”, em face do seu crescimento mundial.
Segundo as pesquisadoras, no decorrer do trabalho científico realizado com
um seleto grupo de profissionais oncologistas de diferentes gerações e com atuação
na rede pública e privada, a preocupação precípua foi a formação de uma deleitável
relação médico-paciente, considerada fundamental para a condução do tratamento e
transmissão da patologia que o acomete, a fim de evitar eventual piora do estado
físico e emocional.
A dificuldade em aceitar a finitude da vida por parte do paciente e familiares
favorece conflitos éticos que conduzem o profissional a revelar o diagnóstico sem
clareza e objetividade, disseminando a denominada “mentira piedosa” ou “falsidade
benevolente”.
É nesse momento que a experiência do profissional, acompanhada de
cautela e sensatez, contribui para a ponderação dos meios disponíveis e posterior
escolha ou decisão virtuosa, cujo risco e prejuízo não são descartados; porém,
podem ser minimizados, sem desrespeito à autonomia do paciente.
Sustenta René Descartes (2003, p. 67) que a disposição da vontade do ser
humano deve sempre estar voltada a:
[...] uma firme e constante resolução de fazer exatamente todas as coisas que julgarmos serem as melhores e empregar todas as forças de nosso espírito em conhecê-las bem. É só nisso que consistem todas as virtudes; é só isso que, propriamente falando, merece louvor e glória; enfim, é só disso que resulta sempre o maior e mais sólido contentamento da vida. Assim, estimo que é nisso que consiste o soberano bem.
De todo o exposto, concluiu-se que os extremos revelam-se desfavoráveis,
ou seja, entre a “mentira piedosa” e a “verdade escancarada”, é de bom alvitre a
“verdade prudente”, conceituada como, “a colocação da verdade possível e
adequada às necessidades individuais de cada paciente”.
133
9 CONCLUSÃO
A proteção dos direitos e garantias fundamentais elencados na Constituição
da República de 1988 constitui um desafio a ser enfrentado na sociedade hodierna
para o efetivo exercício da cidadania.
O direito fundamental social à saúde, inseparável do direito à vida, requer do
Poder Estatal uma atuação comprometida com o princípio da dignidade da pessoa
humana, disponibilizando ao cidadão um tratamento adequado ao atendimento de
suas necessidades vitais, que assegure o mínimo existencial na área da saúde.
A melhora na condição de vida dos cidadãos vincula-se à infraestrutura
sanitária básica, lastreada nos determinantes sociais da saúde, como também na
sua promoção, consubstanciada no acompanhamento do ser desde a concepção
prolongando-se até a sua finitude, educando-o e conscientizando-o da importância
do desenvolvimento de hábitos saudáveis e favoráveis à qualidade de vida digna e
ao bem-estar social.
A promoção da saúde, pois, é um compromisso público que envolve a
participação comunitária e a integração dos setores público e privado na alocação
de recursos destinados ao ‘cuidado em saúde’, com ênfase nas ações e programas
de saúde da família, atentando-se às peculiaridades do contexto social, ambiental,
cultural e econômico em que está inserida.
Estabelecidas as diretrizes e estratégias para promover a saúde, mister se
faz definir a estrutura dos serviços e ações que serão oferecidos, considerando o
encontro clínico entre o paciente e o médico, guardião da saúde e da vida com
dignidade.
A vivência do ser com um desequilíbrio interior constitui um estímulo à
reflexão da sua existência, incluindo as escolhas feitas ao longo da vida. O
134
sentimento de impotência diante do desequilíbrio conduz o paciente a interpretações
subjetivas acerca do desconhecido que o atemoriza.
É nesse momento de fragilidade e vulnerabilidade do paciente que o
encontro clínico com o médico constitui fator contributivo para a racionalização da
judicialização da saúde, na medida em que o profissional oferece uma assistência
humanizada centrada na pessoa do paciente, incentivando a manutenção da sua
saúde através do cuidado adequado às suas reais necessidades.
A atuação médica humanizada não considera o paciente um mero caso
clínico, cujo estudo científico contribui para o aprimoramento do conhecimento; pelo
contrário, a conduta do profissional fundamenta-se na ética, no bom senso, na
prudência e no sentimento de solidariedade.
A construção dos pilares da atuação médica humanizada constitui um
processo contínuo de empatia, confiança e diálogo com o paciente, valorizando o
ser humano na sua integralidade, aprofundando-se nas entranhas da sua
singularidade, complexidade, limitações e emoções, compreendendo as suas
necessidades e respeitando a sua autonomia sobre o direito à sua própria vida, que
nada mais é do que o direito à vida digna.
A atuação médica humanizada não constitui uma característica essencial da
profissão, mas sim, uma habilidade que se desenvolve e se aperfeiçoa no contato
com o paciente e familiares que participam da relação. Requer do profissional uma
troca recíproca de afeto, respeito e consideração pelo ser único e dotado de
personalidade própria, acompanhado de suas peculiaridades, o que o torna mais
sensível aos sentimentos de sofrimento e dor.
A interação do ser humano com o seu semelhante é complexa, pois cada ser
traz consigo os valores e crenças transmitidos no contato e na convivência com a
família, os quais, posteriormente, são compartilhados em sociedade. Ao ser
confrontado por um desequilíbrio interior, a vulnerabilidade e a fragilidade do ser o
conduzem à procura de auxílio, afeto e compreensão.
135
O conhecimento técnico-científico e as habilidades do profissional aliados à
sua experiência possibilitam a percepção das expectativas do paciente desde o
primeiro contato e direcionam a comunicação a ser estabelecida entre as partes
para que se proceda à anamnese seguida do exame clínico, procedimentos que
requerem a atuação pessoal do médico e não devem ser substituídos pelos meios
eletrônicos de comunicação.
A despeito do avanço tecnológico na medicina contemporânea disponibilizar
ao médico recursos de última geração no que tange a tratamentos, procedimentos e
medicamentos destinados à qualidade de vida saudável, à prevenção ou à cura de
doenças, o processo terapêutico não deve se sobrepor ao processo educacional de
formação de hábitos saudáveis a ser desenvolvido e valorizado na promoção da
saúde.
Caso contrário, os custos da saúde pública e suplementar serão elevados,
sem resultado análogo na qualidade de vida e bem- estar do indivíduo e da
coletividade, uma vez que o tecnicismo constitui um incentivo ao ajuizamento
descontrolado de demandas judiciais para o deferimento de tratamentos,
procedimentos ou medicamentos sem a observância acurada das necessidades do
paciente e dos benefícios substanciais futuros, o que inviabiliza a prestação de
serviços de qualidade e acentua as desigualdades sociais na área da saúde.
Constatado o diagnóstico, cabe ao profissional estabelecer os objetivos e as
metas a serem alcançadas e, com transparência, informá-las detalhadamente ao
paciente, compartilhando-as, de modo que se torne corresponsável no cuidado com
a sua saúde.
O respeito ao ser humano na sua integralidade, incluindo os seus direitos,
deveres, garantias e liberdade para a adesão terapêutica proposta pelo médico,
deve pautar-se nos princípios da autonomia, beneficência, não-maleficência e
justiça.
136
O paciente ou seu representante legal, devidamente informado e dotado de
discernimento, tem autonomia para escolher dentre as possibilidades apresentadas
pelo médico àquela que lhe propicie o direito à vida digna.
A atuação do médico é limitada, sendo certo que o bem maior denominado
vida prevalece sobre o prolongamento de um sofrimento. Ademais, não se trata de
questionar se a última palavra deve ser do profissional ou do paciente, pois,
sopesando os benefícios e os malefícios, a clareza do tratamento deve preponderar
inclusive contra o bom senso técnico.
Promover a saúde é uma responsabilidade social e uma vez oferecida as
condições mínimas necessárias ao atendimento primário, a valorização do ser
humano na sua totalidade e o respeito à vida com dignidade constituem a virtude
soberana do profissional da medicina na prática do bem, o que ratifica a importância
da atuação médica humanizada como fator contributivo para a racionalização da
judicialização da saúde.
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