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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP Dirceu Martins Alves AMÉRICA LATINA E O DIALOGISMO ENTRE O JORNAL E O LIVRO: uma abordagem sistêmica e diacrônica do texto impresso ao virtual eletrônico DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA São Paulo 2010

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP

Dirceu Martins Alves

AMÉRICA LATINA

E O DIALOGISMO ENTRE O JORNAL E O LIVRO: uma abordagem sistêmica e diacrônica do

texto impresso ao virtual eletrônico

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

São Paulo

2010

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP

Dirceu Martins Alves

AMÉRICA LATINA

E O DIALOGISMO ENTRE O JORNAL E O LIVRO: uma abordagem sistêmica e diacrônica do

texto impresso ao virtual eletrônico

São Paulo

2010

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica, sob a orientação do Prof. Dr. José Amálio de Branco Pinheiro.

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BANCA EXAMINADORA

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Amálio Pinheiro, pela orientação, confiança e amizade;

às professoras Cecilia Salles e Jerusa Pires, pelas valiosas leituras e sugestões

na Banca de Qualificação;

aos demais professores do Programa de Comunicação e Semiótica;

aos colegas do grupo de pesquisa Comunicação e Cultura: Barroco e Mestiçagem;

à Maga, pelo companheirismo e colaboração,

às Agências CAPES e CNPq, pelas bolsas de estudo que viabilizaram a pesquisa.

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¿América Latina, América Hispana, Iberoamérica, Indoamérica?

Cada uno de estos nombres deja sin nombrar a una parte de la realidad.

Octavio Paz, Tiempo Nublado.

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ALVES, Dirceu Martins. América Latina e o dialogismo entre o jornal e o livro: uma abordagem sistêmica e diacrônica do texto impresso ao virtual eletrônico. 2010. 173 f. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica). Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

RESUMO. Este trabalho tem por objetivo investigar as relações dialógicas entre o jornal e o livro na América Latina, para demonstrar como a imprensa contribuiu para a formação da literatura do continente. Na primeira etapa, procedeu-se a uma análise das crônicas do descobrimento, baseada nos conceitos de paródia e antropofagia, postulados por Haroldo de Campos e Rodríguez Monegal, o que permitiu vê-las na travessia pelos textos da cultura. Na segunda etapa, um cotejamento entre folhetins, crônicas, contos breves e diversos jornais do continente, seus suportes, foi feito com base nos conceitos de meios e mediações, nos quais o receptor é um agente transformador dos textos e dos meios, segundo Martín-Barbero. Esses novos paradigmas de análises serviram para pensar a propagação do folhetim na América Latina. No jornal La Patria Argentina publicaram-se os primeiros folhetins gauchescos, abandonando o ambiente francês para recriar uma realidade própria, uma série de romances fundadores da literatura argentina – primeiro produto de massa do país. No México, o folhetim absorveu o cenário da Revolução para criar uma ficção próxima da realidade, plasmando um estilo de crônica posteriormente desdobrado pelos grandes autores. No Brasil, o folhetim recriou o ambiente urbano e a sua fala coloquial, alguns anos depois de sua chegada. O problema é investigar por que as crônicas jornalísticas foram desprezadas como gênero literário pela crítica latino-americana. Por que na Europa não se desenvolveu o conto breve, que aqui nasceu das crônicas jornalísticas? Teriam sido seguidos os paradigmas europeus de análise dialética entre alta e baixa literatura? No Brasil, este trabalho se vincula aos estudos sobre cultura e ambientes midiáticos, de Amálio Pinheiro, que seguem a proposta de Boaventura Santos, contra a hegemonia do Norte. Tendo como metodologia o método comparativo, apoiado na semiótica da cultura, de Tinianov a Júri Lotman, privilegiando seus desdobramentos latino-americanos, verificou-se como os romances caleidoscópicos, formantes do corpus desta pesquisa – Serafim Ponte Grande, Rayuela, El Otoño del Patriarca, Yo el Supremo, Libro de Manuel, Tres Tristes Tigres – incorporam o corpo-gráfico do jornal, o melodrama, o cinema e a canção popular. O trabalho contribui para a área de comunicação ao mostrar como o jornal fez a mediação entre a produção escritural e o gosto do leitor, que modificou o próprio meio. Mostra para os estudos literários que a literatura se formou a partir de uma circularidade oscilante entre a tradição do livro e os desdobramentos da mídia impressa, tendo a imprensa/literatura como meio comunicativo. Palavras-chave. América Latina, jornalismo, crônica, folhetim, romances caleidoscópicos, mídias.

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ABSTRACT. This study aims to investigate the dialogical relations between the newspaper and the book in Latin America, to demonstrate how the press contributed to the formation of the literature of the continent. In the first step, we proceeded to an analysis of the chronicles of the discovery, based on concepts of parody and cannibalism, postulated by Haroldo de Campos and Rodriguez Monegal, which allowed to see them in crossing the texts of culture. In the second step, an examination between serials, chronics, short stories and newspapers of the continent, his supporters, was based on the concepts of media and mediation, in which the receiver is an agent of transformation of texts and media, according to Martín-Barbero. These new paradigms of analysis were used to think the spread of bulletin in Latin America. In the newspaper La Patria Argentina is the first published serials gaucho, abandoning the French ambience to recreate its own reality, a series of novels founders of Argentine literature – the first mass product of the country. In Mexico, the serial absorbed the scene of the Revolution to create a fiction closer to reality, shaping a style of chronic subsequently deployed by major authors. In Brazil, the serial recreated the urban environment and its colloquial speech, a few years after his arrival. The problem is to investigate why the journalistic chronicles were despised by critics as a literary genre in Latin America. Why Europe has not developed the short story, who was born here of chronic journalism? Would have followed the European paradigms of analysis dialectic between high and low literature? In Brazil, this work is linked to studies on culture and media environments, Amálio Pinheiro, following the proposal of Boaventura Santos, against the hegemony of the North. Following the comparative method as a methodology, supported by the semiotics of culture, since Tynjanov up of Lotman, focusing its development in Latin America, it appeared as novels kaleidoscopic, formants of the corpus of this research – Serafim Ponte Grande, Rayuela, El Otoño del Patriarca, Yo el Supremo, Libro de Manuel, Tres Tristes Tigres – enter the body-graphic journal, melodrama, film and popular song. The work contributes to the area of communication to show how the newspaper made the mediation between production and taste of the book reader, which changed the medium itself. Shows for literary studies that literature was formed from an oscillating circularity between the tradition of the book and the ramifications of the printed media, and the press/literature as a means of communication. Keywords. Latin America, Journalism, chronic, serial, kaleidoscopic novel, media.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Primeira edição da Gazeta de Buenos Ayres.................................................. 037

Figura 2 – Primeira edição do Telégrafo Mercantil......................................................... 038

Figura 3 – Alexandre Dumas, travestido de mosqueteiro................................................ 048

Figura 4 – Cena da telenovela “A Moreninha”................................................................ 050

Figura 5 – Edição do folhetim “Memórias de um Condenado”...................................... 060

Figura 6 – Página do folhetim “Memórias de um condenado”........................................ 061

Figura 7 – Capa da edição em verso de Juan Cuello....................................................... 077

Figura 8 – Folha de rosto da edição em verso de Juan Cuello........................................... 078

Figura 9 – Cartaz de divulgação do filme Juan Moreira................................................. 082

Figura 10 – Cartaz do filme Los de Abajo..................................................................... 098

Figura 11 – Cartaz do filme Los de Abajo......................................................................... 099

Figura 12 – Revista Fray Mocho....................................................................................... 131

Figura 13 – Pablo Picasso: Mujer y pintor tejiendo........................................................... 136

Figura 14 – Nota sobre “los dibujos de Pablo Picasso”..................................................... 137

Figura 15 – “Tablero” de direção de Rayuela, início do romance..................................... 145

Figura 16 – Complementação do “Tablero” de direção de Rayuela.................................. 146

Figura 17 – Edição de Rayuela.......................................................................................... 147

Figura 18 – Foto da primeira edição de Último round.......................................................... 149

Figura 19 – Foto de Último round..................................................................................... 149

Figura 20 – Página 107 do Libro de Manuel..................................................................... 152

Figura 21 – Página 156 de Tres Tristes Tigres.................................................................. 153

Figura 22 – Página 154 de Tres Tristes Tigres.................................................................. 154

Figura 23 – El Libro Total aberto na tela........................................................................... 157

Figura 24 – Casa del Libro Total em Bucaramanga, Colômbia....................................... 158

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 010

1 AS CRÔNICAS DO DESCOBRIMENTO E A RELAÇÃO COM A

CULTURA NA AMÉRICA LATINA ........................................................................ 017

2 O ROMANCE-FOLHETIM E A RELAÇÃO COM AS CRÔNICAS DO

DESCOBRIMENTO E COM OUTRAS SÉRIES CULTURAIS ............................ 028

2.1 O Problema da Periodização da Imprensa .............................................................. 029

2.2 O Problema da Periodização da Literatura ............................................................. 039

2.3 O Folhetim no Brasil ............................................................................................... 047

2.4 O Folhetim na Argentina ........................................................................................ 068

2.5 O Folhetim no México ............................................................................................ 092

3 AS CRÔNICAS JORNALÍSTICAS E O CONTO BREVE .................................... 102

3.1 O Nascimento da Crônica........................................................................................ 103

3.2 O Narrador-Repórter Registra o Circunstancial e Promove a Evolução do

Folhetim à Crônica Atual ........................................................................................ 106

3.3 A Revolução Modernista. A Crônica como Fundadora de uma Escritura.............. 117

3.4 O Conto Breve Latino-Americano .......................................................................... 124

4 A RELAÇÃO DO CORPO-GRÁFICO DO JORNAL COM OS

ROMANCES CALEIDOSCÓPICOS LATINO-AMERICANOS........................... 134

4.1 Primeira Vertente: O Jogo Verbal do Labirinto....................................................... 138

4.2 Segunda Vertente: O Verbal e o Icônico nas Dimensões do Labirinto................... 148

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5 O INTERTEXTO DA COMPOSIÇÃO EM MOSAICO DAS PÁGINAS

DA INTERNET COM LIVROS IMPRESSOS E LIVROS DIGITAIS................... 156

5.1 El Libro Total........................................................................................................... 157

CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 159

BIBLIOGRAFIA................................................................................................................. 166

ANEXOS .............................................................................................................................. 174

I

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

X

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INTRODUÇÃO

Investigar as relações dialógicas entre o jornal e o livro no Brasil e na América

Latina se faz necessário para entendermos as condições e os processos de implantação da

imprensa no continente e, assim, evidenciar a contribuição desta para a criação de textos de

comunicação, os quais mais tarde seriam catalogados como literatura, numa radical

transmigração de gênero. A diferença processual na produção de textos impressos (livros e

demais impressos) entre a América Latina e a Europa, por exemplo, pode ser bastante

esclarecedora das idiossincrasias desses dois universos, conectados pelos seus muitos vasos

comunicantes desde os descobrimentos.

A imprensa, inventada na China, onde não teve condições adequadas para se

desenvolver, cresce e se consolidou na Europa a partir da invenção de Gutenberg. Cresceu e

se consolidou, sobretudo, porque encontrou um ambiente favorável, como veremos com mais

detalhes em um dos capítulos deste trabalho. Os mercadores de Veneza já compravam um

jornal de notícias sobre navios carregados de mercadorias que haviam chegado ou estavam

por chegar aos portos europeus, escritos à mão, muito antes da prensa de Gutenberg. Mais

tarde do que isso, e ainda antes de Gutenberg, jornais manuscritos circulavam por quase toda

a Europa, dando notícias variadas.

É curioso notar como no velho continente, onde se consolidou a imprensa, muito

antes dos países latino-americanos a terem, seja por razões econômicas ou por proibições das

Coroas de Portugal e de Castela, se tenha ficado aquém na produção de gêneros híbridos,

derivados do aproveitamento de códigos e linguagens, produzidos antes por meios mais

antigos. Constatar que a Europa, que já contava com os teatros das grandes cidades e uma

vasta produção de obras dramáticas, que inventou o folhetim, gênero literário feito nos jornais

e, ao qual não faltou o melodrama, não tenha chegado à produção de telenovelas como as que

têm produzido Brasil, México, Colômbia, Peru e Argentina, por exemplo. As telenovelas são

herdeiras diretas do romance-folhetim, que passou antes pela radionovela, como já se

demonstrou em vários estudos.1

Na América Latina o processo de migração de um gênero para o outro resulta, quase

sempre, numa combinação de elementos do velho e do novo, chegando a predominar mais a

1 Marlyse Meyer mostra em Folhetim: uma história, uma exaustiva trajetória do folhetim (MEYER, 2005). E Martín-Barbero mostra como o folhetim migra para o rádio e para a televisão no seu livro Dos meios às mediações (MARTÍN-BARBERO, 2002).

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incorporação de novos elementos do que a perda dos que já tinha. Um exemplo é o uso das

tecnologias do audiovisual nas telenovelas, que incorporou a estrutura de cortes dos capítulos

do folhetim, o melodrama da radionovela, a expressividade do teatro de revistas, e outras

séries mais. Importa também dizer que a tecnologia aportada no continente pelos meios

gráficos deu as condições para a criação de algo novo, totalmente diferente. Um exemplo é o

conto breve latino-americano, criado pelas possibilidades que a imprensa trouxe e, que a

Europa não conheceu.

O conto breve, um dos gêneros que consagrou a literatura latino-americana, é fruto

das práticas quotidianas de escritura e publicação nos jornais e revistas da América Latina.

Outro produto possibilitado pela imprensa latino-americana é a crônica jornalística. Trata-se

de um texto escrito em prosa, obrigado a ser breve pelo pouco espaço que pode ocupar no

jornal, e que foi desprezado até bem pouco tempo como produto de segundo escalão, sem

valor estético como o texto publicado em livro. Não se trata de dizer que não se fez crônica

em jornais e/ou revistas de outras partes do mundo, mas antes, de mostrá-la na diacronia do

continente latino-americano, onde não imperou o livro como o suporte hegemônico de

comunicação escrita e artística. Como sabemos, o livro foi o suporte consagrador da escritura

sobre a oralidade no centro europeu, hierarquizado, portanto, como o lugar das grandes ideias

e da supremacia da estética verbal.

A crônica e o conto breve publicados no jornal encontraram na América Latina um

ambiente de recepção e interação excepcional. Veremos que a quantidade de pessoas

alfabetizadas, sempre considerada menor em comparação com os países europeus, não

impediu a circulação de jornais. Os olhos acostumados com a cultura visual do continente se

deparam com o mosaico do jornal impresso. As mãos, outra forma de conhecer, também não

são privadas do contato tátil. É o que diz Amálio Pinheiro:

O jornal impresso, afora obviamente congregar sistemas de idéias e de poder, situa-se num espaço concreto de relações culturais que lhe confere especificidade frente aos demais meios. Portátil e maleável, tátil às exigências dos dedos e de todo o corpo, obriga o leitor a participar de um modo de conhecimento, além do noticiado, que interliga os âmbitos privados e domésticos às atividades de lazer externo e investigativo da cultura urbana: nenhum ato comunicativo pode, por exemplo, substituir aquele, democrático, de sair, comprar e folhear um jornal a céu aberto. Tais práticas córporeo-externas são anatomicamente próprias da materialidade do suporte do meio impresso em questão, das bancas às mesas de bar, dos recortes afixados ou enviados por carta ou fax, ao embrulho descartável etc. (Só esporadicamente, não intrinsecamente, o rádio e a televisão, em transmissões coletivas de rua, entram em contato direto e contínuo com séries urbanas.) Essa importantíssima qualidade de signo dos jornais impressos, essa, digamos, mobilidade gestual dentro da cidade não é, em hipótese alguma, colateral ou

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epifenomenal: faz parte da sua rede estrutural, ou seja, modifica os processos de produção e leitura das diagramações, títulos, espaços, letras etc., e contribui grandemente para toda a história das trocas e conexões entre os sistemas do jornalismo impresso e os sistemas e sub-sistemas da cultura, das artes e dos demais meios. Saber que o jornal faz convergirem olho e cidade, faz permear-se corpo e cultura, num espaço de política de lazer e prazer, desagrada a toda e qualquer tendência teórica de extração ocidentalizante “que o engavetam no lado que todos julgam negativo dentro do imbricado complexo de dicotomias convencionalmente admitidas, como as que existem entre “trabalho” e “ócio”, “mente” e “corpo”, “seriedade” e “prazer”, fenômenos “econômicos” e “não econômicos” (Dunning, 1992, p. 14). Por isso mesmo os jornais devem ser considerados aqui como uma espécie de produção gráfico-visual com códigos que estabelecem nexos especiais, isto é, diferenciados, com processos civilizatórios, o Brasil e a América Latina, que subvertem, em boa mediada, as fórmulas redutoras dos dualismos conceituais baseados na superioridade do acúmulo do conhecimento abstrato (PINHEIRO, 2004, p. 17-18).

E o agregado de códigos e linguagens que o jornal impresso fez e, ainda faz, esteve

consorte com as condições de mobilidade e agregação das sociedades latino-americanas:

A mobilidade em mosaico do jornalismo impresso aproveitou-se, neste continente, de uma sorte de montagem sintática das “culturas em ritmo rápido” (Zumthor, 1982, p. 94), aptas para incorporar os agregados metonímicos provenientes dos mais diversos códigos e linguagens. Trata-se de processos de produção e recepção desdobrados, em interações múltiplas, pelo caráter migrante, mestiço e solar da sociedade. Resumindo abruptamente: apropriação, através de procedimentos de construção sintático-espacial, de materiais e linguagens complexos, oriundos das mais variadas e heterogêneas culturas, no trânsito da casa à rua, do livro ao jornal aberto e dobrável sob o sol (PINHEIRO, 2004, p. 18).

Por tratar-se de uma abordagem da formação e evolução da imprensa e da literatura

na América Latina, território tão vasto, não cabe aqui dar exemplos exaustivos de jornais,

países, obras ou autores. Vale mais a pena a cata seletiva dos meios de comunicação, obras ou

autores significativos, e seus respectivos países, para ilustrar o ponto em foco.

A relação estrutural entre jornal e literatura se estabeleceu desde os textos dos

primeiros cronistas do descobrimento, Bartolomé de Las Casas, Pero Vaz de Caminha,

Hernán Cortez, entre outros. Os primeiros cronistas da paisagem e da vida social do

continente vão lançar as sementes e o fermento da formação da nossa literatura. Com o

advento da tecnologia de impressão de jornais e revistas no continente, a crônica social ganha

feitura semanal ou diária. Jornais oficiais dos governos, tentando preservar a ordem e a coesão

dos povos debaixo do domínio das Coroas Ibéricas, jornais liberais de grupos e classes

sociais, lutando pelo poder, revolucionários clamando por independência, tudo isso é retratado

pela crônica e pelos debates nos primeiros jornais, onde os textos verbais predominavam, e

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não as imagens visuais. Daremos um salto no tempo agora, apenas para dizer que com a

evolução na diagramação das páginas de jornais, levada a cabo na América Latina durante a

primeira metade do século XX, também a poesia modernista passa a fazer a crônica do

cotidiano, a partir da observação da paisagem cultural. Oswald de Andrade no Brasil e

Oliverio Girondo na Argentina são dois grandes exemplos.

Com essa assertiva da relação do jornal (meio cultural da cidade) com a produção

escritural de poemas (urbanos), devemos entender que a poesia vanguardista brasileira, ou

modernista para a América hispânica, se aproveita do jornal para criar poemas em forma de

crônicas, ligeiras e consorte com os avanços tecnológicos do seu tempo. O que não quer dizer

que não tenha havido poemas escritos em forma de crônica no período da América-Colônia.

Os poemas panfletários de Gregório de Matos na Bahia, por exemplo, escritos com o intuito

de denunciar uma situação de opressão dos governadores contra o povo, eram poemas-

crônicas que relatavam a vida social, política e cultural do Brasil do século XVII. Não é por

acaso que Ronald Carvalho (1935) considerou os poemas panfletários de Gregório de Matos

como sendo o primeiro jornal do Brasil, muito tempo antes da implantação da imprensa no

país. Vale advertir que a poesia não é objeto direto de análise desse estudo, que prima mais

pelas narrativas desdobradas das crônicas do descobrimento. O que não impede de mencionar

a poesia quando for para ajudar a aclarar algum ponto em questão, principalmente aquela

poesia que faz a crônica da paisagem cultural em forma de verso.

Voltando ao século XIX, a crônica passou pelo cubano José Martí, que publicou um

número assustador delas nos jornais do México, de Cuba e de Nova Iorque. O brasileiro

Machado de Assis elevou a sua crônica escrita nos jornais a um alto grau estético-verbal da

língua portuguesa no século XIX. Para ele o jornal era a “república das ideias”. Ao longo da

história da imprensa e da literatura, vemos muitos jornalistas se tornarem escritores. Euclides

da Cunha, jornalista encarregado pelo jornal O Estado de São Paulo para fazer a crônica da

Guerra de Canudos, acabou fazendo uma obra-prima da literatura brasileira: Os sertões. O

mexicano Alfonso Reyes, quem, segundo Borges e Bioy Casares, havia logrado escrever a

melhor prosa possível em castelhano, foi um escritor que se tornou jornalista. O colombiano

Gabriel García Márquez, Prêmio Nobel de literatura, foi um jornalista que se tornou escritor, a

partir das técnicas de narrativas apuradas na escritura diária de crônicas para os jornais.

Horacio Quiroga, grande teorizador do conto breve na América Latina, um uruguaio que vivia

na Argentina, publicou quase todos os seus contos nos jornais da imprensa argentina e

uruguaia, material reunido em livros posteriormente.

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Houve um percurso, proporcionado pela imprensa, que foi desde as primeiras

crônicas ao conto breve, e às crônicas escritas para ocupar os espaços mínimos no mosaico

dos jornais impressos. Esses desdobramentos ocorreram de modo mais ou menos rápido, pois

a America Latina não precisou de muito tempo para produzir a renovação da linguagem,

desde a consolidação da sua imprensa até o boom da literatura latino-americana, ocorrido em

meados do século XX.

A análise dos desdobramentos dos gêneros com a aglutinação de novos códigos e

linguagens, também de novos suportes, deve ser encaminhada pela consideração das relações

entre Mídia e Cultura. Julio Cortázar, ao escrever Último round, um livro jornal, e Rayuela,

um romance de histórias entrecruzadas, produz um aglomerado de textos compostos de frases

escritas com tipos garrafais da publicidade, em disparidade com os tipos de outros formatos e

tamanhos na página seguinte, às vezes na mesma página. Nesses livros são incorporadas

frases de pichações de muros e de banheiros públicos, poemas, letras de canções, duas

histórias diferentes narradas num mesmo romance, bastando que o leitor salte ou retroceda

algumas páginas para se entrar na outra história. Dessa forma, Cortázar antecipa para o leitor

o processo de navegação que ele terá de fazer algumas décadas depois ao lidar com o

intertexto nas páginas da web. Tal virtualidade literária nos induz a considerar a relação entre

livro impresso e meio digital para demonstrar como as possibilidades virtuais já estavam

dadas pelo romance caleidoscópico latino-americano, muito antes de se pensar em páginas

web. Não se trata aqui de estudar a produção de textos nos meios digitais da América Latina,

nem de analisar a produção de livros digitais, senão, de estabelecer analogias entre a estrutura

em mosaico do jornal impresso, que migrou para o livro impresso, e que hoje dialoga com as

páginas da internet. O ponto principal, me parece, é fazer uma escavação mais abaixo dessa

superfície onde vemos a interpenetração movediça entre as séries culturais, constantemente

dilatando os gêneros, para investigar e tentar entender as conexões dela com as estruturas

sociais e de linguagens, portanto, produtoras de discursos, das comunidades latino-

americanas. Para manejar essa temática tão obtusa, delimitamos a investigação em cinco

capítulos.

No primeiro capítulo, intitulado As crônicas do descobrimento e a relação com a

cultura na América Latina, analisaremos os aspectos discursivos que as Cartas de Pero Vaz

de Caminha, de Bartolomé de Las Casas, e de Hernán Cortez, por exemplo, mantêm com

obras literárias significativas da literatura do continente. Nelas estão dadas a crônica da

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paisagem, o escritor atuando como repórter, a subjetividade narrativa, a incorporação da fala

do outro, procedimentos fundadores da escritura do continente e recorrentes até hoje nessa

literatura.

No segundo capítulo, O romance-folhetim e a relação com as crônicas do

descobrimento e com outras séries culturais, analisaremos o modo como os jornais latino-

americanos se espalham pelas cidades e contribuem para a divulgação de uma literatura

popular, formando leitores para o consumo da futura cultura de massa. Mais especificamente,

pretendemos demonstrar como o romance-folhetim vai pouco a pouco se desprendendo do

modelo europeu, para se impregnar do ambiente ao seu redor, fazendo a crônica da paisagem.

O cotidiano das cidades brasileiras e a fala coloquial do povo passa a ocupar as páginas dos

folhetins nacionais após alguns anos do início da publicação dos modelos consagrados por

Alexandre Dumas, Eugène Sue, e Ponson du Terrail, que continuaram a ser publicados, mas

desde então, rivalizando com a experimentação brasileira. Em Buenos Aires, o jornal La

patria argentina, publicou uma série de romances-folhetins de Eduardo Gutiérrez, dos quais

nove eram de temática gauchesca e tinham como cenário o entre lugar campo cidade, onde se

davam as façanhas dos heróis do mundo gauchesco. O jornal e essas narrativas coincidem

com o primeiro produto de cultura de massa do país, e com a formação da literatura argentina.

No México, os folhetins retratam o ambiente de violência da Revolução, fazendo com que o

mundo fictício tenha apenas uma linha tênue de separação da realidade. Dialogam, de certo

modo, com as narrativas que Cortez faz de um mundo fantástico e absurdamente violento. Um

bom exemplo é o romance Los de abajo, de Mariano Azuela, cuja energia narrativa

contaminará as páginas das obras de Juan Rulfo e Carlos Fuentes.

No terceiro capítulo, As crônicas jornalísticas e o conto breve, analisaremos uma

série de crônicas publicadas em diversos jornais ao longo dos séculos XIX e XX, e a relação

delas com a cultura local, levando em consideração alguns aspectos da comunicação: a

reportagem do cotidiano, e o desprezo da crítica que não lhe reconhece nenhum valor

literário. E essa prática escritural diária, ou quase diária, se desdobrará em outro gênero de

literatura também desprezado, o conto breve – tipo de narrativa no qual América Latina

chegará à excelência, e que na Europa não se desenvolveu.

No quarto capítulo, A relação do corpo-gráfico do jornal com os romances

caleidoscópicos latino-americanos, analisaremos as obras Serafim Ponte Grande, El Otoño

del Patriarca, Yo el Supremo, Rayuela, Libro de Manuel, Tres Tristes Tigres e Último round,

do paradigma estabelecido, para demonstrar as conexões existentes entre o suporte jornal e a

evolução de sua diagramação, em diálogo com as estruturas em mosaico dessas obras. O

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escritor latino-americano, nesse caso, é um jornalista, que pelo prazer de escrever, mete todas

as colunas do jornal no seu livro, não poupa nem os anúncios publicitários. Veremos ao longo

do trabalho, que o cronista e/ou repórter sempre estiverem presentes ao largo da história da

produção escritural do continente.

No quinto capítulo, O intertexto da composição em mosaico das páginas da

internet com livros impressos e livros digitais, estudaremos a virtualidade de certos livros

impressos – obras importantes da narrativa latino-americana –, que antecipam o modelo de

leitura e navegação que fazemos hoje em dia nas páginas digitais. Como caso específico,

faremos uma pequena abordagem do projeto editorial intitulado El Libro Total, publicado em

2007, na Colômbia. Trata-se de um livro digital, arquitetado por um grupo de engenheiros de

informática e outro grupo ligado às letras, no qual se pretendeu publicar A Divina Comédia de

Dante, completa, com tudo o que se referisse a esta obra: críticas, ilustrações, resenhas,

ensaios, toda a iconografia produzida para ela e sobre ela ao longo dos séculos. Inclusive, foi

promovido pela editora um concurso de contos inspirados nos cantos da Comédia, com o

compromisso de publicar o vencedor e os finalistas no livro digital. É o projeto mais arrojado

de publicação de livro digital na América Latina até os tempos atuais. O resultado é um livro

de milhares de páginas digitais, que leitor pode ler no computador com o uso do programa

Flash Power, mas que só permite a navegação nas páginas para a direita ou para a esquerda,

às vezes para cima ou para baixo, se o leitor sair da página que está e clicar em outro item.

Parece que não se logrou nada que os livros impressos mais radicais da literatura latino-

americana já não tenham feito antes. Mas o livro está em permanente construção e não

devemos duvidar que possa se desdobrar em algo bastante diferente do que conhecemos como

livro até os tempos atuais.

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1 AS CRÔNICAS DO DESCOBRIMENTO COMO TEXTOS DA

CULTURA NA AMÉRICA LATINA

Na tarefa de se pensar a América Latina a partir da sua produção e proliferação de

signos (verbais = oralidade e escritura), no caso a imprensa e a relação com a literatura, é

bastante importante começar pela análise dos textos dos primeiros cronistas do continente. As

crônicas do descobrimento, escritas pelos europeus que entravam em contato como o novo

mundo, nos dão uma primeira visão do outro sobre as dimensões do continente. O outro que

ajudaria na gestação do latino-americano e, portanto, deve ser visto como co-fundador de uma

geografia humana, aquém do estigma de colonizador, por mais que o processo tenha sido

doloroso. A gênese do latino-americano é de cunho incorporador. E o uso que grandes autores

do continente fizeram das crônicas do descobrimento, incorporando-as às suas escrituras,

fundamenta a tese de importantes críticos literários, poetas, artistas e escritores que veem

nesses textos a fundação da literatura de vários países da América Latina.

No caso do Brasil o texto (crônica) mais importante é a Carta de Pero Vaz de

Caminha,2 o cronista que chegou ao Brasil nas naus de Pedro Álvares Cabral, descobridor do

Brasil. Pero Vaz de Caminha foge do estilo das chamadas Relações (relações de viagens

ultramar que se faziam na época), para imprimir um estilo de escritor. Nas Relações o que

importava descrever era a precisão das milhas navegadas, a direção que seguiram, os meios

técnicos utilizados para se chegar a um determinado ponto cardinal e a descrição precisa do

que se encontrou em ultramar, seguindo uma retórica do poder. Pero Vaz segue essa retórica

do poder, mas insere a ambiguidade no seu discurso ao incorporar a fala indígena. A

subjetividade do narrador, característica tão peculiar aos futuros cronistas dos séculos

vindouros, é o que permite uma condição dialógica aos primeiros habitantes das terras

brasileiras.

(...) A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, do comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber. Os

2 Ver CAMINHA, 1963.

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cabelos são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobre-pente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar (CAMINHA, 1963, p. 226-227).

O poeta e crítico brasileiro Mário Chamie dedicou todo o livro Caminhos da Carta:

uma leitura antropofágica da Carta de Pero Vaz de Caminha, ao estudo do aproveitamento

que uma figura como Oswald de Andrade faz da Carta no seu postulado teórico e na sua

realização prática de escritura. Segundo ele, Oswald de Andrade viu bem essa dupla via

discursiva de Pero Vaz e de outros cronistas do Brasil-Colônia:

Oswald de Andrade tem para com alguns textos de alguns cronistas do Brasil-colônia uma visão bipartida. De um lado, considera esses textos produtos espontâneos de possível e ingênua simplicidade de seus autores. Vislumbra nesses textos a presença do deslumbramento provocado pela descoberta do novo mundo. É como se, embora letrados, nossos primeiros cronistas esquecessem sua bagagem de homens cultos, para desarmados renderem-se às impressões primitivas da terra à vista. De outro lado, Oswald acusa nessas descrições do Descobrimento a presença escolarizada de uma retórica do Poder a que seus autores serviam. Dizer retórica é reconhecer preceitos e convenções. Dizer Poder é sublinhar rituais de cerimônia e protocolo. E escrever, segundo convenções e protocolos, é privilegiar interesses culturais ou ideológicos que os preceitos e os rituais necessariamente representam (CHAMIE, 2002, p. 13).

Chamie destaca que “a leitura antropofágica da Carta de Caminha pede duas

instâncias de procedimento” (CHAMIE, 2002, p. 15), o que ele faz de maneira exaustiva, com

exemplos pormenorizados, e que trataremos aqui de sintetizar.

Em termos de primeira instância, a leitura oswaldiana distingue, na Carta, a presença de duas ignorâncias entrecruzadas e simultâneas. A primeira, chamarei de ignorância tática. É aquela mediante a qual o servidor de El-Rei simula despreparo, com o propósito de mostrar-se humilde e obediente no cumprimento do seu oficio. Por ela, Pero Vaz faz-se homem de pouco saber, em honra da etiqueta e das normas de cortesia. Vai no seu gesto elegância calculada e modéstia astuta. Ao declarar-se o menos capaz para a tarefa que lhe foi conferida, consegue dois trunfos: homenageia seus companheiros de viagem e b) conquista “a boa vontade” de El-Rei não só quanto às suas possíveis imperfeições, mas principalmente quanto a eventual ousadia de externar suas opiniões pessoais a D. Manoel. (...) A segunda ignorância presente na Carta não resulta nem de etiqueta nem de cortesia. É a ignorância pura do indígena. Esta se define pelo fato de o indígena nada saber dos desígnios e códigos culturais do homem branco acabado de chegar.

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Pero Vaz percebe essa ignorância genuína e se permite sentir-se atraído por ela, julgando-a inocente e inata (CHAMIE, 2002, p. 21-22).

A ignorância tática de Caminha é exposta logo no início da Carta, o qual não

devemos deixar de citar:

Senhor, posto que o Capitão-Mor desta Vossa frota, e assim (mesmo) os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a noticia do achamento [...] não deixarei de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que – para o bem contar e falar – o saiba pior que todos! Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual bem certo creia que, para aformosentar nem afear, aqui não há de por mais do que aquilo que vi e me pareceu (CAMINHA, 1963, p. 27-28).

Há um entrecruzamento de ignorâncias no encontro do português com os indígenas

que Caminha soube plasmar como matéria literária, e que servirá de exemplo metafórico para

a teoria da antropofagia cultural.

Entrecruzadas, portanto, a ignorância tática do cronista e a ignorância genuína dos nativos, Pero Vaz configura, no cenário interno da Carta, o drama da reversibilidade, cujos pólos principais – propriedade e posse – se desdobram na leitura oswaldiana, em termos de letra versus selva, de erro versus erudição, de invenção versus cópia, de instinto versus razão, e, sobretudo, de dever protocolar versus o “ver e parecer” livres do cronista. Nas interações desses pólos, a letra, a erudição, a razão e o dever protocolar do invasor são, “vingativamente”, penetrados pela selva (o selvagem), pelo erro, pelo instinto e pela naturalidade descomprometida do invadido. Vale dizer: se a Carta já sinaliza e descreve a conquista do indígena pelo conquistador, ela antropofagicamente já subscreve a “devoração” gradativa do conquistador pelo conquistado (CHAMIE, 2002, p. 24-25).

Ainda com Mário Chamie, vemos que “a segunda instância da leitura oswaldiana da

Carta consiste no garimpo textual de palavras, de frases, de fragmentos ou de micro-discursos

nativos incrustados no tecido verbal do texto de Caminha (CHAMIE, 2002, p. 24-25). O

garimpo de palavras, de frases, de fragmentos ou de micro-discursos da Carta de Caminha

também será feito por Mário de Andrade. A crítica Telê Ancona Lopez ressalta que entre as

cartas do escritor se encontra a confissão de autor: “Copiei sim, copiei trechos inteiros da

Carta de Caminha”, diz Mário a respeito do seu Macunaíma. Não precisamos gastar espaço

para perseguir as pistas da Carta nesse importante livro de Mário de Andrade, já temos a

confissão do autor, comprovada por críticos responsáveis, que analisaram cuidadosamente o

livro Macunaíma e os excertos de autores e de textos da cultura latino-americana que Mário

de Andrade fez.

Voltando a Oswald de Andrade, os caminhos da Carta percorrem o Manifesto da

poesia Pau-Brasil, publicado pelo jornal (Correio da Manhã, 18 de março de 1924). O

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Manifesto Antropofágico, publicado na Revista de Antropofagia, com a citação chistosa do

local e da data de publicação, colocados uma linha antes do nome da revista. Logo após o

nome de assinatura do manifesto,

Oswald de Andrade Em Piratininga, Ano de 374 da Deglutição do Bispo Sardinha

(Revista de Antropofagia, Ano I, n. I, maio de 1928)

lembrando que Piratininga é o nome indígena da cidade de São Paulo, fundada como Aldeia

do Piratininga. E o Bispo Sardinha foi comido antropofagicamente (no sentido literal) pelos

indígenas brasileiros.

Em relação à paródia, ao aproveitamento de textos mais antigos para a reescritura da

tradição, finalizamos a análise da relação de Oswald com a Carta de Caminha, com uma

última observação de Mário Chamie. E se insistimos nessa relação de Oswald com a Carta é

porque ela é emblemática no continente:

Pode-se afirmar que o garimpo do Oswald-poeta, feito sobre o texto matriz de Pero Vaz de Caminha inclui, no seu processo, a paródia, a colagem e a citação. Mas é preciso alertar que será esta uma inclusão diferenciada. De fato, Oswald, ao invadir o discurso de apropriação da Carta, para criar os seu poema pau-brasil, o deglutirá digerindo-o e metabolizando-o. Uma vez criado esse poema, certamente: a) conterá ele elementos de paródia do original apropriado; b) contará com a citação de suas frases; c) utilizará palavras ou passagens suas de empréstimo, caracterizando o seu aspecto de colagem textual (CHAMIE, 2002, p. 24-25).

Em relação à paródia, à incorporação dos discursos, enfim, ao aproveitamento das

Cartas dos primeiros cronistas, temos no colombiano Gabriel García Márquez outro exemplo

emblemático dessa relação dialógica. No seu livro El Otoño del Patriarca, escrito em 1973,

García Márquez recria uma Macondo que, metaforizada como um pequeno país latino-

americano, que cheira a goiaba, a almíscar, a úmido, a Caribe e a Selva, situa a trama num

tempo não muito distante do presente. Mas um tempo quase presente que se entrecruza com

vários tempos desde o descobrimento. Isso permite que o Patriarca abra a janela e veja as três

caravelas de Colombo ancoradas na Bahia do mar do Caribe de seu país. A conjunção de

vários tempos na obra de García Márquez constitui uma das características de estilo narrativo

que ficou conhecido como realismo mágico.3 Um termo polêmico ao qual não queremos

3 Para a discussão sobre Realismo Mágico, ver Irlemar Chiamp, Emir Rodriguez Monegal. Discutimos com mais fôlego o assunto na dissertação de Mestrado Artifício e presentificação; a comunicação do Fantástico (ALVES, 2004). Monegal foi um dos críticos que não aceitou o termo “realismo mágico”. Concordamos com ele porque a literatura assim denominada nunca se preocupou com a realidade.

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discutir aqui, para não desvirar o foco da questão. O que importa dizer é que esse tipo de

escritura mescla a realidade com a ficção, alcançada pela narrativa de cenas que fundem o

urbano com o rural, o moderno com o arcaico, o natural com o sobrenatural, e ainda, tudo isso

com o maravilhoso. Enfim, a razão e a desrazão do continente latino-americano, que ficou

conhecida como realismo mágico, tem sua dívida com as crônicas do descobrimento. E essa

dívida, ou esse intertexto, pode ser verificado, como mínimo, nas três características de

aproveitamento do original que Mário Chamie aponta acima sobre Oswald. Ou seja,

elementos de paródia do original; citação de frases do original, e, colagem de palavras ou

passagens inteiras. E isso vale para muitas obras da literatura latino-americana. Lembremo-

nos de Cem anos de solidão, por exemplo, e de toda a obra de García Márquez, quem disse:

“o Diário de bordo de Cristovão Colombo é o primeiro texto de realismo mágico nas

Américas”.

Vejamos um trecho da Carta de Colombo, escrita por Frei Bartolomé de las Casas,

sobre a primeira viagem, e logo depois a presença dela em El Otoño del Patriarca.

Vicente Muñoz Puelles observa que o Frei Las Casas acompanhou Colombo na

primeira viagem, e teve os manuscritos originais do Almirante nas mãos, podendo manipulá-

los à vontade, antes que estes desaparecessem, talvez para sempre. Logo após a chegada de

Colombo às Bahamas, Las Casas descreve os primeiros contatos com os índios. Ele estabelece

um discurso ambíguo, dizendo que quem escreve é o próprio Almirante (Colombo). Mas vai

acrescentando um yo (eu), ao longo do texto que deixa transparecer um narrador/observador

que se faz presente. E nesse ponto ele se aproxima de Caminha, num possível jogo literário.

Apenas se aproxima, pois Caminha, como vimos, diz logo no início que outros e inclusive o

Comandante poderão fazer a crônica, mas aquela é a sua maneira de fazê-lo, portanto, a sua

assinatura. Ao passo que Las Casas vai deixando suas marcas ao longo do texto:

Esto que se sigue son palabras formales del Almirante, en su libro de su primera navegación y descubrimiento de estas Indias. “Yo – dice él –, porque no tuviesen mucha amistad, porque conocí que era gente mejor se libraría y se convertiría a nuestra Santa Fe con amor que no por fuerza, le di a algunos de ellos unos bonetes colorados y unas cuentas de vidrio que se ponían al pescuezo, y otras cosas muchas de poco valor, con que hubieran mucho placer y quedaron tanto nuestros que era maravilla. Los cuales después venían a las barcas de los navíos adonde nos estábamos, nadando, y nos traían papagayos e hilo de algodón en ovillos y azagayas y otras cosas muchas, y nos las trocaban por otras cosas que nos les dábamos, como cuentecillas de vidrio y cascabeles. En fin, todo tomaban y daban de aquello que tenían de buena voluntad. Mas me pareció que era gente muy pobre de todo. Ellos andan todos desnudos como su madre los parió, y también las mujeres, aunque no vi más de una harto moza. Y todos los que yo vi eran todos mancebos, que ninguno vi de edad de más de treinta años: muy bien

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hechos, de muy hermosos cuerpos y muy buenas caras: los cabellos gruesos casi como sedas de cola de caballos, y cortos: los cabellos traen por encima de las cejas, salvo unos pocos detrás que traen largos, que jamás cortan. De ellos se pintan de prieto, y ellos son de la color de los canarios ni negros ni blancos, y de ellos se pintan de blanco, y de ellos de colorado, y de ellos de lo que hallan, y de ellos se pintan las caras, y de ellos todo el cuerpo, y de ellos solo los ojos, y de ellos sólo el nariz. Ellos no traen armas ni las conocen, porque les mostré espadas y las tomaban por el filo y se cortaban con ignorancia” (COLÓN, 1992, p. 64-65).

Duas das instâncias da Carta de Las Casas, ou de Colombo são: a) ignorância, b) a

ingenuidade. García Márquez se vale dessas duas instâncias para construir, ironicamente,

personagens ignorantes e ingênuos. Um deles é o próprio patriarca que não sabia ler até bem

entrada idade. Depois começa a aprender com a esposa e sai soletrando as sílabas do alfabeto

em voz alta pela residência presidencial. Leva toda tarde uma estudante vestida de uniforme

escolar para fazer amor na estrebaria conjunta à casa presidencial. Acredita ser um Don Juan,

um burlador de estudantes adolescentes. Sem saber que na verdade tratava-se de prostitutas

travestidas de estudantes, pagas por seus subordinados para passarem por aquela rua no

horário de saída das colegiais, e fingirem que gostavam de tudo o que ele fazia ou dizia.

Palavras e frases são retiradas também: “para que no les vieran la vergüenza senil, y el jueves

menos pensado le poníamos a uno las condecoraciones prendidas con alfileres en la última

casa (…).” (MÁRQUEZ, 1991, p. 34). A quinta-feira menos pensada (“el jueves menos

pensado”) no contexto de El otoño del del Patriarca, é uma alusão à chegada de Colombo. A

quinta-feira, 11 de outubro de 1492 seria o dia anterior ao da chegada, o último dia de vida

sem a chegada do outro.

E a alusão ao dia da chegada de Colombo, considerado oficialmente como sexta-

feira, 12 de outubro, aparece logo na página seguinte, nas recordações do patriarca, a

incorporação: “(...) y contemplando las islas evocó otra vez y vivió de nuevo el histórico

viernes de ocutubre en que salió de su cuarto al amanecer (...)” (MÁRQUEZ, 1991, p. 35).

Vale notar que existe uma ambiguidade no texto de Colombo, pois Las Casas escreve as datas

no Diário de Bordo, contando na medida dos marinheiros, que contam as singraduras de meio

dia a meio dia. E como escreve Las Casas, que realmente avistaram a terra por volta das duas

horas depois da meia noite daquela quinta-feira, 11 de outubro, conclui-se que deveria ser,

então, 12 de outubro. Fernández de Oviedo y Lopez de Gómara defendem que o

descobrimento deve ser adiantado para 11 de outubro. O próprio fato histórico abre espaço

para que García Márquez repita as datas históricas de modo paródico na sua ficção, como lhe

possibilita brincar ironicamente com as duas datas. As lembranças dessas datas pelo

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personagem, entrecruzando os tempos, são frases cifradas, que o leitor tem de ir decifrando

para entrar no texto artístico.

O narrador de El Otoño del Patriarca tem muitas vozes, ora estão narrando para o

general presidente, ora ele mesmo está narrando, ora outros personagens de que se estava

falando antes tomam a palavra e saem narrando. O jogo dialógico é a uma constante narrativa

que se mantém, sem aviso prévio de que se vai mudar de narrador, ou de que as muitas vozes

vão se entrecruzar:

(...) había visto renacer los tulipanes holandeses en los tanques de gasolina de Curazao, las casas de molinos de viento con techos para la nieve, el transatlântico misterioso que atravesaba el centro de la ciudad por entre las cocinas de los hoteles, había visto el corral de piedras de Cartagena de Índias, su Bahía cerrada con una cadena, la luz parada en los balcones, los caballos escuálidos de los coches de punto que todavía bostezaban por el pienso de los virreyes, su olor a mierda mi general, qué maravilla, dígame si no es grande el mundo entero, y lo era, en realidad, y no sólo grande sino también insidioso (…) (MÁRQUEZ, 1991, p. 34-35).

Vemos assim, como García Márquez, ou a voz dialógica do seu narrador vai

assumindo o discurso de Colombo. E o discurso de Colombo recriado, ainda mais do que

colagens de frases e de passagens, plasma toda a Carta dentro dessa obra ficcional de García

Márquez.

Vimos no trecho da Carta de Colombo citado acima, como ele diz, através da pena

de Las Casas, que deu gorros vermelhos (“bonetes colorados”) aos índios, os quais lhe davam

de tudo em troca desses gorros vermelhos e colares de vidro. Essa troca de objetos passou a

ser vista como a primeira exploração comercial das riquezas dos índios, pelas correntes

marxistas. Há muita literatura que diz criticamente: “Deram-lhes gorros vermelhos e lhes

levaram o ouro e a prata”. Ou a partir do discurso nativista, indigenista ou originário: “Deram-

nos gorros vermelhos e levaram nosso ouro”. Enfim, o presente de Colombo, bonetes

colorados, é já um símbolo no imaginário ocidental. García Márquez parodia essa passagem,

e exagera ao colocar de gorros vermelhos os mestiços, não os índios, pois na sua trama o

tempo já avançou. O efeito da sua crítica é a ironia risonha. O leitor não pode ter outra reação

que não o riso ao ler que o patriarca, ao despertar, depois de evocar aquela histórica sexta-

feira, se encontrou com todo mundo da casa presidencial usando tais gorros. E depois

descobre que também lá fora, nas ruas do país inteiro, haviam carnavalizado tudo:

(…) salió de su cuarto al amanecer y se encontró con que todo el mundo en la casa presidencial tenía puesto un bonete colorado, que las concubinas nuevas barrían los salones y cambiaban el agua de las jaulas con bonetes colorados, que los ordeñadores en los establos, los centinelas en sus puestos,

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los paralíticos en las escaleras y los leprosos en los rosales se paseaban con bonetes colorados de domingo de carnaval, de modo que se dio a averiguar qué había ocurrido en el mundo mientras él dormía para que la gente de su casa y los habitantes de la ciudad anduvieran luciendo bonetes colorados y arrastrando por todas partes una ristra de cascabeles, y por fin encontró quien le contara la verdad mí general, que habían llegado unos forasteros que parloteaban en lengua ladina pues no decían el mar sino la mar, y llamaban papagayos a las guacamayas (…) (MÁRQUEZ, 1991, p. 34-35).

Haviam chegado uns forasteiros que diziam la mar e não el mar. Essa diferenciação

linguística de García Márquez é mais uma frase cifrada. Sabemos que na língua espanhola a

palavra mar tanto pode ser empregada no feminino como no masculino. E Las Casas escreve

la mar por toda a Carta, o que podemos ver logo na apresentação do relato da primeira

viagem: “Porque, cristianísimos y muy altos y muy excelentes y muy poderosos Príncipes,

Rey y Reyna de las Españas y de las islas de la mar, Nuestros Señores, este presente año de

1492 (…)” (COLÓN, 1992, p. 35). Fica evidenciada a alusão aos espanhóis como forasteiros

(uso do espanhol peninsular), e aos habitantes (uso latino-americano do idioma), como

aqueles que aceitam de imediato a novidade do uso dos gorros vermelhos e a põem em

prática, ou melhor, em cena.

A cultura da América Latina é paródica, antropofágica e carnavalizadora. A festa de

fevereiro é uma data mais vistosa no calendário, mas não é outra coisa que a opulência do

carnaval que acontece no dia a dia da cultura. Durante todo o percurso da pesquisa queremos

nos fundamentar na reinterpretação que Emir Rodríguez Monegal fez de Bakthin, à luz de

uma nova historiografia da América Latina:

Do ponto de vista dos colonizadores ou do ponto de vista dos colonizados, o conflito de culturas e de mitos produziu versões igualmente carnavalizadas. Nessas versões, as culturas opostas e até heterogêneas aparecem inesperada e brilhantemente integradas. Os antropólogos já estudaram as infinitas variações de alguns cultos afrocubanos ou afrobrasileiros, o sincretismo de culturas que eles implicam, a mescla e confusão de qualquer possível “origem” que pratiquem. No conceito de Carnaval, a América Latina encontrou um instrumento útil para alcançar a integração cultural que está no futuro e para vê-la não como uma submissão aos modelos ocidentais, não como mera corrupção, de algum original sagrado, mas como paródia de um texto cultural que em si mesmo já continha a semente de suas próprias metamorfoses (MONEGAL, 1979, p. 408).

É com esse procedimento antropofágico, com essa veia paródica, tendendo à

carnavalização, que García Márquez segue copiando trechos inteiros da Carta de Colombo.

Um deles, bastante significativo, é o aproveitamento que ele faz da descrição da paisagem

humana no ambiente encontrado em 1492 por Las Casas, para outro tempo, o do seu país

fictício no mar do Caribe:

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(...) y llamaban papagayos a las guacamayas, almadías a los cayucos y azaguayas a los arpones, y que habiendo visto que salíamos a recibirlos nadando entorno de sus naves se encarapitaron en los palos de la arboladura y se gritaban unos a otros que mirad qué bien hechos, de muy fermosos cuerpos y muy buenas caras, y los cabellos gruesos y casi como sedas de caballos, y habiendo visto que estábamos pintados para no despellejarnos con el sol se alborotaron como cotorras mojadas gritando que mirad que de ellos se pintan de prieto, y ellos son de la color de los canarios, ni blancos ni negros, y de ellos de lo que haya, y nosotros no entendíamos por qué carajo nos hacían tanta burla mi general si estábamos tan naturales como nuestras madres nos parieron y en cambio ellos estaban vestidos como sota de bastos a pesar del calor, que ellos dicen la calor como los contrabandistas holandeses, y tienen el pelo arreglado como mujeres aunque todos son hombres, que de ellas no vimos ninguna (…) y después vinieron hacia nosotros con sus cayucos que ellos laman almadías, como dicho tenemos, y se admiraban de que nuestros arpones tuvieran en la punta una espina de sábalo que ellos dicen dientes de pece, y nos cambiaban todo lo que teníamos por estos bonetes colorados y estas sartas de pepitas de vidrio que nos colgábamos en el pescuezo por hacerles gracia (…) (MÁRQUEZ, 1991, p. 35-36).

Da descrição física dos indígenas, da paisagem natural que se intromete o tempo todo

na narrativa de Las Casas, da paródia da descrição física que García Márquez faz, pode-se

dizer que há um intertexto dessa passagem de El Otoño del Patriarca também com a Carta de

Caminha. Como já vimos:

A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, dos bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência (CAMINHA, 1963, p. 32).

No caso do México, evidentemente, se pensa nas Cartas enviadas por Hernán Cortez

aos Príncipes e Reis de Espanha. As Cartas de Cortez atuam na cultura do continente de

maneira mais intensa, mais tensa, e talvez apareçam mais na literatura, nas artes, nos teatros,

nos discursos políticos do que as Cartas de Las Casas e Caminha, por exemplo. Isso se deve à

matança de Cortez para conquistar riquezas, e que o Capitão narra sem nenhum pudor. Cortez

também descreve a natureza, faz a crônica da paisagem, instaura a instância da ignorância, da

ingenuidade e também a da astúcia. Mas é o lado cruel, o da tentativa de aniquilamento e

destruição que mais se sobressai na reincorporação dos seus textos. Eles têm incorporado o

discurso militante ante-colonização:

(...) Antes que os nativos pudessem se juntar, queimei seis povoados e prendi e levei para o acampamento quatrocentas pessoas, entre homens e mulheres, sem que me fizessem qualquer dano (...) Antes do amanhecer do dia seguinte tornei a sair com cavalos, peões e índios e queimei dez povoados, onde havia mais de três mil casas. Como trazíamos a bandeira da cruz e lutávamos por nossa fé e por serviços de vossa sacra

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majestade, em sua real ventura nos deu Deus tanta vitória, posto que matamos muita gente sem que nenhum dos nossos sofresse dano (CORTEZ, 1986, p. 33).

O trecho acima pertence à segunda Carta, na qual Cortez segue dizendo que não só

mata e aprisiona, mas corta as mãos dos vencidos na guerra, sem compaixão: (....) No outro dia vieram cerca de cinqüenta índios que traziam comida e começaram a olhar as saídas de nosso acampamento, bem como as cabanas onde dormíamos. Os de Cempoal vieram até mim e alertaram-me para olhar aqueles homens que eram maus e vinham espionar. Dissimuladamente prendi um deles sem que os outros vissem. [ ...] Depois tomei mais outros cinco ou seis e todos confessaram a mesma coisa. Em vista disso, mandei prender todos os cinquenta e cortar-lhes as mãos e os enviei a seu senhor para que dissessem a ele que quando ele viesse saberia quem éramos (CORTEZ, 1986, p. 33-34).

Vejamos agora um trecho da terceira Carta de Cortez. As torturas e os crimes

formam um cenário de horror mais forte do que a ficção poderia criar. Pareceria que os

personagens do folhetim francês Rocambole se inspiraram nas torturas de Cortez. No capítulo

dedicado ao folhetim veremos como os personagens praticam a vingança, em cenas bizarras,

muito parecidas com as crueldades reais de Cortez. Uma grande coincidência, evidentemente,

mas o folhetim virá da França para se desdobrar nas Américas: (...) continuamos a fazer nossos constantes ataques à cidade, sempre provocando muito dano e matando muita gente. Há uns vinte dias que vínhamos fazendo esse tipo de ação, quando os nossos começaram a insistir comigo, dizendo que era preciso tomar o mercado. Eu me escusava argumentando que só o faria quando tivesse plenas condições. Até o tesoureiro de vossa majestade veio me dizer que todo o real queria que eu tomasse logo o mercado, pois assim os inimigos perderiam o seu posto de abastecimento e morreriam de fome e de sede, pois só lhes sobraria a água salgada da lagoa (CORTEZ, 1986, p. 89).

E na quarta Carta Cortez continua severo e determinado na conquista do espaço e das

riquezas: (...) Mas, a 5 de fevereiro o dito capitão partiu novamente para lá e espero que desta feita ele possa realizar o seu trabalho, pois além de ser aquela uma terra rica em minas os seus nativos não param de importunar os seus vizinhos que se tornaram nossos amigos. (...) pedi ao capitão que os derrotasse, os matasse e tomasse por escravos os que sobrassem vivos, ferrando-os com a marca de vossa majestade. Tenha por certo, mui excelentíssimo príncipe, que a menor destas entradas me custa mais de cinco mil pesos de ouro e que as Pedro de Alvarado e de Cristóbal de Olid custam mais de cinquenta, sem contar outros gastos de minha fazenda. Porém, como é para o serviço de vossa majestade, se a minha pessoa fosse junto, isto seria uma grande honra e recompensa (...) (CORTEZ, 1986, p. 113).4

4 Trechos de cartas enviadas à Espanha por Hernán Cortez nas quais ele narra como aniquilou a civilização asteca entre 1519 e 1526.

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O mundo narrado por Cortez aparece incorporado de maneira crítica na análise

semiótica que Carlos Fuentes faz do encontro das duas civilizações na sua obra El espejo

enterrado. A incorporação do mundo em destruição, de modo mais fictício, ocorre no seu

livro El naranjo. Uma reunião de cinco relatos que não se sabe se são cinco contos ou cinco

novelas curtas. Carlos Fuentes diz que não importa definir, o que importa é o trabalho com o

tempo, a busca de uma memória que nós, latino-americanos, não temos. No início do livro o

leitor se dá conta de que a numeração das páginas segue uma ordem decrescente. Estratégia

para se conduzir ao passado, que passa a ser a matéria da ficção. E logo nas primeiras páginas

ele evoca o discurso do Cortez da destruição:

Cayeron los templos, las insígnias, los trofeos. Cayeron los mismísimos dioses. Y al día siguiente de la derrota, con las piedras de los templos indios, comenzamos a edificar las iglesias cristianas. Quien sienta curiosidad o sea topo, encontrará en la base de las columnas de la Catedral de México las divisas mágicas del Dios de la Noche, el espejo humeante Tezcatlipoca. ¿Cuánto durarán las nuevas mansiones de nuestro único Dios, construidas sobre las ruinas no de uno, sino mil dioses? (FUENTES, 2003, p. 111).

Fuentes vai incorporando o discurso de Cortez. A busca pelo passado revela que o

latino-americano, fruto da mestiçagem, não tem origem. Carlos Fuentes chegou a dizer que o

tema do francês Júlio Verne era o futuro, e que o nosso, latino-americano, é o passado.5

Fica evidente o trato ficcional do passado, ora carnavalizado, ora entrecruzado ou

superposto, ora paralelo nas melhores narrativas do continente. Além de Gringo Viejo e El

naranjo, do próprio Carlos Fuentes, é assim em El Otoño del Patriarca, e de certo modo em

Cem anos de solidão, de García Márquez. É assim em O reino deste mundo, de Alejo

Carpentier. E assim nos romances de Miguel Ángel Astúrias, de Juan Rulfo, de Augusto Roa

Bastos, entre outros. Por ser uma literatura que se volta para o passado e o trata como tema

ficcional, sempre no limite da realidade com a ficção, as crônicas do descobrimento atuam

como um manancial inesgotável, sempre presentes na cultura. E o romance folhetim soube

manter a relação com as crônicas do descobrimento, para beber dessa fonte. E essa relação se

deu pelas exigências de novos fazeres para os novos meios, pela imposição da paisagem

cultural. Como o romance-folhetim se relacionou com as crônicas do descobrimento e com

outras séries da cultura é o que veremos no segundo capítulo.

5 FUENTES, Carlos. Entrevista no programa Roda Viva da TV cultura.

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2 O ROMANCE-FOLHETIM E A RELAÇÃO COM AS CRÔNICAS DO

DESCOBRIMENTO E COM OUTRAS SÉRIES CULTURAIS

A literatura latino-americana teve sua formação e seu desenvolvimento mediados

principalmente pela imprensa escrita (jornais e revistas), e falta ainda esclarecer melhor como

a literatura foi impulsora de muitos dos avanços tecnológicos e culturais desses próprios

meios. Ambas, literatura e imprensa estabeleceram uma relação de proximidade que

possibilitou um roce constante, de forma tal que a produção de ambas só é possível separar,

hoje em dia, por um esforço didático. Elas compartilharam os mesmos escritores, os mesmos

temas: políticos, sociais, econômicos e recreativos. Também compartilharam os mesmos

leitores/ouvintes. Falar do romance folhetim no Brasil e na América Latina implica falar

também da implantação da imprensa no continente.

É verdade que nem toda a literatura do continente se formou a partir dessa relação

com a imprensa que se estabelecia, uma vez que a grande tradição do livro também foi levada

em consideração pelos latino-americanos. Mas o fenômeno de comunicação e arte no qual se

tornou a nossa literatura foi formado a partir de uma circularidade entre a tradição e a

inovação experimental que as novas tecnologias foram propiciando pouco a pouco à

imprensa. É essa segunda relação que deve ser privilegiada para analisar a produção escritural

numa nova perspectiva, que não a subordine ao velho continente, que não legitime a suposta

superioridade de quem veio primeiro. Definitivamente, não há degradação dos modelos

europeus pelos latino-americanos. Essas teses são formuladas, e quase sempre homologadas,

pelas crenças nos mitos de origens. E depois, pela crença de que a tecnologia dos países mais

avançados neste aspecto determina o modo de vida dos países menos desenvolvidos do ponto

de vista tecnológico. Essa visão não leva em conta os usos e as mediações. Nem a

antropofagia cultural e a dimensão da mestiçagem.

Além das semelhanças compartilhadas pela literatura e pela imprensa já mencionadas

acima, tais como mesmos autores, mesmo público leitor/ouvinte, as semelhanças do espaço

geográfico humano – ambiente latino-americano – possibilitou outras causalidades que não

foram em nada ao acaso. Um dos problemas, bastante discutido, refere-se à periodização,

tanto da literatura quanto da imprensa. Críticos e pesquisadores têm discutido qual o período

de início ou de fixação da literatura em cada país. Qual seria o primeiro jornal, e em

consequência a data exata para se considerar a implantação da imprensa em cada país?

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Considerando que o folhetim seguiu uma cronologia de publicação nos países latino-

americanos, que segue bem de perto a cronologia de publicação da França, no século XIX, se

faz conveniente uma pequena abordagem sobre o problema da periodização – ainda que esta

implique uma digressão –, antes de atacar o folhetim propriamente dito.

2.1 O Problema da Periodização da Imprensa

A periodização da imprensa é feita em cima de muitas incertezas, várias hipóteses, e

não poucas conjecturas. Enrique Ríos Vicente, no seu estudo El Periodismo en

Hispanoamérica, começa a encadeação dos seus argumentos citando uma série de frases de

García Ponce, todas iniciadas por orações subordinadas:

Si la primera imprenta en llegar al continente americano fue a México (1536-1539 fecha más probable) y más tarde a Santo Domingo, Lima y otras ciudades, transcurrieron más de doscientos setenta años para que en Venezuela se llegara a los primeros intentos para su establecimiento (PONCE apud VICENTE, 1994, p. 468).

Nenhum dos dois autores estudados, nem Ponce nem Vicente, se arriscam a afirmar

com certeza qual é a data exata da chegada da imprensa no México. Vicente termina o

parágrafo, após fechar aspas, dizendo que “el cajista lombardo Juan Pablos se desplazó a

México como regente de la primera imprenta y es considerado en México como el primer

impresor de la ciudadad” (VICENTE, 1994, p. 468). De fato, há uma coincidência da

instalação da imprensa no México com o aparecimento das folhas volantes (“hojas volantes”),

que se constituíram como gérmen do jornalismo de gazetas, ou primeiro jornalismo, como

ficou chamado. Vicente considera esse jornalismo de gazeta “equivalente ao produzido na

Europa no século XVII” (VICENTE, 1994). A primeira folha volante foi impressa por Jun

Pablos em 1541, e narrava, ou melhor, comentava os acontecimentos relacionados ao

terremoto da Guatemala: Relación del espantable terremoto... De modo que já se pode

vislumbrar uma tendência para narrar o maravilhoso, o fantástico, o real, e os costumes,

dando as notícias de tal forma que o estilo narrativo vai ajustado ao conteúdo que transmite.

Com a publicação das gazetas de forma regular o México chegou a ser o primeiro

país ibero-americano a estabelecer uma imprensa periódica. Alguns estudiosos apontam o

início do século XVII para o estabelecimento da imprensa periódica no país. Velasco Valdés

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informa que à chegada dos navios de aviso e das frotas, se publicavam folhas volantes que

“contenían notícias de España y Europa en general, y a veces se hallaban ilustradas con toscos

grabados” (VALDÉS, 1955, p. 16). A expressão “toscos gravados” nos dá uma pista da

experimentação iconográfica que se estava vivendo naquele período. Estudos apontam que os

astecas, maias, e incas tinham sistemas avançados de comunicação e que, embora não

usassem nenhum alfabeto ocidental, tinham sim uma espécie de escrita baseada nas imagens,

do qual o Popol Vuh, livro pintado na pedra, é um dos grandes exemplos que nos restou.

Esses sistemas primitivos (ou primeiros) foram totalmente destruídos pelos espanhóis. Foi

destruído o sistema como era até então, mas não os desdobramentos desse sistema, através da

penetração de seus códigos e linguagens no sistema da escrita e da imagética implantados

pelos espanhóis. As gravuras dessas primeiras gazetas não satisfazem os eruditos porque não

reproduzem o padrão estético dos europeus, tampouco podemos dizer, em favor delas, que

seguem a estética indígena. Elas são já produtos de uma mestiçagem, tentando se adaptar a

um novo meio. E isso está aquém da falta ou do excesso de tecnologia.

Vicente aponta que “as gazetas supunham um passo decisivo no mundo informativo

colonial, exigido em parte pelo próprio jornalismo exterior” (VICENTE, 1994, p. 469). E esse

papel foi cumprido pela Gaceta de México y Noticias de Nueva España (de janeiro a junho de

1722), a primeira em aparecer nas colônias espanholas. Seu editor, Juan Castorena y Úrsula,

natural de Zacatecas, disse que decidiu colocar em prática a publicação regular ao tomar

conhecimento das gazetas da Europa, que impulsionavam os ideais da Ilustração. Castorena

também nos diz que organizou as notícias de acordo com a procedência. Já em ralação aos

conteúdos, predominavam aqueles referentes à religião e ao governo. Entretanto, é de se

estranhar que um jornal que se ocupava apenas de religião e políticas do governo, não tenha

durado mais tempo, já que contava com uma boa logística. Valdés justifica o seu

desaparecimento, dizendo que “el alto precio de los materiales de imprenta, la marcha del

editor a Mérida y las sátiras, ahogaron la vida de nuestro primer editor” (VALDÉS, 1955, p.

16). Seria interessante investigar a quem essas sátiras eram dirigidas e qual a tipologia delas.

No momento, nos basta registrar que elas dividiam espaço nas páginas com assuntos

religiosos e políticos.

Na Guatemala apareceu a segunda gazeta das colônias espanholas. Chamou-se

Gaceta de Guatemala, tendo como impressor o Sr. Sebastián Arévalo. Durou um pouco mais

que a Gaceta de México, pois funcionou regularmente desde 1º de novembro de 1729 até

1731. E teve mais sorte também porque embora suprimida em 1731, voltou a funcionar em

1797. Segundo Vicente “en sus principios tuvo mucho auge. En sus páginas se encuentran

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referencias muy importantes de la vida social y política del período colonial” (VICENTE,

1994, p. 469). Mas na sua reinauguração já começou a sofrer problemas de imposição e

vigilância, devidos à situação que se encontrava o gazetismo na Espanha. A Resolução de

fevereiro de 1731, assinada por Floridablanca, estabelecia a proibição de todos periódicos,

exceto o Diario de Madrid e os de caráter oficial.6 De modo que, devido ao rumo que tomava

a Gaceta de Guatemala, as autoridades montaram guarda para exercer controle e coibir a

difusão de ideias proibidas no semanário. Notamos que os jornais nascem bastante

independentes, editados por um “impressor”, como eram chamados os editores e redatores da

época. E algum tempo depois passam ao domínio dos Estados, que os convertem em oficiais,

ou oficiosos.

O terceiro modelo de publicação periódica na América Ibérica corresponde ao Peru.

Nos levantamentos de Vicente, a Gaceta de Lima apareceu em 1º de dezembro de 1743 e

durou até a década de 1780. O autor cita um estudo de Temple, no qual este último diz que a

dita gazeta “aunque se publicó sin interrupción, no fue muy regular”7 (TEMPLE apud

Vicente, 1994, p. 469). Mas essa gazeta tem alimentado muitas opiniões controversas em

relação ao seu período, e inclusive um duplo dela atormenta os historiadores e críticos. O

próprio Vicente ressalta que os problemas decorrem, principalmente, do fato de que em 1715

apareceu uma Gaceta de Lima, impressa no “taller” de José Contreras y Alvarado. Essa

gazeta que não é a historiada; teria surgido 28 anos antes da outra, oficial na história da

imprensa peruana. Alguns estudiosos mais recentes estão relendo os estudos dos mais antigos.

Castorena, por exemplo, referiu-se a um novo estilo de jornalismo gazetil, o que estaria

dirigido à Gaceta Nueva, publicada em Madrid, em 1661. Mais tarde, Francisco González de

Cossío, após reproduzir o números 2 de uma Gaceta Nueva de Madrid, na sua Introdução do

livro Gacetas de México, vol. I, conclui que as palavras elogiosas de Castorena, nas quais ele

apontavam o surgimento de um novo estilo jornalístico estavam dirigidas, na sua

interpretação, à Gaceta de Lima, e não à de Madrid.

Havia um ambiente propício à implantação do jornalismo regular em Lima? Na

opinião dos estudiosos sim, havia:

Lima tuvo fundamentos suficientes como para haber producido incluso algún tipo propio de gaceta (1715 señalan algunos, Cossío desde 1700), porque

6 Em Historia del periodismo español, Saiz conta como a Espanha estava atravessando, com essa Resolução, o que ela chamou de “una larga noche” (SAIZ, 1983). 7 Não tivemos acesso direto ao texto de Temple. A referência completa é dada por Vicente: TEMPLE, Ella Dunbar, La Gaceta de Lima del Siglo XVIII. Facsímiles de seis ejemplares raros, Univ. San Marcos, Lima, 1975.

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desde 1618 comenzaron a aparecer los “noticiarios” que fueron sustituyendo al periodismo primitivo. El primer “noticiario” fue publicado en 1618. Este tipo de noticiarios hacia 1622 comenzaron a estructurarse en forma de periódicos. En el famoso Diario de Lima de Suardo se relata que en 1630 “muchas nuevas vinieron de Castilla, las cuales se imprimieron a toda prisa en esta Corte. Este mismo Suardo relata en detalle el interés por las noticias de Castilla que luego de la censura correspondiente eran pasadas a los impresores. Este diario era una memoria manuscrita de lo que aconteció en el virreinato entre 1629 y 1639, redactado por Juan Antonio Suardo, bajo las órdenes del virrey Conde de Chinchón (VICENTE, 1994, p. 469-470).

De todo modo é preciso observar que por mais avanços que se tenham dado ao

jornalismo com o gazetismo no continente, muitos estudiosos afirmam que nos tempos da

conquista não havia nascido ainda a imprensa moderna. Ela ainda não é moderna do ponto de

vista tecnológico e comercial como será a futura imprensa de massa. Mas ela antecipa uma

tendência futura da imprensa do mundo todo que é o duplo interesse por tudo que vem de fora

e por tudo que a circunda no ambiente ao qual está inserida. E ainda devemos considerar que

os relatos e as notícias dos feitos e sucessos da América já haviam começado a serem

narrados pelas primeiras crônicas. Alguns consideram os cronistas como precursores do

jornalismo.

Entre os cronistas já mencionados, destaca-se o alemão Ulrico Schmidel, soldado da

expedição de Pedro de Mendonza, que chegou ao Rio de la Plata em 1535, e uns trinta anos

depois (1567) publicou em Frankfurt a sua obra intitulada Historia y Descubrimiento del Río

de la Plata y Paraguay. É uma crônica, com extensa enumeração de tribos, em alguns casos

desenvolvidas, diz ele, dos frutos, da pesca e das formas de organização social. Schmidel teria

omitido muita coisa que presenciou, acusam muitos, e atribuem o seu proceder ao fato de ele

ser militar e religioso católico fervoroso. Teria Schmidel pecado, na visão dos estudiosos da

comunicação, pela imparcialidade e pela falta de objetividade nas suas reportagens. As

acusações partem de uma visão assentada na crença de que o jornalismo pode ser totalmente

objetivo e imparcial, negando a participação de um sujeito que participa do processo ao

relator os fatos (SALLES, 2009).

A obra de Schmidel é a primeira crônica que narra de maneira cronológica os

acontecimentos do Rio de la Plata y Paraguay. Importante manancial para os estudos de

história da imprensa porque cobre o período de duração da imprensa que os jesuítas

implantaram em Córdoba, a fim de proporcionar livros para os indígenas. Mas essa primeira

imprensa de Córdoba não teve mérito para gerar uma data oficial de implantação da imprensa

na Argentina. Os fatores parecem que são muitos. Primeiro, ela durou pouco tempo porque os

jesuítas foram expulsos e a máquina de prensa foi fechada e abandonada num colégio

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franciscano da cidade. Segundo, a história da Argentina se confundia com as do Uruguai e do

Paraguai, numa total falta de delimitação geográfica do que se chamava Vice Reino do Prata.

Terceiro, a Argentina preferiu fixar a data oficial da imprensa nacional a partir de um jornal

liberal e nacionalista, para coincidir com o ano da sua independência, 1910. Como a data

oficial da imprensa nacional brasileira antecede a da Argentina, consideraremos primeiro o

problema no Brasil, e logo voltaremos ao caso argentino.

No Brasil não houve imprensa, pelo menos de modo oficial, até o começo do século

XIX. A Coroa portuguesa proibia que a colônia tivesse imprensa. Todavia faltam-nos estudos

que comprovem a existência e a tipologia de possíveis jornais escritos à mão em terras

brasileiras. Se no começo do século XVII esses jornais eram recorrentes no México, na

Guatemala e no Peru, como já vimos, inclusive a sua origem no século XVI, de certo podem

ter surgido também em português na colônia luso-americana. Mas a historiografia considerou

que o primeiro jornal brasileiro, escrito em língua portuguesa, surgiu no Rio de Janeiro: A

Gazeta do Rio de Janeiro (1808), mesmo ano da chegada da família real portuguesa, que viera

fugida da perseguição que Napoleão impunha aos reis da Europa. A Gazeta do Rio de Janeiro

teve seu primeiro número publicado em 10 de setembro de 1808. Era uma espécie de Diário

Oficial da Coroa, editado pelo frei Tibúrcio José da Rocha. Editava os decretos do rei e não

tinha nenhum propósito independentista, evidentemente, como já fazia o jornalismo das

gazetas dos países hispano-americanos. O presidente Getúlio Vargas, contrariando a

expectativa de setores mais democráticos da sociedade brasileira, decretou o dia 10 de

setembro como o dia nacional da imprensa no Brasil, com base na primeira publicação dessa

gazeta.

Também por força política, a historiografia voltou a estabelecer nova data de

aniversário para a imprensa nacional. No ano 2000 o Congresso Nacional aprovou um projeto,

e o presidente Fernando Henrique Cardoso o sancionou, mudando o dia oficial da imprensa no

Brasil de 10 de setembro para o dia 1º de junho. Essa nova data corresponde à primeira

publicação do Correio Braziliense (1 de junho de 1808), apenas dois meses mais velho que o

anterior, publicado pelo brasileiro Hipólito José da Costa Pereira, quem o editava, imprimia, e

o enviava desde Londres ao Brasil. Sempre de maneira clandestina. Setores ligados à

imprensa, inclusive sindicatos, receberam a nova data como uma justiça, que corrigia uma

injustiça. A nova data oficial deixava de reverenciar um jornal do rei para homenagear um

jornal independente, gérmen de um jornalismo combativo, imparcial e objetivo. Esses foram

os argumentos das associações de jornalistas brasileiros, o motor da mudança de data.

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Analisando o jornal que passou a representar o dia da imprensa no Brasil vemos que

Correio Braziliense era uma publicação mensal, política, mas com grande cobertura

científica, econômica e social, que teve sua importância na formação do país. Entretanto o

Brasil trocava seis por meia dúzia, pois o novo referente da data célebre não teria tido todos

esses ideais. Hipólito José da Costa Pereira não teria sido assim um exemplo de jornalista

combativo e imparcial. Sua biografia é controvérsia. Ao mesmo tempo em que se exilou em

Londres para fugir da Inquisição, e da “lei da mordaça” que proibia a impressão de livros e

jornais no Brasil, editava um jornal que vinha nos porões dos navios, recebia apoio financeiro

e diplomático dos nobres da corte. Estudos apontam que o próprio rei Dom João VI era um

dos leitores assíduos do Correio Brasilienze. Depois da partida do rei para Portugal, Dom

Pedro I passou a ajudar financeiramente Hipólito Pereira na Europa. Estranho caso é o da

mentalidade portuguesa que caminha por via de mão dupla. Ao mesmo tempo que se proíbe a

impressão de qualquer jornal sob pena de prisão ou até de morte para quem desobedecer, lê e

financia um jornal clandestino.

Hipólito Pereira teve um longo convívio com as autoridades portuguesas. Começou

seus estudos em Porto Alegre e terminou em Lisboa. Formou-se em Leis, Filosofia e

Matemática, em Coimbra, 1798. Recém-formado, foi enviado como diplomata pela Coroa

portuguesa aos Estados Unidos e ao México, para onde partiu em 16 de outubro do mesmo

ano de 1798, com a missão de conhecer a economia desses dois países e as técnicas industriais

aplicadas pelos Estados Unidos. Voltou ao Brasil, e em 1802 foi enviado a Londres com uma

nova tarefa: o objetivo declarado de adquirir obras para a Real Biblioteca e maquinário para a

Imprensa Régia. Ao que tudo indica, nessa missão ele travou contato com impressores e se

familiarizou com a edição de jornal. Em sua biografia consta que ele havia feito um acordo

secreto com a Coroa portuguesa, no qual essa se comprometia a adquirir certo número do seu

jornal, além de uma quantia em dinheiro para a sua pessoa, em troca de moderação nas

críticas feitas à Monarquia. Maçom declarado e perseguido,chegou a ser preso pela

Inquisição, mas conseguiu evadir-se das celas do Santo Oficio para a Espanha, disfarçado de

criado, com o auxilio dos irmãos maçons. De lá, diz a sua biografia na Wikepédia, “passou

para a Grã-Bretanha, onde se exilou sob a proteção do príncipe Augusto Frederico, duque de

Sussex, o sexto filho de Jorge III do Reino Unido e grão-mestre da maçonaria inglesa”.8

Tal foi a vida do nosso primeiro impressor oficial, que morreu em 1823, sem chegar

a saber que havia sido nomeado Cônsul do Império do Brasil em Londres, digna de um

8 HIPÓLITO DA COSTA. In: WIKIPÉDIA. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Hip%C3% B3lito_da_Costa>. Acesso em: 10 mar. 2010.

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personagem de folhetim de Eugène Sue, Ponson du Terrail, José de Alencar ou Machado de

Assis.

O pioneirismo do jornalismo brasileiro é muito discutível e discutido. O político

alagoano e pioneiro nos estudos da comunicação no pais, Costa Rego, defende que antes de

frei Tibúrcio e Hipólito da Costa Pereira tivemos Tavares Bastos (MELO, 2010).9 Já o

jornalista Carlos Alves Müller acredita que muitos outros fizeram jornalismo bem antes

desses três já citados. Müller chama a atenção para Antônio Isidoro da Fonseca, quem

considera o primeiro tipógrafo a imprimir no Brasil (1746). Lembra também o nome de João

Soares Lisboa, editor do Correio do Rio de Janeiro, que teria reagido duramente contra uma

lei de D. Pedro I que censurava a imprensa. João Soares defendia a convocação de uma

constituinte brasileira. Assunto que vai provocar a desgraça de muitos defensores da

imprensa. Frei Caneca, por exemplo, um dos lideres da Revolução Pernambucana de 1817 e

da Confederação do Equador, foi fuzilado. Tornou-se, segundo Müller e alguns outros, “o

primeiro mártir da imprensa brasileira. E não é demais lembrar que a Revolução

Pernambucana de 1817, também conhecida como “Guerra dos Padres”, além dos anseios de

se independentizar do jugo econômico da Corte estabelecida no Rio de Janeiro, estava movida

pelas ideias liberais que entravam no Brasil junto com os viajantes estrangeiros e por meio de

livros e de outras pulicações. E Müller não nos deixa esquecer a figura do médico italiano

Libero Badaró, editor do Observador Constitucional, guerreiro defensor da liberdade de

imprensa, assassinado em novembro de 1830 (MÜLLER, 1999).

Já começamos a desenhar os contornos do ambiente que vai receber o primeiro

folhetim publicado no Brasil, segundo os levantamentos de Marlyse Meyer, nove anos depois

da morte de Libero Badaró. É o que veremos no tópico seguinte. Agora é hora de voltar às

considerações sobre a imprensa na Argentina, para explicar a fixação da data oficial.

No começo do século XVIII a Companhia de Jesus introduziu a imprensa no

território que compreendia o Vice Reino do Prata para produzir livros de catecismo aos

indígenas, como já vimos. Alguns estudiosos indagam se deveriam incluir na história da

imprensa argentina a chamada “Prensa Guarántica”, atualmente reivindicada pela

historiografia do Paraguai. Não é incomum também encontrar artigos da área de comunicação

na Argentina que colocam em xeque a existência dessa imprensa. O senso mais comum nos

trabalhos historiográficos sobre a instalação da imprensa na Argentina é o de que os Jesuítas a

instalaram em Córdoba, em 1758.

9 Ver também Por José Cristian Góes. Disponível em: <cristiangoes.blogspot.com>. Acesso em: 10 mar. 2010.

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Em 1779 o Vice Rei Vértiz, de Buenos Aires, manda comprar a máquina de prensa

que estava abandonada no Colégio dos Franciscanos, em Córdoba. Há descrições de quanto se

pagou por ela, de como a transportaram em carretas de boi até as margens do Rio do Prata. E

de quanto se gastou para consertar as suas peças que estavam danificadas, mandando vir

material da Europa. No ano de 1880, logo após haver promulgado a abertura da Casa de

Expósitos, um lugar onde “los hijos ilegítimos pueden educarse en el Santo Temor de Dios y

ser útiles a la sociedad”, segundo fundamentação do próprio Vértiz em carta enviada ao Rei

de Espanha, inaugurou a imprensa em Buenos Aires (VÉRTIZ apud MITRE 1918, cap. III). O

Vice Rei deu-lhe o nome de Real Imprenta de Niños Expósitos. Por esses dados podemos

supor o caráter educativo que essa imprensa deveria exercer.

De suas oficinas sairiam, em 1781, as Noticias recibidas de Europa por el Correo de

España por vía del Janeiro, e também o Extracto de las noticias recibidas de España por la

vía de Portugal. En 1801 se editó el Telégrafo Mercantil, Rural, Político, Económico e

Historiógrafo del Río de la Plata, por obra de Antonio Cabello y Mesa. Em suas publicações

se destacaram Manuel Belgrano, Juan José Castelli, Manuel Medrano, Domingo de

Azcuénaga, e muita gente importante na história do país. Em 1802 foi fechado pela censura,

tendo alcançado sua coleção os 110 números e 4 suplementos. Pouco tempo depois começou a

sair dessa mesma imprensa o Semanario de Agricultura, Industria y Comercio por obra de

Juan Hipólito Vieytes. Estudos apontam que ele durou quase cinco anos, e que foi um órgão

de defesa do desenvolvimento agrícola e livre comercio. O Semanario de Agricultura,

Industria y Comercio deixou de existir devido a invasão inglesa de Montevidéu, de onde

passaram a editar The Southern Star (La Estrella del Sur), assim mesmo, bilíngue em inglês e

espanhol, que teria conquistado seus leitores. Talvez tenhamos aqui um primeiro caso de

disputa comercial entre dois meios de comunicação no Rio do Prata.

A Argentina ainda iria contar com a criação de pelo menos mais dois jornais antes

daquele que iria simbolizar o dia da imprensa no país. Em 1809 o Vice Rei Cisneros deu

impulsos à edição da Gaceta de Gobierno, órgão de difusão das ideias coloniais e de

documentação oficial, que alcançou cinquenta números. No começo do ano seguinte, Manuel

Belgrano se lançou na publicação semanal do Correo de Comercio, pregando o livre

desenvolvimento comercial e industrial. O lema do jornal era: “una acusación contra el

gobierno español (…)”. Temos já os meios de comunicação livres, ou fora dos controles do

Vice Rei. Já sabemos qual será o percurso a ser seguido e a qual porto aportará. A Revolução

de Maio, no mesmo ano de 1810. Movimento que começa em Buenos Aires e se espalha pela

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América do Sul, exigindo liberdade e independência para os países, tendo como um dos

resultados a própria declaração de independência da Argentina, em 9 de julho de 1816.

Figura 1 – Primeira edição da Gazeta de Buenos Ayres.

Voltando ao ano de 1810, que já havia contado com a inauguração de um jornal de

caráter liberal e com a Revolução de Maio, encontramo-nos com a publicação da Gaceta de

Buenos Ayres, fundado por Mariano Moreno, que deu a luz ao seu primeiro número em 7 de

junho de 1810. Seus primeiros redatores foram o próprio Mariano Moreno, Manuel Belgrano,

que já havia colaborado com vários outros jornais anteriores, e Juan José Castelli. Esse

periódico foi considerado como o primeiro jornal da etapa independentista argentina. Em

1938 ficou estabelecido pelo Primer Congreso Nacional de Periodismo, celebrado em

Córdoba, que o dia 7 de junho passaria a ser El Día Del Periodista, em recordação daquele

que consideraram o primeiro meio de imprensa com ideias patrióticas.

Também na Argentina houve proposta e debate nos meios de comunicação sobre a

possibilidade de mudar o dia da imprensa, ou do jornalista, tirando a referência feita à Gaceta

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de Buenos Ayres (de 1810), para atribuí-la a El Telegráfo (1801). A data de “nascimento” da

imprensa na Argentina passaria de 7 de junho de 1810, para 3 de junho de 1801. O site do

Ministério de Educação da Argentina aponta a data da Gaceta de Buenos Ayres como dia

oficial da imprensa. Já o Clarín aponta El Telégrafo como o primeiro periódico portenho.10 É

desse modo que a Argentina, que teve tantos jornais antes do Brasil, fixou na história uma

data comemorativa para a sua imprensa baseada num jornal de 1810, enquanto no Brasil a

mesma data oficial remonta ao ano de 1808.

Figura 2 – Primeira edição do Telégrafo Mercantil. 10 Disponíveis em: <www.me.gov.ar/efeme/7dejunio/> e <www.blogs.clain.com/detoinformación /2008/09/09>. Acesso em: 9 ago. 2009.

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2.2 O Problema da Periodização da Literatura

A literatura do continente sofreu os mesmos critérios de historiografia que a

imprensa. Tentou-se, em muitos casos, vincular o nascimento de uma literatura nacional, a

partir das independências dos países. Um dos críticos literários brasileiros que se dedicou a

construir um olhar da literatura como fenômeno literário, foi Afrânio Coutinho. Ele ataca

justamente o problema da periodização: “A subordinação da historiografia literária à

historiografia política tem dado lugar, até agora, a uma periodização em que não é levada em

consideração a natureza peculiar do fenômeno literário” (COUTINHO, s.d., p. 20). Isso teria

ocorrido no Brasil por adotarmos a mesma divisão de cunho político que se adotava para a

literatura portuguesa. Diz ele:

Na literatura portuguesa, o critério dominante tem sido invariavelmente este: as divisões têm denominações oriundas da história geral (Idade Média, Tempos Modernos), misturados com termos provenientes da historia da arte (Renascimento), com termos simplesmente numéricos (Século VI, XVII, XIX, Quinhentismo, Seiscentismo, etc.) e outros de sentido literário (Romantismo, Classicismo). Por outro lado, os marcos são ora o limite dos séculos ora a morte de grandes figuras ou publicação de obras célebres e influentes (morte de Camões, publicação de Camões de Garret, etc.). Na literatura brasileira, também, as divisões tradicionais referem-se a critérios políticos e históricos, como era colonial e era nacional, com subdivisões por séculos ou decênios, ou por escolas literárias. De modo geral, pois, é a fórmula empírica, meramente cronológica ou a aplicação do conceito historicista e sociológico na historiografia literária (COUTINHO, s.d., p. 20-21).

Afrânio Coutinho advoga pela “periodização estilística aplicada à história da

literatura brasileira” que segundo ele, “além das vantagens gerais de abolir as tiranias

sociológica, política e cronológica, que caracterizam os sistemas de periodização tradicionais,

tem outras conseqüências importantes” (COUTINHO, s.d., p. 23), às quais passa a examinar

detalhadamente no seu livro, dizendo que a consideração do problema conduz às seguintes

conclusões:

a) O problema da periodização liga-se ao conceito da história em geral, e, em particular, ao da história literária. b) De sua fixação decorre a compreensão do início da literatura brasileira. Que é literatura brasileira? Quando começou a literatura brasileira, no século XVI ou no século XIX? A periodização estilística realça a formação da literatura brasileira concomitante com a própria origem da civilização e do homem brasileiro no século XVI, em pleno mundo espiritual e barroco. Fica superada de todo a velha dicotomia entre literatura colonial e nacional. Uma

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literatura não é colonial só porque se produz numa colônia e não se torna nacional apenas depois da independência da nação. A nossa literatura foi “brasileira” desde o primeiro instante, assim como foi brasileiro o homem que no Brasil se firmou desde o momento em que o europeu aqui pôs os pés e aqui ficou. Assim, a literatura brasileira primitiva não é colonial, mas barroca e brasileira ( COUTINHO, s.d., p. 23-24).

Pode parecer estranho para quem não está familiarizado com as discussões em torno

da historiografia da literatura brasileira perguntas como essa: “Quando começa a literatura

brasileira, no século XVI ou no século XIX?”. Muito se tem falado e se tem escrito sobre isso.

Críticos importantes têm se debruçado sobre o problema. Citaremos brevemente apenas

alguns deles. Neste caso Afrânio Coutinho está se referindo direto e principalmente ao crítico

brasileiro de literatura Antonio Candido, quem escreveu no seu Formação da Literatura

Brasileira que a nossa literatura começa só no século XIX. Antonio Candido começa

estudando a nossa literatura a partir da portuguesa. Persegue uma trilha histórica recorrendo

vestígios do que ele chama de “influência” de autores portugueses nos autores brasileiros, os

que não chegam a formar uma literatura nacional. No capítulo 4 do primeiro volume do seu

livro, quase acabando o volume, ele trata da “Independência Literária”, onde acaba por

estabelecer uma relação entre a independência política e a da literatura. Diz ele:

Para antecipar o que será versado em pormenor no segundo volume desta obra, digamos desde já que o Romantismo no Brasil foi episódio de grande processo de tomada de consciência nacional, constituindo um aspecto do movimento de independência. Afirmar a autonomia no setor literário significava cortar mais um liame com a mãe Pátria. Para isto foi necessário uma elaboração que se veio realizando desde o período joanino, e apenas terminou no início do Segundo Reinado, graças em grande parte ao Romantismo que, importando em ruptura com o passado, chegou num momento em que era bem-vindo tudo que fosse mudança. O Classicismo terminou por ser assimilado à Colônia, O Romantismo à independência – embora um continuasse a seu modo o mesmo movimento, iniciado pelo outro, de realização da vida intelectual e artística nesta parte da América, continuando o processo de incorporação à civilização do Ocidente (CANDIDO, 1971, p. 303).

Não deixa de ser curiosa essa classificação histórica. Segundo ela o Brasil teria

vivido um classicismo durante todo o período da Colônia. E toda a experimentação de cunho

barroca que se fez nessas novas terras fica submersa durante esse período. O livro Formação

da Literatura Brasileira já traz no primeiro volume a informação de que vai estudar a história

literária a partir de 1750. O subtítulo vem entre parênteses (Momentos Decisivos). 1º Volume

(1750-1836). Lembremos que 1836 é considerado como data oficial do início do Romantismo

brasileiro pela historiografia literária oficial, tendo como referência a publicação da obra

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poética Suspiros Poéticos e Saudades, de Gonçalves de Magalhães. Um dos exemplos de que

os períodos são marcados por datas e obras, de modo arbitrário, como denuncia Afrânio

Coutinho, em fala já citada aqui.

Na crítica portuguesa sobre a literatura brasileira no período antes de 1750

encontramos vários exemplos de conselhos valorativos. Diziam os portugueses da época que

os brasileiros deveriam esquecer a mitologia greco-romana e toda a tradição latina, para se

concentrar na realidade do novo mundo. Deveria falar da natureza ou do indígena, por

exemplo. Em outras palavras, olhar para a Europa seria continuar o que faziam os europeus.

Eles não pensam na hipótese de se fazer uma cultura circular, aproveitando tudo o que vinha

do mundo clássico europeu, mais aquilo que eles tinham de não clássico, e de todas as outras

contribuições, árabes, africanas, ameríndias e asiáticas. Acreditavam na supremacia literária

da Europa, e julgavam que o país americano deveria construir uma cultura própria através do

rompimento com os modelos da tradição ocidental, trabalhando somente o que fosse

autóctone. Não havia necessidade filosófica de rompimento com Portugal e com a tradição

greco-romana. No novo mundo a relação inseparável entre cultura e natureza, e dentro dessa

relação a evolução estética da língua portuguesa, foi criando uma literatura que foi se

diferenciando de Portugal e se constituindo nacional.

É evidente que não acertamos sempre, confundimos literatura com resistência

política em vários momentos. Com a atitude nacionalista, diz Antonio Candido (1971),

tentou-se inventariar um passado para a literatura brasileira na tentativa de fazer frente a

Portugal. Catalogava-se o que podia encontrar de parecido com literatura, para criar de forma

retroativa, uma gênese da literatura brasileira. Andamos sempre bem próximos do acerto e do

erro. Acusam José de Alencar de haver tomado uma atitude semelhante ao escrever livros

sobre o gaúcho, o índio, o sertanejo e a vida cortesã. Queria formar uma vastidão de obras

nacionais para rivalizar com Portugal e Europa. Jorge Luis Borges ironiza o historiador e

crítico argentino de literatura, dizendo que “o Dr. Ricardo Rojas escreveu uma história da

literatura argentina maior do que a literatura argentina” (BORGES, 1937). Há uma defesa do

nacional nessa atitude de Rojas. É evidente que não são só os grandes autores que interessam,

e assim se pode aumentar o número de obras de um país ou de uma cultura. O condenável é

que essa postura segue a lógica binária da oposição entre colônia e metrópole, que deve ser

abandonada para que se possa pensar bem a América Latina. De outro modo, alinhado com a

visão sociológica europeia, Antonio Candido também parte da oposição entre colônia e

metrópole. Citamos um parágrafo e meio do prefácio da 1ª edição do Formação:

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Há literaturas de que um homem não pode precisar sair para receber cultura e enriquecer a sensibilidade; outras, que só podem ocupar uma parte da sua vida de leitor, sob pena de lhe restringirem irremediavelmente o horizonte. Assim, podemos imaginar um francês, um italiano, um inglês, um alemão, mesmo um russo e um espanhol, que só conhecem os autores de sua terra e, não obstante, encontrem neles o suficiente para elaborar a visão das coisas, experimentando as mais altas emoções literárias. Se isto já é impensável no caso de um português, o que dirá de um brasileiro? A nossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das musas... (CANDIDO, 1971, p. 9).

A justificativa maior de Antonio Candido para a negação da existência da literatura

brasileira antes de 1750 é o fato de ele privilegiar um método de trabalho histórico e

sociológico, baseado no que ele chama de sistema orgânico. Ele constrói um sistema

composto pela tríade de conjunto de autores conscientes de seu papel, um conjunto de

receptores, no caso formado de diferentes tipos de público leitores, e um mecanismo

transmissor que liga uns aos outros. Essa visão tem causado um grande debate sobre a

periodização da literatura, dentro e fora da academia. Teve adeptos e críticos opositores.

Citamos parte do parágrafo propulsor de controvérsias:

Para compreender em que sentido é tomada a palavra formação, e porque se qualificam de decisivos os momentos estudados, convém principiar distinguindo manifestações literárias, de literatura propriamente dita, considerada aqui um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase. Estes denominadores são, além das características internas, (língua, temas, imagens), certos elementos de natureza social e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Entre eles se distinguem: a existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns aos outros (CANDIDO, 1971, p. 23).

Haroldo de Campos foi um dos que mais provocou polêmica com os críticos e

historiadores da literatura, na maioria acadêmicos, porque estes se esforçaram para defender

as teses de Antonio Candido. Agiram como se o grande mestre não pudesse cometer

equívocos. No livro intitulado O Seqüestro do barroco na formação da literatura brasileira:

o caso Gregório de Matos, Haroldo de Campos faz uma discussão crítica do que ele chamou

de “o mais lúcido e elegante (enquanto articulação do modelo explicativo) ensaio de

reconstrução historiográfica de nossa literatura”, no caso A formação da literatura brasileira

(Momentos Decisivos), de 1959 (CAMPOS, 1989). Haroldo de Campos faz uma

desconstrução da Formação, no modelo derridiano. Inclui Gregório de Matos na história

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literária barroca e nacional, dando-lhe importância estética e espiritual de um dos pais

fundadores dela. Ao refazer a historiografia da literatura brasileira Haroldo de Campos cria

outra escola, outra tendência para o historiador e o crítico literário, que poderão orientar seus

trabalhos sem seguir a linha linear da evolução e culminação de um momento estético. Uma

escola de pensamento, ou de pensadores, mais bem aparelhados para considerar como

relevante a cultural marcada por uma veia neo-barroca, como é o caso da literatura brasileira e

latino-americana, em geral. E dentro dessa nova postura aparece espaço para a revalorização

das Crônicas do Descobrimento não só como documento histórico, mas também como peças

literárias, exatamente pela configuração estética que as ligam com outros textos da nossa

cultura. Citamos a orientação que nos dá Haroldo, já no primeiro parágrafo de O seqüestro do

barrroco:

Se há um problema instante e insistente na historiografia literária brasileira, este problema é a “questão da origem”. Nesse sentido é que se pode dizer – como eu fiz em “Da razão antropofágica” – que estamos diante de um episódio da metafísica ocidental da presença, transferido para as nossas latitudes tropicais, (...) um capítulo a que Derrida, na Gramatologia, submeteu a uma lúcida e reveladora análise, não por acaso sob a instigação de dois ex-cêntricos, Fenollosa, o anti-sinólogo, e Nietzsche, o pulverizador de certezas (CAMPOS, 1989, p. 7-8. Grifos do autor).

Essa metafísica ocidental da presença foi refutada por Oswald de Andrade ao criar a

metáfora da antropofagia cultural. A antropofagia, baseada na deglutição e incorporação do

outro, anula a importação da origem. Tanto que na revalorização de Gregório de Matos,

Haroldo cita Oswald logo na página seguinte. Diz ele, referindo-se àqueles que tentaram

diminuir ou até excluir a existência literária de Gregório de Matos:

Oswald de Andrade (“A Sátira na Literatura Brasileira”, 1945) opinava em sentido diametralmente oposto: “Gregório de Mattos foi sem dúvida uma das maiores figuras de nossa literatura. Técnica, riqueza verbal, imaginação e independência, curiosidade e força em todos os gêneros, eis então os rumos da literatura nacional” (OSWALD apud CAMPOS, 1989, p. 9. Grifos do autor).

Na literatura hispano-americana o historiador E. Anderson Imbert abre o prólogo do

primeiro volume do seu Historia de la literatura hispanoamericana com a seguinte

consideração:

De los muchos peligros que corre un historiador de la literatura, dos son gravísimos: el de especializarse en el estudio de obras maestras aisladas entre sí, o el de especializarse en el estudio de las circunstancias en que esas obras se escribieron. Si hace lo primero nos dará una colección de ensayos críticos discontinuos, es decir, una historia de la literatura con poca historia.

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Si hace lo segundo nos dará referencias exteriores al proceso de civilización, es decir, una historia de la literatura con poca literatura (ANDERSON IMBERT, 2003, p. 7).

Anderson Imbert tem a preocupação de estudar a literatura hispano-americana como

um todo produzido pelo que ele chama de as “dezenove nações”, de língua espanhola,

evidentemente. Demonstra, como Antonio Candido, um certo pesar pela nossa literatura ser

formada de menor quantidade de obras e de menor valor estético que a da Europa. Antonio

Candido disse que a nossa literatura (a brasileira), comparada com a europeia é pobre e fraca.

Anderson Imbert afirma que nossa contribuição (da literatura hispano-americana) é mínima à

literatura mundial. Defende a necessidade de arrolar autores não tão bons nos seus ensaios

historiográficos para não apresentar uma história tão delgada da literatura. É curioso que ele

mesmo, logo após dizer no parágrafo anterior que “cada escritor afirma valores estéticos que

lhe formaram, enquanto eles contemplavam o horizonte histórico, e que são esses valores que

deveriam constituir o verdadeiro sujeito de uma História Literária” (ANDERSON IMBERT,

2003, p. 7), ele venha afirmar que se devem catalogar escritores malogrados para não

apresentar uma história tão delgada. Aqui devemos pensar em algumas questões. Primeira,

esses escritores malogrados são maus artistas sobre que ponto de vista estético? O da inteireza

da obra preconizada por Aristóteles? As suas obras não estabelecem nenhuma relação com o

novo ambiente onde estão sendo produzidas? Se elas estabelecem novas relações com o novo

ambiente, não deveriam ser apreciadas por outros critérios ou juízos? Há legitimidade na

necessidade quantitativa de obras para um país ou um continente ter literatura? Vejamos as

palavras do historiador:

Nuestras contribuciones efetivas a la literatura internacional son mínimas. Bastante hemos hecho si se tienen en cuenta los mil obstáculos con que ha tropezado, y todavía tropieza, la creación literaria. El Inca Garcilaso, Sor Juana Inés de la Cruz, Andrés Bello, Domingo Sarmiento, Juan Montalvo, Ricardo Palma, José Martí, Rubén Darío, José Enrique Rodó, Alfonso Reyes, Jorge Luis Borges, Pablo Neruda y diez más son figuras que honrarían cualquier literatura. Pero, en general, nos aflige la improvisación, el desorden, el fragmentarismo, la impureza. Forzosamente tendremos que dar acogida a mucho escritor malogrado (ANDERSON IMBERT, 2003, p. 7-8).

Fica claro que a questão da quantidade aflige o crítico, e prenunciado que ele deverá

se pautar por conceitos ou valores estéticos já consagrados pela crítica tradicional que ele

deverá aplicar aos autores por ele mencionados.

Ainda dentro da problemática da origem merece destaque o trabalho do historiador

José Miguel Oviedo, Historia de la literatura hispanoamericana. 1. De los Orígenes a la

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Emancipación. Oviedo propõe uma história da literatura que remonta aos restos da literatura

pré-colombina. A palavra “restos” aqui se refere ao que chegou até o nosso conhecimento

daquela cultura. Destaca os Códices mexicanos, o que restou do Popol-Vuh, dos Libros del

Chilam Balam, na zona compreendida hoje por México e Guatemala. Sobre a zona Andina diz

ele:

De la literatura de expresiones literarias en lengua quechua no cabe duda: Inca Garcilaso (4.3.1.), Guamán Poma de Ayala (4.3.2.), Santa Cruz Pachacuti, Juan de Betanzos, Sarmiento de Gamboa, Murúa, Francisco de Ávila y otros (3.2.6.), transcribieron abundantes textos en sus obras o dieron variadas noticias de ellos (OVIEDO, 1995, p. 60).

O trabalho de Oviedo, e de outros historiadores que se esforçaram na pesquisa sobre

as formas de expressão dos ameríndios, que passamos a chamar de literatura, é importante não

para se buscar uma origem e afirmação valorativa do passado pré-colombino, mas para

conhecermos suas características. Assim, podemos verificar o quanto essa cultura, com suas

cosmogonias, hinos e formas épicas adentraram ao mundo mestiço expressado pela língua

portuguesa e espanhola da América. Como método de trabalho Oviedo descarta de sua

historiografia toda a literatura escrita em língua indígena. Também descarta toda literatura

escrita sobre o continente, dentro ou fora dele, que tenha sido feita em língua estrangeira. A

obra de Schmidel, a crônica que narra os acontecimentos do Rio de la Plata y Paraguay, fica

de fora porque foi escrita em alemão. Outras crônicas escritas em francês, italiano, inglês,

também ficam de fora.

Vemos por essas referências que são muitos os problemas para se fazer uma

abordagem profunda da cultura e da literatura latino-americanas. A origem, a periodização, e

a fixação da língua são alguns deles. Outro questionamento que tem sido feito é aquele que

pergunta se as obras literárias de autores latino-americanos publicadas na Europa ou Estados

Unidos pertencem à literatura latino-americana, como a produção de José Martí em Nova

Iorque no século XIX, e a produção de Julio Cortázar na Europa, no século XX.

Consideramos que sim, são obras latino-americanas. A menos que eles tenham produzido em

outros idiomas que não o português ou castelhano.

Voltando ao problema da origem, agora em relação aos gêneros literários, lemos a

produção pré-colombina com alguns critérios do velho mundo. Não nos foi possível escapar

totalmente dos conceitos que acompanharam os homens das caravelas. Mas afinal, temos ou

não direito a essa herança ocidental? Destacamos uma passagem de Oviedo:

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No podemos escapar de los hechos: incluso cuando hablamos de géneros y décimos que esto es “novela” y aquello un “poema”, estamos repitiendo esquemas y categorías que fueron pensados mucho tiempo antes del descubrimiento de América o de que su problemática cultural inquietase a nuestros espíritus. No creemos que haya que pedir disculpas por aprovecharnos de ellos, ni que sea indispensable usar una nomenclatura completamente nueva, inmaculada de toda conexión con el mundo cultural eurocéntrico; en estas materias la tentación adánica puede tener resultado contraproducente e indeseable de aislarnos más en el contexto global al que pertenecemos por derecho propio. Por ser americanos somos una fracción de Occidente, una suerte de europeos más complejos (y tal vez completos) que los europeos mismos, pues hemos sido enriquecidos por nuestras propias tradiciones indígenas y las africanas, asiáticas, árabes, etc. Somos una distinta versión de lo mismo. Nuestro costado europeo no nos encasilla: es un modo de reconocer que somos universales, aunque lo somos a nuestra manera y – a veces – al grado de casi no parecerlo (OVIEDO, 1995, p. 20).

Como peruano, talvez, não houvesse necessidade de Oviedo reivindicar o direito de

ser uma fração do Ocidente. Lembremos Borges quando disse que “todo latino-americano tem

a tarefa de traduzir o Ocidente”.

Para finalizar este tópico e entrar na análise do folhetim, ressaltemos ainda uma

questão. A da valoração estética da produção escritural do continente. Serão literárias ou não

literárias tais escrituras? Sofreu com isso a crônica jornalística, o romance-folhetim, o conto

breve publicado nos jornais, que mais tarde chegou aos livros, e os romances caleidoscópicos.

E antes de todos esses, as Crônicas do descobrimento. Catalogada como documento histórico,

e depois como Literatura de Informação, essas crônicas tiveram seu valor literário contestado.

O próprio Afrânio Coutinho, ao estabelecer que a literatura brasileira começa quando o

primeiro português pôs os pés aqui e quis ficar, e argumentando que a periodização deveria

ser estética, sofreu o contra-argumento de que esse europeu fez crônica, nesse primeiro

período. E essa crônica, ou Literatura de Informação, não tinha valor estético-literário.

Portanto, não teríamos tido literatura nesse período. E aqui citamos a terceira conclusão de

Coutinho sobre a periodização por estilo:

A periodização estilística põe em relevo o caráter estético, a especificidade e autonomia da literatura. Para quem defende esse conceito a arte é estilo, oriundo da criação ou transformação de formas; o objeto estético, a obra de arte, é um todo, um universo auto-suficiente, com uma forma e uma estrutura, uma autonomia e uma finalidade internas, uma forma significante, bastando-se e existindo por si mesmo, com a sua verdade própria, não se colocando a serviço de nenhum outro valor, não tendo outra função além de sua própria, que é despertar o prazer estético (...) (COUTINHO, s.d., p. 24).

Guiar os seus trabalhos pelos parâmetros da periodização estética e pela valoração de

estilo de um ou outro autor, ou obras, classificando-os em grandes, medianos e medíocres

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escritores é o que vai fazer a grande maioria dos críticos e historiadores, que virão depois dos

debates suscitados por Antonio Candido e Afrânio Coutinho, no final de década de 1950. São

exatamente os conceitos de estilo, inteireza das obras, e valoração estética a partir de regras já

definidas que vão levar pessoas importantes do mundo da cultura oficial a ignorar, recriminar

e até combater, uma produção cultural forjada nas bordas. A escritura feita a partir da

imprensa de massa, que se converteu numa imprensa/literatura, e que teve o seu valor literário

reconhecido muito tardiamente. Em alguns casos, ainda se espera por isso. Vamos, pois, às

obras. Veremos qual tem sido a valoração estética que predominou sobre os romances de

folhetins.

2.3 O Folhetim no Brasil

No Brasil o folhetim se engastou com a cultura e foi muito fértil. Desde a sua base

até a sua crista a análise deve levar em conta que dessa relação da escrita com a imprensa

saíram obras de pura especulação e experimentação com a ficção, numa gradação de

realizações que chegou até feitura de algumas das grandes realizações estéticas da literatura

brasileira no século XIX. Memórias póstumas de Brás Cubas, por exemplo, publicado em

1881, no Rio de Janeiro, por Machado de Assis, é um romance-folhetim que poderia ser

tomado como exemplo representativo do período. Nele encontramos o aproveitamento da

tradição literária ocidental e a combinação das novas técnicas narrativas que o folhetim

propiciava no momento de sua criação. Por uma questão de método, a análise não deverá

desprezar as tentativas, os experimentos que não se converteram em sucesso, pois eles

serviram de ponto de passagem dentro do processo escritural. Trata-se, na verdade, de

considerar mais o processo do que obras ou autores decisivos para a culminação de um

período ou de um estilo literário. Devemos considerar, assim, não apenas os folhetins bem

realizados, que entraram para as histórias literárias, como também os que não passaram de

meras tentativas de incursão no novo gênero; e também os intermediários, medianos ou

medianeiros. Todos eles são mediadores dentro do sistema comunicacional dessa

imprensa/literatura.

Sabemos, através de pesquisas, como as que fizeram Marlyse Meyer e seu grupo de

pesquisadores, que os jornais do Rio de Janeiro, Alagoas, Pernambuco e até do Vale do

Paraíba, passam a publicar folhetins nacionais, alguns anos depois da chegada dos modelos

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vindos da França. Os primeiros folhetins brasileiros não são bem realizados, como já

dissemos, e uma leitura mais crítica das obras poderá demonstrar isso, mas o maior problema

é que não as poderemos ler com o olhar dos leitores apaixonados quando da publicação dos

capítulos ou fragmentos. Podemos constatar, hoje, dentro de outra lógica e outra paixão, que

com o tempo os folhetins vão ganhando personalidade e consistência artística. Com José de

Alencar os romances-folhetins atingem um alto nível de realização estética. Somados aos

trabalhos posteriores de Aluizio de Azevedo e Machado de Assis ele se assenta

definitivamente na história da formação literária do país. Veremos como o Brasil estava apto

não só para receber o folhetim, como também para dar uma resposta ao novo tempo da ficção

movida pela velocidade do telegrafo e das novas maquinas de impressão. Essa resposta

brasileira, ou atitude particular de criação escritural pode ser notada através da

experimentação literária que ocorre desde a chegada do folhetim no Brasil até o momento da

sua supressão nos jornais. E devemos levar em consideração que a sua queda nos jornais não

significou nunca a morte do gênero, apenas a migração do folhetim para o rádio e para a

televisão.

Figura 3 – Alexandre Dumas, travestido de mosqueteiro.

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No começo do ano de 1844, entre os romances franceses que o Jornal do Comércio

(Rio de Janeiro) anuncia está O filho do pescador, que teve seu começo como folhetim do

mesmo jornal em 1843. “Novela feita para o entretenimento de uma moça bonita, cuja ação se

passa no Rio, no lugar chamado Copacabana, composta por A. Teixeira e Sousa” (MEYER,

2005, p. 282). O anúncio especificava que havia narrativas ambientadas no cotidiano

nacional:

Vende-se um lindo folheto por 1$ onde há: Um roubo na Pavuna As duas infelizes Juiz de paz na roça. Na tipografia Imparcial de Paula Brito.

Logo em seguida o jornal passou a anunciar com destaque A Moreninha, de Joaquim

Manoel de Macedo. Meyer nos alerta que o jornal estava se preparando mesmo era para

acolher o folhetim francês que já havia chegado ao Brasil em 1838, com o primeiro ensaio no

gênero de Alexandre Dumas, O Capitão Paulo. Verificamos que desde a chegada do primeiro

folhetim em 1938, até a data do anúncio do jornal em 1944, temos uma série de folhetins

nacionais produzidos em apenas seis anos.

O Brasil acolhe o folhetim francês e vai traduzindo tudo para o português. Há uma

elite que lê em francês, o que se pode notar pela venda de livros nesse idioma, através dos

anúncios publicados também em francês nos jornais do Rio de Janeiro. Mas quando se

começa a traduzir os romances para o português, começa-se a ampliar o público leitor e

também a praticar a feitura desses romances.

Meyer recolheu um anúncio publicado em 26 de setembro de 1843 no Jornal do

Comércio, no qual se lia: “Quem tiver a obra Mystères de Paris, por Eugène Sue, e quiser

vendê-la, dirija-se à rua do Ouvidor, 87, loja de Mongie” (MEYER, 2005, p. 281). Havia

também a chegada de livros ao país, folhetins já publicados em livros, vindos nos navios. Para

que queria comprar a obra de Eugène Sue esse jornal? Para revender? Sendo o impressor

também livreiro, contando com a colaboração de escritores e tradutores amigos, é muito

provável que quisessem comprar a obra para traduzi-la e publicá-la em capítulos de folhetim

em português. Talvez a tipografia e a livraria tivessem apenas o interesse de atender uma

cliente fluente em francês. Talvez um cliente do sexo masculino, por que não? Os jornais

começam a publicar folhetins brasileiros que disputam, em português, as páginas em francês

dos folhetins importados. Há outras ocasiões em que as páginas francesas são traduzidas e

ambos disputam a preferência do público em português. É nesse ambiente de disputa

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linguística e tentativa de fixação do romance popular no Brasil que a língua portuguesa vai

evoluindo para se tornar o português brasileiro.

A historiografia literária fixou o ano de 1836 como o início do Romantismo no

Brasil, tendo como obra inaugural o livro Suspiros Poéticos e Saudades (poesia), de

Gonçalves de Magalhães, publicado naquele ano. Já na prosa a obra eleita para representar o

marco inaugural foi o romance-folhetim A Moreninha, de Joaquim Manoel de Macedo,

publicado em 1844. A Moreninha foi um fenômeno literário e de comunicação no país.

Sucesso de edição e de vendagem de romance num momento que a maioria das pessoas não

sabia ler no país, segundo o censo. Imaginemos uma roda de leitura formada no conforto de

uma sala, ou ao ar livre, na sombra de uma árvore, onde uma pessoa lê e as outras ouvem.

Podemos desconfiar que a literatura se dá também entre as pessoas que não sabem ler a

palavra escrita. Essa possibilidade lança areia na engrenagem do sistema proposto por

Antonio Candido, baseado em emissor, mediador, receptor, e fundamentado na quantidade. O

número de leitores é intangível. Como comensurar o número de leitores que os poemas

manuscritos e distribuídos nas ruas por Gregório de Matos teve? E os folhetos de cordel

impressos artesanalmente, ou com tipos gastos de pobres tipografias, sem catalogação na

Câmara do livro ou número de ISBN, quantos leitores alcançam? Por ora devemos acreditar

que é sempre mais do que imaginamos.

Figura 4 – Cena da telenovela “A Moreninha”, produzida e levada ao ar pela Rede Globo

de 20 de outubro de 1975 a 5 de fevereiro de 1976.

Nos livros escolares do currículo nacional brasileiro e nas antologias de estudantes a

prosa romântica começa com A Moreninha, obra de vestibular, inclusive. Se regredimos ao

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ano anterior à sua publicação, encontramo-nos com um livro relegado pela valoração estética

que se fez dele: O filho do pescador, já mencionado, escrito por Antônio Gonçalves Teixeira e

Sousa. Um romance-folhetim de 1843, editado no Rio de Janeiro pelo conhecido livreiro e

impressor Paula Brito. Por que A Moreninha foi aceita como obra inaugural da prosa no

romantismo e seu antecessor direto foi desprezado? O filho do pescador é o drama amoroso

de uma mulher chamada Laura, e um filho de pescador chamado Augusto. A moça é salva de

um naufrágio na então deserta praia de Copacabana, e passa a atormentar o seu ingênuo

salvador. Segue o estilo dos romances populares: sentimentalismo, prolixidade, muitas

lágrimas, linguagem retórica, suspenses e reviravoltas. Acusam o autor de ter a preocupação

com a condição do leitor recém-iniciado na leitura. Por isso, ele dá explicações constantes, e

faz retrocessos para relembrar fatos passados. Segue as receitas do folhetim ao retomar

sempre a última cena contada na data anterior antes de prosseguir. Praticamente todos os

folhetins tinham essa preocupação com o leitor.

A sua novidade em relação aos outros folhetins (europeus) está na temática. Teixeira

e Sousa introduz o universo popular de pescadores brasileiros na narrativa. Descreve um

litoral bucólico: praias desertas, rochedos, canoas, redes e salvadores de naufrágios. Tudo

com muita sentimentalidade. Estudiosos como José Veríssimo e Ronald de Carvalho

consideraram-no como o primeiro romance escrito no Brasil. Houve, na verdade, outros

romances escritos no Brasil antes deste de Teixeira e Sousa. Alfredo Bosi cita três novelas

históricas que o antecederam:

Sendo a questão das prioridades um dos pratos diletos da crônica literária, convém esclarecer em que sentido ela se atribui aqui ao romance de estréia de Teixeira e Sousa. Antes da publicação deste, saíram à luz, em 1839, três novelas históricas: Jerônimo Corte Real, crônica do século XVI, O aniversario de Dom Miguel em 1825 e Religião, Amor e Pátria; e, em 1841, uma novela sentimental de Joaquim Norberto, As duas Órfãs. Há, portanto, uma diferença de gênero... e de fôlego: as novelas históricas ou melodramáticas eram, via de regra, adaptação de folhetins franceses traduzidos então copiosamente. Só Teixeira e Sousa compôs um romance, embora, no fundo, adotasse os expedientes daqueles folhetins (BOSI, s.d., p. 111).

Bosi reconhece a estrutura de romance para a obra de Teixeira e Sousa, o que lhe

daria o status de primeiro romance brasileiro, mas não reconhece qualidades artísticas

suficiente na obra para que ela venha a ocupar esse lugar. Na sua História Concisa da

Literatura Brasileira o romance-folhetim de Teixeira e Sousa não merece ocupar o capítulo

destinado aos romancistas. A obra do romancista não tem valor estético, segundo seu ponto de

vista, servindo apenas para marcar a periodicidade da escritura de ficção romanesca, portanto,

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um objeto de interesse para o historiador, mas não para o crítico literário. Bosi coloca-o,

então, numa espécie de subcapítulo intitulado Historiografia. Diz ele, sobre Teixeira e Sousa:

Poderia ser mencionado no capítulo de Almeida, Bernardo Guimarães e Taunay. Mas prefiro não vê-lo ao lado destes por duas razões: uma é a inegável distância, em termos de valor, que os separa de todos (Teixeira é muito inferior ao próprio Macedo); a outra diz respeito à situação do romance na face inicial da cultura romântica. Para a poesia, gênero nobre, foram grandes modelos franceses e portugueses (Lamartine, Hugo, Herculano, Garret) que inspiraram um Magalhães e um Porto Alegre, não vindo ao caso, a esta altura, o porte dos imitadores. Mas para o romance, nem Stendhal nem Balzac, nem Staël nem Manzoni, nem mesmo os lidíssimos Scott e Chateaubriand, lograram imprimir, nesse primeiro tempo, o modelo ficcional a ser reproduzido. É a subliteratura francesa que, no original ou em más traduções, vai surgir a um homem semiculto, como Teixeira e Sousa, os recursos para montar as suas sequências de aventuras e desencontros (BOSI, s.d., p. 111-112).

Bosi não perdoa Teixeira e Sousa pela sua origem humilde de “filho de vendeiro que

chegou às duras penas ao posto de mestre-escola, depois de haver padecido os mais

desqualificados trabalhos” durante a sua vida. Chega a elogiar o dr. Macedo, autor de A

Moreninha, como homem culto e de mais recursos. De fato, Macedo era um moço muito bem

nascido, de família abastada. Pôde estudar medicina na Universidade do Rio de Janeiro. Pôde

ir de passeio à Europa, ainda jovem, para completar sua educação, como era comum aos

filhos da elite da época. Entretanto, Meyer nos mostra como O filho do pescador serviu de

incentivo e de baliza para o dr. Macedo compor o seu A Moreninha, no ano seguinte ao

lançamento do livro de Teixeira e Sousa. Voltaremos a considerar a estética narrativa de O

filho do pescador e A Moreninha mais adiante. Agora precisamos copilar algumas referências

autorizadas pelas pesquisas sobre o folhetim, para depois discutirmos a escritura brasileira

dentro do gênero. Meyer nos diz:

A década de 1840 marca a definitiva constituição do romance-folhetim como gênero específico de romances. Eugène Sue publica no Journal des Débats entre 1842 e 1843 Os mistérios de Paris. Em 1844 sai, do mesmo Sue, O judeu errante; de Dumas, Os três mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo; de Balzac, a continuação folhetinesca de As ilusões perdidas, ou seja, Esplendores e misérias das cortesãs. A invenção de Dumas e Sue vai se transformar numa receita de cozinha reproduzida por centenas de autores. A fórmula tem outra conseqüência: uma nova conceituação do termo folhetim, que passa então a designar também o que se torna o novo modo de publicação de romance. Praticamente toda a ficção em prosa da época passa a ser publicada em folhetim, para então depois, conforme o sucesso obtido, sair em volume. É um modo de publicação que será também o de Alencar, Macedo, Machado, sem que no entanto tais romances sejam forçosamente romances-folhetins. Confusão muitas vezes praticada. É evidente que tal modo de publicação, com suas exigências próprias de cortes de capítulo, de

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fragmentos que todavia não destruam a impressão de continuidade e totalidade, haveria que influenciar a estrutura de todo romance a partir de então. George Send se queixa de não saber cortar direito o romance, ao passo que Balzac, que tem a maior admiração por Eugène Sue, não hesita em pedir-lhe conselhos. O personagem de Peri foi certamente influenciado pela caracterização do herói de folhetim, o sucesso de O mulato no seu tempo deveu muito à maneira folhetinesca usado por Aluizio de Azevedo para retratar e denunciar a sociedade de São Luis (MEYER, 2005, p. 63).

É interessante notar que um escritor do porte de Balzac peça conselhos sobre

problemas narrativos para um folhetinista como Eugène Sue, considerando que Sue não

gozava da condição de romancista como Alexandre Dumas ou Balzac. Ele era apenas um

folhetinista, alguém que começou a escrever segundo a nova proposta dos editores de jornal,

os inventores do gênero. O folhetim francês, chamado de subliteratura por Bosi, teria sido a

única fonte de formação para Teixeira e Sousa, e os outros escritures mais cultos, segundo seu

critério, como Taunay, Macedo, José de Alencar, teriam tido acesso aos modelos mais finos.

Por outro viés, Meyer nos mostra o quanto o folhetim esteve ligado à vida desses escritores

todos. Vemos jovens como Taunay e Macedo totalmente absortos na leitura de folhetins. De

José de Alencar basta recordarmos sua pequena autobiografia Como e porque sou romancista

para vermos como o folhetim acompanhou a sua vida desde menino.

Segundo a historiografia literária brasileira o romantismo no Brasil começa em 1836,

com a publicação de Suspiros Poéticos e Saudades, de Gonçalves de Magalhães. As obras da

literatura romântica no Brasil foram divididas em várias tendências: a) o indianismo e o

nacionalismo; valorização do índio e da nossa fauna: b) o regionalismo (ou sertanismo), que

aborda o homem brasileiro. O período literário, segundo essa classificação, termina em 1881

com o início do Realismo. O que importa dizer nessa visada é que o romantismo começou

com as obras do folhetim, que adentraram o realismo e o chamado realismo-naturalismo, onde

já se aponta para a vida urbana numa cidade brasileira, ou até mesmo para uma comunidade

quase fechada num espaço determinado, onde vemos a redução do espaço cênico para um

cortiço, ou para uma Casa de Pensão. Evolui-se do espaço idílico da “deserta praia de

Copacabana”, cenário de O filho pescador, e do espaço campestre, falso bucolismo, de A

Moreninha, para a cena urbana, dos folhetins de Aluizio de Azevedo e de Machado de Assis,

onde a crônica jornalística vai entrar para retratar os fatos do cotidiano, tanto da cidade alta

como da cidade baixa, para evitar a dicotomia centro vs. periferia, por mais ordinário eles

sejam. José de Alencar já havia discutido a problemática do campo vs. cidade com a sua

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proposta de união do território nacional, cobrindo cada região com uma obra literária.

Vejamos uma cronologia simplificada, contendo algumas das principais obras do folhetim,

que formam o romantismo e o realismo brasileiros:

Suspiros Poéticos e Saudades, 1836 (poesia).

O filho do pescador, 1843.

A Moreninha, 1844.

Cinco Minutos, 1856.

A Viuvinha, 1857.

O Guarani, 1857. Todos no Correio Mercantil ou Diário do Rio de Janeiro.

Lucíola, 1862.

Senhora, 1875.

A Escrava Isaura, 1875, pela Casa Garnier, Rio de Janeiro.

Memórias Póstumas de Braz Cubas, 1880, como folhetim, na Revista Brasileira, e em 1881

como livro.

O Mulato, 1881.

Casa de pensão, 1884.

O Cortiço, 1890.

Quincas Borba, 1891.

Dom Casmurro, 1900.

Entre essas obras, nos faz notar Meyer, Quincas Borba não é um folhetim, embora

tenha sido publicado em fascículos nos jornais, antes de sair em livro. A obra não possui os

cortes característicos de um folhetim, poderia haver sido escrita inteira e depois fragmentada

nas páginas dos jornais. Isso se deve ao fato de o folhetim haver assumido a preferência dos

leitores e dos editores. Na Europa, romances já consagrados como livros eram republicados

em forma de folhetim. O processo brasileiro não apresenta novidade nesse quesito. A

novidade sai da grande produção que a experimentação escritural enseja nos principais jornais

do país.

A ofensiva folhetinesca nos jornais da década de 1840 impulsiona os avanços

tecnológicos deste meio, fazendo com que a ficção assuma um papel de mediadora no avanço

da própria imprensa. Meyer chama a nossa atenção para os anúncios que eram publicados nos

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jornais, entremeados com a própria ficção, que podem confirmar essa afirmativa. Recolho

apenas um deles, por ora, bastante significativo. Refere-se ao edital de 3 de janeiro de 1842:

Desde 1839 os melhoramentos do Jornal do Comercio têm ido em continuado progresso. Aumentamos o formato da folha, chamamos para a colaboração os mais hábeis redatores, demos um Jornal aos domingos, envidamos enfim todas as nossas forças para o melhoramento moral e intelectual de nossa folha. Cumpre porém confessá-lo: o aumento de circulação do jornal não compensou o acréscimo da despesa nem o extraordinário trabalho que exige uma folha como o Jornal do Comercio. Nesta circunstancia, temos de escolher de duas uma: ou diminuir a despesa, ou aumentar receita. Julgamos que os nossos leitores antes queiram concorrer com um pequeno aumento do preço das assinaturas do que ver o jornal retroceder ao estado em que se achava em 1838. Por conseqüência, a principiar de 1º de janeiro de 1842, é elevada a 20$ por ano (em vez de 16$000). (Jornal do Comercio, 3 de janeiro de 842. In: MEYER, 2005, p. 282-283).

Os jornais do país se lançam ao mercado com o folhetim a bordo. A ficção

folhetinesca serve de bússola, apontando a direção mais propicia para o encontro com o

público leitor. O folhetim também serve de âncora, indicando as zonas de ancoragem, nas

quais os jornais devem trabalhar no sentido de ofertar melhore serviços de comunicação:

melhora no tamanho das folhas, na diagramação, no conteúdo de ficção, e nas imagens

ilustrativas.

E a prova de que a ficção no rodapé é indispensável para qualquer nova empreitada jornalística está no Jornal do Brasil, fundado em 1891, que acolherá grandes nomes da política e das letras, mas não escapa à regra. Publica no jornal e na coleção “Biblioteca do Jornal do Brasil” muitos folhetins de Montépin e autores do gênero, e, ainda em 1910, o inarredável A toutinegra do moinho de Richebourg (MEYER, 2005, p. 297).

Vemos como até entrado o século XX os jornais continuam publicando folhetins

brasileiros, sem esquecer os velhos modelos franceses, ou alguns ingleses que sempre

chegaram por aqui através de traduções francesas. No século XIX sabemos que o folhetim não

se limitou às capitais brasileiras, onde a produção nacional sempre dividiu espaço com os

desejados internacionais.

Sondagens rápidas nos jornais do interior, de Campinas, de Guaratinguetá, no Monitor Campista, na abundante produção jornalística do século XIX em Ouro Preto, nos jornais de Recife, de Salvador, confirmam a presença do folhetim e o eterno retorno de autores como Dumas, Richebourg, Ponson, Ohnet, Montépin etc. Focalizemos, por exemplo, a Gazeta de Campinas. Entre 1869 e 1887 encontram-se romances de Bernardo Guimarães, Machado de Assis, Júlio

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Ribeiro, Camilo, Ramalho Ortigão e Eça (Os mistérios da estrada de Sintra), Otávio Feuilett, romances de Maria Amália Vaz de Carvalho, e um Esboço de um romance brasileiro, Os farrapos, de L. A. L. de Oliveira Bello. Mas estão em companhia dos indefectíveis Alexandre Dumas, Richebourg, Mile d`Aghonne, Mery, Boisgobery, Ponson du Terrail e Geroge Ohnet com o “Serge Panine em versão do francês por d. Guilhermina Santos” (MEYER, 2005, p. 297).

Meyer formula a questão sobre a produção folhetinesca nacional indagando: em que

medida ela realmente “lembrava o gênero consagrado caracterizado pela extensão, pelas

infindas e atraentes peripécias se alongando no tempo, desenvolvendo uma temática quer de

aventuras, quer de capa e espada, quer histórica, quer judiciário-policialesca, quer... tudo

misturado?” (MEYER, 2005, p. 303).

Notamos que a resposta não pode ser única. Os folhetins nacionais possuem virtudes

e defeitos, como qualquer outro folhetim francês ou inglês. Mas por serem baseados

diretamente nos modelos franceses, chega-se muitas vezes a uma paródia mal realizada dos

modelos, quanto se quer imitar fielmente; em outros casos a paródia é muito bem realizada e

um dos valores dessas obras, destacamos, consiste exatamente na sua constituição paródica.

Meyer compara muitos desses folhetins da experimentação com as novelas, ou romances, dos

primeiros escritores brasileiros, aquelas três novelas históricas citadas por Bosi, como

antecessoras de O filho do pescador, e outras obras estudas por Aderaldo Castelo, ou editadas

por Barbosa Lima Sobrinho, para concluir que muitas delas não eram realizações desajeitadas.

Diz Meyer:

os folhetins nacionais ainda são tão canhestros quanto as novelas daqueles “precursores” estudados por José Aderaldo Castello ou editados por Barbosa Lima Sobrinho, sem falar no assumido romance-folhetim do primeiríssimo mas “tão ruinzinho que parece bom” Teixeira e Sousa. Canhestros ainda aqueles folhetins bem mais tardios, que teriam permitido supor uma certa tarimba adquirida pelos seus autores. É o caso, entre tantos, de A filha do barão, publicado no Diário das Alagoas entre 20 de novembro e 24 de dezembro de 1885, e janeiro a fevereiro de 1886, habilmente interrompido num suspense e enfeixado em volume que respondia ao enigma deixado no ar. É obra de Pedro Nolasco, autor de várias outras noveletas com pretensões a folhetim, saídas em jornal. Considerado o primeiro romance de costumes alagoano, reza a página de rosto: “A filha do barão, estudos românticos baseados em fatos da história da província. Interessante narração que encerra tradições pouco vulgares” (MEYER, 2005).

Pedro Nolasco publicou tantas novelas nos jornais de Alagoas, das quais não temos

notícias, a não ser por edições críticas especializadas. Teixeira e Sousa, além de O filho do

pescador, escreveu muita coisa. Bosi fez um breve inventário de suas obras, ainda que

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lançado como notas de rodapé na sua História Concisa. Vale a pena reproduzir uma destas

notas na íntegra:

Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa (Cabo Frio, 1812 – Rio, 1861. Filho de um vendeiro português e de uma mestiça, exerceu sempre ofícios modestos, começando como carpinteiro, e chegando a duras penas a mestre-escola e a escrivão. Deixou: O Filho do Pescador, Romance Original Brasileiro (1843), Tardes de um Pintor ou As intrigas de um jesuíta (1844), Gonzaga ou A Conjuração de Tiradentes (1848-51), A Providência (1854), As Fatalidades de Dous Jovens. Recordações dos Tempos Coloniais (1841–42). V. Aurélio Buarque de Holanda, “O Filho do Pescador, Rio, O Cruzeiro, 1952, pp. 21-36) (BOSI, s.d. p. 111. Nota de rodapé n. 76. Grifos do autor).

Houve uma intensa publicação de romances, ensaios e meras opiniões sobre ficção

literária que eram publicadas em jornais e revistas, mas nunca chegaram aos livros. Esses

textos foram lidos, comentados, debatidos, e hoje estão esquecidos. Outros chegaram a ser

editados em livros, mais de uma edição, mas foram esquecidos. As intrigas de um jesuíta,

segundo livro de Teixeira e Sousa, sai no mesmo ano de A Moreninha, mas não figura nas

antologias literárias que começam a sair a partir de meados do século XX.

Vicente Félix de Castro, autor do Vale do Paraíba, nascido em Areias, publicou o

romance-folhetim Os mistérios da roça, no jornal de Guaratinguetá. Na mesma cidade o

romance foi retomado em livro em 1861, fase de experimentação e gestação do romance

brasileiro. Meyer diz que encontrou o mesmo romance com outro título: “Miséria da

atualidade, três alentados volumes, republicados em São Paulo pela tipografia de Azevedo

Marques em 1864” (MEYER, 2005, p. 304). Félix de Castro ainda produziu Histórias do

voluntário da pátria, publicado em Bananal, em 1896; Os dramas do sangue, ou Os

sofrimentos da escravidão, em dois tomos; A filha do mistério; Herança usurpada etc. Vemos

que Eugène Sue inspirou muita gente com os seus Mistérios de Pais. No Rio de Janeiro

tivemos Os mistérios do Brasil, no Vale do Paraíba esse Os mistérios da Roça, Eça de

Queirós apareceu nos jornais brasileiros, como já vimos, com Os mistérios de Sintra, Camilo

Castelo Branco veio com Os mistérios de Lisboa; no Pernambuco, Carneiro Vilela, fundador

da Academia Pernambucana de Letras, publicou Os mistérios da rua da aurora e Os mistérios

do Recife. Enfim, Os mistérios de Paris era logo parodiado em cada região do Brasil que se

lançava um jornal. Meyer verificou, na versão parodiada de Félix de Castro, que a marca de

Eugène Sue não está somente no título: “Os mistérios da roça (ou Mistérios da atualidade) se

abrem sob o signo daquela atmosfera sombria que dá a partida aos de Paris, reforçada por

provincianos arroubos e tropicais tufões, não faltando um misterioso personagem francês”

(MEYER, 2005, p. 305).

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Reproduzimos um trecho da obra, citado por Meyer, por dois motivos. Primeiro, não

tivemos acesso aos exemplares de Os mistérios da roça. Segundo, o trecho citado por ela está

perfeito para mostrar um português “macarrônico”, mesclado com francês, além da atmosfera

que podemos sentir. Transcrevemo-no com o recuo usual para citações de mais de três linhas

para que possamos ver melhor as pausas e os diálogos:

Era uma noite horrorosa. Amiudados trovões e sinistros relâmpagos amedrontavam os habitantes da cidade de ***. As nuvens da tempestade, que terrivelmente se aglomeram no firmamento, vão formando um denso véu negro em que as fusiloas em ziguezague riscam, e se cruzam em todas as direções, e a atmosfera cheia de peso e tomada de eletricidade, revoltosa parece sair de seus eixos por isso que um grande rumor surdo e prolongado ao longe, as rajadas do vento precursor do tufão horrível da borrasca, os coriscos estremecendo a terra, tudo é como a ameaça de um cataclismo querendo acabar o gênero humano! Entre as trevas de tão medonha noite, dois vultos caminham apressados por uma das ruas da cidade, e, como aproveitando o clarão dos relâmpagos que os guiava para algum lugar, em poucos momentos eles pararam junto à casa de um personagem do nosso romance, Hipólito Corimbá. Um desses vultos bateu de rijo à porta do moedeiro falso. Ela não demorou-se em abrir, e fechar-se logo que os noturnos visitantes de Hipólito entraram. Daí a pouco tais vultos se achavam n a sala do ladrão. Eram Marcelo Rodrigues e Jacques Crepin. Corimbá olhando um instante para seus sócios exclamou: – São animosos! pois a noite está de meter medo e não os esperaba hoje aquí. – Sacrebleu! mim, sr. Corimbá, está maintenant fique uma valentão! l'orage que gronde e quer acabe tudo non faz abale mon coeur (CASTRO apud MEYER, 2005, p. 305).

Vemos pelo trecho citado que Félix de Castro está tentando criar um ambiente de

desequilíbrio para o ser humano através da inserção de fenômenos da natureza, forçando-os

contra o homem. Apesar da inspiração na obra de Sue para criar medo, terror e suspense, não

podemos descartar a relação com os cronistas que narravam tormentas e situações difíceis

vividas pelas suas tripulações. O mesmo expediente será usado pelo argentino Echeverría na

construção do ambiente narrativo de El matadero, como veremos no folhetim na Argentina. A

diferença é que a obra de Echeverría se pretende realista, por isso situa o enredo de sua ficção

debaixo de uma tormenta na cidade real de Buenos Aires, enquanto Félix de Castro fala de

uma cidade ***, sem ambientação real.

Aluízio de Azevedo também participou dos mistérios e tentou desvendá-los.

Escreveu Os mistérios da Tijuca (publicado em 1882 em Folha Nova), título inicial da

Girândola dos amores, romance, segundo Meyer, “sem os necessários atrativos folhetinesco”,

diria ela, “sem atrativos tout court.” Aluízio de Azevedo, “romancista de cepa”, teria cedido

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aos editores, e sido “obrigado a reduzir certo projeto criador amplo adotando-o aos módulos

pueris do gosto do público” (MEYER, 2006, p. 306).

A intromissão do narrador vai truncando a leitura e causando desespero para o leitor ávido de desvendar acontecimentos. Mas o tom bem humorado salva o romance. Aluízio, por intermédio de constante intromissão do narrador, vai-se situando em relação ao romance comestível, o que o leva a colocar a questão do “alto” e do “baixo” romance. Isso torna o livro interessante para a crítica, mas seria de ingestão difícil para o aflito aficionado do “vero” folhetim, não fora o tom bem humorado (MEYER, 2006, p. 306).

No capítulo LXI, temos um bom exemplo desse truncamento de que fala Meyer.

Podemos notar como Aluízio Azevedo propõe uma discussão sobre o próprio romance dentro

do romance. Um discurso dissertativo, ou uma metalinguagem.

Leitor! parece que te vás pouco a pouco adormecendo com o descaminho que demos ao filamento primordial deste romance. [...] Espera, tem paciência, acorda! Em breve Gregório estará de novo em tua presença. Clorinda reaparecerá […] se te sentes aborrecido […] fala-nos com franqueza em uma carta [...] que nós tomaremos a heróica solução de apressarmos o passo e quanto antes te lançaremos ao nariz o desfecho da obra [...] Já não estamos no tempo em que o romancista podia empilhar todas as situações que lhe surgissem à fantasia, sem dar contas disso ao leitor. Hoje é preciso dizer os porquês, é preciso investigar, esmiuçar as razões que determinaram tais e tais cenas. – Mas dessa forma – dir-nos-á o leitor – o romance de que fala V. M. não será um romance, isto é, uma novela, um enredo, mas sim uma série de pequenas dissertações [...] – Ai, ai! – responderemos nós. – É isso mesmo. [...] Diremos logo com franqueza que todo nosso fim é encaminhar o leitor para o verdadeiro romance moderno. Mas [...] sem que ele dê pela tramóia. […] É preciso ir dando a cousa em pequenas doses […] Um pouco de enredo de vez em quando, uma ou outra situação dramática [...] para engordar, mas sem nunca esquecer o verdadeiro ponto de partida – a observação e o respeito à verdade. Depois, as doses de romantismo irão gradualmente diminuindo, enquanto as de naturalismo irão se desenvolvendo; até que, um belo dia, sem que o leitor o sinta, esteja completamente habituado ao romance de pura observação e estudo de caracteres. No Brasil […] os leitores estão em 1820, em pleno romantismo francês, querem o enredo, a ação, o movimento; os críticos porém acompanham a evolução do romance moderno e exigem que o romancista siga as pegadas de Zola e Daudet. Ponson Du Terrail é o ideal daqueles; para estes Flaubert é o grande mestre. A qual dos dois grupos se deve atender? Ao de leitores ou ao de críticos? Estes decretam, mas aqueles sustentam. Os romances não se escrevem para a crítica, escrevem-se para o público, para o grosso público, que é o que paga. (AZEVEDO apud MEYER, 2005, p. 306-307).

Interessante notar, ainda nessa produção de Aluízio de Azevedo, é o fato de a obra

ser produzida um ano depois da grande realização de O mulato, sucesso de vendagem e de

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repercussão a partir de sua recepção. Meyer aponta que o grande êxito de O mulato foi

conseguido a partir do uso das técnicas do folhetim. Por questão de método, não estenderemos

a análise sobre as obras bem estudadas e correntemente lidas pelo grande público de hoje

como O Guarani, Senhora, O mulato, O cortiço, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom

Casmurro. Estes são romances-folhetins da literatura brasileira, bem conhecidos do grande

público, e de qualidade comprovada, não só pelos estudos críticos, mas pelos leitores que

continuam lendo-os e encontrando prazer na leitura ao longo dos anos. E o mais novo deles,

Dom Casmurro, tem já mais de cento e dez anos. Falaremos deles por algum viés, ligando-os

a alguns eixos temáticos. Voltemos ao Aluízio de Azevedo e sua relação com o grande

público, na obra Memórias de um condenado, que é também o título de um folheto de cordel.

A obra saiu em folhetins na Gazetinha, em 1882, e foi republicado com o título de A condessa

Vésper. Meyer vê nessa empreitada de Aluízio de Azevedo “outra tentativa de escrever para o

grosso público (ou público grosso?)” (MEYER, 2005, p. 307. Grifos nossos).

Figura 5 – Edição do folhetim “Memórias de um Condenado” em livro pela Garnier (1902),

mudando o título para “Condessa Vésper”.

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Figura 6 – Página do folhetim “Memórias de um condenado” no jornal Gazetinha de 1882.

Aluízio de Azevedo tinha consciência de suas capacidades como romancista,

cartunista e dramaturgo. Desenhava personagens para os jornais, criava cenas engraçadas,

depois escrevia romances com as caricaturas que havia publicado nos jornais. Sabedor de suas

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qualidades artísticas, ele publicou o folhetim A mortalha de Alzira, na Gazeta das Notícias,

em 1891, sob o pseudônimo de Victor Leal. O folhetim trazia um grande apelo sentimental,

destinado a uma grande vendagem. Meyer se admira dessa publicação do autor, “já depois do

escandaloso sucesso de O cortiço” (MEYER, 2005). O que temos é uma estratégia da

empresa jornal para ampliar os lucros na venda da literatura de ficção. Desse modo os jornais

vão oferecendo ao mesmo tempo os romances-folhetins bem elaborados e os outros não tão

elaborados, e fazendo a mediação entre a obra de ficção e o público leitor.

Devemos ainda destacar a produção de folhetins feita a quatro mãos, uma mania que

tomou conta dos escritores e homens de imprensa à certa altura do período histórico do

folhetim brasileiro. Meyer analisou essa produção e mostrou que o pseudônimo Victor Leal,

usado por Aluízio de Azevedo, converteu-se num autor imaginário, usado para assinar a

parceria de vários escritores bastante conhecidos. Faço mais uma citação para ser direto e não

parodiar:

Este foi um imaginário autor cujo nome recobriu o de vários escritores que, à moda do tempo, se reuniram para fazer romances coletivos. Por exemplo, o célebre O esqueleto, de Olavo Bilac e Pardal Mallet, publicado no Diário de Notícias, março de 1890, ou aquele que se lhe seguiu no mesmo jornal, Paula Mattos ou O monte de Socorro, composto pela mesma dupla mais Coelho Neto e Aluízio de Azevedo. Romances que se podem situar no que seria uma construção bem brasileira do folhetim, numa veia análoga à de uma categoria de jornais que se auto-intitularam “joco-sério”, melhor dizendo, “joco-jocosos11” (MEYER, 2005).

Lembremos que certa veia humorística está presente nos jornais do continente desde

aquela Gaceta de México, jornal de política e religião, que publicava sátiras mescladas ao seu

conteúdo oficial, e que acabou sendo fechada, alegando publicamente que fechava as portas

pela falta de solvência para manter os custos de sua dispendiosa logística. Voltemos agora a

uma última comparação entre O filho do pescador e A Moreninha. Esta última, bastante

conhecida do público brasileiro, não só pela leitura obrigatória que os vestibulares das

grandes universidades brasileiras impõem aos alunos, como pela transcriação do romance

para a teledramaturgia. Quem nunca assistiu à telenovela homônima A Moreninha? O

romance tem todos os ingredientes para uma telenovela. Felipe, um jovem estudante, convida

seu amigo Augusto, também estudante, para passar férias na casa de sua avó, na Ilha de

Itaparica. Na ilha estarão três jovens moças pelas quais o jovem Augusto poderá se apaixonar.

Duas primas de Felipe, uma tem cabelos negros e é pálida, tem dezessete anos; a outra, um

11 Sobre os jornais jocosos e os folhetins humorísticos ver o trabalho “Voláteis e versáteis. De variedades e folhetins se fez a chronica” (In: MEYER, 1998).

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pouco mais nova, é loura de olhos azuis, e tem bochechas rosadas. A terceira se chama

Carolina, é irmã de Felipe, o anfitrião, e tem apenas quatorze anos de idade. É morena,

obviamente. Augusto se apaixonará por ela e será correspondido. O amor encontrará

obstáculos porque Augusto, que se diz volúvel, incapaz de se apaixonar, é descoberto como

um romântico que se afasta dos amores para manter a promessa de se casar com um amor da

infância, ao qual ele havia se comprometido em juramento. Carolina, a Moreninha, manda que

ele se case com aquela a quem havia jurado na infância, e depois revela que ela é essa pessoa.

Final feliz. Como podemos ver é bastante pueril. Mas Macedo intriga as leitoras, ou leitores,

com as atitudes do insensível Augusto, que faz uma aposta com Felipe dizendo que ele não

amará uma mesma mulher por mais de quinze dias. No enredo há uma aposta, um jogo no

amor. Uma paixão, um impedimento, e um desenlace surpreendente com final feliz. Toda uma

sequência de enredo para uma telenovela romântica.

Diferentemente de Teixeira e Sousa, Macedo dá mais atenção para a construção dos

personagens, seus diálogos, suas emoções. Vejamos parte do capítulo XXI, no qual Augusto e

a Moreninha estão caminhando de braços dados por um jardim e acabam revelando a paixão

que sentem um pelo outro. Ele com as palavras, ela com a gestualidade:

Uma vez Augusto e Carolina, que iam adiante, ficaram distantes do par que os seguia. A mão da bela Moreninha tremia convulsamente no braço de Augusto e este apertava às vezes contra seu peito, como involuntariamente, essa delicada mão; alguns suspiros vinham também perturbá-los mais e havia dez minutos eles não tinham dito uma palavra. Em uma das ruas do jardim duas rolinhas mariscavam; mas ao sentirem passos, voaram e posando não longe, em um arbusto, começaram a beijar-se com ternura; e esta cena se passava aos olhos de Augusto e Carolina!... Igual pensamento, talvez, brilhou em ambas aquelas almas, porque os olhares da menina e o do moço se encontraram ao mesmo tempo e os olhos da virgem modestamente se abaixaram e em suas faces se acendeu um fogo, que era o do pejo. E o mancebo, apontando para ambos, disse: – Eles se amam! E a menina murmurou apenas: – São felizes! – Pois acredita que em amor possa haver felicidade? – Às vezes. – Acaso já tem a senhora amado? – Eu?!... e o senhor? – Comecei a amar há poucos dias. A virgem guardou silêncio e o mancebo depois de alguns instantes, perguntou tremendo: – E a senhora já ama também? Novo silêncio; ela pareceu não ouvir, mas suspirou. Ele falou menos baixo: – Já ama também?

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Ela baixou ainda mais os olhos e com voz quase extinta disse: – Não sei... talvez. – E a quem?... – Eu não perguntei a quem o senhor amava. – Quer que lho diga? – Eu não pergunto. – Posso eu fazê-lo? – Não... não lho impeço. – É a senhora. D. Carolina fez-se cor-de-rosa e só depois de alguns instantes pôde perguntar, forcejando um sorriso: – Por quantos dias? – Oh! para sempre!... respondeu Augusto, apertando-lhe vivamente o braço. Depois ainda continuou: – E a senhora não me revela o nome feliz?... – Eu não... não posso... – Mas por que não pode? – Por que não devo. – E nunca o dirá?! – Talvez um dia. – E quando?... – Quando estiver certa que ele não me ilude. – Então ele é volúvel?... – Ostenta sê-lo... – Oh!... pelo céu!... acabe de matar-me!... basta o nome pronunciado bem em segredo, bem no meu ouvido, para que ninguém o possa ouvir, nem a brisa o leve... pelo céu!... – Senhor!... – Um só nome lhe peço!... – É impossível!... eu não posso... – Se eu perguntasse? – Oh!... não!... – Serei eu?... A virgem tremeu toda e não pôde responder. Augusto lhe perguntou ainda, com fogo e ternura: – Serei eu?... A interessante Moreninha quis falar... não pôde, mas, sem o pensar, levou o braço do mancebo até o peito e lhe fez sentir como o seu coração palpitava. – Serei eu?... perguntou uma terceira vez Augusto, com requintada ternura. A jovenzinha murmurou uma palavra que pareceu mais um gemido do que uma resposta, porém que fez transbordar a glória e o entusiasmo da alma do seu amante; ela tinha dito somente: – Talvez. (MACEDO, 2010, p. 122-124).

A ingenuidade e o primeiro amor juvenil do casal que acabamos de ver em cena

termina em casamento, contrastando com o romance anterior, de Teixeira e Sousa. O filho do

pescador se filia aos folhetins mais dinâmicos do ponto de vista das ações. O que importa no

enredo são os acontecimentos, as direções em que se movem os personagens e os novos

sucessos. Não faltam raptos, traições, incêndios, assassinatos e vinganças. Nem a dicotomia

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do bem contra o mal. Estaria mais próximo dos folhetins que Meyer classificou de “miséria

pouca é bobagem”. Não vamos transcrever nenhuma passagem do livro porque

acontecimentos podem ser resumidos em poucas linhas, mas demoram páginas para se

transcrever um incêndio ou uma sequência de cena sobre um assassinato. É interessante notar

que as faltas cometidas por Teixeira e Sousa tais como não cunhar bem os personagens (usar

arquétipos), não se preocupar com a elaboração da fala dos personagens e com os diálogos,

não trabalhar a intensidade de suas emoções interiores, e outras faltas estéticas que lhe

atribuem como inspirar-se nos folhetins, apontam para outra proposta: a de narrativa pronta,

ou quase pronta para o roteiro de cinema ou para a telenovela. Todos os elementos estão

dados para isso a partir da sequência de acontecimentos, que não precisarão seguir a ordem

linear nem no cinema nem na televisão. Os elementos visuais, mais importante do que os

diálogos na narrativa visual, estão bem explorados. A intensidade das emoções interiores deve

ser trabalhada pelos diretores para que os atores as exteriorizem. Recuperemos o resumo do

livro, ou a sinopsy.

O filho do pescador conta a história de Laura, uma personagem complicada e

leviana, que fora roubada da mãe por Sérgio, quando tinha apenas treze anos. Tempos depois

é abandonada por seu raptor, que leva consigo um filho dessa união. Laura encontra novo

amante com quem estava quando do naufrágio de um barco nas costas do Rio de Janeiro. A

moça é salva por Augusto, filho de um pescador e motivo do título do livro, ambos se casam

(o amante morrera no naufrágio). Contudo, ela se envolve com Florindo, Marcos e Emiliano.

Ocorrem, então crimes vários, desde incêndio a mortes. E o romance encaminha-se para um

final surpreendente.

Analisemos as possibilidades para um melodrama. A apresentação dos personagens e

a dor da mãe que perde uma filha de treze anos para um raptor. Primeiro problema, ou

primeiro impedimento, como são chamadas as barreiras que os personagens precisam vencer

nos roteiros de cinema. A menina que se torna mãe e é abandonada pelo amante, que leva o

filho da união com ele. Outra vez a dor de uma mãe separada do filho. Segundo impedimento.

A moça arruma novo amante, mas naufraga na praia de Copacabana e morre-lhe o amante.

Terceiro impedimento. Lembremos que o herói deve vencer os impedimentos para ser feliz, e

que o narrador (roteirista) pode botar quantos impedimentos ele quiser para complicar a vida

do herói no percurso do enredo. Conhecer um novo amante são os fatos que levam a heroína

Laura para adiante na narrativa. A moça é salva por um jovem humilde, filho de pescador, seu

novo amante. A moça tem novo motivo que a leva para frente. Mas aí surge um ponto de

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virada.12 Ela que já sofreu e poderia haver aprendido com o sofrimento, se mostra leviana e

apta para trair o amante com outros homens. Novo impedimento e depois a solução. A

solução nas técnicas de roteiro é uma maneira de acabar a narrativa cinematográfica ou

televisiva, não quer dizer o final da história. Neste caso, o roteirista apresenta um final

surpreendente.

Pensemos na facilidade com que o folhetim se transfere para o rádio ou para as telas

de cinema e de televisão, além do teatro e do circo, onde deveu chegar ainda antes. Os estudos

nessa área são bastante fecundos, basta destacar Marlyse Meyer, no Brasil, e Martín-Barbero,

fora. Abordaremos para encerrar, ainda que de passagem, este destino do folhetim e sua

relação com essas outras séries culturais. Porém, proponho antes uma reflexão trazida por

Vargas Llosa sobre sua origem. Segundo ele o folhetim teria nascido antes do século XIX.

En realidad yo creo que sus orígenes son bastantes más antiguos y que el folletín es una versión decimonónica de lo que fue la novela de caballería medieval. Se puede encontrar una serie de similitudes en la visión del mundo que ofrecen el folletín y la novela de caballería, tanto en la concepción del mundo como en las técnicas de que se valen sus autores para recrear o, mejor, dicho, crear su propia realidad (VARGAS LLOSA, 1994, p. 143-144).

Interessa-nos, por ora, mais do que tentar fixar as origens do folhetim, destacar o seu

caráter migratório. Outra observação de Vargas Llosa nos situará sobre a transitividade dos

elementos do folhetim.

Creo que el folletín no es un reflejo de la realidad, sino que es una realidad paralela, una realidad autónoma, o, si se prefiere, es esencialmente una irrealidad. Esto en cierta forma se puede decir de todas las ficciones, pero en todo caso creo que el folletín expresa la forma más extrema de irrealidad que puede constituir la ficción. E decir, el folletín no expresa la vida, no expresa la experiencia humana, sino una vida regida por unas leyes propias, distintas a las que rigen nuestra vida. Cuáles son estas leyes del folletín, eso es algo que se podría desarrollar a lo largo de una extensa intervención. Pero, resumiendo de una manera muy apresurada y esquemática, se puede decir del mundo del folletín lo siguiente: en ese mundo la realidad exterior importa siempre mucho más que la interior y, en muchos casos, es la única realidad que importa. Es decir, es un mundo de actos, un mundo de comportamientos, en el que tanto las motivaciones como las consecuencias íntimas que pueden acarrear los actos importan poco o simplemente no importan nada. Es un mundo de psicología elemental, en muchos casos un mundo donde no se puede hablar propiamente de la existencia de una psicología. Es también, esto ya en lo que se refiere a la técnica del folletín, un mundo en el que los hechos importan más que las palabras. El lenguaje

12 Ver os conceitos de “ponto de virada”, “impedimentos” e “clímax” no Manual do roteiro, de Sid Field, ou nos conceitos de roteiro elaborados a partir da teledramaturgia brasileira por Luiz Carlos Maciel em O poder do clímax: fundamentos do roteiro de cinema e TV.

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del folletín es tradicionalmente un lenguaje puramente instrumental; es, básicamente, un medio. Quizás por eso el folletín pasa con muchísima más facilidad que la literatura artística o la literatura de creación, al cine. Porque en la literatura artística y en la literatura de creación la palabra no es nunca un mero instrumento, un medio, sino también un fin, una realidad en sí misma. Y es la trasposición de esa realidad de la palabra a la imagen la que produce tantas veces los fracasos en las adaptaciones cinematográficas de novelas. En el folletín esto no ocurre, porque la palabra no existe, porque la palabra es blanca, esencialmente transitiva (VARGAS LLOSA, 1994, p. 144).

O filho do pescador se encaixa totalmente nas definições de Vargas Llosa. A

realidade exterior, a palavra branca, a linguagem instrumental, o folhetim como um meio etc.,

evidenciam que o nosso primeiro romance, no caso um romance-folhetim, nasce apto para

migrar tanto ao cinema como à televisão. Ser aproveitado ou não nesse sentido será apenas

uma questão de escolha. Aliás, as inferências de Vargas Llosa valem também para todos, ou

quase todos os romances-folhetins brasileiros. Já dissemos que A Moreninha migrou para a

televisão como telenovela. Senhora também foi filmada como telenovela. Outra emissora de

televisão brasileira se deu ao luxo de juntar três folhetins de José de Alencar: Senhora,

Lucíola e Diva, para criar uma telenovela intitulada Essas mulheres. O guarani, O cortiço,

Memórias Póstumas de Brás Cubas, ente outros, foram levados com êxito ao cinema. Dom

Casmurro também chegou ao cinema com o título reduzido para Dom, mas não seguiu o

enredo da obra. Preferiram fazer uma recriação, baseada na interpretação livre de um dos

aspectos da obra e não foram muito felizes na realização. Ainda falta um melhor

aproveitamento de Dom Casmurro para o cinema ou para a televisão. Casa de pensão foi

apresentada como teleteatro. A escrava Isaura já teve duas produções como telenovela. Quase

todas essas obras foram levadas ao teatro em vários momentos da dramaturgia brasileira. O

radioteatro, ou radionovela, também recriou essas obras. Outra relação intensa dessas obras

dentro do cenário nacional é a estabelecida com a música popular brasileira. Músicos

instrumentistas, intérpretes, compositores e maestros enriquecem o cancioneiro brasileiro a

cada trilha sonora de telenovela, minissérie, ou filme que se produz a partir dos folhetins. A

cada nova filmagem novas composições e novos arranjos. Os folhetins têm alimentado

também os roteiristas, profissionais da dramaturgia, para quem serviram de modelo, suporte, e

mediador do que se tornou a teledramaturgia brasileira.

Vimos com o romance-folhetim faz parte do imaginário brasileiro e se engasta com

as outras séries culturais numa relação muito intensa. Obras relevantes, consideradas pela

crítica e pela historiografia, tais como Senhora, O mulato, Memórias Póstumas de Brás

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Cubas, Dom Casmurro etc., tiveram como alicerce uma série de obras que fazem parte da

“cultura das bordas”, para usar um termo de Jerusa Pires. Veremos como se deu essa relação

na Argentina.

2.4 O Folhetim na Argentina

Temos muitas evidências de que o romance-folhetim na Argentina nasce de um

aproveitamento da literatura oral gauchesca. A cultura oral é um manancial para as narrativas

de gaúchos em todos os sentidos: versos populares, cantos com guitarras, narrativas em versos

que davam uma dimensão épica para o homem dos pampas, tudo oral e aos poucos habitando

também o mundo da escritura. Todo esse material já havia começado a ser trabalhado de

forma escrita nos jornais e revistas argentinas quando o folhetim chegou ao país. A novidade

de comunicação de massa, e também literária, que foram os romances-folhetins no país se

encaixou entre o que já existia e o futuro que se abria para essa cultura. Entre os exemplos que

se pode colher entre os jornais argentinos, não cabe dúvidas que devemos ressaltar o

fenômeno que foi a escritura de Eduardo Gutiérrez no jornal La Patria Argentina, do qual

iremos nos ocupar. Antes, porém, iremos introduzir a temática que será trabalhada pelo

recém-chegado folhetim.

A temática gauchesca, conforme dissemos acima, vinha sendo trabalhada por poetas

e narradores. Um deles é Esteban Echeverría, considerado pela historiografia literária como o

fundador do romantismo na Argentina. Uma série de poemas seus, publicados em jornais,

foram reunidos com outros inéditos e publicados em 1837 como o título de Rimas, onde

apresenta os tópicos nacionalistas do romantismo. A parte mais importante desse poemário se

chama La Cautiva, cujo nome passará a acompanhar as futuras publicações em livro e se

converterá em obra emblema do movimento.

O poema La Cautiva tem nove partes e mais um epílogo. Echeverría abre cada parte

com uma epígrafe, nas quais cita trechos de Dante, Calderón, Petrarca, Lamartine e outros. A

primeira epígrafe, a que abre o livro, é um verso de Victor Hugo: Ils vant. L´espace est grand.

(Eles vão. O espaço é grande, em tradução livre). Para um poema que vai falar do deserto e

da pampa, e do homem que se lança nesse espaço, a primeira vista incomensurável, nada mais

sugestivo do que eles vão, o espaço é grande. Para tentar apreender o ambiente dessa

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narrativa em forma de verso, na qual há a proposta de um tratamento mítico para o gaúcho,

transcrevemos a primeira e a terceira estrofes da primeira parte, intitulada Desierto:

Era la tarde, y la hora en que el sol la cresta dora de los Andes. El desierto inconmensurable, abierto y misterioso a sus pies se extiende, triste el semblante, solitario y taciturno como el mar, cundo un instante el crepúsculo nocturno pone rienda a su altivez. (…) A veces la tribu errante, sobre el potro rozagante, cuyas crines altaneras flotan al viento ligeras, lo cruza cual torbellino, y pasa; o su toldería13 sobre la grama frondosa asienta esperando el día duerme, tranquila reposa, sigue veloz su camino. (ECHEVERRÍA, 1983, p. 11-12).

Nesse pequeno trecho já podemos notar algumas das características das sociedades

latino-americanas, como enfatizou Pinheiro: “Migrantes, mestiças, do espaço aberto”

(PINHEIRO, 2004, p. 17-18), que vão aparecer nos folhetins de Gutiérrez.

Contudo, após a consideração dos versos de Echeverría, devemos dizer que a sua

obra escolhida pela historiografia como marco do romantismo é em prosa, não é em verso.

Trata-se da narrativa El Matadero, um texto que tem gerado polêmica quanto ao seu gênero.

Há quem o considere uma novela curta, foi catalogada como romance da linha realista, na

visão que segue a proposta de Monegal em dividir a literatura latino-americana em duas

vertentes: a realista, e a fantástica. Nos cursos de letras das universidades brasileiras que

oferecem a disciplina Literatura Hispano-Americana a obra faz parte das leituras obrigatórias

do período chamado realismo. Mas o texto também foi considerado como conto, e há

argumentos de que teria sido este o primeiro conto argentino. Alguns críticos mais modernos

não o aceitam como conto porque a narrativa não tem uma única unidade temática, conforme

propõe Horacio Quiroga no Decálogo do autor para que um texto seja um conto. A verdade é

13 Na edição que manuseamos o editor colocou um asterisco remetendo ao pé de página – Toldería: El conjunto de chozas o el aduar del salvaje. O homem que vive no campo, na pampa ou no deserto é o selvagem, como todo nômade. Visão esta que antepõe civilização e barbárie, como bem podemos ver no Facundo, de Sarmiento.

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que apesar de se filiar à linha realista, o texto tem alguns ares de fantástico ao falar da força

da natureza e do poder que a realidade tem para se forçar sobre o ser humano. Algumas

sequências narrativas chegam mesmo a se parecerem com alguns contos de Selvas do próprio

Quiroga. Deixaremos a discussão sobre as características formais do conto para o próximo

capítulo, onde trataremos mais especificamente do conto latino-americano. Vejamos um

trecho selecionado de El Matadero:

A pesar de que la mía es historia, no la empezaré por el arca de Noé y la genealogía de sus ascendientes como acostumbraban hacerlo los antiguos historiadores españoles de América, que deben ser nuestros prototipos. Tengo muchas razones para no seguir ese ejemplo, las que callo por no ser difuso. Diré solamente que los sucesos de mi narración pasaban por los años de Cristo de 183… Estábamos, a más, en cuaresma, época en que escasea la carne en Buenos Aires, porque la Iglesia, adoptando el precepto Epicteto, sustine, abstine (sufre, abstente), ordena vigilia y abstinencia a los estómagos de los fieles a causa de que la carme es pecaminosa, y, como dice el proverbio, busca a la carne. (…) Sucedió, pues, en aquel tiempo, una lluvia muy copiosa. Los caminos se anegaron; los pantanos se pusieron a nado y las calles de entrada y salida a ala ciudad rebosaban en acuoso barro. Una tremenda avenida se precipitó de repente por el Riachuelo de Barracas, y extendió majestuosamente sus turbias aguas hasta el pie de las barrancas del Alto. El Plata, creciendo embravecido, empujó esas aguas que venían buscando su cauce y la hizo correr hinchadas por sobre campos, terraplenes, arboledas, caseríos, y extenderse como un lago inmenso por todas las bajas tierras (ECHEVERRÍA, 1983, p. 97-98).

Salta aos olhos o estilo de Echeverría, que está descrendo a paisagem formada pela

soma do Rio da Prata com a cidade de Buenos Aires, junção esta propiciada por um elemento

de desequilíbrio: as chuvas. O que temos são fatos para a crônica, e o escritor não está

fazendo outra coisa que utilizar o estilo dos velhos cronistas das Américas, citados

retoricamente por ele como historiadores espanhóis, para fazer ele também a sua crônica, ou

seja, a sua história inventada.

Echeverría escreveu El Matadero entre 1838 e 1840, obra também considerada como

o primeiro texto em prosa da literatura argentina. Não vale a pena entrar em detalhes citando

quais críticos ou historiadores aceitam ou refutam essa tese porque a nossa postura, a que

viemos seguindo no trabalho, aponta para as Crônicas do descobrimento como os primeiros

textos literários, portanto, os primeiros textos em prosa da literatura argentina estariam lá no

século XVI. Bastante irônico, como podemos ver no trecho que citamos de El Madero,

Echeverría constrói na sua narrativa um ambiente que muitos viram como uma metáfora do

Governo ditatorial de Rosas. O matadouro seria a própria Argentina, nessa hipótese a obra é

lida como obra realista, social e política. Echeverría constrói um núcleo duro de fatos a serem

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narrados dentro de um ambiente instável e movediço, que permitem as análises marxistas que

a intelectualidade latino-americana de esquerda tanto produziu no século XX. As carnes dos

bezerros levados ao matadouro abastecem a elite do clero e do governo. Os pobres que se

amontoam nas grades levam para casa as entranhas das reses. Com a crise nos transportes de

homens e animais causada pelas chuvas, a elite passa a frequentar o lugar dos pobres e a

disputar as entranhas das poucas reses que chegam ao abate no matadouro.

A ironia do narrador, sangue, morte, medo, situação de perigo e de aventura, além da

luta pela sobrevivência, e várias situações grotescas dão o tom bem popular para a narrativa.

Percebe-se toda uma áurea dos folhetins franceses mais carregados dos problemas sociais

nesse romance-conto, ou conto-romance. Um exemplo para a ambientação da narrativa seria

Os mistérios de Paris, de Eugène Sue, e não só a atmosfera da narrativa que coloca em cena

os pobres e os problemas sociais que Sue cava no submundo de Paris. O envolvimento

político-social do autor francês é paralelo ao envolvimento que o escritor argentino tem

pessoalmente. Sue era um nobre francês que vai ao submundo fazer estudo de personagens

para escrever seus folhetins com mais veracidade. Envolve-se tanto com as questões que se

torna um político socialista. Echeverría não era de origem nobre, mas juntou seus parcos

recursos para ir à Europa absorver a cultura que ele julgava imprescindível para a formação

do seu espírito. Os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade que motivavam todos os

nacionalistas latino-americanos que passam a fazer parte do chamado primeiro romantismo

argentino movem o escritor ao velho mundo. Apesar da admiração, não pode permanecer

muito tempo na Europa por falta de recursos, mas teve tempo de ler os grandes autores do

romantismo europeu. Na volta à Buenos Aires, seus escritos e sua participação política o

levaram ao exílio no Uruguai, onde foi sepultado no Panteón. Sua obra é catalogada não só

como argentina, mas como literatura do Rio da Prata.

Em relação ao envolvimento político dos escritores e sua relação com os jornais da

época, basta lembrarmos que o romantismo teve sua primeira manifestação na Argentina com

a aparição, em 1832 do poema "Elvira" ou "La novia del Plata" do próprio Echeverría, quem

liderou o movimento que se concentrou na chamada Geração de 37 e teve um de seus centros

no Salón Literario. También integrou a língua tradicional espanhola com os dialetos locais e

gauchescos, incorporou a paisagem rio-pratense à literatura e os problemas sociais, como já

vimos em La Cautiva e El Matadero. O movimento esteve intimamente ligado com o

romantismo uruguaio, tanto pela amizade dos escritores de ambos os países, que provinham

de uma cultura bastante semelhante, quanto pela publicação e republicação de seus textos nos

jornais de Buenos e Aires e de Montevidéu.

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Entre as obras mais importantes deste movimento se destacam La cautiva e El

matadero, ambas de Echeverría, como já vimos; Martín Fierro, obra prima de José

Hernández; Amalia, de José Mármol; Facundo, de Domingo F. Sarmiento; e o folhetim e obra

dramática Juan Moreira, de Eduardo Gutiérrez. José Hernández recolhe e transcreve em

versos a poesia oral gauchesca em Martín Fierro, um livro que também pode ser considerado

como de domínio público: criado pelo povo e editado por José Hernández. José Mármol

escreve textos com os seus ideais nacionalistas libertários nos jornais e se vê obrigado a sair

da Argentina por perseguições políticas de Rosas. Vai viver no Rio de Janeiro, de onde

encaminha a primeira parte de seu romance para ser impresso no Uruguai. Só anos mais tarde

será impressa a segunda parte de Amalia. Deixa o Rio de Janeiro em 1845 e vai viver em

Montevidéu, chega a fundar três jornais, o mais importante deles foi La semana. Além dos

jornais que fundou também colaborou com muitos outros jornais. Foi poeta lírico, ensaísta e

crítico político, romancista e jornalista ativo. Regressou à Buenos Aires após a morte de

Rosas, onde faleceu em 1871. Mármol viveu uma vida de romântico, com muitas aventuras e

desventuras, das quais tirava experiências para a sua escritura. Em 1844 tentou imigrar do Rio

de Janeiro para o Chile, mas as ondas gigantes provocadas por tempestades o fizeram vagar

por dois meses, retornando ao Rio sem conseguir chegar ao destino proposto. A experiência

da tormenta no mar foi utilizada por ele para compor parte dos doze cantos do seu poema El

perigrino, do qual os seis primeiros cantos foram publicados no ano de 1847, em Montevidéu.

El perigrino é um poema inspirado em Childe Herold, um poema narrativo de Lord Byron,

mas cheios de episódios autobiográficos e autênticos da vida de Mármol, que o escrevia ao

compasso das suas andanças.

Para a historiografia literária a obra mais considerada de Mármol é o romance

Amalia, que figura na vertente realista. O romance está dividido em cinco painéis, ou planos,

e consta de setenta e sete capítulos. O fio condutor do relato são as peripécias airosas de

Amalia e Eduardo Belgrano. Eduardo é ferido ao tentar fugir de Buenos Aires para

incorporar-se aos rebeldes que combatem contra Rosas. Seu amigo Daniel Bello o salva e lhe

oferece refúgio na casa de sua prima, uma jovem viúva chamada Amalia.Os dois primos

fingem ser partidários de Rosas para poder lutar contra o regime e salvar Eduardo. Amalia e

Eduardo se casam na véspera de uma fuga arquitetada, mas morrem pelas mãos da Mazorca.14

Romantismo e drama, como convém à época. Não faltam no enredo uma viuvinha e um jovem

14 Refere-se à Sociedade Popular Restauradora, que apoiava o governo de Juan Manuel de Rosas, na Argentina, cujo braço armado se designava La Mazorca.

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enamorado, nem a luta dos bons contra os maus, mas sem final feliz. Um folhetim para fazer a

juventude chorar no final.

Nessa obra, escrita durante o exílio em Montevidéu – há pistas de que haveria escrito

uma parte no Rio de Janeiro – Mármol se propôs a narrar a situação política que se vivia em

Buenos Aires em 1840. Ironicamente ele desloca o tempo na narrativa para que o leitor

contemporâneo seu pense que está lendo sobre fatos que se viveram no passado, e não na

atualidade. Mescla personagens reais com personagens inventados por ele. A mesma técnica

de alterar o tempo dos fatos históricos e mesclar realidade com ficção que fazem García

Márquez em El Otoño del Patriarca, e Roa Bastos em Yo el Supremo, claro que de maneira

muito menos elaborada. Além das várias análises socialistas de orientação marxista que se

fizeram da obra em mais de cem anos, como obra de denuncia social, obra engajada, ou

literatura realista, o que não é um desacerto, devemos notar que o romance se estrutura a

partir de vários elementos do romance-folhetim. E que, do ponto de vista artístico, o que lhe

garantiu o êxito foi justamente a proposta de descrever com ironia retrospectiva a situação de

personagens que viviam na atualidade, criando uma ilusão. Se o tempo da narrativa fosse o

mesmo das pessoas reais, teria ficado no texto jornalístico apenas, e integraria a literatura

panfletária. Com o deslocamento do tempo a narrativa pode ser consumida como ficção,

inclusive pelas mocinhas da elite, integrantes da Sociedade Popular Restauradora. Por esta

razão, o trabalho com o aspecto social e com o tempo, ainda se discute se Amalia é um

romance histórico ou político.

Entretanto, o grande sucesso de vendagem e de cultura de massa foram os romances-

folhetins gauchescos de Eduardo Gutiérrez, o principal escritor na modalidade como já

dissemos. Ele publicou muita coisa, mais de trinta livros. O grande sucesso de vendagem, que

devemos ressaltar não apenas pelo êxito comercial, mas porque refletiu a efetividade da

recepção por parte dos leitores, se concentrou em torno de nove romances-folhetins

publicados no jornal matutino La Patria Argentina. Rodríguez McGill resume em poucas

linhas a tipologia e a proficuidade da escritura de Gutiérrez:

Este éxito, popular y masivo conseguido por Eduardo Gutiérrez tuvo su génesis en al año 1879, cuando publica su Juan Moreira en el matutino La Patria Argentina, y con este folletín abre un ciclo de nueve novelas gauchescas que se extenderán desde 1879 hasta 1886. No obstante, la obra literaria de Gutiérrez se explaya para incluir un total de treinta y siete obras, de las cuales, nueve completan el ciclo gauchesco, nueve pertenecen a su serie histórica y diecisiete son clasificadas como folletines policiales. Sólo dos obras, no pertenecen al género folletín. Por lo tanto su producción escrito-literaria es prolífica, especialmente si se considera que toda ella es

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producida en un período de nueve años, entre 1879 y 1888 – año de su muerte (MCGILL, 2008, p. 1).

Um caminho para os estudos da cultura de massa seria a análise desses dezessete

folhetins policiais. Por ora, deixaremos registrado que houve essa produção, para nos

concentrarmos no que mais nos interessam, os folhetins gauchescos que vão de Juan Moreira

(o primeiro, em 1879-1880) até Los Hermanos Barrientos (o nono, que cerra o ciclo em

1886), todos publicados no jornal La Patria Argentina. Essa série de folhetins gauchescos não

marca o primeiro encontro dos argentinos com a literatura popular impressa, mas marca o

primeiro encontro com que Martín-Barbero chama de massivo,15 a chamada cultura de massa.

Devemos considerar que os argentinos da elite já liam romances impressos como Amalia e

traduções dos folhetins franceses, além dos originais que vinham em francês e inglês. Mas

nada havia sido tão massivo antes, e tão nacional como esses folhetins, sem se declarar tão

político como haviam feito as obras anteriores. O folhetim argentino parece, à primeira vista,

uma narrativa de aventura sobre homens fora da lei, ou meros desventurados, para entreter –

para alienar, dirão os mais críticos –, mas aos poucos ele vai levantado os problemas sociais e

se metendo no campo político. É uma pílula caramelada por fora que vai ficando amarga à

medida que se vai digerindo.

O folhetim argentino também parte do modelo francês, mas acrescenta a cultura

gauchesca: o falar e o cantar do gaúcho muda a linguagem, o ritmo, o ambiente etc., assim

como o México acrescenta o tema da revolução no seu folhetim. Sobretudo, o folhetim na

argentina é uma escritura que se encontra com o povo, “o qual se reconhece nela”, dirá

Martín-Barbero. León Benarós observou o fenômeno que foi o folhetim de Gutiérrez na

Argentina: “Pela primeira e última vez o público se abarrotava nas portas do diário La Patria

Argentina para seguir o folhetim que Gutiérrez havia escrito quiçá na noite anterior ou alguns

dias antes” (BENARÓS, 1960). O crítico Roberto Giusti considera que aquela era uma época

modernizadora, e Eduardo Gutiérrez e José Hernández eram os dois autores nacionais mais

fielmente lidos daqueles dias.

A biografia de Gutiérrez diz que ele nasceu em Buenos Aires em 1851, e morreu na

própria Argentina em 1889, portanto, teria vivido um ano mais do que diz McGill. Elucidar

essa dúvida não é tão importante no momento. Devemos considerar com mais atenção a sua

relação com os jornais. De formação autodidata, começou a trabalhar em periódicos aos 15

15 Ver a diferenciação que Martín-Barbero faz entre “popular” e “massivo” no livro Dos meios às mediações (MARTÍN-BARBERO, 2008).

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anos de idade. Entre 1870 y 1880 serviu no exército, logo depois passou a se dedicar ao

jornalismo e à escritura de folhetins. Os personagens de seus mais de 30 livros foram tirados

dos arquivos policiais nas comissárias de polícia, das crônicas jornalísticas de crimes

comentados pelo povo e de entrevistas pessoais que ele fazia com criminosos famosos na

cadeia pública. Seus personagens folhetinescos eram baseados em tipos humanos reais, que

assumiam graus variados de heroicidade, todos marginalizados pela origem, por

circunstâncias pessoais ou sociais. Uma das práticas de Gutiérrez era a seguinte: crônicas

policiais publicadas nos jornais, contando crimes reais cometidos por gaúchos ou

condenações dos criminosos eram estudadas e reproduzidas em forma de folhetim nos

próprios jornais por Gutiérrez, que cada vez ganhava mais espaço nos jornais de maior

prestígio do país.

Além de autodidata, Gutiérrez teve formação literária para pertencer ao clube dos

escritores seletos de sua geração. Não o fez pela opção de se dedicar intensamente ao

folhetim. Seu tio Bartolomé Hidalgo foi o criador de "cielitos", um poemário patriótico sobre

a independência da Argentina, e outra parte posterior sobre a independência do Uruguai. Seu

irmão, Ricardo, foi um poeta gauchesco que se tornou um prestigiado médico, e seu cunhado

foi ninguém menos que Estanislao del Campo, autor do Fausto criollo. Seguramente essa

relação familiar haverá exercido alguma influencia na formação literária do jovem escritor.

Na relação da vida real do escritor com a vida de homens de ação de suas narrativas é

interessante observar que Gutiérrez foi ele próprio um homem de ação. Passou dez anos de

sua vida como oficial na fronteira lutando contra os índios, experiência utilizada para escrever

o livro Croquis y siluetas militares. Posteriormente se dedicou plenamente à composição de

folhetins. No seu primeiro folhetim, vemos como o personagem Juan Moreira, antes de se

desgraçar em inimizades com a lei, saía em companhia das milícias para caçar e combater os

índios na fronteira. Pelo contexto da narrativa pode-se apreender que essa era uma prática

habitual e aceita com normalidade pela população daqueles tempos. Gutiérrez quer

demonstrar que Juan Moreira era um bom cidadão, por isso auxiliava as autoridades na caçada

aos indígenas. O homem criollo, ou mestiço, estava quase sempre próximo da autoridade, às

vezes aquém dela, mas nunca em laço fraterno com os indígenas. A modernização do país

consistia em centralizar o lugar das tomadas de decisão no Estado. O gaúcho que não se

ajustava às regras era desterritorializado para o movediço território da barbárie. O que Martín-

Barbero fala sobre o movimento de organização legal dos países da América Latina no

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começo do século XX, auge do centralismo, já pode ser notado na Argentina dos folhetins no

século XIX.

A estrutura política necessária ao projeto modernizador se configurou a partir do auge do centralismo e do papel de protagonista assumido pelo Estado. A unidade não é concebida senão como fortalecimento do “centro”, isto é, organizando-se a administração do país a partir de um só lugar no qual se concentram as tomadas de decisão. Em alguns países, o centralismo terá como conteúdo e justificativa o estabelecimento dos mecanismos básicos de uma administração estatal ainda inexistente – contabilidade nacional, organização dos impostos, estabelecimento do registro civil etc. Naqueles outros onde tais mecanismos já existiam, o centralismo não terá apenas um sentido unificador, mas também uniformizador, homogeneizador de tempos, gestos e falas (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 222).

Gutiérrez não é tão ingênuo quando escolhe as multas e os impostos como maneira

de perseguição da autoridade da região contra Juan Moreira. O Tenente-Chefe da comissária

local, com raiva porque o gaúcho arrebatou-lhe o coração à moça bonita que ele pretendia

conquistar, passa a atribuir-lhe multas absurdas. Juan Moreira é multado em muitos pesos

porque deu um baile privado em casa de amigos sem pedir permissão à autoridade local.

Outra feita a multa vai porque o gaúcho que tem destreza na guitarra e boa voz para cantar e

agradar os amigos cantou até tarde da noite. Impostos são inventados da noite para o dia sobre

as terras de propriedade do gaúcho ou sobre o uso que este faz dela. Uma autoridade

desonesta que persegue por capricho e motivos pessoais um homem bom e honesto no enredo

do folhetim pode oferecer outras leituras, numa tomada em nível macro.

Em outra parte do seu ensaio sobre o mesmo tema, Martín-Barbero diz que “os

mestres do radioteatro na América do Sul foram os argentinos”. Pergunta, “mas por que a

Argentina?” (MARTÍN-BARBERO, 2008). Segundo ele, a resposta não deve ficar só nas

boas condições comerciais e no pioneirismo da Argentina. Parte da resposta estaria na

constituição da cultura popular no país.

Pode-se responder que isto se deu graças ao comprovado pioneirismo do rádio nesse país, com sua precoce organização comercial, a criação de redes, sua rapidíssima popularização – mil aparelhos receptores em 1922 e um milhão em 1936 – e a existência já em 1928 de periódicos semanais dedicados ao mundo do rádio. No país “literário” por excelência da América Latina, o desprezo dos escritores pelo rádio iria durar muitos anos, marcará “o desencontro entre um meio pleno de possibilidades e uma estrutura cultural atravessada por paradoxos surpreendentes”. E sua inscrição, assim, na esfera do popular, ou seja, do oral: a dos payadores e do circo criollo, fazendo a ponte entre o folhetim gauchesco e os atores ambulantes com o rádio (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 238).

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Figura 7 – Capa da edição em verso de Juan Cuello.

Editorial Cuberes, Buenos Aires, 1947.

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Figura 8 – Folha de rosto da edição em verso de Juan Cuello. Editorial Cuberes.

Coleção colecionais gaúchos, 1947.

O rádio faz a ponte entre o popular e o massivo, difundindo cultura para um grande

número de pessoas que passam do processo cultural mais amplo que o da sua pequena

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comunidade. Recupera a cultura gauchesca, traduz o folhetim para o radioteatro, e se liga com

outras séries culturais, mas continua sendo discriminado pela elite cultural.

O rádio será desde o principio assim: música popular, declamadores, partidas de futebol e, a partir de 1931, por excelência, o radioteatro. Só bem mais tarde, em 1947, o peronismo fará uma espécie de reconhecimento “cultural” do radioteatro, equiparando-o a outras formas literárias por meio de prêmios e estímulos outorgados pela Comissão Nacional de Cultura (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 238-239).

Com este salto no tempo de quase meio século do folhetim de 1880 para o rádio da

primeira metade do século XX, adiantamos a relação do folhetim com as outras séries

culturais. Voltemos, porque é no circo que o folhetim ganha a sua primeira mutação. Em

consequência é também no circo que nasce o teatro argentino, a invenção chamada de circo

criollo. Segundo a explicação de muitos críticos, inclusive Martín-Barbero, chama-se circo

criollo essa modalidade muito especial de circo criada ao se juntarem, sob a mesma lona, no

mesmo picadeiro e diante do mesmo cenário, a acrobacia e a representação dramática”

(MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 239). E a ligação do folhetim gauchesco com o circo e o

teatro, remontando os três ao melodrama começa a ficar mais clara com a explicação de quem

já estudou todos eles:

Quando estudamos o melodrama de 1800, pudemos constatar que é na tradição do circo e do teatro itinerante que se encontram as verdadeiras origens do moderno espetáculo popular que é o melodrama. Na Argentina, verificamos que é no circo que se forja um teatro popular, recolhendo a memória dos payadores e da mitologia gaúcha, pondo em cena “as histórias” dos Juan Moreira,16 Juan Cuello, Hormiga Negra, Santos Vega e Martín Fierro. Com a pantomima de Juan Moreira – o circo dos Podestá (1884) – que adapta para o teatro o folhetim de Eduardo Gutiérrez publicado entre 1879 e 1880, o circo criollo faz a ponte que une a tradição narrativa inserida no folhetim com a encenação dos atores ambulantes. É justamente a mistura de comicidade circense e drama popular o que dá origem ao público do rádio: são os mesmos atores e é o mesmo tipo de relação com o público (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 239-240).

Passaremos agora a considerar alguns aspectos que se ligam como eixos temáticos às

questões levantadas na pesquisa diretamente nas obras de Eduardo Gutiérrez. Selecionamos

16 Parece-nos interessante observar que há uma polêmica sobre a data de fundação do teatro argentino. McGill observou duas posturas, mantidas por dois grupos. Uma a favor de Juan Moreira como ponto fundador do teatro nacional; outra contraria a este ponto de vista, considera sua fundação a princípios do século XIX ou até antes. Ele dá uma lista dos nomes que ele investigou. Alinham-se em prol de Juan Moreira: Abdón Aróztegui, José Assaf, Oscar Beltrán, Alfredo Bianchi, Emilio Furgoni, Roberto Giusti, Ángel Rama, Elías Regulas, Enrique García Velloso e Vicente Rosi entre outros. Opõem-se a ele: Arturo Berenguer Carisomo, Eduardo Gordon, Enrique de María, Ernesto Morales, David Peña, Carlos M. Princivalle, Ricardo Rojas e Florencio Sánchez. Lista não esgotada.

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Juan Moreira, Juan Cuello, Hormiga Negra (o preferido de Borges), e Los Hermanos

Barrientos. Comecemos, então, com o primeiro, Juan Moreira. Citaremos um trecho no qual

Juan Moreira pode ser visto em ação, cometendo o seu primeiro assassinato. A sequência,

embora um pouco longa, precisa ser assim para mostrar uma unidade dramática completa.

Moreira havia ido até a comissária de polícia denunciar o comerciante italiano que lhe devia

dez mil pesos, os quais lhe haviam sido emprestados de boa fé, sem comprovante escrito. O

comerciante, convencido pelo Tenente, perseguidor de Moreira, se encontrava na comissária e

nega a dívida. Ambos, comerciante e autoridade, acusam Moreira de ladrão e o põem no

cárcere, prendendo seus membros nos grilhões para que este sinta a dor física e a da

humilhação moral. Moreira jura matar a ambos. A autoridade policial já o prendeu e o

torturou várias vezes sem motivo aparente. Não tem mais volta, deve ser morto. Ao

comerciante lhe faz uma promessa em tom de ameaça: pagará os dez mil pesos ou o gaúcho

lhe abrirá dez bocas a golpes de punhal pelo corpo. Uma punhalada para cada mil pesos. A

esta altura, o leitor, que vem presenciando as injustiças que as autoridades fazem a Moreira já

estão ansiando por vingança. Eis Moreira decidido a cumprir sua promessa, já que como

homem bom e honesto não lhe dão paz. Vai primeiro à comissária, mas não encontra seu

perseguidor que está ausente. Regressa da cidade e vai em busca do comerciante na sua

pulpería. Eis a sequência:

Moreira estaba decidido a cumplir su palabra a pesar de todo, y no hubo razón que lo hiciera ceder. – Concluyamos que es tarde – dijo levantándose de pronto –: Amigo Sardetti, vengo a que me pague los diez mil pesos o a cumplir mi palabra empeñada. El pulpero vaciló, miró con espanto a Moreira, y dirigiendo una mirada de suprema súplica al paisano que había tratado de disuadir a aquel terrible acreedor, respondió de una manera humilde y quejumbrosa: – Yo no tengo plata, amigo Moreira; espérese unos días, y le juro por Dios que le he de pagar hasta el último peso. – No espero más – contestó el paisano con suprema altivez –, vengan los diez mil pesos o te abro diez bocas en el cuerpo, para que por ellas puedas contar que Juan Moreira cumple lo que promete, aunque lo lleve el diablo. Y con mano segura desnudó su daga que brilló con un fulgor siniestro. Los paisanos habían quedado helados, Sardetti estaba más muerto que vivo, y Moreira, arrogante y altivo, con la daga en la mano y la manta de vicuña volcada sobre el brazo izquierdo, estaba allí como el ángel del exterminio. – O pagas sobre el acto – dijo imperiosamente Moreira –, o te abro como un peludo. – No tengo plata – balbuceó el pulpero en una especie de estertor, mientras el paisano que desde un principio había tratado de evitar el lance se cruzaba delante de la daga de Moreira, diciéndole: – No te pierdas, hermano, el gringo no vale la pena y vas a tener que huir del pago.

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Moreira apartó al paisano con un ademán vigoroso, y, saltando al otro lado del mostrador, se lanzó sobre Sardetti con el brazo encogido y en ademán de tirar una puñalada. Los paisanos cerraron los ojos para no ver aquello. Cuando los paisanos abrieron los ojos creyendo que todo había concluido, encontraron a Moreira todavía frente al pulpero. ¿Qué extraño pensamiento había detenido su daga con la fuerza de un brazo humano? ¿Qué lo había hecho hacer un paso atrás en el momento de herir?, ¿había tenido miedo?, ¿se había arrepentido? No, Moreira había cedido a un sentimiento de hidalguía; había visto al pulpero desarmado y no se había atrevido a herir, porque no había ido allí a cometer un asesinato ni a dar muerte a un hombre indefenso. Cuatro o cinco segundos duró apenas la vacilación de Moreira, que viendo inmóvil aún al pulpero, le dijo de la manera más natural del mundo: – ¿Qué haces que no te defiendes?, ¿o quieres que te degüelle como a un

peludo? – No tengo armas – respondió Sardetti –, y aunque las tuviera, esto será siempre un asesinato. Moreira arrebató a uno de los paisanos el puñal de la cintura, y arrojándolo a los pies del pulpero, se preparó a herir. Sea que la cobardía de Sardetti fuera porque no tenía armas realmente, fuera que comprendiese que sólo matando al gaucho podía escapar a aquel peligro de muerte, al verse dueño de un cuchillo sus ojos brillaron y desapareció por completo su aspecto de terror y de víctima resignada. Empuñó la daga y esperó alerta el ataque, que debía ser impetuoso. En la trastienda no había más gente que Moreira, los paisanos que allí se encontraban a su llegada, el pulpero y un dependiente de catorce a quince años, que estaba dominado por el espanto. Una sola lámpara de querosene, colgada del techo por un alambre, alumbraba aquella escena fuertemente dramática. Los paisanos, cuando vieron que se trataba de un duelo, se apartaron y sólo quedaron al lado del mostrador los dos combatientes, midiéndose con la mirada. Cuando Moreira vio la nueva actitud que asumía el pulpero, cuando lo vio apoderarse de la daga y esperar sereno el ataque, le dijo estas palabras: – ¡Así te quería ver, maula! – y lo acometió tirándole un hachazo a la cabeza, que Sardetti evitó volcando el cuello, y respondió con una puñalada tremenda que Moreira adivinó con su vista de lince y que evitó fácilmente con el poncho que pendía del brazo izquierdo. El combate era formidable: las puñaladas se dirigían rápidas y mortales por una y otra parte, y aunque la lucha llevaba ya más de dos minutos, ninguno de ellos se había podido herir. Por fin Sardetti, comprendiendo que la duración del combate podía ser fatal para él, porque su enemigo era poderoso y firme, hizo un poderoso esfuerzo y se tendió a fondo en una terrible puñalada. Aunque Moreira metió el poncho, aunque quebró su cuerpo como una vara de mimbre, la punta del puñal de Sardetti, pasando a través de los pliegues del poncho, fue a herirlo levemente en la tetilla izquierda. – Ahora ya no te tengo asco – gritó Moreira al sentir sobre su pecho el frío de la daga, y, bajando la cabeza y subiendo hasta la altura de sus ojos el antebrazo izquierdo de que colgaba su poncho, entró a Sardetti por el costado izquierdo con tal ímpetu, que le sepultó allí la daga por completo. Sardetti lanzó una especie de quejido sordo, dejó caer la daga de su mano, y vaciló sobre sus pies.

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Entonces, como un relámpago, como una máquina de muerte, Moreira le dio nueve puñaladas más: tres en el pecho, cuatro en el vientre y dos en el costado, arriba de la primera.17

Notamos uma sequência de cenas, um ato, diríamos, pronta para ser levada ao teatro

ou à TV. Vemos em Juan Moreira um folhetim, lembrando as palavras de Vargas Llosa,

como um meio, mediador de conteúdo pronto para migrar para outros meios. E o cinema

argentino soube se aproveitar muito bem dessas sequências narrativas no filme homônimo,

claro, não poderiam mudar o título, sem risco de perdas. Não faltam os temas das adagas e

punhais, coragem e covardia, promessas e cumprimento da palavra empenhada, componentes

da mitologia gaúcha, que Borges tanto admirava e retrabalhava nos seus contos.

Figura 9 – Cartaz de divulgação do filme Juan Moreira.

Categoria: Drama. País: Argentina. Cineasta: Leonardo Favio. Duração: 102 min.

17 Disponível em: <http://www.biblioteca.clarin.com/pbda/novela/moreira/b-263455.htm>. Acesso em: data. 30 nov. 2009.

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No conto El Sur, o jovem citadino Dahlmann, que havia sonhado com a Pampa, entra

num desses botecos de beira de estrada onde bebem os gaúchos e é desafiado a lutar. Não

sabe manejar um punhal e está desarmado. Como já havia demonstrado Juan Moreira, um dos

códigos dos gaúchos é “não se mata homem desarmado.” Por isso Juan Moreira detém o

braço na hora que podia haver liquidado seu oponente, retrocede, arrebata a adaga da cintura

de um dos presentes e a lança aos pés de seu adversário. À certa altura da narrativa de Borges,

a tensão do conto já se encaminhando para o clímax, o jovem Dahlmann vê no fato de estar

desarmado a possibilidade de sua salvação. A cena seguinte do conto guarda semelhanças

com a cena de Juan Moreira. A diferença está na elaboração mais artística de Borges, e

consiste na surpresa: um velho gaúcho que assiste a tudo desde um canto da venda retira seu

punhal da cintura e o lança aos pés de Dahlmann. Vejamos a sequência:

El compadrito de la cara achinada se paró, tambaleándose. A un paso de Jaun Dahlmann lo injurió a gritos, como si estuviera muy lejos. Jugaba a exagerar su borrachera y esa exageración era una ferocidad y una burla. Entre malas palabras y obscenidades, tiró al aire un largo cuchillo, lo siguió con los ojos, lo barajó, e invitó a Dahlmann a pelear. El patrón objetó con trémula voz que Dahlmann estaba desarmado. En ese punto, algo imprevisible ocurrió. Desde un rincón, el viejo gaucho extático, en el que Dahlmann vio una cifra del Sur (del Sur que era suyo), le tiró una daga desnuda que vino a caer a sus pies. Era como si el Sur hubiera resuelto que Dahlmann aceptara el duelo. Dhlmann se inclinó a recoger la daga y sintió dos cosas. La primera, que ese acto casi instintivo lo comprometía a pelear. La segunda, que el arma, en su mano torpe, no serviría para defenderlo, sino para justificar que lo mataran (BORGES, 1984, p. 163-171).

O folhetim e a poesia gaúcha foram, sem dúvidas, materiais para a elaboração das

ficções de Borges. Nas suas entrevistas ele fala que conheceu pessoalmente um ou outro

gaúcho ou compadrito. Pode ser, mas isso está mais para o personagem Borges, para a

fantasia do menino que lia na biblioteca de seu pai.

Na edição em português de Juan Moreira que manuseamos, a obra termina no

capítulo “O epitáfio de Moreira”. O personagem já havia sido morto em luta com uma milícia

no capítulo anterior, intitulado “Xeque-mate”. Tudo leva a crer que o original em castelhano

terminava nessa passagem. Eduardo Gutiérrez interrompe a narrativa do Epitáfio para

anunciar o novo folhetim que acaba de escrever, Juan Cuello, que o leitor logo conhecerá, o

único homem de coragem capaz de rivalizar com Juan Moreira.

Moreira no tiene parangón con ninguno de los muchos hombres de valor asombroso que han habitado nuestras campañas. El único que se le acerca en

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algo es aquel terrible Juan Cuello que, en los años comprendidos del cuarenta y siete al cincuenta y uno, tuvo aterrorizadas a la cuidad de Buenos Aires y a la misma mazorca, cuya vida y curiosísimas aventuras recién hemos concluido. Juan Cuello es una narración que interesará sobremanera a nuestros lectores, por estar llena de episodios sumamente romancescos. (GUTIÉRREZ, 1880).

Entretanto, como um avatar, Gutiérrez volta aos jornais com mais dois capítulos de

Juan Moreira. Um se chamará “La daga de Moreira”, no qual o escritor tecerá comentários

sobre as qualidades da adaga de 80 centímetros que manuseou Moreira em toda a sua vida.

Adaga, nas palavras do narrador, digna de repousar nos museus, ao lado da espada do Cid.

Pela aproximação, vemos a clara intenção de se dar uma dimensão mítica ao gaúcho herói do

folhetim. Através das páginas de jornal, Gutiérrez joga com o leitor. Volta mais uma vez à

narrativa, dessa vez inventando uma carta de leitor direcionado ao escritor que vira

personagem dentro da história. Juan Moreira existiu na vida real, foi um homem condenado

pelo tribunal. Gutiérrez teve acesso aos autos do processo e a toda a crônica policial escrita

sobre o caso. Ao publicar uma suposta carta de leitor contando mais dois episódios da vida de

Moreira, ele sabe que oferecerá mais duas possibilidades de leitura: a leitura como ficção, e a

leitura que alguns farão como se fossem episódios da vida verdadeira do passado deste

homem condenado. Retomar a narrativa inserindo fatos até então desconhecidos era um

artifício literário permitido pelo suporte jornal. As técnicas da narrativa de jornal também

foram utilizadas. Vejamos, para encerrar, transcrição do epílogo. Notar-se-á que não falta

humor:

Epílogo Terminado el capítulo anterior, recibimos una carta en que se nos narran dos episodios de la vida de Moreira, que no conocíamos. Va la carta en seguida, pues no queremos privar de ellos al lector. Señor D. Eduardo Gutiérrez. Apreciable señor: Al volver a ocuparse usted de Juan Moreira, tipo que ha hecho usted tan popular, no puedo dejar de hacer conocer a usted los hechos siguientes que tanto contribuyeron a dar a conocer aquel raro y noble carácter. Garanto a Ud. su veracidad. El Viernes Santo se le ocurrió a Moreira pasar al galope por frente a la iglesia de San Justo. No podía pasar nadie por allí a caballo y cinco soldados encargados de la vigilancia lo atacaron sable en mano: bajóse Moreira y, sin

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duda por ser día santo, sólo empleó el rebenque en la defensa, parando los golpes con el sombrero, pues no llevaba poncho. Los soldados atacaban con brío al ver que Moreira no usaba sus armas, pero tan repetidos fueron los rebencazos, que volvieron al atrio de donde en mala hora salieron, haciéndose humo como dineros en cajas nacionales. El otro episodio de esa vida temeraria es el siguiente: La partida de San Justo, al mando entonces del teniente Ponce, hizo un día la tentativa de tomarlo y, preparándose como para habérselas con ese ser que se había convertido en aviso permanente de su incapacidad y cobardía, hallólo en una fondo y, lo que jamás se hubiera creído, Moreira huyó. Envalentonados con esta al parecer muestra de temor salieron tras él con la algazara del que pretende animarse a sí mismo. Poco les duró el contento, pues, al llegar Moreira al paraje conocido por el "Estanque" vieron que se bajó y, desensillando con tranquilidad, ató el caballo con el lazo y se sentó en el recado. El teniente hizo alto a respetable distancia y se pusieron a deliberar si debían o no llevarle un formidable ataque; hacían esto en medio de las sangrientas pullas del gaucho; se propuso la idea de no molestarlo, lo que obtuvo mayoría sin necesidad de cociente. Volvieron a San Justo acompañados por las carcajadas de Moreira. Me es grato hacer conocer a usted estos hechos a los que su inimitable pluma sabrá llenar de ese gran interés que despierta siempre lo interesante cuando está bien escrito. Me despido de usted humilde S.18

Passemos agora a considerar o romance-folhetim Jun Cuello, cujo personagem

destemido e ágil com a adaga é o único que pode ser comparado com Juan Moreira, como

anuncia Gutiérrez nas páginas finais deste último, preparando o leitor para que aceite seu

novo enredo. Juan Cuello também existiu na vida real e foi fuzilado, dizem que por ordem do

próprio Rosas. Tocava guitarra e tinha boa voz, como Juan Moreira. A diferença é que

enquanto o personagem Juan Moreira conquista apenas a mulher que ama e com ela se casa,

Juan Cuello é um conquistador, apaixonando-se sempre pelas mulheres ligadas aos inimigos.

Seus romances e aventuras o converteram num herói romântico, muito admirado pelo povo.

Recuperemos sua fábula:

Juan Cuello era un criollo de de tez blanca, buen mozo. Alto moreno, su porte, el de un hombre seguro y arrojado, buen jinete hábil con las armas (boleadoras, facón, trabuco), temerario. Gustaba de guitarreadas y era enamoradizo, en 1849 tuvo un romance con una joven, que también pretendía un ayudante del Cuerpo de Serenos, debido a este incidente Cuello se convirtió en el enemigo de la policía rosista, una noche al ir a ver a la muchacha fue atacado por la mazorca, al ser hábil y rápido con el facón superado por la desventaja numérica, fue atrapado pero sobrevivió, matando

18 GUTIÉRREZ, Eduardo. Juan Moreira. Disponível em: <http://www.juan-moreira.com.ar>. Acesso em: 20 mar. 2009.

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a dos policías. Llevado al cuartel y a la espera de que se firmase la orden de fusilamiento, se dio por enterado el gobernador de lo sucedido y como necesitaba gente para reclutar, retiró la sentencia y ordenó que se uniera a las fuerzas militares. Por una malintencionada jugarreta de los amigos del ayudante (al que Cuello había quitado la novia) acusándolo de haber roto unas plantas del jardín de Rosas, fue castigado a longazos y puesto en el cepo, al salir del castigo huyó del regimiento convirtiéndose en desertor. Al huir fue en busca de su enamorada, encontrándose con ésta y con su rival, los dos hombres comenzaron a pelear y Cuello mató al policía. Enterándose de lo sucedido en la comisaría el comisario mandó a detener al gaucho y sus cuatro compañeros, los cinco intentaron huir de la provincia pero fueron encontrados por un batallón, por lo cual se desató una batalla resultando muerto el capitán del escuadrón. Luego sumó otro amor prohibido, la hija del sargento de la mazorca y prometida del coronel Ciriaco Cuitiño jefe de Serenos, Margarita Oliden. En 1850 fue declarado "enemigo público". Cuello estuvo perseguido por mucho tiempo, era encontrado en alguna campaña ofrecía lucha y escapaba, al igual que muchos desertores, busco refugio en las tolderías del cacique Mariano Moicán, allí se enamoró de la hermana del cacique, Manuela Díaz, en diciembre de 1951 la comunidad fue a una carrera de caballos en rededores de Azul donde Manuela fue seducida por un policía que le ofrecía una recompensa de cien mil pesos a cambio de que lo entregara, Manuela aceptó, emborracho a Cuello y lo enlazo, pero luego Manuela también fue traicionada por otro miembro de la tribu, que la mató y entrego a Cuello al cuartel. Fue fusilado el 27 de diciembre de 1851 en Santos Lugares, la orden la impartió Juan Manuel de Rosas. Cuitiño el prometido de Margarita, fue fusilado junto con varios mazorqueros tras la derrota de Rosas en Caseros en 3 de febrero de 1852.19

A divisão entre a elite aristocrática latifundiária e o gaúcho pobre que trabalhava de

peão na lida do gado sem oferecer maiores problemas, sem reclamações por sua condição,

havia entrado numa corrente de forte tensão com a chegada dos imigrantes. Entre essas duas

camadas sociais – a “alta” e “baixa” – não havia nada. Os imigrantes europeus chegaram com

a tradição de luta pelos direitos e anarquismos vigentes em seus países. O governo também

colaborou para que o gaúcho, chamado criollo, ficasse descontente ao doar terras para o

imigrante e não para eles que já a habitavam. Os imigrantes que não conseguiram terras se

alinharam com os gaúchos nas reclamações, mas a relação entre todos eles, proprietários ou

não, sempre foi tensa, como é tensa qualquer relação de mestiçagem. Os estudos mostram

como os imigrantes interferiram em tudo, na comida local, na música, no teatro, na dança, na

vida social e política. Beatriz Seibel fala do impulso democratizante que deu a chegada dos

imigrantes: “Con el flujo inmigratorio se produjo, con el tiempo, la aparición de capas medias

integradas por un sector social que provenía fundamentalmente de la inmigración y que

impulsó el proceso democratizador en nuestro país” (SEIBEL, 1992, p. 89).

19 Disponível em: <http://html.rincondelvago.com/artes-circenses.html>. Acesso em: 19 set. 2009.

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A visão do gaúcho solitário que toca sua guitarra nas paradas para tomar mate,

enquanto corta a pampa errando sem destino, é uma visão que ainda aparece na elite letrada,

quando Gutiérrez já havia percebido a nova ordem, como diz Marcelo Luna:

La imagen del gaucho como personaje errante y solitario no se corresponde más que a los grupos marginales de la vida rural pampeana, según la investigación erudita. El gaucho en la tinta de Gutiérrez se desenvolvía en un escenario que incluía a la familia campesina y su autonomía económica, la pulpería como centro societal, y los diversos recreos típicos.20

Dentro da história real e da ficção é que se move o enredo deste folhetim de

Gutiérrez, oscilando entre ambos. Como folhetinista, sabia que o herói precisava ter algum

carisma para o povo, para as famílias dos gaúchos. E toda aquela gente que estava aprendendo

a ler, que poderia verse representada naquele tipo de escritura (MARTÍN-BARBERO, 2008).

Con la guitarra en la mano, el joven parecía otro hombre. Estos dos rasgos solos bastan para que Cuello adquiera un gran prestigio y ascendiente sobre todos los soldados, paisanos en su mayor parte, cuya leal y profunda amistad se conquista con estas dos prendas: un valor a toda prueba y una voz hermosa. A la pulpería concurría asiduamente un negro Sanes, muy payador y guitarrero, con quien Cuello cantaba con cifra con gran placer de los concurrentes (GUTIÉRREZ, 1880).

Passemos agora para algumas considerações sobre o folhetim Hormiga Negra,

publicado bem próximo de Juan Cuello. É um livro ainda mais histórico, pois Gutiérrez vai

narrando a vida do homem condenado na vida real, mesclando passagens e cruzando tudo

com fatos da história real do país. Chamava-se Guillermo Hoyos, nascido em 1937, vivia em

Buenos Aires, procedente da cidade de San Nicolás de Arroyos. Faleceu em 1918. O apelido

“Hormiga Negra” foi herdado de seu pai, um homem loiro e de baixa estatura, mas que

quando tirava o facão fazia “picar pior que formiga.” Uma vez esteve preso, condenado por

um assassinato que não cometeu. Mais tarde o libertaram do cárcere em decorrência da

confissão do verdadeiro assassino. Isso dá uma aura de injustiçado ao gaúcho bandido.

Gutiérrez conta a história em 23 capítulos quase biográficos. Apresenta seu herói cumprindo

pena na prisão e vai desenvolvendo a narrativa de acordo com os fatos históricos como já

dissemos. O leitor tem duas versões para ler nos jornais: a informativa e a folhetinesca. No

prólogo que escreveu para a edição de 1937, disse Borges:

No sé si el “verdadero” Guillermo Hoyo fue el hombre de viaraza y de puñaladas que describe Gutiérrez; sé que el Guillermo Hoyo de Gutiérrez es

20 Disponível em: <http://www.icarodigital.com.ar/numero10/eldamero/gaucho1/gaucho1.htm #biblos>. Acesso em: 13 maio 2010.

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verdadero. Eduardo Gutiérrez, autor de folletines lacrimosos y ensangrentados, dedicó buena parte de sus años a novelar el gaucho según las exigencias románticas de los compadritos porteños. Un día, fatigado de esas ficciones, compuso un libro real, el Hormiga Negra. Es, desde luego, una obra ingrata. Su prosa es de una incomparable trivialidad. La salva un solo hecho, un hecho que la inmortalidad suele preferir: se parece a la vida (BORGES, 1937).

Passemos ao último folhetim selecionado para a discussão. Los Hermanos Barrientos

foi outro folhetim baseado na vida de gaúchos desaventurados. O romance de Gutiérrez narra

como Julio Barrientos, seu irmão Pedro Barrientos, e Emilio Acosta, conhecido como “El

Oriental”, desgraçaram o “pago de Tres Arroyos y Tandil”, ao montarem um bando de

salteadores de caminhos. Andaram refugiando-se nos cerros entre Tandil e Lobería. Julio

Barrientos, o mais célebre do bando, também tocava guitarra, cantava e era conquistador. Mas

não tinha os valores éticos de Juan Moreira. Era um salteador, um ladrão.

As crônicas jornalísticas, os livros de registro de corpo de delito registram a situação

de condena e de morte destes bandidos transformados em heróis de folhetins. Gutiérrez seguia

a crônica e os registros policiais para criar personagens e enredos. De Julio Barrientos, diz ele:

El joven, buen mozo y cantor, tenía amores con la viuda propietaria de La Presea, y parece que también conquistó a la esposa del capataz de una estancia vecina, lo cual trajo funestas derivaciones. El marido ofendido, don Ángel, era un italiano acriollado, a quien Gutiérrez retrata como de noble carácter – la contrafigura del mezquino pulpero Sardetti – y para salvar su honor provocó un duelo en el que llevó la de perder. Ángel quedó herido, y a raíz del hecho el juez de paz de Tres Arroyos ordenó la captura de Barrientos. Un oficial lo sorprendió durmiendo en casa de la viuda y lo llevó detenido. La mujer salió cabalgando tras ellos y sufrió una rodada que le causó la muerte. El juez, un tal Adaro, tenía una antigua enemistad con Los Barrientos a causa de una antigua ratería de los dos y un cuñados de Julio, y se ensañó con él. Remetido al juzgado criminal de Dolores, el reo se escapó por el camino y comenzó su vida de matrero (GUTIÉRREZ, 1886).

Na transcrição das notas de jornal podemos acompanhar o tipo de reportagem que

Gutiérrez acompanhava. Numa delas, publicada em La Prensa, relata-se a ousadia dos

bandidos ao roubarem as pessoas que estavam reunidas para uma corrida de cavalos, inclusive

autoridades, e as constantes burlas às guarnições de soldados que os perseguiram, até que

foram presos:

Un mes han estado los célebres hermanos Barrientos burlándose de las numerosas partidas de policía que los rodeaban, que pasaban sin saberlo junto a ellos, que llegaban a las casas de negocios y aún a las estancias donde se encontraban los perseguidos y eran ocultados por sus dueños hasta que los miembros de la banda fueron “muertos o aprehendidos”. (La Prensa, 29 de outubro de 1881. RODÍGUEZ MOLAS, 1968, p. 465-466).

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Nos folhetins de Gutiérrez há uma palavra que liga a todos: memoráveis. Podemos

dizer memoráveis porque eles passaram ao teatro, ao radioteatro, ao cinema e às outras séries

culturais fora do jornalismo e literatura. Há passagens de cenas dramáticas narradas de

maneira célebres, em que a palavra não é totalmente branca, como quer Vargas Llosa para o

folhetim. Mas no geral este folhetim cumpre com o papel destinado ao gênero folhetim: o de

ser um meio ele mesmo, capaz de migrar com facilidade para outro meio. Deverá ser

valorizado enquanto folhetim, obra autônoma no gênero, sem buscar comparações de valores

com elementos da alta literatura. Os folhetins de Gutiérrez valem como folhetim e pela

relação que estabelece com outras séries da cultura, como o cinema, segundo o prólogo –

escrito em 1937 –, por Borges:

Sus novelas ahora pueden parecer un infinito juego de variaciones sobre los dos temas de Hernández «pelea de Martín Fierro con la partida» y «pelea de Martín Fierro y de un negro». Cuando se publicaron, sin embargo, nadie imaginó que esos temas fueran privativos de Hernández; todos conocían la pública realidad que los abastecía a los dos. Además, ciertas peleas de Gutiérrez son admirables. Recuerdo una, creo que la de Juan Moreira y Leguizamón. Las palabras de Gutiérrez se me han borrado; queda la escena. A puñaladas pelean dos paisanos en una esquina de una calle en Navarro. Ante los hachazos del otro, uno de los dos retrocede. Paso a paso, callados, aborreciéndose, pelean toda la cuadra. En la otra esquina, el primero hace espalda en la pared rosada del almacén. Ahí el otro, lo mata. Un sargento de la policía provincial ha visto ese duelo. El paisano, desde el caballo, le ruega que le alcance el facón que se le ha olvidado. El sargento, humilde, tiene que forcejear para arrancarlo del vientre muerto... Descontada la bravata final, que es como una rúbrica inútil, ¿no es memorable esa invención de una pelea caminada y callada? ¿No parece imaginada para el cinematógrafo? (BORGES, 1937).

Da transmigração do folhetim para o teatro, chamado circo criollo, temos uma

evolução, ou maior amplitude no tratamento das questões sociais e políticas. Na esteira dos

desdobramentos dessa união de folhetim com o circo e o teatro surgem os sainetes. Peças

compostas para serem representadas no circo, depois no teatro, que mais tarde migrou para o

rádio, impulsionando o desenvolvimento que culmina com o radioteatro argentino, fenômeno

mencionado por Martín-Barbero. O Sainete não nasceu na Argentina, pois já existia na

Europa do século XVIII. Consistia de uma peça de teatro curta e jocosa, com dois ou três

personagens apenas, que eram apresentadas nos intervalos das funções teatrais ou no final

delas. Este tipo de peça popular teria substituído o entremés, durante os séculos XVIII, XIX e

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XX.21 Na Argentina o sainete teve importância não só no âmbito teatral, mas social também.

Surgiu representando a tensão social que os imigrantes provocaram na comunidade. Não seria

exagero afirmar que nasceu da forma que nasceu como consequência da tensão que a

mestiçagem provocava. O protagonista dessas peças era sempre um sujeito vítima da

sociedade, mais ou menos como Martín Fierro ou Juan Moreira. Não demorou para que o

sainete tomasse um cunho político, indo em mais de uma direção, como debate de tribuna.

Um dos primeiros autores de sainete foi Nemesio Trejo, muitas de suas obras foram

representadas pelos irmãos Podestá.22 A revista Bambalinas, na edição de 18 de março de

1922 deu a conhecer o número de representações que tiveram mais êxito: Los políticos, entrou

em a cena 600 vezes; Los vividores, entrou em cena 240 vezes; La esquila, entrou em cena

200 vezes; La trilla, entrou em cena 200 vezes.23

Diz-se que podemos definir o sainete como um gênero que radiografava a vida dos

setores populares integrada com a massa migratória. O sainete vai tomar como tipos os

diversos grupos de recém-chegados: o galego, o andaluz, o catalão, o italiano, o turco que

conviverão com os “guapos y compadritos” nos “conventillos de la ribera.” Os imigrantes,

formadores da nova camada social, se estabeleceram na zona sul de Buenos Aires, e por isso

os conventilhos passaram a ser emblemáticos no teatro popular. Um bom exemplo é o sainete

Mustafá, de Armando Discépolo (1921). Exemplifica a mistura de raças e de línguas que se

fala no teatro e na vida fora dele. Percebemos um castelhano macarrônico, parecido com a

revelação sociolinguística que faziam Juaó Bananére e Adoniran Barbosa sobre os imigrantes

italianos no Brasil:

D. GAETANO: ¿La razza forte no sale de la mescolanza?¿E dónde se produce la mescolanza?.al conventillo. Antonce: la cuna de la razza forte es el conventillo. Per esto que cuando se ve un hombre robusto, luchadore, atéleta, se le pregunta siempre: ¿A qué conventillo ha nacido osté? Lo do mundo, La catorce provincia, El Palomare, Babilonia, Lo Gallinero10. Es así, no hay voelta. ¿ per qué a Bonasaria está saliendo esta razza forte?. Perque éste ses no paise

21 O Sainete teria passado por várias etapas na Europa, e a sua trajetória espanhola foi muito bem estudada. Alguns estudos apontam quatro etapas de seu desenvolvimento, sendo a quarta (1894-1915) considerada como decadente porque é justamente quando o Sainete se orienta em direção à zarzuela e ao melodrama, desenvolvimento a “Comedia asainetada”. A sua versão argentina foi chamada de “Sainete criollo”, e não podemos considerá-la decadente, mas sim evolutiva. Ver (CALVO; VEGA; TORTAJADA, 2005). 22 Ver o trabalho de Raul Castagnino, El circo criollo, entre outros, para melhor compreensão do circo dirigido pelos irmãos Podestá, onde se estreou o folhetim Juan Moreira, e depois passou a abrigar também o sainete. 23 Disponível em: <http://html.rincondelvago.com/artes-circenses.html>. Acesso em: 10 fev. 2010.

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hospitalario que te agarra toda la migracione, te la encaja a lo conventillo, viene la mescolanza e te sáleno a la calle todo esto lindo mochacho pateadore, boxeadore, cachiporrero e asaltante de la madonna. (...). E lo lindo ese que en medio de esto batifondo nel conventillo todo ese armonía, todo se entiéndono; ruso co japonese; franchese co tedesco; taliano co africano; gallego co marrueco. ¿A qué parte del mondo se entiédono como acá; catalane co españole, andaluce co madrileño, napolitano co genevese, romañolo co calabrese? A nenguna parte. Este e no paraiso. Ese na jaula. Ne queremo todo!24

A tensão social pode ser notada num trecho de fala de um personagem de Carlos

Mauricio Pacheco, onde se nota o repúdio ao estrangeiro:

Este inquilinato sucio acaso vuelva a ser lo que fue, tengo la esperanza de pasearme de noche por estos corredores blancos de luna, sin oír el ronquido de esa gente...ni las discusiones en lengua extraña, ni el olor de los guisos (...) Maridos que pegan a sus mujeres y viceversa, obreros sucios y borrachos, anarquistas de hojalata, chiquilines que se trompean, viejos terribles, muchachas secas por la fábricas, sesiones de órgano callejero con baile y todo, olor a kerosén (PACHECO, 1969).

O sainete amplia as possibilidades do folhetim gauchesco ao incluir no enredo as

aventuras de operários, bêbados, homens que batem nas mulheres, garotos que brigam, moças

que secam nas fábricas, como diz o sainete de Pacheco. Assim o sainete chega ao rádio, como

peça mais curta do que um romance-folhetim, e daí para a radionovela e a telenovela é

questão de tempo para se fazer o percurso. Um percurso incorporador de temas, mudanças

linguísticas e estéticas narrativas. Podemos estudar particularidades do folhetim e do sainete

que os separam, obviamente, mas no momento interessa-nos pensar como eles se

interpenetraram e migraram para outros meios, relacionando-se com outras esferas da cultura

Argentina. O melodrama, o canto, o baile, a sátira política, e a erotização são alguns dos

elementos que transitam pelos dos gêneros. O sainete tem uma vantagem a mais do que o

folhetim que é a possibilidade de acentuar o gesto e a voz no canto e no baile, já que é

representado diante de uma plateia. Há muito espaço para a investigação sobre como o sainete

se torna mais um suporte ou veículo para que o folhetim, ou elementos do folhetim chegue ao

rádio e à televisão.

Passemos ao México para verificarmos algumas peculiaridades do seu romance-

folhetim e formarmos um mosaico dessa escritura na América Latina.

24 DISCÉPOLO, Armando. Mustafá. Disponível em: <http://pdf.rincondelvago.com/artes-circenses.html>. Acesso em: 25 maio 2010.

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2.5 O Folhetim no México

No século XIX a imprensa periódica se expandiu no México e começaram a circular

revistas temáticas e especializadas, políticas, humorísticas, literárias, científicas, e

miscelâneas, muitas delas ilustradas. Os autores do folhetim mexicano são homens de letras e

de ação. Praticamente todos eles lutaram na revolução, de um lado ou de outro. Eram homens

movidos por ideais reformistas, e quando pegaram na pena o fizeram com a clara intenção de

educar o povo. Se autodenominavam escritores de costumes, mas a experiência vivida e a

aptidão para descrever a realidade de forma fictícia fizeram com que alguns desses escritores

se colocassem bem além do simples repórter de costumes com o romance-folhetim.

Dentro dessa expansão da imprensa mexicana se publica em 1816, El Periquillo

Sarmiento, do mexicano José Joaquin Fernández de Lizardi. Um romance definido como

“satírico, sobre um personagem pitoresco e popular”. Alguns estudos apontam que Lizardi

teria buscado inspiração no Lazarillo de Tormes para escrever o seu Periquillo. De fato,

podemos encontrar vários elementos da picaresca espanhola nessa obra mexicana. Lizardi

conta com muita picardia as aventuras de Pedro Sarmiento e outros personagens maus e

malditos. O que nos importa é ressaltar que a historiografia literária considerou El Periquillo

Sarmiento como o primeiro romance hispano-americano. E que a obra foi publicada por

entregas em folhetim. O México teria se antecipado à França no modelo de entrega por

folhetins, diz Margo Glantz (1994), quem também adverte que pese a ser publicado dessa

forma El Periquillo não é um folhetim. O folhetim no modelo francês de cortes suspensivos,

capítulos entrecruzados viria depois com Vicente Riva Palacio, José T. Cuéllar, e

principalmente, Manuel Payno.

Depois da publicação de El Periquillo Sarmiento, que se editou em 1816, houve

muita experimentação narrativa no gênero novela curta, que levaria muito tempo para tentar

mapeá-la aqui. A produção narrativa se acentua na década de 1830 em relação à novela curta,

culminando esse tipo de narrativa da primeira metade século com a obra El fistol Del diablo

(1845-1848), um folhetim de Manuel Payno. Logo termina a Reforma e o romance-folhetim

mostra que já havia ganhado um público pronto para interagir.

Depois da Reforma o gênero parece haver se consolidado, tendo como destinatário um público relativamente amplo: a primeira edição de Calvario y Tabor (1868), de Vicente Riva Palacio, por exemplo, constou de seis mil exemplares e se esgotou em um mês. Este feito, complementado com o previsível empréstimo de cuadernillos a outras pessoas e a prática corrente

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da leitura em voz alta, permite estimar que durante o primeiro ano de circulação o manuscrito foi conhecido por mais de trinta mil pessoas (AGUIAR, 2003, p. 12).

Se devemos selecionar escritores para representar cada país e cada situação de

escritura, não cabe dúvida de que a figura a ser considerada em relação ao primeiro momento

do folhetim no México é Manuel Payno. E sua obra mais representativa seria o romance-

folhetim Los Bandidos del Río Frío. Assim como a geração de folhetinista posterior mais

importante teria Mariano Azuela como representante. E a sua obra mais significativa, Los de

abajo, vem germinando a narrativa literária mexicana desde o lançamento até os dias atuais. E

toda essa modernização da narrativa mexicana começou nos jornais, de forma bastante

popular.

Recentemente (1997), a pesquisadora mexicana Margo Glantz organizou e publicou

uma série de ensaios nos quais se prestam homenagens a dois grandes folhetinistas

mexicanos: José Tomás de Cuéllar e Manuel Payno, pelo centenário da morte dos autores. A

pesquisa de Glantz sobre o folhetim mexicano se parece bastante com a pesquisa que Marlyse

Meyer fez sobre o folhetim brasileiro. Revela, inclusive, que houve várias semelhanças entre

os folhetins de ambos os países, não que ela faça essa aproximação, precisamos pinçar os

pontos de semelhança e dessemelhança.

Gostaríamos de tecer alguns pontos sobre Los Bandidos del Río frío. Antonio Castro

declara no prólogo da edição “Sepan Cuentos...”, de Porrúa:

Todo el México de mediados del siglo XIX desfila por las páginas de Los bandidos de Río Frio, y no lo creaba Payno de memoria: lo que describía lo había visto, era el México de sus recuerdos. Y éstos, en la perspectiva lejana de su patria y de su tiempo, aclaraban sus perfiles y adquirían cierta composición y tonalidad y facilitaban su dibujo (CASTRO LEAL, 1991, p. X-XI).

Payno era o cronista da revolução, que recriava a realidade através de um esforço da

memória. Mas antes de tudo, era um escritor que escrevia a partir da experiência das ruas, das

batalhas que ele travou como soldado. Foi tido por muitos e por muito tempo como um autor

de folhetins, um escritor de novelas de costumes e nada mais. Assim tem sido catalogado nos

livros de história literária e nas antologias da literatura mexicana. Glantz, questiona essa

catalogação constante de Payno como folhetinesta:

Por eso me pregunto: “ ¿Podrá hacerse un estudio profundo de Payno si se le sigue catalogando solamente como un folletinista de estilo descuidado y costumbrista, o si se afirma que en él se notan todos los defectos inherentes al folletín? Estos serian los siguientes: a) sus personajes no son consistentes,

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b) desaparecen del texto de repente, o su importancia textual disminuye a medida que avanza la historia, y enfin, c) sus personajes no están bien caracterizados psicológicamente como debiera suceder con los personajes de una novela realista (GLANTZ, 1994, p. 142).

Os problemas enumerados por Glantz na obra de Payno são aqueles que a crítica se

apega com frequência para não reconhecê-lo como grande escritor. A pesquisadora propõe,

então, buscar outros elementos na obra do escritor que o possibilitaria ser catalogado não mais

como “folhetinista e autor de novelas de costumes, com estilo descuidado”. Por essa

perspectiva, Glantz parece negar o valor de folhetinista para que Payno seja um escritor. Se a

intenção é estudar o folhetim e reconhecer valor nos folhetinistas, que sejam dadas qualidades

especificas ao folhetim, e dentro delas a qualidade para cada realizador. Neste ponto Glantz se

aproxima de Meyer, quando esta lamenta que os primeiros folhetins brasileiros sejam tão

“canhestros”, e não tenham o sabor dos conhecidos folhetins franceses. Faltou tanto para

Meyer como para Glantz, duas grandes pesquisadoras do folhetim latino-americano, uma

maior valorização do próprio folhetim.

Abandonar os personagens é de fato uma constante em Los Bandidos del Río Frío. O

que precisamos é considerar essa estratégia como positiva desde certa perspectiva, e não mais

negativa. O escritor constrói tantos núcleos que a obra fica descentrada, do ponto de vista de

um romance tradicional. A trama e o enredo se parecem muito com as histórias contadas nas

telenovelas de hoje, em que personagens de núcleos distantes ou próximos, mas separados,

vão se encontrando pouco a pouco, e alguns deles nem chegam a se encontrar.

Acompanhamos o personagem do tenente coronel Juan Robreño que prestes a ser

promovido na carreira militar, cai em desgraça por causa de um amor proibido e se vê

obrigado a desertar, sob pena de ser fuzilado. O tenente marcha para a fronteira, e tudo leva a

crer que ele será o bandido do Río Frío, mas o narrador o abandona e introduz na história um

adolescente aprendiz de torneiro e carpinteiro, Evaristo, o futuro líder dos bandidos do Río

Frío. Payno faz boa descrição dos personagens, não importa se eles serão abandonados ou

não. A atenção em descrever cuidadosamente um personagem faz com que o leitor fique

surpreso com o seu desaparecimento repentino. Payno abre o primeiro capítulo com uma

notícia de jornal, na qual apresenta um caso raro para a curiosidade dos leitores: uma mulher

está grávida há 13 meses:

Capítulo primero En el mes de abril del año de 18 ... apareció en un periódico de México, el siguiente artículo:

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Caso rarísimo nunca antes visto ni oído. En un rancho situado detrás de la Cuesta de Barrientos, que, según se nos ha informado, se llama Santa María de la Ladrillera, tal vez porque tiene un horno de ladrillo, vive una familia de raza indígena, pero casi son de razón. La mujer, que se llama doña Pascuala, hará justamente trece meses, el día de San Pascual Bailón, que salió grávida, no se sabe si de un niño o de una niña, porque hasta ahora no ha podido dar a luz nada. El marido, alarmado, ha mandado llamar al doctor Codorniú, que dicen es un prodigio en medicina, y dicen también que el doctor dijo que, en su vida había visto caso igual.25

Notamos que Payno usa o jornal como matéria da sua ficção que será veiculada pelo

jornal. Notícias inventadas por ele, ou até mesmo verdadeiras, dão veracidade e credibilidade

necessária para introduzir a sua história no rodapé do jornal. A família descrita por Payno é de

raça indígena, mas como diz ele, é “quase de ração”. Esse juízo de valor demonstra certa

visão positivista, de crença no progresso, na qual algumas raças que eram consideradas

inferiores teriam pouco a contribuir. Na sequência do mesmo capítulo o autor introduz outra

notícia de jornal como réplica da primeira e aproveita para descrever melhor os primeiros

personagens, introduzindo temas relevantes da situação social mexicana como a mestiçagem e

direitos à posse da terra:

Ocho o diez días después apareció en el periódico oficial un párrafo que decía así: Cuando un periódico que se publica en la capital ha dicho que el gobierno se ha cogido tierras y la herencia de los descendientes del emperador Moctezuma, ha faltado a la verdad. En cuanto los interesados presenten las pruebas, el gobierno está decidido a hacerles justicia. Doña Pascuala era hija de un cura de raza española, nativo de Cuautitlán. Su hija Pascuala servía de estorbo a un eclesiástico que no quería tener en su casa más que a la dama conciliaria. Aprovechó, pues, la primera oportunidad que se le presentó y la casó con el propietario del rancho de Santa María de la Ladrillera. El marido sí era de raza india, pero con sus puntas de caviloso y de entendido, de suerte que se calificaba bien a estos propietarios cuando se decía que casi eran gente de razón, y a este título se daba a Pascuala el tratamiento de doña, y de don a Espiridión, el marido. Doña Pascuala no era fea ni bonita. Morena, de ojos y pelo negro, pies y manos chicas, como la mayor parte de los criollos. Era, pues, una criolla con cierta educación que le había dado el cura, y por carácter, satirica y extremadamente mal pensada. Don Espiridión, gordo, de estatura mediana, de pelo negro, grueso y lacio, color más subido de moreno, sin barba en los carrillos y un bigote cerdoso y parado, sombreando un labio grueso y amoratado como un morcón; en una palabra: un indio parecido poco más o menos a sus congéneres.26

25 PAYNO, Manuel. Los Bandidos de Río Frío. Disponível em: <http://www.antorcha.net/ biblioteca_virtual/literatura/bandidos/16.html>. Acesso em: 19 mar. 2010. 26 Ibidem. Disponível em: <http://www.antorcha.net/ biblioteca_virtual/literatura/bandidos/16.html>. Acesso em: 19 mar. 2010.

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Na descrição da personagem Mariana, aristocrática, Payno não entra em detalhes

sobre sua constituição física. A moça solteira fica grávida e tudo é narrado com muita

discrição. A fala do tenente Juan ao coronel diz: “Na situação em que nos encontramos não há

outro remédio que casarmos”. O leitor precisa deduzir que a moça que já conta com a

proibição do conde, seu pai, ao romance, está numa situação ainda mais difícil. Mariana

aproveita que seu pai está de viagem e vai até a casa humilde de uma mulher que fora

camareira de sua mãe, quando esta vivia, e pede ajuda. Nesta casa, diante da imagem da Santa

de Guadalupe, amparada pela camareira, a moça dá a luz como se estivesse rezando. Payno

recebeu críticas negativas sobre este tratamento diferenciado para um personagem

aristocrático. Também recebeu críticas positivas, pois estaria retratando de maneira

metaforizando a situação da aristocracia mexicana nos tempos da Colônia. O resultado é a

moça de volta à casa dos pais com a honra imaculada, e uma criança que é deixada numa

pedra, em meio a um lixão, para ser devorada pelos cães. Não falta uma velhinha pobre e

cheia de piedade para salvar a criança que reencontrará a mãe muito anos mais tarde, quando

esta será uma senhora majestosa. O enredo vai se construindo de forma melodramática,

perfeito para uma telenovela mexicana, ou latino-americana em geral. Há muitas mulheres

que engravidam durante a narrativa, mas Payno deixa passar sutilmente sem detalhes.

Principalmente no caso de uma mulher nobre. Glantz infere que seria uma atitude para não

ferir a convenção social:

Los múltiples embarazos que deberían figurar en el relato no son nunca descritos y el vientre de la condesita es invisible textual – carece de cuerpo materno visible en la escritura –, a pesar de ser el vientre productor del niño expósito: de otra forma, proclamaría a los cuatro vientos su ilegitimidad y transgrediría las convenciones de clase (GLANTZ, 1994).

Na construção do folhetim romântico, melodramático em várias passagens, Payno

constrói unidades dramáticas próprias para o teatro, o rádio ou a telenovela. Estas passagens

são encaixadas dentro de outras sequências mais longas e mais sérias, ou mais sisudas como

lutas revolucionárias ou discussão de outros problemas sociais. Uma dessas cenas românticas

é a sequência em que o tenente Juan recebe a carta de Mariana no acampamento militar. A

carta chega pelas mãos de um indiozinho de recados e muda a vida do oficial militar para

sempre. Vejamos a sequência com a transcrição da carta:

Juan desdobló el rollito, pasó rápidamente la vista por las páginas escritas y exclamó arrancándose un mechón de cabellos: - ¡Rayos del cielo! ¡EI infierno se ha conjurado contra mí! ¿Qué hacer? ¿Cómo salir de este aprieto?

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Juan: Yo no sé si Dios me ha abandonado o me quiere todavía. Quiera Dios que llegue a tu poder esta carta porque sería terrible si así no sucediese. Estoy en la casa de Agustina, que tú conoces, y me vine a ella porque... ya lo pensarás, no era materialmente posible que permaneciese un día más en la calle de Don Juan Manuel. Me tienes aquí: mi padre llega el día ... de modo que sólo hay ocho días escasos de qué disponer. ¿Por qué no quiso mi padre que me casara contigo? ¿Porque eres hijo del administrador y él es conde? ¡Malditos mil veces los condes y los marqueses! ¡Maldito mil veces el dinero, que no ha servido sino para hacerme la criatura más infeliz de la tierra! Pero no sé ni cómo tengo valor ni aliento para escribirte estas cosas que tú sabes lo mismo que yo, cuando necesito valor y aliento para otra cosa más terrible, que es morir. Lo he pensado, es el único remedio si mi padre llega antes que tú. Es seguro que mi padre me matará con ese horroroso puñal que conozco desde que abrí los ojos. ¡Llorar! Echarme a sus pies de rodillas, pedirle perdón, todo será inútil. Entre morir cosida a puñaladas y oyendo maldiciones e injurias de mi padre, a morir sentida y llorada por Agustina y por ti, prefiero esto y lo haré, no hay duda ... acabo de examinar el cuchillo ... sí ... entrará fácilmente en mi corazón ... me acostaré en la cama, colocaré lo mejor que pueda la punta, haré un esfuerzo supremo ... Dios tendrá misericordia de mí si tú no vienes. Es necesario que entres por el balcón a la una de la mañana. Agustina te abrirá la vidriera. Adiós.

Já podemos imaginar a sequência dramatizada do jovem arrancando a mecha de

cabelos no vídeo ou a leitura saborosa da carta feita por um locutor de rádio. Por mais que

seja ingênua a carta tem todos os atrativos para uma sequência digna de ser dramatizada. É

folhetim no bom sentido que se dá ao gênero e não precisa ser mais do que isso. No enredo de

Payno, a carta serve de ponto de virada na vida do personagem. O tenente Juan vai ao

encontro da moça e o bandido Gonzalitos entra e sai de Toluca com o seu bando, sem ser

atacado por falta de aviso. O bandido escapa justamente pelo lado que Juan deveria vigiar

com a sua tropa. Ao regressar ao campo fica sabendo que além do bandido escapar por sua

culpa ainda se dá conta de que sua tropa havia debandado por falta de comando. Estava

perdido. Marcha para a fronteira, e o leitor supõe que será mais um bandido.

O personagem Evaristo, o torneiro mecânico, teve oportunidades de seguir uma vida

honesta vivendo a partir do seu trabalho. Diferentemente de Juan Moreira, não se pode dizer

que ele foi um injustiçado. Tornou-se o bandido do Río Frío pela sua má índole, sua ambição

desmedida e os crimes que cometia em prol de obter vantagens na vida. Poder-se-ia acusar

Payno de naturalista ao apresentar um mestiço de índio com propensão ao desvio moral

somente pela sua condição racial. Mas o que Payno mostra é que o mau caratismo e a

ambição desmedida não tem raça e nem cor, tantos são os personagens desviados quanto de

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grande valor moral em todas as raças que compõem o mosaico racial mexicano representado

na obra.

Na sequência de Manuel Payno, o maior destaque vem para Mariano Azuela. Raul

Rivero comparou a Revolução mexicana com a revolução do folhetim, fazendo um trocadilho

“a Revolução do folhetim”, que leva duplo sentido porque o assunto do folhetim era

realmente a revolução:

Un médico de provincia, autor de dos novelas costumbristas de medianías, publicó por entregas un relato en un periódico de El Paso, Texas, en 1915. El hombre se llamaba Mariano Azuela. El folletín, Los de abajo, y la energía de aquella prosa llegó a sacudir las páginas de Pedro Páramo, de Juan Rulfo y las de La muerte de Artemio Cruz, de Carlos Fuentes (RIVERO, 2008).

Figura 10 – Cartaz do filme Los de Abajo. Drama (1940) dirigido por Chano Urueta. México.

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A ligação de Azuela a Payno é clara pela evolução da narrativa mexicana no tocante

ao folhetim tendo como tema a Revolução mexicana. Os modelos franceses foram

substituídos pelos folhetins mexicanos que encontraram na Revolução a sua temática

nacional, com os seu conflitos sociais e a eterna tensão das relações mestiças. O jornal mediou

um forma de escritura que encontrou o seu leitor, o qual passou a ditar o que lhe correspondia

receber como informação e ficção. Outra vez acerta Martín-Barbero (2008) ao falar dos meios

e das mediações.

Figura 11 – Cartaz do filme Los de Abajo. Drama (1978) dirigido

por Servando González. México.

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Los de abajo se liga já com a moderna narrativa de Carlos Fuentes, Juan Rulfo, como

diz Rivero logo acima, mas se liga também com outros grandes narradores mexicanos. Azuela

trabalha com um domínio centrado no que seria escrever um romance ou uma novela. No

conceito de Borges “novelista é quem conduz meia dúzia de personagens e os leva a um

destino”. É o que faz Azuela. Los de abajo não apresenta vários personagens nem distintos

núcleos. Conta as aventuras de um camponês, Demetrio Macías, que perseguido pelo Cacique

do lugar – terra-tenente mexicano –, quem manda queimar seu rancho e perseguir sua família,

se vê obrigado a fugir, sem condições de clamar pela lei que está do lado do Cacique, e se

alistar nas filas da guerrilha revolucionária. O homem luta para combater o Cacique e a

polícia corrupta, sem ideais políticos. Por sua bravura, torna-se um chefe militar e através de

suas relações com os companheiros e adversários a ida do México vai se passando numa tela

narrativa. O folhetim de Azuela perde aquela atmosfera melodramática de Payno, o

romantismo de moinhas apaixonadas prestes a cometerem loucuras, personagens abandonados

na meio da trama, tudo isso desaparece. O ambiente é mais áspero, e as etapas do enredo são

encadeadas racionalmente com habilidade e cuidado narrativo.

Rodríguez Monegal (1992) na sua proposta de divisão da literatura latino-americana

em duas vertentes, a realista e a fantástica, classificou Los de abajo como a melhor obra do

realismo latino-americano. O crítico viu nela valores narrativos e aproveitamento artístico do

ambiente circundante que a colocavam em melhor situação inclusive que os romances do

realismo brasileiro, aos quais conhecia a fundo.

Não há espaço para adentrar a mais detalhes da narrativa em folhetim da imensa

quantidade de textos que publicaram Cuéllar, Payno e Azuela nos jornais mexicanos. Todos

eles publicaram vários folhetins. Sobre a Revolução mexicana também escreveram outros

autores como Martín Luis Gusmán, que publicou dois livros na Espanha sobre este tema.

A relação do folhetim e da crônica jornalística com a cultura popular vai se cruzar

com outro fenômeno de comunicação no México: o cinema. Aurelio de los Reyes estudou as

origens do cinema no México, de 1896 a 1900, e deu especial atenção às crônicas jornalísticas

sobre assunto. Os repórteres, entre eles Amado Nervo, registraram e comentaram tudo. É

incrível como a primeira seção de cinema levada por empresários franceses ao México não

acertou no prognóstico de quem seria seu grande público. Acreditaram que seus assistentes

seriam somente a classe alta, e organizaram uma seção para os cientistas. Principalmente os

cientistas deveriam estar interessados na novidade tecnológica e cientifica. Puro engano.

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Abriram os primeiros cinemas nas zonas privilegiadas, próximas dos teatros. Em pouco tempo

o cinema se popularizou e foi se alastrando:

El espectáculo fue aceptado con vertiginosa rapidez a partir de 1898, y los salones de exhibición rompieron las estrechas fronteras que les habían fijado los empresarios. El número de salones que surgieron indica su rápida popularización, pero es aún más expresivo la ubicación y las dimensiones que tuvieron algunos de los locales (REYES, 1983, p. 84).

Na sequência Reyes vai mostrando o mapa das ruas onde os cinemas foram sendo

instalados. Empresários do mundo do espetáculo entravam com pedido de licença para

instalar cinemas pelas ruas da cidade. Tais cinemas consistiam em tendas de lona em terrenos

desocupados, nos quais o público comparecia em massa. Houve momentos de tensão com os

empresários do teatro que entraram com pedido de intervenção na prefeitura porque as sessões

das tendas de cinema estavam fazendo fracassar as mais prestigiadas companhias de teatro

que traziam cantores da França, da Espanha e da Itália. Há estudos sobre a situação financeira

do México que mostram que o teatro não era acessível aos mais pobres, isso é fato. Por outro

lado, o cinema tão popular, deveria ter algum sabor especial como mediador de conteúdo para

atingir com tanta força o seu uso. Há crônicas que mostram como pessoas chegavam a

empenhar objetos para assistirem às sessões de cinema. O próprio Reyes mostra essa

realidade no seu trabalho.

A crônica jornalística, o romance-folhetim e o cinema vão se encontrar nesse espaço

mexicano. A telenovela mexicana não nascerá por acaso. Nem os grandes contistas mexicanos

surgiram soltos no tempo, sem vínculo com o passado escritural do país. Estudos como os de

Merlín Foster e Julio Ortega (1986) mostram com mais exemplos e em mais espaço a

evolução escritural que vai da crônica à nova narrativa mexicana. Quisemos fazer apenas um

levantamento das questões para seguir o nosso debate. Passemos então ao terceiro capítulo, no

qual devemos considerar a crônica jornalística e a evolução para o conto breve latino-

americano.

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3 AS CRÔNICAS JORNALÍSTICAS E O CONTO BREVE

A partir da análise de uma série de crônicas jornalísticas produzidas por escritores

latino-americanos, podemos ver que houve uma revolução de comunicação no continente, que

resultou numa revolução literária, dos pontos de vistas da temática e da expressividade.

Dentro do campo de observação da crônica jornalística verificamos que houve uma evolução

da crônica para o conto breve. Como não podemos considerar o trabalho de todos os

escritores que publicaram crônicas, muito menos toda a quantidade de crônicas publicadas,

partimos pelas considerações sobre a qualidade das crônicas publicadas por Machado de Assis

nos jornais brasileiros do século XIX. E seguimos com a inovação causada por Paulo Barreto

(1881-1921), mais conhecido pelo pseudônimo de João do Rio, que atualizou a crônica

carioca com o novo ritmo da cidade e a incorporou aos avanços tecnológicos dos jornais,

fazendo com que ela saísse do folhetim e se estruturasse em torno do que ela é na atualidade.

Na produção escritural no lado hispânico do continente, merece destaque a grande revolução

literária que os modernistas fizeram a partir do periodismo, e que a crítica mais recente vem

reconhecendo como mais profunda do que a da poesia, que sempre foi mais celebrada.

Figuras como Rubén Darío, José Martí, Manuel Gutiérrez Nájera, Amado Nervo, José Juan

Tablada, José Enrique Rodó, entre outros, foram protagonistas dessa revolução literária que o

periodismo promoveu, com especial destaque para a escritura de crônicas. Trabalhos como os

de Susana Rotker sobre a produção escritural de José Martí vêm mostrar que a crônica

estabeleceu na América Latina a fundação de uma escritura.

Uma produção relegada pela crítica, que só muito mais tarde vem sendo reconhecida

como arte, portanto, como escritura de comunicação com valores artísticos ou literários. Essa

situação é correlata a toda a vasta produção de crônica jornalística em toda a América Latina.

A crítica latino-americana seguiu os parâmetros do pensamento europeu, relegando a crônica

e o conto breve, gêneros nascidos no jornal, ou a partir do periodismo. Infelizmente, veremos

como o grau de arte fina só foi atribuído à crônica concisa e bem elaborada e ao conto breve

bem acabado muito tardiamente, quando a qualidade dos jornais já entrava em xeque. Por

último, veremos como a modernização narrativa da crônica jornalística recupera, ou melhor,

segue uma das tendências da escritura do continente que é a de fazer a “crônica da paisagem”

(PINHEIRO, 2002, p. 331-340).

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3.1 O Nascimento da Crônica

O primeiro cronista do Brasil foi Pero Vaz de Caminha, com a carta escrita a El-rei

D. Manuel, da qual já nos ocupamos. O primeiro cronista das Américas foi Cristovão

Colombo, com as suas cartas escritas aos soberanos espanhóis. O primeiro cronista do México

foi Hernán Cortez. Desses cronistas descendem os que os sucederam nas crônicas de cada país

que se ia fundando no continente, e também das expedições que se faziam para explorar e

conhecer a natureza e as pessoas de cada lugar. Alguns dos exemplos são as crônicas dos

padres jesuítas e franciscanos. Uma das mais conhecidas, que liga o extremo da América do

Sul aos confins do Brasil é a Crônica do novo descobrimento do Rio Amazonas, do Padre

Cristóbal de Acuña, religioso da Companhia de Jesus. A crônica do Padre Acuña foi

publicada em Madrid, no ano de 1641, e narra o que ele viu e registrou numa viagem de

expedição que foi de Quito (Equador) a Belém (Brasil). Seu objetivo “era fazer um relatório

completo de tudo o que visse durante a viagem, informando o mais corretamente possível as

riquezas existentes na região, além de descrever a geografia e as populações locais”

(ESTEVES, 1994, p. 19. In: ACUÑA, 1994). A crônica do Padre Acuña dialoga com a

crônica de Carvajal, pelo grau de fantasia que habita a narrativa, nem sempre objetiva.

Dialoga também com outras crônicas de autoria anônima sobre o Rio Amazonas. Alguns

delas seriam tão fictícias que teriam sido feitas a partir de mapas da região, por cronistas

anônimos que nunca haviam feito tal viagem e, portanto, só podiam fazer ficção. Os cronistas

que vêm depois recuperam algumas características desses exploradores, e assim

sucessivamente até a crônica atual.

No caso particularmente brasileiro, a carta de Caminha foi encontrada na Torre do

Tombo em 1773 por Seabra da Silva, e até os dias de hoje não parou de ser lida, copiada,

difundida, parodiada, e de certo modo, reescrita. A crônica moderna, aceita como gênero

literário, também tem sua ligação com o esse documento fundador de novos horizontes. Jorge

de Sá fez um estudo conciso, mas bastante didático sobre a evolução da crônica no Brasil,

desde o descobrimento até a atualidade da moderna crônica jornalística, especificando

qualidades de quase todos os grandes cronistas em diferentes momentos da história nacional.

Abre o primeiro capítulo de seu livro A crônica com a citação:

A carta de Pero Vaz de Caminha a El-rei D. Manuel assinala o momento em que, pela primeira vez, a paisagem brasileira desperta o entusiasmo de um cronista, oferecendo-lhe a matéria para o texto que seria considerado a nossa

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certidão de nascimento. Se a carta inaugura o nosso processo literário é bastante discutível: sua importância histórica e sua presença constante até mesmo nos modernos poemas e narrativas parodísticos atentam que, pelo menos, ela é um começo de estruturação, não é o marco inicial de uma busca que, inevitavelmente, começaria na linguagem dos “descobridores” que chegavam à Terra de Vera Cruz, até que um natural dos trópicos fosse capaz de pensar a realidade brasileira pelo ângulo brasileiro, recriando-a através de uma linguagem livre dos padrões lusitanos (SÁ, 1987, p. 5).

Temos uma contradição. Ao mesmo tempo em que Jorge de Sá diz que a carta de

Caminha é o nosso documento inaugural, põe em xeque sua qualidade literária. Demonstra

predisposição para aceitar os pressupostos batidos da teoria literária que insiste em classificá-

la como literatura de informação, quando ela merece ser vista como literatura de formação. A

outra falta que ele vê na carta é o fato de ela ser a escrita da realidade brasileira pelo ângulo

de um lusitano. Questão por nós já superada pela luz da teoria antropofágica e pelo

pensamento mestiço. Na sequência de seus argumentos, Jorge de Sá é mais contraditório, pois

admite que Caminha é um cronista criador:

Indiscutível, porém, é que o texto de Caminha é criação de um cronista no melhor sentido literário do termo, pois ele recria com engenho e arte tudo o que ele registra no contato direto com os índios e seus costumes, naquele instante de confronto entre a cultura européia e a cultura primitiva. Não é gratuitamente, portanto, que ele conta a el-rei detalhes aparentemente insignificantes, tais como: “(...) E daqui mandou o Capitão a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas. Aos quais mandou dar a cada um uma camisa nova, uma carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que eles levaram nos braços, e cascavéis e campainhas. E mandou com eles para ficar lá um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a quem chamam Afonso Ribeiro, para andar lá com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho” (SÁ, 1987, p. 6).

Acerta bastante quando diz que o texto de Caminha é uma criação no sentido

literário. Quando diz que Caminha trabalha com retalhos, sugere uma boa metáfora, a da

crônica como uma colcha de retalhos, na qual esse cronista artesanal alinhava os fatos,

abrindo caminho para os cronistas vindouros:

Seu relato é, assim, fiel às circunstâncias, onde todos os elementos se tornam decisivos para que o texto transforme a pluralidade dos retalhos em uma unidade bastante significativa. Dessa forma, por mais que ele tenha afirmado, no início da “nova do achamento”, que, “para o bem contar e falar, o saiba pior que todos fazer”, percebemos que tem consciência da possibilidade de “aformosear” ou “afear” uma narrativa, sem esquecer que a experiência vivida é que a torna mais intensa. Daí o cuidado em reafirmar que ele escreve após ter ido à terra “para andar lá com eles e saber de seu viver e maneiras”: a observação direta é o ponto de partida para que o

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narrador possa registrar os fatos de tal maneira que mesmo os mais efêmeros ganham uma certa concretude. Essa concretude lhes assegura a permanência, impedindo que caiam no esquecimento, e lembra aos leitores que a realidade – conforme a conhecemos, ou como é recriada pela arte – é feita de pequenos lances. Estabelecendo essa estratégia, Caminha estabeleceu também o princípio básico da crônica: registrar o circunstancial (SÁ, 1987, p. 6).

Eis uma tarefa para o gênero que habitaria e se desdobraria nas páginas dos jornais:

registrar o circunstancial. “Nossa literatura nasceu, pois de uma circunstância. Nasceu da

crônica” (SÁ, 1987, p. 7). Partir da carta de Caminha como o nosso primeiro registro do

circunstancial é uma opção didática. Machado de Assis, quem retoma esse aspecto em suas

crônicas, nos explica de forma bem humorada, que a crônica é o registro do circunstancial, da

trivialidade, e que seu nascimento remonta aos tempos do paraíso. Vejamos a transcrição de

uma crônica que explica de forma formidável o que é a crônica, e qual é a sua idade:

O Nascimento da Crônica27 (texto completo) Machado de Assis Há um modo certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e la glace est rompue; está começada a crônica. Mas, leitor, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abrão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer camisarias; a segunda é que ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem. Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhe perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano. Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dizia que não pudera comer ao jantar, outra tinha a camisa mais ensopada do que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica. Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contudo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à

27 Texto datado de 1 de novembro de 1877.

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canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol, é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra. Não afirmo sem prova. Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os dias e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: – Que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido! Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas; estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, e daí às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos; lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia? (MACHADO DE ASSIS, 1994, p. 13-14).

3.2 O Narrador-Repórter Registra o Circunstancial e Promove a Evolução do

Folhetim à Crônica Atual

A crônica perdeu a “extensão da carta de Caminha”, mas “conservou a marca de

registro circunstancial feito por um narrador-repórter que relata um fato não mais a um só

receptor privilegiado como El-rei D. Manuel, porém a muitos leitores que formam um púbico

determinado (SÁ, 1987, p. 7). Um público variado, que não é apenas receptor, mas um

público que dita o ritmo e o fôlego da crônica com seu ritmo de vida.

Nos tempos atuais está bastante divulgada nos meios literários do Brasil a produção

jornalística de João do Rio. A revolução que a crônica jornalística brasileira realizou com o

repórter que resolveu sair das redações e ir às ruas do Rio de Janeiro à cata das situações mais

triviais e corriqueiras para estampá-las nas páginas dos jornais, hoje continua revolucionando

as letras a partir das edições em livro. Podemos apenas imaginar, a partir da leitura feita em

livro, o impacto que causavam seus textos no meio social. Sua figura, nem sempre bem aceita

pelos mais abastados e preconceituosos, suas temáticas, e o trato com a linguagem mostram

como ele soube circular entre as rodas mais finas da sociedade carioca e as classes mais

humildes da cidade: trabalhadores do porto, camelôs, malandros, prostitutas, inclusive, para

trazer para as páginas dos jornais e revistas o ritmo vivo da cidade. Entre os que pensam

assim está Jorge de Sá. De fato, João do Rio merece ser tido como o cronista símbolo dessa

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revolução, mas é preciso levar em conta que ele não foi o único em operar essa mudança. A

crônica jornalística brasileira já havia ganhado notoriedade com Machado de Assis, que as

escrevia exclusivamente para a publicação de revistas e de jornais e por cujos textos diários

ou semanários os leitores aguardavam ansiosamente. Estudos mais recentes como os de

Antonio Dimas vêm demonstrando que Olavo Bilac, tão conhecido como poeta parnasiano,

foi mais profícuo como cronista. Escreveu, sobretudo, no Correio Paulistano, e na Gazeta de

Notícias, do Rio de Janeiro, onde teve a tarefa nada fácil de substituir Machado de Assis, que

se retirava do jornal para se dedicar inteiramente ao labor de romancista.

Depois de alguns anos como cronista da Gazeta de Notícias, Machado de Assis afastou-se, deixando o posto para Bilac. Em 1897, ano dessa substituição, Machado já se impusera como romancista e como intelectual. Seu Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1881, abrira-lhe o caminho para uma modalidade nova de realismo, que não o naturalismo; seu Quincas Borba, dez anos mais tarde, confirmaria a escolha a ser consolidada com Dom Casmurro, anos depois. Como intelectual, sancionara-se seu prestígio com a escolha de seu nome, entre doze outros, para a presidência da Academia Brasileira de Letras, que vinha de ser fundada. No primeiro momento em que nossa sociedade de letras se constituía enquanto segmento social definido, Machado era lembrado para dirigi-la, presidi-la e representá-la (DIMAS. In: BILAC, 1996, p. 9).

Olavo Bilac já vinha publicando em diversas colunas de vários jornais antes de ser

convidado para substituir Machado de Assis. Com a coluna “Crônica” ele ganha um espaço

fixo e uma incumbência clara: renovar a crônica desse prestigioso jornal. Há, portanto, que

situar o Olavo Bilac cronista entre Machado de Assis e João do Rio, como vamos propor aqui.

Vejamos, antes, as considerações de Jorge de Sá sobre a evolução que João do Rio deu à

crônica:

No tempo de Paulo Barreto (1881-1921), por exemplo, era apenas uma seção quase que informativa, um rodapé onde eram publicados pequenos contos, pequenos artigos, ensaios breves, poemas em prosa, tudo, enfim, que pudesse informar os leitores sobre os acontecimentos daquele dia ou daquela semana, recebendo o nome de folhetim. Acontece que Paulo Barreto percebeu que a modernização da cidade exigia uma mudança de comportamento daqueles que escreviam a sua história diária. Em vez de permanecer na redação à espera de um informe para ser transformado em reportagem, o famoso autor de As religiões no Rio ia ao local dos fatos para melhor investigar e assim dar mais vida ao seu próprio texto: subindo morros, freqüentando lugares refinados e também a fina flor da malandragem carioca, João do Rio (seu pseudônimo mais conhecido) construiu uma nova sintaxe, impondo a seus contemporâneos uma outra maneira de vivenciar a profissão de jornalista. Mudando o enfoque, mudaria também a linguagem e a própria estrutura folhetinesca (SÁ, 1987, p. 8-9).

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Para apreendermos o ritmo de fala de João do Rio, nada melhor do que

transcrevermos trechos de sua obra, assim entraremos diretamente nela sem parodiarmos.

Veremos como o repórter traz à tona atividades quase invisíveis da cidade. A transcrição,

ainda que só de um trecho, permite que façamos um flagrante do cronista em plena interação

com o seu meio ambiente:

PEQUENAS PROFISSÕES (trecho) João do Rio O cigano aproximou-se do catraieiro. No céu, muito azul, o sol derramava toda sua luz dourada. Do cais via-se para os lados do mar, cortado de lanchas, de velas brancas, o desenho multiforme das ilhas verdejantes, dos navios, das fortalezas. Pelos bulevares sucessivos que vão dar ao cais, a vida tumultuária da cidade vibrava num rumor de apoteose, e era ainda mais intensa, mais brutal, mais gritada, naquele trecho do Mercado, naquele pedaço da rampa, viscoso de imundícies e de vícios. O cigano, de fraque e chapéu mole, já falara a dois carroceiros moços e fortes, já se animara a entrar numa taberna de freguesia retumbante. Agora, pelos seus gestos duros, pelo brilho dom olhar, bem se percebia que o catraieiro seria a vítima, a vítima definitiva, que ele talvez procurasse desde manhã, como um milhafre esfomeado. Eduardo e eu caminhando para a rampa, na aragem fina da tarde que se embebia de todos aqueles cheiros de maresia, de gordura, de aves presas, de verduras. O catraieiro batia negativamente com a cabeça. – Uma calça, apenas uma, em muito bom estado. – Mas eu não quero. – Ninguém lhe vende mais barato, palavra de honra. E a fazenda? Veja a fazenda. Desenrolou com cuidado um embrulho de jornal. De dentro surgiu um pedaço de calça de cor castanha. – Para o serviço! Dois mil réis, só dois!... Eu tenho família, mãe, esposa, quatro filhos menores. Ainda não comi hoje! Olhe, tenho aqui uns anéis... não gosta de anéis? O catraieiro ficara, sem saber como, com o embrulho das calças, e o seu gesto fraco de negativa bem anunciava que iria ficar também com um dos anéis. O cigano desabotoara o fraque, cheio de súbito receio. – É um anel de ouro que achei, ouro legítimo. Vendo barato: oito mil réis apenas. Tudo dez mil réis, conta redonda! – O catraieiro sorria, o cigano era presa de uma agitação estranha, agarrando a vítima pelo braço, pela camisa, dando pulos, para lhe cochichar ao ouvido palavras de maior tentação; ninguém naquele perpétuo tumulto, ninguém no rumor do estômago da cidade, olhava sequer para o negócio desesperado de cigano. Eduardo, que nessa tarde passeava comigo, arrastou-me pelo ex-largo do Paço, costeando o cais até a velha estação das barcas. – Admiraste aquele negociante ambulante? – Admirei um refinado “vigarista”... – Oh! Meu amigo, a moral é uma questão de ponto de vista. Aquele cigano faz parte de um exército de infelizes, a que as condições da vida ou do próprio temperamento, a fatalidade, enfim, arrasta muita gente. Lembras-te

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de La romera de Santiago, de Velez de Guevara? Há lá uns versos que bem exprimem o que são essas criaturas: Estos son algunos hombres De obligaciones, que pasan Necesidad, y procuran De esta suerte remediarla Saliéndose a los caminos. É quanto basta como moral. Não sejamos excessivos para os humildes. O Rio tem também as suas pequenas profissões exóticas, produto da miséria ligada às fábricas importantes, aos adelos, ao baixo comércio; o Rio como todas as grandes cidades, esmiúça no próprio monturo a vida dos desgraçados. Aquelas calças do cigano, deram-lhas ou apanhou-as ele no monturo, mas como o cigano não faz outra cousa na sua vida senão vender calças velhas e anéis de plaquê, aí tens tu uma profissão da miséria, ou se quiseres, da malandrice – que é sempre a pior das misérias. Muito pobre diabo por aí pelas praças parece sem ofício, sem ocupação. Entretanto, citados! O oficio, as ocupações, não lhes faltam, e honestos, trabalhosos, inglórios, exigindo o faro dos cães e a argúcia dos repórteres (RIO, 2009, p. 54-56).28

João do Rio declara seu amor à rua, num texto lido em conferência, e publicado

depois como A rua, na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em 10 de outubro de 1905. O

cronista mostra ter ciência de que seu amor à rua é compartilhado pelo seu interlocutor, o que

respalda suas empreitadas de andarilho, de mundano. “Eu amo a rua. Esse sentimento de

natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para

julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por vós.” (RIO, 2009, p.

28).

João do Rio publicava também na revista Kosmos do Rio de Janeiro. Nessa revista

publicou algumas das crônicas sobre as “pequenas profissões” ou “profissões exóticas”, que

mais tarde integrariam o livro A alma encantadora das ruas. Na revista Kosmos n. 11, de

novembro de 1904, saiu “Os tatuadores”, reportando o trabalho dos meninos tatuadores no

cais do porto ou nas ruas onde se concentravam a extração mais popular da sociedade. O

exemplar n. 2 da revista, de fevereiro de 1906, trouxe à luz a crônica “Cordões”, texto

ilustrado por Klixto. Jornais e revistas estavam cada vez mais agregando imagens ilustrativas

aos seus textos: desenhos ou fotografia. Dessa crônica, vale a pena transcrever um trecho,

correspondente à primeira página da edição publicada em livro – se bem que a última linha

termina na página seguinte –, para sentirmos a intensidade do ritmo que João do Rio imprime

ao falar dos cordões de carnaval que invadem o centro do Rio de Janeiro. A intensidade do 28 Na edição em livro, preparada por Raúl Antelo, essa crônica ocupa oito páginas, p. 54-61, das quais transcrevemos apenas duas páginas e meia. Pequenas profissões, informa Raúl Antelo, foi estampada na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em 1 de agosto de 1904, com o título “Profissões exóticas”.

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ritmo nessa narrativa já é um ritmo de conto breve, faltando para tal o corte, o enxugamento

dos sucessos narrados:

CORDÕES (trecho) João do Rio

Oh! abre ala! Que eu quero passá

Estrela d´Alva Do Carnavá!

Era em plena rua do ouvidor. Não se podia andar. A multidão apertava-se, sufocada. Havia sujeitos congestos, forçando a passagem com os cotovelos, mulheres afogueadas, crianças a gritar, tipos que berravam pilhérias. A pletora da alegria punha desvarios em todas as faces. Era provável que do largo de São Francisco à rua Direita dançassem vinte cordões e quarenta grupos, rufassem duzentos tambores, zabumbassem cem bombos, gritassem cinqüenta mil pessoas. A rua convulsionava-se como se fosse fender, rebentar de luxúria e de barulho. A atmosfera pesava chumbo. No alto, arcos de gás besuntavam de um a luz de açafrão as fachadas dos prédios. Nos estabelecimentos comerciais, nas redações dos jornais, as lâmpadas elétricas despejavam sobre a multidão uma luz ácida e galvânica, que enlividescia e parecia convulsionar os movimentos da turba, sob o panejamento multicolor das bandeiras que adejavam sob o esfarelar constante dos confetti, que, como um irisamento do ar, caíam, voavam, rodopiavam. Essa iluminação violenta era ainda aquecida pelos braços de luz auer, pelas vermelhidões de incêndio e as súbitas explosões azuis e verdes dos fogos de Bengala; era como que arrepiada pela corrida diabólica e incessante dos archotes e das pequenas lâmpadas portáteis. Serpentinas riscavam o ar; homens passavam empapados d’água, cheios de confetti; mulheres de chapéu de papel curvavam as nucas à etila dos lança-perfumes, frases rugiam cabeludas, entre gargalhadas, risos, berros uivos, guinchos (RIO, 2009, p. 140-41).

Precisamos observar que os contos de qualidade artística já existiam nos jornais,

concomitantes à crônica jornalística, pois saíram ambos os tipos do folhetim, mas faltava

ainda uma consciência do contista como artista, que tem na atividade de contar contos um fim

em si mesmo, e não o de praticar a narrativa curta como preâmbulo para encarar algo mais

vasto como um romance. Estava ocorrendo uma evolução na narrativa, algo que se situaria

entre o conto tradicional (de modelo europeu), e a crônica jornalística. Esta evolução

desembocaria no conto breve latino-americano. Machado de Assis, que havia se retirado do

jornal para se dedicar ao labor de romancista, já tinha clara consciência de que a função de

contista é diversa da de romancista, e isso podemos ver nos seus contos mais bem acabados.

Outros escritores latino-americanos já haviam dado ao conto uma atenção especial. O

argentino Leopoldo Lugones publicou Las fuerzas extrañas em 1906, um livro de contos

fantásticos, que Borges verá como o iniciador do conto fantástico na Argentina, embora veja

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muitos defeitos em tais contos. Antes de Lugones temos o nicaraguense Rubén Darío,

reconhecido pela crítica como o representante máximo do modernismo em língua espanhola,

sobretudo por sua poesia. Em prosa quase todos os projetos de romance de Rubén Darío

fracassaram, ou não obtiveram o êxito esperado. Já seus relatos breves chegaram a terrenos

mais propícios à sobrevivência. Seus contos "Las albóndigas del Rhin" e "Los diamantes del

coronel" datam de 1885-1886, e apontam para a precosidade do escritor no gênero. Mais

destacados, no entanto, são os relatos recolhidos em Azul como "El rey burgués", "El sátiro

sordo" ou "La muerte de la emperatriz de la China". Darío continuaria cultivando o gênero

durante seus anos argentinos com títulos como "Las lágrimas del centauro", "La pesadilla de

Honorio", "La leyenda de San Martín" ou "Thanatophobia". Seus textos eram publicados nos

jornais, depois chegavam ao livro. E Leopoldo Lugones, que também publicava crônicas nos

jornais, quando publicou Cuentos fatales, seu segundo livro de contos em 1926, já contava

com a companhia do uruguaio Horacio Quiroga, quem havia publicado Cuentos de amor, de

locura y de muerte, em 1917. Livro que iria instigar os escritores e marcar um avanço

definitivo na escritura latino-americana, em relação ao relato breve.

Mas voltemos à crônica. Essa digressão, ou melhor, progressão, serve para inferir

que o conto breve do futuro estava em gestação nas páginas dos jornais. Os latino-americanos

ainda escreviam muitos contos seguindo o modelo do conto europeu. A presença de almas

penadas e forças estranhas nos contos de Lugones e de Rubén Darío deixam transparecer uma

presença forte dos contos do espanhol Adolfo Bécquer, entre outros europeus de orientação

gótica. Voltemos, pois, para considerar a contribuição de Olavo Bilac, que começa nos

jornais, como já dissemos, antes de João do Rio. Sobre sua participação na Gazeta de Notícias

do Rio de Janeiro Antônio Dimas nos diz:

Como cronista da Gazeta, Bilac começara em 1890, mas sua colaboração se interrompera logo, para ser retomada, de modo contínuo, a partir de 1893. Portanto, quando Ferreira de Araújo, o proprietário do jornal e responsável por uma fase de modernização da imprensa carioca, convidou-o para tomar o lugar de Machado, Bilac já era “de casa”. Isso, todavia, não o impediu de sentir certo desconforto. A responsabilidade de substituir um romancista acatado e visto como líder natural do grupo pesava. Não devia ser fácil a incumbência de preencher um espaço consagrado, em jornal que se destacara pelo nível de seus colaboradores. Devia ser menos fácil ainda a construção temática e formal de um caminho próprio que se distanciasse do machadiano, fortemente alusivo, e que cutucasse o leitor sem melindrá-lo. Mais do que simples substituição, essa escolha significava nova orientação para aquela seção do jornal, que dizia adeus à ironia oblíqua e se entregava à mordacidade eventual. Nessa nova função, Bilac se tornaria aguerrido formador de opinião e se despediria das helenizações que tanto preencheram (e estigmatizaram, de forma apressada, sem dúvida) sua poesia.

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Aparentemente convencido de que o novo espaço exigia nova atitude, o jornalista espreguiça-se feito gato lambão e aponta-se para as novas funções (DIMAS. In: BILAC, 1996, p. 10-11).

Bilac foi convidado pelo dono do jornal, Ferreira de Araujo, para ocupar um lugar

que muitos escritores queriam. A Gazeta de notícias era “um jornal que fora objeto do desejo

de toda uma geração e que desfrutava do prestigio de ter sido fundamental na

profissionalização do intelectual de letras no Rio de Janeiro” (DIMAS. In: BILAC, 1996, p.

13). O jornal estava empenhado em acompanhar e ajudar a promover a revolução social e

política daqueles tempos.

Naquele fim de século excitado com tanta modificação política e social, a Gazeta de Ferreira de Araújo apostava nas mudanças, mediante uma diagramação mais ágil e remuneração sistemática de seus colaboradores. Segundo Brito Broca, era esse o jornal “que abria maior espaço à colaboração literária no Brasil e que melhor pagava os escritores, só encontrando um concorrente nesse terreno: o Diário Mercantil, de Gaspar da Silva, em São Paulo”,29 do qual Bilac fora também colaborador na década e 80 (DIMAS. In: BILAC, 1996, p. 13).

Se João do Rio amplia o leque de assuntos da crônica ao perambular pelos “altos” e

“baixos” lugares da cidade, com Bilac ela ganha liberdade para abarcar e enredar qualquer

assunto. Da imensa quantidade de crônicas que Bilac publicou nos jornais, “uma pequena

parcela foi recolhida em livro”, nos diz Dimas, que também fez uma espécie de mapeamento

dos assuntos encontrados nessas crônicas.

Ao contrário de seu antecessor na Gazeta de Notícias, Bilac não titubeava em opinar sobre os mais diversos assuntos que interessassem diretamente à organização da sociedade civil. Para ele, tudo era assunto, tudo era motivo de atenção. Urbanização, saúde pública, defesas do menor, escândalos políticos, ingerência da Igreja no Estado, festas populares, carestia, segurança urbana, deficiência do transporte público, violência sexual, política internacional, emancipação feminina, lançamentos literários, penúrias do funcionalismo, crueldade contra velhos, maus-tratos a animais, nada escapava àqueles óculos que mal disfarçavam um forte estrabismo. Dessa gula por assuntos decorre certamente a grande dificuldade para se encaixar o cronista múltiplo. Por onde começar? Que filão aproveitar? De que modo enfrentar esse caleidoscópio? (DIMAS. In: Bilac, 1996, p. 15).

De toda essa vastidão de assuntos aos quais se dedicou Bilac devemos dar mostra de

alguns aspectos. Um deles refere-se à série de crônicas que o autor publicou no livro Crônicas

e novelas, em1894. Trata-se do primeiro livro em prosa de Bilac, no qual ele apresenta uma 29 Antônio Dimas cita a referência de Brito Broca na nota de rodapé. Como não nos foi possível consultar a edição, citamos a nota completa de Dimas: Brito Broca. A vida literária no Brasil – 1900. 2. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. p. 218.

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série de crônicas ficcionalizadas, bastante próximas do conto. Um exemplo é a crônica

recolhida em livro com o título de “Haxixe”, que fora publicada na Gazeta de notícias, em 2

de abril de 1894, com o título de “Crônica livre”. Dimas mostra como nesse texto, e em vários

outros que o seguem, aparecem o personagem Jacques, alter ego de Bilac.

Haxixe (trecho) Olavo Bilac Como a conversação, depois de haver borboleteado de assunto em assunto, durante esse jantar de refinados, tivesse caído afinal em Baudelaire e nos seus Paraísos artificiais, Jacques, que aos trinta anos de idade já tem experimentado todos os prazeres e provado todos os desgostos, disse acendendo o charuto e enchendo o segundo cálice de chartreuse verde: “Pois afirmo-lhes eu, com conhecimento de causa, que a embriaguez do ópio não tem nenhum dos encantos que lhe atribui Baudelaire...” “Oh! desgraçado! Pois até já tomaste haxixe?”, indagou um de nós, com alguma incredulidade. “Propriamente haxixe não tomei, mas tomei coisa melhor.” E relatou-nos isto: “Foi há muito tempo. Estava eu morrendo de tédio numa cidade do Norte.

Toda a solidão daquelas ruas muito direitas, muito largas muito vazias me havia entrando na alma. Como eu me aborrecia, meus amigos! E imaginem que, por esse tempo, sofria eu de uma singular excitação nervosa, que me fazia ficar semanas inteiras sem dormir, com o corpo quebrado, todo o organismo vibrando dolorosamente ao menor choque, à menor emoção (...) Um dia, um médico meu amigo aconselho-me o uso do ópio” (BILAC, 1996, p. 31-33).

Temos a introdução do tema por um narrador presente à narração, outro personagem

que assume o protagonismo narrando uma experiência pessoal, e um grupo de amigos que o

escuta, dizendo, de vez em quando, algumas frases como quem diz “continua que te estamos

escutando”. Na sequência o personagem Jacques vai contar como a sua alma saiu do corpo no

momento de embriaguez, e como ele a via pairando acima dele, assustado, pois dentro de seu

corpo naquele momento, tinha outra alma. Lendo o texto completo, chegamos à convicção de

que essa Crônica livre poderá entrar com critérios numa antologia de contos.

Outro aspecto interessante que podemos observar entre as temáticas de Bilac é a

recorrência com que ele fala do jornal e da própria imprensa. Estava havendo uma revolução

dos meios e ele comenta este estado, valendo-se da metalinguagem. Chegar a prever um

jornal que mostrará imagens enquanto um megafone acoplado comenta as notícias. Como um

adivinho do futuro dos meios, ele prenuncia o surgimento do telejornalismo, em pleno ano de

1901.

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Fotojornalismo30 Olavo Bilac Vem perto o dia em que soará para os escritores a hora do irreparável desastre e da derradeira desgraça. Nós, os rabiscadores de artigos e notícias, já sentimos que nos falta o solo debaixo dos pés... Um exército rival vem solapando os alicerces em que até agora assentava a nossa supremacia: é o exército dos desenhistas, dos caricaturistas e dos ilustradores. O lápis destronará a pena: Ceci tuera cela. O público tem pressa. A vida de hoje, vertiginosa e febril, não admite leituras demoradas, nem reflexões profundas. A onda humana galopa, numa espumarada bravia, sem descanso. Quem não se apressar com ela, será arrebatado, esmagado, exterminado. O século não tem tempo a perder. A eletricidade já suprimiu as distâncias: daqui a pouco quando um europeu espirrar, ouvirá incontinenti o “Deus te ajude” de um americano. E ainda a ciência humana há de achar o meio de simplificar e apressar a vida por forma tal que os homens já nascerão com dezoito anos, aptos e armados para todas as batalhas da existência. Já ninguém mais lê artigos. Todos os jornais abrem espaço às ilustrações copiosas que [***] pelos olhos da gente com uma insistência assombrosa. As legendas são curtas e incisivas: toda a explicação vem da gravura, que conta conflitos e mortes, casos alegres e casos tristes. É provável que o jornal-modelo do século XX seja um imenso animatógrafo, por cuja tela vasta passem reproduzidos, instantaneamente, todos os incidentes da vida cotidiana. Direis que as ilustrações, sem palavras que as expliquem, não poderão doutrinar as massas nem fazer uma propaganda eficaz desta ou daquela idéia política. Puro engano. Haverá ilustradores para o louvor, ilustradores para a censura, ilustradores para a sátira, ilustrador para a piedade. Quando o diretor do jornal quiser dizer que o povo morre de fome – confiará as suas idéias a um pintor de alma fúnebre, que mostrará na tela os cadáveres empilhados pelas ruas, sob uma revoada de corvos sinistros; quando quiser dizer que o político X é um cretino que não vê dois palmos diante do nariz – apelará para o talento de um caricaturista, que pintando a vítima com um respeitável par de imensas orelhas, claramente exprimirá o pensamento da folha. Demais nada impede que seja anexado ao animatógrafo um gramofone de voz tonitruosa, encarregado de berrar ao céu e à terra o comentário, grave ou picante, das fotografias. E convenhamos que, no dia em que nós, cronistas e noticiaristas, houvermos desparecidos da cena – nem por isso se subverterá a ordem social. As palavras são traidoras, e a fotografia é fiel. A pena nem sempre é ajudada pela inteligência: ao passo que a máquina fotográfica funciona sempre sob a égide da soberana Verdade, a coberto das inumeráveis ciladas da Mentira, do Equívoco, e da Miopia intelectual. (...) No jornalismo do Rio de Janeiro, já se iniciou a evolução, que vai ser a nossa morte e a opulência dos que sabem desenhar. Preparemo-nos para morrer, irmãos, sem lamentações ridículas, aceitando resignadamente a fatalidade das coisas, e consolando-nos uns aos outros com a cortesia de que, ao menos, não mais seremos obrigados a escrever barbaridades... Saudemos a nova era da imprensa! A revolução tira-nos o pão da boca, mas deixa-nos aliviada a consciência (BILAC, 1996, p. 165-170).

30 Crônica publicada na Gazeta de notícias o Rio de Janeiro em 13 de janeiro de 1901, assinada com as inicias s. a.

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Na situação de mudança dos tempos, revolução política e social que o Brasil vivia,

também se encontravam as sociedades no México, na Argentina, no Peru, no Chile, na

Venezuela, para citar alguns dos países hispano-americanos. Os jornais de todos esses países

incorporavam as ilustrações às suas folhas, onde a fotografia ganhava cada vez mais espaço

na diagramação. Como diz Bilac, a fotografia é a mensageira da verdade, e o cronista terá que

se reinventar para não morrer. Seu espaço na diagramação da folha será reduzido por

circunstâncias da evolução, e isso promoverá uma revolução no estilo de narrar. Dentro desse

cenário, em que vários cronistas se destacam pelas metrópoles dos países afora, é que

podemos eleger João do Rio como símbolo da mudança, que será continuada pelos cronistas

que o seguem.

João do Rio consagrou-se como o cronista mundano por excelência, dando à crônica uma roupagem mais “literária”, que, tempos depois, será enriquecida por Rubem Braga: em vez do simples registro formal, o comentário de acontecimentos que tanto poderiam ser de conhecimento público como apenas do imaginário do cronista, tudo examinado pelo ângulo subjetivo da interpretação, ou melhor, pelo ângulo da recriação do real. João do Rio chegava mesmo a inventar personagens, como o Príncipe Belfort, e dava a seus relatos um toque ficcional. Com isso ele também prenunciou que a crônica e o conto acabariam em fronteiras muito próximas. Sua linha divisória – às vezes, bastante tênue – é a densidade. Enquanto o contista mergulha de ponta-cabeça na construção do personagem, do tempo, do espaço e da atmosfera que darão força ao fato “exemplar”, o cronista age de maneira mais solta, dando a impressão de que pretende apenas ficar na superfície de seus próprios comentários, sem ter sequer a preocupação de colocar-se na pele de um narrador, que é, principalmente, personagem ficcional (como acontece nos contos, novelas e romances). Assim, quem narra uma crônica é o seu autor mesmo, e tudo o que ele diz parece ter acontecido de fato, como se nós, leitores, estivéssemos diante de uma reportagem (SÁ, 1987, p. 9).

Vimos que a invenção de personagens e a ficcionalização da crônica não são

exclusividades de João do Rio. É importante também dizer que a crônica ganhou um aspecto

ainda mais artesanal, trabalho de artista minucioso, dentro dessa nova imprensa que não se

preocupa só em informar, mas também entreter, encantar, enfim, provocar prazer. Rubem

Braga, por exemplo, autor que só escreveu crônicas, não se importando em escrever contos ou

romances, considerados gêneros mais nobres, é um exemplo desse tipo de narrador. Ele

mostra, através de seus textos “um repensar constante pelas vias da emoção aliada à razão.

Esse papel se resume ao que chamamos de lirismo reflexivo (SÁ, 1987, p. 7).

E a evolução da crônica jornalística no Brasil pode ser percebida pela leitura dos

cronistas que vão aparecendo nos jornais e agregando novos elementos a essa escritura. Jorge

de Sá mapeia as características principais de cada cronista. Fernando Sabino vai em “busca do

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pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um”, afirmativa do próprio Fernando Sabino,

que Jorge de Sá não deixa de citar, exemplificando de que modo acontecem essas

características na crônica do autor. Sérgio Porto empenha-se em mostrar o cotidiano visto

pelo humor de seu pseudônimo Stanislaw Ponte Preta. Jorge de Sá vê uma relação temática

entre os poemas satíricos de Gregório de Matos e a “irreverência dos escritos levianos de

Sergio Porto: “O humor tipicamente brasileiro que um dia apareceu nos poemas satíricos de

Gregório de Matos reaparece com total força expressiva nas crônicas de Stanislaw Ponte

Preta. Ou melhor, Sérgio Porto – irmão de criação” (SÁ, 1987, p. 7).

O cenário paulista aparece nas crônicas de Lourenço Diaféria, que o toma por base.

A maior metrópole do país está quase sempre presente nos seus textos, que seguem outra

vertente do humorismo: a precedência do fato sobre os personagens que o vivem.

Jornalisticamente, o narrador confere mais importância ao acontecimento em si, porque é a

partir dele que depreenderemos o lado risível de cenas que se repetem no dia a dia, embora

vividas por atores diferentes. Mas este cenário paulista também é palco de cenas não tão

risíveis. Vejamos um trecho da crônica.

Herói. Morto. Nós. (trecho) Lorenço Diaféria Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Silvio, que pulou no poço das ariranhas para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos. O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra. Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor. Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói – como o santo – é aquele que vive sua vida até as últimas conseqüências. O herói redime a humanidade à deriva. Esse sargento Silvio poderia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major. Está morto. Um belíssimo sargento morto. E todavia. Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias. O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel – onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer – oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.

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O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos. (...) É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quando te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos. Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancado do fosso das ariranhas – como você tirou o menino de catorze anos – mas queríamos que alguém fizesse o gesto solidário em nosso lugar. Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos. E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis – tarde demais (DIAFÉRIA, 1977, p. 44).

Com essas considerações mapeamos o caminho que a crônica brasileira veio

seguindo até desembarcar nas páginas dos grandes diários atuais, onde podemos ver a

concisão e a graça de Mário Prata,31 ou com mais frequência a de Luís Fernando Veríssimo.

Passemos agora ao universo hispano-americano, para tecer algumas considerações sobre os

seus principais cronistas, e mostrar que houve uma situação bem próxima da brasileira.

3.3 A Revolução Modernista. A Crônica como Fundadora de uma Escritura

Sem dúvida merece ser destacada no universo hispano-americano a produção

jornalística dos chamados modernistas, consagrados como poetas. Para se ter uma noção da

estreita relação que essas duas formas de escritura – a poesia e a crônica jornalística –

mantiveram, Susana Rotker nos informa de que durante todo o período só houve dois

cronistas que se mantiveram alheios ao serviço da poesia. Por isso a omissão dessa produção

jornalística, e logo literária, é notável:

La omisión es notable. La relación entre ambas formas de escritura fue tan estrecha, que durante todo el período sólo hubo dos cronistas ajeno al servicio de la poesía – José María Vargas Vila y Enrique Gómez Carillo –, mientras que todos los demás “creadores del arte puro” se volcaron no sólo en poemas, sino en ensayos y crónicas: Manuel Gutiérrez Nájera, Amado Nervo, Julián del Casal, Luís G. Urbina, José Juan Tablada, José Enrique Rodó (ROTKER, 1993, p. 8).

31 Ver na seção de anexos a transcrição da crônica “O Descobrimento do Brasil: Eu vi!”, publicada em O Estado de São Paulo, em 1998, na qual Mário Prata faz uma regressão no tempo até 22 de abril de 1500, e na figura de um índio tupi ele narra o Descobrimento do Brasil de forma humorada, parodiando a Carta de Caminha.

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Falta acrescentar a esta lista de poetas cronistas o nome de Rubén Darío, o que

Rotker fará em outra passagem do texto. Entre estes poetas cronistas merece ser destacado

José Martí, figura mais difundida como poeta e como homem político. José Martí foi um

difusor de temáticas e formas expressivas por meio de suas crônicas. Publicou crônicas no

século XIX, em praticamente todos os jornais de países hispano-americanos e também nos

Estados Unidos. Para se ter uma ideia do número de crônicas que publicou José Martí, da

abrangência dos temas e do espaço geográfico que elas cobriam, bem como dos nomes dos

jornais que as publicavam, citamos o primeiro parágrafo do prólogo que Susana Rotker fez

para uma antologia crítica das crônicas do autor, a qual estamos manuseando: Entre 1880 y 1892, José Martí publicó más de cuatrocientas crónicas sobre Hispanoamérica, Estados Unidos y Europa, más un centenar de deslumbrantes retratos (o “cabezas”, como las llamaba Rubén Darío). Estos textos aparecieron en diarios como La Nación de Buenos Aires, La Opinión Nacional de Caracas, La Opinión Pública de Montevideo, La Republica de Tegucigalpa, El Partido Liberal de México y Las Américas de Nueva York. Recogidas en las Obras completas (Editara Nacional de Cuba, 1963), las crónicas ocupan trece de los veinticinco tomos (ROTKER, 1993, p. 7).

Vemos como José Martí publica em quase todos os diários de fala espanhola na

América Latina. Desde Nova Iorque ele envia seus textos, aproveitando para se inspirar e

adaptar a seu modo às novidades do jornalismo norte-americano. É incrível como uma grande

quantidade de textos foi relegada pela crítica, devido sua ligação com o jornalismo: Así, más de la mitad de la obra escrita por Martí se compone de textos publicados en los periódicos. Y, no obstante, la crítica literaria marginó hasta muy poco tiempo esta enorme masa textual. La marginación resuelta significativa no tanto por la enormidad de esa masa, sino porque ella inicia la renovación de la prosa en Hispanoamérica (ROTKER, 1993, p. 7).

Essa renovação da prosa hispano-americana passa pela prática de seus poetas

cronistas, que buscavam renovar sua poética frente a todas as formas de escritura. Para esses

autores não havia separação entre poeta, escritor e jornalista. Rotker aponta um prólogo de

Martí como um texto fundador. Trata-se do prólogo que Martí escreveu ao “Poema del

Niágora” de Juan Antonio Pérez Bonalde, em 1882. Segundo Rotker este “é um texto

fundador porque a temporalidade – entendida como a consciência do tempo em que se vive –

é sua proposta estética” (ROTKER, 1992, p. 151). Esse comprometimento do narrador com o

presente, com o momento atual, exige um sistema de representação capacitado para a tarefa, a

tarefa da modernidade. Diz Rotker, sobre o prólogo em referência: Escrito por Martí en 1882, apunta a la definición de sistema de representación propio que exprese la modernidad del hombre americano: un

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sistema capaz de aprehender con autenticidad el presente. No se trata ya del intento de conformar un ser nacional a través de la literatura, sino de dar cuenta de la crisis y de la esperanza finisecular, de redescubrir en el lenguaje y en la experiencia cotidiana la nueva relación entre los hombres, la naturaleza y el interior de cada cual. La literatura debe ser “nuesto tiempo, enfrente de nuestra naturaleza” (MARTÍ apud ROTKER, 1992, p. 151).

A esse sistema de representação capaz de representar a si mesmo Rotker chamou de

“a modernidade como sistema de representação”. No caso de Martí também, sua poesia estará

empenhada na captação sígnica do momento, da vida cotidiana, mas é, sobretudo, a sua

crônica que devemos destacar neste trabalho como a fundação de uma escritura.

Essa proposta da crônica em se ocupar do momento se aproxima da proposta

brasileira de registrar o circunstancial, até mesmo uma trivialidade, como diz Machado de

Assis. Já não importa só dar uma notícia, importa mais a graça com que se transmite um

conteúdo. Quem foram os precursores da crônica nos países hispano-americanos?

La crónica viene del periodismo, de la literatura y de la filología, para introducirse en el mercado como una suerte de arqueología del presente que se dedica a los hechos menudos y cuyo interés central no es informar, sino divertir. Por definición, sus precursores en América Latina son Manuel Gutiérrez Nájera (en El Nacional de México, 1880) y José Martí (en La Opinión Naciona, 1881-1882, y La Nación, 1882-1895), quienes iban a darle un vuelco más literario a lo que se esperaba como meros entretenimientos (ROTKER, 1993, p. 11-12).

Gutiérrez Nájera se diferenciava de Martí ao manter um “estilo ligeiro da

chronique”, informa Rotker, enquanto Martí se esmerava em tratar de variedades com

vocábulos mais precisos, fato que o obrigava a recorrer a arcaísmo e neologismo, na vitrine de

variedades chamada Sección Constante, em La Opinión Naconal de Caracas. Este período

durou de novembro de 1881 a junho de 1882. Mas a grande revolução começou quando Martí

chegou a Nova Iorque para ali viver e atuar como correspondente de La Opinión Nacional.

Desde os Estados Unidos Martí difundia elementos formadores de um sistema de

representação que os escritores latino-americanos iam absorvendo cada um a seu modo.

Rubén Bareiro Saguier, num estudo comparativo entre o modernismo hispano-americano e o

período correspondente no Brasil, diz que o modernismo hispano-americano nada aportou à

questão temática:

O modernismo hispano-americano, que tanta importância atribuiu ao nível da expressão, nada aportou à questão temática – vimos inclusive sua involução –; seu afã cosmopolita o levou a eludir sistematicamente o meio circundante. Esta posição se explica dentro da ideologia da época; é o

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momento em que surgem os grandes centros urbanos, e em que a economia latino-americana entra no circuito dos mercados internacionais. O comércio se universaliza e as oligarquias tornam-se cosmopolitas, como a literatura que o período produz. Entretanto, num dado momento, os modernistas voltam seus olhos para a América (Ariel de Rodó, 1900; Cantos de vida y de esperanza de Darío, 1905; Odas seculares de Lugones, 1910). Se observamos as datas de publicação, percebemos que os três livros aparecem depois que os Estados Unidos haviam empreendido duas intervenções na America Latina: Cuba e Porto Rico (1898), Panamá (1903). O que tencionam é preservar “os valores espirituais constituídos por sua língua, sua nacionalidade, sua religião, sua tradição” frente à inquietante presença norte-americana. Mas não se trata de oposição fundamental, pois a admiração pelos Estados Unidos é grande, como bem se pode ver na primeira parte do poema “A Roosevelt” (“los Estados Unidos son potentes y grandes”), e principalmente na Salutación al águila, de Darío. Tratava-se, bem mais, de uma rivalidade “nacional”, ante o crescente poderio norte-americano. A posição dos modernistas não tem, pois, nada a ver com o programa latino-americanista da geração anterior, e a visão do continente é superficial, exotista ou estetizante (os termos e nomes americanos, com que Darío salpica alguns poemas, são usados por sua riqueza fonética ou pelo teor de raridade que poderia ter uma expressão de origem oriental) (SAGUIER, 1979, p. 15-16).

Acompanhando a fala de Saguier desde o começo do ensaio até este recorte que

reproduzimos, fica claro que ele está considerando apenas romances e poesias na produção

desses autores modernistas. Caso estivesse considerando a produção jornalística, em especial

a crônica, não poderia falar que tais autores chegam a eludir sistematicamente os temas latino-

americanos, uma vez que a crônica se volta para o momento, para o circunstancial, para a vida

mundana. Ou ainda, para a individualidade do eu e seu confronto com sua própria natureza,

como propõe Martí. Saguier está comparando os autores citados com a geração anterior, que

teve uma preocupação com a temática indigenista, e neste sentido teria aportado temas latino-

americanos. De fato, não deixa de ter razão; Darío, Martí, Lugones são poetas que já

superaram a temática indigenista, que via o índio como puro, como “bom selvagem”, mas

ainda estão muito ligados aos modelos poéticos da tradição ocidental, dos românticos

europeus principalmente.

Interessante observação de Saguier aparece no parágrafo seguinte ao citado acima.

Segundo ele, a revolução em relação à temática, uma postura ética mais comprometida com a

América Latina viria na geração seguinte à de Darío, Lugones e Rodó:

O programa de “independência literária” dos românticos encontra uma perfeita continuidade na posição dos escritores surgidos na segunda década do século atual (XX), isto é, a partir do romance da Revolução Mexicana (1916, ano de publicação de Los de abajo). Estes escritores adotam também uma atitude essencialmente ética e se propõem, como os românticos, a procurar a identidade literária americana pelo caminho do tema, do

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conteúdo. A analogia, para neste ponto, porque, naturalmente, os tempos mudaram e as ideologias sofreram transformações. Para aqueles as pautas de apoio eram as do liberalismo político e econômico, unidas à concepção positivista do progresso. Quando surge a geração de escritores que J. A. Potuondo chama de a “dos problemas sociais”, a Revolução Mexicana estava em pleno processo; algum tempo depois, a Revolução Russa, e na Hispano-América estava em gestação a reforma universitária. Acontecimentos eminentemente políticos que marcaram de maneira profunda as obras desse período, determinando o interesse principal dos autores pelos temas sociais e especificando o caráter comprometido dessa literatura. Parte dela faz-se sob o signo das idéias marxistas, de cujos principais teorizadores era José Carlos Mariategui. O afã redencionista se acentua, com o elemento humano mais presente. Além da descoberta da natureza – e sua transformação – como base da identidade latino-americana, põem-se à mostra os males sociais, que era necessário remediar – ou pelo menos denunciar – bem como a situação de exploração (SAGUIER, 1979, p. 20).

Na fala de Saguier percebemos que ele repete recorrentemente a expressão “busca da

identidade latino-americana”, o que nos parece inadequado. Quando um latino-americano faz

literatura ele está fazendo literatura latino-americana, não importa se o tema é o continente, a

Terra ou Marte. Identidade é um termo complicado para se referir a uma comunidade mestiça,

porque é um conceito ligado à estabilidade, à ilusão de uma certeza, enquanto a mestiçagem é

sempre transitória, conflitiva, como diz Laplantine:

Esta arrogancia de la propiedad, de la apropiación y la pertenencia, que trae aparejado un sentimiento de plenitud (el estado del sujeto a quien nada le falta), ese sentimiento de poseer una identidad de algún modo saciada y que no puede conducir más que a la ilusión de representaciones claras y definitivas son el opuesto exacto de la inestabilidad y el desequilibrio mestizos, que son experiencias de desgarramiento y del conflicto, y en modo alguno un estado satisfecho de sabiduría o beatitud en el que se encontraría el descanso.(LAPLANTINE; NOUSS, 2007, p. 23 -24).

Por outro lado, Saguier acerta ao dizer que parte da literatura do período seguiu essa

linha engajada, pois tivemos outras vertentes, como a fantástica e a neobarroca, por exemplo.

E a grande produção de crônicas jornalísticas que seguiu evoluindo esteticamente em jornais

de praticamente todos os países latino-americanos. Lembremos que Los de abajo, do

mexicano Mariano Azuela, citado por ele como marco da nova geração, é um folhetim que

recupera elementos da crônica jornalística mexicana e do folhetim Los Bandidos del Río Frío

de Manuel Payno. Há muito espaço para se cavar nos arquivos de crônicas referente a essas

duas gerações e mais outras que as sucederam. Voltemos à crônica.

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Falta-nos relatar as novidades que Martí absorvia da imprensa nos Estados Unidos e

difundia para os latino-americanos. Escrevia as crônicas com o mesmo esmero que escrevia

qualquer dos seus outros escritos literários. Hotker fala das mudanças de estilo que fez Martí:

Y si bien mantuvo – también en las Cartas desde Nueva York que enviaría durante más de una década a toda América, especialmente a La Nación de Buenos Aires – el estilo de crónica francesa en cuanto a vitrina de variedades, algunos de sus mejores textos se dedican a un solo tema rompiendo con la tradición de Le Figaro: el puente de Brooklyn, el terremoto de Charleston, Emerson, Longfellow, Walt Whitman, Jesse James (ROTKER, 1993, p. 11-12).

O rompimento com o estilo vitrine de variedades do Le Figaro é importante porque

ao dedicar-se a um só tema a crônica perde aquele caráter limitador, de apenas informadora de

notícias, para ganhar atributos mais literários, mais pessoais, que não envelhecerão no texto,

mesmo quando a notícia for velha. Martí seguiu assimilando tudo, colaborando em diários

norte-americanos e evoluindo.

Es indudable que en este y otros cambios prevaleció la enseñanza del periodismo norteamericano. Martí fue, por un lado, gran lector de la prensa neyorquina – admiraba, por ejemplo al Herald, que desde hacía medio siglo había inaugurado la costumbre de las grandes coberturas y hasta de las ediciones especiales dedicadas a un solo tema de interés – y, por otro, colaborador de The Hour y aún más de The Sun, el diario de Charles Danah, quien incluso llegó a escribir el obituario de Martí. (…) Fue muy importante para el Martí cronista la lección de The Sun: su objetivo confeso era presentar una fotografía diaria de las cosas que sucedían en el mundo entero de la manera más luminosa y vivida. Danah contrataba escritores para llevarlos a sus páginas, que deberían ser simples y claras, una fotografía de la gente de Nueva York; insistía en el interés por la política, la economía y el gobierno, pero sabía que primero “está la gente” (ROTKER, 1993, p. 13-14).

Mas em relação ao periodismo norte-americano, nos lembra Rotker que ele não

costumava ser tão pessoal como as crônicas modernistas. Isso quer dizer que não se destacava

a marca do sujeito. Era um jornalismo que devia tomar partido, cada jornal defendia os

interesses da região, pois estava dirigido à população local. O tema da “objetividade”, ou

imparcialidade só começou a entrar nas reivindicações do periodismo com a investida

comercial das empresas de comunicação:

En verdad el tema de la “objetividad” sólo comenzó a ser esgrimido por la agencia de noticias Associeted Press: como quería vender noticias a lo largo de todo el país, trataba de elaborarlas del modo más “objetivo” (distante) para interesar a un público más vasto. Y es sólo hacia fines de siglo cuando The New York Times comenzó a tener éxito al imponer un modelo más

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“informativo” que el que se usaba hasta entonces: un modelo de narrar historias o reportajes (ROTKER, 1993, p. 15).

Na América Latina os jornais também narram histórias e reportagens, evidentemente,

mas a crônica assume um alto grau de subjetividade que a vai diferenciando do contexto

europeu e norte-americano.

Para entender el contexto periodístico de la crónica hispanoamericana es vital saber no sólo que la influencia europea tendía más a editorializar o que la norteamericana privilegiaba la noticia. Porque esto último, si bien es verdadero, es parcial: en la prensa más moderna de Occidente las noticias solían ser ficciones documentales. Los hechos contaban, pero entretener era tan importante como informar. Dato central para la definición del género es que los reporters elegían expresarse a través de las técnicas del realismo porque así coincidían mejor con las tendencias cientificistas, pero sobre todo para diferenciarse de los literatos que los antecedieron. Los modernistas, a su vez, acentuaron el subjetivismo de la mirada y sobreescribieron, para diferenciarse de los reporters (ROTKER, 1993, p. 15).

Com José Martí, Rubén Darío, Manuel Gutiérrez Nájera, José Enrique Rodó,

Machado de Assis, João do Rio, Olavo Bilac, entre outros, e a geração de cronistas que os

sucederam, a crônica latino-americana passou a ser “a novidade literária que não estava nos

livros”. A subjetividade que a crônica alcança com esses autores a engasta com a

subjetividade dos cronistas dos descobrimentos, principalmente Caminha e Las Casas. O que

Rotker diz da evolução da crônica modernista é similar ao ocorrido à crônica brasileira. Todo

o continente esteve submetido a uma poetização do real.

Los procedimientos como la poetización de lo real forma parte de las crónicas modernistas. La nueva poética produjo también un género literario nuevo, entendiendo por género un método de conceptualización extrema e interna, que en este caso oscila entre el discurso literario y el periodístico conformando un espacio propio (ROTKER, 1993, p. 26-27).

Como últimas considerações a respeito da crônica, lembrando o rechaço que ela

sofreu enquanto texto literário, gostaríamos de reproduzir duas citações que Rotker faz em seu

trabalho. A primeira delas, de Jan Mukarovsky, diz que “deve-se admitir que a arte e o

estético não são valores absolutos, senão acordos sociais numa época ou país determinado, e o

que importa é seu caráter exemplar”32 (MUKAROVSKY apud ROTKER, 1993). A segunda

citação refere-se à valorização da obra de arte feita por Walter Benjamin: “que seja capaz,

32 Ver o texto de Jan Mukarovsky, “Función, norma y valor estético como hechos sociales” (1936), no libro Escritos de Estética y Semiótica del Arte, trad. A. Anthony-Visová. Barcelona, 1977.

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primeiro, de induzir a outros produtores a produzir e, segundo, de por à sua disposição um

produto melhorado” (BENJAMIN, 1986).

Que a obra seja capaz de induzir a outros produtores a produzir, e a crônica

jornalística induziu os escritores/jornalistas a produzirem o conto breve. Vamos, então, a ele.

3.4 O Conto Breve Latino-Americano

É elementar começarmos por uma tentativa de definição do conto, de modo geral, e

seguirmos por outra tentativa de definição: a do conto breve. “Tentativa” porque o conto

enquanto gênero literário possui formas variadas e escorregadias que esbarram na fronteira de

outros gêneros, como a crônica e a novela. Angélica Soares, em capítulo dedicado ao tema no

seu livro Gêneros Literários, começa dizendo que conto

é a designação da forma narrativa de menor extensão e se diferencia do romance e da novela não só pelo tamanho, mas por características estruturais próprias. Ao invés de representar o desenvolvimento ou corte na vida das personagens, visando a abarcar a totalidade, o conto aparece como uma amostragem, como um flagrante ou instantâneo” (SOARES, 1993, p. 54).

Cortázar, numa palestra sobre o conto proferida em Cuba, fala da sua experiência

como contista e dos textos que acumulou ao longo dos anos, os quais, pela sua experiência de

leitor e o trabalho com o processo de escritura lhe permitem ter uma noção particular do que é

o conto, mas que segue difícil de explicar com palavras.

Pouco a pouco, em textos originais ou mediante traduções, vamos acumulando quase que rancorosamente uma enorme quantidade de contos do passado e do presente, e chega o dia em que podemos fazer um balanço, tentar uma aproximação apreciadora a esse gênero de tão difícil definição, tão esquivo nos seus múltiplos e antagônicos aspectos, e, em última análise, tão secreto e voltado para si mesmo, caracol de linguagem, irmão misterioso da poesia em outra dimensão do tempo literário (CORTÁZAR, 1993, p. 149).

Vimos até agora duas características da crônica jornalística modernista que são: a

captação do momento – instantâneo –, e a aproximação com a poesia em relação aos

sentimentos que podem provocar no receptor. Basicamente costuma-se dizer que a separação

entre conto e crônica está na tensão e na densidade da linguagem. O conto é mais tenso e sua

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linguagem mais concentrada deve caminhar para um clímax, que nos projete para algo mais

que está fora do texto.

Para se entender o caráter peculiar do conto, costuma-se compará-lo com o romance, gênero muito mais popular, sobre o qual abundam as preceptísticas. Assinala-se, por exemplo, que o romance se desenvolve no papel, e, portanto, no tempo de leitura, sem outros limites que o esgotamento da matéria romanceada; por sua vez, o conto parte da noção de limite, e, em primeiro lugar, de limite físico, de tal modo que, na França, quando um conto ultrapassa as vinte páginas, toma já o nome de nouvelle, gênero a cavaleiro entre o conto e o romance propriamente dito. Nesse sentido, o romance e o conto se deixam comparar analogicamente com o cinema e a fotografia, na medida em que um filme é em princípio uma “ordem aberta”, romanesca, enquanto que uma fotografia bem realizada pressupõe uma justa limitação prévia, imposta em parte pelo reduzido campo que a câmara abrange e pela forma com que o fotógrafo utiliza esteticamente essa limitação. (...) Enquanto no cinema, como no romance, a captação dessa realidade mais ampla e multiforme é alcançada mediante o desenvolvimento de elementos parciais, acumulativos, que não excluem, por certo, uma síntese que dê o “clímax” da obra, numa fotografia ou num conto de grande qualidade se procede inversamente, isto é, o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas que também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto (CORTÁZAR, 1993, p. 151-52).

Em relação à temática do conto, Cortázar defende que qualquer tema pode ser bom

para um conto, o que importante é o tratamento temático que o contista dá ao conto. Acredita

que há uma misteriosa relação entre o tema e o contista, que se estabelece em dado momento.

Essa relação explicaria o êxito de um contista em alguns contos e o fracasso em outros. Isso

para quem aprendeu a dominar as técnicas de escrever contos, porque aquele que não é

contista de ofício não consegue chegar nunca a permanecer na memória sentimental do leitor.

Muitas vezes tenho-me perguntado qual será a virtude de certos contos inesquecíveis. Na ocasião os lemos juntos com muitos outros que inclusive podiam ser dos mesmos autores. E eis que os anos passam e vivemos e esquecemos tanto; mas esses pequenos, insignificantes contos, esses grãos de areia no imenso mar da literatura continuam aí, palpitando em nós. Não é verdade que cada um tem a sua própria coleção de contos? Eu tenho aminha e poderia citar alguns nomes. Tenho “William Wilson”, de Edgar A. Poe, tenho “Bola de Sebo”, de Guy de Maupassant. Os pequenos planetas giram e giram: aí está “Uma Lembrança de Natal”, de Truman Capote, “Tlön”, “Uqbar”, “Orbis”, “Tertium”, de Jorge Luis Borges, “Um Sonho Realizado” de Juan Carlos Onetti, “A Morte de Ivan Illich”, de Tolstói, “Fifty Grand”, de Hemingway, “Os Sonhadores”, de Isak Dinesen, e assim poderia continuar e continuar... Os senhores já terão advertidos que nem todos estes contos são obrigatoriamente antológicos (CORTÁZAR, 1993, p. 154-55).

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A lista de contos inesquecíveis de Cortázar nos dá uma boa definição do que é o

conto, de modo geral, o que compreenderíamos melhor lendo-os, e menos fazendo uma

explicação por palavras. Entretanto, devemos observar que nem todos esses contos se ajustam

ao conceito de relato breve, ou conto breve, na concepção latino-americana do século XX.

“Bola de Sebo” ou “A Morte de Ivan Illich”, por exemplo, são contos muito bem elaborados e

vivos, mas que não têm os elementos de tensão tão condensados desde o começo até o clímax,

como o conto breve de que queremos tratar. Já vimos que na França quando o conto passa de

vinte páginas é chamado de nouvelle. Os ingleses, ou anglo-saxões, chamam de short story

aos contos dos irmãos Grimm, de Hoffmann, de Guy de Maupassant, Ellery Queen, William

Faulkner, e Hemingway, entre outros, que guardam muita diferença entre eles.

Num texto publicado em Último round, Cortázar trata “do conto breve e seus

arredores”. Explica que o conto breve do qual ele está falando é aquele que começa com uma

vertigem, que corre contra o relógio usando uma economia de meios.

Estou falando do conto contemporâneo, digamos o que nasce com Edgar Allan Poe, e que se propõe como uma máquina infalível destinada a cumprir sua missão narrativa com a máxima economia de meios; precisamente, a diferença entre o conto e o que os franceses chamam de nouvelle e os anglo-saxões long short story se baseia nessa implacável corrida contra o relógio que é um conto plenamente realizado: basta pensar em The Cask of Amontillado, Bliss, Las ruínas circulares e The Killers.33 Isto não quer dizer que contos mais extensos não possam ser igualmente perfeitos, mas me parece óbvio que as narrações arquetípicas dos últimos cem anos nasceram de uma impiedosa eliminação de todos os elementos privativos da nouvelle e do romance, os exórdios, os circunlóquios, desenvolvimento e demais recursos narrativos; se um conto longo de Henry James ou de D. H. Lawrence pode ser considerado tão genial como aqueles, será preciso convir que estes autores trabalharam com uma abertura temática e lingüística que de algum modo lhes facilitava o trabalho, enquanto que o sempre assombroso dos contos contra o relógio está no fato de potenciarem vertiginosamente um mínimo de elementos, provocando que certas situações ou terrenos narrativos privilegiados podem ser traduzidos numa narrativa de projeções tão vastas como a mais elaborada das nouvelles (CORTÁZAR, 1993, p. 228-229).

É bastante sabido que o conto breve, bem elaborado, capaz de provocar emoção com

a maior economia de meios, tornou-se a especialidade da América Latina. Horacio Quiroga,

Juan Carlos Onetti, Borges, Bioy Casares, Ernesto Sábato, Cortázar, Juan Rulfo, Augusto Roa

Bastos, entre muitos outros, são admirados como contistas exemplares. O elemento de

ligação, ou de aproximação, entre a poética de escritura de todos esses escritores contistas é a

33 O Barril de amontillado, de Edgar Allan Poe; Bliss, de Katherine Mansfield; As ruínas circulares, de Jorge Luis Borges; Os assassinos, de Ernest Hemingway.

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ligação com o periodismo. Todos eles começaram como jornalistas, ou como escritores e

periodistas ao mesmo tempo. E a essa lista deveríamos acrescentar os ganhadores de Prêmio

Nobel: Miguel Ángel Asturias, Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, que viveram a

mesma situação de jornalistas. O conto breve latino-americano teria nascido como uma

evolução da crônica jornalística. O escritor da crônica jornalística, ao aprender a captar o

momento, recortar as cenas como um fotógrafo do instantâneo, trabalhar a emoção num

espaço de texto que era cada vez menor na página diagramada do jornal, teria tomado

consciência das técnicas, apurado seu “oficio de contista”, como diz Cortázar. Aqui abrimos

um parêntese para esclarecer que El matadero, considerado conto por alguns e novela por

outros, está mais para a nouvelle, ou para a long short story, isto é, pode até ser um conto, mas

não tem as características do conto breve.

A situação brasileira é similar à situação hispano-americana. Tivemos uma tradição

do conto, desenvolvida a partir da prática da escritura de crônicas jornalísticas desde a época

de Machado de Assis, quando os pequenos contos que habitavam o espaço do folhetim,

juntamente com a crônica e outros textos, deixam o rodapé para ocupar páginas inteiras de

jornais e revistas. Marcas da narrativa machadiana, como o ato de interromper a narrativa de

suas crônicas ou contos para falar ao leitor, absorvidas do folhetim, vão aparecer nos contistas

mais expressivos dos meados do século XX como Marques Rebelo, Luiz Vilela, Léo Vaz e

outros. Entre essa geração e a geração de Machado de Assis temos figuras expressivas na arte

do conto tais como Lima Barreto, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, para citar só alguns. A

diferença mais expressiva entre a literatura brasileira e a hispano-americana no século XX , já

disseram vários críticos, foi o fato de a produção em língua portuguesa não ganhar nenhum

Nobel, e não viver um boom como viveu a hispano-americana, chamada nos Estados Unidos e

Europa de “literatura latino-americana”. Mas a literatura brasileira não esteve totalmente

ausente dessa aventura. É facilmente verificável a presença de Guimarães Rosa e Clarice

Lispector na literatura de Cortázar, de Jorge Amado e Euclides da Cunha em Vargas Llosa e

de Guimarães Rosa na obra de Roa Bastos, o que mostra que pelo menos naquele momento as

duas línguas da literatura latino-americana estavam se comunicando.

Pergunta-se às vezes por que a América Latina tornou-se o lugar do conto breve, um

fenômeno com escritores escrevendo contos na Argentina, no Brasil, no Uruguai, no Paraguai,

no Chile, no Peru, na Colômbia, no México etc. As respostas, as explicações para o

fenômeno, praticamente não contemplam a possibilidade de a situação ter sido favorecida pela

aptidão do continente em receber o jornal, como fala Amálio Pinheiro, e pela capacidade de

fazer uso dos meios criando outras mediações, como demonstra Martín-Barbero.

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Uma das explicações mais correntes para o fenômeno, que ouvimos nos congressos

universitários e lemos nos trabalhos sobre a América Latina, é a consideração histórica de que

o espaço geográfico era e continua sendo mítico. Para cá teriam vindo os europeus com seus

mitos de Paraíso Terreal, Eldorado e Amazonas, que teriam se juntado às cosmogonias

ameríndias do continente, recebendo em seguida a contribuição dos mitos africanos. Os mitos

seriam, então, a força propulsora dos contos, e o contista estaria apoiado na cultura oral.

Considerar a América mítica e mística como uma grande força da cultura oral é uma verdade,

mas no tocante à literatura é uma verdade incompleta. Uma forte cultura oral não garante uma

boa literatura escrita para nenhuma região – vários países da África são a prova disso.

Cortázar, na conferência que deu em Cuba e que vínhamos comentando, deu um bom

exemplo, tirado da própria Argentina, de como a cultura oral por si só não basta para que haja

bons contistas.

Pois bem, embora soe a truísmo, tanto na Argentina como aqui os bons contos têm sido escritos pelos que dominam o ofício no sentido já indicado. Um exemplo argentino esclarecerá melhor isto. Em nossas províncias centrais e do Norte existe uma longa tradição de contos orais, que os gaúchos se transmitem de noite à roda do fogo, que os pais continuam contando aos filhos, e que de repente passa pela pena de um escritor regionalista e, na esmagadora maioria dos casos, se convertem em péssimos contos. O que sucedeu? As narrativas em si são saborosas, traduzem e resumem a experiência, o sentido do humor e o fatalismo do homem do campo; alguns se elevam mesmo à dimensão trágica ou poética. Quando os ouvimos da boca de um velho gaúcho, entre um mate e outro, sentimos como que uma anulação do tempo, e pensamos que também os gregos contavam assim as façanhas de Aquiles para a maravilha de pastores e viajantes. Mas nesse momento, quando deveria surgir um Homero que fizesse uma Ilíada ou uma Odisséia dessa soma de tradições orais, em meu país surge um senhor para quem a cultura das cidades é um signo de decadência, para quem os contistas que todos nós amamos são estetas que escrevem para o mero deleite de classes sociais liquidadas, e esse senhor entende, em troca, que para escrever um conto a única coisa que faz falta é registrar por escrito uma narrativa tradicional, conservando na medida do possível o tom falado, os torneios do falar rural, as incorreções gramaticais, isso que chamam de a cor local (CORTÁZAR, 1993, p. 158-59).

O exemplo que dá Cortázar serve para todo o continente. Não podemos deixar de

observar que na América Latina não houve uma separação entre escritores e jornalistas,

praticantes da “arte pura” vs. os trabalhadores do trabalho pago pelos jornais. Os escritores

cronistas foram forjando uma poética e fundaram uma escritura nas páginas dos jornais, como

demonstra Rotker. Absorveram elementos da nouvelle francesa e da long short story de língua

inglesa, e de toda a tradição do conto universal, mas foi, sobretudo, no trabalho constante com

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o jornalismo que chegaram ao conto breve, passando pela crônica e aprendendo o ofício de

contista.

Interessante observação faz Cortázar quando diz que na Europa não se criou a

tradição do conto breve, sendo que a imprensa se consolidou por lá muito antes do que na

América Latina. Podemos tecer várias considerações coisas sobre isso. Uma delas é que a

Europa deu preferência para a forma de expressão “livro”, mais tradicional, tendo na poesia,

no teatro e no romance os modelos mais elevados, considerados superiores aos textos que se

escreviam nos jornais. Outra observação é a de que a Europa foi mais lenta em aceitar ou

promover mudanças nas formas narrativas. Dois exemplos são: a manutenção da forma

nouvelle francesa e da long short story, no modelo anglo-saxão, como já vimos.

Nem mesmo a Espanha, que comparte a mesma língua que os países hispano-

americanos, acompanhou essa escalada da escritura jornalística em direção ao conto de

vertigem. Os contos de estilo gótico que Adolfo Bécquer escreveu no século XIX não

encontraram continuadores que os apurassem num estilo mais ligeiro, no qual a maneira de

contar importa mais que o tema a ser narrado. É ilustradora dessa situação a entrevista que

Hipólito Navarro, um contista espanhol, nascido em 1961, concedeu a uma revista espanhola.

Pergunta a revista: “Poderia fazer-nos uma valorização da situação do conto em espanhol?”.

No caso, conto em espanhol, quer dizer o conto na Espanha. O escritor responde:

Yo creo que el cuento, ahora mismo, justo en estos años, empieza a tomar bríos. Yo creo que hay una cantidad de nombres, ahora mismo, de gente que está escribiendo cuentos, pero con la conciencia de ser cuentistas, de escribir libros de cuentos sin ninguna intención de estar preparándose para abordar luego, como decíamos antes, la novela. Y hay una serie de autores, pues a mí me parece: Ángel Zapata, Carlos Castán, Gonzolo Caldedo, Félix Palma… Y después, por otra parte, está coexistiendo estos autores nuevos con generaciones de autores anteriores, buenos cuentistas, pero que estaban un poco perdidos en esa cosa de que en este país sólo funcionaba la novela y se vuelven a recuperar autores; bueno, algunos no habían estado desaparecidos como, por ejemplo, José María Merino o Luís Mateo Díez, pero, por ejemplo, que hayamos tenido la oportunidad de tener los cuentos completos de Medardo Fraile, que es un autor que nació en 1925, o de Fernando Quiñones, que lleva 5 ó 6 años muerto34 (NAVARRO, 2006, p. 44).

Notamos que houve contista na Espanha, mas que não perduraram na memória, na

sensibilidade dos leitores, porque não encontraram um ambiente favorável a isso. Contistas

estão sendo resgatados nas edições em livro, como Medardo Fraile, devido a um novo

ambiente espanhol mais favorável ao conto. A geração de contistas da qual Hipólito Navarro é

34 NAVARRO, Hipólito. El arte de contar cuentos. Entrevista cedida à revista Punto y coma, n. 0, 2006.

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um dos expoentes conta com esse novo momento: o conto com o privilegio de ser publicado

em livro. E a inspiração para essa nova geração de escritores de contos vem da América

Latina. Pergunta a revista para Navarro: “E sobre a conexão com Hispano-América?”.

Pues, yo creo que la mayoría de escritores de cuentos de este país, o al menos casi todos mis colegas, gente que estamos escribiendo, somos gente que ha leído muy abundantemente a los escritores del otro lado, especialmente argentinos y mexicanos. El cuento, si vuelve a salir, es gracias a que nos llegan aquí los cuentos de Julio Cortázar, los de Rulfo, los de Onetti, los de Borges… Y la verdad, yo, como cuentista, he leído a los cuentistas españoles cuando ya he tenido un gran interés por el cuento, pero que me habían despertado los americanos (NAVARRO, 2006, p. 45).

América Latina “se lança à produção do conto desde o início do século XX”’, como

diz Cortázar, e os escritores assumem uma postura narrativa comprometida com um novo

sistema de representação como demonstra Rotker. Além de bons contistas o continente contou

com teorizadores do conto, como Borges e Bioy Casares, teorizadores da “causalidade

mágica” que cria um novo tipo de conto fantástico. E antes deles, as teorias precursoras do

relato breve de Horacio Quiroga.35 Cortázar revalorizou Quiroga como teórico do conto e

absorveu suas teorias, integrando-as à sua concepção de relato breve.

Certa vez Horacio Quiroga tentou um “decálogo do perfeito contista”, que desde o título vale já como uma piscada de olho para o leitor. Se nove dos preceitos são consideravelmente prescindíveis, o último parece-me de uma lucidez impecável: “Conta como se a narrativa não tivesse interesse senão para o pequeno ambiente de tuas personagens, das quais pudeste ter sido uma. Não há outro modo para se obter a vida no conto”. A noção de pequeno ambiente dá um sentido mais profundo ao conselho, ao definir a forma fechada do conto, o que já noutra ocasião chamei sua esfericidade; mas a essa noção se soma outra igualmente significativa, a de que o narrador poderia ter sido uma das personagens, vale dizer que a situação narrativa em si deve nascer e dar-se dentro da esfera, trabalhando do interior para o exterior, sem que os limites da natureza sejam traçados como quem modela uma esfera de argila. Dito de outro modo, o sentimento da esfera deve preexistir de alguma maneira ao ato de escrever o conto, como se o narrador, submetido pela forma que assume, se movesse implicitamente nela e a levasse à sua extrema tensão, o que faz precisamente a perfeição da forma esférica (CORTÁZAR, 1993, p. 227-228).

A figura de Horacio Quiroga é exemplar também pelo preconceito que sofreu da

crítica latino-americana enquanto contista. Em relação aos seus “Contos da Selva”, Borges o

acusou de fazer mal o que Rudyar Kipling já havia feito bem. Muitos o acusaram de copiar

Edgar Allan Poe, sem querer reconhecer onde está a genialidade de Poe e onde está a

genialidade de Quiroga. O próprio Poe também teve que enfrentar os críticos que diziam que

35 Ver o texto “Decálogo do perfeito contista”, de Horacio Quiroga, nos anexos deste trabalho.

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ele estava copiando o horror de Hoffman. Mais do que tudo, há um diálogo entre Quiroga e

Poe, entre Quiroga e Kipling. O próprio Quiroga elegeu e declarou os seus modelos: Poe,

Kipling, Chécov, Maupassant, e permaneceu fiel a eles durante toda a vida a ponto de

aconselhar a “crer neles como em Deus mesmo” no seu Decálogo do perfeito contista. Já

disse um dos seus estudiosos que nem Kipling, nem Poe, nem ninguém que não fosse o

próprio Quiroga poderia haver escrito seus melhores contos. Deixemos isso para os estudos

críticos sobre Quiroga, que atualmente não são poucos. Gostaríamos ainda de reproduzir uma

opinião quase que de senso comum entre os críticos de Quiroga – a de que Poe era mestre em

construir situações; Quiroga, em construir personagens. Assim pensa Aberlado Castillo, quem

também vê Quiroga mais perto da realidade, do mundo material do que Poe. Quiroga es realista, o, dicho de un modo mejor: Quiroga es realista de una manera diferente a la de Poe. Una insolación, un hombre devorado por las hormigas, una garrapata que vacía de sangre a una muchacha, unos opas que degüellan a su hermana, son posibilidades del mundo material; las muertas de Poe que resucitan por la fuerza de su voluntad, los cadáveres de hipnotizados que se descomponen en unos segundos ante los ojos del narrador, los diálogos en el más allá, son realidades del mundo del inconsciente, de la locura o de los sueños. Pero es precisamente en los cuentos misioneros, tan diferentes por su ámbito de los de Poe, donde el sudamericano hace propia y reinventa las dos grandes lecciones de la originalidad poeniana: la fidelidad a uno mismo y el rigor formal (CASTILLO, 1996, p. XXXII).

Figura 12 – Revista Fray Mocho. Uma das revistas nas quais Horacio Quiroga

publicava regularmente seus contos.

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O rigor formal de que fala Castillo sobre os contos de Quiroga é aquele que já

explicou Cortázar como fundamental para se criar a esfera no conto breve. Castillo ainda vai

dizer que Quiroga é o mais habilidoso contista da América Hispânica até que aparecesse

Borges, Cortázar e Rulfo. Nesse ponto já se está passando para a valorização estética do ponto

de vista da teoria literária. Interessa-nos dizer que houve muitos outros bons contistas em

vários países latino-americanos, dos quais não podemos dar conta aqui. Escolhemos Quiroga

porque o que Poe foi para os Estados Unidos, Quiroga foi para a América Latina, criador do

conto breve entre os latino-americanos. E toda a sua produção foi mediada por jornais e

revistas, de onde tirava o seu sustento. Na edição crítica da obra de Quiroga Todos los

cuentos, “Colección Archivos”, são apresentadas notas riquíssimas, contendo informações

sobre a primeira publicação de cada conto, o veículo de publicação, datas, número de páginas,

e se tinham ilustrações, nomes dos ilustradores etc. Elencamos abaixo meia dúzia de contos,

escolhidos por nós, e dispostos em ordem cronológica de publicação que vai de 1909 a 1925.

Reproduzimos as notas informativas dos editores sobre a data e o veículo de publicação, e

acrescentamos o nome do livro ao qual o conto passou a fazer parte mais tarde.

Contos de Quiroga:

La gallina degollada. Foi publicado inicialmente em Caras y caretas, Buenos Aires, nº 562,

10 de julho de 1909. Integra o livro Cuentos de amor de locura y de muerte.

Los mensú. Foi inicialmente publicado na revista Fray Mocho, de Buenos Aires, nº 101, 3 de

abril de 1914, acompanhado de três desenhos de Peláez, um em cada página. Integra o livro

Cuentos de amor de locura y de muerte.

Juan Darién. Foi inicialmente publicado em La Nación, Buenos Aires, 25 de abril de 1920,

segunda seção, p. 2-3, com uma ilustração de Málaga Grenet na primeira página. Integra o

livro El Desierto.

El hombre muerto. Foi publicado em La Nación, Buenos Aires, segunda edição, p. 2, 27 de

junho de 1920, em duas apertadíssimas colunas e sem nenhuma ilustração. Integra o livro Los

desterrados.

Los destiladores de naranja. Foi inicialmente publicado em Atlándida, Buenos Aires, ano

VI, nº 293, 15 de novembro de 1923, em cinco páginas da revista com cinco ilustrações de

Centurión, uma em cada página.

Los desterrados. Apareceu pela primeira vez em Caras y Caretas, Buenos, nº 1396, 4 de

julho de 1925, com o título de “Proscríptos”. Passou a integrar e dar título para o livro Los

desterrados.

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Para a historiografia seria mais um problema fazer a periodização literária da crônica

e do conto, no sentido de eleger uma peça para representar o marco de um período como fez

com o romantismo, conforme demonstramos. Qual crônica e qual conto escolher para marcar

o momento exato da evolução, da passagem de um período para outro? O que podemos saber

bem é que houve uma evolução e que num dado período, oscilante, a crônica jornalística

evoluiu e apareceu o conto breve. E que o processo teve vários atores, dos quais escolhemos

alguns, ou até mesmo um, como representante. Nessa perspectiva, a figura de Quiroga é

análoga à de José Martí. Assim como a figura de Martí serviu para Rotker demonstrar a

evolução da crônica latino-americana e a fundação de uma escritura, a de Quiroga serve para

demonstrar a criação de uma poética: o conto breve.

Além da crônica jornalística e do conto breve, outra consequência da estreita relação

dos jornais com a escritura de jornalistas/escritores no continente foi a aparição dos romances

caleidoscópicos latino-americanos, que devemos considerar no próximo capítulo, para melhor

entendermos essa relação.

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4 A RELAÇÃO DO CORPO-GRÁFICO DO JORNAL COMO OS

ROMANCES CALEIDOSCÓPICOS LATINO-AMERICANOS

O que é a América Latina? A única coisa certa que sabemos a seu respeito, por ora, é que é nossa.

César Fernández Moreno

(1979, p. XXIX)

Na América Latina um dos maiores fenômenos literários, e também de comunicação,

é a constituição dos romances caleidoscópicos. Estudar o fenômeno somente pelo viés da

teoria e da crítica literária tem causado opiniões desfavoráveis a essa produção, pois a

valoração estética que se tem feito parte quase sempre dos modelos europeus consagrados

como “arte pura”, “alta literatura”, nos quais o conceito de unidade é determinante. Estudá-lo

pelo viés da comunicação tem se mostrado insuficiente, uma vez que tais estudos têm sido

orientados pelas teorias críticas da cultura de massa, nas quais as obras do fenômeno

aparecem como produtos culturais de cunho popular ou de apelo comercial, esquecendo-se da

complexidade inerente a elas, que as ligam tanto com o popular quanto com o que há de mais

elaborado na cultura. Ambas as orientações perdem por completo o contexto em que essas

obras foram geradas, perdendo assim a ligação delas com o ambiente. Essa ligação com o

ambiente não pode deixar de ser observada, pois é a partir dela que reconhecemos que as

obras têm autonomia enquanto obras, e uma maneira intrínseca de se relacionar com o meio e

o processo por meio do qual foram criadas e que as projetam para o mundo. Como dizia

Rotker (1992) não podemos querer que Martí escreva como Benjamin Constant ou como

Chateaubriant. Os romances de Oswald de Andrade, Lezama Lima, Cabrera Infante, Cortázar,

Roa Bastos, por exemplo, merecem outros critérios de análises e apreciação.

Além da necessidade de se evidenciar a relação de filiação dos romances

caleidoscópicos com os jornais, também devemos analisar como eles se tornaram midiáticos

ao incorporar o melodrama, o rádio, a canção popular, a publicidade, o cinema e outros meios,

num processo de aglutinação e expansão dos ambientes midiáticos. Devemos começar a

análise pela relação do corpo-gráfico do jornal com os romances caleidoscópicos, com o

objetivo de especificar de que forma a imprensa serviu de materialidade para a construção

desses romances. Como foi possível que códigos e linguagens retirados da mídia impressa

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(jornais e revistas) e da música popular e do cinema, entre outros, se aglutinassem nas páginas

de livros de forma tal que eles viessem a provocar uma renovação no fenômeno literário,

diluindo ou constituindo novos gêneros? A hipótese formulada que formulamos ainda no

projeto de pesquisa era a de que esses romances eram, além de obras literárias, suportes, ou

ambientes midiáticos. A perspectiva para empreender as análises de livros híbridos de obra

literária e de mídia, não é aquela que privilegia as teorias literárias, mas aquela que também

inclui as teorias da comunicação, a semiótica da cultura, a antropologia, à medida que o

objeto de análise as vai requerendo.

Os romances chamados de caleidoscópicos se inserem num vasto campo movediço

da arte, da comunicação e da cultura. Estão dentro da tradição e da ruptura, uma característica

que vem marcando a produção cultural do continente e causando polêmicas, fruto de

desencontradas interpretações. Uma das grandes polêmicas, como já vimos no segundo

capítulo, refere-se ao problema da periodização literária. Quando começa a literatura

brasileira? Quando começa a literatura dos países hispano-americanos? Vimos também que

alguns críticos e historiadores dizem que essas literaturas começam com a independência de

seus países; outros, que elas começam somente quando já se tem um sistema literário,

formado pela tríade escritor, meios de distribuição e leitor, bem estabelecido. Um sistema

semiótico, portanto, funcionando numa equivalência ao modelo europeu. Há ainda, aqueles

que consideram como literaturas nacionais das Américas, tudo o que é produzido a partir do

momento em que o europeu aqui pôs os pés e aqui quis ficar. Cada um desses pontos de vista

implica uma escolha epistemológica de trabalho. Negar ou aceitar os elementos barrocos da

era dos descobrimentos, que vão transitar como eixos temáticos nas obras do continente

através dos séculos. Refutar ou homologar a necessidade da existência de um sistema de

produção, distribuição e recepção de obras impressas para considerarmos que temos

literaturas. Gregório de Matos, ainda que fosse o único poeta e escritor do seu tempo no

Brasil, não bastaria para dizer que o país tinha literatura? Lembremos Jorge Luis Borges,

quando disse que apenas o livro Martín Fierro bastaria para fundar a literatura argentina.

Em relação à crítica que segue o viés dos meios de comunicação e da cultura de

massa também temos controvérsias porque ela tem tido uma atuação contundente na América

Latina, mas seguindo sempre uma rígida orientação na Escola de Frankfurt. Nessa visão

predomina a denúncia da exploração econômica que os países mais desenvolvidos do ponto

de vista tecnológico fazem da América Latina. Existiria todo um aparato organizado pelas

potências para explorar comercialmente, através da cultura de massa, e com essa exploração

perpetuar um suposto domínio cultural sobre os países latino-americanos. Outra perspectiva,

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mais favorável ao continente, nos parece, é essa que vem propondo Martín-Barbero sobre os

meios e as mediações, na qual mostra como as comunidades latino-americanas subvertem os

meios aos seus usos, criando novos produtos culturais, ou melhor, novos textos culturais.

Figura 13 – PABLO PICASSO: Mujer y pintor tejiendo. Revista Martin Fierro, 1927.

Dentro dessa produção de novos produtos culturais mediados pelos próprios meios

de comunicação, os romances caleidoscópicos latino-americanos merecem muitas

considerações. Eles abarcam praticamente todos os seguimentos, ou orientações de estilos

literários do continente. Encontramos tais romances classificados dentro do chamado realismo

fantástico: algumas obras de Bioy Casares, como por exemplo, La invención de Morel, ou El

héroe de las mujeres, ou Yo el Supremo, de Augusto Roa Bastos, são algumas obras

midiáticas que honram esse estilo. Dentro do chamado realismo mágico: El Otoño del

Patriarca, de Gabriel García Márquez, ou Mulata de tal de Miguel Ángel Asturias, por

exemplo. Ou ainda Tres tristes tigres, de Cabrera Infante, que achava o realismo fantástico

uma besteira, mas só não foi enquadrado dentro do estilo porque os críticos não encontraram

maneira de ligar seu romance a nenhum dos chamados realismos. Fragmentários e também

difíceis de encaixar dentro dos estilos já citados, são os romances brasileiros tais como

Serafim Ponte Grande, Macunaíma, e Tenda dos milagres, que também são caleidoscópicos e

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têm a mídia, ou elementos da mídia como materialidade. A complexidade tem aumentado

tanto com essa produção literária que a periodização estilística proposta por Afrânio Coutinho

para substituir a periodização por datas históricas e/ou políticas já não basta para resolver o

problema. Estilos e tempos diferentes se congregam no espaço dessa escritura.

Figura 14 – Nota sobre “los dibujos de Pablo Picasso”, publicada com o título de MAESTRO, no n° 36 de Martín Fierro, com uma nota. A recorrência mostra como o grupo “Matinferrista”

estava interessado em Picasso e na montagem cubista.

Uma mostra da dificuldade na tentativa de classificação desse novo, principalmente

quando ele é complexo, pelas tantas faces que apresenta, encontramos no uso hoje frequente

do termo “realismo mágico”, que foi inventado na Europa para denominar um certo tipo de

pintura pós-expressionista que estava nascendo na Alemanha. Quando surgiu para eles a obra

de Jorge Luis Borges, tentaram catalogá-la como realismo mágico. Mas não funcionou,

Borges não estava interessado na realidade, como mostra Monegal (1979). Mais tarde quando

apareceu, com grande força, a obra de García Márquez, outra vez jogaram o termo. Desta vez

acabou pegando, por falta de melhor nome. Lendo os ensaios críticos e as teses acadêmicas

sobre as obras estudadas como realismo mágico, e vivenciado uma experiência diretamente

com o produto artístico podemos notar quantas diferenças há entre as obras literárias e

cinematográficas, catalogadas hoje como realismo mágico! Realismo fantástico, realismo

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mágico, real maravilhoso são todos termos com os quais se tentou explicar a desrazão do

continente que aparece nas obras. Interessa-nos, ora, o caleidoscópico. Passamos, então, a

considerar uma pequena seleção dessas obras, para fundamentar o que viemos dizendo sobre

o literário e midiático.

Dividimos, para fins mais ou menos didáticos, os romances caleidoscópicos entre

duas grandes vertentes:

a) Uma vertente onde colocaria as obras que copiam a estrutura narrativa em

mosaico dos jornais, pequenas ou grandes crônicas, informes publicitários, poemas

intercalados com prosa etc., sem trazer para as páginas o ícone, ou seja, a figura. Conservam a

supremacia da linguagem verbal.

b) Outra vertente onde colocaria as obras que copiam, incorporam, parodiam o

corpo-gráfico dos jornais. Faz tudo o que a outra vertente faz, com o acréscimo de imagens de

fotografias, publicidades, desenhos, ou figuras feitas com palavras, relacionando a parte

icônica com a não verbal.

4.1 Primeira Vertente: O Jogo Verbal do Labirinto

Temos de atuar sempre a partir de uma seleção, feita com critérios de modo que as

obras escolhidas possam ser representativas das outras tantas que ficaram de fora do trabalho.

No Brasil, destacamos para a primeira vertente, já querendo escapar para a segunda, o Serafim

Ponte Grande, de Oswald de Andrade, publicado em 1933, em pleno Modernismo. O livro

incorpora telegramas, bilhetes, pequenos poemas, anotações diversas, notícias de jornal

retrabalhadas e tantas outras coisas, que de tão fragmentário o crítico Antonio Candido o

classificou como “fragmento de um grande livro”, lamentando que Oswald não tivesse

seguido a inteireza de seu livro anterior, Memórias sentimentais de João Miramar. Haroldo de

Campos criticou a visão de Antonio Candido, afirmando que o Serafim era sim um grande

livro, formado por fragmentos. Mais tarde, Antonio Candido reconsiderou sua valorização dos

aspectos de composição do livro e refez sua crítica dos anos 40, dizendo: Naquele tempo, Miramar parecia melhor porque ainda fazíamos crítica de olhos postos numa concepção tradicional da unidade de composição, o princípio estabelecido por Aristóteles como condição de escrita válida. Mas o que veio depois fez ver mais claramente o caráter avançado de Oswald como agressor deste princípio e precursor de formas ainda mais drásticas de

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descontinuidade estilística. Aceito o reparo de Haroldo de Campos, bem aparelhado para ver estas coisas, e reconsidero meu juízo. A leitura de Serafim não permite dizer que é inferior a Miramar ou, como me parecia, um “fragmento de grande livro”. É um grande livro em toda a sua força, mais radical do que Miramar, levando ao máximo as qualidades de escrita e visão do real que fazem de Oswald um supremo renovador (CANDIDO, 1989, p. 201).

Esta polêmica é paradigmática de tantas outras, que nem sempre terminaram assim,

de maneira bem resolvida. O livro fragmento, mosaico, de veia neobarroca, tende a incorporar

outros elementos, do dentro e do fora, do antes e do depois. Elementos às vezes

contraditórios, mas que se complementam e não se excluem. Isto tem sido feito desde as

crônicas dos descobrimentos, textos da cultura que cobram a sua existência como documento

de informação, e também como peças literárias. A constante paródia, ou colagem mesmo de

trechos dessas crônicas em grandes obras da literatura, como Macunaíma, na qual Mário de

Andrade admite haver copiado passagens inteiras da Carta de Caminha, cobra daqueles que

negam a existência de literatura para o período, o direito de existir como tal. Serafim Ponte

Grande e Macunaíma são romances caleidoscópicos antes de qualquer tentativa de definição

de estilo. Faz parte da tipologia deles essa realidade corpo-gráfica.

É interessante notar como muitos desses romances poderiam ser exemplos de

análises no capítulo dedicado ao romance-folhetim, ou neste dedicado ao caleidoscópio, ou

ainda no primeiro, dedicada à releitura das crônicas dos descobrimentos. Isso ocorre

justamente pelo caráter múltiplo dessas obras, devido à incorporação dos vários discursos. E

no aproveitamento de vários discursos, que dão voz a várias vozes, inclusive às cartas dos

primeiros cronistas, temos no colombiano Gabriel García Márquez, como já vimos, outro

exemplo emblemático. Dentro da primeira vertente devemos destacar o romance El Otoño del

Patriarca, escrito em 1973, um romance sem apelo ao ícone, mas totalmente caleidoscópico.

Nele, García Márquez recria uma Macondo que, metaforizada como um pequeno país latino-

americano, cheira a goiaba, a almíscar, a úmido, a Caribe e a Selva. A trama situada num

tempo não muito distante do presente permite que o leitor contemporâneo da obra reconheça

fatos históricos ligados à sua existência recriados na forma de ficção. O tempo oscilante entre

o presente do leitor, o tempo da obra, recua até o tempo do descobrimento. Esse deslocamento

temporal não é linear para trás ou para frente, eles se cruzam a qualquer momento da

narrativa, sem aviso prévio do narrador. Isso faz com que o leitor se mova dentro do labirinto

sem relógio para controlar o tempo. Já nos referimos à cena em que o Patriarca abre a janela e

vê as três caravelas de Colombo ancoradas na Bahia do mar do Caribe de seu país. A

conjunção de vários tempos na obra de García Márquez constitui uma das características do

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estilo narrativo que ficou conhecido como realismo mágico. O que importa dizer é que esse

tipo de escritura que mescla a realidade com a ficção, na qual se narram cenas que fundem o

urbano com o rural, o moderno com o arcaico, constitui um tipo de narrativa latino-americana

que os críticos tentam desesperadamente nomear.

Em El Otoño del Patriarca já vimos como comparecem duas das instâncias da Carta

de Las Casas, ou de Colombo: a ignorância e a ingenuidade. O próprio patriarca é um ser

ingênuo e ignorante que não sabia ler até bem entrada idade. Quando começa a aprender a ler

e sai soletrando as sílabas do alfabeto em voz alta pela residência presidencial, é como se

estive lendo a lição de João Miramar: a, e, i, o, u, que Oswald chamou de “a perda da

inocência”. As palavras e as frases retiradas da Carta de Colombo: “y el jueves menos

pensado le poníamos a uno las condecoraciones prendidas con alfileres en la última casa”

(MÁRQUEZ, 1991, p. 34), constroem discursos fragmentários dentro da narrativa. São

fragmentos que não deixam de remeter como cifras a algo que está fora do texto, mas que

ganham significados na relação com o todo. A insistência em relatar fatos e datas passadas,

misturando-as com ocorrências do tempo presente faz com que nos sintamos diante de um

jornal no qual o editor resolveu mesclar notícias atuais com notícias velhas, e outras mais

velhas ainda. Algumas delas de forma cifrada, ou com data alterada. O leitor tem de ir

decifrando tudo para entrar no texto artístico. Entrar nesse labirinto verbal exige certa

habilidade de leitura verbal. El Otoño del Patriarca é um livro de difícil leitura, mas uma vez

dentro do labirinto a leitura é muito prazerosa e permite que nos deparemos com a instância

da alegria.

Ainda dentro dessa vertente, e com características bastante parecidas ao livro de

García Márquez, destacamos o romance Yo el Supremo, do paraguaio Augusto Roa Bastos. O

Supremo é um ditador, presidente perpétuo do Paraguai, que tem inclusive o poder de inventar

palavras, criando neologismos para todas as suas necessidades linguísticas, e também de

poder, evidentemente. Aliás, Roa Bastos e García Márquez haviam combinado, num encontro

que tiveram na Europa com a presença de Carlos Fuentes, escrever, cada um deles, um

romance sobre os ditadores latino-americanos. Daí uma explicação para o fato de Yo el

Supremo ser um romance irmão gêmeo de El Otoño del Patriarca, guardando as diferenças de

cada um, obviamente.

Yo el Supremo abre com um breve texto, o pasquim que apareceu pregado na porta

da catedral, anunciando o que se deve fazer com o cadáver do Ditador, e com todos os seus

servidores civis e militares, no dia de sua morte. Todos devem ser fuzilados. Nele anunciava-

se a morte do Ditador, com uma letra parecida com a do próprio mandatário. Um plágio, um

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crime que deverá ser investigado, pois o Perpétuo Presidente não deve morrer nunca.

Começa-se uma investigação para encontrar o culpado. Todos os jornalistas são presos e terão

a caligrafia examinada e comparada com a do pasquim. A mídia impressa é a materialidade

do romance, uma vez que o próprio Supremo passa a estudar e comentar as grafias e as

caligrafias, a distender linhas do pasquim pelas páginas do livro, e a dissertar sobre a

imprensa e a liberdade dela dentro do país, e no mundo de modo geral.

Não é um livro fácil de ler, o labirinto verbal propõe uma vertigem constante. É um

compêndio de várias coisas. O conjunto textual está composto de 43 unidades narrativas,

marcadas por separação de espaços e mudanças de páginas. Também contam com várias notas

de rodapé, que às vezes começam no meio da página e se estendem para as páginas seguintes.

Como se fossem um romance-ensaio-científico. Em algumas passagens o Ditador está

escrevendo em seus cadernos privados e, em outras, está escrevendo uma circular perpétua. O

leitor sente a necessidade voltar algumas páginas para ver onde se encontra de vez em

quando. Os fragmentos dessas duas grandes divisões vão se intercalando com outras tantas

anotações do Ditador durante os capítulos do livro, e assim se vai levando a história adiante.

As inúmeras anotações e recriações de fatos históricos devem ser entendidas como uma longa

fala oral que o Ditador está tendo com o seu amanuense, quem atende e transmite todas as

suas ordens. É como se estivéssemos ouvindo a gravação de um gravador, que alguém vai

transcrevendo e tratando de organizar de algum modo. Não por acaso as duas últimas

unidades do livro são APÊNDICE, onde se vai tratar dos restos mortais do Supremo, e NOTA

FINAL DO COMPILADOR, onde o fechamento sugere que o livro é uma compilação, ou

uma obra de editor e não de autor.

A dinâmica inicial da narrativa segue mais ou menos assim: “Dê-me o pasquim para

estudar”, diz o Ditador. E o amanuense obedece. “Dê-me a circular que estava escrevendo”, e

lhe é passada. Quando o amanuense se retira, o Ditador passa a escrever no caderno privado.

No geral temos o seguinte sistema de comunicação. Há um emissor: O Ditador. Há um

destinatário: o povo paraguaio. Menos no pasquim. Nele o destinatário é o mesmo, mas o

emissor é uma incógnita. Deverá o Ditador, no desenrolar do enredo assumir a autoria do

Pasquim, escrito em primeira pessoa e com letra parecida com a dele, para justificar tal

ordem, já que ele é o Supremo da pátria para todo o sempre? O único que poderia dar uma

ordem de tal importância. Instaura-se assim a instância da ingenuidade, acompanhada da

alegria e do bom humor. Elementos retirados das Cartas dos cronistas do descobrimento

como acontece em Serafim Ponte Grande (Caminha), e em El Otoño del Patriarca (Las

Casas).

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Outro aspecto que faz com que Yo el Supremo seja um livro ainda mais difícil de ser

lido que El Otoño del Patriarca, é o uso de neologismos constantes. Roa Bastos segue a linha

de sufixação de Guimarães Rosa, de quem ele não esconde que é admirador, colocando

trechos da obra do autor brasileiro dentro do seu romance. Um dos momentos mais claros de

intertextualidade é a passagem de “A terceira margem do rio”, que aparece reescrita dentro de

um contexto da cosmogonia guarani. Roa Bastos também fundiu a língua espanhola com a

língua guarani. Não criou uma terceira língua, o livro é lido em espanhol, mas com o esforço

para entender as metáforas e as imagens proporcionadas pela aglutinação da língua guarani,

sobreposta ao espanhol, e até ao latim ou ao inglês. Um exemplo seria: “Se les acabará el

biguá salutis”36 (BASTOS, 2005, p. 108). Outro seria a frase: “No corras trás los pelos-

hembras unicamente, según tu costumbre”37 (BASTOS, 2005, p. 108).

Em Yo el Supremo está presente toda a vida do jornal. A reprodução de tipos gráficos

das manchetes, o conteúdo jornalístico, o estilo narrativo do jornal e sua fronteira ou evolução

para o literário, o debate sobre a liberdade de imprensa que os jornais costumam fazer, e

inclusive a representação do trabalho de editor. Enquanto livro, pensamos, é um romance

caleidoscópico cuja materialidade não é outra senão o próprio jornal impresso. Enquanto

suporte nos torna mais complexa a noção de mídia, é um livro que amplia os ambientes

midiáticos.

Não poderia faltar um livro de Julio Cortázar nessa seleção. Conhecemos o

experimentalismo de Cortázar desde sempre, e em relação à revolução que causou nos planos

da narrativa desde Rayuela, publicada em 1963, traduzida no Brasil como O jogo da

amarelinha, o livro se tornou praticamente de leitura obrigatória nos cursos de Letras. A

escritura artística estruturada em mosaico tornou-se um tratado da narrativa. O romance

oferece campo para muitas abordagens, seguindo várias perspectivas como a da teoria da

comunicação, da teoria literária ou da filosofia. A estrutura narrativa de Rayuela ajuda o

conteúdo a se projetar para fora do livro suscitando questões ontológicas que não cabe aqui

adentrar e muito menos aprofundar.38 Queremos abordar alguns aspectos da estrutura

narrativa e do processo de leitura ou de recepção.

36 Biguá salutis: expressão que significa fortuna, posição invejável. Está presente também a voz guarani “mbiguá”, pássaro pescador, ave aquática de cor negra. 37 Pelos-hembras: equivaleria ao português “pelos-fêmeas”, é uma tradução do guarani “kurá ragué”. Não existe a expressão em espanhol, mas o estranhamento não impede o seu entendimento no novo contexto. 38 Néstor García Canclini (1968), na opinião de Davi Arrigucci Jr., teria feito a melhor interpretação do todo da obra de Cortázar, analisando-a por um de seus ângulos: o das articulações com a problemática existencial.

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Em Rayuela encontramos dificuldade para delimitar a temática – é preciso dizer

sempre que o livro é sobre isso e/ou aquilo. Com um esforço de concentração é possível dizer

que Cortázar narra a trajetória metafísica do argentino Horacio de Oliveira, considerado por

muitos como um duplo do autor. No índice do romance podemos ver que ele está dividido em

quatro partes: 1) Tablero de dirección. 2) Del lado de Allá. 3) Del lado de acá. 4) De otros

lados. O jogo começa logo na introdução, ou melhor, no “tablero de dirección”, no qual são

propostas ao leitor duas possibilidades de leitura: uma linear, tradicional, e outra que atravessa

os capítulos através de uma sequência sugerida, em movimento semelhante ao jogo da

amarelinha. Diz o narrador:

A su manera este libro es muchos, pero sobre todo es dos libros. El lector queda invitado a elegir una de las dos posibilidades siguientes: El primer libro se deja leer en la forma corriente, y termina en el capítulo 56, al pie del cual hay tres vistosas estrellitas que equivalen a la palabra Fin. El segundo libro se deja leer empezando por el capítulo 73 y siguiendo luego en el orden que se indica al pie de cada capítulo (CORTÁZAR, 1987, p. 7).

O capítulo 73 começa com um Sí (Sim), no qual o leitor precisa demonstrar que está

de acordo com a leitura em saltos. Pereira e Faria fazem a seguinte leitura dessa estratégia de

leitura, que ao nosso parecer também implica a escritura conjunta do romance:

O leitor, aceitando o “sim” que inicia o capítulo, concorda não apenas com o desafio de empreender o arranjo dos fragmentos propostos pelo autor; na verdade, ele dá o passo que, tropeçando em uma vírgula, converte-se na queda de um mundo em que não se busca um desfecho, mas uma existência ao mesmo tempo fraturada e plena – um mundo que é o salto para fora dos limites da “Gran Costumbre”. Como viver neste mundo?, eis a questão proposta pelo narrador, que afirma: “Nuestra verdad posible tiene que ser invención, es decir escritura, literatura, pintura, escultura, agricultura, piscicultura, todas las turas de este mundo. Los valores, turas, la santidad, una tura, la soledad, una tura, el amor, pura tura, la belleza, tura de turas” (CORTÁZAR apud PEREIRA; FARIA, 2008, p. 3).

Temos uma narrativa que caminha dando voltas, fazendo curvas, na qual o leitor

volta sempre ao início, para recomeçar outra vez a busca de um possível fim. Arrigucci Jr.

chamou “presente de grego” a esse jogo narrativo de Cortázar:

Esta espécie de presente de grego, que nos remete sempre a uma outra caixa para nos deixar, no final, com o nada do início, esta progressão que não avança, circunvoluções no labirinto, acaba por fazer reverter a busca sobre si mesma, numa auto-indagação da possibilidade de prosseguir. Rumando o movimento indagador para si mesma, ela já não é uma narrativa apenas de herói problemático, mas uma narrativa problemática. Não é somente o herói que não consegue alcançar os valores autênticos ao fim da busca; ela própria, enquanto linguagem da busca, titubeia quanto ao modo de indagar esses

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valores adequadamente, ou pelo menos, apresenta como crítica essa investigação. Incorpora, por isso, a hesitação ambígua à sua técnica de construção: defrontando-se consigo mesma, encaracola-se, volta-se contra si própria. A linguagem criadora é minada pela metalinguagem. O projeto para construir transforma-se, paradoxalmente, num projeto para destruir. A poética da busca faz uma poética da destruição (ARRIGUCCI JR., 1973, p. 22).

No trecho citado acima, Arrigucci Jr. não está se referindo somente a Rayuela, mas a

toda a narrativa de Cortázar. A metalinguagem destrói uma das possibilidades narrativa, mas

cria outras tantas possibilidades e planos, cria duplos, e faz com que o texto se reverbere para

os outros lados:

É como se a narrativa se deparasse, então, com um sósia, com um duplo a ela ligado por uma relação destrutiva. Um dos procedimentos centrais utilizados na demolição é a paródia: mecanizam-se certos recursos estilísticos, enrijecendo-os e produzindo o efeito cômico. Desnudam-se, por outro lado, procedimentos técnicos por alusão direta no próprio texto ficcional, provocando o efeito de estranhamento que quebra a ilusão realista e desmascara o laboratório literário, convidando o leitor a participar do jogo da ficção, a passar de mero consumidor passivo a consumidor ativo do texto. Emprega-se o efeito de dissonância que reduz cenas de alta tensão dramática a uma farsa. Fragmenta-se a sintaxe da frase, e, sobretudo, a do texto inteiro, exigindo do leitor uma leitura-montagem dos segmentos justapostos, que ele deve conciliar dentro do leque ambíguo das múltiplas possibilidades combinatórias (ARRIGUCCI JR., 1973 p. 22-23).

A colagem de outros textos, a instância da ironia, a atitude paródica são elementos

compartilhados nos romances de Oswald de Andrade, García Márquez, Cortázar, Roa Bastos

e Cabrera Infante aqui evocados. O que diz Arrigucci Jr. da fragmentação em Cortázar serve

praticamente para a obra de todos esses autores:

Fragmenta-se também a palavra, freqüentemente se remontando os destroços em neologismos. Chega-se à fragmentação do próprio livro: o objeto concreto passa a fazer parte do jogo expressivo com uma série de recursos pansemióticos, como sinais tipográficos, fotos, ilustrações, etc. A colagem de textos alheios é, da mesma forma, usual; desde recortes de jornal até trechos de livros científicos, uma grande variedade de textos é anexada à obra, combinando-se aos textos básicos, como num caleidoscópio, que, graça à montagem, projeta enorme halo significativo, além do corte irônico que em geral acompanha os fragmentos. Na verdade, a ironia dá o tom constante do narrador, que, em certos momentos, se desdobra num narrador sósia, interferindo no processo narrativo, ao formular, aos retalhos, uma poética da destruição, o projeto de uma contra-narrativa, paródica irônica da narrativa que se está construindo e na qual se interpõe lúdica e zombeteiramente. É assim que surge Morelli em Rayuela, esse autor sósia, misto de Mallarmé, Joyce e Macedonio Fernández, um velho mestre para o público restrito, que medita a impossibilidade da obra diante do absoluto a que aspira (ARRIGUCCI JR., 1973, p. 23).

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Vemos, assim, que o duplo de Cortázar em Rayuela não é somente Horacio Oliveira,

mas também Morelli, narrador joyciano que se converte em sósia de Cortázar. Em relação aos

elementos pansemióticos a que Arrigucci Jr. se refere precisamos observar que a colagem de

fotos não ocorre em Rayuela, nem em El Otoño del Patriarca, nem em Yo el Supremo, como

já vimos. Essa presença icônica, no caso de Cortázar, se dá no Libro de Manuel e

principalmente em Último round, entre outros.

Figura 15 – “Tablero” de direção de Rayuela, início do romance. Página 7 da

da edição de 1987 da Alianza Editorial.

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Figura 16 – Complementação do “Tablero” de direção de Rayuela. Página 8.

Editorial Alianza, Madrid, 1987.

O que Rayuela propõe é uma conexão com as séries culturais que tradicionalmente

estariam fora do livro. Entendemos séries culturais no sentido que Yuri Tynianov (1968) usou

para definir os elementos que estão fora do livro, mas participam dele como as suas “séries

vizinhas”, conceito ampliado na América Latina por Amálio Pinheiro:

Uma transformação lenta e importante nas tendências do conhecimento artístico é aquela que desloca as leituras das formas fechadas, feitas para a fruição mental solitária, às formas abertas, próprias à invenção coletiva. As primeiras são obrigadas a manter a separação entre o dentro e o fora: livro

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que se lê ensimesmadamente ou música de câmara que exclui o entorno da cultura. As segundas se desdobram justamente porque tecem relações entre seus elementos internos e os arredores mundanos externos à obra. As primeiras são as assim chamadas obras autônomas clássicas, as segundas, mestiças ou não-clássicas. Este esboço de classificação geral é tático e didático: desde o russo Yuri Tynianov (1968) sabemos que cada texto literário sofre intromissões das “séries vizinhas” (cartas, artigos de jornal, diálogos cotidianos, etc.). Mas não restam dúvidas de que há textos que impõem uma leitura unificada e centralizada nas opções prévias do autor e outros que requerem um leitor ativo disposto a dar conta de uma mobilidade que acelera os vaivéns entre o que é de dentro e o que é de fora (como o faziam Julio Cortázar com “Rayuela”, ou Oswaldo de Andrade, com, por exemplo, “Memórias sentimentais de João Miramar” e “Serafim Ponte Grande”) (PINHEIRO, 2006, p. 28).

Haveria ainda muitas outras considerações a serem feitas sobre esse jogo verbal de

Rayuela. Um leitor português escreveu que não podia ler Rayuela em castelhano porque não

dominava o idioma e a edição espanhola que havia conseguido trazia as letras muito

pequenas, fato que o desestimulava. Conta que encontrou uma tradução brasileira com um

título muito esquisito Jogo da amarelinha, o que o levou prejulgar que toda a tradução seria

esquisita. Mais tarde, saiu em Portugal a tradução portuguesa da editora Cavalo de Ferro, com

o título O jogo do mundo. O leitor elogiava, então, a escolha portuguesa que optou por não

fazer uma tradução literal do título, que daria Maraca, em português de Portugal. Afora os

caprichos de leitores, não está má a interpretação de Rayuela como O jogo do mundo.

Figura 17 – Edição de Rayuela. Editora

Cavalo de Ferro, Portugal.

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Haveria ainda outros romances que propõem esse jogo verbal labiríntico conforme

estamos destacando nessa primeira vertente, os quais mereceriam considerações de pelo

menos alguns de seus eixos temáticos, mas que por falta de espaço não o faremos. Deixamos,

somente para constar, que é um labirinto o percurso narrativo que o leitor precisa percorrer

para vencer a trama de Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa, e também a

caminhada em ziguezague que se faz na tarefa de juntar os fragmentos dos muitos textos que

compõem o Paradizo, de Lezama Lima. Passemos para a segunda vertente.

4.2 Segunda Vertente: O Verbal e o Icônico nas Dimensões do Labirinto

Passamos agora a considerar a segunda vertente. Em 1969 Cortázar publica um livro

jornal, Último round. Ali estão pichações de muro, poemas, fotografias, palavras de ordem

escritas nos muros e banheiros públicos em Maio de 68 na França, e outras séries de coisas

com desenhos e ensaios. Se bem que Último round não é um romance, digamos que ele traz o

jornal para o livro. Deixa de ser apenas livro para ser outra coisa como diz Pinheiro (2006),

“algo entre livro e jornal”. Ou como diz Arrigucci Jr. (1973) como “objeto concreto passa a

fazer parte do jogo expressivo com uma série de recursos pansemióticos”. Último round

amplia os ambientes midiáticos. Discute não só a questão dos gêneros dentro dos livros;

discute o estatuto do próprio livro. Editado em dois andares: andar de cima e andar de baixo, o

livro propõem uma relação tátil diferenciada com o leitor. Ao segurá-lo nas mãos e abri-lo de

pé, na forma tradicional, o leitor precisa deitá-lo para ler as letras que estão escritas no sentido

horizontal das páginas e não no vertical. È já uma proposta para desautomatizar o leitor. Pode-

se folhear a parte de cima ou a parte de baixo e intercalar páginas de um andar com páginas

do outro. Às vezes coincidem textos de uma com imagens de outras e logra-se um sentido.

Outras vezes não se vê coerência nenhuma nesse jogo. O livro tende sempre a desmoronar nas

mãos do leitor. Talvez por isso a partir da segunda edição, a cargo da editora Siglo Veinte

uno, o livro passou a ser editado em dois volumes. Andar de baixo um volume e andar de

cima outro volume. A edição em dois volumes perdeu muito da proposta de jogo. Arrugucci

Jr. (1973) mostra como o jazz é uma constante lúdica na obra de Cortázar, e aponta como o

jogo é seu outro leimotiv.

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Figura 18 – Foto da primeira edição de Último round. Volume único

com andar de cima e andar de baixo.39

Figura 19 – Foto de Último round. Ao centro volume único, acrescido de espiral. Nos extremos,

a edição posterior com andar de baixo e andar de cima em volumes separados.

Último round serviu de mediação para aquele que seria o livro-imprensa, por

excelência de Cortázar, Libro de Manuel, publicado em 1973, traduzido no Brasil como O 39 O espiral não faz parte da edição. Foi acrescido devido ao desgaste do livro.

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Livro de Manuel. Nele, outra vez um grupo de jovens argentinos acompanhados de outros sul-

americanos, como acontece em Rayuela, se encontra em Paris, cenário do romance. Eles têm

a tarefa de educar um bebê, enquanto vão discutindo sobre política e traduzindo noticiários de

jornais. As manchetes de jornal vão sendo coladas nas páginas e a transcrição da tradução oral

das notícias são diagramadas no espaço lateral, o qual deve ser dividido com as outras falas

dos personagens.

A ligação da obra com o engajamento político foi muito apontada em vários estudos.

Andrés Fava é um dos personagens do livro, e faz parte de um grupo de latino-americanos

exilados na Europa, com forte atuação política. O grupo de jovens se autodenomina “Joda”e

organiza o sequestro de um diplomata a fim de barganhar a liberação de presos políticos e

atingir os governos latino-americanos. Cortázar teria escrito a obra como uma defesa do

socialismo latino-americano.40 O próprio Cortázar (2002)41 fala que haveria escrito a obra

como resposta política aos intelectuais de esquerda que o acusavam de alienação em relação à

America Latina, e devido ao espírito revolucionário que haveria adquirido em contato com o

povo cubano. O espírito revolucionário de Cortázar não mantém compromisso com nenhuma

revolução que chega ao poder e se revela autoritária. O seu espírito é libertário no mais fiel

sentido da palavra, e pregava uma revolução constante, assim como um surrealismo constante,

integrado à vida das pessoas, e não um surrealismo determinado por movimentos fabricados.

Logo, a grande maioria dos críticos marxistas se desencantaria com ele.42

Passado o contexto de ditaduras latino-americanas e do relaxamento das tensões

entre direita e esquerda, o livro continua oferecendo outras leituras. Além da possível leitura

de objeto situado no entre lugar “livro-jornal”, vemos, através da fala de Andrés, que os

membros da “Joda” não se entendiam. Um grupo de militantes que não se entendem parece

mais uma paródia de grupos militantes. Pereira e Faria chegam a questionar sobre a

perenidade do livro, dando argumentos do próprio Cortázar:

Onde é então que reside a perenidade do Libro de Manuel, uma vez que a atualidade do livro, segundo afirma seu autor (...) deveria ser autônoma, mas não o foi? De fato, é a malha textual em si, passível de receber novas apreciações críticas. Como Cortázar afirmou a Ernesto González Bermejo, as leituras do Libro de Manuel que lhe interessavam eram apenas as que

40 David Viñas, crítico de esquerda, foi um dos que viu nessa obra uma defesa malograda do socialismo latino-americano. Não faltam críticas negativas ao fato de Cortázar haver se mudado para Paris, cidade da enunciação de suas futuras obras, e não mais Buenos Aires, como nas do princípio da carreira (VIÑAS, 1972). 41 Ver a entrevista de Cortázar a Ernesto González Bermejo (2002). 42 Ángel Rama, crítico de esquerda, viu na publicação do Libro de Manuel uma atitude mais voltada para os interesses comerciais do que qualquer outra coisa (RAMA, 1981).

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entendiam as intenções básicas do livro, aquelas que compreendiam que “não se trata de um livro revolucionário às secas”, mas que coloca em jogo “todo o trabalho interno de reflexão e de crítica das condutas revolucionárias” (BERMEJO, 2002, p. 102), já que advoga em favor do humor e do erotismo como vias necessárias para que o socialismo “latino-americano” consiga sua vitória definitiva. Deparamo-nos, mais uma vez, assim como em Rayuela, com a perturbadora questão dos métodos com que buscamos atingir uma existência mais humanizada (PEREIRA; FARIA, 2008, p. 7).

Não faltaram críticas que vissem no Libro de Manuel um livro menor de Cortázar,

uma defesa malograda do socialismo ou um livro voltado em atenção ao apelo comercial,

como vimos, e até a recriminação de que seria uma massagem no mass media. Para essa visão

crítica faltou incorporar a possibilidade da colagem como uma mediação de um veículo por

outro, dos usos e das mediações (MARTÍN-BARBERO, 2008), que modificam os próprios

meios. Ver a transmigração do corpo-gráfico do jornal para o livro, onde um não exclui o

outro, criando um dialogismo.43 Enfim, faltou considerar as possibilidades de leituras que se

abriam pelas chaves da paródia, do humor e do erotismo, que liga a obra com a tradição

cultural latino-americana. Tradição esta combatida pela crítica mais sisuda, principalmente da

esquerda latino-americana, que absorveu os conceitos dos países centrais sobre “literatura” e

“subliteratura”, “alta” e “baixa” cultura, dentro de um processo de escalada alpinista no qual o

povo deveria sair da “subliteratura” e atingir a “alta literatura”, a “alta cultura”. Felizmente, o

caleidoscópio formado por fragmentos de narrativas verbais e narrativas icônicas pôde ser

lido e entendido pelos olhos de outros leitores mais aparelhados e aptos à sua leitura.

Na incorporação de elementos da mídia, um dos livros mais radicais é sem duvida

Tres tristes tigres, do cubano Guillermo Cabrera Infante. Desde que foi lançado, em 1967,

vem causando espanto, no sentido positivo e negativo também. Foi proibido em Cuba,

lançado com cortes. Só mais tarde, foi lançado na Espanha, sem cortes. Manuseamos a edição

venezuelana, feita a partir da edição espanhola, com os acréscimos e correções que o autor foi

fazendo ao longo dos anos. É um livro que sempre foi refeito ou recriado. Ele fazia parte de

outro romance, Vista do Amanhecer no Trópico, vencedor do prêmio Biblioteca Breve, da

Espanha, em 1964. Mesmo com o prêmio, o escritor decidiu dividir a obra em duas.

Transformou o título original em uma visão ficcional da história de Cuba, da chegada de

Colombo ao primeiro período pós-Revolução de 1959. Em Tres Tristes Tigres ele aproveitou

e acentuou a parte que tratava da boêmia em Havana no final dos anos 1950.

43 Entendemos dialogismo no sentido que Bakhtin define como o processo de interação entre textos que ocorre na polifonia; tanto na escrita como na leitura, o texto não é visto isoladamente, mas sim correlacionado com outros discursos similares e/ou próximos.

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Figura 20 – Página 107 do Libro de Manuel.

Na obra o autor trabalha a linguagem, com as características linguísticas acentuadas

de cada personagem, tratando de recriar metaforicamente as particularidades que a língua

espanhola ganhou na ilha. Há uma forte convergência do verbal com o icônico, seja com

letras formando figuras, ultrapassando a mensagem verbal, seja com figuras dadas por traços

não verbais, como o gestual, por exemplo.

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Figura 21 – Página 156 de Tres Tristes Tigres.

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Figura 22 – Página 154 de Tres Tristes Tigres.

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Os personagens principais são três amigos – Códac, Silvestre e Arsenio –, boêmios

que passam as noites entrando e saindo dos cabarés, e se embriagando. Um quarto

mosqueteiro é o personagem Bustrofédon, que troca a ordem das sílabas, faz trocadilhos o

tempo todo.

Cabrera Infante usou no romance, além do trava-língua do título, que vem das

brincadeiras de Bustrófedon, versos, diálogos em forma de peça teatral, desenhos

geométricos, lista de nomes diagramados em duas colunas, anúncios publicitários, e a

introdução, ou prólogo feito por um mestre cerimônias, trazendo o music hall para dentro do

livro. O leitor começa a ler o livro e de repente se depara com uma página toda negra, como

um fundo de tela de cinema querendo indicar a passagem de cena. No capítulo Algumas

revelações, há várias páginas em branco, como fazem as capas de jornal quando querem

protestar ou calar por algum motivo. No final desse capítulo apresenta uma página com letras

invertidas. O leitor precisará de um espelho para lê-la. Além da presença da música popular,

do rádio, da vitrola, do music hall, do cinema, outra relação com a mídia, ou a mídia como

matéria da ficção literária são a crônicas de estilo jornalístico que ele escreve sobre a morte de

Trotski. Textos apócrifos, cuja autoria é atribuída a vários escritores cubanos, imitando o

estilo de cada um desses autores. Um dos mais engenhosos é o texto barroco, de enumeração

excessiva, atribuído ao Alejo Carpentier. O leitor se pergunta, teria José Martí, Virgilio

Piñera, Nicolás Guillén, Alejo Carpentier, escritores assíduos da imprensa, escrito e publicado

tais textos sobre a morte de Trotski nos jornais?

Em Tres Tristes Tigres o movimento de ligação da obra literária com as “séries

vizinhas” é constante. De repente, nos damos conta de que não só Havana, mas Cuba inteira

habita dentro de um livro. Mosaico, labirinto, caleidoscópio são nomes que ligam esses

romances com o hipertexto das páginas digitais. Vejamos essa relação no próximo e último

capítulo.

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5 O INTERTEXTO DA COMPOSIÇÃO EM MOSAICO DAS PÁGINAS

DA INTERNET COM LIVROS IMPRESSOS E LIVROS DIGITAIS

Os livros impressos da produção mais experimental da América Latina já traziam

uma virtualidade que mais tardem chegaria também com as páginas da internet. O chamado

hipertexto oferece muitos campos de análise e questionamentos, nos quais não pretendemos

entrar, pois não é nosso objetivo neste trabalho. Sobre as questões do ser frente às páginas

digitais e as questões ontológicas advindas da operação de sistemas de informática,

encontramos boa discussão no trabalho de Sloterdijk (2000), El hombre operable. As

questões propostas e discutidas por Sloterdijk se assemelham, ou equivalem, às discussões

filosóficas que têm suscitado as páginas virtuais de Rayuela desde 1963, quando foi publicado

o romance.

A leitura em páginas salteadas, labiríntica, feita a partir da montagem em mosaico

presente em Rayuela, o apanhado de fragmentos narrativos verbais e icônicos de tres tristes

tigres, a montagem de um livro por capítulos que tratam cada um de uma cosmogonia, como

acontece em Paradiso são exemplos impressos do chamado hipertexto. O que muda da leitura

de um livro impresso como estes a que estamos nos referindo para a leitura de páginas

digitais? Mudam as ferramentas, e o uso dessas ferramentas é que deverá determinar um novo

sistema. A leitura digital ligada à tela de um computador interfere na forma de ser portátil do

livro impresso, no tátil, no conforto dos olhos. Altera as condições de recepção do leitor. Se

para melhor ou para pior não nos cabe discutir neste trabalho. Importa-nos registrar que até o

momento atual as páginas digitais não encontraram forma de fazer grandes alterações no

formato livro. Com exceção do acréscimo do áudio para livros digitais que oferecem essa

possibilidade, os demais percursos que são feitos com o cursor de navegação já estavam dados

pelo comando tátil do dedo nas páginas. Uma exceção talvez haja para a poesia digital – e não

a poesia digitalizada. Falamos da poesia que é feita para ser vista em movimento na tela, na

qual apenas o movimento lhe dá significação. Para a prosa essa possibilidade se reduz porque

ela exige uma linearidade mínima dentro da unidade de encaixe no todo do texto. Sem essa

unidade sequencial mínima não há prosa.

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5.1 El Libro Total

Para ilustrar e fechar a questão, gostaríamos de tecer algumas considerações sobre El

Libro Total, um livro digital publicado na Colômbia em 2007. Trata-se de um projeto

desenvolvido por engenheiros de uma editora ligada ao ramo da informática e alguns

profissionais de letras. Pretenderam publicar A Divina Comédia de Dante em livro digital,

agregando a este as suas versões para o inglês, árabe, castelhano e outros idiomas. Também

entraria na versão digital tudo o que se referisse à obra: críticas, resenhas, ensaios, fotografias,

gravuras, e toda uma iconografia dos quatro cantos do planeta. Desde 2007 vêm-se

acrescentando páginas ao livro, que no momento atual consta de 1.679.352 páginas.

A relação comercial do livro é tema de debate em foros virtuais e congressos sobre

direitos autorais. O livro é gratuito, pode-se acessá-lo de qualquer país. Mas também não se

pode levá-lo para lugar nenhum como objeto. As dificuldades para acessá-lo aumentam na

medida em que se acrescentam mais páginas. Uma vez acessada a página do livro, o sistema

exige uma tela com resolução mínima de 1024 x 768 pixels para poder visualizá-lo. O

computador também precisa ter o programa flash Power 10 para rodar o livro.

Figura 23 – El Libro Total aberto na tela.

Uma vez cumpridas as necessidades tecnológicas para abrir e acessar as páginas do

livro, o leitor terá instruções de como navegar pelo livro através de um áudio. São

semelhantes às instruções do narrador de Cortázar no “tablero de dirección” de Rayuela.

Além da possibilidade de ouvir o áudio da página caso o leitor queira, clicando com o cursor

em cima do símbolo de áudio, o livro não oferece grandes alterações quanto aos percursos de

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leitura em relação a Rayuela. O livro permite navegar no sentido de direita para a esquerda,

ou de esquerda para a direita e, às vezes, de cima para baixo ou de baixo para cima. A

limitação consiste no fato de que o leitor precisa clicar em outros ícones para acessar outro

conteúdo do todo, mas com a obrigação de abandonar sempre a página que estava antes. Para

abrir uma nova página precisamos fechar a que estamos, e essa passagem faz com que a

navegação seja de alguma forma linear, por mais que se façamos atalhos. A cidade da editora

do livro criou um espaço chamado Casa del Libro Total, para onde vão artistas, cantores,

instrumentistas gravarem suas performances. O material que vai sendo produzido passa por

uma seleção para integrar El Livro Total. Trata-se de uma vontade, de um apetite barroco; não

sabemos aonde vai chegar esse working in progress. É um novo formato, mas que, na

proposta narrativa até o momento atual, não oferece praticamente nada que o livro impresso

não haja oferecido antes. Vide os romances caleidoscópicos latino-americanos.

Figura 24 – Casa del Libro Total em Bucaramanga, Colômbia.

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CONCLUSÃO

As relações entre o jornal e o livro no Brasil e na América Latina criaram textos e

objetos concretos que desafiam a definição e a catalogação. A tendência para criar textos

ambíguos e polifônicos vinha já na constituição barroca do continente, antes da imprensa se

instalar e o jornal se consolidar. Vimos como as cartas dos descobrimentos têm gerado

polêmica ao longo do período historiográfico. Ora foram consideradas como documento de

fundação de um território, ora como literatura de informação, sem valor artístico, e mais

recentemente vêm sendo reconhecidas como escritura dotada de elementos artísticos que

funda também a literatura latino-americana. Vimos com Mário Chamie (2002), no primeiro

capítulo, como Caminha instaurou as instâncias da alegria, da ingenuidade, do humor, e

incorporou a voz do outro no seu discurso. Características que aproximamos à carta de

Bartolomé de Las Casas e, comparando, vimos que elas também habitam ali. Frei Las Casas

também legou importantes elementos da narrativa através de sua crônica para a cultura da

América Hispânica. Mais dura, relatando batalhas e genocídios, vimos como a carta de Cortez

instaura um tipo de realismo que será desdobrado como estilo dos folhetinistas da revolução

mexicana. As crônicas dos descobrimentos são ambíguas porque são tudo ao mesmo tempo:

documento de achamento de um território, documento de informação, literatura de informação

e texto literário. Delas saíram elementos como a subjetividade e o registro do circunstancial,

características importantes que deram especificidade à crônica jornalística. Um texto que

captura momentos da vida mundana e liga o que está fora com o que está dentro.

A necessidade ocidental de mapear, definir, catalogar e historiar encontrou

dificuldades enormes na América Latina. Uma delas é o problema da periodização do qual

vimos dois exemplos: o da periodização da imprensa e o da periodização literária. Na

periodização literária as crônicas escritas em línguas pré-colombianas oferecem problemas.

Como considerar a produção do México ou do Peru que não esteja em castelhano para contar

a história da imprensa desses países? No caso da Argentina a crônica de Ulrico Schmidel

Viaje al Río de la Plata (1534-1554), que conta a experiência de 20 anos percorrendo a

região, descrevendo as tribos, os costumes, a flora e a fauna, não serve para a historiografia

porque foi escrita e publicada em alemão. Durante a pesquisa a imprensa do Paraguai revelou-

se digna de maiores investigações. O problema já não se limita à periodização, mas ao de

descobrir como ela realmente era. Segundo Josefina Plá (1975) ainda não se sabe se nas

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Missões existia uma máquina de prensa ou se havia várias, uma em cada Missão. As

publicações de folhetos e livros da época mostram tipos diferentes para impressões em cada

região, tanto que se chegou a formular a hipótese de que haveria uma prensa ambulante, e

cada grupo de índios tipógrafos construiriam os seus tipos. A constituição dessa imprensa

ainda vive cercada de mistérios:

Esta prensa fue organizada y construída in situ, con materiales casi todos de la tierra. Del país las maderas para los bancos, cajas, tórculos: del país piedra para las platinas. De hierro beneficiado en las Misiones las indispensables piezas de metal. Acerca del material de que fueron fabricados los tipos hay muchos pareceres. Viriato Diaz Pérez sostuvo que fueron de madera; Currea, que de cobre; Mulhall que de bronce; en opinión de Furlong “de un amálgama (sic) de estaño y plomo”. Otros datos señalan que fueron de estaño (PLÁ, 1975, p. 160-161).

Esta situação inaugural da imprensa paraguaia, ligada com a imprensa argentina pelo

vínculo geopolítico, é emblemática sobre a produção cultural de toda América Latina.

Referimo-nos ao processo de adaptação às máquinas, à construção de novas ferramentas e

produção artesanal contínua e concomitante com as novas tecnologias. Mitre, nas suas

investigaçõe chegou a afirmar que

La aparición de la imprenta en el Río de la Plata es un hecho singular en la historia de la tipografía después de Gutemberg. No fue importada; fue una creación original. Nació o renació, en medio de las selvas vírgenes, como una Minerva indígena, armada con todas sus piezas, con tipos de su fabricación, manejados por indios salvajes, recién incorporados a la vida civilizada; con nuevos tipos fonéticos de su invención, hablando una lengua desconocida en el Viejo Mundo; un misterio envuelve su principio y su fin. (MITRE apud PLÁ, 1975, p. 159).

O trabalho dos índios tipógrafos ou dos gravadores das primeiras Gazetas do México

aos quais nos referimos são demonstrações de que não as ferramentas, mas principalmente, o

uso que se faz delas constrói sistemas latino-americanos de tecnologia. Nesse sentido, os

conceitos de sistema e tecnologia são entendidos como os concebeu Sloterdijk, para quem “a

tecnologia é o sistema, não é um conjunto de ferramentas” (SLOTERDIJK, 2000).

Já na periodização da literatura, na qual o problema é muito mais discutido, vimos

como se pensou em desvalorizar tudo o que foi produzido no começo pela vinculação com o

período político colonial. A literatura nacional dos países latino-americanos começaria com o

momento da independência dos Impérios de Espanha e Portugal. A historiografia não

considerou a possibilidade de a literatura ser constituída de obras autônomas, que se

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relacionam com o ambiente externo no qual foram geradas, que por sua vez se relaciona com

elas, independentemente da situação política em que se encontrava o país.

O romance-folhetim foi um fenômeno de transformação de um modelo francês em

algo particular para cada país. Logo após a chegada do folhetim francês aos jornais do

continente, os escritores ou aspirantes a escritores se lançaram à experimentação. O resultado

foi a produção de uma escritura, uma maneira de narrar que se ligou com a cultura popular de

cada região, projetando a prosa para o futuro. A cultura gauchesca da Argentina, que já vinha

sendo cantado pela poesia, ganhou sua difusão pelos meios de comunicação de massa: o

jornal que levava pessoas a amanhecer na porta do La Patria Argentina para receber o

folhetim de Eduardo Gutiérrez. A vida urbana e a fala dos brasileiros começam a aparecer nas

páginas dos jornais em forma de ficção de rodapé. O gênero se desdobrou e criou as bases do

romance brasileiro. A revolução mexicana forneceu matéria narrativa para os folhetinistas

fazerem “o México inteiro desfilar” nas páginas de seus folhetins. Verificamos que os países

onde a crônica jornalística e o romance-folhetim mais se desenvolveram foram também os

que mais desenvolveram a radionovela e telenovela. Caso da Argentina, do Brasil, do México

etc. Deveríamos acrescentar também a Colômbia; segundo Martín-Barbero (2010) ali eram

feitas telenovelas de alta qualidade no começo, tendo decaído tempos depois quando se

deixou de sistematizar o espaço e o tempo nesse tipo de teledramaturgia. Histórias nas quais o

espectador não sabe em que tempo está se passando a trama, nem em que lugar, fizeram com

que as telenovelas colombianas se tornassem primárias. Acreditamos que nessa etapa de

produção mais voltada às necessidades comerciais, ela tenha perdido muito da herança dos

folhetins.

Haveria mais aspectos interessantes para pesquisar sobre o romance-folhetim,

tentando estabelecer uma conexão entre o Brasil e os demais países latino-americanos. Um

deles, que poderá ser desdobrado em outro momento, será a produção das mulheres escritoras

de folhetim. No Brasil houve várias mulheres escritoras de folhetim como mostra (MEYER,

2005). No Peru, descobrimos mulheres que não só escreviam folhetins, mas fundavam e

dirigiam jornais nos quais os publicavam. É o caso de Clorinda Matto de Turner, escritora de

Cuzco, autora do romance-folhetim Aves sin nido. Clorinda acabou vindo exilada morar no

Rio de Janeiro após ser perseguida pelo governo e ter o seu jornal fechado. Bustamante

(2005) mostra como os críticos que a acusaram de ter muitos defeitos em seu romance, não

entendiam que ela usava expedientes técnicos das narrativas folhetinescas para se comunicar

com as classes mais populares do país. Um estilo jornalístico/literário que lhe garantiu o êxito.

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A modernização da narrativa mexicana pela mediação do jornal com seus folhetins e

crônicas também pode ser melhor investigada em desdobramentos futuros da pesquisa. Vimos

como os primeiros anos de cinema no México podem ser reconstituídos através das crônicas

de cinema publicadas entre 1894 e 1900, momento de grandes transformações, no qual

encontramos os cronistas em plena atividade.

A investigação sobre o folhetim na Argentina e sua contribuição para a fundação do

teatro argentino ao se unir com o circo criollo nos fez deparar com o sainete, essa forma de

peça teatral curta, de apenas um ato que já vinha unida ao melodrama quando chegou na

América Latina. Descobrimos que Arthur de Azevedo escrevia sainetes que eram

representados nos teatros do Rio de Janeiro. Machado de Assis, quando era mais jovem,

escrevia folhetos poéticos para serem apresentados no teatro, os quais podem ser considerados

como uma forma de sainete. Um deles, escrito em forma de verso, foi inspirado no folhetim

Os mistérios de Paris, de Eugène Sue. Um músico de prestígio, amigo de Machado, o

musicou e o levou em forma de ópera ao teatro do Rio de Janeiro. O poema ou a música não

agradaram aos ouvidos do público exigente, que preferia as óperas italianas. Machado teria

abandonado a escritura desses folhetos depois que se consagra como romancista e se retira da

coluna do jornal, onde será substituído por Olavo Bilac. A comparação entre os dois países

suscitou-nos a seguinte hipótese. Teria o sainete brasileiro escrito por Machado, Arthur de

Azevedo e outros se desdobrado em alguma outra forma de drama? Teria fracassado porque

era levado ao teatro frequentado por uma elite mais interessada na cultura europeia de

exportação do momento, ao passo que na Argentina o sainete encontrou seu público no circo,

onde se mesclou com o folhetim: gaúchos e imigrantes pobres, migrando depois do circo para

o rádio e criando o radioteatro? Este é mais um percurso de pesquisa cuja entrada o nosso

trabalho apenas vislumbra, mas que, se percorrido, poderá revelar muitas coisas sobre os

desdobramentos do sainete. Principalmente no teatro de revista de Arthur de Azevedo

haveremos de encontrar algum desdobramento do sainete. A crítica genética, ou a crítica de

processo, como propõe Salles (2009), ofecerece-nos um caminho de investigação que nos

levaria à busca e à análise dos folhetos do dramaturgo que não tiveram êxito, que não fazem

parte da sua biografia. A análise do processo de construção dessa dramaturgia, vendo aquelas

mínimas partes que ficaram nas bordas, como propões Jerusa Pires (2010) nos revelará muito

dessa conjunção de códigos, linguagens e materiais.

Vimos como na América Latina o processo de migração de um gênero para o outro

resulta, quase sempre, numa combinação de elementos do velho e do novo. Um dos exemplos

mais notáveis que pudemos encontrar é o conto breve. A América Latina não inventou o

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conto, mas criou – ou recriou – uma forma de narrar com tensão e carga poética concentrada.

Na metáfora do boxe usada por Cortázar (1993) para o efeito literário, o romance ganha do

leitor por pontos, enquanto um conto breve ganha sempre por Nok-out, quando é bem

elaborado. A Europa não desenvolveu o conto breve porque não manteve a mesma relação

com a imprensa que os latino-americanos mantiveram, tanto escritores como leitores de

jornais. A Europa teria conservado o livro como destino da alta literatura e relegado a

escritura da imprensa jornalística ao plano de ordem menor, descartável, sem valor artístico,

realizada por escritores assalariados etc.

A crônica e o conto breve publicados no jornal encontraram na América Latina um

ambiente favorável para a sua recepção e interação. A América Latina não se opôs ao livro,

mas o jornal favoreceu a circulação desses textos mais entre os leitores. Como mostra

Pinheiro o jornal impresso “situa-se num espaço concreto de relações culturais e por ser

portátil, maleável, tátil às exigências do dedo e do corpo” encontrou no continente um

ambiente propício à sua implantação e circulação, “afora congregar sistemas de idéias e de

poder” (PINHEIRO, 2004, p. 17 ).

A análise dos desdobramentos dos gêneros com a aglutinação de novos códigos e

linguagens, incidindo em novos objetos e novos suportes, nos levou à consideração dos

romances caleidoscópicos latino-americanos e sua relação com o corpo-gráfico dos jornais.

Fato constatado é que todos os escritores desses romances tiveram uma relação muito intensa

com a imprensa jornalística. Todos eles foram jornalistas escritores ou escritores jornalistas,

ou colaboradores de jornal em alguma etapa da vida deles. Os romances caleidoscópicos se

inserem na veia neobarroca do continente e podemos dizer que são obras não clássicas,

aquelas que se voltam para fora, que se relacionam, religam o ambiente externo circundante

com o interior da obra, como vimos no quarto capítulo. O mais difícil de entender é que essas

obras não são anticlássicas por serem não clássicas. O mundo clássico também aparece nelas,

mas em forma de montagem na qual se fricciona com o popular. A crônica jornalística, o

conto breve nascido no jornal, o livro fragmento que põe em dúvida não só o gênero romance,

mas o próprio objeto livro, o jornal que funda uma literatura são práticas de um pensamento

em constantes conexões, nas palavras de Boaventura de Sousa Santos são experiências

desperdiçadas:

Proponho uma racionalidade cosmopolita que, nesta fase de transição, terá de seguir a trajetória inversa: expandir o presente e contrair o futuro. Só assim será possível criar o espaço-tempo necessário para conhecer e valorizar a inesgotável experiência social que está em curso no mundo de hoje. Por outras palavras, só assim será possível evitar o gigantesco

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desperdício da experiência de que sofremos hoje em dia. Para expandir o presente, proponho uma sociologia das ausência; para construir o futuro, uma sociologia das emergências.Dado que, como propõe Prigogine (1977) e Wallerstein (1999), as sociedades vivem uma situação de bifurcação, a imersa diversidade de experiências sociais reveladas por estes processos não pode ser explicada adequadamente por uma teoria geral. Em vez de uma teoria geral, proponho o trabalho de tradução, um procedimento capaz de criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis sem destruir a sua identidade (SANTOS, 2006, 95).

Vemos como Sousa Santos – que propõe ideias tão interessantes para o convívio a

partir da tradução, práticas comuns das comunidades mestiças – termina um bom parágrafo

recaindo na ideia de preservação de identidade. Terminamos com a sensação que ele nos

oferece a metade de um caminho.

Ao planejarmos o percurso de pesquisa sobre as práticas e as experiências, no

princípio pensamos em abordar somente a relação do jornal com o livro, a diagramação dos

jornais migrando para a diagramação das páginas dos livros. Interessava-nos as muitas vozes

que falam nos jornais e nesses livros, mas encontramos situações nas quais a presença icônica

não tinha apenas a função de ilustrar, indo muito além disso. Uma coisa é um livro ilustrado,

outra é um livro onde as imagens estão a serviço de sequências narrativas não verbais, que

devem fazer jogo de interação com sequências verbais, como ocorre em Tres tristes tigres e

Libro de Manuel ou Último round, por exemplo. O desdobramento das pesquisas referente a

esse capítulo nos levou a considerar que não apenas o jornal foi trazido para dentro desses

livros, como também outros elementos tais como o music hall, a canção popular, o rádio, o

folhetim, o melodrama, o telégrafo, a fotografia, a pintura, o cinema etc., o que nos permitiu

perceber que eles promoveram ou promovem uma aglutinação e uma ampliação dos

ambientes midiáticos.

No quinto e último capítulo nos propusemos a fazer apenas uma menção aos textos

digitais para demonstrar como a composição em mosaico do hipertexto já estava dada nos

livros impressos como os romances caleidoscópicos latino-americanos. A experimentação

narrativa em Rayuela já trazia a proposta de navegação que fazemos hoje nas páginas da

internet. Para exemplificar com uma produção digital, escolhemos El Libro Total, pela

possibilidade de comparações que oferece com a composição em mosaico dos livros

impressos mais experimentais, com outras possibilidades, não sendo tátil e nem portátil como

é um volume impresso.

A mobilidade em mosaico do jornalismo impresso, a montagem dos romances

caleidoscópicos foram possibilitadas pela tendência à montagem cubista que predomina na

forma de produzir cultura da América Latina. Como diz Pinheiro (2004, p. 17) “este

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continente possui uma sorte de montagem sintática” e, adaptando Zumtor (2004), própria das

“culturas em ritmo rápido”, que torna as suas comunidades “aptas para incorporar os

agregados metonímicos provenientes dos mais diversos códigos e linguagens” (PINHEIRO,

2004, p. 17).

O espaço geográfico denominado América Latina congrega países diferentes entre si

quanto aos sistemas políticos, ao tamanho geográfico, à economia etc. Mas vemos como

possuem comunidades muito semelhantes quanto à atitude incorporadora de materiais,

códigos e linguagens, simples ou complexos, oriundos de todas as culturas com as quais se

entra em contato, que são ressignificados no processo de montagem, e remontagem. Por isso

foi possível a transformação do jornal em livro e do livro em jornal, criando objetos híbridos

de ambos. Dadas as características dessas comunidades mestiças, nômades, solares, e do

aberto, foi possível que o jornal mediasse a literatura. E que uma literatura de cunho popular

mediasse o jornal. Comparações entre Brasil e demais países latino-americanos é uma

metodologia para pensarmos a América Latina, nesse sentido a nossa pesquisa se mostra

relevante, geradora de conhecimentos sobre uma parte da realidade. A literatura latino-

americana nasceu desse aproveitamento de materiais e linguagens, da circularidade entre a

tradição do livro e da fundação da escritura do jornal.

Os problemas de catalogação, periodização, recusa de valor artístico a certos

segmentos da escritura do continente são frutos, na maioria das vezes, da dificuldade de

entendimento destas formas de culturas mestiças e complexas.

Ao dizermos “América Latina” sabemos que estamos usando um nome por falta de

melhor nome. Como nos lembra Octavio Paz, ao escolhermos o nome “América Latina”,

estamos optando por nomear apenas uma parte da realidade, sabendo que deixamos de

nomear outra parte desta mesma realidade.

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ANEXOS

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Anexo I

O Nascimento da Crônica

Machado de Assis

“Há um modo certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor!

Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou

simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos,

fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se

um suspiro a Petrópolis, e la glace est rompue; está começada a crônica.

Mas, leitor, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de

Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abrão, Isaque e Jacó, antes mesmo de

Noé, houve crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do

contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra

provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer camisarias; a segunda é que

ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as

nossas províncias estão nas circunstancias do primeiro homem.

Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhe perder o paraíso, cessou, com essa

degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno;

vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do

ano.

Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; ma há toda a

probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o

jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente

começaram a lastimar-se do calor. Uma dizia que não pudera comer ao jantar, outra tinha a

camisa mais ensopada do que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador

fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil,

natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.

Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que

lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contudo,

leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete.

Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a

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verdade mais incontestável que achei debaixo do sol, é que ninguém se deve queixar, porque

cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.

Não afirmo sem prova.

Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como

todos os dias e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: – Que

calor! Que sol! é de rachar passarinho! é de fazer um homem doido!

Íamos em carros! apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço.

O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os

de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar

esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas; estavam de cabeça descoberta,

a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, e daí às nossas

casas ou repartições. E eles? Lá os achamos; lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a

trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante

todas as horas quentes do dia?

Texto datado de 1 de novembro de 1877.

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Crônicas escolhidas. São Paulo: Ática, 1994. p. 13-15.

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Anexo II

Haxixe (trecho)

Olavo Bilac

Como a conversação, depois de haver borboleteado de assunto em assunto, durante

esse jantar de refinados, tivesse caído afinal em Baudelaire e nos seus Paraísos artificiais,

Jacques, que aos trinta anos de idade já tem experimentado todos os prazeres e provado todos

os desgostos, disse acendendo o charuto e enchendo o segundo cálice de chartreuse verde:

“Pois afirmo-lhes eu, com conhecimento de causa, que a embriaguez do ópio não tem

nenhum dos encantos que lhe atribui Baudelaire...”

“Oh! desgraçado! Pois até já tomaste haxixe?”, indagou um de nós, com alguma

incredulidade.

“Propriamente haxixe não tomei, mas tomei coisa melhor.”

E relatou-nos isto:

“Foi há muito tempo. Estava eu morrendo de tédio numa cidade do Norte. Toda a

solidão daquelas ruas muito direitas, muito largas muito vazias me havia entrando na alma.

Como eu me aborrecia, meus amigos! E imaginem que, por esse tempo, sofria eu de uma

singular excitação nervosa, que me fazia ficar semanas inteiras sem dormir, com o corpo

quebrado, todo o organismo vibrando dolorosamente ao menor choque, à menor emoção.

Cheguei a ter horror à minha casa, àquela casa imensa e deserta entre cujas paredes se

arrastavam longas, terrivelmente longas, as minhas noites de insônia. Preferi passá-las a vagar

de rua em rua, sem destino: e inda hoje me lembro com pavor desses passeios noturnos por

uma cidade morta, ora à claridade de luar que escorria pelas casas como um banho de prata

viva, ora ao clarão trêmulo dos candeeiros de azeite, dependurados a ganchos de ferro,

rangendo lugubremente ao mais fraco sopro de vento... Um dia, um médico meu amigo

aconselhou-me o uso do ópio.

“Protestei que seria inútil: a morfina, o láudano, tinham sido impotentes, deixavam-

me o corpo despedaçado, a língua amarga, a cabeça apuada de dores, e a alma acordada, no

mesmo sofrimento e na mesma agonia. Ele , então, receitou-me um novo preparado...

“Não conhecem vocês, com certeza: é o tanato de canabina. A canabina é o alcalóide

que se extrai do haxixe, da cannabis indica. Recebi esperançado, das mãos do farmacêutico, a

pequena caixinha redonda, sentindo com delícia, mexerem-se dentro dela, no pó avermelhado,

as doze pílulas consoladoras, pequeninas, escuras, moles, de uma cor de bronze azinhavrado.

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O farmacêutico, solicito, recomendou-me com ares misteriosos que não tomasse, em caso

algum, mais de duas pílulas. Mas já eu não ouvia...

“Esperei a noite com uma ansiedade grande. Às dez horas tome duas pílulas, deitei-

me, e abrindo um livro qualquer, chamei o sono. Não sei que livro era: sei que a pagina me

interessou, e que, embebido na leitura, me despreocupei do efeito da canabina. Ao cabo de

algum tempo, olhei para o relógio. Correra uma hora. Nenhum efeito. O cérebro claro, fresco:

nenhum desejo de sono. Sorri, com desdém, do poder do narcótico, e engoli corajosamente

mais três pílulas e dali a um quarto de hora uma outra. Não posso dizer se ainda gozava de

pleno uso da razão, quando tomei essa quarta pílula. Quero crer que não: não sei mesmo como

consegui voltar à calma. Doía-me a cabeça alucinadoramente. Estalava-me no ouvido um

barulho de mar quebrando-se de encontro a rochedos. E não sei se acharei palavras para lhes

referir o que principiou então a passar-se em mim...”

Jacques esvaziou o seu cálice de chartreuse. Nós todos ouvíamos calados e ansiosos:

“Foi uma cousa horrível, sobre-humana, inaceitável, prolongada por toda a noite. Eu

não dormia, mas não estava acordado. Dentro do meu corpo havia uma alma que sentia, que

pensava; mas como hei de eu explicar isso? não era a minha verdadeira alma, porque eu a

sentia fora de mim, divorciada do meu corpo, pairando sobre ele, querendo reentrar nele, e

não podendo! não podendo! não podendo! Sabem vocês o que se passa, alguns momentos

depois da morte, segundo os espíritas? Dizem os espíritas que a alma, abandonando o corpo,

não se afasta dele, e, enquanto não se faz o enterro, fica errando em derredor do despojo

carnal desprezado. Era talvez isso o que eu sentia... Mas, não! não era isso, porque além da

minh’alma que pairava fora, havia uma outra que permanecia no corpo, sofrendo e chorando...

“Vejamos... Eu tinha consciência de que estava deitado, de costas sobre a cama:

apalpava-me, sentia o calor da minha carne, a pulsação de minhas artérias, sabia que não

estava sonhando... Doía-me a cabeça cada vez mais: era como se, estando ela apertada entre

duas barras de aço, a fossem pouco a pouco esmigalhando, amassando, triturando. Eu sentia

tudo isso: logo a minh’alma estava ali. Mas que outra alma era aquela, também minha, que

estava fora da carne e dividida entre dous sentimentos opostos: a mágoa de não poder entrar

no corpo que era seu, e a delícia de não estar sofrendo o que esse corpo sofria?...

“Quanto tempo durou isso, não lhes posso dizer: deve ter durado séculos. Quantos?

um, cem, mil, uma eternidade...

“Depois, senti que acabara o desdobramento da minha personalidade. Estava outra

vez com uma só alma. E a alma, outra vez una, outra vez indivisível, adquiriu uma acuidade,

uma perfeição, uma clareza de memória sobrenaturais. Recapitulei toda minha vida, de dia em

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dia, de hora em hora. Lembrei-me até de quedas que dei, quando tinha um ano de idade.

Assisti mesmo à cena do nascimento... E como me doía o remorso dos menores crimes

cometidos, das mais insignificantes injustiças praticadas! Tudo isso se passava em absoluto,

em perfeito estado de vigília. Eu via arder, debaixo do globo azul, a chama da minha lâmpada

de petróleo; via agitarem-se à janela as cortinas brancas; ouvia o tique-taque do relógio sobre

a mesa... E vi mesmo o dia romper lá fora, como uma meia-luz tênue a principio, depois como

uma claridade violenta que me pôs no quarto, atravessada de parede a parede, uma larga faixa

cor de ouro, em que dançavam milhões e milhões de atamos de poesia afogueada... Foi então

que dormi, sono bruto, sono de pedra, sono de morte, por dez horas a fio...”

“O mais curioso”, concluiu Jacques, depois de uma pequena pausa, “é que o abalo

produzido por essa noite no meu organismo foi tão forte, tão brutal, que me restituiu a saúde:

equilibrou-me os nervos e livrou-me da insônia. De modo que a canabina me curou, não pelo

bem, mas pelo mal que me fez...”

Houve um momento de silêncio. Um de nós disse:

“Mas isso nada prova... Você sofreu assim, porque o excitante encontrou mal

preparado o terreno em devia operar. E, mesmo, está hoje provado que o haxixe nada mais faz

do que exacerbar o estado normal do individuo: dá má mais alegria a quem é naturalmente

alegre, e mais tristeza a quem é naturalmente triste...”

“Pode ser!”, retorquiu Jacques. “Mas aconselho-lhes que não experimentem. Demais,

sabem quem tem razão? É Balzac, que, apesar de fazer parte de um clube de bebedores de

haxixe, nunca bebeu a droga, porque (dizia ele) o homem que voluntariamente se despoja do

mais belo atributo humano – a vontade – deve ser, na escala animal, colocado abaixo do

caramujo e da lesma... E vamo-nos embora, que é meia-noite!”

Texto publicado na Gazeta de notícias em 2 de abril de 1894.

BILAC, Olavo. Vossa insolência: crônicas. Organização Antônio Dimas. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. P. 31-37.

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Anexo III

Herói. Morto. Nós.

Lourenço Diaféria

Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia

imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Silvio, que

pulou no poço das ariranhas para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado

pelos bichos.

O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.

Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra,

se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.

Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência

do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói – como o santo – é

aquele que vive sua vida até as últimas conseqüências.

O herói redime a humanidade à deriva.

Esse sargento Silvio poderia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher.

Acabaria capitão, major.

Está morto.

Um belíssimo sargento morto.

E todavia.

Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.

O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que

o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel – onde se reúnem os ciganos e as pombas

do entardecer – oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos.

O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e

irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não

acreditam no que mandam decorar.

O povo quer o herói sargento que seja como ele:povo. Um sargento que dê as mãos

aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.

No instante em que o sargento – apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher –

salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era

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seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos

responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.

Esse sargento não é do grupo do cambalacho.

Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve

ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de

bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que

apareceria na primeira página dos jornais.

É apenas um homem que – como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e

oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem – não podia permanecer

insensível diante de uma criança sem defesa.

O povo prefere esses heróis de carne e sangue.

Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.

É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te

reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só

descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quando te enterramos. O herói e o santo é o

que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.

Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancado do fosso das ariranhas – como

você tirou o menino de catorze anos – mas queríamos que alguém fizesse o gesto solidário em

nosso lugar.

Sempre é assim:o herói e o santo é o que estende as mãos.

E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis – tarde

demais.

DIAFÉRIA, Lourenço. Herói. Morto. Nós. Folha de São Paulo, p. 44, 1 set. 1977.

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Anexo IV

O Descobrimento do Brasil: Eu Vi!

Mário Prata

Na próxima semana, chega às livrarias o meu novo livro, Minhas Vidas Passadas (a

limpo), pela Editora Globo, em que conto algumas regressões que fiz. Hoje, mostro para você

um trechinho de quando fui Anhangá, um índio muito tropicalista lá da região onde hoje é a

Bahia. Estávamos no dia 22 de abril de 1500 e eu era tupi.

Em tempo: Leonardo, que aparece abaixo, é o doutor Leonardo Ramos, psiquiatra e

psicanalista com quem fiz a sessões.

Anhagá – Eu havia saído antes do sol com meu irmão Anhangá e meu primo Ibirapu

para ir até as mandiocas. As mulheres queriam fazer farinha. Fomos pelo caminho da praia.

Estava um dia muito bonito, o sol forte. Um vento bom.

Leonardo – Como vocês estavam vestidos?

Anhangá – Como sempre. Nada no corpo. Só pintura. Nus.

Leonardo – Como vocês se pintavam?

Anhangá – Com urutum [sic] vermelho. A gente tirava da semente da planta. Bom

para proteger do sol e da picada de insetos e mosquitos. Me deixa continuar.

Estou vendo a cena muito bem. O sol já estava quase inteiro sobre as nossas cabeças,

quando eu olhei para o mar e vi. Vi aquilo.

Ahangá – Anhangué, olha aquilo!

Ibirapu – O que é aquilo?

Anhangué – Que canoa grande, irmão!

Anhagá – São muitas. Mais de duas mãos inteiras.

Ibirapu – Duas mãos e mais um dedo!

Anhangá – De onde é que saiu isso? Será que é coisa que vem de dentro do mar?

Coisa do mau espírito?

Ibirapu – Vamos fugir daqui! Vamos buscar mais gente.

Anhangá – Calma! Estou achando que está para acontecer alguma coisa muito

importante. Vamos ficar atentos.

Anhangá – Foi quando uns deles vieram numa canoa pequena até a praia. A gente se

aproximou. E começamos a rir na cara deles. A gente era três, eles eram uns dez na canoa. E a

gente rindo deles. Tinha um, o mais engraçado, com jeito de mulher, que ficava o tempo todo

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rabiscando uns risquinhos num papel. Tudom que a gente fazia, ele fazia risquinhos,

desenhinhos. Mas parecia mulherzinha. Os outros, toda hora olhando para ele, diziam:

anotaperovás!

Leonardo – Como?

Anhangá – Anotaperovás.

Leonardo – Ah... Anota, Pero Vaz.

Anhangá – Isso. E a gente rindo, o Anhangué deitava no chão de tanto rir.

Leonardo – Rir? Do quê?

Anhangá – Dos panos que eles usavam em cima do corpo. Tinham o corpo todo

coberto de pano. Aquele sol, eles savam [sic] Brancos. Branco queimado, meio avermelhado.

Difuerente [sic]. Falavam coisas que a gente não entendia. E como fediam! Que cheiro

horrível aqueles homens brancos tinham! Acho que não tomavam banho havia varias luas.

Leonardo – E vocês se comunicaram como?

Anhangá – O homem branco, que parecia ser o chefe, fez sinal com a mão para a

gente colocar os arcos e as flechas na areia. A gente olhou um para o outro, homem branco

fez cara de homem bom. Sorriu. Senti que eles tinham medo de nós. Eu disfarçava, mas

também tinha medo. Pensei nas minhas mulheres, nos filhos... Colocaram os arcos e as

flechas na areia. Cada um de nós estava com sete flechas. O homem se aproximou, tirou uma

coisa da cabeça e falava ‘barrete, barrete, barrete’ e colocou na cabeça do Ibirapu, que ficou

muito engraçado. Começamos a rir dele, os homens brancos também.

Ibirapu começou a dançar e a pular feito um menino. Rimos muito. Todos.

Depois de dar um mergulho com o tal de barrete e i barrete se desmanchar todo,

Ibirapu tirou um colar de conchinhas e deu para um homem branco. O tal do anotaperovás.

Mal sabia eu, naquele dia, que aquela troca de presente era o começo da extinção de

uma população hoje estimada em mais de 8 milhões de índios.

Anhangá – Aí eles fizeram sinal para a gente ir com eles até o barco grande.

A gente ficou com medo.

Anhangá – O que vocês acham?

Anhangué – Acho que não tem perigo, não. Eles são muitos bobos.

Ibirapu – Sei não. Aquele que fica fazendo rabisquinhos me olha de um jeito muito

esquisito. E se a gente for até lá e eles levarem a gente embora? Pra dentro do mar?

Anhangué – E as mandiocas? Vou acabar apanhando das minhas nove mulheres!”

PRATA, Mário. O Descobrimento do Brasil: Eu Vi!. O Estado de S. Paulo, página 12, São Paulo, 22 abr. 1998.

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Anexo V

Flor-de-maio

Rubem Braga

Entre tantas notícias do jornal – o crime do Sacopã, o disco voador em Bagé, a nova

droga antituberculosa, o andaime que caiu, o homem que matou outro com machado e com

foice, o possível aumento do pão, a angústia dos Barnabés – há uma pequenina nota de três

linhas, que nem todos os jornais publicaram.

Não vem do gabinete do prefeito para explicar a falta d’água, nem do Ministério da

Guerra para insinuar que o país está em paz. Não conta incidentes de fronteira nem desastre

de avião. É assinada pelo senhor diretor do Jardim Botânico, e nos informa gravemente que a

partir do dia 27 vale a pena visitar o Jardim, porque a planta chamada “flor – de – maio” está,

efetivamente, em flor.

Meu primeiro movimento, ao ler esse delicado convite, foi deixar a mesa de redação

e me dirigir ao Jardim Botânico, contemplar a flor e cumprimentar a administração do horto

pelo feliz evento. Mas havia ainda muita coisa para ler e escrever, telefonemas a dar,

providencias a tomar. Agora, já desce a noite, e as plantas em flor devem ser vistas pela

manhã ou à tarde, quando há sol – ou mesmo quando a chuva as despenca e elas soluçam no

vento, e choram gotas e flores no chão.

Suspiro e digo comigo mesmo – que amanhã acordarei cedo e irei. Digo, mas não

acredito, ou pelo menos desconfio que esse impulso que tive ao ler a notícia ficará no que foi

– um impulso de fazer uma coisa boa e simples, que se perde no meio da pressa e da

inquietação dos minutos que voam. Qualquer uma destas tardes é possível que me dê vontade

real, imperiosa, de ir ao Jardim Botânico, mas então será tarde, não haverá mais “flor – de –

maio”, e então pensarei que é preciso esperar a vinda de outro outono, e no outro outono

posso estar em outra cidade em que não haja outono em maio, e sem outono em maio não sei

se em alguma cidade haverá essa “flor – de – maio”.

No fundo, a minha secreta esperança é de que estas linhas sejam lidas por alguém –

uma pessoa melhor do que eu, alguma criatura correta e simples que tire desta crônica a sua

única substância, a informação precisa e preciosa: do dia 27 em diante as “flores – de – maio”

do Jardim Botânico estão gloriosamente em flor. E que utilizar essa informação saindo de

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casa e indo diretamente ao Jardim Botânico ver a “flor – de- maio” – talvez com a mulher e as

crianças, talvez com a namorada, talvez só.

Ir só, no fim de tarde, ver a “flor – de – maio”; aproveitar a única notícia boa de um

dia inteiro de jornal, fazer a coisa mais bela e emocionante de um dia inteiro da cidade

imensa. Se entre vós houver essa criatura, e ela souber por mim a notícia, e for, então eu vos

direi que nem tudo está perdido, e que vale a pena viver entre tantos sacopãs de paixões

desgraçadas e tantas COFPS de preços irritantes; que a humanidade possivelmente ainda

poderá ser salva, e que às vezes ainda vale a pena escrever uma crônica.

BRAGA, Rubem. A Borboleta Amarela. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. p. 261-262.

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Anexo VI

Diploma

Carlos Drummond de Andrade

– Olha o diploma da mamãe! Quem tem sua mamãe deve lhe oferecer este diploma!

Era atrás do edifício da Noite, na passagem lamacenta onde se aglomeram

vendedores de canetas automáticas de dez cores, e outros artigos. O rapaz aproximou-se da

banca onde se exibiam os diplomas. Pediu licença para pegar num deles, enquanto o vendedor

continuava gritando a mercadoria sentimental.

Mirou e remirou o papel com atenção.

– Onde é que bota o retrato?

– Que retrato? – inquiriu o camelô.

– O meu, para oferecer a ela...

– Ah, compreendo, o cavalheiro quer oferecer um retratinho a sua mamãe. Muito

bem, pode colocar sua bonita estampa nas costas do diploma, está vendo?

Timidamente, o rapaz formulou a objeção:

– Mas, se ela enquadrar o diploma e pendurar na parede, o retrato fica escondido nas

costas.

– Perfeitamente, nesse caso ela pode pendurar o quadro de costas, e o amigo fica

aparecendo.

– Isso não. Eu queria botar meu retrato na frente do diploma, junto disso tudo que

está escrito aí.

– Não tem problema, cola aqui neste canto, fica até mais interessante.

O rapaz tirou um embrulhinho do bolso, tirou do embrulhinho sua fotografia em

tamanho de postal, aplicou-a sobre o diploma, no lugar indicado pelo vendedor. Reconheceu,

consternado:

– Cabe não.

– Cabe sim. Com licença, cavalheiro. Olhe como ficou bacana.

– Assim ele tapa as letras da escrita.

– Ora, só umas letrinhas. A maioria das palavras continua visível. Que importância

tem tapar algumas palavras? O cavalheiro cobre elas com o carinho da sua fotografia.

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O rapaz continuava indeciso. Dar um diploma a sua mãe, no Dia das Mães, era idéia

nova, excitante. Não entendia bem o que fosse diploma, porém, certamente, sua mãe o

merecia; e se o diploma levasse o retrato dele, deixava de ser um diploma qualquer, oferecido

a qualquer mãe. Mas, como, se não tinham previsto o lugar para o retrato do filho?

– Vai levar? – perguntou o camelô, desejoso de fechar o negócio e voltar à pregação

oratória – pois eles gostam ainda mais de falar à multidão do que de vender.

– Bem... eu levo. Corto o peito do meu retrato, assim ele cabe sem ofender as

palavras. E como é que eu faço para mandar para Inajaroba?

– Onde fica isso, meu chapa?

– Sergipe, então não sabe?

– Até este momento não sabia, mas não tem problema. Enrola, bota no Correio, vai

de avião.

– Chega todo esbandalhado.

– Então, passa ali na papelaria e pede para botar enchimento, fazer uma embalagem

bem legal.

– Mais um favorzinho, moço – e o rapaz baixou a voz e a cabeça.

– Vai dizendo, vai dizendo.

– Pode ler para mim o que está escrito aí? Eu não gostava que minha mãe recebesse o

diploma sem eu saber o que estou mandando dizer nele...

– Com todo o prazer – e leu com ênfase, para o rapaz e para o grupo em redor, a

declaração de amor de um filho a sua mamãe, em forma de diploma.

DRUMMOND, Carlos. Caminhos de João Brandão. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. p. 40-42.

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Anexo VII

El cine (trecho)

Amado Nervo

Este espectáculo me ha sugerido lo que será la historia en el futuro; no más libros; el

fonógrafo guardará en su urna oscura las viejas voces extinguidas; el cinematógrafo

reproducirá las vidas prestigiosas… Nuestros nietos verán a nuestros generales… a los

intelectuales… a nuestros mártires… y a nuestras resplandecientes mujeres bajo sus copiosas

cabelleras de oro… ¡Oh!, si a nosotros nos hubiese sido dado reconstruir así todas las épocas,

sí merced a un aparato pudiéramos ver el inmenso desfile de los siglos como desde una

estrella, asistir a la marcha formidable de los mortales a través de los tiempos…

NERVO, Amado. Crônica publicada em La semana, domingo, 20 de março de 1898, p.1.

Reproduzido em (REYES, 1983, p. 11- 12).

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Anexo VIII

Sobre cine (trecho)

Juan Tablada

Ensueño realizable para un prócer que en vez de tener un álbum fotográfico donde las

imágenes palidecen como los cadáveres de los ataúdes, tendría un cinematógrafo, y a sus

horas, cuando quisiera viajar por el pasado y sumergirse en la profunda vida del recuerdo,

contemplaría el andar pausado de la madre desaparecida, los gentiles movimientos de la novia

muerta y mientras el fonógrafo derramaría en su oído el bonito acento de las frase maternales

y el ritmo apasionado de los juramentos de amor…

TABLADA, José Juan. “Crônica”, publicada em El Universal, sábado 12 de dezembro de 1896, p. 1.

Reproduzido em (REYES, 1983, p. 112).

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Anexo IX

Decálogo del perfecto cuentista

Horacio Quiroga

I

Cree en un maestro – Poe, Maupassant, Kippling, Chejov – como en Dios mismo.

II

Cree que su arte es una cima inaccesible. No sueñes en dominarla. Cuando puedas

hacerlo, lo conseguirás sin saberlo tú mismo.

III

Resiste cuanto puedas a la imitación, pero imita si el influjo es demasiado fuerte.

Mas que ninguna cosa, el desarrollo de la personalidad es una paciencia.

IV

Ten fe ciega no en tu capacidad para el triunfo, sino en el ardor con que lo deseas.

Ama a tu arte como a tu novia, dándole todo tu corazón.

V

No empieces a escribir sin saber desde la primera palabra a dónde vas. En un cuento

bien logrado, las tres primeras líneas tinen casi la mportancia de las tres últimas.

VI

Si quieres expresar com exactitud esta circunstancia: “desde el río soplaba un viento

frío”, no hay en lengua humana más palabras que las apuntadas para expresarla. Una vez

dueño de tus palabras, no te preocupes de observar si son entre sí consonantes o asonantes.

VII

No adjetives sin necesidad. Inútiles serán cuantas collas de color adieras a un

sustantivo débil. Si hallas el que es preciso él solo tendrá un color incomparable. Pero hay que

hallarlo.

VII

Toma a tus personajes de la mano y llévalos firmemente hasta el final, sin ver otra

cosa que el camino que le trazaste. No te distraigas, viendo tú lo que ellos no pueden o no le

importa ver. No abuses del lector. Un cuento es una novela depurada de ripidios. Ten esto por

una verdad absoluta, aunque no lo sea.

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IX

No escribas bajo el imperio de la emoción. Déjala morir, y evócala luego. Si eres

capaz entonces de revivirla tal cual fue, has llegado en arte a la mitad del camino.

X

No pienses en tus amigos al escribir, ni en la impresión que hará tu historia. Cuenta

como si tu relato no tuviera interés más que para el pequeño ambiente de tus personajes, de

los que pudiste haber sido haber sido uno. No de otro modo se obtiene la vida en le cuento.

QUIROGA, Horacio. Todos los cuentos.Edición crítica. ALLCA XX/ UFRJ, 1996. p. 1194-1195. Publicado pela primeira vez em Babel, Buenos Aires, jul. 1927. Uma revista bissemanal de arte e crítica.

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Anexo X

El hombre muerto (Conto. Texto completo)

Horacio Quiroga

El hombre y su machete acababan de limpiar la quinta calle del bananal. Faltábanles

aún dos calles; pero como en éstas abundaban las chircas y malvas silvestres, la tarea que

tenían por delante era muy poca cosa. El hombre echó, en consecuencia una mirada satisfecha

a los arbustos rozados, y cruzó el alambrado para tenderse un rato en la gramilla.

Mas al bajar el alambre de púa y pasar el cuerpo, su pie izquierdo resbaló sobre un

trozo de corteza desprendida del poste, a tiempo que el machete se le escapaba de la mano.

Mientras caía, el hombre tuvo la impresión sumamente lejana de no ver el machete de plano

en el suelo.

Ya estaba tendido en la gramilla, acostado sobre el lado derecho, tal como él quería.

La boca que acababa de abrírsele en toda su extensión, acababa también de cerrarse. Estaba

como hubiera deseado estar, las rodillas dobladas y la mano izquierda sobre el pecho. Sólo

que tras el antebrazo, e inmediatamente por debajo del cinto, surgían de su camisa el puño y la

mitad de la hoja del machete; pero el resto no se veía.

El hombre intentó mover la cabeza, en vano. Echó una mirada de reojo a la

empuñadura del machete, húmeda aún del sudor de su mano. Apreció mentalmente la

extensión y la trayectoria del machete dentro de su vientre, y adquirió, fría, matemática e

inexorable, la seguridad de que acababa de llegar al término de su existencia.

La muerte. En el transcurso de la vida se piensa muchas veces en que un día, tras

años, meses, semanas y días preparatorios, llegaremos a nuestro turno al umbral de la muerte.

Es la ley fatal, aceptada y prevista; tanto, que solemos dejarnos llevar placenteramente por la

imaginación a ese momento, supremo entre todos, en que lanzamos el último suspiro.

Pero entre el instante actual y esa postrera expiración, ¡qué de sueños, trastornos,

esperanzas y dramas presumimos en nuestra vida! ¡Qué nos reserva aún esta existencia llena

de vigor, antes de su eliminación del escenario humano! Es éste el consuelo, el placer y la

razón de nuestras divagaciones mortuorias: ¡Tan lejos está la muerte, y tan imprevisto lo que

debemos vivir aún!

¿Aún...? No han pasado dos segundos: el sol está exactamente a la misma altura; las

sombras no han avanzado un milímetro. Bruscamente, acaban de resolverse para el hombre

tendido las divagaciones a largo plazo: Se está muriendo.

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Muerto. Puede considerarse muerto en su cómoda postura.

Pero el hombre abre los ojos y mira. ¿Qué tiempo ha pasado? ¿Qué cataclismo ha

sobrevivido en el mundo? ¿Qué trastorno de la naturaleza trasuda el horrible acontecimiento?

Va a morir. Fría, fatal e ineludiblemente, va a morir.

El hombre resiste -¡es tan imprevisto ese horror! Y piensa: Es una pesadilla; ¡esto es!

¿Qué ha cambiado? Nada. Y mira: ¿No es acaso ese bananal su bananal? ¿No viene todas las

mañanas a limpiarlo? ¿Quién lo conoce como él? Ve perfectamente el bananal, muy raleado,

y las anchas hojas desnudas al sol. Allí están, muy cerca, deshilachadas por el viento. Pero

ahora no se mueven... Es la calma del mediodía; pronto deben ser las doce.

Por entre los bananos, allá arriba, el hombre ve desde el duro suelo el techo rojo de

su casa. A la izquierda entrevé el monte y la capuera de canelas. No alcanza a ver más, pero

sabe muy bien que a sus espaldas está el camino al puerto nuevo; y que en la dirección de su

cabeza, allá abajo, yace en el fondo del valle el Paraná dormido como un lago. Todo, todo

exactamente como siempre; el sol de fuego, el aire vibrante y solitario, los bananos inmóviles,

el alambrado de postes muy gruesos y altos que pronto tendrá que cambiar...

¡Muerto! ¿Pero es posible? ¿No es éste uno de los tantos días en que ha salido al

amanecer de su casa con el machete en la mano? ¿No está allí mismo, a cuatro metros de él,

su caballo, su malacara, oliendo parsimoniosamente el alambre de púa?

¡Pero sí! Alguien silba… No puede ver, porque está de espaldas al camino; mas

siente resonar en el puentecito los pasos del caballo... Es el muchacho que pasa todas las

mañanas hacia el puerto nuevo, a las once y media. Y siempre silbando... Desde el poste

descascarado que toca casi con las botas, hasta el cerco vivo de monte que separa el bananal

del camino, hay quince metros largos. Lo sabe perfectamente bien, porque él mismo, al

levantar el alambrado, midió la distancia.

¿Qué pasa, entonces? ¿Es ése o no un natural mediodía de los tantos en Misiones, en

su monte, en su potrero, en su bananal ralo? ¡Sin duda! Gramilla corta, conos de hormigas,

silencio, sol a plomo...

Nada, nada ha cambiado. Sólo él es distinto. Desde hace dos minutos su persona, su

personalidad viviente, nada tiene ya que ver ni con el potrero, que formó él mismo a azada,

durante cinco meses consecutivos, ni con el bananal, obras de sus solas manos. Ni con su

familia. Ha sido arrancado bruscamente, naturalmente, por obra de una cáscara lustrosa y un

machete en el vientre. Hace dos minutos: Se muere.

El hombre muy fatigado y tendido en la gramilla sobre el costado derecho, se resiste

siempre a admitir un fenómeno de esa trascendencia, ante el aspecto normal y monótono de

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cuanto mira. Sabe bien la hora: las once y media... El muchacho de todos los días acaba de

pasar sobre el puente.

¡Pero no es posible que haya resbalado...! El mango de su machete (pronto deberá

cambiarlo por otro; tiene ya poco vuelo) estaba perfectamente oprimido entre su mano

izquierda y el alambre de púa. Tras diez años de bosque, él sabe muy bien cómo se maneja un

machete de monte. Está solamente muy fatigado del trabajo de esa mañana, y descansa un rato

como de costumbre.

¿La prueba...? ¡Pero esa gramilla que entra ahora por la comisura de su boca la

plantó él mismo en panes de tierra distantes un metro uno de otro! ¡Y ése es su bananal; y ése

es su malacara, resoplando cauteloso ante las púas del alambre! Lo ve perfectamente; sabe

que no se atreve a doblar la esquina del alambrado, porque él está echado casi al pie del poste.

Lo distingue muy bien; y ve los hilos oscuros de sudor que arrancan de la cruz y del anca. El

sol cae a plomo, y la calma es muy grande, pues ni un fleco de los bananos se mueve. Todos

los días, como ése, ha visto las mismas cosas.

... Muy fatigado, pero descansa solo. Deben de haber pasado ya varios minutos... Y a

las doce menos cuarto, desde allá arriba, desde el chalet de techo rojo, se desprenderán hacia

el bananal su mujer y sus dos hijos, a buscarlo para almorzar. Oye siempre, antes que las

demás, la voz de su chico menor que quiere soltarse de la mano de su madre: ¡Piapiá! ¡piapiá!

¿No es eso...? ¡Claro, oye! Ya es la hora. Oye efectivamente la voz de su hijo...

¡Qué pesadilla...! ¡Pero es uno de los tantos días, trivial como todos; claro está! Luz

excesiva, sombras amarillentas, calor silencioso de horno sobre la carne, que hace sudar al

malacara inmóvil ante el bananal prohibido.

… Muy cansado, mucho, pero nada más. ¡Cuántas veces, a mediodía como ahora, ha

cruzado volviendo a casa ese potrero, que era capuera cuando él llegó, y antes había sido

monte virgen! Volvía entonces, muy fatigado también, con su machete pendiente de la mano

izquierda, a lentos pasos.

Puede aún alejarse con la mente, si quiere; puede si quiere abandonar un instante su

cuerpo y ver desde el tajamar por él construido, el trivial paisaje de siempre: el pedregullo

volcánico con gramas rígidas; el bananal y su arena roja: el alambrado empequeñecido en la

pendiente, que se acoda hacia el camino. Y más lejos aún ver el potrero, obra sola de sus

manos. Y al pie de un poste descascarado, echado sobre el costado derecho y las piernas

recogidas, exactamente como todos los días, puede verse a él mismo, como un pequeño bulto

asoleado sobre la gramilla – descansando, porque está muy cansado…

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Pero el caballo rayado de sudor, e inmóvil de cautela ante el esquinado del

alambrado, ve también al hombre en el suelo y no se atreve a costear el bananal como

desearía. Ante las voces que ya están próximas – ¡Piapiá! – vuelve un largo, largo rato las

orejas inmóviles al bulto: y tranquilizado al fin, se decide a pasar entre el poste y el hombre

tendido que ya ha descansado.

QUIROGA, Horacio. Todos los cuentos. ALLCA: UFR, 1996. p. 653-657.