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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Marina Costin Fuser Palavras que dançam à beira de um abismo Mulher na Dramaturgia de Hilda Hilst MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em CIÊNCIAS SOCIAIS, sob a orientação da Prof a Doutora Carla Cristina Garcia SÃO PAULO 2012

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC … Costin... · A mulher em Hilst não se encerra em definições fechadas; ela se desdobra tal como um leque, feito de múltiplas

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Marina Costin Fuser

Palavras que dançam à beira de um abismo

Mulher na Dramaturgia de Hilda Hilst

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para a obtenção

do título de MESTRE em CIÊNCIAS

SOCIAIS, sob a orientação da Profa

Doutora Carla Cristina Garcia

SÃO PAULO

2012

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Dissertação intitulada “Palavras que dançam à beira do abismo – Mulher na

dramaturgia de Hilda Hilst”, de autoria da mestranda Marina Costin Fuser,

apresentada à banca examinadora constituída pelos seguintes professores:

Banca Examinadora

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RESUMO

A presente dissertação lança luz sobre um teatro escrito à sombra da

ditadura brasileira. A dramaturgia de Hilda Hilst é um grito de protesto frente às

arbitrariedades perpetradas pelos algozes do regime. Em meio aos escombros da

barbárie humana, resplandece a donzela guerreira. Através da análise de duas

peças de Hilda Hilst – A Empresa / A Possessa – estória de austeridade e exceção

(1967) e O Verdugo (1969) – procuro mapear as trajetórias de mulheres que

buscaram caminhos de transcendência. Seu lirismo remete a possibilidades,

movimentos e viradas de jogo. A mulher em Hilst não se encerra em definições

fechadas; ela se desdobra tal como um leque, feito de múltiplas camadas. Hilst

vislumbra o transitório, no calor dos processos metamórficos que atravessam suas

personagens. Sua dramaturgia é feita de alegorias, que se entrelaçam em uma

tessitura delicada, onde poesia e teatro se encontram. O objetivo desse trabalho é

percorrer esses caminhos labirínticos, em uma análise sensível aos

desdobramentos de um lirismo que não se deixa fixar. Quais silêncios e quais

gritos habitam suas personagens, e o que ocorre quando estes são levados ao

extremo limite?

Palavras-chave:

Hilda Hilst, Teatro, Dramaturgia, Mulher, Transcendência, Metamorfoses,

Silêncio, Grito, Resistência, Herói, Ditadura.

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ABSTRACT

This present dissertation throws light upon a theater written through the

shadows of Brazilian dictatorship. Hilda Hilst’s dramaturgy is a scream of protest

facing the arbitrariness portrayed by the executioners of the regime. Among the

ruins of human barbarism, the lady warrior shines. Though the analysis of two of

Hilda Hilst’s plays – The Enterprise / The Possessed – story of austerity and

exception (1969) – I intend to map the trails of women that serached the path of

transcendence. Her lyrism is related to possissibilities, mouvements, and game

turns. The woman in Hilda Hilst does not suit closed definitions; it unfolds just

like a hand fan, made by multiple layers. Hilst enhances the trasitory, in the heat

of metamorphic processes that come across her characters. Her dramaturgy is

composed by allegories, that interweave in a delicate fabric, where poetry and

theatre combine. The purpouse of this work is to go through these labyrinthic

paths, in a senstive analysis of the unfoldings of this lyrism which does not let

itself be fixed. Which silences and which screams inhabit her characters, and what

happens when they are driven to their extreme limits?

Keywords:

Hilda Hilst, Theatre, Dramaturgy, Woman, Transcendence, Metamorphose,

Silence, Scream, Resistance, Hero, Dictatorship.

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À minha avó Marlene

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha orientadora por ter me acolhido com muita dedicação e

ternura, e esteve comigo desde o início, ajudando a cortar minhas asinhas, para

voar mais alto com maior precisão, nesse processo de metamorfose, que teve

início com o projeto sobre a militância de mulheres nos anos de chumbo e se

encerrou em leveza, com o voo poético de Hilda Hilst. Ainda assim, em nenhum

momento perdemos de vista a mulher que atravessou a ditadura militar brasileira.

O que mudou foi a militância, que percorreu outro caminho. Agradeço à Carla

pelas referências bibliográficas, por acompanhar as minhas ideias mirabolantes,

por passar horas a fio relendo linha por linha desta dissertação em pleno sábado de

carnaval. Vai ser difícil encontrar outra orientadora como você.

Agradeço ao meu pai e à minha mãe, por apostarem em minha carreira

acadêmica e estarem ao meu lado, como referência e ponto de apoio. Agradeço à

minha avó Marlene por me ajudar na revisão do português e por ser uma artista

que conseguiu traduzir sua experiência nos porões do DOI-CODI em lindas

gravuras. Uma pessoa muito especial. Agradeço aos meus avós Maurice e Lídia

por todo o carinho e a ternura sem os quais seria impensável chegar até aqui.

Agradeço ao meu avô Fausto e à Raquel Araújo, aos meus irmãos Rafael,

Maurício e Vivian, aos meus tios Ricardo, Bruno, Carlos, Gil, Ana e Neide, aos

meus primos Guilherme, Cecília, Charline, Luca, Laura, Daniel, Bia, Francisco,

João, à minha pequena sobrinha Ariana, ao meu sobrinho Zion, à Brea, à Márcia

Leal, à Luísa Cusnir e ao meu querido afilhado Ian por fazerem parte da minha

vida. Agradeço à minha prima Cynthia por ter tido a paciência de me deixar ler

em voz alta alguns capítulos dessa dissertação. Agradeço à Valéria Fuser e ao

pessoal do Grupo Anima pelas maravilhosas donzelas guerreiras, que inspiraram a

conclusão deste trabalho.

Agradeço à Helena Corvini, por viver esse processo junto comigo, na

alegria e na tristeza. Agradeço aos amigos que contribuem com ideias, que de

algum modo repercutiram aqui: Renata Lofrano, Juliana Hereda, Vivas Pereira,

Débora Lessa, José Luiz Goldfarb, Amelinha e Criméia Telles, Ana Carolina

Gebrim, Mayra Castro, Klaus Troetschel, Rafael Leão, Fábio Ralston, Renato

Carvalho Intakli, Maria Fernanda Borio, Célio Ishikawa, Adriana Soares, Rodrigo

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Ramos Lavich, Martha Lemos de Moraes, Beto Pi, Marcos Carrijo, Inaê Sampaio,

Josie Berezin, Rachel D´Amico, Ana Kelson, Stella Segal, Bertile Giusti, Edna

Matos, Marcelo Doca Sobral, Camila Valle, Camila Sant´Anna, Isabelle Pignot,

Maitê Fanchini, Marcelo Rocco, Alexandre Plessman, Mariana Gehring, Janaína

Mello, Marcos Vinícius Maia, Caru Alves de Souza, Natasha Bachini, Andressa

Nozue, Michelle Watkins, Tatiana Gonçalves, Clarissa Menezes, Aline da Silva,

Mariana Cristtal, Marina Rodrigues, Leda Vasconcellos, Ale Ezabella, Amanda

Bacaleinick, Lilian Breschigliaro, Sarah Oakley, Rebecca Beers, Kate Birney,

Tamar Kalkstein, Lissa Noctis, Vilma Bokany, Zeca Vidal, João Paulo Pinheiro

Paiva, Franco Chiariello, Marina Trivelli Tambelli, Bianca Koch e Rose Katsanos.

Agradeço ao CNPq e ao programa de Pós Graduação em Ciências Sociais

por viabilizarem a bolsa que custeou meus estudos, e por zelar por um ensino

crítico e de qualidade. Agradeço à Carmen Junqueira pela maravilhosa aula de

métodos de pesquisa, aos professoresMiguel Chaia, Caterina Koltai, Sívia Borelli

e Edson Nunes, por fazerem da sala-de-aula um ambiente inspirador. Agradeço ao

Prof. Ferdinando Martins por me aceitar como aluna especial na ECA-USP e me

guiar nesse ambiente cheio de sonho, paetês e purpurina, que é a história do teatro

brasileiro. Agradeço à professora Mariza Werneck por conduzir um círculo

literário bastante acolhedor. Agradeço ao grupo Inanna pelas construções

coletivas quanto ao gênero e suas possibilidades.

Agradeço à Hilda Hilst por sua escrita maravilhosa. Agradeço ao Caio

Fernando Abreu, à Virgínia Woolf, ao James Joyce, ao Oscar Wilde, ao Marcel

Proust, ao James Douglas Morrison, ao Sid Vicious, à Patty Smith, à P.J Harvey, à

Clarice Lispector, à Björk, ao Franz Kafka, e ao TS. Elliot. Agradeço às

feministas por fazerem desta uma bandeira para a vida. Enfim: tudo que toca meu

coração contribui para a minha escrita.

Agradeço àquela força estranha que alguns chamam de Deus, pois sou uma

pessoa de muita sorte.

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SUMÁRIO

1- Apresentação …………………………………………………….. 09

2- Capítulo I: Fale baixo, senão elas gritam...................................... 13

3- Capítulo II: A casa que habito, o corpo que habito, o rio que me

atravessa............................................................................................ 27

4- Capítulo III: A lírica de Hilst invade o palco ................................. 41

5- Capítulo IV: A Epopeia de América

e a Beatitude da Verdade ................................................................... 48

6- Capítulo V: O Maravilhoso Disforme

e as Intermitências do Carrasco ......................................................... 81

7- Capítulo VI : Donzelas Guerreiras .................................................... 144

8- Bibliografia .......................................................................................... 152

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APRESENTAÇÃO

Acabo de te olhar nos olhos, vida; vi reluzir ouro nos teus olhos

noturnos, e essa voluptuosidade paralisou-me o coração: vi brilhar

uma barca dourada que se submergia em águas noturnas, uma barca

dourada que se submergia e reaparecia fazendo sinais!

Tu dirigias um olhar aos meus pés, doidos por dançar, um olhar

acariciador, terno, risonho e interrogador,

Duas vezes apenas agitaste com as mãos as tuas castanholas e já os

pés me pulavam, ébrios.

Os calcanhares erguiam-se; os dedos escutavam para te

compreender; não tens os dançarinos os ouvidos nos dedos dos pés?

(Friedrich Nietzsche)1

Hilda Hilst escreve palavras de leveza num momento em que uma cortina de

chumbo recobria o solo brasileiro. Em seu recolhimento na Casa do Sol, Hilda

Hilst não é alheia aos acontecimentos atrozes que silenciam gritos de liberdade, e

levam ao confinamento cavernoso as chamas de luz que brilham em direção

contrária ao estado de exceção. É pelo teatro que Hilst faz o seu protesto contra as

arbitrariedades de um regime onde a exceção vira regra.

São palavras que comunicam o indizível, que suscitam uma miríade de imagens,

que não se definem nem fixam num único ponto, mas dançam com seus leves

calcanhares à beira do abismo, e pairam sobre as cinzas da barbárie sem encostar

os pés no chão. O abismo é a situação-limite, onde os nervos afloram a um ponto

insuportável. O abismo é a crise levada a seu ápice, é o fim da linha, o prenúncio

de uma catástrofe, a iminência da morte, em ambos os sentidos, figurativo ou

literal. O abismo é mistério, é a vertigem da queda, ou a possibilidade de se

metamorfosear em pássaro e alçar voo.

Nietzsche dizia que é preciso ter coragem para ver o abismo com olhos de

águia. De peito aberto, Hilda Hilst cria coragem de alçar voo sobre um universo

cênico, deixa de lado sua poesia para escrever seu teatro. Como dizia o filósofo

Gaston Bachelard, o voo é uma metáfora da imaginação.

O movimento de voo dá imediatamente, numa abstração fulminante,

uma imagem dinâmica perfeita, acabada, total. (...) Se os pássaros

constituem o ensejo de um grande voo de nossa imaginação, não é por

causa de suas cores brilhantes. O que é belo no pássaro,

primitivamente, é o voo. (...) As cores múltiplas pestanejam, são as

1 NIETZSCHE, F. “Assim falava Zaratustra”. Tradução: José Mendes de Souza. Versão para

eBook eBooksBrasil.com. 2002. P-358. Link: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/zara.pdf

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colorações de movimentos que pestanejam. (...) Quando um

sentimento se eleva no coração humano, a imaginação evoca o céu e o

pássaro.2

A imaginação da autora não desenha, mas vive os valores abstratos que ela

ilustra em seu movimento ascensional. Seus personagens se metamorfoseiam em

pássaros, coiotes e outras criaturas selvagens. Um sopro de Morfeu dá substância

às suas parábolas polimorfas, que ganham corpo e invertem as premissas em uma

sucessão de movimentos intermitentes. Nesse universo fantástico habita a mulher

e seus silêncios, que ensaiam um grito em surdina frente ao insuportável. A

mulher cujo brilho é ofuscado pelas sombras da austeridade, pelos dualismos que

dilaceram o universo, pelas hierarquias que esmagam as pequenas partículas de

vida. Seja América, a mulher colonizada; seja a mulher que precisa se vestir de

verdugo para afirmar sua existência. Dos rastros das grandes fogueiras que

lançaram chamas sobre saberes desprezados pela soberba da Ciência, resplandece

a mulher. A donzela guerreira, que veio para vingar a morte de Joana D’Arc,

queimada como bruxa por sua ousadia, pelo travestimento em soldado, suas

visões, a força ardente de suas palavras. Como descreve Walnice Nogueira

Galvão: “Figura meio histórica, meio mítica, a Donzela Guerreira transgride

simultaneamente duas fronteiras. A primeira delas entre os gêneros, ao colocar-se

a cavaleiro do masculino e do feminino; a segunda entre os estatutos do real e do

imaginário.” 3

O primeiro capítulo leva o título “Fale baixo senão elas gritam”, em

alusão à peça de Leilah Assumpção (Fale baixo senão eu grito). Trata de

apontamentos históricos acerca das dramaturgas que fizeram parte de uma geração

de dramaturgos politicamente engajados em diferentes níveis, mas que modificou

o teatro brasileiro em forma e conteúdo. Procuro contextualizar historicamente o

período em que Hilda Hilst resolve escrever peças de teatro. Quem eram as

dramaturgas nesse período? Sobre o que elas escreviam? Qual era a relação dessas

dramaturgas com a censura? Procuro responder a essas perguntas, no intuito de

ressaltar delineamentos e nuances que interpelam as trajetórias de suas

2 BACHELARD, G. “O Ar e os Sonhos”. Tradução: Antonio de Pádua Danesi. 2ª Edição. São

Paulo: Martins Fontes, 2001. P-68 3 GALVÃO, W. N. “A Donzela Guerreira”. In: Grupo Anima. “Dozela Guerreira”. São Paulo:

SESC, 2011. P-7

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correligionárias, as quais, assim como ela, tratam das questões de seu tempo.

Viviam, em um tempo bastante peculiar; sob a égide da ditadura.

O segundo capítulo, “A casa que habito, o corpo que habito, o rio que me

atravessa”, trata da vida e da obra da autora. Quem foi Hilda Hilst? Destaco

alguns momentos angulares que marcaram sua trajetória, como a sua relação com

seu pai, a quem ela declara ter dedicado a totalidade de sua obra. Depois procuro

pinçar alguns elementos que atravessam sua trajetória. Ela flui tal como o curso de

um rio, que atravessa seu corpo e deságua em desfiladeiros. Interessa aquilo que

adensa essas águas escaldantes, seus declives, suas encostas, o que inspira seu

movimento intermitente. Falo de sentimentos, de metáforas e alegorias, de

metamorfoses; das fantasias, do grotesco, e dos silêncios que habitam seu corpo e

sua escrita.

No terceiro capítulo, “A lírica de Hilst invade o palco”, faço uma breve

introdução ao teatro de Hilda Hilst. Lanço luz sobre sua lírica, essa voz que coloca

para fora o seu íntimo, algo que ela importa de sua poesia para o texto cênico.

Vem à baila o Absurdo, e sua referência no dramaturgo irlandês Samuel Beckett

(1906 – 1989). Busco uma compreensão sobre o porquê de a autora ter recorrido

ao teatro, e não a outra forma de expressão, no período mais sombrio da ditadura

militar brasileira – entre 1967 e 1969, quando o “regime de exceção” assume uma

política de linha dura. Esboço em linhas gerais como as chagas do seu tempo

encontram ressonância em seu teatro. Coloco em relevo o que críticos teatrais,

como Anatol Rosenfeld e Sábato Magaldi, tinham a dizer sobre sua dramaturgia.

Falo um pouco de seus símbolos, suas linguagens. Por último, justifico a escolha

das peças a serem analisadas nos capítulos seguintes.

O quarto capítulo consiste na análise de A Empresa / A Possessa – Estória

de austeridade e exceção, sua primeira peça, escrita em 1967. Leva o título de “A

Epopeia de América e a Beatitude da Verdade”, sendo América a protagonista,

uma mulher com o nome de um continente que atravessa tempos de crise. A peça

trata das esperanças depositadas em um herói, capaz de mudar o curso dos

acontecimentos. Esse herói se personifica na Verdade da Ciência, que se choca

contra uma Verdade religiosa. Tudo se inverte, mas a inversão apresenta também

a sua arbitrariedade. A tirania persiste. Nessa peça, a autora trata de uma

dimensão dúplice, que se presta a uma armadilha epistemológica. A figura do

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herói se projeta na própria América, cuja epopeia culmina em um silêncio

avassalador. Seu martírio serve à reflexão e não à tão esperada ascese.

No quinto capítulo analiso O Verdugo, sua penúltima peça, escrita em

1969, premiada por sua qualidade cênica e a afinidade temática com o tempo em

que foi escrita. Chamo o capítulo de “O Maravilhoso Disforme e as Intermitências

do Carrasco”, pelas sucessivas metamorfoses com que a autora descreve o

caminho da liberdade e sua luta. A peça trata de um verdugo que se recusa a matar

um homem, indo contra os anseios de sua esposa, que vê nesse ato inglório a

possibilidade de mudar de vida. O lugar do carrasco se inverte, ela veste o seu

capuz e encontra um sentido para sua vida. A peça trata suscita deslocamentos,

viradas do jogo, uma frágil convicção, tão fugaz como todas as certezas que

morrem junto a um paradigma.

No sexto e último capítulo eu esboço algumas conclusões, aproximando

as duas peças, analisadas sob o crivo das questões previamente destacadas: os

silêncios e os gritos do corpo, as situações-limite e a transitoriedade dos

personagens e suas parábolas mirabolantes e aproximo a trajetória das

protagonistas à das donzelas guerreiras, cujo combate persiste até se alcance a

morte sublime. Finalmente, abordo a transformação em amor, proposta audaciosa

de Hilst, presente nas duas peças. Relaciono seu caminho de liberdade com as

concepções das filósofas Luisa Muraro e Luce Irigaray, que lançam luz sobre a

mulher liberta das sombras que a relegam à condição de alteridade.

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Capítulo I

FALE BAIXO, SENÃO ELAS GRITAM

Se o signo da época é a confusão, vejo na base dessa confusão uma

ruptura entre as coisas e as palavras, as idéias, os signos que são as

representação dessas coisas. (...) Se o teatro é feito para permitir que

nossos recalques adquiram vida, uma espécie de poesia atroz

expressa-se através dos atos estranhos em que as alterações do fato de

viver demonstram que a intensidade da vida está intacta e que bastaria

dirigi-la melhor. (...) Toda verdadeira efígie tem sua sombra que a

duplica e a arte sucumbe a partir do momento em que o escultor que

modela acredita liberar uma espécie de sombra cuja existência

dilacerará seu repouso. Para o teatro assim como para a cultura, a

questão continua sendo nomear e dirigir as sombras; e o teatro, que

não se fixa na linguagem e nas formas, com isso destrói as falsas

sombras, mas prepara o caminho para um outro nascimento de

sombras a cuja volta agrega-se o verdadeiro espetáculo da vida.4

A relação entre o teatro e tempos de barbárie relatada por Antonin Artaud

encontra ressonância no compasso da ditadura militar brasileira, quando se tentava

amordaçar as bocas daqueles que clamavam por uma cultura de resistência e

confinar as manifestações espontâneas de arte que podiam ser sentidas como

ameaça à moral conservadora. Encontramos em Hilda Hilst um ímpeto que

articula gesto, palavra, grito, som e fogo, indo além da linguagem para tocar a

vida, cujo sentido renasce pelo teatro, assim como pretendia Artaud.

A poeta resolve trazer ao palco o ato de “ensolarar”, de dar leveza, trilhando

pelo caminho inverso ao escuro e pesado cárcere dos porões do DOPS e do DOI-

CODI.5 Sua poiésis se confunde com o espírito de um tempo que se movimenta e

se comunica pelas entrelinhas: liberdade é um grito que se faz quase em uníssono,

aproximando essas muitas vozes atormentadas pela inquietude de um país

silenciado pelo medo.

A influência do teatro épico de Bertolt Brecht adquiriu proporções

consideráveis nos palcos brasileiros desde a Escola de Artes Dramáticas até o

Teatro de Arena. Neste último, o teatro passa a ser um propulsor de um projeto de 4 Artaud, Antonin. Trad: Teixeira Coelho, 3ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2006. P-2/7.

5 Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e Destacamento de Operações de Informações

– Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI): locais que mancham a nossa história com

as marcas da tortura por agentes do Estado brasileiro.

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transformação do mundo. Sua trajetória apresenta alguns ícones consagrados do

teatro brasileiro, como Eles não usam Black-tie de Gianfrancesco Guarnieri, A

revolução na América do Sul de Augusto Boal, e Arena Conta Tirandentes de

Boal e Guarnieri. Ambos trazem ao palco o musical Arena Conta Zumbi em 1965,

fazendo uma analogia entre a histórica revolta no quilombo de Palmares e a luta

contra a ditadura. No segundo ato, a adaptação de um poema de Brecht explicita o

convite à ação direta:

Eu vivi na cidade nos tempos da desordem. Eu vivi no meio da minha

gente no tempo da revolta. Assim passei o tempo que me deram pra

viver. Eu me levantei com a minha gente, comi minha comida no meio

da batalha. Amei, sem ter cuidado... Olhei tudo o que via sem tempo

de bem ver... Assim passei o tempo que me deram pra viver. A voz da

minha gente se levantou e minha voz junto com a dela. Minha voz não

pôde muito, mas gritar eu bem gritei. Tenho certeza que os donos

dessa terra e Sesmaria ficariam mais contentes se não ouvissem a

minha voz... Assim passei o tempo que me deram pra viver.6

O Opinião, filho carioca do Teatro de Arena dá o tom de um teatro que

mistura tendências em sua musicalidade, trazendo ao palco a voz de Maria

Bethânia, que canta Carcará com a força magistral de uma ave de rapina dos

confins do sertão nordestino, cuja fúria impele o espectador a uma reviravolta:

“Carcará, pega, mata e come!” Figuram entre os musicais do Opinião Se correr o

bicho pega, se ficar o bicho come, de Vianinha e Ferreira Gullar e o clássico

“Liberdade, liberdade”, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel.

A ideia de um teatro que dá voz ao povo norteia em grande medida os

palcos nas grandes cidades, sobretudo São Paulo e Rio de Janeiro. De acordo com

Décio de Almeida Prado, o personagem “povo” figurava dentre os diversos palcos

da época, em múltiplas abordagens, desempenhando distintos papéis, mas cuja

presença não se pode deixar de notar. “Buscava-se tanto articular a voz do povo,

quase inaudível em meio à cacofonia moderna, quanto adivinhar-lhe as obscuras

intenções. Obedecia-se ou supunha-se obedecer ao povo, mas também ordenava-

se ao povo, em tom exortativo ou imperativo.”7 Para alguns, se tratava de buscar o

6 Guarnieri, G, Boal, A. e Lobo, E. “Arena Conta Zumbi”. Teatro de Arena de São Paulo, 1965.

Texto disponibilizado pelo sítio eletrônico do Projeto Pyndorama: http://pyndorama.com/wp-

content/uploads/2009/01/arena-conta-zumbi.pdf. Segundo ato, movimento 76.

7 Prado, D.A. “O Teatro Brasileiro Moderno”, 3ª Edição, 2ª reimpressão. São Paulo: Editora

Perspectiva, 2007. P-100.

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povo na arte popular, voltando-se aos romances de cordel, ao teatro dos autos

pastoris, aos espetáculos de mamulengo, no esforço por um retorno às origens

autênticas e primitivas. O operário urbano também desempenha um papel central,

ensaiando no teatro o que seria o êxito de um despertar da classe trabalhadora, que

cumpriria em cena o seu papel histórico, em sua acepção marxista: a revolução

social, o grande acerto de contas entre os oprimidos e seus opressores.

O afronte aparecia de maneira menos explícita no Teatro Oficina, mediado

por recursos cênicos que recriavam um universo sombrio, explorando o jogo e a

provocação para colocar em xeque os tabus das classes médias. Nas palavras de

Roberto Schwartz: “Imitação e indignação, levadas ao extremo, transformam-se

uma na outra, uma guinada de grande efeito teatral, em que se encerra e expõe

com força artística uma posição política”8. O Oficina chega ao ápice de sua

radicalidade em 1967 com a encenação de O Rei da Vela. Dirigido por José Celso

Martinez Corrêa, que introduz o personagem Mister Jones como semblante do

imperialismo estadunidense. Esbanjando toda a sua crueza, o Oficina lança luz

sobre a sexualidade sem cerimônias, em uma combinação entre cinismo e

deboche, que ridiculariza todo o moralismo. O texto corrosivo posto em cena

produz um efeito inestimável em seus espectadores. Revolucionário, tanto em

forma quanto em conteúdo, o Oficina propõe um antiteatro. O texto é de Oswald

de Andrade:

ABELARDO I

- Com muita honra! O Rei da Vela miserável dos agonizantes. O Rei

da Vela de sebo. E da vela feudal que nos fez adormecer em criança

pensando nas histórias das negras velhas... Da vela pequeno-burguesa

dos oratórios e das escritas em casa... As empresas elétricas fecharam

com a crise... Ninguém mais pôde pagar o preço da luz... A vela

voltou ao mercado pela minha mão previdente. Veja como eu produzo

de todos os tamanhos e cores. (Indica o mostruário) Para o Mês de

Maria das cidades caipiras, para os armazéns do interior onde se vende

e se joga à noite, para a hora de estudos das crianças, para os

contrabandistas no mar, mas a grande vela é a vela da agonia, aquela

pequena velinha de sebo que espalhei pelo Brasil inteiro... Num país

medieval como o nosso, quem se atreve a passar os umbrais da

eternidade sem uma vela na mão? Herdo um tostão de cada morto

nacional! 9

8 Schwarz, R. “Cultura e Política”. 3ª Edição. São Paulo: Paz e Terra, 2009. P-49.

9 Andrade, O. de. “O Rei da Vela”. Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2008. P-36

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A vaga avassaladora que faz fervilhar o teatro das principais cidades do

país ganha a atenção da mídia e do grande público. A censura, que já existia desde

a Coroa Portuguesa, não deixa passar em branco a ousadia do teatro brasileiro,

tanto do ponto de vista da sexualidade como do que é considerado subversivo na

política. Nos anos que se seguiram ao golpe, ainda havia um respiro considerável

frente aos agentes da censura, que só assumiram posturas mais contundentes

quando o Estado tomou medidas mais radicais, no período que se inaugura com o

Ato Institucional número 5 e a declaração de estado de sítio. Em 1968 em São

Paulo, uma apresentação do musical “Roda Viva” no Teatro Escobar foi invadida

pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC por sua sigla), o elenco foi

espancado e o cenário, destruído. Em Porto Alegre, no mesmo ano, alguns atores

que participavam do musical foram sequestrados. Após esses acontecimentos, a

peça é finalmente proibida.10

Augusto Boal é preso em 1971 e em seguida

mandado ao exílio. No ano seguinte, a repressão ordena o fechamento do Teatro

de Arena. Em 1974 o Teatro Oficina se dissolveu. José Celso Martinez Corrêa é

preso e torturado. Até a música e a poesia tornam-se perigosas para o regime, que,

ao ver-se impotente frente ao florescer das artes, responde com cadeia e exílio

para os artistas.

Estamos vivendo em S. Paulo o ano maior do teatro brasileiro.

A temporada de 1969 se vem caracterizando por uma sucessão

de textos importantes, desde os clássicos até os modernos: mas

o que marca este ano como o mais expressivo de nossa história

teatral, não é somente o privilégio de podermos ver, antes de

dezembro, três Shakespeares (...) um Ibsen (...) um Brecht (...)

um Schiller (...) um Molière (...) e um Genet (...). 1969 é o ano

do autor brasileiro. E especialmente o ano do jovem autor

brasileiro, que está enriquecendo a nossa dramaturgia com um

vigor e uma linguagem novas. Há pelo menos 4 lançamentos

muito significativos: Fala Baixo Senão Eu Grito, de Leilah

Assumpção e O Assalto de José Vicente, já estreados; À Flor

da Pele de Consuelo de Castro e As Moças de Isabel Câmara

que ainda começarão carreira. Nunca se registrou aqui ou no

Rio, um movimento tão rico, atestando, sem discussão, a

maturidade do nosso palco. (...) Todos se confessam no palco,

exprimem, sem rodeios, a sua experiência, vomitam com

sinceridade o mundo que reprimiram nos poucos anos de vida.

(...) Eles põe a nu, com uma liberdade de linguagem que

poderia assustar certos pudores e os ouvidos tímidos. Como o

teatro funciona pela autenticidade, as peças novas representam

10 Ventura, Z. “1968: O ano que não terminou”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

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a iluminação de um mundo interior que a platéia tem o prazer

em devassar.11

As palavras de Sábado Magaldi inspiram a constatação de Elza Cunha de

Vincenzo de que “dos quatro lançamentos significativos, como se vê, três trazem

a assinatura de mulheres”. Esta onda criativa que incorpora o feminino modifica

as bases de um teatro de autoria nacional, quando a prática mais corriqueira

consistia em importar textos de grandes autores já consagrados no estrangeiro. O

TBC12

era famoso pela importação de grandes talentos. Estava na hora de nadar

na contracorrente do mainstream e inaugurar novos espaços capazes de acomodar

essa camada mais jovem, composta também por mulheres, que sorvia o espírito

contestador de seu tempo, e colocava em xeque os anacronismos de um teatro que

havia envelhecido rapidamente, e não era capaz de propor novas saídas ao mal-

estar produzido pelo golpe de 1964 e seus desdobramentos mais contundentes.

Após a proclamação do AI-5, os palcos se tornaram perigosos para o status quo. A

repressão roubou a cena. O ano de 1969 corresponde ao período imediatamente

posterior ao “golpe dentro do golpe” e não por acaso o teatro viu-se obrigado a

rejuvenescer: a dinâmica social mudara bruscamente, e se o golpe de 1964 parecia

invisível para algumas camadas sociais, inclusive no campo das artes, nesse

momento rasga-se o invólucro da invisibilidade para uma repressão mais aberta e

contundente.

Sob a égide do poderio militar, os agentes censores, que até então se empenhavam

em zelar pela moralidade e pelos bons costumes, passaram a ter um relativo cuidado

com a infiltração ideológica nos palcos brasileiros. O teatro politizado coloca em xeque

não só os algozes de um regime de exceção, mas as mazelas sociais que configuram o

cotidiano do “cidadão de bem”. A escrita de mulheres dramaturgas lançava novos

olhares sobre a sociedade.

Por “escrita de mulher”, entendo que haja certo deslocamento de perspectiva;

olhares a partir de finas angulares cujo prisma perpassa por diferentes maneiras de se

apreender o mundo. Simone de Beauvoir já dizia: “Não se nasce mulher, torna-se

mulher”. O ato de tornar-se mulher pressupõe uma construção histórica do Ser mulher.

O que se entende por mulher vai além de um fator fisiológico, mas como a sociedade

11

Magaldi, S. “A Grande Força do Nosso Teatro”, Jornal da Tarde, 26.08.1969 apud Vincenzo,

E.C. de. “Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro contemporâneo” São

Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. P-4. 12

Teatro Brasileiro de Comédia, por sua sigla.

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interpreta a mulher, isto é, de acordo com os valores e premissas de seu tempo. Tais

valores são históricos e engendram em seu cerne as relações humanas e as concepções

de mundo que norteiam a sociedade no decorrer do processo de construção de uma

cultura tal como ela se apresenta no presente. A mulher é designada como Outro, aquele

que só se faz existir através de seu duplo transcendente ao qual lhe é subordinada: ao

homem. De acordo com Beauvoir, à mulher não se atribui um projeto; seu destino é

pautado na repetição cíclica da vida e da atividade humana em sua contingência e

facticidade. A partir do lugar de suposta inação imposta de fora, ela age. A partir desse

lugar de suposta inércia, ela se movimenta. A partir desse lugar de suposto

obscurantismo, ela cria. A partir desse lugar de suposta opacidade, ela brilha. Escrever

no feminino implica em driblar as barreiras socialmente construídas, o que exige o

dispêndio de esforço criativo e intelectual e a iminência de subjetividades nômades,

capazes de contornar, movimentar ou enfraquecer essa barreira. Essa barreira passou

por sensíveis modificações no decorrer do período entre a publicação de “O Segundo

Sexo” (1949) de Beauvoir e a dramaturgia de Hilda Hilst (entre 1967 e 1969). Não

obstante, os deslocamentos subjetivos femininos podem se desdobrar em um imenso

leque de possibilidades a partir de diversas abordagens e pontos de vista. Ainda assim, a

barreira permanece, acentuando deslocamentos na escrita feminina.

É uma estranha experiência, para o indivíduo que se sente como um

sujeito, autonomia, transcendência, como um absoluto, descobrir em

si, a título de essência dada, a inferioridade: é uma estranha

experiência para quem, para si, se arvora em Um, ser revelado a si

mesmo como alteridade. É o que acontece à menina quando, fazendo

o aprendizado do mundo, nele se percebe mulher. A esfera a que

pertence é por todos os lados cercada, limitada, dominada pelo

universo masculino; por mais alto que se eleve, por mais longe que se

aventure, haverá sempre um teto acima de sua cabeça, muros que lhe

barrarão o caminho.

(Simone de Beauvoir) 13

No teatro, esses deslocamentos adquirem relevo com a iminência do

“teatro intimista”. Elza Cunha de Vincenzo14

observa uma fusão entre o caráter

coletivo de um teatro que reflete as questões da sociedade e um teatro individual,

que trata da vida doméstica e cotidiana. Uma análise da dramaturgia feminina

13

Beauvoir, S. (1975). O Segundo Sexo. Volume II, 3ª Edição. Difel/Difusão Editorial, São Paulo-

SP. P-39.

14 Vincenzo, E.C. de. “Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro

contemporâneo” São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. P-283

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desse período nos possibilita a chegar a um entendimento de como o coletivo e o

individual se davam enquanto relação, e como a sociedade é vivenciada no

interior do lar, nas relações entre pais e filhos, marido e mulher, etc. O lar torna-se

um espelho difuso do que acontece no mundo do trabalho, nas relações de

comunidade e vizinhança. No lar é difícil fugir do campo das contradições, pois

no espaço da intimidade os pequenos defeitos adquirem proporções mais agudas,

as mentiras não se sustentam por muito tempo e os conflitos são menos velados. A

tendência ao “teatro intimista” traz ao palco as nuances do espaço doméstico,

observadas por olhos de mulher, que amarram o individual e o coletivo com

sensibilidade e humor, incitando a platéia a rir de seus próprios ridículos. O

potencial crítico e autocrítico é avassalador, e o riso é explorado por sua função

reflexiva, ora como identificação, ora como estranhamento.

Porém a nova dramaturgia não se encerra no espaço doméstico, como

constata Vincenzo, e mesmo quando retrata a vida no núcleo familiar, a autora

coloca a desnudo o conflito entre o papel da mulher no cotidiano e suas

possibilidades. O pêndulo se inclina para a temática da modernização, que assume

um viés cultural profundo e avassalador. Segundo a autora:

A dramaturgia feminina que começa a tomar vulto precisamente num

dos momentos altos da modernização e da repressão política pós-68 e

que representa mesmo, em termos históricos brasileiros, um

desdobramento dessa modernização, revela claramente, a partir de seu

interior, a presença dos elementos contraditórios que a constituem e

definem: por um lado, a liberalização dos costumes, a ampliação e

diversificação de oportunidades de trabalho – inclusive para a mulher

– , certa mobilidade social que por vezes permite o trânsito de

indivíduos de uma classe para a outra; mas, por outro, também os

mecanismos do processo que mantém alienados, ao envolve-los em

sua trama, os indivíduos em geral, que se utiliza deles para depois

descartá-los, que os prepara tecnicamente para determinadas funções,

mas os leva em seguida a se desviarem dos objetivos que essa

preparação supunha.15

Contudo, as autoras que compunham essa nova dramaturgia entre as

décadas de 1960 e 1970 encontravam linguagens distintas, evocando imagens que

provém de universos particulares e diversificados. Quando está em voga a

temática do cotidiano doméstico, cada núcleo familiar adquire as suas

peculiaridades de acordo com a visão da autora, e cada história se desenrola

dentro de um tempo específico, que dá o ritmo e molda a linguagem, tanto

15

Vincenzo, E.C. de. “Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro

contemporâneo” São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. P-283.

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corporal, como textual. As narrativas também ocupam cenários diversos, como o

ambiente de estudo e de trabalho, a praça pública, os lugares onde se dá o choque

entre o individual e o universal.

A Luz completa-se a si própria

Se Outros quiserem vê-la

Ela se mostra em certas horas

Nos Vidros da Janela.

(Emily Dickinson) 16

Renata Pallotini figura entre as dramaturgas que precederam a vaga

criativa de 1969. Formada em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo e em direito pela Universidade de São Paulo, Pallotini foi a primeira

mulher a ingressar no curso de dramaturgia na Escola de Arte Dramática em 1961.

Sua primeira peça, A Lâmpada, foi redigida em 1958 e levada ao palco em 1960

no Teatro do Estudante de Campinas sob a direção de Teresa Aguiar. A temática

já se antecipa ao movimento inovador que dará o tom da nova dramaturgia,

enfatizando algo até hoje bastante marginal: a homossexualidade. Em seguida,

escreve Sarapalha, adaptação de um conto homônimo de Guimarães Rosa

elaborada em função de um concurso de dramaturgia promovido pelo Teatro de

Arena. Sua sensibilidade e firmeza em trabalhar a dramaticidade da narrativa de

Guimarães Rosa foi muito bem recebida, e levada ao palco por Alberto D’Aversa

em 1961. No ano seguinte, escreve e dirige O Exercício da Justiça na EAD, onde

ela volta os holofotes para uma imagem de justiça cega, incapaz de ver os estratos

marginalizados da sociedade. Vincenzo atenta para os aspectos que conformam e

definem uma personalidade própria, inerente à obra da autora:

A manipulação do tempo e do espaço, bem como a intersecção dos

vários níveis de realidade, característica da estruturação épica do

teatro, será uma das possibilidades técnicas desta autora, e vai revelar-

se completamente nas peças dos anos 70 e 80. Mas esta linha épica,

desde a primeira peça em que aparece (que é justamente o Exercício

da Justiça) assumirá um caráter especial: o da elaboração poemática.

Daí podermos considerar o teatro de Renata Pallotini, em sua maior

parte, um teatro poético, do qual não está contudo ausente um correto

sentido da linguagem coloquial, do dia a dia, e, em alguns casos

mesmo, um torneio particularmente popular e brasileiro. 17

16

Dickinson, E. Älguns Poemas / Emily Dickinson”. Tradução: José Lira. São Paulo: Iluminuras,

2008. P-131 17

Vincenzo, E.C. de. “Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro

contemporâneo” São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. P-30.

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Segundo Vincenzo, esse teatro poemático deu o tom de sua primeira fase,

em peças como O Escorpião de Numância (1967), Pedro Pedreiro (1964) e o

Crime de Cabra (1961). Este último foi redigido em 1961 e levado ao palco em

1965, brindando à autora os prêmios Molière e Governador do Estado. Foi sua

primeira montagem profissional e o que ela traz de peculiar é sedimentar os

contornos de um teatro genuinamente popular. Pedro Pedreiro, levado ao palco

em 1968, também traz para o centro da cena o protagonismo do homem simples,

migrante nordestino que pretende se ajustar ao meio urbano. Em 1973, a autora se

depara mais uma vez com a barreira do Estado. Nas palavras de Pallotini:

Terminei de escrever Enquanto se vai morrer... em 1973 e, em julho

do mesmo ano, a Escola de Comunicação de Artes da USP, primeira

interessada na montagem da peça, através de Moroel Silveira, então

diretor do que seria o TECA [Teatro da Escola de Comunicações e

Artes da Universidade de São Paulo], enviou o texto à Censura.

Começamos a esperar pela resposta que não vinha. Depois soube que

a censura age também assim: não se proíbe, mas também não se

libera. Simplesmente se deixa que o decurso do tempo desgaste e

envelheça intenções e projetos.18

No fim daquele ano, ela recebe uma resposta negativa, por supostamente

contrariar a “legislação em vigor”, o que deu vazão ao veto, que impediu sua peça

de ser encenada. Vincenzo descreve a peça, buscando dar algumas pistas do que

pode ter chamado a atenção dos censores:

Discutia a natureza da liberdade e da punição, tanto quanto a

legitimidade dos métodos empregados para obter confissões, a prisão

arbitrária, a tortura. E se voltava também para um problema

característico do período: o problema do exílio, que além de envolver

aspectos humanos evidentes, apresentava traços de um fenômeno

político de natureza muito especial: a eliminação violenta e repentina

de elementos significativos na vida do país. A eliminação desses

elementos abria claros no quadro da vida política e cultural difíceis de

preencher, e podia provocar desacertos cujas conseqüências se

sentiriam ainda muito tempo depois. 19

Inaugura-se uma segunda fase do legado dramatúrgico da autora, em um

sopro nostálgico que se remete ao passado e à memória de tempos longínquos.

Conformado por pequenos fragmentos articulados que compõem um todo

coerente, a dramaturgia poética aberta da autora coloca à baila uma multiplicidade

de personagens, cenas e grandes painéis. Peças acadêmicas – Enquanto se vai

18

Pallotini, R. Cópia do relato fornecida pela autora. In: Vincenzo, E.C. de. “Um teatro da mulher:

dramaturgia feminina no palco brasileiro contemporâneo” São Paulo: Perspectiva: Editora da

Universidade de São Paulo, 1992. P-233. 19

Vincenzo, E.C. de. “Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro

contemporâneo” São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. P-235.

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morrer (1972/1973) e Serenata Cantada aos Companheiros (1974) e sua fase

ítalo-brasileira – O País do Sol (1982), Colônia Cecília (1985) e Tarantella

(1986) caracterizam essa segunda fase, onde se brinda a maturidade de sua obra,

que a consagra como uma das mais notáveis dramaturgas brasileiras.

Leilah Assumpção inaugura o ano em que despontam as peças de autoria

feminina com Fala baixo senão eu grito em 1969, que recebeu os prêmios

Molière e da Associação Paulista dos Críticos Teatrais atribuídos ao melhor autor

do ano. Sua encenação contou com a direção de Clóvis Bueno, e com os

intérpretes Marília Pêra e Paulo Villaça e se estendeu por longas temporadas em

São Paulo, Rio de Janeiro, depois Curitiba, Belo Horizonte e Salvador. Esteve em

cartaz por bastante tempo em Bruxelas, além de Paris e Buenos Aires. O

reconhecimento imediato brinda a autora com o cânone e suas possibilidades se

multiplicam em uma trajetória de sucesso. A peça trata de uma solteirona

estereotipada, que se envolve com um soturno ladrão, confundido com suas mais

íntimas fantasias. Leilah trata de quebrar o universo feminino, enquanto o ladrão

permanece indefinido – uma força viril, alguém real ou um devaneio criado pela

mente inventiva da solitária protagonista. Vincenzo o descreve como “algo vindo

de fora e que se opõe a princípio a atinge violentamente; e por algum tempo o seu

mundo, o mundo ilusório em que se abrigava para defender-se, é abalado.”20

Para Sábado Magaldi, trata-se do encontro de duas solidões, que

pretendem romper com o tédio do cotidiano para propor novos desenlaces. O

ladrão apresenta um convite ao erotismo, à fantasia lírica e a uma liberdade

caótica que revela que a vida pode ir além daquela vidinha remota e desprovida de

sentido. O desfecho, porém, se dá como no despertar de um sonho: sete horas da

manhã, hora da labuta, se não se apressar, ela perde o ponto. A trama se encerra

com um final realista: triunfa o compromisso. “O Homem quis roubar-lhe a paz

artificial dos mortos em vida”21

– conclui Magaldi. O crítico observa como a

autora explora o ludismo, recriando textualmente o jogo teatral, estraçalhando

valores cristalizados em pequenos bibelôs, presentes no nosso cotidiano, ao passo

que se projetam imagens à revelia da vulnerabilidade humana e suas flutuações. O

diálogo físico e corporal exige uma coreografia, que coloca em ação elementos

dramáticos, risíveis, grotescos e poéticos, configurando um universo cênico em

sua plenitude.

Com Fala Baixo, senão Eu grito, Leilah Assumpção conquista sua

cidadania teatral num território fronteiro ao dos novos colegas, em

vários aspectos com características iguais às deles, mas acrescentando

20

Vincenzo, E.C. de. “Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro

contemporâneo” São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. P-86/87. 21

Magaldi, S. “Fala Baixo, senão Eu Grito”. In: “Moderna Dramaturgia Brasileira”, primeira série.

São Paulo: Perspectiva, 2008. P-239.

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–lhes uma inconfundível sensibilidade feminina, além de um conceito

próprio de espetáculo. A peça inscreve-se no que se poderia chamar de

“teatro novo”, e ao mesmo tempo o enriquece com uma personalidade

estranha, cheia de vida interior e um susto imenso diante do mundo.

(...) A encenação encontra matéria-prima, também, para enfeixar o

particular e o geral, a experiência precisa e a universalidade, um caso

recortado no cotidiano e o diagnóstico amplo de um mundo. Tudo isso

faz da estréia de Fala Baixo, senão Eu Grito mais do que uma

promessa: a peça é já a afirmação de um talento.22

A semelhança temática que lança luz sobre os temas do cotidiano no

ambiente familiar leva Vincenzo a caracterizar Fala Baixo, senão Eu Grito como

parte constitutiva de um bloco, que denomina “Trilogia da Família”, junto a

Jorginho o Machão (1970) e Roda Cor-de-Roda (1975). Leilah declara na Folha

de S. Paulo de 15.07.1979 que o único fio condutor entre as três peças é o fato de

terem sido suas três primeiras levadas para o palco, mas alguns elementos cênicos

e temáticos fazem com que Vincenzo insista na idéia de uma trilogia, que se situa

no questionamento e na quebra de valores enraizados na família burguesa. A

sátira, o estranhamento risível e a ênfase ao papel da mulher, que se vê imersa em

novas questões, tais como sua inserção no mundo do trabalho, liberação sexual e

excesso de eletrodomésticos e bens de consumo pertinentes ao universo das

classes médias, no compasso de uma modernização fascinante e incompreensível.

Isabel Câmara está entre os jovens dramaturgos que estreiam sua carreira

profissional em 1969. Seu repertório literário traz à baila referências sofisticadas e

uma escrita delicada, pertinente a um universo ficcional onde o escritor, mais que

o dramaturgo, dá a última palavra. Sábato Magaldi a considera antes uma

escritora, que dramaturga, mas não deixa de enxergar seu potencial: “Pode-se ter a

certeza (...) que Isabel Câmara, ao afeiçoar-se mais à linguagem própria do palco,

acabará realizando um grande teatro.” 23

O rigor da escrita, cujo vocabulário goza

de certo requinte, recria um universo enigmático, onde o espectador vagueia por

um labirinto de possibilidades que permanecem abertas no decorrer da trama. Sua

estreia se dá com a encenação de As Moças, onde a dramaturga retrata as solidões

de duas mulheres, a velha tia e sua sobrinha, cuja relação intercala afeto e

desafeto, amor e ódio, em um diálogo oscilante, que revela algo além do que a

fala pretende. A troca de insultos entre as personagens cria uma aproximação de

duas angústias, que encontram subterfúgios diferentes para lidar com o assombro

22

Id. Ibidem. P-237 e 240. 23

Magaldi, S. “As Moças”. In: “Moderna Dramaturgia Brasileira”, primeira série. São Paulo:

Perspectiva, 2008. P-246.

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de uma falta de sentido para a existência humana. A paralisia do medo e a entrega

aos prazeres frívolos e mundanos entram em choque com violência, mas o

estranhamento promove uma identificação entre as possibilidades da mulher se

ajustar psicologicamente a uma vida fragmentada propiciada pela ruptura da

estrutura familiar tradicional. A problemática da existência desempenha um papel

central e tempera a peça com um ar melancólico. São ultrapassadas as barreiras

convencionais, por via de um mergulho no universo interior das personagens, em

uma perspectiva que combina elementos da psicanálise com a filosofia

existencialista. Nas palavras de Sábato Magaldi:

Não se destina a peça ao êxito fácil nem os que gostam de situações

claras terão satisfeito o seu desejo. Quando a psicanálise ao alcance de

todos se veiculou principalmente num certo teatro e cinema de

digestão imediata, As Moças repele as exegeses simplificadas e não

esgota, até o fim, a sondagem proposta, porque sugere que há sempre

novas zonas a explorar.24

Consuelo de Castro inaugura sua carreira como dramaturga com uma

voracidade implacável e um engajamento político contundente contra o poderio

do Estado ditatorial. “Minha única arma contra a violência é o teatro, que é minha

própria violência respondendo à violência deles”25

, diz em um depoimento para

Samuel Weirner e Joana Fomm da Revista Aqui, São Paulo em 1976. O conteúdo

político de suas primeiras peças entrava em confronto direto com a censura, com a

qual teve que bater de frente, em um jogo que intercala proibições e premiações.

Ao receber um prêmio pelo Serviço Nacional de Teatro (SNT) em 1976, a

dramaturga Consuelo de Castro se manifesta:

Declaro aqui, com toda a raiva do mundo que sinto, que recusarei

terminantemente qualquer prêmio do SNT ou de qualquer outro órgão

deste governo. Se alguém quiser me premiar, libere minhas peças.

Libere Papa Highirt de Vianinha, também premiado pelo SNT em

1968. Libere Plínio Marcos... Deixem a gente ir para o palco, que não

24

Magaldi, S. “As Moças”. In: “Moderna Dramaturgia Brasileira”, primeira série. São Paulo:

Perspectiva, 2008. P-246. 25

Castro, C. “O Teatro Não Precisa de Prêmios, mas de Liberdade”, Aqui, São Paulo, 04.11.1976.

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é de prêmios que precisamos todos, público e escritores: é de

liberdade.26

No teatro infantil, a escrita de Maria Clara Machado e Tatiana Belinky é

recebida com bastante apreço. A primeira, autora do consagrado “Pluft, O

Fantasminha” e fundadora do Teatro Tablado, escreveu incessantemente, do início

da década de 1950 até o fim da vida, em 2000, quando lançou sua última peça

“Jonas e a Baleia”. Sua obra rendeu-lhe prêmios e homenagens carnavalescas, em

enredos de escolas de samba como Porto da Pedra, União da Ilha e Unidos do

Jacarezinho. Belinky escreveu uma adaptação de “Sítio do Pica-pau Amarelo” de

Monteiro Lobato, e o roteiro de “Três Ursos” e “Fábulas Animadas” para a TV

Tupi, entre 1952 e 1966. Desde 1948 ela já escrevia peças para o público infantil

juntamente com seu marido, o médico e educador Júlio de Gouveia, encenados

nos teatros da Prefeitura de São Paulo. Sua trajetória também obtém

reconhecimento, rendendo-lhe o Prêmio Mérito Educacional em 1979 e o Prêmio

Jabuti de Personalidade Literária do ano em 1989. Ambas conseguem ocupar

lugar de destaque e renome, antes mesmo da iminência do teatro politizado

sessentista, quiçá por escreverem para crianças, um público bastante particular.

De acordo com Elza Cunha de Vincenzo, podemos entender a inclinação

política da dramaturgia feminina sessentista em sua dupla acepção: seja pela

política anti-sistêmica que ganha espaço nos palcos brasileiros, seja pelos ecos dos

movimentos feministas que eclodem na Europa e nos Estados Unidos. São postos

em questão o lugar da mulher na sociedade, o tédio da vida conjugal, os valores

cristãos, a sexualidade feminina e homoafetiva. A complexidade dá o tom de uma

política que encontra seus opressores não apenas no Estado, mas também dentro

de casa. A mulher se recria e se ressignifica no palco, ao sopro dos ventos que

aspiram mudanças radicais.

Dalva de Oliveira, Maria Callas, Coco Chanel, Carmen Miranda...

Na minha carreira teatral vivo envolvida com mulheres que existiram

de verdade. Mulheres fortes e importantes, que me obrigam a um

estudo maior da história da época, além da voz e do gestual. Lendo a

história delas e o entorno, procuro tirar as minhas próprias

26 Vincenzo, E. C. “Um Teatro da Mulher: Dramaturgia Feminina no Palco Brasileiro

Contemporâneo” São Paulo, Edusp/ Perspectiva, 1992. P-110.

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conclusões. (...) Não me comparo a elas, porque foram

internacionalmente revolucionárias. Mas, se me perguntarem, acho

que tenho um pouco da perseverança da Chanel e da alegria e do

humor da Carmen.

(Ítala Nandi) 27

Inspirada por esse turbilhão criativo, Hilda Hilst não resiste à tentação de

mergulhar pelo universo cênico. De acordo com Vincenzo, Hilst não é aplaudida

no teatro com os mesmos louvores que a sua recepção poética, permanecendo

relativamente marginal. A dificuldade em se destacar como uma mulher

dramaturga soma-se aos desafios decorrentes de uma linguagem poética, recheada

de recursos líricos e metáforas de difícil compreensão. Mas isso não a impede de

ser homenageada em 1969 com o Prêmio Anchieta da Comissão Estadual de

Teatro, pela peça O Verdugo. O lugar marginal ao qual a autora foi relegada está

em aberto, e suas peças ainda podem ser descobertas por novos e audazes

encenadores. Afinal, essas peças falam de descobertas, articulando vozes que

sugerem a impotência humana em diferentes cenários. Este trabalho pretende

mergulhar nesse universo de descobertas, esboçado e recriado múltiplas vezes

pela autora. Ela conversa com os paradigmas do seu tempo numa linguagem

misteriosa, que precisa ser analisada detidamente, com cuidado e imaginação.

Ah, essa voz cega, e esses instantes de respiração suspensa em que

todo o mundo escuta perdidamente, e a voz que recomeça a tatear,

sem saber o que procura, e denovo o ínfimo silêncio, à espreita de

não se sabe o quê, (...) um alfinete que cai, uma folha que se agita, ou

um gritinho que soltam as rãs quando a foice as cortam em duas (...)

Talvez fosse preciso ser cego, cego ouve-se melhor, não são

informações que faltam, temos em nossa bagagem afinadores de

piano, dão o lá e ouvem o sol, dois minutos depois, não se vê nada de

qualquer modo, esse olho é uma miragem.

(Samuel Beckett) 28

27

Ítala Nandi. Entrevista concedida à Revista Aplauso, ano 2005, edição 69, disponível no sítio

eletrônico: http://www.aplauso.art.br/home/revistaaplauso/revista_atual.php?id=69. 28

Beckett, S. “O Inominável”. Tradução Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2009. P-132.

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27

Capítulo II

A CASA QUE HABITO, O CORPO QUE HABITO, O RIO QUE ME

ATRAVESSA

Dever cumprido. Eu fiz o que pude. Meu pai não pode fazer isso,

ficou louco. Eu pude. Minha mãe me contou que, quando eu nasci, ao

saber que era uma menina, ele disse: “Que azar!” Eles, na verdade, se

separaram porque minha mãe estava grávida. Ele não queria isso.

Queria uma amante. Aí, minha mãe engravidou. Quando ele soube

que era uma menina, falou daquele jeito. Uma palavra que me

impressionou demais: azar. Aí eu quis mostrar que eu era

deslumbrante.29

Hilda de Almeida Prado Hilst nasceu no dia 21 de abril de 1930 na cidade

de Jaú, no interior paulista. Apolônio de Almeida Prado Hilst, seu pai, era também

um poeta e ensaísta, além de jornalista e fazendeiro. Sua mãe, Bedecilda Vaz

Cardoso era quem arcava com o sustento da família, já que seu pai fora

diagnosticado como esquizofrênico paranóico, e internado aos 35 anos em um

sanatório em Campinas. Após a separação dos pais, ela se muda para Santos com

sua mãe. Em 1937, é encaminhada para o internato do Colégio Santa Marcelina

em São Paulo, onde estuda por cerca de oito anos em um ambiente rígido e

religioso. A relação com o pai é regida por fantasias e memórias que marcaram.

Ela visita o pai apenas duas vezes. Sua infância é impregnada pelo sentimento de

rejeição paterna, mas ela trata isso como uma fonte de inspiração em sua escrita.

Quase todo meu trabalho está ligado a ele [o pai] porque eu quis. Eu

pude fazer toda a minha obra através dele. Meu pai ficou louco, a obra

dele acabou. E eu tentei fazer uma obra muito boa para que ele

pudesse ter orgulho de mim [a voz embarga nas últimas palavras]. (...)

Então eu me esforcei muito, trabalhei muito porque eu escrevia

basicamente para ele.30

Seu primeiro livro de poesias fora publicado em 1950, quando ainda cursava

Direito na Universidade de São Paulo em 1948. Poucos anos depois decide

dedicar-se integralmente à poesia. Sua produção é vasta, atravessa e dá sentido ao

29

Cadernos de Literatura Brasileira, n. 8, São Paulo, outubro de 1999, entrevista concedida ao

Instituto Moreira Salles. P-26/41 30

Cadernos de Literatura Brasileira, n. 8, São Paulo, outubro de 1999, entrevista concedida ao

Instituto Moreira Salles. P-26

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curso de sua vida, perpassando por diversos desdobramentos: poesia, ficção

literária, crônicas e teatro.

George Eliot e Charlotte Brontë devem dividir entre elas a

paternidade de muitos romances (...), pois revelam o segredo de que o

precioso recheio de que os livros são feitos está em derredor, nas

salas de visitas e cozinhas onde as mulheres vivem, e se acumula ao

tique-taque do relógio. Miss Willatt (...) era capaz de escrever

páginas sobre “montanhas que se assemelhavam a muralhas de

nuvem, a não ser pelas ravinas fundas e azuis que lhes rasgavam os

flancos, e as cascatas diamantinas que caíam brilhando, ora em

dourado, ora em púrpura, quando entravam na sombra dos

pinheirais, passando depois ao sol para perder-se na miríade de

arroios pelo pasto matizado de flores em sua base”. Porém, quando

ela tinha que encarar seus amantes e a conversa das mulheres nas

tendas, ao crepúsculo (...), ela então gaguejava e corava

perceptivelmente. (...) A mesma autoconsciência (...) a voz portentosa

que unia os diálogos e explicava como as mesmas tentações nos

assaltam, seja sob estrelas tropicais, seja embaixo dos umbrosos

olmos da Inglaterra.

(Virgínia Woolf ) 31

O corpo na obra de Hilda Hilst lança luz sobre uma multiplicidade de

vozes e vontades, que flui como a correnteza de um rio atravessado por ares que

sopram de vértices opostos da rosa dos ventos, provocando efeitos bastante

avassaladores, descontínuos, e cuja inventividade escorrega na cadência de seus

sonhos e desejos mais recônditos.

As barcas afundadas. Cintilantes Sob o Rio. E é assim o poema. Cintilante E obscura barca ardendo sob as águas. Palavras eu as fiz nascer Dentro da tua garganta. Úmidas algumas, de transparente raiz: Um molhado de línguas e de dentes. Outras de geometria. Finas, angulosas Como são as tuas Quando falam de poetas, de poesia As barcas afundadas. Minhas palavras...

32

Esse corpo híbrido que atravessa a poética de Hilst se assemelha a uma

concepção de corpo formulada por Friedrich Nietzsche: um corpo habitado por

diversos fluxos de força de vontade em permanente dissonância. A força que se

31

Woolf, V. “Memórias de Uma Romancista”. In: “Contos Completos / Virginia Woolf “.

Tradução: Leonardo Fróes, São Paulo: Cosac Naify, 2a Reimpressão, 2007. P-95/96 32

Hilst, H. “Do Desejo” Sâo Paulo: Editora Globo, 2004. P-58.

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projeta com maior intensidade corresponde à vontade de potência (ou vontade de

poder). É a vontade que grita mais alto em um dado momento. Nesse jogo de

forças não há um vencedor invicto, pois tão logo uma força se sobrepõe às

demais, outras vozes se reanimam e preparam terreno para uma retomada. Em

Nietzsche, o corpo passa a ser pensado como um campo de batalhas, tendo sua

própria história inculcada da medula à epiderme, história que por sua vez coexiste

em um cenário mais amplo, atravessado por uma multiplicidade de fluxos de

vontade no compasso da sociedade.

Como uma tempestade, percorrem os sóis, velozmente, suas órbitas: é

esse o seu curso. Seguem, inexoráveis, a sua vontade: é essa a sua

frieza.

Ó seres escuros, noturnos, somente vós criais o calor, haurindo-o dos

corpos luminosos! Somente vós bebeis o leite e o bálsamo dos ubres

da luz!

Ah, há gelo em volta de mim; queima-se minha mão tocando em gelo!

Ah, há uma sede, em mim, que almeja pela vossa sede!

É noite; ai de mim, que tenho de ser luz! E sede que é noturno. E

solidão!

É noite: como uma nascente, rompe de mim, agora, o meu desejo – e

pede-me que fale.

É noite: falam mais alto, agora, todas as fontes borbulhantes. E

também a minha alma é uma fonte borbulhante.

É noite: somente agora despertam todos os cantos dos que amam. E

também a minha alma é o canto de alguém que ama.

Assim falou Zaratustra.

(Friedrich Nietzsche)33

A história de Hilda Hilst precisa atravessar seu corpo; corpo este que se

faz presente a cada momento de sua obra. Corpo híbrido, poesia corpórea e

visceral. O teatro de Hilst é um teatro encarnado, ou seja, que atravessa o corpo

passando por todos os pontos nevrálgicos e sensitivos, aquilo que Artaud chama

de “sensibilidade fisiológica”, por onde vibram as cores e suas intensidades, a

trepidação, o envolvimento comunicativo, e as paixões, que pululam de um

33

Nietzsche,F. “Assim falou Zaratustra : Um livro para todos e para ninguém”. Tradução: Mário

da Silva. 4ª Edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986. P-120

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sentido para outro, da palavra para um feixe de luz, do gesto para um grito. Hilst

vai além das imagens que a retina capta com retidão, e explora a linguagem para

além da palavra literal. A linguagem se corporifica e seus sentidos se expandem

abrangendo gesto, voz, tom, respiração, olhar, grito, silêncio, noite. O texto

produz imagens que se multiplicam e criam novas possibilidades. Assim como em

Artaud:

O encavalamento das imagens e dos movimentos levará, através de

conluios de objetos, silêncios, gritos e ritmos, à criação de uma

verdadeira linguagem física com base em signos e não mais em

palavras. (...) Nessa quantidade de movimentos e de imagens tomados

num tempo determinado, introduzimos tanto o silêncio e o ritmo como

uma certa vibração e uma certa agitação material, composta por

objetos e gestos (...) Pode-se dizer que o espírito dos mais antigos

hieróglifos presidirá a criação dessa linguagem teatral pura.34

Os sentimentos movimentam o corpo. A separação entre corpo e mente,

espírito e matéria não encontra ressonância em Hilst. Seu desejo atravessa o

corpo, mas vai além de sua acepção material. Hilst imerge naquela materialidade

fluídica da alma, aquilo que Artaud considera indispensável ao universo cênico.

Tornar cônscios os pontos onde timbram os afetos, algo que corre no sangue

palpitante, em jorros que seguem os movimentos que inspiram e expiram o ar.

Com a respiração, circulam os afetos introjetados pelo corpo. Os músculos se

contraem em um trabalho extenuante, mas a tensão se alterna com jatos de vazio.

A afetividade toca os músculos, e se desdobra de um jogo de respirações por onde

penetra a poesia, e irrompe com uma força incomensurável, como sugere o

atletismo da alma de Antonin Artaud. Afetos que em Hilst se localizam no frágil

limite entre a pele e o desejo.

Empoçada de instantes, cresce a noite Descosendo as falas. Um poema entre-muros Quer nascer, de carne jubilosa E longo corpo escuro. Pergunto-me Se a perfeição não seria o não dizer E deixar aquietadas as palavras Nos noturnos desvãos. Um poema pulsante Ainda que imperfeito, quer nascer. Estendo sobre a mesa o grande corpo Envolto na sua bruma. Expiro amor e ar Sobre as suas ventas. Nasce intensa E luzente a minha cria No azulecer da tinta e à luz do dia.

35 34

Artaud, Antonin. Trad: Teixeira Coelho, 3ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2006. P-146. 35 Hilst, H. “Do Desejo” Sâo Paulo: Editora Globo, 2004. P-60.

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31

O corpo de Hilst ocupa o espaço do entre-muros, de uma noite adentro que

se encontra no limiar do crepúsculo. Algo está para nascer. Seu poema pulsante

passa pela respiração, junto com amor e ar, como elementos indissociáveis,

alimento indispensável para a alma. O crepúsculo assinala o nascer de um novo

dia, de um poema ensolarado que se desdobra em diferentes intensidades de azul.

O corpo se estende, se envolve na bruma, é um elemento participante do

espetáculo que dá luz a um novo dia.

Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um

fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um

intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir – nos

interstícios de matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é

a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo

que ouvimos e chamamos de silêncio.

(Clarice Lispector) 36

Michel Foucault define o corpo como “superfície de inscrição dos

acontecimentos (...), lugar de dissociação do Eu que supõe a quimera de uma

unidade substancial, volume em perpétua pulverização.”37

A história molda o

corpo e o corpo interfere na história, como dois elementos imbricados que se

confundem em suas trajetórias. Como em Nietzsche e depois em Foucault, o

corpo em Hilst passa pelo poderio do Estado. A violência se faz presente nesse

corpo, ele é amestrado por forças que vêm de fora em forma de imperativos e

imposições. O corpo resiste: encontra maneiras de burlar aquilo que o impele a

um estado de passividade, ele escorrega para depois se expandir pelas brechas

onde a ordem de dominação não penetra. Alteram-se os fluxos que atravessam o

corpo, altera-se a ordem discursiva; metáforas e alegorias burlam a censura, a

expressividade cênica encontra outros meios de dizer o indizível. O corpo assume

outras formas para escapar à passividade que lhe é esperada, as antigas palavras se

desfazem para dar luz a outras linguagens, a mente encontra subterfúgios para

exteriorizar o que foi proibido pelos novos censores.

No contexto do estado de exceção, novos movimentos entram em voga,

imprimindo novos ritmos à história, que agora dança “na corda-bamba de

36

Lispector, C. “A paixão segundo G.H.” Rio de Janeiro: Rocco, 1998. P-98 37

Foucault, M. “Microfísica do Poder”. Org. e Trad: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições

Graal, 1979. P-22.

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sombrinha”, sabendo que em cada passo em falso pode se machucar. A analogia

expressa na música de João Bosco e de Aldir Branc é apenas uma possibilidade de

traduzir em imagens os “malabares” que o artista tinha que aprender em um breve

perímetro de tempo para comunicar sua mensagem a um mundo recortado e

segmentado por novas fronteiras.

Hilda Hilst traduz os grandes temas de seu tempo em alegorias, cuja

assimilação requer um mínimo de criatividade. Metáforas que são mais que

metáforas. De acordo com o filósofo John Dewey, as palavras passam por um

processo de transmutação: os afetos recriam-se em um casulo até que a palavra

alce voo no papel e no imaginário do leitor que imergir nesse universo

enigmático. A metamorfose envolve essa conversão, que vai além de criar

metáforas, pois não isenta de sentido suas ilustrações, suas evocações táteis, seus

perfumes, seus gritos e seus silêncios. Há uma verdadeira fusão desses elementos,

que opera para além do que impele diretamente o poeta. Nas palavras de Dewey:

Ao consultarmos os poetas, constatamos que o amor encontra

expressão em torrentes impetuosas, em lagos serenos, no suspense que

antecede a tempestade, no pássaro equilibrado em seu vôo, na estrela

longínqua ou na lua inconstante. E esse material tampouco tem caráter

metafórico, se por “metáfora” entendermos o resultado de qualquer

ato de comparação consciente. A metáfora proposital na poesia é o

recurso da mente quando a emoção não satura o material. A expressão

verbal pode assumir a forma da metáfora, mas há por trás das palavras

um ato de identificação afetiva, não uma comparação intelectual.38

Ampliemos, pois, o conceito de “metáfora”, deixemos que ela se dissocie

de uma função consciente para alcançar amplitudes mais vastas. Um ato de

transportar-se, como um devaneio da imaginação, algo incomensurável, que

transpõe os limites das palavras e seus significados. Gaston Bachelard vê na

poesia uma espécie de “convite à viagem”, algo que vai além de uma imaginação

evasiva. O convite do poeta nos propõe um doce impulso, que quando posto em

voga é capaz de provocar abalos sísmicos. Desperta um “devaneio salutar”, que se

desdobra em uma sucessão de imagens, flutuando na imaginação. Nas palavras de

Bachelard:

Esse movimento não será uma simples metáfora. Nós o

experimentamos efetivamente em nós mesmos, quase sempre como

um alívio, como uma facilidade para imaginar imagens anexas, como

38

Dewey, J. “Arte como experiência”. Tradução: Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

P-171

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um ardor em perseguir o sonho encantador. (...) Uma realidade

iluminada por um poeta tem pelo menos a novidade de uma nova

iluminação. Já que o poeta descobre um matiz fugidio, aprendamos a

imaginar todo matiz como uma mudança. Só a imaginação pode ver os

matizes; ela os apreende na passagem do uma cor para outra. Há neste

velho mundo, portanto, flores que tínhamos visto mal! Tínhamo-las

visto mal porque não as tínhamos visto mudar de matizes. Florescer é

deslocar matizes, é sempre um movimento matizado. Quem segue em

seu jardim todas as flores que se abrem e se colorem já tem mil

modelos para a dinâmica das imagens.39

As imagens que a poesia evoca estão em constante movimento, e só

podem ser traduzidas quando sorvidas pelo imaginário, por pequenos córregos que

ora seguem solitários em seus capilares fios, ora se encontram em magníficas

cataratas. Deslocamentos, gotejos e relampejos moldam a poesia e a prosa de

Hilda Hilst, como uma caverna repleta de estalactites móveis, que se enche de luz

em certo momento do dia, para depois se esvair na escuridão profunda. Essas

estruturas enigmáticas de Hilst não são apresentadas de forma pronta, pois sua

linguagem aberta permite sempre novos deslocamentos.

No posfácio da compilação do Teatro Completo de Hilda, publicada em

2008, Renata Pallotini procura revelar em termos gerais o que está em jogo em

cada peça, ou seja, uma entre as muitas leituras possíveis. Meu intuito é manter

uma linguagem polifônica, onde há margem para diferentes leituras possíveis.

Interessa a complexidade, os fios que se entrelaçam e irrompem num emaranhado

aparentemente incompreensível, mas que, se vistos de perto em relação com os

outros, podem esboçar uma imagem mais densa e em finos traços da artista.

É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas.

Voz e vento apenas

Das coisas do lá fora. (...)

Eu jamais ouviria. Atento

Meu ouvido escutaria

O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.

Porque é melhor sonhar tua rudeza

E sorver reconquista a cada noite

39

Bachelard, G. “O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. Tradução: Antônio

de Pádua Danesi -, 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2001. P-4/5.

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Pensando: amanhã sim, virá. (...)

Porque tu sabes que é de poesia

Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,

Que a teu lado, te amando,

Antes de ser mulher sou inteira poeta.

E que o teu corpo existe porque o meu

Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,

É que move o grande corpo teu

Ainda que tu me vejas extrema e suplicante

Quando amanhece e me dizes adeus.40

Hilda Hilst presta suas reverências ao deus Dionísio e evoca seu próprio

estado de transe, entre os desafetos e seus mais recônditos ímpetos. Como uma

mênade, suas palavras dançam à beira de um abismo, libertam-na de suas

angústias, por via de um estado de êxtase que se despe de um fluxo que aproxima

música com o corpo, o corpo com outros corpos, o corpo com a natureza, numa

espécie de reconciliação que vai para além do corpo mesmo. Assim como em um

rito dionisíaco, sua poesia restabelece a ordem cósmica. Em meio a rodopios

dançantes, chega ao dispêndio de desaprender a falar. A experiência transcende a

fala.

Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez me faz

companhia. Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no

mundo enquanto espero a morte. A procura da palavra no escuro. O

pequeno sucesso me invade e me põe no olho da rua. Eu queria

chafurdar no lodo, minha necessidade de baixeza eu mal controlo, a

necessidade da orgia e do pior gozo absoluto. O pecado me atrai, o

que é proibido me fascina. Quero ser porco e galinha e depois matá-

los e beber-lhes o sangue.

(Clarice Lispector)41

Entre beleza e verdade, entre medida e desmedida, entre a lucidez e a

embriaguez há um universo intermediário que torna possível tal conjugação. O

40

Hilst, H. “Júbilo Memória Noviciado da Paixão”, Globo, 2001. 41

Lispector, C. “A hora da estrela”. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. P-70

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apolíneo e o dionisíaco estabelecem esse frágil laço por um jogo, que consiste em

não se deixar levar completamente pela embriaguez. Em seus versos é possível

ouvir o doce timbre da flauta em seus delicados arranjos, que se mistura ao ritmo

frenético dos tambores de Dionísio, inspirando o corpo a movimentar-se, na

espreita de atingir o ápice de um transe inebriante no qual o indivíduo se esquece

de si, abdica de sua vida profana para penetrar um universo sagrado. É do sagrado

que trata sua poesia. Por esses caminhos labirínticos que Hilst inaugura, corre o

vinho, os sonhos, os ímpetos que fazem um movimento de dentro para fora,

expelindo algo da ordem do mistério, do íntimo. O inacessível torna-se acessível

pela embriaguez e pela eventual perda das estribeiras.

Nietzsche diz em Crepúsculo dos Ídolos:

Para que haja arte, para que haja uma ação ou uma contemplação

estética qualquer é indispensável uma condição fisiológica prévia: a

embriaguez. É mister que a embriaguez tenha aumentado a

embriaguez de toda a máquina; sem isso a arte é impossível. Todos os

tipos de embriaguez, ainda que estejam condicionados o mais

diretamente possível, têm a potência artística e acima de todos, a

embriaguez da excitação sexual, que é a forma de embriaguez mais

antiga e primitiva. (...) O essencial na embriaguez é o sentimento de

força e de plentitude. 42

Isso que Nietzsche chama de embriaguez aparece como um estado de

consciência difuso, que consiste em deixar-se levar de maneira a ultrapassar os

limites que a sociedade edificou em nossos corpos por meio da introjeção de uma

auto-censura. Esse estado de embriaguez nos ajuda a driblar com maior facilidade

os nossos mecanismos de censura, adquirindo leveza e intensidade, trazendo para

fora algo que estava resguardado, aquilo que Hilda Hilst chama de “o de dentro”.

É um ato de extravasar inerente ao processo criativo.

Conquistando um fulcro potente na garganta Um látego, uma chama, um canto. Ama-me Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos Quando não sou líquida.

43

Antonin Artaud certa vez dissera: “Há em todo demente um gênio

incompreendido, cuja idéia que luzia na cabeça provocou medo, e que só no

delírio pode encontrar uma saída para os estrangulamentos que a vida lhe

42

Nietzsche, F. “Crepúsculo dos Ídolos; ou, A filosofia a golpes de martelo”. Tradução: Edson

Bini e Márcio Pugliesi. São Paulo: Hemus, 1976. P-67/68. 43

Id. Ibidem. P-103.

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prepara”.44

No texto ele se referia a como Van Gogh caiu em descrédito frente ao

moralismo da sociedade, que, incapaz de compreender a genialidade, não

encontrara outra palavra para defini-lo que não a de um louco, e como louco foi

condenado a sofrer as mazelas da vida hospitalar, dos manicômios, de um certo

tipo de tratamento que a sociedade de seu tempo conferia aos ditos loucos. Mas

aquilo que chamam de “loucura”, seria exatamente esse lugar inventivo de alguém

capaz de criar na tela as cores e as , em que configuram nas pinceladas seus

devaneios. Algo que, dadas as devidas proporções, podemos dizer que Hilst faz

em sua escrita. Quando faltam palavras, ela cria, ela estilhaça sua própria medida,

se reinventando a todo momento em suas descargas de emoções, que vêm como

em um turbilhão, todas juntas, sem discernimento.

E você de papisa, você no meio do seu jardim com o seu revólver.

Não, não. No seu jardim muito perfumado, cheio de rosas vivas, cheio

de gente. Você os matou, você lhes tirou toda a decência. Safada.

Pare, pare. Essa lucidez escorrendo sobre as coisas. Eu, o irmão

pederasta, sou lúcido, mas os acontecimentos me invadem,...45

Os personagens fugidios dos contos de Hilda Hilst revezam-se para

expressar essa fluidez na qual correm descargas de lucidez e de loucura, sempre

no limiar, como se os estados de consciência estivessem imbricados de tal forma

que um não existiria sem o outro. O dia não existe sem a noite. Ela fala no solar,

mas a escuridão para ela adquire um sentido mais enigmático que a idéia bíblica

das trevas, do perverso e do sombrio. Do mesmo modo, o sagrado aparece em

Hilst como algo entrelaçado ao profano. O lugar de ambos é no corpo. O corpo

entendido como um corpo genérico, humano, animal ou vegetal, por onde corre

sangue ou seiva, dor e prazer. A dimensão sagrada é algo que está no “de dentro”,

naquilo que não se pode ver a olho nu. Sua curiosidade a leva a dissecar esse

corpo em busca de uma essência sagrada, e a esse corpo dirige toda a sua angústia

frente às mazelas do mundo.

E só dar dois três passos, ver o olho do cavalo, ver o olho da vaca, ver

o homem meu Deus, o homem, esse abismo mais fundo que me come,

meu Deus a memória tristíssima de tanta inocência, como eu gostaria

de arrancar a minha pele sem medo e mostrar o meu todo para o outro.

Ele dizia meu Deus, assim com esse corpo, assim com esse sangue,

44

Artaud, A. “Van Gogh. O Suicidado da Sociedade”. In: “Linguagem e vida”. Org. Jacó

Guinsburg, Sílvia Fernandes Telesi e Antonio Mercado Neto. 4ª Reimpressão da 1ª edição de 1995

– São Paulo, Perspectiva, 2008. P-267 45

Hilst, H. “O Unicórnio”. In: “Fluxo Floema”. São Paulo: Globo, 2003. P-162/163

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37

AHHH, eu existo até onde, eu existo até... até... até que grande muro

eu existo?46

A autora fala em Deus, acredita e desacredita, pergunta, questiona, duvida,

reafirma. Testa os limites desse limiar entre o sagrado e o profano, e traz algo do

sagrado para o carnal, para o proibido, para o íntimo. Alcir Pécora aponta “A

obscena senhora D” como a obra em que os grandes temas da autora confluem

para um maior equilíbrio.

Estão aí (...) os votos amorosos, sinceros, terrenamente sensuais, até

os extremos dramáticos de despojamento em favor do outro pelo bem

dele mesmo; as inquietações metafísicas mais sanguíneas e

arrebatadas, como as dúvidas teológicas mais rigorosamente

inteligentes, nascidas muitas vezes como questões do corpo, mas

perdidas já de seu caminho, desviadas de todo hábito, pisando num

terreno em que o método aporético tanto pode ser loucura, quanto

ciência.47

O corpo é celebrado em sua obra como algo intimamente conectado com

o universo e o meio ambiente. Em algumas obras, o corpo humano

metamorfoseia-se no de um animal, como no caso do personagem que se

transforma em unicórnio em um dos contos de Fluxo-Floema. Homens-lobo

reaparecem em algumas de suas obras. Uma mulher é penetrada pela cauda de

uma serpente, homens ganham asas, asas se quebram. Homens confundem-se com

porcos. Há em Hilst uma profunda identificação entre o humano e o animal, o

animal no humano, o desumano no humano, o humano no animal. O corpo fareja,

rumina, grunhe, ruge e devora em seus estados de espírito que titubeiam frente aos

acontecimentos. Essa textura líquida não é uma exclusividade do corpo humano,

ela é uma força que funde o sangue e a seiva, a pele e as encostas crispadas por

onde correm os afetos, as cavidades das vísceras e as cavernas, os vulcões por

onde corre o deleite, os pulmões por onde respira o universo. Está tudo misturado,

como em um elixir que é ao mesmo tempo veneno, que se desfaz em gotas

infinitas, assumindo as mais incríveis formas: é dessa matéria que é feito o

mundo. Matéria transcendente. O sagrado se encarna, o profano cria asas, depois

tudo se dissolve e o ciclo recomeça.

Todo o seu corpo se tornara neblina. Só seus olhos brilhavam, como

se, modificados, vivessem só por si mesmos; olhos sem corpo; olhos

cinza-azulados, vendo alguma coisa invisível. Movendo-se no ar

46

Hilst, H. “Fluxo”. In: Fluxo-Floema”. São Paulo: Globo, 2003. P-45. 47

Pécora, A. “Nota do organizador”. In: A obscena senhora D”. São Paulo, Globo, 2001. P-12.

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nublado e irradiando seu brilho, de modo a serem na atmosfera

sepulcral – havia névoas na janela e, nas lâmpadas, halos de bruma –

como luzes dançantes, como fogos-fátuos que se movem sobre as

campas dos dormintes inquietos, segundo dizem, nos cemitérios. Uma

idéia absurda? Mera fantasia. Entretanto, já que nada há que não

deixe algum resíduo, e como a memória afinal é uma luz que dança na

mente quando a realidade é sepulta, por que não haveriam de ser os

olhos, que ali brilhavam tanto ao mover-se, o fantasma de uma

família, de uma era, de uma civilização que dança sobre o túmulo?

(Virginia Woolf) 48

A fantasia desempenha um papel furtivo no imaginário da autora, que se

entrega a seus devaneios como quem se atira do cume de um rochedo com a

certeza de que pode voar. Ela voa alto, com suas asas de águia. Quando mergulha,

cria escamas. Tudo o que faz parte de seu pequeno paraíso recluso, a Casa do Sol,

é ingrediente para o seu caldeirão inventivo, onde a magia sorve as pequenas

gotas cintilantes, que borbulham em sua mente fértil. O resultado ela joga no

papel. A linguagem vem do corpo, corpo habitado pelos gritos e pelos silêncios do

mundo, como se pudesse reter o universo dentro de si.

O corpo é levado ao extremo do grotesco, contornado por hipérboles,

dotado de orifícios por onde saem excrementos. Esse corpo é capaz de vomitar

palavras, sentimentos. Desbocada, Hilst não hesita em falar palavras obscenas, e

evocar a sexualidade de maneira explícita, gozando de detalhes escatológicos.

Essa fase grotesca encontra sua expressão máxima com a trilogia obscena no

início da década de 1990, composta por O caderno rosa de Lori Lamby, Contos

d’escárnio e textos grotescos e Cartas de um sedutor. Segundo Mikhail Bakhtin:

...A lógica artística da imagem grotesca ignora a superfície do corpo e

ocupa-se apenas das saídas, excrescências, rebentos e orifícios, isto é,

unicamente daquilo que faz atravessar os limites do corpo e introduz

ao fundo desse corpo. Montanhas e abismos, tal é o relevo do corpo

grotesco, ou, para empregar a linguagem arquitetural, torres e

subterrâneos. (...) O grotesco ignora a superfície sem falha que fecha e

limita o corpo, fazendo dele um fenômeno isolado e acabado.

Também, a imagem grotesca mostra a fisionomia não apenas externa,

mas ainda interna do corpo: sangue, entranhas, coração e outros

órgãos. Muitas vezes, ainda, as fisionomias interna e externa fundem-

se numa única imagem.49

48

Woolf, V. “A Caçada”. In: “Contos Completos / Virginia Woolf”. Tradução: Leonardo Fróes,

São Paulo: Cosac Naify, 2a Reimpressão, 2007. P-379

49

Bakhtin, M. “A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François

Rabelais”. Tradução: Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade de

Brasília, 2008. P-277/278.

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Natureza e corpo estão imbricados, e o sangue que corre em nossas

veias pode se desdobrar no fluxo de um rio nascente. Para Bakhtin a ênfase na

excrescência e na cavidade sugere a idéia cíclica de renovação, presente nos

tempos da natureza. O mesmo também alude à própria idéia de concepção, tanto

no ato consumado, como nos atributos fisiológicos que tornam possível o coito

sexual levar a cabo sua função vital. Vitalidade e vida inscrevem-se em uma

dimensão cósmica e universal. Segundo o autor, o corpo grotesco engendra

elementos cósmicos tais como:

Terra, água, fogo, ar; ele liga-se diretamente ao sol e aos astros,

contém os signos do zodíaco, reflete a hierarquia cósmica; esse corpo

pode misturar-se a diversos fenômenos da natureza: montanhas, rios

mares, ilhas e continentes, e pode também encher todo o universo.50

Embora haja uma fase em que os aspectos grotescos adquirem uma

dimensão mais enfática na obra de Hilst, traços desse corpo grotesco acompanham

a sua escrita, ainda que a linguagem não permaneça a mesma, seguindo o

emaranhado complexo de uma escritora que se dedicou à poesia, à prosa, a contos

e crônicas sobre diferentes temas. O corpo é mais que um tema, ele é parte

constitutiva de sua escrita: tudo em Hilst passa pelo corpo. Ela disseca o corpo,

corta a carne e abre para ver como é “o de dentro”:

Vestíbulo do nada. Até... onde está a lacuna. Vê, apalpa. A fronte.

Chega até o osso. Depois a matéria quente, o vivo. Pega os

instrumentos, a faca e abre. Koyo, não entendes, vestíbulo do nada, eu

disse, aí não há mais dor, aprende na minha fronte o que

desaprendeste. Abre. Primeiro a primeira, incisão mais funda, depois a

segunda, pensa: não me importo, estou cortando o que não conheço.

Koyo, o que digo é impreciso, não é, não anotes, tudo está para dizer,

e se eu digo emudeci, nada do que eu digo estou dizendo.51

O corpo também é feito de silêncios. Nem tudo é expresso em palavras,

palavras podem ser supérfluas ou imprecisas. Nessa escrita aberta e corporificada,

Hilst busca ressaltar o espaço do interstício, dois vazios necessários, onde tudo se

cala. Se estamos tão intimamente ligados ao cosmos, precisamos aprender a sentir

o universo, expandindo os nossos sentidos para além da fala. Pegar na terra, senti-

50

Id. Ibidem. P-278. 51

“Floema”. In: Fluxo-Floema”. São Paulo: Globo, 2003. P-225.

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la entre os dedos, aspirar o perfume que se exala dos crisântemos, saborear as

tâmaras, estender o corpo sob o sol, respirar, não pensar em nada.

Por intuições e por sofismas

O coração fica sabendo

Sobre o Nada – “Nada”é a força

Que renova o mundo.

(Emily Dickinson) 52

52

Dickinson, Emily. “Alguns Poemas / Emily Dickinson”. Tradução: José Lira. São Paulo:

Iluminuras, 2008. P-99

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Capítulo III

A LÍRICA DE HILST INVADE O PALCO

O lírico, enquanto voz do íntimo, do subjetivo, da emoção e do

irracional, enquanto fala do eu do poeta, também toma sua parte nessa

penetração, quando o dramático ideal do teatro cede espaço às vozes

do não-lógico, da sugestão e do sentimento. (...) O lírico no drama é,

muitas vezes, a voz da impotência humana. Outras vezes é a expressão

de uma profunda perplexidade diante de um deus absurdo, ou do

Absurdo simplesmente como tal, ou de uma das constantes do

Absurdo, a incomunicação. 53

Assim a dramaturga Renata Pallottini trata o teatro de Hilda Hilst como

uma abordagem lírica no campo da dramaturgia, escrita por uma poeta por

excelência. Quando a poesia lírica invade o palco, as torrentes de significações

tramitam de personagem para personagem, colocando para fora algo que vem de

dentro: desejos, anseios, angústias, medos, silêncios. O lírico traz para a cena a

expressão de uma impossibilidade. A ação encontra uma barreira, um interdito

que coíbe sua realização. A palavra entra em descompasso com o corpo de

personagens atravessados por certa angústia inerente aos limites do que é

humanamente possível. Algo que grita de dentro, um anseio por desafiar as leis da

gravidade, algo que almeja transcender o humano e ir além do que se acredita real.

Essa vontade de transcendência opera por uma certa metafísica, como uma força

que vem de fora e acima do humano, algo que se busca no palco, e que gera um

sentimento de paralisia. Seus personagens, como afirma Pallottini, lançam-se

“desesperadamente contra o muro da sua própria impotência”, assim como os

personagens de Samuel Beckett, que passam dias a se torturar numa ansiosa

espera pelo Sr. Godot, esse alguém que pode ser que venha, pode ser que não

venha nunca. O Absurdo não precisa ser algo de grandioso, mas exige um

deslocamento no que ordinariamente se vive no cotidiano, uma ruptura com a

normalidade aparente.

ESTRAGON: Enquanto esperamos, vamos tratar de conversar com

calma, já que calados não conseguimos ficar.

53

Pallottini, R. “Posfácio do Teatro”; In: Hilst, H. “Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. P-

494/ 495

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VLADIMIR: É verdade. Somos inesgotáveis.

ESTRAGON: Para não pensar.

VLADIMIR: Temos nossas desculpas.

ESTRAGON: Para não ouvir.

VLADIMIR: Temos nossas razões.

ESTRAGON: Todas as vozes mortas.

VLADIMIR: Um rumor de asas.

ESTRAGON: De folhas. (...)

Longo silêncio.

VLADIMIR: (Angustiado) Diga alguma coisa.

ESTRAGON: Estou tentando.

VLADIMIR: (Angustiado) Diga qualquer coisa!

ESTRAGON: O que vamos fazer agora?

VLADIMIR: Estamos esperando Godot. 54

Os personagens de Hilda Hilst são construídos com cuidado, como

expressão de sentimentos, desprovidos de personalidades definidas e estruturadas

em um sentido lógico. Os fluxos de vontade criam os personagens, subjetivados

pelas vozes que atravessam a poeta. A escrita de Hilst persegue o que é limítrofe,

o que está por um triz de explodir em mil pedacinhos, como um momento

apocalíptico, mas que não se encontra do lado de fora, e sim no interior de seus

personagens. A dramaturgia de Hilda Hilst fala das crises que interpelam as

tramas; crises estas que estão inscritas no seio de uma grande crise, que é a crise

da poeta. Fala de uma busca por Deus. A escrita de Hilst se embebeda de dor e

prazer nessa busca labiríntica, que é capaz de dar mil voltas, mergulhos e

sobrevoos. Para ela, Deus não é uma metáfora, é essa força estranha que pertence

à ordem do enigmático, de um amor humanamente impossível. Hilst toma todas as

liberdades na formulação de seus enredos, levando os recursos líricos ao ápice.

Ela mistura poesia e prosa, e tempera suas tramas com elementos épicos, que se

dissolvem em uma narrativa mais livre, como no leito de um rio em movimento.

John Dewey vê na experiência poética um fluxo singular:

54

Beckett, S. “Esperando Godot”. Tradução: Fábio de Sousa Andrade. São Paulo: Cosac Naify,

2005. P-120/122.

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Um rio, como algo distinto de um lago, flui. Mas seu fluxo dá a suas

partes sucessivas uma clareza e interesse maiores do que os existentes

nas partes homogêneas de um lago. O todo duradouro se diversifica

em fases sucessivas, que são ênfases de suas cores variadas. Por causa

da fusão contínua, não há buracos, junções mecânicas nem centros

mortos quando temos uma experiência singular. Há pausas, lugares de

repouso, mas eles pontuam e definem a qualidade do movimento. 55

Seu movimento pode ser tempestuoso, a depender dos ventos que

assopram da nau à proa. A dramaturgia de Hilst surge em meio a um redemoinho

avassalador, num período em que o mundo externo era sentido à flor da pele. Foi

quando o Estado colocou suas garras para fora, rasgando o invólucro de uma

aparente normalidade, que primou nos anos que sucederam ao golpe militar de

1964. O teatro responde a um grito interno que irrompe no intuito de dizer o

indizível, para fora e para além do papel. Se o corpo ocupa um lugar central em

sua escrita poética, na dramaturgia o corpo encarna os seus anseios, e aciona

outras formas de comunicação que literalmente saem do papel, abrangendo gesto,

voz, espaço, luz, sombra e silêncio.

“Nós vivemos nu mundo e que as pessoas quere se comunicar de uma

forma urgente e terrível. Comigo aconteceu também isso. Só a poesia já não me

bastava (...) Então procurei o Teatro.”56

Sua declaração atesta essa necessidade de

comunicar isso que o Estado procura silenciar, algo que urge da ordem de seu

tempo, algo que quer desesperadamente ser posto para fora. A barbárie humana é

um tema bastante tratado e suas peças, mas sempre como um personagem sem

corpo, algo que se faz presente mais pela invocação do medo que por seus

capatazes. Esse teatro alegórico recria seus mais recônditos desejos

personificados, mas cuja ação é irrealizável. Não há panacéias. As asas se

quebram, a alma se dilacera, mas há sempre uma força que persiste no limiar.

Uma voz que escapa, alguém que indaga, um estranhamento face ao Absurdo. É

disso que trata a dramaturgia de Hilda Hilst.

A dificuldade reside em dar corpo a esses personagens alegóricos. As

imagens que o texto evoca não são de simples compreensão, e sua abstração

característica de uma linguagem mais poética que cênica, apresenta empecilhos

55

Dewey, John. “Arte como experiência”. Tradução: Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes,

2010. P-111.

56 Reportagem de Regina Helena para o Correio da Manhã (sucursal de São Paulo), 27/12/1969.

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para sua realização. O fato é que suas peças foram poucas vezes levadas ao palco.

Isso não a impediu de ser elogiada por Anatol Rosenfeld, cujas expectativas foram

superadas ao assistir a O Rato no Muro e O Visitante, ambos encenados sob a

direção de Teresinha Aguiar, no Teatro da Escola de Artes Dramáticas da

Universidade de São Paulo (EAD / USP). De acordo com Elza Cunha de

Vincenzo:

Uma dificuldade de interpretação que provém não só da linguagem de

teor intensamente poético (a mesma, aliás, de sua prosa), como do tipo

de universo ficcional que elabora, da complexidade das ideias e do “

sentimento do mundo” que exprime naquela linguagem, enfim, da

própria qualidade quase lírica da construção dramática que adota. Na

realidade uma construção livre, de onde praticamente desapareceram

as balizas do tempo, em que o espaço é no mais das vezes o símbolo

de certo universo e o lugar e que se movimentam personagens

tipificadas, vivendo intensas experiências de pensamento e de

emoção.57

A linguagem complexa e sofisticada em sentido poético abre espaço à

possibilidade de uma interpretação criativa, cuja imagética pode ser explorada de

diversas formas. As temáticas de teatro tratam das questões de seu tempo: a

barbárie, a impossibilidade do amor, os muros que nos cerceiam, uma

desconfiança frente ao avanço de uma ciência que serve de matriz explicativa para

tudo e indagações sobre o que é humanamente possível. A dramaturgia de Hilda

Hilst é escrita no terreno das incertezas, onde a dúvida cumpre um papel central.

Perguntar é perigoso, perguntar é um elemento desestruturante e está na base do

estranhamento das situações absurdas que ela recria em suas peças.

As rubricas que precedem cada peça trazem à baila a relação entre

cenário, figurino e a construção afetiva dos personagens, no intuito de conferir

maior fluidez à peça, sem preocupação de tecer algum tipo de nexo, mas para que

o personagem acompanhe os fluxos e as intensidades que atravessam os enredos.

A autora sugere impressões e sentimentos que devem incidir sobre a espacialidade

cênica. Além de rubricas, ela inclui desenhos, imagens que situam o palco em

relação à plateia. O apelo imagético procura exprimir a espacialidade por onde

circulam os afetos e as angústias no centro da trama, estabelecendo linhas

fronteiriças, que ora se alargam, ora se estreitam, aproximando ou distanciando os

personagens em cena, e sua relação com o público. O palco pode ser o espaço

57

Vincenzo, E. C. “Um Teatro de mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro

contemporâneo”. São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. P-35.

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intimista do lar, o encolhimento claustrofóbico de uma cela, o misterioso e

inóspito laboratório de experimentos científicos, o arcaico e empoeirado tribunal

ou adquire dimensões externas: a praça pública, o átrio do colégio, a sacada papal.

Os ambientes que a poeta recria fazem alusões a um paralelismo entre

outros tempos históricos e situações que simbolizam algo vivido de dentro para

fora, sentimentos de alhures que se remetem ao momento atual através de uma

simbologia inerente à ordem do sensível. Por esse fio condutor corre um grito

silenciado, onde a poeta assume sua voz mais política. Para falar da ditadura, ela

volta no tempo e cria um paralelismo com o Holocausto, ou pendura cadáveres

nos postes. Sons de rajadas de metralhadora irrompem o silêncio em uma longa e

extenuante sessão no julgamento do guerrilheiro, provocando um estranhamento

reflexivo, pois não fica claro de quem são as armas: da justiça ou dos justiceiros.

Estátuas de santos ou caudilhos, algumas brancas, outras desgastadas pelo tempo,

um grande tabuleiro de xadrez, um muro gigantesco, entre outros recursos,

veiculam suas críticas, que se dirigem ao que vivencia em seu tempo sem a

necessidade de palavras. Algumas palavras são supérfluas.

Esse paralelismo temático se dá, em parte pela necessidade de se esquivar

da censura vigente para se referir à ditadura e, por outro lado, é expressão da

própria linguagem poética da autora, que se desdobra em metáforas para dar

forma aos seus anseios. A dimensão política em Hilst se volta para dentro, e busca

nos mais íntimos recônditos da alma uma relação com o mundo externo, ou seja,

como o de fora é sentido no íntimo. Para tornar possível esse mergulho na

intimidade, Hilst recorre a alguns temas autobiográficos, como no caso de A

Possessa, onde a trama ocorre em um pensionato de freiras, e a protagonista é

uma menina perseguida por perguntar demais. Algo semelhante fora vivenciado

em seu passado, nos anos em que a autora cursara o ginasial no internato de

freiras da Escola Santa Marcelina. Embora esta seja a forma mais direta de

identificação entre a vivência pessoal e a configuração temática, ecos de seus

anseios se deslocam para dar vida aos afetos de seus personagens. Pelo

deslocamento, a poesia encontra sua dimensão prosaica, poemas se convertem em

voz, corpo, palavras e movimento, e adquirem espacialidade. Pelo deslocamento,

Hilda traz para o palco aquilo que é de sua vida, e de como ela se relaciona com o

cosmo que a transcende. Os personagens transitam de um para o outro, em um

campo abstrato, onde desejos e sentimentos ultrapassam as definições que os

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personificam, apresentando-os, antes, como metáforas desses fluxos. O verbo não

é entender, mas sentir.

De acordo com a leitura de Éder Rodrigues, a autora:

Compartilha de uma tessitura de plano simbólico quando recorre não a

personagens estruturados, facilmente nomeados e de realística

inserção no meio. No teatro hilstiano os personagens muitas vezes

nem são nomeados, funcionam no aspecto simbólico situacional de

onde se encontram ou da cíclica rede de significados que performam

no decorrer da ação. Os aspectos simbólicos operam ainda na

estratégia que a autora utiliza para falar de um sistema externo a partir

do interno, do micro para alcançar o macro onde se insere e pelo qual

responde enquanto artista enunciadora. 58

Essa ordem do simbólico exige um trabalho mais atento, que se atenha aos

fluxos sensitivos que atravessam o pensamento da autora, tramitando de

personagem para personagem, no intuito de acompanhar seus movimentos vitais.

É preciso percorrer a tessitura dessa rede de significados, desatando os nós que se

entrelaçam na complexidade do seu imaginário inventivo. Para entender suas

sutilezas, seria interessante aproximar de seu teatro os conteúdos de sua obra

poética.

No próximo capítulo pretendo decodificar sua linguagem labiríntica, mas

sem a pretensão de desvendar seus mistérios. Limito-me a pontuar lugares-

comuns em sua cartografia afetiva. Interessa preservar sua estrutura aberta,

ampliando o leque de significados que podem estar implícitos na estrutura

narrativa, nos diálogos entre os personagens e nas entrelinhas. Mapear a

transitoriedade, a partir de uma análise sensitiva, entre as vozes, os ecos e os

silêncios que tramitam em seus personagens pitorescos. Como se distribuem os

corpos nos espaços cênicos recriados pela autora? Pretendo lançar um olhar mais

atento aos deslocamentos, aos movimentos, e aos afetos que circulam por entre os

corpos. De quais corpos estamos falando? Que função eles desempenham? Quais

os gritos, os barulhos, os ruídos, os silêncios, quais vozes habitam esses corpos?

Cabe localizar os interditos e os estímulos que atravessam os corpos dos

personagens. Que política governa esses corpos?

58

Rodrigues, E. “O Teatro Performático de Hilda Hilst”. Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas

Gerais (UFMG), como requisito para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientadora: Prof.

Dra. Sara Del Carmen Rojo de La Rosa, 2010. P-61

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Das oito peças escritas pela autora, selecionei duas: a primeira é a A

Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção, concluída em 1967. É a

primeira peça teatral escrita por Hilst. A segunda é O Verdugo, a penúltima peça

teatral de sua carreira, escrita em 1969. Neste mesmo ano, ela é consagrada com

Prêmio Anchieta de Dramaturgia. Enquanto a primeira peça inaugura o

deslocamento de sua escrita poética para o engajamento político através do teatro,

a segunda alcança o clímax de sua carreira como dramaturga, com um texto

cenicamente completo. Ambas as peças tramitam em torno da liberdade, temática

recorrente em toda a sua obra teatral, e bastante relevante em sua poesia. Em

ambas, os caminhos de libertação percorridos pelas protagonistas seguem direções

radicalmente destoantes, mas abordam duas facetas de um mesmo problema: a

opressão da mulher. Este tema aparece em ambas as peças, e enfatiza corpos

dilacerados, seja pelas mazelas cotidianas, seja pela exceção que dita a regra.

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Capítulo IV

A EPOPÉIA DE AMÉRICA E A BEATITUDE DA VERDADE

A peça se passa em um internato de freiras. América é a jovem no centro

da trama, acusada de formular perguntas petulantes, de compartilhar seus sonhos

mirabolantes e inquietar corações. Tudo começa pelas perguntas a que as freiras

são incapazes de responder, por partir de outras premissas que não as verdades

petrificadas pelo Cristianismo. O lugar de quem pergunta é outro. Pelo amor à

ciência, ela questiona os dogmas da Igreja. Pelo amor ao progresso, ela questiona

a ordem das coisas. Seria preciso um deslocamento, de um vértice a outro, do

essencialismo ao logocentrismo, a fé se orienta para um Outro Deus, capaz de

explicar o mundo e dar respostas às perguntas da jovem América.

A primeira cena se inaugura com uma conversa entre América e suas

postulantes, em que América, em tom professoral, discorre sobre a saga de um

herói, cujo nome não parece ter para Hilst a menor importância. Um herói

genérico, que manda matar algumas pessoas, mas frente a um perigo de vida,

sempre uma situação limite, questionada por uma de suas postulantes mais astuta.

O herói que tinha uma tarefa, uma idéia grandiosa, um amor de herói.

In golden light you flow. Firm density, so light. Before the separation

of earth and sky, sea and continents, light and dark. A mixture of

rock,, fire, water, ether. Where violence can still espouse gentleness.

The heroic body overflowing with tenderness. Its weapons still those

of a native innocence. Which blurs all Sharp distinctions and brings

all divisions back to the original nuptials. An alliance in which the

opposing parties unite in an intense intermingling.

(Luce Irigaray) 59

59

“Sob luz de ouro você flui. Densidade firme, tão leve. Antes da separação entre terra e céu, mar

e continentes, luz e escuridão. Uma mistura de pedra, fogo, água, éter. Onde a violência ainda

possa desposar a docilidade. O corpo heroico a transbordar de ternura. Suas armas preservam uma

inocência nativa. Que borram todas as distinções definidas e restituem todas as divisões às suas

núpcias originiais. Uma aliança na qual os lados opostos se unificam em uma mistura intensa.”

Tradução livre. IRIGARAY, L. “Elemental Passions”. Tradução francês-inglês: Joanne Collie e

Judith Still. Nova Yorl, Routledge, 1992. P-102.

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Preocupado e ao mesmo tempo interessado em suas histórias, o

Monsenhor resolve recebê-la em seu escritório. Diferente das freiras, que

reprovam diretamente sua conduta, Monsenhor desempenha um papel mais

ambíguo: ele a adverte, recomendando-lhe a ter cautela, mas considera prudente

ouvir aquilo que as freiras pareciam incapazes de compreender. Ele quer ouvir

suas histórias, e ela as narra de bom grado. Ela fala de máquinas pequeninas e

ruidosas, que ficavam dentro de caixinhas de matéria brilhante. Seus nomes eram

Eta e Dzeta. Elas se alimentavam de luz e percorriam sempre o mesmo caminho

no interior de suas respectivas caixas. Elas viviam sob a tutela de um Vigia, que

acompanhava seus movimentos dia e noite. Até que um dia elas oscilaram.

Gradativamente, passaram a modificar seus percursos. Seus invólucros acabaram

por ludibriar o Vigia, que deixara de enxergar aquilo que as impelia a proceder

sempre à mesma maneira, o que está dentro, seu núcleo de ação. Etza e Dzeta

eram resultado de pesquisas tecnológicas de ponta, produto de um cálculo

racional. Mesmo assim, falharam. O mistério permanece, mas América encontra

resposta para todas as perguntas do Monsenhor, que parece fascinado pela

narrativa. Ele acredita que América tem potencial para abrir caminho para algo

novo, uma reformulação que os lançaria para um futuro promissor. Ela precisa ser

provada.

Espero o amanhã que cante

El nombre del hombre muerto

Não sejam palavras tristes

Soy loco por ti de amores

Um poema ainda existe

Com palmeiras, com trincheiras

Canções de guerra

Quem sabe canções do mar

Ay hasta te comover (...)

Soy loco por ti América

(Capinam / Gilberto Gil) 60

O plano escurece e a comunidade passa por uma súbita transformação: Eta

e Dzeta ganham vida e forma e correm no interior de suas caixinhas. A irmã

superintendente perde o hábito e veste-se com uma indumentária simples. O

sistema criado na parábola de América é posto em prática tal qual ela havia

60

“Soy loco por America”. Composição: Capinam, Gilberto Gil. Cantado por Caetano Veloso.

Letra disponível no sítio eletrônico: http://letras.terra.com.br/caetano-veloso/76612/

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pensado, embora seus efeitos não correspondam às expectativas: uma sociedade

que detém minucioso controle sobre os movimentos de cada um. Cooperadores

que integram um sistema aparentemente perfeito e altamente disciplinado, sem

lugar para o erro ou o mistério. O grito de América substituíra o antigo Verbo

divino: estava instaurada a Verdade da ciência, o novo Deus. Para Nietzsche, ao

ocupar o lugar até então ocupado pela ascese Cristã, a ciência reproduz seus

artífices de fé, que apresentam certezas monolíticas.

O ideal ascético tem uma finalidade, uma meta (– e houve jamais um

sistema de interpretação mais elaborado?); ele não se submete a poder

algum, acredita, isto sim, na sua primazia perante qualquer poder, na

sua incondicional distância hierárquica em relação a qualquer poder –

ele acredita que nada existe com poder na Terra que não receba

somente dele um sentido, um valor, um direito à existência, como

instrumento para a sua obra, como meio e caminho para a sua meta,

para uma meta... Esta ciência moderna que (...) crê apenas em si

mesma, evidentemente possui a coragem, a vontade de ser ela mesma,

e até agora saiu-se bastante bem sem Deus, sem Além e sem virtudes

negadoras. 61

América também mudara: suas paixões se calaram, seu sorriso se desfez,

ao passo que fora tomada por certo assombro, ao ver que seu sonho se tornara um

pesadelo. A Superintendente quer agradá-la: ela é útil ao novo sistema. América

solicita dois livros O primeiro conta a história de um homem que se transforma

em inseto (Kafka: “A Metamorfose”), para o espanto de suas postulantes, que

assim como a Superintendente, consideram-no inútil. Sob a chave da mais

absoluta racionalidade, quem daria crédito (em sua acepção útil) a um autor capaz

de escrever um livro assim:

Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa,

encontrou-se em uma cama metamorfoseado num inseto monstruoso.

Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, quando

levantou um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom,

dividido em segmentos arqueados, sobre o qual a coberta, prestes a

deslizar de vez, apenas se mantinha com dificuldade. Suas muitas

pernas, lamentavelmente finas em comparação com o volume do resto

do corpo, vibravam desamparadas ante seus olhos. (...) Fechou os

olhos afim de não precisar ver mais suas pernas se debatendo, e

apenas desistiu quando passou a sentir no lado uma dor leve e

sombria, que jamais havia sentido. “Oh Deus”, pensou ele, “que

profissão extenuante que fui escolher!...” 62

61

NIETZSCHE, F. “Genealogia da Moral: uma Polêmica”. Tradução: Paulo César de Souza. São

Paulo: Companhia das Letras, 2009. Pp- 126 / 127. 62

KAFKA, F. “A Metamorfose”. Tradução: Marcelo Backes. Porto Alegre: LP&M, 2008. Pp- 12

e 15.

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O segundo livro conta a história do homem que ressuscitou. A

superintendente se faz de desentendida, e questiona o absurdo da ressurreição de

Cristo, filho de uma Virgem (virgem?). Metamorfoses e ressurreições são

consideradas heresias para o novo sistema. Tida como subversiva à luz desse

sistema, por invocar transformações e ressurreições que não podem ser explicadas

pela ciência, América é punida. Suas próprias postulantes, com o auxílio da

Superintendente, vestem-na com um camisolão cuja abertura é demasiado

pequena para passar sua cabeça. Sem a cabeça visível, América declara seu luto,

uma lamúria que agoniza um mundo apartado de seu sentir, de olhos que não mais

veem, de ouvidos que não mais ouvem. Sob a ótica desse novo sistema, o

Monsenhor passa a ser o Inquisidor: o mesmo personagem, mas sem as vestes

sacerdotais. Ele se assemelha à figura de um psicanalista, que indaga sobre sua

relação com a família em um passado remoto, como quem pretende arrancar uma

confissão. O corpo de América é fadado à inspeção e atravessado por interditos

que têm por meta torná-la dócil, submissa. Michel Foucault lança luz sobre esse

processo, cujo fim último é tornar o corpo economicamente útil ao sistema de

produção:

O corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e

corpo submisso. Essa submissão não é obtida só pelos instrumentos da

violência ou da ideologia; pode muito bem ser direta, física, usar força

contra a força, agir sobre elementos materiais sem no entanto ser

violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode

ser sutil, não fazer uso de armas nem do terror, e no entanto continua a

ser de ordem física. Quer dizer que pode haver um “saber” do corpo

que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e um controle

de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las: esse saber e

esse controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia política

do corpo. 63

América resiste. A nova tecnologia ainda não se apoderara de seu íntimo,

cuja opacidade suscita receios. Seria preciso aprimorar os dispositivos de controle

sobre a personagem, que ainda não se deixara dobrar. Mas havia esperanças, pois

nem todos os recursos tinham sido investidos. América é então levada para o

tribunal.

Estes teus olhos de lince

espiaram algo em mim,

de mim algo latente arrancaram,

63

FOUCAULT, M. “Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão”. Tradução: Ligia M. Pondé Vassalo.

Petrópolis, 1983. P-28.

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algo nascido do silêncio,

opressivo e tão difícil de suportar

quanto o calor do meio-dia em Termez.

(Anna Akhmátova) 64

Em sua cadeira de réu, no centro da cena, América é ridicularizada pelo

Bispo e pelo Inquisidor, que incitam a divinização do Novo Deus: o Homem.

Estavam interessados em saber por que ela mudara sua conduta. Da primeira

tentativa de resposta de América, só se ouviam ruídos. A filósofa Luce Irigaray

trata da imposição do silêncio em um texto poético, que leva o título de Elemental

Passions (Paixões Elementares). Se lhes roubam as palavras, na expectativa de

que sejam conduzidas de acordo com uma determinada diretriz, ou linha de

pensamento, a resistência pode se apropriar do silêncio, tal como uma catedral ou

um santuário: lugar de recolhimento.

Was it your tongue in my mouth which forced me into speech? Was it

that blade between my lips which Drew forth floods of words to speak

of you? And, as you wanted words other than those already uttered,

words never yet imagined, unique in your tongue, to name you and

you alone, you kept on prying me open, further and further open.

Honing and sharpening your instrument, till it was almost

imperceptible, piercing further into my silence. Further into my flesh

were you not thus discovering the path of your being?65

O silêncio ou ruído inaudível, dura pouco. Ela finalmente diz que

entendera o mistério, o imponderável. Ela teria sido uma reformuladora, um

termômetro através do qual eles souberam o momento de agir. Ela volta atrás e se

arrepende de seu anseio tolo em procurar desvendar o onisciente, o onipresente.

Seus sinais de fé são considerados delirantes. Eles exigem que ela comprove

cientificamente a existência da divindade tríplice, com giz e um quadro-negro.

América vacila, mas acaba por desenhar um triângulo equilátero dentro de um

círculo. A esfera representaria o sol, as laterais do triângulo, asas. A esfera

arquetípica de unicidade, e o triângulo em seu interior, tríplice. O desenho de

64

AKHMÁTOVA, A. “Antologia Poética”. Tradução: Lauro Machado Coelho. Porto Alegre::

LP&M, 2009. P-105. 65

“Foi a sua língua na minha boca que me forçou à fala? Foi aquela lâmina entre meus lábios que

desatou jorros de palavras além daquelas já pronunciadas, palavras nunca imaginadas, únicas na

sua língua, para nomear a você, e só a você, você insistiu em me invadir, me manter aberta, mais e

mais aberta. Afia seu instrumento, até que se torne quase imperceptível, perfurando cada vez mais

a fundo em meu silêncio. Mais fundo na minha carne, você não estava a descobrir o caminho de

seu ser?” Tradução livre. IRIGARAY, L. “Elemental Passions”. Tradução francês-inglês: Joanne

Collie e Judith Still. Nova Yorl, Routledge, 1992. P-09.

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América seria a representação do infinito. Com um tom professoral, o Inquisidor

contesta sua teoria, acusando-a de autismo. Ele vale da equação T = C, C = T, ou

seja, “trabalhar para comer, comer para trabalhar” no interior da circunferência da

técnica: eis o novo essencialismo do novo sistema. O tribunal insinua aspirar à sua

salvação sob a magnificência desse novo Deus-Ciência.

Cada um ao nascer

traz sua dose de amor

mas os empregos,

o dinheiro,

tudo isso,

nos resseca o solo do coração.

(...) O amor floresce

floresce,

e depois desfolha.

(Vladímir Maiakóvski) 66

Sua sentença consiste em desempenhar o papel do vigilante de Eta e

Dzeta, que andavam oscilando gradativamente, com menor intensidade. O projeto

consistiria em reintegrar América, adaptando-a ao sistema que ela própria criara.

América reaparece adocicada, vestida de noiva. Em face à entrada de América,

uma das cooperadoras, tomada por um fascínio discursivo, põe-se a discorrer

sobre as maravilhas da técnica. Sua colega a escuta com afinco. Nenhuma das

cooperadoras percebeu que América agoniza e morre. A morte de América parece

o último suspiro de uma súplica por um mundo uno, que reintegre o mistério, o

imponderável, o sonho, a fantasia. Logo após sua morte, Eta e Dzeta passaram a

funcionar perfeitamente.

A ideia ganha corpo, tudo se inverte

O sonho que América compartilha com suas postulantes traz em seu cerne

uma utopia, não quanto à possibilidade de ser posto em prática, mas quanto aos

seus desdobramentos. Ela inverte a ordem, mas não a subverte, trocando a ascese

religiosa pela verdade da ciência. A utopia de América está em idealizar um

mundo perfeito, sem espaço para o erro ou o mistério. O messias é substituído

66

MAIAKÓVSKI, V. “Maiakóvski – Poemas”. Tradução: Haroldo de Campos. São Paulo:

Perspectiva, 1982.

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pela figura do revolucionário, do herói. Com ele viria a grande panaceia: “Depois

dele tudo mudou. Todos teriam todas as coisas que desejassem. Tudo. Não é

bom?” A pausa que vem a seguir desloca o significado da frase. Trata-se de uma

pausa reflexiva, que põe em relevo a interrogação. Será que isso é bom?

A dúvida dá o tom da primeira cena. Desconfiada, uma das postulantes

pondera: “Porque você disse que ele era bom, muito bom, mas ele mandou matar

os outros.” 67

O herói é posto à prova, mas os ossos do ofício obrigam-no a matar:

em sua saga, os fins justificam os meios. No campo de batalha, tudo vira uma

questão de vida ou morte. O tom apocalíptico de América apresenta dois campos

diametralmente opostos: o bem e o mal, o sagrado e o profano. Não deixa espaço

para a ambiguidade. Se existe o bem, suas ações se justificam, pois ele visa o bem

comum. Ela deposita sua fé na verdade, acreditando assim libertar sua mente. Ela

propaga sua palavra a fim de libertar as colegas, com base na afirmação da

verdade da ciência como um bem supremo. Mas o ideal ascético que ela coloca

em xeque é também o seu ideal. Ela inunda a alma desse ideal. Como dizia

Nietzsche, faz dele a “sua mais avançada falange de guerreiros e batedores, sua

mais insidiosa, delicada e inapreensível forma de sedução” 68

. A ciência, para

Nietzsche, não cria valores, tornando-se um valor enclausurado em si mesmo,

portanto inerte. Acrescenta:

[A relação da ciência] com o ideal ascético não é absolutamente

antagonística em si, ela antes representa, no essencial, a força

propulsora na configuração interna deste. Um exame mais atento

mostra que ela contradiz e combate não o ideal mesmo, mas o que

nele é exterior, revestimento, jogo de máscaras, seu ocasional

endurecimento, ressecamento, dogmatização – ela liberta nele a vida,

ao negar o que nele é exotérico. Ambos, ciência e ideal ascético,

acham-se no mesmo terreno (...) na mesma superstimação da

verdade.69

Porém de pouco ou a nada serviram as dúvidas das postulantes. A Ciência,

com toda a sua soberba, fala em nome de verdades inquestionáveis. Seria o

homem um pássaro grande, contente e vivo, como sugere uma das postulantes?

67

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 68

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 69

NIETZSCHE, F. “Genealogia da Moral: Uma Polêmica”. Tradução: Paulo César de Souza. São

Paulo: Companhia das Letras, 2009. P-131. Colchetes meus.

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Ou forte como uma pedra? As imagens elucidadas pelas postulantes abarcam

leituras poéticas do que viria a ser esse homem que habita os sonhos de América.

Até que uma das postulantes, em tom quase infantil, traduz a narrativa de América

em uma imagem interessante: “Como se a gente descobrisse de repente que existe

um outro lá dentro da gente” .70

A ideia seria como um embrião, que se

desenvolve dentro da gente, até ser lançada para o mundo. A metáfora da gestação

de uma ideia ressignifica a gestação de Jesus Cristo. O Evangelho segundo São

João exorta a criação pela Palavra divina:

No princípio era a Palavra e a palavra estava com Deus, e a palavra

era Deus. No princípio ela estava com Deus. Todas as coisas foram

feitas por meio dela e sem ela nada se fez do que foi feito. Nela estava

a vida, e a vida era a luz dos seres humanos. (...) E a Palavra se fez

carne e habitou entre nós; vimos a sua glória, a glória de Filho único

do Pai, cheio de graça e verdade.71

(Jo 1:1-1:4 e 1:12 -1:14)

Se a gestação de espírito pela Palavra divina deu luz ao Messias, como o

salvador, a gestação da ideia humana (“nenhuma é tão grande como essa”), dá luz

ao herói. Ambos portadores de glória, graça e verdade. A Palavra prevalece como

prenúncio do mito das origens. Em sua repetição mimética, o sentido se desloca e

celebra-se o rito iniciático, em que se revive a gestação de Cristo, não pelo

batismo, mas em sua acepção profana: o nascimento da ideia ascética por uma

verdade que se inscreve na ciência. A salvação pelo humano e no humano. Nasce

o herói. Mas que herói?

O filólogo clássico de origem húngara, Károly Kerényi situa o herói na

elipse do tempo histórico, mas suas trajetórias de vida os impelem para fora da

história, aproximando-os do tempo dos deuses. O aspecto mitológico que os

vincula aos deuses consiste nas virtudes e ações que faz deles protótipos. O autor

constata que “herói” não traduz exatamente o sentido do “heros” grego, mas por

falta de palavras, atém-se a esta. Em diversos mitos, há uma partilha entre deuses

e heróis de uma notável solidez, que se preserva na representação poética. Há uma

parte imutável, um núcleo inabalável inerente ao herói. Ele é dotado de unicidade

sólida e de uma irradiação ou esplendor que o autor denomina “glória do divino”,

por sua proporção sobre-humana.

70

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 71

JOÃO 1:1-1:4 e 1:12 -1:14. In: Bíblia Sagrada. Coordenação geral e tradução: Ludovico

Garmus. 1ª Edição. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2010. P-718

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A glória do divino, que recai sobre a figura do herói, combina-se

estranhamente com a sombra da mortalidade do que resulta um caráter

mitológico, o de um ser peculiar, a quem pertence, ao menos, uma

história em que a narrativa diz respeito exatamente àquele herói e a

nenhum outro. Se o caráter mitológico for substituído pelo caráter

puramente humano, as lendas dos heróis se tornarão histórias de

guerreiros, aos quais o epíteto de “herói” só se aplica no sentido

divorciado do culto, em que o usa Homero, mais ou menos o de

“nobre cavalheiro”; e assim a mitologia, incluindo a mitologia dos

heróis, encontra o seu limite. 72

Para Kerényi, seu centro imutável engendra a “glória do divino”, que por

sua vez é ofuscada pelas sombras do destino inexorável. Ao herói são ofertadas

libações, cujo sangue escorre em seu fosso sacrificial. Ao palco trágico, elevam-se

os heróis solenes, lendários, cujas virtudes provocam comoções na plateia.

O culto e o mito do herói contém o germe da Tragédia, não só no

tocante ao material, ao princípio formativo e sua significação, mas

também no que concerne ao tempo. A Tragédia Ática apega-se ao

culto e à mitologia dos heróis. Aqui não há rompimento, não há

abismo entre eles. Há, isso sim, uma continuidade ininterrupta de

atividade intelectual que, no que se refere à mitologia dos heróis, ao

culto do herói pela narrativa, já se pode denominar um ato de culto. A

Tragédia não é menos um ato de culto do que os procedimentos

sagrados da adoração dos heróis. 73

Há, porém, outras interpretações menos rigorosas do herói, deslocando

sentidos em uma acepção moderna. Para Joseph Campbell, a tragédia teria o

mesmo local de culto que o cinema e seus grandes personagens, que podem ou

não ter existido em um sentido histórico real. O cinema fabrica novos mitos,

porém bastante diversos dos que habitam as epopeias gregas. O herói é um “mito

vivo”, que opera como padrão mitológico em diversas camadas temporais,

multiplicando-se em diversas réplicas. Segundo Campbell:

Um herói lendário é normalmente o fundador de algo, o fundador de

uma nova era, de uma nova religião, uma nova cidade, uma nova

modalidade de vida. Para fundar algo novo, ele deve abandonar o

velho e partir em busca da ideia-semente, a ideia germinal que tenha a

potencialidade de fazer aflorar aquele algo novo. 74

72

KERÉNYI, K. “Os Heróis gregos”. São Paulo: Editora Cultrix, 1996. P-18. 73

KERÉNYI, K. “Os Heróis gregos”. São Paulo: Editora Cultrix, 1996. P-25.

74

CAMBELL, J. “O Poder do Mito”. Com Bill Moyers. Tradução: Carlos Felipe Moisés. São

Paulo: Palas Athena, 1990. P-145.

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Na concepção assinalada por Campbell o herói é consagrado por se

mostrar disposto a dar sua vida em nome de algo que esteja além de si mesmo. Ele

desbrava caminhos nunca dantes percorridos, enfrenta monstros funestos, salva

vidas e serve como um exemplo a seguir.

Não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de

todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido

em toda a sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá,

onde temíamos encontrar algo abominável, encontraremos um deus. E

lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde

imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa própria

existência. E lá, onde pensávamos estar sós, estaremos na companhia

do mundo todo.75

Para o filósofo búlgaro Tvetan Todorov76

, a figura do herói compreende a

vida e a morte. Todorov lança luz sobre o culto ao herói socialmente construído, que

reverbera nas escolas, nos locais de trabalho, nas mídias, e em suma, no espaço público.

Trata-se do herói viril, o herói que sente coragem e não se dobra pelo medo. O herói que

“entra pra história” pela narrativa fantástica do ato heroico. Esse herói está presente entre

os algozes e as vítimas. Seu combate e sua ação são orientados em prol de uma ideia que

está além dos indivíduos. Ao designar alguém por herói, seus fiéis servidores curvam-se à

sua liderança, alimentando uma confiança irrestrita em torno de sua figura.

Eu não sou besta pra tirar onda de herói

Sou vacinado, eu sou cowboy

Cowboy fora da lei

Durango Kid só existe no gibi

E quem quiser que fique aqui

Entrar pra história é com vocês!

(Raul Seixas)77

Seguindo o modelo espartano, a coragem é ensinada pela dor. Aprende-se a

resistir. De acordo com o psicanalista Christophe Dejours: “O aprendizado da coragem

passaria (...) pelo aprendizado da submissão voluntária e da cumplicidade com os que

exercem a violência, mesmo sob pretexto ‘didático’!78

” A violência precisa de uma

justificativa, calcada na ideia de virtude. Os heróis devem estar aptos a infligir violência

75

CAMBELL, J. “O Poder do Mito”. Com Bill Moyers. Tradução: Carlos Felipe Moisés. São

Paulo: Palas Athena, 1990. P-131. 76

TODOROV, Tzvetan. “Em face do extremo”, Tradução: Egon de Oliveira Rangel e Enid Abreu

Dobránzsky. Campinas: Editora Papirus, 1995. p-139-141.

77

“Cowboy fora da lei” – Composição de Raul Seixas e Cláudio Roberto. Letra disponível no sítio

eletrônico: http://letras.terra.com.br/raul-seixas/48307/ 78

DEJOURS, Christophe (2000). “A banalização da injustiça social”. Tradução: Luiz Alberto

Monjardim. 3ª Edição, Editora Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro-RJ. p-129.

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quando julgarem necessário, ainda que essa violência seja praticada em nome da paz.

Qualquer ímpeto de compaixão frente à dor alheia deve ser afastado. Para Dejours:

Tolerar o próprio sofrimento e não reagir pela violência é antes

visto como resignação, derrota, desistência e até covardia ou

complacência com a dor, o que certamente não é uma conduta

viril. (...) invariavelmente, a virilidade é solicitada quando o

medo está no cerne da relação.79

A virilidade é essencialmente masculina, e está inscrita em oposição à ideia de

fragilidade, atribuída à “natureza feminina”. O mito do herói viril, corajoso, que não

chora e não sente medo está imbricado no cerne da educação infantil, nas histórias em

que o príncipe desembainha sua espada contra monstros tenebrosos para salvar a bela e

frágil princesinha no topo de uma torre. A figura fálica do poder masculino está presente

nos mais diversos âmbitos. Para Dejours:

Recusar a se exercer a violência, para uma mulher, não é jamais

demérito aos olhos das outras mulheres. O fato de uma mulher se

recusar a praticar o mal contra outrem só pode ser tido como um

defeito pelos homens que associam tal recusa à fragilidade, e essa

fragilidade à inferioridade congênita das mulheres, o sexo frágil. A

fragilidade do sexo frágil não é poder suportar o sofrimento, mas não

poder infringi-lo a outrem.80

A aproximação do herói com o Messias na peça de Hilda Hilst é

decorrente da aproximação da ascese divina com a ascese científica. Pois como

vimos em Kerényi, o herói nasce como descendente direto de um deus. Assim

como Cristo, o herói para América era todo amor:

PRIMEIRA POSTULANTE (interrompendo com bastante interesse):

E você acha que ele amava os outros como um herói?

AMÉRICA (apaixonada): O amor era para ele como uma bola de

fogo que ele podia arrancar de dentro de si mesmo e sustentar nas

mãos, e se quisesse também, poderia até mesmo desfazer-se dela, tudo

isso sem deixar de possuí-la. 81

O fogo se remete ao calor do acolhimento e à intensidade de suas chamas.

O sol, figura apolínea, é uma gigantesca bola de fogo em torno da qual tramita a

terra e os demais planetas. A bola de fogo está no centro: o amor desempenha um

papel crucial na saga do herói. Mas ao mesmo tempo, o herói brinca com a bola

79

DEJOURS, Christophe (2000). “A banalização da injustiça social”. Tradução: Luiz Alberto

Monjardim. 3ª Edição, Editora Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro-RJ. p-131. 80

DEJOURS, Christophe (2000). “A banalização da injustiça social”. Tradução: Luiz Alberto

Monjardim. 3ª Edição, Editora Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro-RJ. p-132. 81

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

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de fogo e faz o que bem quer dela. Seu poder é tamanho, que ele pode fazê-la ruir

se assim o desejar. Mas acima de tudo, ele possui a bola de fogo, como quem se

apropria do sol. O amor constitui matéria-prima do herói, e através de sua Palavra,

propaga-o por toda a humanidade. Mas o sol, epicentro do amor, permanece em

suas mãos, como um joguete. E assim, por malabares, o herói domina a

humanidade. Pelo amor.

Pois eu quero entrar num peito

Para poder esquentar-me!

Um coração para mim!

Bem quente! Que se derrame (...)

Meus raios

hão de entrar por toda parte

e haja nos troncos um rumor de claridade (...)

Quem se esconde? Saia já!

De mim não vai escapar!

Farei brilhar o cavalo

numa febre de diamante.

(Federico García Lorca) 82

América conclui sua narrativa em tom sugestivo, dando a entender que o

herói pode estar entre as postulantes: “E um dia essa estória que eu contei, pode

ser a sua estória. Você já imaginou? (para todas) Vocês já imaginaram?”.83

Assim,

impelida pelo entusiasmo de quem quer reformar o mundo, ela consegue conduzir

suas postulantes a um patamar heroico. Todos podem ser heróis: a bola de fogo

está em você, basta você a desejar. Um desejo que impele à ação.

I, I will be king

And you, you will be queen

Though nothing will drive them away

We can be heroes, just for one day

We can be us, just for one day

(David Bowie) 84

Mas a cena é interrompida pela campainha e a decorrente entrada da Irmã

Superintendente. Prima a ordem: todas em fila. Menos América, que mede forças

com aquelas que encarnam a figura do poder que ela desafia. Um ímpeto rebelde

82

LORCA, F. G. “Bodas de Sangue”. Tradução: Rubia Prates Goldoni. São Paulo: Peixoto Neto,

2004. Pp- 19 / 20. 83

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 84

“Eu, eu serei um rei / E você, você será uma rainha. / Embora nada os afaste / Nós podemos ser

heróis, só por um dia / Nós podemos ser nós mesmos, só por um dia.” Tradução livre. “Heroes”.

Composição de David Bowie e Brian Eno. Letra disponível no sítio eletrônico:

http://letras.terra.com.br/david-bowie/5354/.

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se apropria da protagonista, aquele de quem tem uma causa e não se dobrará com

facilidade. Uma rigidez pétrea, que não permitiria qualquer tipo de concessão.

Assim, dá-se início as orações, das quais ela permanece alheia. Não se trata de

nenhum pai-nosso ou ave-maria, mas um apelo contra presenças indesejáveis no

colégio. América. Ela, cujo nome não fora dito, mas insinuado, teria sido enviada

pelo divino com o propósito de “acrescentar dificuldades à nossa escalada e com

isso tornar mais difícil e meritório nosso lugar no céu”.85

As postulantes

respondem com riso, que tentam disfarçar para não serem punidas. A Irmã então

apela para um exame de consciência, exaltando o martírio dos santos que

cumpriram tarefas que nem todos são capazes de compreender. O santo se revela

naquele que se humilha frente a seus semelhantes, em sua beatitude. Por amor a

Deus, chega ao descalabro de beijar as feridas dos leprosos. América reage com

nojo e fúria: por que será que ela insistia nessa estória macabra?

Crispei minhas unhas na parede: eu sentia agora o nojento na minha

boca, e então comecei a cuspir a cuspir furiosamente aquele gosto de

coisa alguma, gosto de um nada que no entanto me parecia quase

adocicado como o de certas pétalas de flor gosto de mim mesma - eu

cuspia a mim mesma, sem chegar jamais ao ponto de sentir que enfim

tivesse cuspido minha alma toda. "... porque não és nem frio nem

quente, porque és morno, eu te vomitarei da minha boca , era

Apocalipse segundo São João, e a frase que devia se referir a outras

coisas das quais eu já não me lembrava mais, a frase me veio do fundo

da memória, servindo para o insípido do que eu comera - e eu cuspia.

(...) Eu que pensara que a maior prova de transmutação de mim em

mim mesma seria botar na boca a massa branca de barata. E que assim

me aproximaria do... divino? do que é real? O divino para mim é o real.

(Clarice Lispector)

86

O tom paternal do Monsenhor difere da Irmã Superintendente, sua inimiga

declarada. No início ele reprova aquela conduta, enfatizando as verdades

imutáveis e a fé divina, mas titubeia, e um fascínio sombrio toma conta de seu

corpo. Ele vê em América certo brilhantismo, um potencial para liderança. À

medida que América elabora e desenvolve sua narrativa, o Monsenhor muda de

expressão: ele resolve embarcar em sua ideia. A estória de América é uma

invenção de improviso:

85

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 86

LISPECTOR, C. “A Paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.

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América, ainda com certa precaução, vai inventar uma história

porque sabe que a única maneira de dizer o que pensa é inventar uma

estória nos moldes tradicionais, inventando pais mais ou menos

normais e uma irmão mais velho para que o Monsenhor dê maior

importância ao seu relato. Eta e Dzeta são para América apenas

símbolos de sua história, mas o Monsenhor vai encarar tais símbolos

de maneira diversa, dando-lhes uma nova realidade, realidade essa

insuspeitada para América. 87

A rubrica de Hilst coloca em evidência os sonhos de uma mente inventiva,

levados ao pé da letra por aquele que a escuta. A narrativa alegórica é entendida

em seu sentido literal. A filósofa Jeanne Marie Gagnebin observa que a função da

alegoria é a de uma “desestruturação crítica e redentora”88

, ou seja, é inerente ao

processo de segmentação do real. Trata-se, em última análise, de uma imagem que

engendra a denúncia à aparência falseada da totalidade. A alegoria tem algo de

arbitrário, ela não opera por esquemas fixos, e coloca em relevo o aspecto

transitório e efêmero da modernidade.

Enquanto América tenta elaborar seu ideário através de uma narrativa

fictícia, inventando personagens de seu convívio familiar, o Monsenhor a

interpreta da maneira o mais realista possível. A alegoria ganha corpo e encarna

personagens reais. Se eles não existiam até então, eles passam a existir, e

adquirem materialidade na passagem da segunda para a quarta cena, sendo a

terceira uma cena intermediária, em que a Superintendente, a pedido do

Monsenhor, procura testar América. Dessa vez, quem faz as perguntas é a

Superintendente, que a despreza, mas ao mesmo tempo diz que quer entender o

sentido de sua parábola.

Gagnebin resgata a corporalidade de sentido alegórico inerente aos

processos inteligíveis e espirituais, cuja separação é ilusória: estão, pois,

imbricados, e só podem ser interpretados em sua totalidade unívoca. Segundo a

autora, “essa imbricação é tão profunda que não a percebemos mais, não

escutamos mais o sentido ‘literal’ sob o sentido ‘figurado’”89

É na quarta cena que os desdobramentos da fantasia de América vêm à

tona. O repertório da primeira cena se repete: América conta suas estórias

87

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 88

GAGNEBIN, J. M. “Alegoria, Morte, Modernidade”. In: “História e Narração em Walter

Benjamin”, São Paulo: Perspectiva, 1999. P-43. 89

GAGNEBIN, J. M. “No Feminino Plural”. In:”Mulheres, Filosofia ou Coisas do Gênero”.

TIBURI, Márcia e VALLE, Bárbara. (Org.) Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008. P-176.

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mirabolantes às três postulantes no mesmo pátio escolar. Porém a cena provoca

um estranhamento, como se algo estivesse fora do lugar. A começar pela

narrativa, que já não vinha carregada de certezas como nas demais, mas pelo

contrário: falava de mistério. Quando as pessoas em seu redor insistiam que a

estrada terminaria ali onde ele estava, o andarilho segue em frente, certo de que

seu caminho teria continuidade rumo ao desconhecido. Aquela trilha na floresta,

reservada aos cordeiros dóceis e bem-comportados, dava indícios de que haveria

um longo caminho pela frente. Era a recusa do fim da estrada, por aqueles que não

aceitaram a condição de cordeiro obediente. A estória de América testa os limites

que apontam o fim da linha, e a recusa a acreditar naquilo que seus olhos viam.

Deve haver algo além. Como quem procura por brechas entre as folhagens ou

pontes que atravessem o rio, América diz não.

(Nada sei do que te faz tão poderosa

ao me mover; mas algo em mim compreende apenas

que a voz de teus olhos é mais profunda que todas as rosas

ninguém, nem mesmo a chuva, tem as mãos tão pequenas.)

(E. E. Cummings) 90

Sua atitude mudara. Suas postulantes observam a transformação de sua

líder, que agora é posta à prova por desafiar a ordem racional do mundo. Ela cai

em descrédito por contar estórias de um sonhador, e por sofrer ela mesma dessa

perigosa patologia: o sonho. A Superintendente entra em cena, a princípio como

quem deseja ajudá-la. Ela lhe concede dois livros. Mas quais?

AMÉRICA: O primeiro aquele que conta a estória de um homem que

virou bicho.

PRIMEIRA POSTULANTE: Um louco?

SUPERINTENDENTE: Sem nenhum interesse.

SEGUNDA POSTULANTE: Mas como é essa estória, Irmã?

SUPERINTENDENTE: É a estória de um homem que se transformou

num inseto, e a família quase enlouqueceu por causa dele.

TERCEIRA POSTULANTE (rindo): Lógico, era pra enlouquecer.

SUPERINTENDENTE: A família sofre humilhações, desprestígio. É

horrível. Esse livro não. Peça um razoável. 91

90

CUMMINGS, E. E. “Antologia da Nova Poesia Norte-Americana”. Tradução Jorge Wanderley.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.

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América escolhe um livro subversivo, pois reintroduz o sonho onde tudo

precisaria fazer sentido a olho nu. No campo das verdades absolutas outorgadas

pelo primado de um saber científico, só existe lugar para aquilo que é dedutível

em termos racionais. A ordem do sensível confunde, escorrega às classificações, e

requer o mínimo de criatividade para que se possa deixar tocar nesses termos.

Como dizia Artaud, é preciso captar com o olhar, e antes um olhar sensível aos

fazeres e refazeres do mundo, acompanhando os movimentos não decodificáveis,

sem se deixar permear pelas pressões costumeiras do cotidiano. Para Artaud,

antes, importa:

Deixar-se levar pelas coisas em lugar de se fixar sobre certos lados

especiosos, de pesquisar sem fim definições que não nos mostram

senão os pequenos lados. Mas para isto tem em si a corrente das

coisas, estar ao nível de sua corrente, estar enfim ao nível da vida, em

lugar de permitir que nossas deploráveis circunstâncias mentais nos

deixem perpetuamente no entremeio, estar ao nível dos objetos e das

coisas, ter em si sua forma global e sua definição ao mesmo tempo, e

que as localizações de tua substância pensante entrem em movimento

ao mesmo tempo que seu sentimento e sua visão em ti.92

América escolhe a “Metamorfose” de Franz Kafka: A estória do homem

que amanheceu metamorfoseado em uma barata. A interpretação da

Superintendente e das postulantes é conotativa de uma ciência maior, que

despreza aquilo que lhes parece cientificamente inconcebível.

Tinha de fato vontade de mandar que seu quarto, aquele quarto

morno, confortavelmente instalado com móveis herdados, fosse

transformado em uma toca, na qual ele poderia se arrastar com

liberdade em todas as direções, sem ser perturbado, mas pagando o

preço de esquecer de modo simultâneo, rápido e completo seu

passado humano? De fato agora já estava próximo de esquecer, e

apenas a voz de sua mãe, que ele não ouvia há tempo, dera-lhe uma

sacudida interna.

(Franz Kafka) 93

O fato de que Superintendente continue a zelar pelos valores da família

deflagra certa ambiguidade. Mudou o paradigma, mas a antiga estrutura

permanece em pé sob outras roupagens. O desprestígio da família é um pilar que

se mantém, e que recoloca a injúria e a vergonha em seu devido lugar. Desafiar os

91

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 92

ARTAUD, A. “Na Luz da Evidência”. In: “Linguagem e Vida”. Tradução: Jacó Guinsburg. São

Paulo: Perspectiva, 2008. Pp-247 / 248. 93

KAFKA, F. “A Metamorfose”. Tradução: Marcelo Backes. Porto Alegre: LP&M, 2008. P-62.

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parâmetros racionais segue como um dogma, mas a vergonha é aquela mesma

atribuída àqueles que cometem heresias sob a crista e a cruz. A família permanece

um bem supremo. Ainda mais paradoxal é o fato de uma das postulantes chamá-la

de “irmã”, deixando vestígios do que aquela instituição outrora representara. Até

que ponto houve uma ruptura com aquele passado religioso?

O segundo livro “é a estória daquele que ressuscitou” 94

. A alusão a Cristo

remete a um antigo imperativo, em nome do qual se falava para reforçar a ordem e

o controle. Hilst vira Cristo de cabeça para baixo, e pela inversão paródica, a

repetição provoca um estranhamento. Aqui entra a autocrítica: em um primeiro

momento o sagrado fora posto em questionamento pelo profano, e agora é a vez

de desconstruir o profano. Tomo o profano como a verdade da ciência, aquilo que

se pretende como vértice antagônico na oposição binária “evolucionismo-

criacionismo”. O que está em relevo é a imagem de Cristo, filho de uma Virgem,

o Messias. As antigas perguntas de América indagam através de outros locutores.

Como pode um homem ser filho de uma virgem? Isso é inconcebível aos olhos da

ciência.

“É verdade que Deus está em toda a parte? (...) mas acho isso

indecente”.

(Friedrich Nietzsche) 95

A menção aos dois livros remete a um paradoxo discrepante: enquanto o

primeiro animaliza, assumindo a forma de um inseto que suscita repulsa e nojo, o

segundo espiritualiza, e restitui a humanidade em amor. Após sofrer deboche de

suas postulantes com a mesma arrogância e pretensão de verdade com que

América questionara os ensinamentos da Igreja, a Superintendente chega ao

descalabro de compará-la a uma alquimista.

A figura do alquimista, aquele que transforma metais em ouro, através de

procedimentos mágicos e enigmáticos. Em seu duplo e ambíguo sentido, a

conversão em ouro pode ser interpretada como uma tomada de consciência. Sem

sombra de dúvida, o alquimista é uma figura perigosa, e ao mesmo tempo

depreciada pela alta ciência. Enquanto as ciências duras trilhavam as linhas do

94

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 95

NIETZSCHE, F. apud FERRAZ, M.C.F. “Mulher, Amor e Amizade em Nietzsche”. In:

In:”Mulheres, Filosofia ou Coisas do Gênero”. TIBURI, Márcia e VALLE, Bárbara. (Org.) Santa

Cruz do Sul: EDUNISC, 2008. P-180.

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progresso, lançando-se para o futuro como em um trampolim, os alquimistas se

voltavam para trás, debruçando-se nos segredos de um passado mais remoto, com

as receitas das poções ditas mágicas e elixires pagãos, desprezados tanto pelos

católicos, como pelos cientistas. A alquimia era uma conotação depreciativa

atribuída à alteridade, tanto nos focos de resistência do Ocidente, como de

maneira mais geral e abstrata no Oriente. Uma coisa é certa: alquimista é um

termo cunhado no Ocidente pelo cânone branco, masculino, europeu, católico e

dominador, adquirindo verniz científico; ao passo que a verdade da cruz se

converte em verdade da ciência, pois o que se entende por revolução científica

não elimina a antiga moral católico-cristã. Mas ainda assim pertence à ordem do

mito, pois o termo é usado para traduzir o inconcebível, o imponderável, o

mistério.

Mircea Eliade entende o alquimista como o "senhor do fogo"96

, uma vez

que é a partir do fogo que se dá a transmutação entre metais. Estaria no fogo uma

força mágico-religiosa capaz de acelerar a natureza e moldar o mundo de acordo

com os desejos do homem. O fogo é poder, é uma força cuja maestria pertence à

ordem do sagrado. Há uma série de mitos que remetem à apropriação do fogo

pelos homens. Prometeu fora acorrentado por roubar o fogo dos deuses. Pelo

domínio do fogo, o xamã ou o iogue atravessariam o campo do humano para

ascender a uma espiritualidade elevada. De acordo com James Hillman:

O fogo como uma criança sempre faminta, fogo como uma criança

crescendo rápido, jovem e flamejante, fogo como uma virgem sempre

renovável. Lareira como útero, berço, abraçando o centro em torno do

qual a opus circumambula. (...) Como um dos quatro elementos que dá

base ao ser do cosmo, o fogo não pertence nem mesmo aos deuses. O

fogo não pode ser roubado e tornado disponível para o uso humano

mais que a terra, o ar e a água podem ser usurpados para o benefício

de uma espécie apenas.97

Para Hillman, caberia ao alquimista ir além de um humanismo

prometeico, e pelo fogo animar as substâncias, imergir no mistério não humano

das coisas. Quanto mais pura a substância, mais puro o fogo. Tudo o que é

supérfluo, é queimado, resta apenas o carvão, de substância leve e preta. O carvão

simboliza o ato de nascer duas vezes: primeiro como madeira, depois como sua

96

ELIADE, M. "Ferreiros e Alquimistas". Tradução: Carlos Pessoa. Lisboa: Relógio d'Água

Editores Lda, Coleção Antropos, 1983. P-63 97

HILLMAN, J. "Psicologia alquímica". Tradução Gustavo Barcellos. Petrópolis – RJ: Vozes,

Coleção Reflexões Junguianas, 2011. P- 46

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essência purificada pelo rito sagrado da alquimia. Hillman conclui: "O fogo dá à

alquimia suas leituras espirituais".98

Acusada de alquimista, América precisaria ser punida. Seu primeiro

veredicto foi sentenciado pela Superintendente, que incita as postulantes a

cobrirem sua cabeça, já que ela não fazia uso adequado da mesma:

SUPERINTENDENTE (objetiva): Muito bem, minha filha. Na

verdade a cabeça de América não existe. E para que essa verdade

fique bem clara, é necessário que daqui por diante ninguém mais

veja... (com ironia) essa cabeça não existe.

As Postulantes tiram de algum canto um camisolão preto e jogam

por cima de América como se fossem vesti-la. Mas fazem-no de forma

a não deixar que a cabeça de América passe pela abertura.

(...)

SUPERINTENDENTE (para América): E pode pensar à vontade

agora. (sorrindo com desdém) Mas naturalmente sem a cabeça. 99

As lamúrias de América, despida de sua pretensão de verdade, vestida

com seu camisolão como quem traja uma camisa de força denotam um luto, uma

indignação por esse mundo entrecortado e apodrecido pelas sombras daquilo que

se pretendia luz. O obscurantismo da ciência, que eclipsa o brilho da luz solar.

A fúria do meu tempo separou-nos

E há entre nós uma extensão de pedra.

Orfeu apodrece

Luminoso de asas e de vermes 100

América fala de Orfeu, o argonauta que acompanha Jasão em sua epopéia

em busca do Velocino de Ouro. Orfeu, o pacificador de brigas e o encantador de

sereias, graças à lira que recebera de presente de Apolo. Perdeu sua amada

Eurídice para uma serpente, que a surpreendeu quando colhia flores em seu

jardim. Seu amor é tão grande, que ele vai até os reinos subterrâneos, vence o

Cérbero, um cão de três cabeças, guardião dos portões e consegue chegar até

Hades. Suas lágrimas de ferro são capazes de comover Perséfone, que entrega de

volta sua amada com a condição de que ele não olhe para ela até que atravessem o

98

HILLMAN, J. "Psicologia alquímica". Tradução Gustavo Barcellos. Petrópolis – RJ: Vozes,

Coleção Reflexões Junguianas, 2011. P-43 e 46 99

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 100

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

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Rio Estige. Temendo tratar-se de uma trapaça, seus olhos o traem e Eurídice

retorna para o mundo das sombras. Triste, ele passa três anos a vagar pelas

florestas da Trácia, tocando sua lira. Sua melodia seduz as Mênades, que celebram

seus ritos dionisíacos atrás dos arbustos. Orfeu paga caro por desprezá-las. Os

gritos furiosos das Mênades abafam a melodia de sua harpa, enquanto seu corpo é

atravessado por dardos, e depois esquartejado. Sua cabeça e sua harpa são

lançadas ao rio. As noves musas choram por sua morte trágica, juntando os

pedaços de seu corpo e transportando-o ao Monte Olimpo. Sua alma encontra

Eurídice no mundo das sombras e ambos são acolhidos por Apolo e transportados

para os Campos Elíseos, onde vivem o amor eterno. Como castigo dos deuses, as

Mênades foram transformadas em carvalho. Diz-se que a doce melodia dos

rouxinóis da região tem origem na harpa orfeica.

Joseph Campbell entende a história de Orfeu como um mito do fracasso

que nos remete à tragédia da vida:

O mito grego de Orfeu e Eurídice , assim como centenas de contos

análogos em todo o mundo, sugerem (...) que existe a possibilidade de

o amante retornar com sua amada perdida do terrível limiar, apesar do

fracasso registrado. É sempre alguma pequena falha, algum sintoma,

leve mas crítico, da fragilidade humana, a causa da impossibilidade de

um relacionamento franco entre os dois mundos; dessa maneira, quase

somos tentados a acreditar que, se o pequeno acidente perturbador

pudesse ter sido evitado, tudo correria bem. 101

América experimenta um desespero semelhante ao de Orfeu, apartado de

sua amada, que paira no reino das sombras. A frieza de seu tempo amplia o

abismo que separa os dois mundos por extensões de pedra. Há uma angústia

extrema frente ao apartheid, entre as asas dos anjos e os vermes que habitam o

mundo das sombras. Não há espaço para uma comunicação que tramita no

interstício entre o céu e a terra. Distanciado das estrelas celestes, o mundo fica

frio, inóspito, podre e sem vida. As lamúrias de América clamam por algo que não

é da ordem do sagrado nem do profano, mas desse espaço do entre, onde a ciência

e a espiritualidade coexistem: eis o grande fracasso que dá o tom da tragédia

humana.

101

Campbell, J. "O herói de mil faces". Tradução: Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Pensamento,

2007.

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Ilumina-se (...) o plano B, onde está o Monsenhor sentado na sua

cadeira negra, , alta, fazendo agora o papel de Inquisidor. Não deve

ter roupas sacerdotais, mas algumas indicações de que ele foi

Monsenhor e agora é Inquisidor. Pode haver movimentação do

Monsenhor nos dois planos.102

As rubricas ilustram o quão sutil é a troca de papéis: é como se o

Monsenhor deslizasse para o Inquisidor, deixando evidente que algo do antigo

personagem permanece em cena. Eles desempenham o mesmo papel, mas mudam

as vestimentas, para sugerir que a situação efetivamente mudou. Ele analisa os

papéis como um inquérito. Seu fim é obter uma confissão, dados que justifiquem

sua conduta. Sua primeira pergunta poderia ser a de um psicanalista: "Como era

sua mãe? (pausa)" 103

Michel Foucault observa como se amplia a extensão da confissão após a

Contra-Reforma. A prática da confissão tornou-se mais meticulosa. É preciso

investigar as mais singelas minúcias: "uma sombra num devaneio, uma imagem

expulsa com demasiada lentidão, uma cumplicidade mal afastada entre a mecânica

do corpo e a complacência do espírito: tudo deve ser dito"104

. Foucault observa

como o imperativo "examinai" passa desempenhar um papel crucial nas práticas

confessionais, visando acompanhar cada desvio que sobressai à linha que liga o

corpo com a alma: "ela revela, sob a superfície dos pecados, a nervura ininterrupta

da carne". Os dispositivos discursivos utilizados pelas instituições do Estado nas

práticas de perícia e inquérito não só acompanham esse movimento, como

aprimoram as técnicas investigativas, para encontrar saídas cada vez mais limpas,

insípidas, inodoras e racionais de exercer controle sobre os corpos. Órgãos de

controle sanitário determinam o que é adequado para a saúde do organismo social,

o panóptico, a torre de vidro no centro das prisões de onde se pode ver tudo, dita a

tendência da arquitetura das grandes cidades, a psicologia passa a analisar os

lugares mais recônditos da história do sujeito para inserir o sujeito à sociedade e

contribuir para ordenar o mundo.

A censura atribuída a América é organizada como um tipo de lógica de

cadeia, como diz Foucault:

102

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 103

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 104

FOUCAULT, M. "História da sexualidade I: A vontade de saber". Tradução: Maria Thereza da

Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque, Rio de Janeiro: Edições Graal, 2010. P-25

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Liga o inexistente, o ilícito e o informulável de tal maneira que cada

um seja, ao mesmo tempo, princípio e efeito do outro: do que é

interdito não se deve falar até ser anulado no real, o que é inexistente

não tem direito a manifestação nenhuma, mesmo na ordem da palavra

que enuncia sua inexistência, e o que deve ser calado encontra-se

banido do real como interdito por excelência.105

Desse modo, Foucault nos fornece pistas dessa lógica que nega aquilo que

escapa ao protocolo: é preciso falar a mesma língua, orientar pelos mesmos

paradigmas, seguir ipsis litteris as regras de conduta apropriadas ao que é

considerado socialmente admissível. No âmbito da revolução científico-racional,

seria inapropriado falar de mistérios, de poesia, de metáforas ou de metafísica. A

justificativa que o Inquisidor buscava era da ordem racional: encontrar uma

justificativa em seu âmbito familiar. Que tipo de herança teriam seus pais deixado

em seu histórico, que pudesse justificar sua conduta? A resposta de América foi

insatisfatória, pois não teria como ser devidamente catalogada no campo da

objetividade:

Os olhos velhos e a vontade de amar sem saber como. Crescemos

tanto as duas, tão inutilmente. Crescemos tanto que nem mais nos

abraçávamos, nem sorríamos, como acontece àqueles que se amam.

Eu dizia: "Dá-me um pouco de ti, eu tenho sede. Tenho os olhos

pisados de sonhar". 106

A frieza da sua relação com a mãe não parecia comover o Inquisidor, cuja

resposta lhe parecia insatisfatória. Não é da carência e do sofrimento humano,

pois, que isso se trata. Ao constatar que a estória previamente narrada ao

Monsenhor era uma invenção de sua cabeça, o Inquisidor quer saber sobre sua

verdadeira relação com o pai. Ela diz que ele não seria capaz de compreender a

conversa que teve com seu pai, afinal, não é da ordem racional. A pretensão da

ciência de tudo explicar, podendo entender "até o demônio" encontra eco na voz

articulada do Inquisidor. Ele exige respostas e tem pressa. Após uma longa pausa,

ela responde lentamente, como se falasse sozinha:

Pai, uns ventos te guardaram, outros guardam-me a mim. E

aparentemente separados, guardamo-nos os dois, enquanto os homens

no tempo se devoram. Será lícito guardarmo-nos assim? (...)

105

FOUCAULT, M. "História da sexualidade I: A vontade de saber". Tradução: Maria Thereza da

Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque, Rio de Janeiro: Edições Graal, 2010. P-94. 106

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

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Pai, tocaram-te nas tardes brandamente, assim como tocaste,

adolescente, a superfície parada de umas águas? Tens ainda nas mãos

a pequena raiz, e a fibra delicada que a si se construía em solidão? (...)

Assim somos tocados sempre. Pai, este é um tempo de silêncio.

Tocam-te apenas. E no gesto, te empobrecem de afeto. E no gesto te

consomem. (...)

Pai, este é um tempo de cegueira. Os homens não se vêem. Sob as

vestes, um suor invisível toma corpo e, na morte, nosso corpo de

medo é que floresce. Mortos nos vemos. Mortos amamos. E de olhos

fechados, uns espaços de luz rompem a treva (abaixa a cabeça como

se soubesse a inutilidade de todas as confissões) (...)

(angustiada) Pai, este é um tempo de treva. 107

América rememora a conversa que teve com o pai, que bem poderia ser

uma memória inventada ou reinventada, mas isso não faz a menor importância. O

que está em relevo não é a figura real ou fictícia do pai, mas a maneira poética

com que ela retrata a angústia de seu tempo. Os ventos guardam, acolhem e levam

a filha e o pai para lugares distantes um do outro, mas isso não sela o fim da

relação de acolhimento entre pai e filha. Ambos estão à margem da barbárie atroz

de seu tempo. Homens se devoram, em um ato que Oswald de Andrade define

como "baixa-antropofagia", calcada na mesquinhez, na inveja, na calúnia e no

assassinato. Homens se matam por pouca coisa, sangue é derramado por dinheiro

e pelo poder mesquinho dos governantes. As águas de superfície nos tocam a

retina, mas não recobrem o corpo, não chegam a tocar a raiz, submersa nas

profundezas, onde a retina do homem racional não penetra. Uma raiz solitária,

mas que difícil de arrancar. Ela pertence à terra e lá permanece, ainda que careça

da luz do sol.

O toque brando é um toque não corporificado, é algo que vem de fora, e

que provoca certo mal-estar, mas que não atravessa a superfície da pele. América

fala em consumir como força de trabalho, a exploração que exige um dispêndio de

energia para benefício de um capitalista. Consome-se a força vital, consome-se o

tempo, consome-se a mercadoria. Como diz Oswald, até a consciência já vem

pronta e enlatada, trazida de fora. Assim também o silêncio é imposto de fora. É o

silêncio do ato de silenciar, como quem aplica mordaças aos descontentes. É o

tempo em que o desagradável não pode ser dito, e calando-se, a humanidade

107

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

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consente aquilo que vem de fora. É um tempo em que a visão é deformada,

recortada e transposta em molduras pré-configuradas que impedem o ser humano

de enxergar seu semelhante. Esse corpo recortado, amestrado, e adocicado pelos

dispositivos de controle do Estado e dos capitalistas de olho no panóptico, acaba

aprendendo a sentir medo. A doçura não vem da candura interna, mas de um

procedimento que o obriga a dizer sempre sim e abaixar a cabeça para seu

superior. O corpo é dócil, como diz Foucault108

, pois ele se quebra e se submete

ao status quo. O corpo é amestrado, pois as instituições sociais, da escola à prisão,

ensinam-lhe como deve se conduzir. A prisão pode ser uma presença

subentendida, o medo provém antes da ideia de prisão, que do fato consumado.

Basta que alguns sejam presos para que os demais assimilem a punição enquanto

potência latente. O medo é o que ordena a sociedade.

Apartados da propriedade de seus corpos e de suas forças vitais, os

homens definham por dentro, conduzindo-se tal como mortos-vivos. Perde-se a

noção do que é corpóreo, dos desejos que atravessam os corpos. De autônomos, os

gestos passam a ser automáticos e repetitivos, tal como ocorre com Carlitos,

personagem de Charles Chaplin em Tempos Modernos. A maquinaria se apropria

do homem, como se ele fosse peça de uma engrenagem, já não mais capaz de

viver, sentir e sonhar. É preciso comer para trabalhar e trabalhar para comer, eis o

único sentido atribuído de fora ao que se entende por vida. Em tempos sombrios,

para enxergar o mais singelo feixe de luz interno é preciso fechar os olhos e dar

asas à imaginação. A luz do fim do túnel está no lado de dentro, em uma

introspecção no escuro. Desse pequeno feixe de luz provém o grito, que faz

estremecer o corpo silenciado.

O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O

antropomorfismo. Necessidade de vacina antropofágica. Para o

equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições

exteriores. (...)

Só podemos atender ao mundo orecular.

Tínhamos a justiça categorização da vingança. A ciência codificação

da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em

totem.

Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O

stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema.

Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o

esquecimento das conquistas interiores.

108

FOUCAULT, M. “Vigiar e Punir - Nascimento da Prisão”. Tradução Ligia M. Pondé Vassalo.

Petrópolis, Vozes, 2ª Edição, 1983.

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Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.

Roteiros.(...)

A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela

contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e

o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro.

Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena

finalidade. (...) A escala termométrica do instinto antropofágico. De

carnal, ele se torna eletivo e cria amizade. Afetivo, o amor.

Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao

aviltamento.

(Oswald de Andrade) 109

A cena do julgamento se inaugura pela fala do Bispo. A poesia que

exorta a crença na figura divina do Homem se dá em frases que deslizam de uma

boca para outra, alternando-se entre as vozes do Bispo e do Inquisidor. Em

uníssono, a sintonia entre as falas dos dois personagens é harmônica, como se não

fosse possível haver qualquer diferença entre as duas mentes. A entonação

indicada pelas rubricas oscila entre o sarcasmo e a benevolência, em um fluxo

contínuo, que faz com que um acompanhe o tom do outro, como em uma

orquestra. A combinação entre as falas dos dois personagens conflui para um

único poema:

BISPO (para o público): O Deus de que vos falo não é um Deus de

afagos.

INQUISIDOR: É mudo.

BISPO: Está só.

INQUISIDOR: E sabe da vileza do homem.

BISPO: E no tempo contempla o ser que assim se fez: O Homem.

(pausa)

INQUISIDOR (irônico): É difícil ser Deus.

BISPO (amável): As coisas O comovem.

INQUISIDOR (ameaçador, apontando o público): Mas não da

comoção que vos é familiar.

BISPO (sarcástico): Essa que vos inunda os olhos (apontando

América com bastante ironia) quando o canto da infância se refaz.

(pausa)

INQUISIDOR (suave, íntimo, contínuo): A comoção divina não tem

nome.

109

ANDRADE, O. de "Manifesto Antropófago". In: "A utopia antropofágica". São Paulo: Globo,

2001.

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BISPO (suave, íntimo, contínuo): O Nascimento...

INQUISIDOR (suave, íntimo, contínuo): A Morte...

BISPO (suave, íntimo, contínuo): O martírio do herói...

INQUISIDOR (suave, íntimo, contínuo): Vossas crianças claras sobre

a laje.

BISPO (com pretensa piedade): Vossas mães no vazio das horas...

(pausa)

INQUISIDOR (imperativo): E deveis amá-Lo se eu vos disser sereno,

sem cuidados, que a comoção divina, contemplando se faz.

OS DOIS JUNTOS (apontam-se): O Homem. O Homem diviniza-se. 110

Esse Homem, com "H" maiúsculo substitui o antigo Deus no cânone que

ocupa o centro do universo. Esse Homem já não mais precisa de Deus para

explicar o mundo. Ele assume o lugar de Deus através do rito que o sacraliza: pelo

martírio do herói. Assim como a crucificação e a ressurreição de Cristo, esse

Homem passa por uma morte simbólica – o martírio do revolucionário –, para

então renascer como a mão que tateia constrói o mundo. Esse Homem, o herói,

também comove e serve de modelo para as futuras gerações. Ele abre caminho

para um futuro promissor. As oscilações de entonação obedecem a uma rítmica

imprimida por certo deslumbre frente à descoberta do Humano como o centro e a

medida de todas as coisas, e certo sarcasmo que menospreza a ré e sua fé em outro

Deus, que acreditam ter deixado para trás. Há certa prepotência na postura

daqueles que falam em nome da Verdade do conhecimento científico, certa

arrogância que despreza todos os outros modos de se apreender o mundo, todos os

outros parâmetro que não o do Humano em seu pedestal. Esse Homem não é

qualquer Homem, mas uma tipificação do homem racional, heroicizado. Ele

segura o martelo que sela o veredicto dos descrentes como quem está prestes a

podar as ervas daninhas que empesteiam o mundo. Há um descompasso entre essa

pretensão de grandeza do homem diante da infinitude das constelações, das quais

temos pouco conhecimento. Já dizia Nietzsche:

Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um

sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que

animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais

soberbo e mais mentiroso da "história universal": mas também foi

110

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

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somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se

o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer. – Assim poderia

alguém inventar uma fábula e nem por isso teria ilustrado

suficientemente quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz, quão

sem finalidade e gratuito fica o intelecto humano dentro da natureza.

Houve eternidades, em que ele não estava: quando denovo ele tiver

passado, nada terá acontecido. Pois não há para aquele intelecto

nenhuma missão mais vasta, que conduzisse além da vida humana. Ao

contrário, ele é humano, e somente seu possuidor e genitor o toma tão

pateticamente como se os gonzos do mundo girassem nele. 111

O mundo é infinitamente mais amplo que a pretensão de se explicá-lo, seja

qual for o paradigma. Com tantos vértices e angulares, a simples ideia de

encontrar uma única matriz explicativa para o mundo é risível. O Humano é um

parâmetro que serve apenas ao humano, e mesmo assim, diferentes sociedades

encontram diferentes meios de se apreender o mundo. A preponderância do

discurso científico-racional sobre os demais se sustenta pela configuração das

relações de poder, por exercer posição hegemônica no cânone Ocidental. Mas

enquanto o Homem despende sua energia para explicar o universo, a vida

acontece em torno e apesar do Humano.

América não está disposta a dar o braço a torcer, e reafirma sua fé "no

Anjo, na Anunciação e na Grande Senhora que foi Virgem antes do parto, no

parto e depois do parto, na ressurreição..."112

Ela diz ter o coração abrasado de

amor pelo Divino. A afirmação de sua fé é acusada de heresia pela Irmã

Superintendente. O vocabulário eclesiástico que predomina no discurso que se

insurge contra a fé Cristã é denotativo do paradoxo que a autora pretende colocar

em evidência. Se posto em prática em um contexto realista, esse paralelismo não

seria possível. Como o teatro de Hilst não tem essa pretensão, o jogo com os

jargões religiosos para referir-se à ciência arrancam riso e provocam

estranhamento. O intuito é aproximar ambos os discursos como espelhos um do

outro, incitando o espectador a enxergar além deles.

Mas como fazer um cientista entender que há algo de definitivamente

desregrado no cálculo diferencial, na teoria dos quanta, ou nos

obsenos e tão ingenuamente litúrgicos ordálios da precessão dos

equinócios, por causa daquele acolchoado rosa camarão que Van

111

NIETZSCHE, F. "Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral". In: Friedrich Nietzsche:

Obras Incompletas. São Paulo: Abril Cultural, Coleção Os Pensadores, 1974. P-53. 112

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

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Gogh faz espumar tão suavemente num lugar eleito de seu leito, por

causa de uma pequena insurreição verde veronese, azul molhado,

barca diante da qual uma lavadeira de Auvers-sur-Oise está se

levantando após o trabalho, por causa também daquele sol fixado por

trás do ângulo cinzento do campanário da aldeia, pontiagudo, lá

embaixo, no fundo; em frente, aquela enorme massa de terra que, no

primeiro plano da música, procura a onda antes de se congelar.

(Antonin Artaud) 113

Mais uma vez, o Bispo e o Inquisidor procuram desmentir as estórias da

Bíblia a partir de uma leitura fria e objetiva, que prova através de um cálculo

racional que os milagres aos quais se refere América são desprovidos de

fundamento científico. Tudo o que ela diz é ridicularizado à luz de um

pragmatismo rígido e soberano. É-lhe apresentado um quadro-negro e um pedaço

de giz, para que ela demonstre e comprove a sua Verdade. Ela hesita, mas acaba

por desenhar um círculo com um triângulo equilátero. Ela entende o círculo como

o universo, que a rigor não precisaria de uma linha. É um círculo por compreender

o compasso que circunda o globo ocular. Também o sol assume esse formato de

esfera. Os vértices do triângulo sugerem as asas de um Anjo, e também o Tríplice

sagrado: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Em seguida quem vai ao quadro é o

Inquisidor, que escreve T = C, C= T, ou seja, comer para trabalhar, trabalhar para

comer, e depois traça um grande círculo em torno da equação, que representaria a

técnica.

LUCIANO – Agiota! Lá, quem não é agiota é capacho de agiota! E

nós somos capacho de agiota! E a gente leva o dia inteiro

falando “sim senhor, sim senhor, sim senhor”! Mal pago,

ordenadinho que não dá nem pra atravessar quinze dias!

Mal pago, mal tratado, mal reconhecido! Ninguém olha

pela gente, ninguém se importa com a gente...

(Renata Pallotini) 114

Desde a revolução industrial, novas técnicas e novos sistemas trataram de

aprimorar a técnica que potencializa um lado da equação trabalhar para comer,

comer para trabalhar. Come-se o suficiente para trabalhar, mas do trabalho extrai-

se o máximo de mais-valia, ou seja, o valor excedente do trabalho consumado, tal

113

ARTAUD, A. “Van Gogh. O Suicidado da Sociedade”. In: “Linguagem e Vida”. Tradução:

Sílvia Fernandes e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2008. P-272.

114

PALLOTINI, R. “A Lâmpada”. In: “Teatro Completo”. São Paulo: Perspectiva, 2006. P-67.

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como Karl Marx115

explica em O Capital. Quanto mais excedente, maior é o lucro

do proprietário dos meios de produção. O sistema é bastante simples e eficaz,

quando enxergado sob o prisma da engrenagem. A margem de erro está fora, pois

o trabalho é exercido por estruturas mais complexas, humanas. A finitude dos

recursos naturais fornecedores de matérias-primas também impõe limites. O

Homem é capaz de manipular a natureza, mas não a domina. Quanto à força de

trabalho, sua manipulação alcançou parâmetros bastante ordenados, maximizando

a produção de mercadorias em um tempo mais comprimido. O avanço da técnica

permitiu a inserção da esteira de montagem, permitindo a rápida circulação de

materiais pela fábrica, exigindo que as mãos desempenhem um trabalho cada vez

mais repetitivo, em uma divisão mais setorializada, que aparta do planejamento o

processo produtivo. Em termos marxianos, a separação do trabalho manual do

trabalho intelectual. O trabalho passa a ser cronometrado e controlado por agentes

vigilantes. Introduz-se o ponto, que registra o horário de entrada e saída dos

funcionários. O rigor da técnica dá a impressão de que o homem assemelha-se

cada vez mais a um robô, que se comporta e se orienta automaticamente, sem

pensar, sem sentir, sem sequer exercer o domínio de seu próprio corpo, que se

encontra cada vez mais atrofiado pelo movimentos contínuos.

Mas o humano ainda sonha, e os pensamentos acabam por escapar ao que

só em aparência é um domínio em sua plenitude. Ainda cabe ao Homem a recusa.

Ainda cabe ao Homem uma retomada de sua subjetividade apartada. Por isso o

pensamento e o sonho são tão perigosos para o sistema.

BISPO: Nós a recompensaríamos se ela ficasse passeando nos nossos

jardins... passeando e pensando, passeando e pensando. Uma natureza

imaginosa pode de repente descobrir coisa nova. 116

A morte também não lhe cairia bem, pois a morte poderia significar o

martírio em sua beatitude, e os paladinos da ciência ainda temiam a sua Ascensão.

Eles diziam que o tribunal aspirava à sua salvação, mas não pareciam ter clareza

sobre o que isso viria a ser em termos concretos. É a própria América quem sem

querer fornece pistas do que poderia ser sua "ascese":

115

MARX, K. “O Capital: Crítica da Economia Política”. Tradução: Regis Barbosa e Flávio R.

Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 116

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

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AMÉRICA (lentamente): Ofereço-vos minha mão aberta. Queimada

de uma luz tão viva como se ardesse viva sob o sol. Olhai se possível

a mão que se queimou de coisas limpas. E se souberdes o que em vós

é justiça, podereis refazê-la à imagem de vossa mão. E depois

igualada, aproveitá-la a cada hora. A cada hora e... 117

América sequer teve tempo de concluir seu raciocínio, e foi interrompida

pelo Inquisidor, que balbuciava a palavra "aproveitá-la"como quem acabava de ter

uma boa ideia, ainda sem conseguir formulá-la até o final. Seria um grande

desafio aproveitá-la "com as asas que tem". Qualquer pisada em falso, ela corria o

risco de voar longe em pensamento. Talvez fosse o caso de deixar que o tempo

sossegasse os ânimos e apaziguasse os anseios de um pensamento convulsivo.

INQUISIDOR: Um aproveitamento eficiente e concreto é bem

da competência do poder temporal. Eles têm sempre ótimas

ideias. E para os casos assim são primorosos.

BISPO: E o poder temporal não é representado pelo colégio?

INQUISIDOR (cansado): Pela empresa, pela empresa,

Reverendíssimo.

BISPO: A empresa, o colégio, o instituto, e logo mais haverá

uma só palavra para tudo. Será a síntese, meu amigo.

INQUISIDOR: Irmã Superintendente, por favor, queira

aproximar-se.

Todos ficam de pé.

INQUISIDOR (continuando solene): Nós entregamos à

senhora, neste ato, com especial cuidado, a moça América (luz

diminuindo gradativamente). E pedimos clemência.

BISPO: Benignidade. 118

O colégio indica a passagem de tempo: fora lá que América crescera, e

também fora lá onde produzira suas ideias mirabolantes que culminariam na

reformulação do mundo. O colégio funciona como um tubo de ensaio para que o

experimento de transmutação ou conversão seja aplicado nas demais repartições

sistêmicas onde se produz o trabalho intelectual: as empresas, os institutos. A

origem e o estopim da reviravolta se deram efetivamente no colégio. Esse

ambiente familiar, onde América despertou suas paixões mais irreverentes. Se

América tivesse que ser cooptada e aproveitada pelo novo sistema, seria no

117

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 118

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

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acolhimento do ambiente escolar, lá onde as paixões pulsam com mais vigor. No

lugar da ambiguidade por excelência, onde aprendera os ensinamentos bíblicos

que outrora não faziam sentido para ela, onde pela paixão pela ciência provocara

essa inversão, que assevera o primado da ciência sobre o primado da cruz.

Una relación de exclusión recíproca divide, para concluir, modos de

ser que en la infancia practicamos sin separaciones, y que ahora

conseguimos significar solo mediante paradojas, como la necesidad

de lo gratuito, la espera de ló imprevisible... La lógica es una

admirable disciplina del pensamiento. Pero forma um pensamiento

que, para funcionar a la perfección, descompone el orden según el

cual la vida da inicio y la gente, bien o mal, seguimos en la vida, casi

haciéndolo parecer um desorden. Por lo cual, yendo contra el sentir

humano, ló gratuito es considerado menos precioso que lo

obligatorio, a la fuerza de la ley se la atribuye más eficácia que al

amor, y la regularidad mecânica ocupa el lugar de la ocasión

imprevista.

(Luisa Muraro)119

América, no ano de 1967, quando Hilda Hilst escreveu essa peça era o

lugar da combustão, o lugar das ideias subversivas. Se a revolução socialista

fracassara nos países centrais, na América Central e do Sul anseios

revolucionários se faziam sentir, em maior ou menor grau, mas pareciam

representar uma ameaça latente. Governos de esquerda e ascensos operários

eclodiam no Chile, na Argentina, no Brasil... Em 1959, Cuba brindou o triunfo de

uma revolução popular, que expropriou terras e propriedades fabris. Em plena

Guerra Fria, o temor de que ascensos revolucionários pudessem se espalhar pela

América Latina era incomensurável. O apoio político e possivelmente financeiro a

golpes militares por grupos de extrema-direita em países latino-americanos foi a

maneira que os Estados Unidos e seus aliados europeus encontraram para silenciar

os insurgentes. Mas essas mordaças não bastavam: seria preciso cooptar seu

núcleo pensante, fazer com que cérebros propagadores de novas ideias

trabalhassem para eles. A analogia entre o nome da protagonista e a América, que

119

“Uma relação de exclusão recíproca divide, para concluir, modos de ser que na infância

praticamos sem separações, e que agora só conseguimos significar mediante paradoxos, como a

necessidade do gratuito, a espera do imprevisível... A lógica é uma disciplina admirável do

pensamento, que, para funcionar perfeitamente, decompõe a ordem segundo a qual a vida se

inaugura, e nós, bem ou mal, seguimos a vida quase fazendo parecer uma desordem. Indo,

portanto, contra o sentir humano, o gratuito é considerado menos valioso que o obrigatório, à força

da lei se atribui mais eficácia que ao amor, e a regularidade mecânica ocupa o lugar da ocasião

imprevista.” Tradução livre. MURARO, L. “El Dios de las Mujeres”. Tradução italiano-espanhol:

María-Milagros Rivera Garretas. Madrí: horas & HORAS, la editorial, 2006. P-179.

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sempre fora colonizada, desde a vinda dos jesuítas com as primeiras embarcações

portuguesas até a inserção do capital estrangeiro. América é a pureza, é a menina

sonhadora, é a idealista, aquela que não se satisfaz com a inércia. América é

movimento vital, é transmutação, América é fogo que arde com paixão e quer

alcançar o infinito.

AMÉRICA (grave e comovida): Sendo quem sou, em nada me

pareço. Sendo quem sou, não seria melhor ser diferente, e ter

olhos a mais, visíveis, úmidos, ser um pouco de anjo e de

duende? (pausa. Escuro total. Voz muito alta e apaixonada)

Ah, boca de uma fome antiga, rindo um riso de sangue. Se

pudésseis abri-la para cantar meu canto. 120

Ao olhar em sua volta pouco se identifica com sua figura humana. Ela

preferiria ter outras formas, talvez um híbrido que aproximasse o Anjo da fé

Cristã com os duendes das mitologias pagãs. Nem uma coisa, nem outra, mas algo

que se situa no lugar do interstício, onde essa comunicação seria possível. O

silêncio aqui comunica, reforçado pela escuridão, um mergulho introspectivo nas

profunduras de sua Alma. Sua voz se ergue e um grito apaixonado exalta sua

fome. É certo que há fome na América, uma fome antiga por alimentos, sobretudo

em regiões secas e desérticas. Mas a fome de América não é por alimentos: é uma

fome de liberdade. Um clamor antigo, que assola o Humano. América nunca fora

livre. Sim, o riso é possível. Mas o riso sangra, o riso dói, ele custa a sair frente

aos sofrimentos que lhe são incutidos. Mas para cantar seu canto, já não há forças.

América, aos poucos, está morrendo.

Tateio. A fronte. O braço. O ombro.

O fundo sortilégio da omoplata.

Matéria-menina a tua fronte e eu

Madurez, ausência nos teus claros

Guardados.

Ai, ai de mim. Enquanto caminhas

Em lúcida altivez, eu já sou o passado.

Esta fronte que é minha, prodigiosa

De núpcias e caminho

É tão diversa da tua fronte descuidada.

Tateio. E a um só tempo vivo

E vou morrendo. Entre terra e água

Meu existir anfíbio. Passeia

Sobre mim, amor, e colhe o que me resta:

Noturno girassol. Rama secreta.

120

HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst

- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

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(Hilda Hilst) 121

Enquanto uma das Cooperadoras discursa sobre a cooptação de América e

o papel que esta pode vir a desempenhar para restabelecer o equilíbrio de Eta e

Dzeta, evitando que estes oscilem em seus percursos, América agoniza em seu

leito de morte. Entretidas e maravilhadas pelos avanços da ciência, a morte de

América aconteceu sem que dessem conta. Seu silêncio a recobria como um

manto invisível. O discurso rouba a cena e retira o foco do acontecimento real. A

atenção para essas criaturas devoradoras de luz ofusca o brilho que ilumina o

momento exato da morte. América morre como se fosse o último suspiro de uma

Humanidade mais humana. Sua morte sela a salvação de Eta e Dzeta, que

voltaram a funcionar a todo vapor. O foco continua no fascínio pelas engenhosas

criaturas. Ninguém chorou por América.

São os grandes visionários

Dos abismos tumultuários.

As sombras das sombras mortas,

Cegos a tatear nas portas. (...)

Que essas cabeças errantes

Trazem louros verdejantes.

E a languidez fugitiva

De alguma esperança viva..122

(João da Cruz e Sousa)

121

HILST, H. “Prelúdios intensos para os desmemoriados do amor”. In: “Júbilo, Memória,

Noviciado da Paixão”. São Paulo: Globo, 2001. 122

CRUZ e SOUSA, J. da. "Litania dos Pobres". In: "Obras Completas". Rio de Janeiro: Editora

José Aguilar, 1961.

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Capítulo V

O MARAVILHOSO DISFORME E AS INTERMITÊNCIAS DO

CARRASCO

“Em algum lugar triste do mundo”, em uma pequena vila esquecida pelo

tempo, vive um verdugo. Sua casa é protótipo da morada de um homem simples:

modesta, porém decente. Pouca mobília, dois pequenos lampiões, paredes

brancas, uma mesa ao centro. Assim Hilda Hilst descreve o cenário em que passa

sua mais célebre peça. Não há quadros na parede, ou porta-retratos. As rubricas

sugerem que não haja quaisquer rastros ou vestígios que caracterizem a família. O

cenário deve ser o mais genérico possível, para dar a impressão de que se trata de

uma família qualquer. A mesa está posta para o jantar. A primeira cena tem início

com a mulher a servir sopa para o marido. Também encontram-se à mesa os dois

filhos do casal.

MULHER (ríspida. Para o Verdugo): Come, come, durante a comida

pelo menos você deve se esquecer dessas coisas. Que te importa se o

homem tem boa cara ou não? É apenas mais um para o repasto da

terra. (pausa)

VERDUGO (manso): Você não compreende.123

Hilda Hilst apresenta o dilema do personagem em um diálogo bastante

indigesto para um jantar de família, sem muitas delongas ou floreios: um homem

é condenado à morte e o Verdugo é o único habilitado para levar a cabo o serviço.

Por algum motivo, dessa vez ele se mostra relutante em desempenhar sua função

de carrasco: o homem lhe parece bom, e falara coisas que aparentemente haviam-

no sensibilizado. A crise interna se instaurara, mas sem o apoio de sua esposa,

interessada em uma provável recompensa pelo serviço sujo. A filha, que está

prestes a se casar com um sujeito desempregado e bastante acomodado em sua

condição, vê nessa recompensa uma possibilidade de realizar o sonho de adquirir

uma casa própria. O único a solidarizar-se com o pai é o jovem filho, que parece

não se dar com a mãe e a irmã. As alianças estão seladas no que seria uma guerra

dos sexos, se não fosse pela entrada em cena do noivo, o que ocorre na segunda

123

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

P-367.

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metade da primeira cena. O clima aparece cindido, entre a rispidez mesquinha das

moças, e a crise de identidade que atravessa o Verdugo, talhando uma expressão

pacata em sua face. Seu filho está perplexo frente à mesquinhez da mãe e da irmã,

ao passo que dá razão ao pai em abrir mão de fazer o serviço sujo: afinal, não se

trata de um homem ordinário, mas de alguém particularmente bom. Quem sabe

um santo...

Parece-me ser igual dos deuses

aquele homem que, à tua frente

sentado, tua voz deliciosa, de perto,

escuta, inclinando o rosto,

e teu riso luminoso que acorda desejos – ah! eu juro

(...)

um frio suor me recobre, um frêmito do corpo

se apodera, mais verde do que as ervas eu fico;

que estou a um passo da morte

parece

(Safo de Lesbos)124

No diálogo, aparece um outro personagem que está ausente: o povo da

vila, aquele de quem se fala. O povo supostamente estaria contra a morte do

homem. Com base nesse argumento, o filho parte em defesa do pai, enquanto as

duas se tornam cada vez mais histéricas e agressivas. Os argumentos do filho são

rebatidos com alfinetadas, que variam entre o “cale a boca” e o “que te importa

aqueles coitados”, ou tentativas toscas de colocar em descrédito suas palavras.

Enquanto isso, o Verdugo tenta comer, imerso em pensamentos, como se o bate-

boca à mesa fosse música de fundo. De tempos em tempos, o pai vem ao socorro

do filho, quando julga que a consorte e a filha passam do limite. Ainda assim, sua

entonação explicita uma reação passiva, desprovida de agressividade. Até que

explode:

VERDUGO: Ô merda, mulher! A minha cabeça aguenta algum

tempo, depois eu me esqueço, ouviu? Esqueço que sou um homem e

viro... chega! (pausa. Brando) O homem tem uma cara

impressionante. (pausa)

FILHO: Como ele é bem de perto, pai? (pausa) Fala.

VERDUGO: O homem tem um olhar...um olhar... honesto.

MULHER: Honesto, ha?

124

SAFO DE LESBOS “Poemas e Fragmentos da Lírica” Tradução: Joaquim Brasil Fontes. São

Paulo: Iluminuras, 2003. P-21.

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VERDUGO: Limpo, limpo. Limpo por dentro.

MULHER (com desprezo): Ah, isso!

FILHA: Por dentro ninguém sabe como ele é. Ninguém sabe como

ninguém é por dentro.

FILHO: Eu sei como você é por dentro.

FILHA: Ah, sabe? Fala então.

FILHO: Por dentro você não tem nada. É oca.

VERDUGO (manso): Chega.

FILHA (para o irmão): Mas vou deixar de ser. Vou casar vou ter

filhos...125

A paciência do Verdugo apresenta sinais de esgotamento, porém ele não

se volta contra o mal-estar instaurado, explicitando, por sua vez, a angústia que o

atormenta, em um movimento de dentro para fora. Ele soçobra e anseia pela

compreensão de sua consorte, que permanece alheia ao compadecimento do

marido e indiferente à morte do homem. Ela não explicita qualquer indício de

compaixão. Ele é o provedor da família e a sorte de sua família depende desse

serviço. Ela se alimenta da esperança de que esse encargo viesse a abrir caminho

para uma ascensão social. Já o filho é tomado por uma curiosidade que provém de

certo encantamento, dirigido ao personagem ausente. O homem misterioso suscita

dúvidas dentro e fora do palco, já que sua identidade não nos é revelada. Apenas o

Verdugo o conhece de perto. De certa forma o povo, outro personagem ausente,

parece ter bastante afinidade com o condenado. A irmã apresenta sinais de

sensatez, ao constatar que ninguém conhece alguém por dentro. Tanto o santo

quanto o herói são mitificados desde fora com base em supostas virtudes internas

não verificáveis a olho nu.

ELA – Sonhadores habituais,

presos eternos às correntes temporais,

cativos das cadeiras de hospitais

em devaneios, ilusões, delírios,

viajamos pelos mares infinitos

descobrimos atlântidas e antilhas,

imergimos em naves submarinas...

(Renata Pallotini) 126

125

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

P-369/ 370. 126

PALLOTINI, R. “Os Loucos de Antes”. In: Teatro Completo”. São Paulo: Perspectiva, 2006.

P-89.

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Em seguida, o irmão resolve provocá-la, chamando-a de oca por dentro. A

tentativa de insulto não surte o efeito desejado, uma vez que ela parece não se

importar em ser oca por dentro. O vazio, afinal, estaria prestes a ser preenchido

por um marido e filhos. A ideia de vacuidade pode ser interpretada em diversos

sentidos. Para a filósofa Jeanne Marie Gagnebin, nem todo vazio precisa ser

preenchido: “Pensar também é ousar deixar à vida, ao sexo e à morte sua força de

interrogação, ousar dar à luz sem presumir da imortalidade, ousar não suturar a

cisão, ousar não preencher o vazio.” 127

Hilda Hilst brinca com os significados,

visto que para o irmão tratar-se-ia de um vazio de pensamento, como se a irmã

não tivesse nenhuma ideia substancial, nada além de futilidade e mesquinhez. Já a

irmã pensa o vazio como um espaço a ser preenchido por um projeto de vida. Tal

projeto confluiria com uma promessa de felicidade bastante trivial, algo

incorporado socialmente desde a infância: o matrimônio. Sob a égide patriarcal, à

mulher o matrimônio é apresentado como a única chance de felicidade. Uma vez

liberta dos ditames do patriarca, ela parece adquirir certa autonomia, até que se

desfaça a ilusão de liberdade, ao constatar que a autoridade do pai fora substituída

pela de seu consorte. Porém isso pode ocorrer em diferentes níveis: as amarras se

afrouxam ou se estreitam de acordo com a configuração subjetiva que se dá no

interior do núcleo familiar. São múltiplas e complexas as relações de poder que se

estabelecem no espaço de convivência atribuído à família. Não obstante, os papéis

podem se inverter, dando vazão a novas possibilidades de convívio. Na família

genérica retratada nessa peça, isso é bastante fluido, pois é a esposa quem joga o

consorte contra a parede. Por outro lado, a irmã reafirma valores socialmente

instituídos, impelida para a realização de um projeto antigo que preencheria pelo

matrimônio o vazio de sentidos, no compasso da repetição cíclica da vida. Simone

de Beauvoir constatou em “O Segundo Sexo”:

O destino que a sociedade propõe tradicionalmente à mulher é o

casamento. (...) Para as jovens, o casamento é o único meio de se

integrarem na coletividade e, se ficam solteiras, tornam-se socialmente

resíduos. Eis por que as mães sempre procuraram encarniçadamente

colocá-las. (...) A mulher está voltada à perpetuação da espécie e à

manutenção do lar, isto é, à imanência. (...) Ela não tem outra tarefa

senão a de manter e sustentar a vida em sua pura e idêntica

generalidade; ela perpetua a espécie imutável, assegura o ritmo igual

127

GAGNEBIN, J. M. “No Feminino Plural”. In: Marcia Tiburi e Bárbara Valle (Org.).

“Mulheres, filosofia ou coisas do gênero” Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008. P-178

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dos dias e a permanência do lar cujas portas conserva fechadas; não

lhe dão nenhuma possibilidade de influir no futuro nem no universo;

ela só se ultrapassa para a coletividade por intermédio do esposo.128

Beauvoir descreve a situação da mulher na Paris do após-guerra. O ano de

sua publicação é 1949, ou seja, vinte anos antes da publicação da peça de Hilst.

Ainda que nesse ínterim muita coisa tenha mudado, resquícios consideráveis dessa

imanência permanecem em vigor. No texto, o casamento se figura para a

personagem como algo que a situa em seu lugar de mulher na sociedade. O fato de

seu noivo estar desempregado não constitui um impedimento para que o

casamento se realize. Mãe e filha estão dispostas a fazer o que estiver a seu

alcance para que tudo saia conforme planejado. Por outro lado, a filha não

demonstra sinais de afeto para com o futuro consorte. A ideia do casamento

parece lhe agradar mais que a presença do noivo.

A esposa do verdugo faz questão de lembrá-lo da função social que

desempenhara até o momento, diante da crise instaurada frente à execução do

homem misterioso. É, afinal, um verdugo. Aquele que garante o sustento da

família pelo derramamento de sangue, com base em uma fé cega na lei dos

homens.

MULHER: Trate de ficar sabendo logo. Não é o primeiro nas

tuas mãos.

VERDUGO (seco): Ele é diferente.

MULHER: Diferente, limpo, uf! É igual aos outros.

FILHO: Ninguém tem o mesmo rosto.

MULHER: Eu quero dizer que ele é igual a todos os outros

filhos-da-puta que morreram porque a lei mandou. (para o

Verdugo. Sorrindo com ironia) Você se lembra daquele que

parecia um anjinho? Hein? Lembra? Todos diziam...

VERDUGO (interrompe): Eu não.

MULHER: ... mas os outros diziam ele tem cara de anjo. E

vocês se lembram do que ele fez? (para o Verdugo e para o

Filho) Se lembram? Acho que vocês dois não estão lembrados.

(para a Filha) Conta, filha, porque aquele outro anjinho foi

condenado.

FILHA (sorrindo): Ele matou aqueles dois menininhos.

MULHER (irônica): Só isso?

128

BEAUVOIR, S. “O Segundo Sexo – Volume 2: A Experiência Vivida”. Tradução: Sérgio

Milliet São Paulo: DIFEL, 3ª Edição, 1975. P-165/ 170.

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FILHA (sorrindo): Não. Primeiro ele queimou as plantas dos

pés e as mãozinhas dos menininhos.

MULHER: E depois?

VERDUGO (seco): Já sabemos, chega. 129

A esposa tenta persuadi-lo, resgatando experiências passadas que se

inscrevem em seu histórico como verdugo. Seria preciso depurar as aparências

dos fatos. A cara de anjo fora apenas fachada, que servira para encobrir o crime

bárbaro que o condenado ocultara: o assassinato a sangue frio de duas crianças.

Não satisfeita em lembrá-lo do ocorrido, a mulher faz questão de cutucar a ferida,

pedindo à filha que narre os detalhes sórdidos do crime perpetrado por um sujeito

que tinha cara de anjo. O povo também tivera compaixão pelo réu, mas a verdade

viera à tona. A tentativa de igualar o homem a um assassino impiedoso provoca-

lhe calafrios. Essas lembranças despertam fantasmas do passado, produzindo uma

tormenta que beira o insuportável. A mulher e a filha se regozijam de prazer ao

perceber que sua pressão psicológica surte efeito, mas o impasse permanece.

FILHO: Mas esse é diferente, não é nada disso, mãe. Esse só falou.

MULHER: Deve ter falado besteira.

FILHO: Ele falava de Deus também.

MULHER: Deus, Deus, onde é que está esse Deus? (para o Filho)

Não foi você mesmo que andou lendo que naquele lugar, lá longe...

FILHO (interrompe): Na Índia.

MULHER: Sei lá, na Índia, onde for, as criancinhas de seis anos vão

para o puteiro? Deus, Deus... e depois não foi você mesmo quem disse

que se elas não fossem para os puteiros aos seis anos elas morreriam

de qualquer jeito, de fome? Hein?

FILHO: Foi, sim, mãe. Fui eu mesmo.

MULHER: Então deixa o teu pai fazer o serviço. Se Deus não

consegue ajudar aquelas criancinhas, você acha que esse homem é que

vai nos ajudar? (pausa) 130

129

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

P-371/ 372 130

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

P-372/ 373

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Nesse diálogo a esposa do Verdugo apresenta argumentos fortes,

evocando um questionamento quanto aos limites da força Divina. A que serve

falar em Deus quando crianças de seis anos são prostituídas e vivem sob a

constante ameaça de morte por inanição? Até que ponto poderiam contar com

Deus para tirá-la da pobreza, quando injustiças de tamanha magnitude assombram

o universo infantil? Pela segunda vez a mulher menciona com certa comoção

atrocidades ocorridas com criancinhas. Se por um lado, o intuito é usar os

argumentos mais desconcertantes e eficazes para comover o marido, ela mesma é

mãe de dois filhos. Injustiças praticadas contra crianças são sentidas de maneira

bastante distinta das injustiças praticadas contra adultos. Ao machucar uma

criança, machuca-se a mãe. Mais do que isso: machuca-se a mulher. Na sociedade

patriarcal, a maternidade desempenha um papel central, em que toda mulher é

uma mãe em potencial. De acordo com a filósofa Luisa Muraro, maternidade e

mulher são conceitos imbricados, situados em uma margem estreita. Para Muraro:

Mujer es el nombre de uma condición muy común (no menos que

hombre), (...) interviene el dominio patriarcal, sí, pero quizá interviene

más algo que afecta a la condición em sí, independientemente del

hombre (pero dependiente de las demás mujeres, em primer lugar la

madre). Por lo que yo sé, mujer quiere decir poder convertirse em

madre y encontrarse de este modo reclamada por el reconocimiento de

la vida recibida y de la precariedad de la vida a transmitir, habitada em

alma y cuerpo por tres generaciones... 131

O homem supostamente mereceria o seu fardo, mas as crianças seriam

criaturas inocentes. Em todo caso, Deus não fora capaz de atender às suas

súplicas. Em um primeiro momento, o filho fica sem argumentos, uma vez que

fora ele mesmo quem compartilhara essas informações, apreendidas em suas

leituras. Sua visão de mundo parece inspirada nos livros. Apesar de seu apreço

pela figura do pai, suas convicções se remetem, em grande medida, ao universo

literário. Daí provém o conhecimento compartilhado com os demais membros da

família, que, se sabem ler, não têm afinidade com o hábito da leitura. Às

mulheres, cabe desempenhar a função de dona-de-casa. As oportunidades

131

“Mulher é o nome de uma condição muito comum (não menos que homem), (...) intercede o

domínio patriarcal, sim, mas quem sabe intercede mais algo que afeta a condição em si,

independente do homem (mas dependente das outras mulheres, da mãe em primeiro lugar). Pelo

que eu sei, mulher quer dizer poder se converter em mãe e estar nessa situação a partir de uma

exigência de reconhecimento da vidarecebida e da precariedade da vida a transmitir, habitada em

alma e corpo e corpo por três gerações...” – Tradução livre. MURARO, L. “El Dios de las

Mujeres”. Tradução para o espanhol: María-Milagros Rivera Garretas. Madrí: horas y HORAS, la

editorial, 2006. P-115

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atribuídas ao universo feminino são demasiado restritas. A casa é o espaço

privado, o espaço do confinamento, o espaço que, segundo a ótica patriarcal, é

designado para as mulheres. Nas palavras da filósofa Marcia Tiburi:

A mulher não é apenas o lugar onde o útero habita, mas o que habita o

útero, metonímia da casa. O espaço público, compartilhado por todos,

não llhe é disponível. Ela é um objeto que carrega um espaço que se

confina dentro de um espaço. O útero: metonímia da vida privada. 132

O chefe da família, por sua vez, é verdugo, trabalho que não exige grande

esforço intelectual. O filho é o único na família cuja função é voltada para os

estudos, quem sabe o único que efetivamente tivera essa possibilidade. A mãe

presta atenção, e grava bem os argumentos do filho, a ponto de usá-los a seu

proveito quando necessário. Afinal, a função de elaborar os saberes assimilados é

de outra natureza. A mãe aprendera com a experiência de vida, algo que os livros

não ensinam. Luisa Muraro narra um diálogo entre Platão e Diótima133

, sua

suposta tutora, em que ela ensina coisas que não estavam nos livros, como o amor

e a experiência de vida. Platão aprendeu com ela que nem toda verdade pode ser

expressada em palavras. Saber está além das palavras. Muraro desenvolve:

El campo del saber no se divide todo entre ciencia e ignorancia, le dijo

la maestra extranjera a su alumno ateniense: hay otra manera de estar

em él, la de quien sabe algo aunque teniendo que prescindir de las

certezas absolutas, la de quien conoce la verdad sin estar em

condiciones de demonstrar que lo es. 134

Mas desta vez quem ficou sem palavras foi o filho. Sem saber como

responder à provocação da mãe, ele então se vira para o pai e retoma o assunto:

FILHO (para o pai): O pai não quer fazer, não é?

MULHER: Essa é a profissão de teu pai.

FILHO (olhando para o pai): Verdugo.

132

TIBURI, M. “Branca de neve ou corpo, lar e campo de concentração – As mulheres e a questão

biopolítica”. In: Marcia Tiburi e Bárbara Valle (Org.). “Mulheres, filosofia ou coisas do gênero”

Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008. P-56. 133

De acordo com Muraro, muitos estudiosos sustentam que Diótima sequer existira: tratar-se-ia

de uma personagem imaginada por Platão para servir de base à sua filosofia. Diótima interessa a

Muraro por situar-se entre uma história documentada e a inexistência, ou o anonimato que recai

sobre as mulheres que ocupam lugares marginais. Em última instância, pouco importa à autora se

Diótima tenha de fato existido. 134

“O campo do saber não se divide todo entre ciência e ignorância, disse a tutora estrangeira a seu

aluno ateniense, há outra maneira de estar com ele, a de quem sabe algo apesar de ter que

prescindir das certezas absolutas, a de quem conhece a verdade sem ter condições de demonstrá-la

como tal” – Tradução livre. MURARO, L. “El Dios de las Mujeres”. Tradução para o espanhol:

María-Milagros Rivera Garretas. Madrí: horas y HORAS, la editorial, 2006. P-148

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MULHER: Verdugo sim. Uma profissão como qualquer outra.

(pausa)

VERDUGO: Mas esse homem eu não quero matar, mulher.

MULHER (impaciente): Mas não é você quem vai matar. É a lei que

mata. Você é o único aqui na vila que pode fazer o serviço. Ninguém

mais. Ora, que besteira.

VERDUGO: Mas a gente da vila não quer que o homem morra. O

povo...

MULHER (interrompe): Deixa disso, o povo é filho-da-puta, eles

fazem assim só pra não dar gosto para aqueles juízes. 135

A simples menção ao ofício de seu estimado pai produz certo desconforto,

sugerindo que o filho desaprova a profissão de seu progenitor. A mãe está ciente

do rancor que isso suscita, e explora essa desavença, ao constatar que se trata de

uma profissão como outra qualquer. A pausa indicada pela rubrica é elucidativa de

um estranhamento, chamando atenção para o absurdo da frase. Ele presta serviços

ao Estado, como qualquer outro cidadão que vende sua força de trabalho, porém

esse serviço consiste em matar em nome da lei. Uma linha tênue delimita onde

começa a força da lei e onde termina a força da vontade do sujeito, o livre-arbítrio.

Quem seria responsável pela morte do condenado: o carrasco ou a lei em nome da

qual o sangue seria derramado? O Verdugo não deseja matá-lo, mas a lei firma o

veredito, cuja função recai em suas costas, tal como um fardo. Seria possível uma

recusa, e a que preço? Não havia na vila outra pessoa habilitada para substituí-lo

em sua função.

Acima de tudo, o livre está subordinado ao preso. E eis que o homem

de fato está livre, ele poderia ir para onde quiser, apenas a entrada

na lei lhe é proibida, e além disso, apenas por uma única pessoa, o

porteiro. Se ele se senta sobre o tamborete ao lado da porta e fica por

lá durante sua vida inteira, isso acontece voluntariamente, a história

não diz nada acerca de uma coação. O porteiro, ao contrário, está

preso a seu posto por seu ofício, ele não pode se afastar e, segundo

tudo indica, também não poderia ir para o interior, mesmo que

quisesse. Além disso, ele está a serviço da lei, mas serve apenas para

aquela entrada, portanto apenas àquele homem, para o qual e

somente para o qual está destinada aquela entrada.

(Franz Kafka) 136

O Verdugo então pondera que a morte do homem não condiz com a

vontade do povo, mas logo é interrompido pela esposa, que chega ao disparate de

135

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

P-373. 136

KAFKA, F. “O Processo”. Tradução: Marcelo Backes. Porto Alegre – RS: L&PM, 2007. P-

251.

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chamar o povo de “filho-da-puta”. O ultraje que a mulher dirige contra o povo

leva até o limite o egoísmo intrínseco que a impele a pensar somente em seus

interesses mesquinhos. Ela se imagina fora e acima dos demais habitantes da vila,

trata-os com desprezo por se colocarem no caminho de sua recompensa. “Filho-da

puta” equivale a uma blasfêmia, que tem por alvo o caráter do indivíduo. Aquele

que já nasce fruto da desonra de sua mãe, cuja identidade paterna é ignorada. A

historiadora Luzia Margareth Rago situa a prostituição, a partir do período da

belle époque paulistana (1900 a 1930), no cerne de uma polarização socialmente

construída entre a casta e a devassa, sendo a primeira a mulher honrada, a mãe de

família exemplar, e a segunda, ao contrário, é aquela que coloca em xeque a moral

e os bons costumes das jovens, educadas para o recolhimento no ninho domiciliar.

Urge uma ameaça latente, em que a segunda possa corromper a primeira com sua

devassidão. A segunda seria o avesso da primeira. Segundo Rago:

A preocupação em delimitar claramente os lugares permitidos para a

circulação das jovens de família, distantes das meretrizes acentuou-se,

enquanto diversificavam-se e expandiam-se as novas formas de

consumo dos amores ilícitos e da cultura erótica. Pela primeira vez

constituíam-se espaços destinados à fruição dos prazeres, como

cabarés, cafés-concertos, bordéis de luxo, ao lado dos restaurantes,

teatros e music-halls.137

Um sujeito criado em um espaço socialmente concebido em um antro de

pecado e desonra não poderia ser movido por outra coisa que não a má-fé. O

“filho-da-puta” seria o filho renegado, afundado em vergonha desde o seu

nascimento. A esposa acusa o povo de “filho-da-puta”, pois entende que tenha

agido de má-fé, ao criar um alvoroço pelo simples prazer de contrariar os juízes.

FILHO: O homem era bom de perto, pai?

VERDUGO (manso): Não sei, meu filho, não sei. (pausa) É muito

difícil para mim. É asssim como se eu tivesse que cortar uma árvore,

você entende? Eu nunca derrubei uma árvore, eu não saberia, é difícil,

não é o meu ofício.

MULHER: Uma árvore... Você cortou cabeças, enforca gente e fala de

uma árvore. Parece que está louco.

137

RAGO, L. M. “Imagens da Prostituição na Belle Époque Paulistana”. Artigo apresentado na 1ª

Conferência Internacional sobre Moças, Alice in Wonderland: Transitions and Dilemas, realizado

em Amsterdã entre 16 e 19 de junho de 1992. Disponível em arquivo PDF pelo sítio eletrônico:

http://www.ieg.ufsc.br/admin/downloads/artigos/03112009-103553rago.pdf. P-34.

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VERDUGO: É diferente, mulher. É diferente. Esse homem é como se

fosse uma árvore para mim. (pausa)

FILHO: Que cara ele tem bem de perto, pai?

(...)

VERDUGO: De perto, meu filho... ele parece o mar. Você olha, olha e

não sabe pra onde olhar. Ele parece que tem vários rostos.

MULHER: Todo mundo só tem um rosto.

VERDUGO (para o Filho): ... de repente, ele olha firme, você sabe?

Assim como se eu te atravessasse. É muito difícil olhar para ele

quando ele olha assim. E depois... ele também pode olhar de um

jeito... Você se lembra daquele cavalo que um dia te seguiu?

FILHA (rindo): Quem é que não se lembra? O cavalo não aguentava

subir aquela ladeira. O dono do cavalo dava umas palmadas no

focinho do coitado.(ri. Para o irmão) Aí você gritou: “se você é tão

macho para bater em mim como bate nesse cavalo, eu corto o meu...”

(ri) e pulou em cima do homem como um leão. O coitado fugiu feito

doido. E o cavalo só podia te seguir, lógico. (ri) Até o cavalo

compreendeu. Foi engraçado aquele dia.

Todos riem. Pausa.

VERDUGO (para o Filho): Mas você se lembra dos olhos do cavalo?

FILHO: Eu me lembro sim, pai, eu me lembro. (pausa)

VERDUGO: Pois o homem tem às vezes aquele olho.

FILHO: Então ele é bom, pai.

MULHER: mas o que adianta vocês ficarem falando que ele é bom, se

ele tem os olhos de cavalo ou não? (para o Filho) O homem tem de

morrer e é seu pai quem vai fazer o serviço. E vai ganhar bem desta

vez. Vamos começar outra vida, tenho certeza. 138

Sem argumentos para responder à provocação da mãe, o filho logo muda

de assunto, ao indagar sobre a bondade do homem misterioso. Para o verdugo, ele

é como uma árvore. Uma árvore, por onde corre a seiva vital. Uma árvore que

fornece sombra, flor e frutos e se modifica conforme a estação do ano. Para o

pesquisador de mitologia Joseph Campbell, a árvore é “o mitológico axis mundi,

aquele ponto em que tempo e eternidade, movimento e repouso, são um só, e ao

redor do qual revolvem todas as coisas”.139

Uma árvore, em torno da qual as

crianças brincam, em cujos galhos é possível pendurar-se. Diferente dos homens,

138

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

P-374 / 376.

139

CAMBELL, J. “O Poder do Mito”. Com Bill Moyers. Tradução: Carlos Felipe Moisés. São

Paulo: Palas Athena, 1990. P-149.

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uma árvore não seria capaz de cometer crime algum. Ela simboliza a vida, mas

não pode tirá-la. O verdugo não seria capaz de derrubar uma árvore. Uma árvore

supera os seres humanos em bondade. A aproximação dos seres humanos com a

figura de uma árvore pode ser levada ao limite, com a transmutação de Mirra,

filha do rei Cíniras em “Metamorfoses”de Ovídio:

A terra (...) cobre as pernas; unhas dos pés fendem-se e espalham-se

em raízes oblíquas, suporte de um longo caule, os ossos fazem-se de

madeira, embora reste no interior a medula, o sangue converte-se em

seiva, os braços em grandes ramos e os dedos em ramitos, a pele

endurece, fazendo-se casca.Agora, a árvore, crescendo, já envolvera o

útero grávido e submergira o peito e estava a ponto de cobrir o

pescoço. Ela não suportou a demora; e baixando-se ao encontro dfo

lenho que crescia, mergulhou o rosto debaixo da casca. E embora

tenha com o corpo perdido os sentidos antigos, todavia ela ainda

chora, e tépidas gotas jorram da árvore. Até as lágrimas podem

receber honras: destilada do tronco, a mirra retém o nome da senhora e

fica famosa para sempre.140

A mulher mais uma vez esfrega em sua cara os ossos de seu ofício,

enfatizando o absurdo de um sujeito que enforca e decapita seres humanos dizer

que jamais cortaria uma árvore. A contradição está posta a desnudo como um

apêlo à reflexividade, como quem diz: “como assim?” Quando o Verdugo

responde que esse não é seu ofício, fica implícito um trabalho irrefletido,

executado mecanicamente. Ele é um funcionário que segue ordens, e extermina

seres humanos tal como o bom soldado ou o bom operário cumprem sua labuta.

Em um ofício não se pensa, ele se faz. Segundo o filósofo búlgaro Tzvetan

Todorov: “Matando e torturando, os guardas conformam-se às leis de seu país e às

ordens de seus superiores”141

. Mata-se fria e sistematicamente em nome de um

“imperativo categórico militar”. Ao ser burocratizado e incorporado à rotina do

Estado, o mal é exacerbado, sendo operado por funcionários obedientes, homens

comuns, que seguem as leis, fazem jus ao “imperativo categórico militar”, em

operações racionais com o emprego da mais avançada tecnologia, destinada à

tortura e à morte dos elementos subversivos.

Uma organização que não apenas emprega vigias(...), inspetores e

juízes de instrução atoleimados, que na melhor das hipóteses são

140

OVÍDIO. “Metamorfoses”. Tradução: Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Livros Cotovia, 2007.

P-259. 141

TODOROV, Tzvetan (1995). “Em face do extremo”, Tradução: Egon de Oliveira Rangel e

Enid Abreu Dobránzsky. Editora Papirus, Campinas-SP. p-139-141.

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simplórios, mas sustenta inclusive uma magistratura de grau elevado

e superior, com um séquito inumerável e inevitável de contínuos,

escriturários, gendarmes e outros auxiliares, talvez até mesmo de

carrascos, não tenho o menor receio de mencionar essa palavra.

Franz Kafka 142

A segunda pergunta do filho sugere certo distanciamento: “Que cara ele

tem de perto, pai?” A imagem do homem que só lhe é apresentada de longe. A

distância reforça a mitifição do personagem: aquilo que não se sabe ao certo se

inventa. A imaginação fértil daqueles que procuram interpretá-lo de um ponto de

vista distanciado fornece materialidade para a projeção de fantasias coletivas. De

um homem simples, ele passa a ser imaginado como um santo, ou um herói, no

qual são depositadas as esperanças de um corpo social. Como o corpo social é

configurado por uma miríade de desejos dissonantes, o homem parece apresentar

mil faces, tal como imagens refletidas por um globo de espelhos. Não é de um

homem que se trata, mas de um mito cuja história é observada a partir de

múltiplos pontos de vista.

Ao mirar-me [nos espelhos] ficava de certa forma estupefata por ver

tão claramente que eu era apenas aquilo que via ali: limitada,

enjaulada, forçada a deixar de ser no restante, até mesmo no mais

próximo. Não me olhando no espelho, isso não me perturbava tanto,

mas, de qualquer forma, meu próprio sentir recusava a circunstância

de eu não existir em e com qualquer coisa, mas, sim, inaceitada, como

que desabrigada. Afigura-se bastante normal, já que me parece ter

ficado perturbada com isso outras vezes quando a imagem do espelho

há muito expressava apenas uma referência interessada na própria

imagem. De qualquer forma, tais representações precoces

contribuíam para que eu não achasse chocantes nem a onipresença

nem a invisibilidade do Bom Deus.

(Lou Salomé)143

O Verdugo então alude a uma segunda alegoria: o homem é como o mar.

Na imensidão de um mar é difícil fixar os olhos em um único ponto. As retinas

vagueiam pela imensidão azul, borram a nitidez e diluem a perspectiva da

imagem. A vista mareia, perde o foco, e produz uma miríade de imagens com a

refratação da luz sobre as águas que se movimentam em ângulos contrastantes. O

mar é profundo e guarda seus segredos . Um imenso véu azul esverdeado recai

sobre um universo fantástico, habitado por cardumes, corais multicoloridos, e

142

KAFKA, F. “O Processo”. Tradução: Marcelo Backes. Porto Alegre – RS: L&PM, 2007. P-63. 143

SALOMÉ, L. A. “Minha vida” Tradução: Nicolino Simone Neto e Valter Fernandes. São

Paulo: Brasiliense, 1985. P-11.

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espécies marinhas das mais variadas formas. Ao olhar para o mar que se esvai

com a linha do horizonte, é possível imaginar as criaturas fantásticas que nele

habitam, ou imergir nos pensamentos mais recônditos, inspirados pela imensidão

azul, no embalo do barulho das ondas quando atingem a superfície. Olhar para o

mar é contemplar um abismo de mistério.

Já o mar e a terra não ofereciam qualquer distinção: tudo não era

mais que mar, mar a que faltavam costas. Um sobe a um monte,

outro senta-se na curva barca e maneja os remos no sítio onde há

pouco lavrara. Aquele navega sobre as searas e os telhados da quinta

submersa, este pesca um peixe no cimo de um ulmeiro. Segundo a

sorte, a âncora fixa-se num verde prado, as encurvadas quilhas

raspam os vinhedos de baixo. E onde antes as esbeltas cabrinhas

pastavam a erva, agora aí mesmo disformes focas estendem os

corpos. Sob as águas, as Nereides vêem pasmadas bosques, cidades,

casas; golfinhos ocupam florestas e chocam contra as altas ramagens,

embatem e abanam os carvalhos. Nada o lobo entre ovelhas, a onda

leva fulvos leões, tigres leva a onda; de nada vale a força das

fulminantes presas ao javali, ou velozes pernas ao cervo arrastado.

(...) O desatino desmesurado do marsepultara montanhas, e vagas

inéditas embatiam nos píncaros das serranias.

(Ovídio)144

Para a filósofa Luce Irigaray, para se aproximar do mistério é preciso

imergir no silêncio, abdicar de um ímpeto racional que nos leva a traduzi-lo em

palavras. Há um imenso abismo que aparta as subjetividades, habitado por vastos

espaços de silêncio, e canduras impenetráveis. As linhas que demarcam as

palavras podem ser borradas, como as águas do mar, cuja placidez aparente se

desfaz à medida que nos aproximamos. As camadas que à distância parecem

linhas definidas descortinam um movimento intermitente, ora próximo, ora

distante, mas que não pode ser capturado. Contemplar o mar requer um olhar

aberto, sem delimitações. Na peça de Hilst, não é o homem que atravessa o mar,

mas o mar que atravessa o homem. O mar que deságua nos homens através de um

olhar penetrante. Pelo olhar, ele penetra a alma. Como em Irigaray, trata-se de um

movimento vital, de algo que flui na superfície e nas funduras do entre. Nas

palavras da filósofa:

Deep, deeper than the greatest depths your daylight could imagine (...)

Luminous night, touched with a quickening whose denseness never

appears in the light. (...) Nothing solid survives, yet that thickness

responding to its own rhythms is not nothing. Quickening in

144

OVÍDIO. “Metamorfoses”. Tradução: Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Livros Cotovia, 2007.

Pp-42/ 44

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movements both expected and unexpected. Your space, your time are

unable to grasp their regularity or contain their foldings and

unfoldings. The force unleashed has na intensity which cannot

anywhere be measured, nor contained. Can never be obliterated unless

it is poured out in mortal ecstasy. (...) It flows between. (...) Flowing

everywhere without boundaries – deathly boundaries. 145

A terceira imagem aludida pelo verdugo para referir-se ao misterioso

homem é a de um cavalo. Seus olhos são como os de um cavalo. Não se trata de

qualquer cavalo, mas de um específico, que atravessou seu caminho. É a filha

quem relata a experiência do encontro com o cavalo, que subia a duras penas uma

ladeira íngrime, a custa das pauladas de seu dono, ferindo-lhe o focinho. O irmão

vem em defesa do animal, desafiando-o para que bata nele no lugar do cavalo.

Seria preciso ser “macho” o bastante para aceitar o desafio. Ser “macho” aparece

como sinônimo de coragem. Nem todo homem é “macho” o bastante para erguer a

mão contra ele.

Michel Foucault assinala que uma moral elaborada pelos homens e para os

homens implica em criar para si uma estrutura de virilidade, baseada no domínio

de si e de seus subordinados, pela imposição da obediência por meio da força e da

exaltação dos princípios da razão frente aos inaptos ao raciocínio e ao governo de

si. Nesse sentido, todos aqueles que não correspondem a um certo modelo de

virilidade encontram-se do lado oposto da linha que demarca o homem que

governa do homem governado, sendo o primeiro portador de uma virtude

solidamente ética, e o segundo, tal como a mulher, se desvia desse modelo, e

exige, portanto, outro modelo a seguir, um tutor que o situe no eixo. Os segundos

se subordinam aos primeiros por encontrarem nele o modelo acabado de perfeição

e princípio de funcionamento. Sob a ótica dessa moral, o homem efeminado é

aquele que se iguala à mulher, ao demonstrar fraqueza e submissão frente aos

prazeres e desejos que o habitam. É o homem passivo, desprovido de coragem.

145 “Profundo, mais profundo que a maior das profundezas imaginada à luz do dia (...) Luz

luminosa, impelida por uma aceleração cuja densidade não aparece à luz do dia. (...) Não se fixa

em permanência. (...) Nada sólido sobrevive, ainda que aquela espessura que responde a seus

próprios ritmos não possa ser reduzida a nada. Aceleração em movimento ambos esperado e

inesperado. Seu espaço, seu tempo não podem apreender sua estabilidade ou conter seus

dobramentos e desdobramentos. A força desatada tem uma intensidade que não pode ser medida

ou barrada. Nunca pode ser dissipada a menos que seja derramada em êxtase mortal. (...) Ela flui

entre. (...) Flui por toda parte sem fronteiras – fronteiras mortíferas.” Tradução livre. IRIGARAY,

L. “Elemental Passions”. Tradução franco-anglófona: Joanne Collie e Judith Still. Nova York:

Routledge, 1992. P- 13/ 18.

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Segundo Foucault: “A temperança e a coragem são no homem virtude plena e

completa de comando.”146

A ameaça do irmão suscita risos incontidos, acentuando e substituindo

palavras que ressaltam a obscenidade intrínseca ao ato de cortar a própria

genitália. Se o dono se atrevesse a bater nele assim como no cavalo, ele mesmo

seria indigno de ser “macho”. Para o filho, o ato da castração expressa uma perda

da dignidade atribuída ao masculino. Porém é anunciada como uma hipótese

remota, quase impossível. O filho considera tão absurdo que o dono do cavalo seja

“macho” o bastante para dar-lhe uma surra, que seria capaz de apostar qualquer

coisa, até mesmo sua genitália. Aos olhos da irmã, a cena toda parece risível. Ele

avança sobre o dono do cavalo, tal como um leão. Ele é corajoso, a ponto de ser

comparado ao rei das selvas. O leão também é protótipo de coragem. Assim como

o leão afugenta suas presas, o dono do cavalo é tomado por um temor verossímil,

e põe-se a correr da fera. O medo é tamanho que ele corre “feito doido”, ou seja,

aflito, desnorteado. Ao entender o que se passara, o cavalo prefere seguir aquele

que o salvara que a seu dono, seu agressor. Os olhos do cavalo expressam uma

compreensão quanto às injustiças do mundo. Ele resiste, não quer subir a ladeira.

Quando alguém mais forte vem a seu socorro, ele prefere segui-lo a perpetuar seu

flagelo. Seus olhos são inundados de esperança.

Mas o mundo foi rodando

Nas patas do meu cavalo

E já que um dia montei

Agora sou cavaleiro

Laço firme e braço forte

Num reino que não tem rei

(Geraldo Vandré / Theo de Barros) 147

As alegorias evocadas pelo verdugo para designar o homem nos fornecem

pistas para ilustrar o invisível. As alegorias são artífices de mistérios, que o

preservam, mas suscitam sutileza. Para a filósofa Luisa Muraro, são palavras que

sugerem o indizível, o inexplicável. Nem tudo é decifrado, decodificado. Há uma

última palavra que se cala. Nas palavras de Muraro:

146

FOUCAULT, M. “História da Sexualidade 2 – O Uso dos Prazeres”. Tradução Maria Thereza

da Costa Albuquerque. São Paulo: GRAAL,13ª edição, 1ª reimpressão, 2010. P-104. 147

Composição: Geraldo Vandré / Theo de Barros. “Disparada”. Letra extraída do sítio eletrônico:

http://letras.terra.com.br/geraldo-vandre/46166/

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Lo Otro puede ser de tal naturaleza que, sin significarlo con otra cosa,

podría tropezar con el esfuerzo humano de explicarlo todo, y

extinguirse entonces en la banalidad de nuestras representaciones. Há

pasado con el amor. Con Dios. Con la Naturaleza. Com la psicologia

humana, que los antiguos estudiaban alegóricamente.148

O fluxo reflexivo ilustrado pelas alegorias esboçadas pelo verdugo é

interrompido pela entrada do noivo, com seu sorriso idiota, que traz uma notícia

desagradável: os juízes desejam ter com o Verdugo e aguardam do lado de fora. A

tensão segue um fluxo ascendente, como se algo estivesse prestes a explodir a

qualquer momento. A irrupção dos juízes suscita reações adversas: a esposa se

preocupa com a aparência da casa, que não estaria à altura de pessoas tão

importantes. O verdugo se recolhe em seus pensamentos e diz poucas palavras.

Quem faz sala são as mulheres da casa, que cobrem-nos de lisonjas e cordialidade.

Os juízes vão direto ao assunto, sem floreios.

JUIZ VELHO: Fiquem tranquilos. Nós só viemos para

combinar.

MULHER (servil): Por favor, sentem Excelências, sentem.

JUÍZES (sentando-se): Obrigado.

(pausa longa)

JUÍZ JOVEM (para a Mulher): A moça vai casar, não é?

MULHER: Esperamos mas (apontando para o Noivo), ele está

sem serviço.

(pausa longa)

JUÍZ JOVEM: Tudo se arruma, não é?

MULHER: Seria um presente do céu, Excelência.

JUÍZ JOVEM: Pois é.

(pausa longa)

JUÍZ VELHO: Vão melhorar de vida.

MULHER: Se Deus quiser, Excelência.

148

“O Outro pode ser de tal natureza que, sem significá-lo com outra coisa, poderia tropeçar no

esforço humano de explicar tudo, a ponto de extinguir-se na banalidade de nossas representações.

Assim se sucedeu com o amor. Com Deus. Com a Natureza. Com a psicologia humana, que os

antigos estudavam alegoricamente”. (tradução livre) MURARO, L. “El Dios de las Mujeres”.

Tradução para o espanhol: María-Milagros Rivera Garretas. Madrí: horas y HORAS, la editorial,

2006. P-84.

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JUÍZ VELHO: Parece que Deus quer.

(pausa)

JUÍZ JOVEM (para a Mulher): Mas... 149

A primeira pergunta do juiz vem seguida de uma longa pausa, na qual ele

se prepara para propor o suborno. Já está implícito na pergunta a que vieram os

juízes. A filha estaria para casar-se com um desempregado, logo, precisaria de

dinheiro. Ao dizer que “tudo se arruma”, o jovem juíz sugere que a solução desse

problema estaria em suas mãos.

“Seria um presente do céu”: Assim a mulher se refere ao auxílio

financeiro que talvez viria a ampará-los. A afirmação positiva do jovem juiz dá a

entender que ele se vê acima dos demais membros da vila, como se fosse uma

divindade celeste. Segue uma longa pausa reflexiva. O velho juiz reforça essa

ideia, quando a mulher diz “se Deus quiser”e ele responde como se fosse ele

mesmo Deus, ou alguém bem próximo: “Parece que Deus quer”. Os dois juizes,

cheios de soberba, trajam togas pretas, que distanciam-nos dos demais

personagens, como se falassem de um pedestal.

Não! Não sou o príncipe Hamlet, nem pretendi sê-lo.

Sou um lorde assistente, o que tudo fará

Por ver surgir algum processo, iniciar uma ou duas cenas,

Aconselhar o príncipe; enfim, um instrfumento de fácil

manuseio,

Respeitoso, contente de ser útil,

Político, prudente e meticuloso;

Cheio de máximas e aforismos, mas algo obtuso;

Às vezes, de fato, quase ridículo

Quase Idiota, às vezes.

(T.S. Elliot)150

Por trás da cordialidade exagerada nos pomposos pronomes de tratamento

dirigidos aos juizes, estão interesses pessoais, inspirados pela suposta recompensa.

Isso exige uma contrapartida: o homem tem que ser morto. Os juízes não estão lá

para fazer filantropia. Tão logo o juiz jovem dá a entender que existe um “porém”,

a mulher resolve ganhar tempo e pergunta se pode oferecer-lhes alguma coisa. A

mulher é bastante astuta, e se utiliza de diversas artimanhas para manter os juízes

149

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

P-374 / 378. 150

ELLIOT, T.S. “Poesia”. Tradução: Ivan Junqueira. São Paulo: Arx, 2004. P-55.

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ocupados, na esperança de que seu marido tenha tempo para considerar a oferta.

Os juízes têm pressa: sequer tiveram tempo de passar em casa para trocar de

roupa. Ligeira, a filha elogia a toga do jovem juiz, com uma voz feminina

dissimulada, exageradamente dócil. O juiz responde seco: “É pesada”. O peso que

recai sobre a toga pode ser interpretado em um duplo sentido: o peso do pano, e

um peso ainda maior, que corresponde ao peso do poder judiciário: a

responsabilidade de decidir sobre quem é inocente e quem é culpado, quem é livre

e quem é prisioneiro, quem vive e quem morre. O velho juiz lembra à moça que

ela está prestes a se casar, e interrompe sua tentativa fracassada de seduzir seu

companheiro de ofício. Ela olha para o noivo e sorri. Todos sorriem: um riso

amarelo, constrangedor, de quem quer mudar de assunto. E assim o fazem. De um

assunto desagradável, vão para outro mais desagradável ainda.

JUIZ JOVEM (para o Verdugo): Bem, o senhor sabe como é... o

homem... tem de morrer.

MULHER: Sabemos, lógico. Tem de morrer.

JUIZ JOVEM: Não há outro jeito.

JUIZ VELHO (para o Verdugo): Ele falou demais. O senhor

compreende? E boca deve ter uma medida. 151

Ele falou demais, confundiu as pessoas, disse coisas perigosas, passou dos

limites. Sua boca extravasou, ultrapassando a medida que o Estado considera

plausível. Muitos ali presentes parecem não entender as coisas que ele diz. O fato

é que muitas pessoas tramitam em torno do homem, de modo a ser difícil chegar

perto. Segundo a mulher, a multidão é movida por curiosidade. Ele seria a

novidade da vila, afinal, não havia na vila muito o que fazer. Isso é bastante

comum em pequenas cidades e vilarejos pacatos: sempre que algo altera o curso

normal dos acontecimentos, assume o semblante de um grande evento: pode ser a

chegada de uma pessoa de fora, um pequeno incidente ou algo aparentemente

insignificante. Tudo o que é inexplicável se revela como milagre, o homem

estranho torna-se um santo. Os juízes são implacáveis, e não parecem se

sensibilizar com a vontade do povo da vila.

151

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

P-374 / 378 / 379.

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JUIZ JOVEM (para o Verdugo): O senhor já está preparado,

então.

MULHER: Ah, está sim, ele não precisa se preparar muito.

(sorri) É o ofício dele, de sempre, (para o marido) não é?

FILHO: O pai não respondeu.

MULHER: Vai saindo, menino. Você não tem a escola?

FILHO: Hoje eu não vou à escola.

MULHER: Imagine, vai de qualquer jeito, vamos.

JUIZ JOVEM: Espera um pouco, senhora. (olha para o rapaz)

O moço quer dizer alguma coisa?

MULHER: Ele não quer dizer nada, Excelência. Ele é um

menino, só isso. (para o Filho) Vai.

JUIZ JOVEM: Não. Ele quer dizer alguma coisa.

JUIZ VELHO: Pode falar, moço. O que é (pausa) Hein?

(pausa)

FILHO: O homem é bom.

MULHER: Cala a boca. 152

O silêncio do verdugo provoca aflição no recinto. A mulher fala em seu

lugar: sim, ele está preparado, afinal este é seu ofício. O filho chama atenção ao

fato de que seu pai não havia respondido coisa alguma, para desconforto da mãe,

que trata de mandá-lo à escola o mais rápido possível. Quanta petulância de seu

filho se atraver a colocar tudo a perder em um momento tão delicado! Ele tinha

que se calar, caso contrário, atrairia suspeitas contra si mesmo. No período em que

a peça foi escrita, falar era perigoso. Qualquer suspeito como “inimigo interno” do

Estado podia ser preso preventivamente. 153

Atenção, ao dobrar uma esquina

Uma alegria, atenção menina

Você vem, quantos anos você tem?

Atenção, precisa ter olhos firmes

Pra este sol, pra esta escuridão

152

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

P-374 / 379 / 380. 153

Em 1968, menos de um ano antes de a peça ser escita, o governo Costa e Silva decreta o Ato

Institucional número 5 (AI-5), que pressupõe o fechamento do Congresso e das assembléias

estaduais e câmaras municiais; a caçação de mandatos, a suspensão de direitos políticos, a

demissão massiva de funcionários públicos civis e militares, bem como juízes; está decretado o

estado de sítio.

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Atenção

Tudo é perigoso

Tudo é divino maravilhoso

Atenção para o refrão:

É preciso estar atento e forte!

Não temos tempo de temer a morte!

Caetano Veloso / Gilberto Gil 154

O juiz jovem não é ingênuo, e percebe que o filho tem algo a dizer. Os

olhos da justiça se voltam para o filho: consideram-no suspeito em potencial.

Colocam-no contra a parede até que ele enfim confessa sua simpatia pelo

condenado. As especulações sobre a opinião do jovem se assemelham aos

inquéritos policiais analisados por Michel Foucault: “O inquérito, exercício da

razão comum, despoja-se do antigo modelo inquisitorial para acolher o outro

muito mais flexível (e duplamente reconhecido pela ciência e o senso comum) da

pesquisa empírica.” 155

Assim como Foucault observa nas investigações criminais

em “Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão”, os juízes exercem uma pressão

psicológica até arrancar uma confissão. Não tanto pela violência, mas pela força

ideológica da jurisprudência.

JUIZ VELHO (para o Filho): Você acha que a lei se enganou, meu

filho?

MULHER: Por favor, Excelências, o meu menino não sabe nada.

Começou a estudar há pouco tempo.

JUIZ VELHO (insistindo): Hein, moço? A lei se enganou?

(pausa)

FILHO: Eu disse que o homem é bom.

JUIZ JOVEM: Você acha que é bondade falar o que ele fala?

NOIVO (o mesmo sorriso): O meu colega do meu emprego antigo

morreu naquele dia, quando o homem falou.

JUIZ VELHO (para o Filho): Então, meu filho.

FILHO (para o Noivo): Morreu porque mataram. Não foi o homem

quem matou.

154

“Divino Maravilhoso”Composição de Caetano Veloso e Gilberto Gil, cantada por Gal Costa.

Letra disponível no sítio eletrônico: http://letras.terra.com.br/gal-costa/248671/ 155

FOUCAULT, M. “Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão”. Tradução: Raquel Ramalhete. 37ª

Edição. Petrópolis-RJ: Vozes, 2009.

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JUIZ VELHO: Morreu, meu filho, porque o homem enlouqueceu as

gentes. Agitou.156

As palavras do rapaz podem ser usadas contra ele: cabe ao jovem cidadão

questionar as leis do Estado? O Estado não erra. Se o homem está marcado para

morrer, ele não pode ser bom. Isso suscita novas perguntas, cada vez mais

capciosas. A pressão sobre o verdugo se desvia, e recai em seu filho. Ao ser

questionado, ele se repete, pois sabe que, a qualquer pisada em falso, ele está

sujeito a cair na arapuca dos juízes, defensores das leis. As leis estão acima e

aquém dos humanos. São como dogmas: sagradas e inquestionáveis. Enquanto o

juiz velho se ocupa de colocar o rapaz contra a parede, o jovem juiz prefere

dissuadi-lo de seu equívoco. O primeiro exerce sua autoridade pela força, o

segundo pela persuasão ideológica. O primeiro se faz valer pelo antigo sistema

jurídico, baseado no suplício e na punição espetacular dos corpos, enquanto o

segundo tem em vista o que Foucault chama de “economia calculada do poder de

punir” 157

. O cálculo não se dá em função do crime, mas tem como meta impedir

sua repetição. A discrepância entre as posturas dos dois juízes reflete o conflito

entre duas concepções de jurisprudência, em camadas temporais que coexistem: a

antiga e a moderna. Nas palavras de Foucault:

É preciso punir exatamente o suficiente para impedir. Deslocamento

então namecânica do exemplo: numa penalidade de suplício, o

exemplo era a réplica do crime; devia, por uma espécie de

manifestação germinada, mostrá-lo e mostrar ao mesmo tempo o

poder soberano que o dominava; numa penalidade calculada pelos

seus próprios efeitos, o exemplo deve-se referir ao crime, mas da

maneira mais discreta possível; indicar a intervenção do poder, mas

com a máxima economia, e no caso ideal impedir qualquer

reaparecimento posterior de um e outro. O exemplo não é mais um

ritual que manifesta, é um sinal que cria obstáculo. Através dessa

técnica dos sinais punitivos , que tende a inverter todo o campo

temporal da ação penal, os reformadores pensam dar ao poder de punir

um instrumento econômico, eficaz, generalizável por todo o corpo

social, que possa codificar todos os comportamentos e

consequentemente reduzir todo o domínio difuso das ilegalidades. 158

O noivo, com o mesmo sorriso idiota estampado em seu rosto, fornece um

exemplo medíocre, em uma tentativa tosca de provar que o homem não podia ser

156

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

P-374 / 380 / 381. 157

FOUCAULT, M. “Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão”. Tradução: Raquel Ramalhete. 37ª

Edição. Petrópolis-RJ: Vozes, 2009. P-95 158

FOUCAULT, M. “Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão”. Tradução: Raquel Ramalhete. 37ª

Edição. Petrópolis-RJ: Vozes, 2009. P-90.

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bom. Quando o homem falou, seu antigo colega de trabalho morreu. O exemplo

não apresenta uma relação de causa e efeito, mas insinua que o discurso do

homem teria alguma coisa a ver com o falecimento de seu colega. O juiz velho

parece satisfeito com a resposta. O filho está por dentro do ocorrido. Segundo ele,

o colega foi assassinado. Não foi o homem quem cometeu o crime. A acusação

não é direta, mas fica no ar que a responsabilidade do crime recai sobre o Estado,

personificado pela figura soberba dos juízes. O velho juiz não confessa de maneira

explícita, mas dá a impressão de que está se justificando, ao discorrer sobre os

motivos da morte do colega. Sua morte é atribuida ao misterioso homem, pois

fora contaminado por suas ideias. O colega teria sido inflamado pela agitação do

homem.

Quando Hilst escreveu a peça, a agitação política era considerada um

crime inaudito. Se o Estado é sagrado, o ato de incitar contra o governo

corresponde a uma heresia imperdoável. Prisão, tortura e assassinato são

instrumentos de governo utilizados para coibir a agitação política. A noção de

“inimigo interno” serviu de pretexto para o golpe militar de 1964 no Brasil.

Florestan Fernandes entende que a ditadura militar foi o recurso utilizado pelas

classes dominantes enquanto “mecanismo de autodefesa política”159

na tentativa

de conter o acirramento da luta de classes e dizimar o espectro do comunismo,

sentido como uma ameaça no Brasil, tal como em outros países da América

Latina. Foram lançadas as bases da caça às bruxas, como ficou conhecido o

Macartismo, um plano que durante os anos da Guerra Fria (1945-1991) lançou

mão de estratégias de perseguição política aos comunistas dentro e fora do

território estadunidense. Preocupado com o avanço do comunismo pelo mundo, o

Senador Joseph McCarthy desencadeou uma onda de difamação, perseguição e

punição contra os elementos acusados de “subversivos”, que assim como “as

bruxas de Salem”160

de Arthur Miller, não precisavam de provas para ser postos

fora de circulação (seja pela prisão, pelo sequestro, ou pelo assassinato – operando

à margem da legalidade). As bruxas teriam como destino último a fogueira; o

resultado é bastante análogo. Ao recusar-se a delatar um suposto círculo literário

159

FERNANDES, F. “Circuito Fechado – Quatro ensaios sobre o “Poder Istitucional”, São Paulo:

HUCITEC, 2ª Edição, 1977. p-105.

160 MILLER, Arthur .”The Crucible – Penguin Plays (As Bruxas de Salem)” Nova York: Penguin,

6ª Edição, 1982.

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cujos membros seriam ligados ao Partido Comunista, Arthur Miller escreve essa

peça em 1953, em pleno ápice da histeria macarthista nos Estados Unidos. Ele

admitia ter assistido a algumas reuniões em 1947 e assinado alguns manifestos,

mas alegava a sua inocência frente ao crime de “subversão”, obtendo a anulação

de sua sentença em 1958. Eis que na peça de Hilst, um colega de trabalho do

noivo teria se inspirado nas palavras do misterioso homem, a ponto de apresentar

uma ameaça ao Estado. Ameaça entendida em termos vagos, já que a caça aos

“inimigos internos” faz com que qualquer um seja considerado suspeito, por

motivos aleatórios.

O diálogo termina com um silêncio constrangedor. Todos os olhares

voltam-se para o verdugo. Os olhares são como lâminas, que fulminam o

protagonista, como se ele fosse culpado de um crime terrível e teria que pagar por

isso. Eles já não contam mais com a cooperação do verdugo. Nesse olhar já não há

esperanças. O silêncio às vezes diz mais que mil palavras. Todos entendem sua

recusa. Quando um dos juizes está prestes a elaborar isso em palavras, o verdugo

resolve falar. Seria, pois, arriscado deixar que o juiz rompa o silêncio, podendo

complicar ainda mais as coisas para ele. O protagonista é objetivo, e alega não

estar preparado. Isso suscita um alarde entre os juízes e sua esposa, que o

pressionam para que justifique porque não estaria preparado para cumprir seu

dever. O filho intervém, e diz que seu pai não quer matar o homem. O verdugo

titubeia, abaixa a cabeça, e diz não se sentir capaz de fazer o serviço. As pressões

aumentam, e ele finalmente confessa que considera o homem inocente. Ele não

acha que o homem mereça a morte. Enquanto o velho juiz constata que sua morte

já está decidida, o jovem juiz mais uma vez tenta convencê-lo de que fizeram o

possível para impedir que a situação chegasse a esse ponto. Seus direitos teriam

sido devidamente respeitados.

Todos os julgamentos julgam a nossa vida, assim como todas as

sentenças são sentenças de morte – e eu já fui julgado três vezes. Na

primeira, saí do banco dos réus para a prisão, na segunda para

retornar à prisão, na terceira para passar ainda dois anos no cárcere.

A sociedade, tal como a fizemos, não tem nenhum espaço para me

oferecer, mas a natureza cuja chuva cai tanto sobre o justo quanto

sobre o injusto terá covas nos rochedos onde poderei ocultar-me e

vales secretos em cujo silêncio poderei chorar sem ser perturbado.

Ela encherá a noite de estrelas para que eu possa caminhar na

escuridão sem tropeçar e fará com que o vento apague as minhas

pegadas para que ninguém possa ferir-me.

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105

(Oscar Wilde)161

O Verdugo pondera: “mas ninguém ficou satisfeito”, – referindo-se ao

povo da vila. Porém, segundo o jovem juiz, não cabe ao povo da vila o papel de

julgar o réu. Esta função é atribuída a poucos, ou seja, eles mesmos. Ser juiz não é

para qualquer um. Ao perceber que não seria possível convencê-lo por

argumentos, os juízes mudam de tática. Os juízes então apelam para o suborno, o

que já teria surtido os efeitos desejados com outros membros da família (exceto o

filho). Para suavizar seu delito, os juízes preferem se referir ao suborno como um

“auxílio”. As mulheres querem saber no que consiste esse “auxílio” em cifras.

Treze milhões, talvez mais algumas regalias, como um terreno próximo à praça.

Ao contrário do pensam as mulheres, o verdugo parece satisfeito com o que

ganha. Dinheiro nenhum pode convencê-lo. Ele está decidido. Mais uma vez, o

recinto é invadido por um silêncio estarrecedor.

MULHER (para o Verdugo): Você não vai fazer? (pausa)

Hein? (pausa) Pois eu faço.

VERDUGO (encarando-a): Faz o quê, mulher?

MULHER (para o Verdugo, encarando-o): Se você não fizer o

que eles mandam, eu faço.

FILHO (enojado): A mãe faz o serviço do pai? Vai matar o

homem?

MULHER: Matar o homem... Que jeito de falar. Eu quero que

as Excelências saibam que eu posso cumprir a lei.

FILHO (enojado): Mãe, você está louca.

MULHER (irada): Eu posso fazer o serviço que o seu pai faz,

mas que agora por estupidez não quer fazer. Ninguém vai

desconfiar de nada. Eu sou do tamanho dele, (encosta-se ao

Verdugo) olhem. E tem o capuz.

Todos estão surpresos.

NOIVO: A senhora não vai saber... vai?

VERDUGO (ainda sem acreditar): Eu que sou o verdugo,

mulher.

MULHER: Qualquer um pode ser verdugo.162

161

WILDE, O. “De Profundis e Outros Escritos do Cárcere”. Tradução: Júlia Tettamanzy e Maria

Angela Saldanha Vieira de Aguiar. Porto Alegre: LP&M, 1998. P-168.

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A proposta inusitada da esposa do Verdugo é recebida com grande alarde.

Este momento corresponde a um divisor de águas na peça, em que o papel de

protagonista desliza de um personagem para outro. Os holofotes em torno do

verdugo lançam luz sobre sua esposa, que assume seu lugar. A princípio, isso

evoca um estranhamento que vira a casa às avessas, mas a ideia não é descartada.

As mulheres na peça têm um papel bastante fixo e imanente: foram criadas para

ser donas de casa. A jovem está com o casamento marcado, não vai à escola ou,

tampouco, tem ocupação fora de seu núcleo familiar. Ela se projeta como futura

dona de casa. A esposa é efetivamente dona de casa: essa é sua função social.

Ainda que movida pela ganância, ela está disposta a transcender ao seu

confinamento, tomando o lugar do carrasco. Ela está disposta a matar para saciar

seu desejo, que repousa na recompensa. Mais do que isso: ela pretende se travestir

de homem, ocultada pela opacidade de um capuz preto. Esse não é um papel

desempenhado por mulheres. A fim de ver o caminho livre para assumir o papel

de verdugo, a esposa transcende as barreiras sociais pelo travestimento.

Transcendência em uma acepção negativa, pois ela se torna sujeito por abdicar de

sua condição de mulher. De acordo com a filósofa Simone de Beauvoir:

Para encarar o universo como seu, para se estimar culpada de seus

erros e vangloriar-se de seus progressos, é preciso pertencer à casta

dos privilegiados (homens); é somente a esses, que lhe detém os

comandos, que cabe justificá-lo, modificando-o, pensando-o,

desvendando-o; só eles podem reconhecer-se nele e tentar imprimir-

lhe sua marca. É no homem e não na mulher que até aqui se pôde

encarnar o Homem163

.

Em um ato de desespero diante da recusa do marido, ela assume o lugar

deste, desfazendo tabus em desejo, como quem solta um grito de alforria. Pela

violência masculina, ela encontra uma possibilidade de auto realização, motivada

pela promessa de uma vida melhor.

O dramaturgo João Silvério Trevisan164

esboça um histórico do

travestimento nos palcos brasileiros desde a época da coroa portuguesa. No

reinado de Dona Maria I, em 1780, foi promulgado um decreto proibindo a

162

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

Pp- 385/ 386. 163

Id. Ibidem. Pg 481. 164

TREVISAN, J. S. “Devassos no Paraíso”. Rio de Janeiro: Record, 2000.

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presença de mulheres no palco ou nos bastidores, camarins etc. Segundo Trevisan,

a prática profissional do travestimento constituía um chamariz para o grande

público ao longo da história do teatro brasileiro. A personagem “Heloísa de

Lesbos”em O rei da Vela de Oswald de Andrade e seu irmão “Totó Fruta-do-

Conde” aparecem como personagens travestidos, que usam e abusam dos clichês

socialmente edificados em torno das intersecções de gênero. A partir da década de

1970, o desbunde tropicalista e o grupo teatral Dzi Croquetes radicalizam o

travestimento e o cross-gender, inaugurando um questionamento acerca da

ambiguidade dos papéis sexuais, cuja rigidez se revela uma ficção. Hilda Hilst

escreveu “O Verdugo”em 1969, trazendo ao palco uma figura menos comum no

teatro de seu tempo: o travestimento feminino.

Retomando o curso da elocução, o marido lembra a sua consorte que é ele

o verdugo. A resposta de sua esposa é implacável: “qualquer um pode ser

verdugo”. Com isso, ela atenta para o fato de que qualquer pessoa pode se prestar

ao papel de carrasco. Mais do que isso: há um verdugo dentro de cada um de nós.

Um verdugo, que habita os nossos desejos mais recônditos, nossas fantasias,

nossos pensamentos, algo que orienta nosso agir, impelindo-nos para o momento

preciso da execução de quem estiver em nossos caminhos. Qualquer um pode

levantar uma foice para outro ser humano. A barbárie corre pelos fios mais

capilares dos nossos corpos, como uma força que ora se recolhe, ora aflora.

Qualquer um pode ferir outra pessoa. Esse capuz serve a qualquer um.

Porém isso que a esposa do verdugo propõe é ilegal. Os juízes não

respondem aos apelos do verdugo e de seu filho para que as leis sejam respeitadas.

Eles não dizem que sim, nem que não. Mais uma vez o silêncio comunica a

resposta e o filho braveja contra os juízes: “Canalhas, canalhas!” O juiz velho põe

a mão em seu ombro e tenta se explicar, mas o filho o repele, com asco. Suas

emoções afloram, para desconsolo da mãe. O verdugo tenta reagir, mas é

interrompido pelos juízes. A interrupção opera como uma censura: é preciso fazê-

lo calar. Suas palavras podem ser perigosas. Eles temem que o verdugo tente

persuadir sua mulher a desistir de seu plano maluco. Ele é, afinal, seu marido.

JUIZ JOVEM (para a Mulher, objetivo): A senhora acha que pode

fazer o serviço?

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MULHER (olha para o marido, para o filho, hesita um pouco, mas

olha em seguida para a filha e resolve): Posso, muito bem até.

VERDUGO (muito emocionado): Mulher, não fala assim. Você não

vai fazer nada.

MULHER (exaltada): Não vou fazer? Eu não tenho medo de você. Eu

é que sei... Entra ano, sai ano, é sempre esse desassossego de não

saber o que vai ser de nós. (olha para os juízes) Deviam pagar melhor

os verdugos, sem eles a vida não fica fácil nem para Vossas

Excelências. Sem os verdugos não há segurança. (para o marido,

sumplicante) Homem, pensa no teu filho também...

FILHO: Não me mete nisso, mãe, eu penso como o pai.

MULHER: Ah, pensa? Não é você, seu desgraçado, que diz todo dia

que não quer ser mandado por ninguém? Que quer correr o mundo e

falar com as gentes? E você pensa que vai poder fazer o que quer se

não estudar? E para estudar precisa dinheiro, desgraçado, dinheiro.

FILHO: Eu não quero mais nada, mãe, eu não quero nada à custa da

morte desse homem.

FILHA: Mas esse homem já está morto, imbecil.

JUIZ VELHO: Isso é verdade. Pela lei, ele já está morto.

NOIVO (para o Filho): Olha, meu chapa, a vida é assim mesmo.

Todo mundo morre. 165

Chegou a hora de a mulher selar o seu compromisso com os

representantes do Estado. Apesar de se mostrar bastante decidida, por um instante

ela vacila, ao olhar para o marido e o filho que a desaprovam com olhares

penetrantes. Porém em seguida ela olha para a filha, prestes a se casar e que está

contando com recompensa, então vai em frente. Nada pode fazê-la voltar atrás a

partir desse momento sublime. O marido fica perplexo com o fato de a sua mulher

ir tão longe a ponto de agir contra ele. Ele está profundamente ferido e

decepcionado. O verdugo se encontra invadido por uma sensação de impotência: é

ela quem tem a palavra final, e não há nada que ele possa fazer para modificar o

curso dos acontecimentos. Ou quase nada.

Então ela desabafa: os anos se passam e a vida continua precária. “Deviam

pagar melhor os verdugos”. Afinal, eles tornam a vida mais fácil para todos,

inclusive para os juízes. Ao serem arrancadas as ervas daninhas, a vida se

prolifera no jardim: pela morte. Eis o paradoxo: a morte é necessária para a vida.

165

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

Pp- 388/ 389.

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Morrem os elementos indesejáveis, para que a vida dos demais encontre sua

plenitude. Se os “inimigos internos” são postos fora de campo, acredita-se viver

com mais “segurança”. Ambos os conceitos de “inimigo interno” e de “elementos

subversivos” foram definidos em termos vagos, de modo que qualquer opositor

pode se converter em uma ameaça, e merece arcar com severas consequências.

Quando a personagem fala em zelar pela segurança, não se trata de garantir a

integridade física dos habitantes da vila, mas antes de assegurar a “segurança” do

establishment. É preciso que se pague bem aos verdugos, pois eles são necessários

à segurança do Estado. Se eliminassem todos os agitadores, a vila seria um

ambiente “seguro”.

A elipse de um grito

vai de monte

a monte.

Desde as oliveiras

será um arco-íris negro

sobre a noite azul.

Ai!

Como um barco de viola

o grito fez vibrarem

longas cordas do vento.

Ai!

(As pessoas das covas

Erguem seus candeeiros.)

Ai!

(Federico García Lorca)166

Tão logo a mulher alude ao futuro do filho, este, por sua vez, tira seu

corpo fora de campo, ao atestar que compartilha a desaprovação proferida pelo

pai. O apelo à liberdade inverte a prerrogativa de reprovação, ao passo que a mãe

elucida a aversão do filho ao fato de ter que obedecer a ordens. Por que ela teria

que obedecer-lhe, quando ele mesmo se recusa a obedecer? Por que só ele poderia

realizar seus próprios desejos, e ela não? Para a filósofa Simone de Beauvoir, a

relação entre mãe e filho se torna algo complexo à medida que o filho cresce:

Ele é um duplo e por vezes ela é tentada a alienar-se inteiramente nele,

mas ele é um sujeito autônomo, logo rebelde; é hoje vivamente real,

mas no fundo do futuro um adolescente, um adulto imaginário, uma

riqueza, um tesouro; é também um fardo, um tirano. 167

166

LORCA, F. G. “Obra Poética Completa”. Tradução: William nAgel de Melo. São Paulo:

Imprensa Oficial, 5ª Edição, 2004. P-185. 167

BEAUVOIR, S. “O Segundo Sexo – Volume 2: A Experiência Vivida”. Tradução: Sérgio

Milliet São Paulo: DIFEL, 3ª Edição, 1975. P-280.

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Em seguida, ela ressalta que seus quereres têm um limite. Se ele não

estudar, não vai poder fazer o que quiser, porém os estudos requerem um

investimento prévio. Sem o dinheiro de seus pais, ele não teria condições de

estudar e se realizar de acordo com sua vontade. O ato de se realizar está

intimamente vinculado a uma profissão. Se para a mulher a felicidade, em grande

medida, consiste em casar e procriar, para o jovem, ela está calcada na

constituição de uma carreira promissora. No pensamento patriarcal, uma mulher

bem-sucedida é uma mulher bem casada. Nesse sentido, o espaço reservado à

mulher é da ordem do privado. Só em algumas áreas restritas há espaço para a

mulher fora do domínio do lar. A historiadora Michelle Perrot lança um olhar

atento sobre os deslocamentos desse espaço permitido às mulheres:

[As mulheres] migram quase tanto quanto os homens , atraídas pelo

mercado de trabalho das cidades, onde acham emprego principalmente

como empregadas domésticas. Essas cidades, que as chamam sem

realmente acolhê-las, empenham-se em canalizar a desordem

potencial atribuída à coabitação entre homens e mulheres. Daí uma

segregação sexual do espaço público. Existem lugares praticamente

proibidos às mulheres – políticos, judiciários, intelectuais, e até

esportivos... – ,e outros que lhes são quase exclusivamente reservados

– lavanderias, grandes magazines, salões de chá... Na cidade, espaço

sexuado, vão porém se deslocando, poico a pouco, as fronteiras entre

os sexos.168

Já um homem bem-sucedido é um homem capaz de alcançar um cargo de

prestígio em uma empresa. O homem proveniente de uma família abastada pode

ascender em uma empresa com alguma facilidade. Por exemplo, ele pode herdar a

empresa da família, ou ser indicado para cargos de prestígio por meio de

influências familiares. No caso de uma família humilde, os estudos constituem a

principal via de ascensão socioeconômica. Mas para o filho, a ética custa mais do

que dinheiro. Uma ética que lança luz sobre valores que estão acima do dinheiro.

Ele está disposto a abdicar de tudo em nome daquilo que aquele homem

representa.

Em chamas, fuguras de cifras e palavras

saltam do crânio

como crianças duma casa a arder,

com o mesmo terror

com que se ergueram

ao céu

braços acesos no convés do Lusitânia.

168

PERROT, M. “Mulheres Públicas”. Tradução: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: UNESP, 1ª

Reimpressão, 1998. P-37.

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111

Ante a gente tremendo

no silêncio do lar,

um brilho de cem olhos explode do refúgio.

Ó meu último grito, –

pelo menos tu

brada que estou a arder pelos séculos fora.

(Vlamidir Maiakóvski)169

A filha é bastante pragmática, e constata que a morte do homem já é um

fato consumado, portanto lutar por sua vida seria uma perda de tempo. Segundo a

personagem, seu irmão teria que aceitar os fatos e dar prosseguimento aos seus

estudos. Caberia a ele se conformar, ater-se a seu lugar. Para ela, questionar a

autoridade equivale a um disparate inaudito. Vem-lhe à baila a ideia de um

confinamento, no compasso de papéis fixos, onde cada um cuida do que lhe cabe.

Se as autoridades determinam que o homem precisa morrer, sua morte deve ser

aceita como uma realidade inquestionável. Ele já é tido como morto, mesmo antes

de sua execução. É cômodo se conformar, porém isso cobra o seu preço: o

engessamento da imanência, a impossibilidade de se constituir como sujeito. Sua

ação só pode se desenvolver em um sentido unívoco, restando uma margem

estreita para a escolha inerente ao sujeito. Conformar-se pressupõe a manutenção

da ordem estabelecida, sem possibilidade de desvio.

O horrível, Madame, está na imobilidade destas paredes, destas

coisas, na familiaridade dos móveis que vos rodeiam, dos acessórios

de vossa adivinhação, na indiferença tranquila da vida na qual vós

participais como eu. E vossas vestes, Madame, essas vestes que tocam

uma pessoa que vê. Vossa carne, todas as vossas funções enfim. Não

posso me acomodar a essa ideia de que estejais submetida às

condições do Espaço, do Tempo, que as necessidades corporais vos

pesem. (...) Aos olhos de meu espírito, não tendes limites nem bordas,

sois absolutamente, profundamente incompreensível.

(Antonin Artaud)170

O noivo compartilha e reforça a postura conformista de sua futura

consorte, ao atestar que todos morrerão um dia. A morte é inerente à vida. A

finitude da vida é uma das poucas certezas que temos, porém o personagem se

utiliza dessa constatação para relativizar seu percurso e duração. Já que todos

morrerão um dia, pouco importa se o Estado tratar de interromper um fluxo vital.

169

MAIAKÓVSKI, V. “A nuvem de calças”. In: “Poetas Russos”. Tradução e Organização:

Manuel de Seabra. Liboa: Relógio D’Água Editores, 1995. P-77. 170

ARTAUD, A. “Carta à Vidente – para André Breton” In: ARTAUD, A. “Linguagem e Vida”.

Tradução: Jacó Guinsburg. São Paulo: Perspectiva 1ª Edição, 4ª Reimpressão, 2008. P-222.

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112

A ignorância do personagem, que nunca perde aquele sorriso idiota estampado em

sua face, funciona como uma sátira da opinião pública propagada pelos meios de

comunicação. Ele leva até o limite o conformismo das classes médias, despido de

qualquer indício de pensamento autônomo. No decorrer da peça, ele bajula os

juízes e faz questão de falar que concorda com cada coisa que eles dizem, ainda

que sua opinião jamais seja solicitada. O personagem expressa um

deslumbramento com as autoridades, e repete tal como um papagaio aquilo que

dizem a partir do cânone, exaltando os ridículos que frequentemente se repete sem

pensar, sempre de cima para baixo.

No cemitério, à direita, cobriu-se o túmulo de pó

e, por trás dele, brotou um rio azul.

Tu me disseste: “Então

vai para o convento

ou casa-te com um idiota...”

Só os príncipes falam sempre assim.

Mas eu me lembro dessas palavras:

deixem que elas flutuem por cem séculos

como um manto de arminho jogado sobre os meus

ombros.

(Anna Akhmátova)171

As batidas fortes na porta em uma hora bastante avançada provocam

suspeitas, acentuando um clima de desconfiança que comumente se dissemina em

tempos de incerteza e efervescência. Tem-se a impressão de que algo ou alguém

possa conter o plano engenhoso que os juízes e a esposa do verdugo estavam

prestes a pôr em prática. Quem seria a uma hora dessas? Seria algum truque? Se o

povo da vila está contra a execução do homem, às vésperas da data firmada tudo

pode acontecer: alguém pode aparecer para estragar tudo, pode eclodir uma

rebelião. O apelo à prudência se origina de um temor calcado na incerteza quanto

ao êxito de uma missão. O mistério dura pouco tempo: é o carcereiro. A

infatigável persistência na dúvida leva a prudência a uma dimensão hiperbólica,

uma paranoia dramatizada. O carcereiro insiste, pois tem algo a comunicar com

urgência.

171

AKHMÁTOVA, A. “Antologia Poética”. Tradução: Lauro Machado Coelho. Porto Alegre:

LP&M, 2009. P-54.

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CARCEREIRO (afobado): Boa noite para todos, Excelências, as

pessoas estão preparando alguma coisa. Tem uma coisa no ar.

JUIZ VELHO: Que coisa, homem? Você está assustado.

CARCEREIRO: Eu não me assusto com poucacoisa, Excelência.

NOIVO: Ele é um homem muito valente.

FILHO: O que é que você sabe da valentia dele, seu bobo?

FILHA (para o irmão): Cala essa boca.

NOIVO: Ele deu na cara daquele que matou os menininhos.

FILHO: O homem estava com as mãos amarradas. Bela valentia essa.

JUIZ VELHO: Silêncio, por favor.

JUIZ JOVEM (para o Carcereiro): Diz direito o que é que há,

homem.

CARCEREIRO (um pouco grotescamente): Eu estou lá em minha

mesa. O homem está quieto. Ele fica num canto da cela, de costas para

mim. É o jeito dele, já me acostumei. De repente, ouço um grito lá

fora: (grita) A vida! A vida!

JUIZ VELHO: Não grite assim.

CARCEREIRO: Desculpe, Excelência.

JUIZ JOVEM: E depois?

CARCEREIRO: Saio depressa. E só aquela escuridão. Nada

(pausa)

JUIZ VELHO: Continuo achando que você está assustado.

CARCEREIRO: Eu sei o que digo, Excelência. É preciso apressar a

morte do homem. Se demorar muito, acontece desgraça. 172

O carcereiro anuncia que algo está no ar, como partículas de gasolina que

se alastram rapidamente, capazes de atear fogo em toda a vila com um simples

riscar de fósforos. Um espectro paira no ar, uma pressão silenciosa, insuportável.

Uma voz contida cuja mordaça estaria prestes a ceder. Seu grito celebra a vida

onde a morte se avizinha. O homem permanece em seu recolhimento, de costas,

sem dizer uma palavra. Um grito no escuro, vindo de fora, de qualquer parte não

identificada. Uma voz anônima, cujo apelo à vida provoca calafrios. Nesse grito

está implícita uma ameaça latente caso a ação planejada não siga seu curso antes

172

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

Pp- 390/ 391.

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114

do amanhecer. Se o homem amanhecer vivo, essa voz pode se multiplicar, a ponto

de fazer o establishment ruir. O momento pedia pressa e cautela, pois

caminhavam em gelo fino.

Cisne redondo no rio,

olho de altas catedrais,

alva fingida nas folhas

sou; de mim não há quem escape!

(...) A lua já mostra o fio

Do seu punhal pelos ares

que, sendo espreita de chumbo,

quer mesmo é ser dor de sangue.

Deixai-me entrar!

(Federico García Lorca)173

A princípio, o velho juiz dá pouca importância ao que diz o carcereiro,

e questiona sua valentia. Um carcereiro precisa ser corajoso e viril, não pode

sentir medo, ou demonstrar qualquer sinal de vulnerabilidade. O psicanalista

Christophe Dejours constata que: “ao medo a filosofia moral opõe à razão, em

nome da qual o sujeito virtuoso deve vencer seu medo, inclusive o medo de

morrer das conseqüências da violência. Essa atitude é a coragem”174

.

Seguindo o modelo espartano, a coragem é ensinada pela dor. Aprende-se a

resistir. Para Desjours: “o aprendizado da coragem passaria (...) pelo

aprendizado da submissão voluntária e da cumplicidade com os que exercem a

violência, mesmo sob pretexto ‘didático’!”175

A incredulidade do velho juiz enfatiza alguns julgamentos prévios e

preconceitos que atravessam à pequenez humana. É a voz de uma ignorância

apegada ao poder e ao prestígio, mas que perde de vista os seus propósitos.

A crueldade ordinária é mera estupidez. É uma total falta de

imaginação. É o resultado, hoje em dia, de sistemas estereotipados de

regras rígidas e imutáveis, e de imbecilidade. Onde há centralização

há imbecilidade. O que é desumano na vida moderna é o oficialismo.

A autoridade é destrutiva tanto par os que a exercem como para os

que a sofrem. A Direção da Prisão, e o sistema que ela põe em

prática, é a fonte básica da crueldade. (...) As pessoas que apoiam o

sistema têm excelentes intenções. Aqueles que o executam são,

também, humanos em suas intenções. A responsabilidade é

transferida para as regras disciplinares. Acredita-se que quando uma

173

LORCA, F. G. “Bodas de Sangue”. Tradução: Rubia Prates Goldoni. – 1ª Edição – São Paulo:

Peixoto Neto, 2004. Coleção: Os grandes dramaturgos. P-119. 174

DEJOURS, Christophe (2000). “A banalização da injustiça social”. Tradução: Luiz Alberto

Monjardim. 3ª Edição, Editora Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro-RJ. p-131. 175

Id. Ibidem. p-129.

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coisa é regra, ela é certa. (...) Os Juízes [são] uma classe via de regra

totalmente ignorante.

(Oscar Wilde)176

O funcionário incompetente se ocupa em se fazer grande reduzindo a

valentia do colega de trabalho, mais do que investir na qualidade e eficiência de

seu próprio ofício. O jovem juiz, pelo contrário, faz questão de ouvir o que o

carcereiro tem a dizer, pois toda informação sobre o caso em princípio lhe parece

útil. Michel Foucault descreve a passagem do antigo sistema penal francês para

um mais moderno, que abre mão do suplício, das masmorras e das grandes

fogueiras para se adentrar na consciência do cidadão.

Sob a suavidade ampliada dos castigos, podemos então verificar um

deslocamento de seu ponto de aplicação; e através desse

deslocamento, todo um campo de objetos recentes todo um novo

regime da verdade e uma quantidade de papéis até então inéditos no

exercício da justiça criminal. Um saber, técnicas, discursos

“científicos” se formam e entrelaçam com a prática do poder de punir. 177

Se o velho juiz se compraz em usar as mãos de ferro do Estado, o jovem

juíz é mais discreto, porém sistemático, frio e eficaz. O juiz novo parece mais bem

preparado, mais apto a escutar e persuadir. Para ele, a punição corresponde a um

cálculo racional. Nenhuma variável pode estar de fora. Tudo precisa ser

milimetricamente calculado. Quando a mulher tenta seduzi-lo, ele é frio e se atém

ao profissionalismo. O personagem é expressão modular do funcionário eficiente,

cujo olhar vigilante não falha. Sua eficácia consiste numa vigilância permanente e

minuciosa e no comprometimento com um sistema integrado de punir. Nas

palavras de Foucault:

A punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo

penal, provocando várias consequências: deixa o campo da percepção

quase diária e entra no da consciência abstrata; sua eficácia é atribuída

à sua fatalidade não à sua intensidade visível; a certeza de ser punido é

que deve desviar o homem do crime, e não mais o abominável teatro;

a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens.178

176

WILDE, O. “De Profundis e outros escritos do cárcere”. Tradução: Júlia Tettamanzy e Maria

Ângela Saldanha Vieira de Aguiar. Porto Alegre: LP&M, 1998. Pp-174 / 176. 177

FOUCAULT, M. “Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão”. Tradução: Ligia M. Podé Vassalo.

Petrópolis: Vozes, 2ª Edição, 1983. Pp- 25 / 26. 178

FOUCAULT, M. “Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão”. Tradução: Ligia M. Podé Vassalo.

Petrópolis: Vozes, 2ª Edição, 1983. P-15.

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116

Os juízes da peça de Hilst expressam o conflito entre o velho e o novo

sistemas penais, em um ambiente em que as camadas temporais coexistem e se

chocam. Ao ser mais uma vez pressionado pelos juízes, o Verdugo tenta se

explicar:

VERDUGO (tentando convencer os juízes): Excelências... é muito

difícil para mim... eu não sei explicar... alguma coisa está me

impedindo de fazer isso. O homem entrou no meu peito, os senhores

entendem? Ele falava que era preciso... amor... ele falava...

MULHER (com desprezo): Amor! Amor! E o que tem isso

JUIZ VELHO: Em nome do amor acontecem baixezas.

FILHO: Que baixezas?

JUIZ JOVEM: As palavras do homem eram palavras de fogo.

FILHA: Foi o que eu disse. Ele pôs fogo nas gentes. (pausa

JUIZ JOVEM: Amor... é comedimento.

JUIZ VELHO: Mansidão.179

Os personagens atribuem significados diferentes à palavra amor. O amor

ao qual o verdugo se refere é um amor vasto e profundo, que tocou seu coração e

modificou sua relação com o mundo em um sentido radical. Um amor capaz de

amolecer o coração do carrasco. Um amor que produz encantamento, que se funde

com sua alma. Um amor que cria asas coloridas, em uma metamorfose

irreversível. Sua esposa parece alheia ao significado de amor. O amor para ela é-

lhe indiferente, desprezível. Talvez jamais o tenha sentido. Se em algum momento

existisse amor em seu coração, ela abdicara dele ao tomar o lugar do carrasco. O

jovem juiz vê o amor como comedimento, afinal ele recolhia seus sentimentos e

emoções sob a égide fria de sua racionalidade. Para ele, tudo tinha que estar em

uma medida passível de controle. Já o seu colega de trabalho via o amor como

mansidão: algo que já fora calejado, passificado, pela força ou pelo hábito. O

velho juiz fala das baixezas que se fazem em nome do amor. Quantos crimes

passionais devem ter passado por seu banco de réus! Pois para ele, o amor tinha

que ser domado, amestrado. O jovem juiz associa as palavras do homem ao fogo:

179

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

Pp- 393/ 394.

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117

elas inflamavam os corações dos habitantes da vila. Para a filha do verdugo, o ato

de atear fogo nas pessoas é mais do que uma metáfora.

JUIZ VELHO: Amor... é respeitar o povo. Ele não respeitava vocês.

Ele insultava vocês.

VERDUGO: Insultava? Não sei disso.

JUIZ JOVEM: Ele chamava vocês de coiotes.

Verdugo e filho entreolham-se.

NOIVO: O que é isso?

FILHA: O que é um coiote?

JUIZ JOVEM: Um animal. Um lobo.

MULHER (para o Filho): E você defende um homem assim?

FILHO (para a mulher, exaltado): Não é isso, mãe. Ele dizia que os

coiotes não costumam viver eternamente amoitados. Que é preciso

sair da moita.

MULHER: E o que é que nós temos com os coiotes?

JUIZ VELHO (para o Filho): Sair da moita para caçar?

FILHO (exaltado): Para que vejam ao menos as nossas caras de

coiotes e respeitem a gente. E se nos respeitarem, nós poderemos um

dia... (lentamente) achar o nosso corpo de pássaro e levantar voo.

(objetivo) Mas primeiro mostrar a cara de coiote.

MULHER (com desprezo): Pássaro... coiote... o homem é louco.

JUIZ JOVEM (aproximando-se do Filho): E como é a cara de um

coiote?

FILHO (encarando fixamente o Juiz jovem com uma expressão de

dureza e ameaça): Uma cara... assim. 180

Tão logo o juiz velho faz menção à palavra coiote como um insulto

proferido contra o povo, pai e filho se entreolham. Eles sabem alguma coisa que

os juízes ignoram. Não se trata de um insulto, mas parte de um vocabulário

interno, que tem um significado compartilhado por um determinado grupo.

Ninguém mais no recinto sabe o que o misterioso homem queria dizer com coiote.

O filho explica que os coiotes não se escondem para sempre atrás das moitas. O

coiote, antes de sair da moita, passa por estratégias de empoderamento, que se

180

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

Pp- 394/ 395.

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assemelham ao confinamento da lagarta em seu casulo, antes de virar borboleta. O

ato de sair da moita é como transcender a uma opressão, deixar um espaço de

confinamento e mostrar a cara. Sair da moita é um ato libertador por excelência. A

expressão na cara de um coiote coloca à revelia a coragem do bravo guerreiro,

disposto a lutar até o fim pelo respeito que lhe fora negado. Uma vez alcançado

seu objetivo, a cara de coiote se desfaz, perde sua razão de ser. Os coiotes de

ontem são os pássaros de amanhã, pois, uma vez libertos, eles criam asas, e voam

para onde lhes convenha.

Não é a primeira vez que a Hilda Hilst fala das asas de um pássaro para

aludir à liberdade. As alegorias de Hilda Hilst são como estados da alma, que

passam por processos metamórficos. São alegorias transitórias, que se liquefazem

e depois assumem novas formas de acordo com o roteiro. Como uma poeta lírica,

ela traduz em imagens os sentimentos que atravessam os personagens, dá vida às

vozes que produzem gritos e silêncios nas funduras do íntimo. A complexidade

reside na leveza polimorfa, que não se fixa em uma única figura alegórica, mas

dança conforme a música, cujo ritmo se dá tal como as batidas de um coração, ora

sereno, ora acelerado, ora que se expande, ora se recolhe, e se espraia por todo o

corpo, levando as sensações até o limite. Como dizia Ovídio:

Há (...) seres a quem é permitido assumir muitas formas., como é teu

caso, Proteu, que vives no mar que rodeia a terra. Pois, de fato, hora

te viram de jovem mancebo, ora de leão; ora foste um javali feroz, ora

uma serpente que todos recearam tocar; por vezes, cornos fizeram-te

um touro; tantas vezes podias parecer rocha, tantas vezes também

árvore, e muitas vezes, imitando o aspecto das límpidas águas, foste

um rio, outras vezes foste fogo, o opsto da água.181

Metamorfoses figuram nas tradições hesiódica e alexandrina, nos poemas

homéricos, e de autores helenísticos. Ovídio escreveu um longo poema,

distribuído em quinze livros, que trata do tema das metamorfoses na mitologia

greco-romana, desde o caos até a apoteose que sacraliza Júlio César. O Professor

Paulo Farmhouse Alberto escreve no prefácio do livro que leva o título de

“Metamorfoses” que “a ‘transfiguração’ é algo que pertence ao mundo do sonho e

do imaginário, (...) tratada com ênfase mais na forma do que no corpo

transformado ou a transformar, ou no próprio processo de mutação: (...) ‘formas

181

OVÍDIO. “Metamorfoses”. Tradução: Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Livros Cotovia, 2007.

P-217.

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mudadas em corpos’”182

. No poema de Ovídio, o caos seria um estado da natureza

em um só orbe, sem delimitação alguma entre as formas do universo. Tudo se

reduzia a uma massa amorfa, que pairava no ar, em um equilíbrio instável entre

terra, céu e mar. Até que um deus estabeleceu a harmonia entre as formas,

separando cada coisa, cada elemento do cosmos: fogo, água, terra e ar. Nasce

então o homem, moldado à imagem dos deuses, das sementes do céu misturadas

com a água da chuva. Assim tudo começou. Ovídio elabora a história dos homens

e dos deuses através de uma sucessão de processos metamórficos.

Tudo se transforma, nada morre. O espírito vagueia e anda daqui para

ali, dali para aqui, e invade um corpo, qualquer que ele seja, , e dos

animais passa para o corpo humano, e de nós passa para os animais e

em instante algum perece. Tal como a dúctil cera se molda sempre em

novas figuras, e não permanece como era, nem conserva as mesmas

formas, e, no entanto, é sempre a mesma, assim a alma é a mesma,

mas transmigra para uma variedade de formas. (...) Tudo flui, e uma

imagem que se forma é passageira. Até o próprio tempo escorre, num

movimento incessante, , tal como um rio.183

As alegorias de Hilst habitam o corpo dos personagens, e podem ser

assimiladas de maneira visceral. Qualquer um pode ter uma cara de coiote, mas

antes é uma cara que vem de dentro para fora, como se o coiote tivesse estado

sempre estado ali, mas sem que tivéssemos consciência de sua existência. De

acordo com Barre Toelken, em Life and Death of Navajo Coyote Tales184

(“Vida e

Morte dos Contos de Coiote dos Navajos”), o coiote é uma figura mágica para

diversas nações indígenas norte-americanas. É um pequeno lobo, que vive nas

colinas espraiadas pelo continente. Para os Navajos, sua figura engendra uma

intersecção entre o lobo e o cachorro, o selvagem e o dócil, o lobo e o humano.

Sua figura está no centro de diversos ritos de cura, e em alguns contos, simboliza

um poder inestimável ligado aos ciclos elípticos da natureza. Para Toelken, os

coiotes recebem uma dupla acepção: entre aquele que restaura a vida, e aquele que

tem o poder de tirá-la. Os Navajos às vezes se vestem com peles de coiotes em

seus rituais de caça, pois esses são animais predadores. Ainda que não exista

nenhuma referência explícita ou implícita aos mitos do coiote dos indígenas norte-

182

ALBERTO, P.F. Prefácio de: OVÍDIO. “Metamorfoses”. Tradução: Paulo Farmhouse Alberto.

Lisboa: Livros Cotovia, 2007. P-18. 183

OVÍDIO. “Metamorfoses”. Tradução: Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Livros Cotovia, 2007.

P-369. 184

TOELKEN, B. “Life and Death in Navajo Tales”. In: SWANN, B e KRUPAT, A. “Recovering

the word: essays on native American literature”. University of California Press, 1987.

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americanos, na peça de Hilda Hilst uma cara de coiote é uma cara de predador,

com seus dentes rangendo, prestes a atacar sua presa.

Off through the new day's mist I run

Off from the new day's mist I have come

I hunt. therefore I am

Harvest the land, taking of the fallen lamb

Off thruogh the new day's mist I run

Off from the new day's mist I have come

We shift, pulsing with the earth

Company we keep, roaming the land while you sleep

(…) I feel a change back to a better day

Hair stands on the back of my neck

"In wildness is the preservation of the world"

So seek the wolf in thyself

Shape shift, nose to the wind

Shape shift, feeding I have been

Move swift, all senses clean

Earth's gift, back to the meaning of wolf and man

(Metallica) 185

Em Hilst, as asas do pássaro permanecem ocultas em nossas entranhas,

mas um dia serão visíveis e poderão voar. Como se verifica em Ovídio, a

metamorfose em ave apresenta o prenúncio de uma vingança, a libertação de uma

alma atormentada pela culpa, a certeza de uma vitória, uma fuga, um castigo

divino. Ao abandonar o poder régio, Cicno metamorfoseia-se em ave nova e

habita as encostas dos rios. A princesa de Lesbos em fuga é lançada às alturas

com a ajuda de Minerva após ter sido violada pelo rei dos mares. As finas asas

translúcidas das filhas de Mínias fogem das chamas de um clarão avassalador. As

Ismênides figuram em voos rasantes como castigo por ter censurado Juno por sua

185 Através da névoa do novo dia eu corro / Saindo da névoa do novo dia eu vim / Eu caço, então

existo / Ceifo a terra, tomando a ovelha caída /Através da névoa do novo dia eu corro / Saindo da

névoa do novo dia eu vim / Nós metamorfoseamos, pulsando com a terra / Companhia nós

mantemos, vagando pela terra enquanto você dorme / (...) Eu sinto a mudança de volta a um tempo

melhor / Pêlos se arrepiam em minha nuca / Na selvageria está a preservação do mundo / Então

procure o lobo em si mesmo/ Metamorfoseamos, nariz ao vento / Metamorfoseamos, me

alimentado eu tenho / Movimento veloz, todos os sentidos claros / Presente da terra, de volta ao

sentido de lobo e homem. METALLICA. Composição: James Hetfield, Kirk Hammett, Lars

Ulrich. Letra disponível no sítio eletrônico:

http://letras.terra.com.br/metallica/25959/traducao.html

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crueldade. As nove irmãs de Lucina, punidas por sua tagarelice, tornam-se

pássaros roucos empoleirados em ramos, tomados por uma obsessão em falar.

Sorte semelhante teve o delator Aceáfalo, transformado pela rainha de Érebo em

coruja, presságio dos infortúnios vindouros. Os corpos das Cecrópides, filhas de

Pandíon, pairam no ar com as penas manchadas com o sangue de Tereu. Este, por

anseio de vingança, também se transforma em pássaro, com uma crista na cabeça

e um imenso bico em lugar de sua lança. Também a Vitória é um pássaro de asas

hesitantes, que voa de um lado a outro para anunciar ao rei Minos o fortúnio na

guerra de Alcatoo. Círis abandona a popa do navio do rei de Cnossos num ruflar

de asas. Dédalo, que construíra para si próprio e seu filho Ícaro próteses de asas

engenhosas, assiste ao triste fim de Ícaro, que despenca nos profundos mares após

se deixar levar pelo fascínio solar, cujo calor derretera a cera que lhe prendia as

penas. Ao destruir a casa de Portáon, a filha de Latona eleva-se pelos ares com

suas longas asas. O cruel Dedálion, ao lançar-se ao abismo, é salvo por Apolo,

que o transforma em gavião, com bico recurvo semelhante a um gancho, que

subjuga as outras aves tal como outrora subjugara reis e povos em guerras

sanguinárias. Alcíone rasava pelas cristas das ondas com bico delgado e

trepidante, ao lado de seu estimado Céix, também transformado em pássaro,

conservando juntos a perenidade do amor. Eis que uma ave de asas fulvas anuncia

o fim da guerra entre Lápitas e Centauros. Como vimos, a metamorfose em

pássaros apresenta uma miríade de possibilidades: aves de rapina, corujas

soturnas, próteses engenhosas humanamente edificadas, com seus voos rasos ou

elevados, sempre remetem a um afastamento da figura humana de seu peso e seus

grilhões. Por trás dessas asas permeia uma força incomensurável: nem

absolutamente boa, nem absolutamente má. Nas palavras de Ovídio:

Bóreas sacudiu as asas, que, com os batimentos, lançou o sopro sobre

a terra toda e fez o imenso mar estremecer. Arrastando o manto de pó

sobre os altos cumes dos montes, varre a terra e, coberto pela

obscuridade, apaixonado, abraçaria Oritia, tomada de pavor, com as

suas asas fulvas. Enquanto voa, as chamas atiçadas ardem com mais

força, e o raptor não travou com as rédias a corrida pelos ares, antes de

chegar ao território e às muralhas dos Cícones. Ali a rapariga da

região de Acte tornou-se esposa do gélido tirano, e também mãe; e

deu à luz a gêmeos, que tinham as asas do pai e o resto do corpo da

mãe. Diz-se, porém, que as asas não nasceram com o corpo. Enquanto

a barba lhes não despontava sob os cabelos ruivos, os meninos Cálias

e Zetes estiveram implumes. Em breve, duas asas começam a cingir

ambos os flancos à maneira dos pássaros, e ambos os queixos a

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aloirar-se. E quando o tempo da meninice deu lugar ao da juventude,

partiram por um mar desconhecido na primeira das naus, com o

Mínias, em busca do velo radioso de pêlo fulgente.186

Proferido o discurso do filho sobre as metamorfoses dos homens que

viram coiotes, que viram pássaros, soam batidas afobadas na porta. É o carcereiro,

repetindo a cena, só que dessa vez mais aflito. Um dos juízes abre rapidamente a

porta da casa e lhe pede para entrar.

CARCEREIRO (entra afoito): Não é possível esperar mais. Agora

atiraram uma pedra na janela. Saio para pegar o desgraçado e nada. A

escuridão outra vez. (todos entreolharam-se) Mandem fazer o serviço

depressa, Excelências, acreditem em mim, eu já estou ficando doente.

MULHER (para a Filha): Traz o capuz.

(...)

A mulher do Verdugo volta do quarto. Veste calças compridas,

sapatos masculinos e capuz preto.

JUIZ JOVEM (para a Mulher): Deixa ver (examina-a)

JUIZ VELHO: Parece que está bem.

CARCEREIRO (para a Mulher): Esconda um pouco as mãos, dona.

São menores que as dele.

NOIVO: A senhora ficou bem mesmo.187

Isso não ocorre sem resistência. Ambos, o Verdugo e seu filho são

imobilizados e amarrados para impedir que interfiram na execução do homem. O

prelúdio da execução se dá entre gritos desesperados, soluços de corações feridos

e palavras de indignação. Sua mulher e sua filha não faze nada para protegê-los: o

que está feito, está feito, como algo necessário em prol de um bem maior: a

recompensa. Sempre a recompensa. As luzes se apagam e ambos são abandonados

ao relento. Enfim sós, eles conseguem desatar os nós e se preparam para sair da

moita. Não estão dispostos a aceitar a execução do rapaz. Se a mulher pretende se

fazer passar por verdugo, só o verdadeiro verdugo pode desmascarar a farsa que

os juízes confabularam com sua mulher. O primeiro ato se encerra com um anseio

186

OVÍDIO. “Metamorfoses”. Tradução: Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Livros Cotovia, 2007.

P-169. 187

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

Pp- 395/ 399.

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de vingança, compartilhado entre pai e filho, que se precipitam para a praça onde

se daria a execução do homem.

– É um aparelho singular – disse o oficial ao explorador,

percorrendo com um olhar até certo ponto de admiração, o aparelho

que ele no entanto conhecia bem. O explorador parecia ter aceito só

por polidez o convite do comandante, que o havia exortado a assistir

à execução de um soldado por desobediência e insulto ao superior.

Pelo menos aqui no pequeno vale, profundo e arenoso, cercado de

encostas nuas por todos os lados, estavam presentes, além do oficial

maior e do explorador, apenas o condenado, uma pessoa de ar

estúpido, boca larga, cabelo e rosto em desalinho, e um soldado que

segurava a pesada corrente de onde partiam as correntes menores,

com as quais o condenado estava agrilhoado pelos pulsos e cotovelos

bem como pelo pescoço e que também se uniam umas às outras por

cadeias de ligação.

(Franz Kafka) 188

O segundo ato se inaugura no patíbulo de uma pequena praça. Uma

semiobscuridade pulveriza o lusco-fusco de um dia que ainda não amanhecera. As

dramaticidade das sombras acentua o ar sombrio que prenuncia a chegada hora da

execução. No fundo, sussurros, burburinhos, frases inaudíveis quebram o silêncio

mortífero que se instaura no centro da cena. Os juízes têm pressa e entram

tempestivos, seguidos da mulher-verdugo, devidamente encapuçada. A filha e o

noivo entram na sequência. Só então sobem ao palco o carcereiro e o misterioso

homem, com um capuz branco.

A luz do novo sistema penal, a execução em praça pública é descrita por

Michel Foucault como “a fornalha em que se acende a violência”. A praça pública

na peça é o lugar da execução. Por outro lado, o réu está encapuzado, enfatizando

uma justiça cega, que não vê o rosto do autor do crime, mas executa sua função de

acordo com as leis. Segundo Foucault:

O corpo e o sangue, velhos partidários do fausto punitivo, são

substituídos. Novo personagem entre em cena, mascarado. Terminada

uma tragédia, começa a comédia, com sombrias silhuetas, vozes sem

rosto, entidades impalpáveis. O aparato da justiça punitiva tem que

ater-se, agora, a esta nova realidade, realidade incorpórea.189

Como vimos, a cena apresenta características ambíguas, transicionais

entre um velho sistema decadente centrado na violência explícita, e um novo

188

KAFKA, F. “Na Colônia Penal”. Tradução: Modesto Carone. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1996. P-5. 189

FOUCAULT, M. “Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão”. Tradução: Ligia M. Podé Vassalo.

Petrópolis: Vozes, 2ª Edição, 1983. P-21

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sistema, que tem sua mira no conceito do indivíduo abstrato, cuja identidade

pouco importa: podia ser qualquer um.

Seis cidadãos se aproximam do patíbulo, mas mantém certa distância dos

demais, ocupando a região fronteiriça entre o palco e a plateia.

CIDADÃOS (superpondo frases):

Mas o que é isso?

Ainda é noite.

Nem tocaram os sinos.

Isso é proibido.

Safadeza.

É só depois de amanhã.

Ainda tinha tempo.

Cht! Cht!

Mas é noite.

JUIZ VELHO: Tenham calma.

Rumores continuam.

JUIZ JOVEM: Calma, meus amigos. Nós vamos explicar.

VOZ DE UM CIDADÃO: Mas é noite ainda.

CIDADÃO 1 PARA O 4: Manda tocar o sino.

CIDADÃO 2 PARA O 4: E chama o padre. Ele dá um jeito nisso.

CIDADÃO 3 PARA O 4: Avisa a minha gente.

CIDADÃO 4 (impaciente): Ah, eu não saio daqui. Eu quero ver.

FRASES DE SUPERPONDO:

Mas assim ninguém fica sabendo.

Quem não tá aqui é porque não quer ver.

Com esse barulho, todo mundo já sabe, mas ninguém quer vir.

Deu cagaço na turma.

FRASE BEM AUDÍVEL: E o padre?

FRASE BEM AUDÍVEL: Acho que ele foi até o vale. No asilo.

JUIZ JOVEM: Escutem, só um instante, só um instante.

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125

CIDADÃO 5: Deixem a Excelência falar.

JUIZ VELHO: Silêncio, por favor.

Vão silenciando aos poucos. 190

As vozes se complementam, desempenhando uma função verossímil à dos

antigos coros do teatro clássico. Elas inauguram a cena com ruídos inaudíveis,

mas vão ganhando maior nitidez no decorrer da cena. São vozes que gritam e

ecoam sua indignação frente à traição do Estado, que se presta a executar o

homem na calada da noite, antes do raiar do dia, antecipando a data do suplício. O

alarde dura pouco, pois ninguém quer deixar a praça para despertar os demais

membros da vila. Eles são atravessados por um magnetismo que os mantém

paralisados no mesmo lugar, envoltos por curiosidade e preguiça. São vozes

fluidas, transitórias, que se dobram tal como o fluxo de um rio que se espraia nas

encostas rochosas.

He can only touch himself from the outside. In order to recapture the

whole sensation of the inside of a body, he will invent a world. But a

world’s circular horizon always conceals the inner movement of the

womb. The imposiction of disctinctions is the mourning which their

bodies always wear. One + one + one... separated out. And the

gathering of all into One will never amount to the living quality of a

resting place which always pouring out liquid, blurs boundaries.

(Luce Irigaray) 191

Se em um primeiro momento, as vozes se voltam contra os juízes, logo

mudam o alvo: a culpa passa a ser atribuída aos ausentes. Encarregam o cidadão 4

da incumbência de convocar os demais cidadãos da vila, chamar o padre e tocar o

sino, para que eles mesmos se eximam de todas e quaisquer responsabilidades. O

cidadão 4 tampouco deseja deixar a praça; afinal, ele não quer perder sequer um

190

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

Pp- 406/ 407. 191 Ele só pode se tocar a partir do lado de fora. Para retomar a sensação do corpo em sua

plenitude, ele inventa um mundo. Mas o horizonte circular do mundo esconde o movimento

interno do útero. A imposição de dissociações é o luto que recobre os corpos. Um + um + um...

separados um do outro E a reunião de todos em Um nunca corresponde à qualidade vital de um

local aconchegante que se derrama líquido, borrando fronteiras. IRIGARAY, L. “Elemental

Passions”. Tradução franco-anglófona: Joanne Collie e Judith Still. Nova York: Routledge, 1992.

P-15.

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instante do espetáculo que estaria prestes a ter início. Vem à baila uma sensação

de impotência compartilhada, que reduz os cidadãos a espectadores. A morte do

homem assume a aparência de um evento colossal, um espetáculo circense. Sua

dimensão política se dilui em entretenimento, como o dos gladiadores da Roma

antiga no centro do Coliseu. Porém ao homem não é fornecida a menor

possibilidade de defesa. Suas mãos estão atadas, seu rosto é coberto. O cidadão 4

responsabiliza os ausentes por não terem despertado com o barulho na praça. Seus

companheiros concordam e reforçam os brados contra a negligência daqueles que

supostamente preferiram dormir. No corredor semântico, os ausentes deslizam

rapidamente do lugar de vítimas frente à traição dos juízes para a cadeira de réu

dos apáticos. Mais do que isso: não passariam de covardes, por não enfrentarem

os próprios medos frente à execução do homem uma vez idolatrado.

Uma rubrica indica o tom enfático com que um dos cidadãos pergunta

pelo padre. Seria mera coincidência o fato de o padre ter se ausentado

precisamente no momento da execução do homem? Aqui subjaz uma crítica

bastante contundente contra a postura da Igreja em momentos em que esta poderia

cumprir um papel progressista. Onde estaria a Igreja quando o Estado cometeu

atrocidades inauditas ao longo da história, tais como as grandes guerras do século

XX, os golpes militares dentro e fora da América Latina e outros fatos tratados

pela autora em outras obras. Não é a primeira vez que a Igreja não se faz presente

nos momentos em que o povo mais precisa dela. Teria o padre se ausentado por

ignorar que a execução seria adiantada? Ou será que ele se distanciara

precisamente para se eximir da responsabilidade perante o povo? O texto insinua,

mas não afirma com todas as letras que se trata de um ato de negligência. Isso fica

a critério da plateia, mas a crítica desliza nas entrelinhas.

Finalmente, um dos cidadãos atende aos apelos dos juizes, que pedem

silêncio. Ao contrário das demais vozes até o presente momento, o cidadão 5

reconhece a autoridade dos magistrados, tal como indica o protocolo: trata-os por

“Excelências”. Pouco a pouco, cessam os ruídos e o silêncio toma conta do

ambiente sombrio. Mas não por muito tempo.

JUIZ JOVEM: Senhores... a lei precisa ser cumprida.

Frases dos cidadãos: “Mas o homem não fez nada” – “Ele só falava”

– “Você entendia?” – “Era só depois de amanhã”.

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JUIZ VELHO: Esperem um pouco. Nós vamos explicar (rumores.

Silenciam) O verdugo não pode mais esperar té amanhã. Tem outros

serviços longe daqui. E tão importantes quanto este.

Frases dos cidadãos: “O outro que espere” – “A morte vem quando

tem de vir”.

JUIZ JOVEM: Mas a lei precisa ser cumprida.

CIDADÃO 1: Mas o que o homem fez?

CIDADÃO 5: Falem o que ele fez.

CIDADÃO 6: É, ninguém explica.

JUIZ VELHO: Ele já foi julgado.

CIDADÃO 5: Mas ninguém entendeu o que as Excelências disseram.

Foi uma fala enrolada.

Frases: “Nós queremos saber direito” – “Claro”. Rumores.

JUIZ JOVEM: O homem enganou vocês. Colocou vocês contra a lei.

Agitou.

CIDADÃO 5: É bom a gente se agitar um pouco. Desempena.

Risos. 192

A primeira tentativa de explicação do jovem juiz denuncia a primeira

hipocrisia relacionada à execução do homem, uma vez que sua realização se daria

pelas mãos de uma falsária, que se passa por verdugo, sorrateiramente na calada

da noite, dois dias antes, sem avisar a população da vila. As vozes aleatórias

questionam e apregoam a inocência do homem. Um deles quer saber se os outros

entendiam o que ele falava. As vozes não falam em uníssono, podendo divergir

entre si. A atenção desliza de um ponto para o outro, apresentando diferentes

abordagens, sintetizadas em frases curtas, embora expressivas, às vezes

acompanhadas de pontos de interrogação.

A suposta mentira do velho juiz sobre as outras tarefas do verdugo

apresenta uma meia-verdade, que só será revelada com o desfecho da história. De

fato, o verdugo não teria como esperar até o dia seguinte, pois sequer o veria raiar.

Sua execução já está prevista, logo após o último suspiro do homem misterioso.

Ele teria outros serviços longe da vila. A palavra “longe” pressupõe uma distância

que vai além do espaço, uma distância metafísica. Ele seria levado a uma outra

dimensão, para onde são levados os mortos, no mesmo patamar de importância do

192

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

Pp- 408.

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homem cuja sentença fora pronunciada. Porém os cidadãos interpretam a

explicação do velho juiz em seu sentido literal.

Mas o verdadeiro sentido histórico reconhece que nós vivemos sem

referências ou sem coordenadas originárias, em miríades de

acontecimentos perdidos. Ele tem também o poder de interverter a

relação entre o próximo e o longínquo tal como fora estabelecido pela

história tradicional em sua fidelidade à obediência metafísica. Esta

de fato se compraz em lançar um olhar para o longínquo, para as

alturas: as épocas mais nobres, as formas mais elevadas, , as ideias

mais abstratas, as individualidades mais puras.

(Michel Foucault) 193

A exigência de explicações por parte dos cidadãos da vila a princípio não

encontra resposta plausível. O velho juiz se atém a dizer que o homem já fora

julgado. O fato está consumado, portanto não se pode questioná-lo. A justiça

tratara de resolver o assunto. O assunto passara pela instância máxima

deliberativa. Pouco importa se o povo não entendeu o que os juízes disseram no

julgamento. Tanto melhor, já que o intuito era confundir, e falar em termos

técnicos para que o povo não tivesse condições de assimilar ou interferir no

processo. O outro juiz, mais perspicaz, responde mais objetivamente à pergunta

dos cidadãos, alegando que o homem teria enganado o povo ao persuadi-lo a

infringir à lei. Seus argumentos se assemelham aos editoriais da imprensa oficial,

que legitima arbitrariedades com argumentos racionalmente verificáveis. Bastaria

um olhar atento para indagar sobre o corredor semântico que atribui uma

conotação negativa ao ato de convencer o povo a infringir às leis. O povo não

estaria ciente dessa manobra, portanto não seria vontade do povo ir contra às leis.

Aí cabe perguntar se o povo teria consciência da ilegalidade de seus atos. Será que

o povo deseja mudar as leis? Caberia ao povo questionar as leis? Caberia ao povo

mudar as leis? O jovem juiz justifica a condenação do réu devido ao fato de ele ter

“agitado”, ou seja, insuflado a população contra o establishment. Pelo humor, a

autora evoca um questionamento reflexivo, brincando com a palavra “agitar”. O

cidadão 5 a emprega com mais leveza: “agitar” teria um sentido de dar

movimento, entreter, mudar o sentido ou a direção de uma força. O deboche é

explícito, todos riem.

193

FOUCAULT,M. “Microfísica do Poder”. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal,

1979. P-29.

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O número 5 sobe no patíbulo. Entra o Verdugo, correndo.

VERDUGO (gritando): Parem! Parem!

A família e os juízes entreolham-se.

CIDADÃO 5: O verdugo.

Olham para o Verdugo e a mulher-verdugo.

CIDADÃO 1 (apontando a mulher-verdugo): Mas o verdugo está aí.

CIDADÃO 3 (apontando o Verdugo): Mas esse é que é o verdugo.

VERDUGO (para os cidadãos, apontando os juízes): Eles enganaram

vocês. É a minha mulher que está aí.

Silêncio.

CIDADÃO 6 (para a Mulher): Tira o capuz! Tira o capuz!

A Mulher tira o capuz.

CIDADÃOS: A mulher! É mesmo a Mulher! Sai daí de cima! Sai!

Os juízes fazem com que a Mulher fique. Rumores.

JUIZ JOVEM: Esperem, nós podemos explicar.

O verdugo fica no meio dos cidadãos, tentando convencer uns e

outros.

CIDADÃO 5: Mulher não pode ser verdugo. 194

O Verdugo chega correndo com o intuito de revelar ao povo uma

verdade. Como era de se esperar, a verdade vem à tona: está rasgado o invólucro.

Uma vez retirado o capuz, atendendo aos clamores dos cidadãos da vila, o

escândalo se desvela. Porém o povo não me parece tão injuriado pela traição

quanto ao fato de o lugar de verdugo ser ocupado por uma mulher. Que

atrevimento colocar uma mulher para exercer uma tarefa atribuída à virilidade e

ao poder masculino! A ira do povo não se volta contra os juízes traidores, mas

contra o atrevimento da mulher-verdugo. Quando os cidadãos gritam em uníssono

para que a mulher saia do patíbulo, reivindicam que ela se coloque em seu devido

lugar. Pelo travestimento, ela atravessa uma região fronteiriça, exacerba sua

própria medida: se ela não podia exercer o papel de verdugo enquanto mulher, ela

ainda poderia fazê-lo como homem. Porém no momento em que sua identidade é

194

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

Pp- 409/ 410.

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desvelada, tudo muda de figura: sua conduta seria ignominiosa frente aos cidadãos

em torno da praça, ou seja, todos homens.

JUIZ VELHO: Esperem, nós queremos ser honestos com vocês. (risos

mais audíveis) Escutem, se nós não cumprirmos a lei agora, amanhã

vocês é que serão mortos.

Frases: “Nós?” – “Mortos?” – “Por quê?”

(...)

CIDADÃO 5: Ninguém vai matar ninguém aqui. (frases dos

cidadãos: “Soltem o homem”. Aproximam-se mais do patíbulo. Para

os juízes) Soltem o homem!

JUIZ JOVEM (dando alguns passos à frente): Vocês serão todos

mortos. Mortos. (os cidadãos estaqueiam. Para outro juiz) Mostra o

papel.

Alguns cidadãos recuam.

CIDADÃO 5: Que papel?

JUIZ JOVEM: Mostra.

JUIZ VELHO (tirando um papel do bolso da toga): Nós vamos ler o

que só teria de ser lido em caso de extrema necessidade. (desdobra o

papel) Senhores, este é um documento dirigido a nós, os juízes.

(começa a ler) As autoridades esperam que o lúcido critério de Vossas

Excelências torne possível a execução do homem, dentro de um prazo

mínimo. Como é nosso dever proteger o povo, zelar por suas vidas...

CIDADÃO 5: Olha aí, eles não querem a nossa morte.

JUIZ JOVEM: Esperem, vamos continuar.

JUIZ VELHO: Como é nosso dever proteger o povo, zelar por suas

vidas, estender-lhe a mão...

CIDADÃO 1 (interrompe, apontando o próprio traseiro): Nessa

direção?

Risos prolongados.

JUIZ VELHO: Silêncio... (continua a ler) lutar contra toda a espécie

de ameaças, sejam elas sutis ou definidas...

CIDADÃO 1 (interrompe): Já começou a fala enrolada, o que quer

dizer... como é? Como é?

CIDADÃO 5: Sutil.

CIDADÃO 3: O que é isso?

JUIZ VELHO: Ameaça é perigo.

CIDADÃO 4: E sutil?

JUIZ JOVEM: Um perigo que é difícil explicar de onde vem.

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JUIZ VELHO (aponta o homem): Esse homem é um perigo sutil.

CIDADÃO 4: Porque ninguém sabe de onde ele vem?

CIDADÃO 5: Ele vem de algum lugar e isso basta. De longe.

CIDADÃO 2: Longe é lugar nenhum.

CIDADÃO 5: Deixa pra lá, Excelência, continua.

JUIZ VELHO (continua a ler): ...aguardamos o cumprimento da nossa

vontade o mais breve possível. Não queremos ódios, nem

inquietações, queremos apenas, ajudados pelas mãos de Deus,

transformar a confusão dos homens em amor, em justiça. Se não

derem cumprimento à nossa vontade, a vila terá merecido castigo.

(levanta a cabeça) E o merecido castigo é a morte.

CIDADÃO 5: Isso não está escrito aí.

JUIZ VELHO: Mas eu sei o que eu digo.195

Quando caem as máscaras, e a farsa confabulada entre os juízes e a

mulher-verdugo é exposta em praça pública, o juiz velho se atreve a falar em

“honestidade”, o que suscita risos entre os cidadãos. Em seguida, uma ameaça:

caso a lei não fosse cumprida, seriam todos mortos. A princípio, um dos cidadãos

insiste para que soltassem o homem, com o respaldo de seus companheiros. Mas a

ameaça surte efeito, ainda que em diferentes níveis e tempos difusos: uma onda de

medo se alastra entre os cidadãos, que pouco a pouco recuam e querem saber

mais. O jovem juiz, que até o presente momento se mantivera em pleno controle

de si, se exalta, dá alguns passos para frente e repete a ameaça, como quem

pronuncia um veredicto. Então ele pede para que seu companheiro leia o

documento onde consta a ameaça.

O papel registra e legitima a ameaça dos juízes, com base em um estatuto

oficial. A população leva mais a sério o documento que as palavras dos juízes,

caídas em descrédito pela opinião pública. A carta que legitima a ameaça de morte

começa por afirmar o compromisso de proteção e zelo pelas vidas dos cidadãos.

Um dos cidadãos constata que é contraditório uma ameaça de morte, envolvendo

todos os cidadãos da vila, se basear na proteção e no zelo por suas vidas. O velho

juiz repete a frase, enfatizando a hipocrisia intrínseca, e a complementa, alegando

que é dever das autoridades estender as mãos aos cidadãos. Um dos cidadãos mais

afoitos o interrompe com ar de deboche: “nessa direção?” – e aponta para seu

195

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

Pp- 411/ 413.

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traseiro, aludindo ao esfíncter. Este lugar por onde saem os excrementos, por onde

tudo o que entra é interpretado como sujo e pecaminoso, um lugar proibido para

onde se mandam aqueles cuja tez se mancha de pecados vis, recobertos de nojo e

vergonha. Com isso, o cidadão pretendia insultar os juízes, pois sujas e

pecaminosas são as mãos da justiça, que introduzem nas cavidades do povo sua

ignominiosa sentença.

Eu ainda não tinha conseguido vê-la até o cu (esse nome, que eu

sempre empregava com Simone era para mim o mais belo entre os

nomes do sexo). (...) O horror e o desespero que exalavam aquelas

carnes, em parte repugnantes, em parte delicadas, recordam os

sentimentos...”

(Geoges Bataille) 196

O velho juiz continua a ler a carta, que assinala como objetivo o combate

a toda sorte de ameaças, tanto as sutis, como as definidas. Os cidadãos ignoram o

que significa “sutil”. Só o jovem juiz parece conhecer o seu significado: um

perigo vago, indeterminado, cuja origem não se conhece. O velho juiz, que se

desviara da pergunta endereçada a ele sobre o significado da palavra, então

exemplifica, apontando o misterioso homem como um “perigo sutil”. Se

seguíssemos à risca a definição do jovem juiz, haveríamos de concluir que seu

perigo é indeterminado, vago, cuja origem não se sabe ao certo. O grau de

abstração com que o texto fora escrito deixa margem para que qualquer um possa

ser identificado como um “perigo sutil”. De onde vem o perigo é algo difícil de

explicar, pois está para além do homem. É a força vital que o impele, uma força

que atravessa subjetividades, recoberta de uma aura sagrada, uma esperança que

inspira a transformação e a reafirmação da vida. Não é algo palpável, com a

origem em um ponto determinado. É como um espectro que paira no ar, e se

instaura no coração do homem. Indeterminável.

Bulbos de narciso em vez de globos

Rompiam das órbitas dos olhos! Sabia

Que o pensamento adere aos membros mortos,

Estreitando-lhe os luxos e luxúrias.

(...)

Conhecia toda a angústia da medula,

O surdo calafrio do esqueleto;

Nenhum toque carnal era capaz

De apaziguar-lhe a febre dos ossos.

196

BATAILLE, G. “História do olho”. Tradução: Eliane Robert Moraes. São Paulo: Cosac &

Naify, 2003.

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(...)

E até mesmo as Entidades Abstratas

Cortejam seus encantos, mas o nosso

Destino rasteja entre costelas secas

Para manter acesa a nossa metafísica.

(T. S. Eliot) 197

O discurso se segue em chave abstrata, falando em nome de valores

nobres. Conta com a ajuda de Deus e se volta contra a inquietação e o ódio, no

intuito de ordenar a sociedade com base em amor e justiça. Caso a vontade das

autoridades não fosse atendida, a vila contaria com “merecido castigo”. O velho

juiz aproveita a indeterminação da sentença e acrescenta, de cabeça erguida, que o

“merecido castigo”seria a morte. Os cidadãos atentos percebem que isso foi uma

livre interpretação do juiz, que ainda de cabeça erguida, responde que sabe o que

está falando. Afinal, ele e seu companheiro de toga são os legítimos intérpretes

das leis. Os demais teriam que se calar, pois ainda que discordassem do veredicto,

não se atreveriam a contrariar valores tão estimados em nome dos quais a carta

fora redigida. São inúmeras as injustiças praticadas em nome da justiça, e dos

valores mais caros à humanidade. Em um jogo dos contrários, a ordem do

discurso inverte os sentidos, embaralha os significados, e transforma a mais cruel

das sentenças em uma prédica sedutora.

Um dos cidadãos coloca em relevo a palavra “amor”, presente na carta que

documenta a ameaça dirigida aos habitantes da vila. O misterioso homem também

falava em “amor”. Outro cidadão pondera: “Todo mundo fala em amor, mas

ninguém resolve o problema da gente”. Quem estaria mentindo em nome do amor:

o homem ou as autoridades? Estariam todos mentindo em nome do amor? Por

meio desse diálogo, Hilst retoma a pergunta: “mas afinal, o que é o amor?” A filha

do casal de verdugos toma a palavra:

FILHA (aflita): Mas amor é... (não sabe o que dizer mas lembra-se da

fala do juiz. Olha para o Juiz jovem) ... comedimento.

CIDADÃO 6: E o que é isso?

JUIZ JOVEM (adiantando-se): É não fazer coisas violentas.

CIDADÃO 5: E matar o homem não é uma coisa violenta?

FILHA: Mas o amor... tem dois jeitos de ser.

197

ELIOT, T. S. “Poesia”. Tradução: Ivan Junqueira. São Paulo: Arx, 2004. Pp-125 / 127.

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CIDADÃO 3: Qual é o teu jeito, hein?

Risos.

FILHA (com raiva): A gente deve matar aqueles que nos confundem.

CIDADÃO 2: Todo mundo é confuso.

FILHA: Vocês entendiam o que ele falava?

CIDADÃO 5: Entendia, sim. Ele falava da alma.

FILHA: Mas o corpo é que interessa.

VERDUGO: O que ele falava... era verdade. Ainda que fosse para

daqui a muito tempo.

FILHA (para os cidadãos): E a barriga de vocês aguenta muito

tempo? (rumores. Olha para os juízes e, de repente, enquanto os

rumores continuam, ela parece descobrir a fórmula para vencer os

cidadãos) Olhem, (refere-se ao homem) ele queria é que a gente não

prestasse atenção no problema de agora. Falando pra daqui a muito

tempo, a gente pensa nesse tempo que importa.

Silêncio. Um certo rumor.

CIDADÃO 1: Como é? Como é que você disse?

Frases: “Você entendeu?” – “Deve ser assim”. Cochicham. Os juízes

se entreolham. A mulher do Verdugo está rígida, de olhar altivo

durante quase todo o tempo.

CIDADÃO 2: O homem era contra nós, então?

CIDADÃO 4: Falava do jeito que falava pra gente não pensar na

barriga de hoje?

(...)

FILHA (aponta para os cidadãos): Se a gente está morrendo, cheio

de dor mesmo, e vem o padre... isso (para o 5) te alivia?

CIDADÃO 5: O quê?

FILHA: O padre te alivia a dor?

Rumores.

CIDADÃO 5: Não... O padre não alivia a dor.

Rumores.

FILHA: E você não deixa de morrer porque o padre veio, deixa?

CIDADÃO 1: Se chegou a hora da gente, não.

Rumores.

FILHA: Mas enquanto o padre está por perto você pensa que está

aliviado, não é?

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CIDADÃO 5: E daí?

FILHA (apontando o homem. Voz muito alta): Esse homem é como

um padre na hora da morte. Só isso.. Mais nada.

Silêncio completo. 198

A filha começa seu discurso insegura, sem saber ao certo o que dizer, mas

pouco a pouco, encontra a brecha por onde incidir na opinião pública, e vai

ganhando confiança para virar a mesa. O amor tem dois jeitos de ser: existe o

amor em verdade e aquele que confunde. Se amor é comedimento, no sentido da

não violência, matar um homem seria uma contradição – observa o cidadão 5.

Para a filha, seria preciso eliminar aqueles que nos confundem. O cidadão 2 faz

uma observação interessante, ao constatar que todos são confusos. A confusão não

é característica de um ou de outro, é um estado subjetivo que pode ser abordado a

partir de diferentes pontos de vista. Enquanto o misterioso homem fala da alma, a

filha parte da premissa do corpo. Assim Hilst ilustra a duplicidade de um amor

cindido, entre corpo e alma.

A verdade da alma é uma verdade perene, que não pode ser traduzida em

números ou prazos específicos sob a ótica da duração terrena. A filha desloca a

questão para a dimensão da materialidade, e toca em um ponto delicado, mas

crucial, que necessita de alimentos no tempo dos homens. Não é na cabeça ou no

coração, mas na barriga que se encontra a fórmula para virar contra o homem a

opinião pública. Quando desviamos nossa fome para a alma, as necessidades do

corpo não cessam de existir. As necessidades fisiológicas requerem respostas

terrenas, situadas no corpo. A fome do corpo está na ordem do dia, e não pode ser

saciada em um tempo distante. O homem confunde, pois desvia a atenção dos

problemas de hoje, e deposita todas as esperanças em um porvir longínquo. Em

nome desse porvir longínquo, abandona-se a dimensão corpórea.

Em Hambre del Alma, a antropóloga Carla Cristina Garcia lança luz sobre

a literatura de mulheres, como Emily Dickinson, Noira Ephron, Karen Blixen, e

Clarice Lispector, entre outras. Há escritoras cuja criação ativa apetites que

anseiam por alimentos para a alma: “o alimento se metamorfoseia no próprio

corpo, a palavra assume o poder do pão”. Hilda Hilst poderia facilmente se

198

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

Pp- 414/ 416.

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encaixar nessa categoria. Em alusão à “Festa de Babette”, de Karen Blixen, sob o

pseudônimo de Isak Dinesen, Garcia constata que há uma “incompatibilidade

entre os prazeres corporais que descuidavam de alimentar a alma e almas devotas

que precisam mortificar o corpo. Esferas incompatíveis quando vistas apenas no

plano da oposição...”199

É em nome de um porvir longínquo em um tempo perene que falam as

religiões. A crítica materialista tem em mira o augúrio de uma ascese divina. No

catolicismo, a carne é revestida de pecado: é preciso abdicar dessa carcaça suja

para chegar ao miolo sagrado por onde penetra o espírito. É uma outra fome

aquela que se inunda de esperanças sob o brio de uma promessa de salvação. O

ato de salvar a alma implica na redenção da carne. Mas a barriga continua vazia.

Chegada a hora da morte, a carne padece e se deteriora até perecer por completo.

O padre não pode saciar a fome dos corpos ou adiar o momento da morte. Ao

aproximar o delito perpetrado pelo homem misterioso do papel desempenhado

pelo padre, a morte os torna cúmplices de um crime inaudito. O crime de ludibriar

o povo, confundir as fomes, deixando a barriga vazia.

Os rumores dos cidadãos, indicados pelas rubricas, se assemelham a

burburinhos resultantes de um processo em curso. Pensamentos dissonantes

ativados pelas provocações da filha, compartilhados no seio do coletivo. Eles não

falam em uníssono, mas em polifonia. Algo que fervilha, borbulha, evapora,

modifica seu estado físico. Uma transformação está em curso, à medida que a

filha fora capaz de tocá-los com seus argumentos. A racionalidade materialista da

filha faz sentido para eles. Há uma identificação entre a verdade da filha e a

verdade dos cidadãos, que não desejam encontrar suas panelas vazias. Ela aponta

os limites ao que o homem representa e propõe uma inversão diametralmente

oposta: se ele não pode salvá-los terrenamente, ele passa a ocupar o lugar do

inimigo. Quando caem as asas de um anjo, ele é relegado a queimar nas chamas

do inferno, pois ele mesmo torna-se o capeta. Se cai a aura sagrada do Messias,

ele se converte em perdição. Sob a ótica dualista, não existe meio-termo. Por

outro lado, as duas premissas se imiscuem, pois se a verdade do espírito não enche

a barriga, tão pouco a comida no prato é capaz de saciar a fome da alma. Através

do exercício de uma retórica construída com base em uma lógica formal, a filha

199

GARCIA, C. C. “Hambre del Alma – Escritoras e o banquete das palavras”. São Paulo: Limiar,

2007. Pp-64 e 74.

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alcança o êxito desejado pelos juízes, que consiste em tirar o homem de seu

pedestal e jogá-lo às chamas inflamadas da opinião pública. De sagrado, ele se

torna profano. Sua condenação se dá na mesma proporção de sua devoção.

CIDADÃO 5: Nós podemos deixar o homem fugir.

VERDUGO: Isso não tem sentido.

CIDADÃO 3: Não adianta... Ele foge... e nós ficamos?

JUIZ JOVEM: Vocês no lugar dele.

Silêncio prolongado.

VERDUGO (com determinação): Eu fico no lugar dele. Eu não me

importo.

CIDADÃO 5: O teu negócio é matar, não é morrer. 200

Os porta-vozes do Estado são enfáticos e reiteram que não hesitariam em

matar todos os habitantes da vila no lugar do homem. Seu intuito é vencê-los pelo

medo. A eficácia da força das armas que engatilham em nome do Estado consiste

em que sua simples menção pode surtir os efeitos desejados. Pelo medo da

coerção, a ordem é mantida. Seria preciso matar apenas um, para dar o exemplo

aos demais, e mostrar que se for preciso, haverá derramamento de sangue no

futuro. Sacrificam o líder para que os outros se desarticulem, e recuem, temendo

futuras represálias.

O verdugo é inexorável, oferecendo sua própria cabeça no lugar do tão

estimado homem. Ele está disposto ao martírio, a morte digna do herói, para

salvar a vida de seu líder. Seu grau de abnegação é tão profundo, que nada mais

importa. Ele está entregue de corpo e alma a uma causa, que adquire materialidade

na carne desse homem. O homem representa a transformação em amor, a salvação

da humanidade metamorfoseada em coiote. No limite, ele encarna uma promessa

de liberdade. Com humor, o cidadão faz questão de lembrá-lo que sua função

social consiste em matar, e não morrer. O estranhamento reflexivo imbricado

nessa frase satírica retoma algo sobre o personagem que não condiz com sua

postura imaculada: afinal, é um verdugo, não um santo. O sacrifício, portanto, não

lhe convém. Ambas, filha e esposa, também reprovam sua oferta, só que por outro

motivo.

200

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

P-419.

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MULHER (seca): Pensa em mim, homem.

VERDUGO (para a Mulher): Você está pensando no dinheiro. Não

em mim.

(pausa)

Frases se superpondo: “Qual dinheiro?” – “Ah, tem dinheiro no

negócio” – “Eu sabia, tava tudo muito complicado” – “Assim não”.

(...)

VERDUGO (olhando para a Filha): As Excelências me ofereceram

dinheiro se eu matasse o homem.

Todos olham para os juízes.

MULHER (seca, voz alta): Não foi assim.

CIDADÃO 3 (referindo-se à Mulher): Por isso ela resolveu fazer o

serviço.

Rumores.

JUIZ JOVEM: Silêncio, por favor. (pausa) Oferecemos sim.

Oferecemos dinheiro para salvar vocês.

CIDADÃO 3: E dar dinheiro para o verdugo nos salva?

CIDADÃO 5: Salva ele.

(...)

CIDADÃO 3: É muito dinheiro? Desembucha logo.

MULHER (olhando o Verdugo, que está desesperado): Doze... treze

milhões.

(...)

CIDADÃO 5: E vocês sabem se eles (aponta os juízes) vão dar o

dinheiro para nós?

Silêncio. Expectativa tensa.

JUIZ JOVEM: Damos o que for preciso.

JUIZ VELHO: Talvez um pouco mais... se é para tantos.

Cidadãos entreolham-se. Silenciam. 201

A revelação sobre a oferta dos juízes surtiu os efeitos contrários aos

anseios do verdugo. Pouco a pouco, a indignação dá lugar à ganância. Se o

dinheiro oferecido pelo serviço seria capaz de salvar o verdugo caso ele aceitasse

201

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

Pp- 419/ 421.

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a proposta dos juízes, estaria no dinheiro a salvação da vila. As expectativas da

população se voltam para questões materiais; afinal, é preciso encher a barriga.

Nem todos dedicam ao homem a mesma abnegação, a ponto de abrir mão da

própria vida para salvá-lo. A eficácia da persuasão por meio de uma oferta em

dinheiro é tentadora, em um mundo voltado para o consumo, em que o poder

aquisitivo assume uma importância cabalística. O dinheiro é capaz de resolver

muitos problemas, suprir necessidades, dar luz a novas necessidades, recriar a

vida em um amplo leque de opções. A esperança que o homem oferece é abstrata

e a longo prazo, já o dinheiro abre portas, desbrava caminhos imediatos, pode

mudar materialmente a vida das pessoas. A ascensão social não é um desejo

exclusivo da mesquinhez da mulher-verdugo e sua filha, mas de toda a vila, ainda

que em diferentes níveis. O ato de subornar é uma saída fácil para resolver

determinados impasses, e já havia funcionado com as duas personagens nessa

peça; funciona como freio de muitas greves e mobilizações ao longo da história do

Ocidente. O dinheiro se apresenta como panaceia para todos os males, nele se

inscreve uma promessa de salvação cujos efeitos são imediatos. A cabeça do

homem é trocada por uma nova ascese.

Como dizia Walter Benjamin202

, prestamos um culto ao Capitalismo e as

suas mercadorias, que reluzem junto ao vidro e o mármore das grandes galerias.

Expostas nos mostruários, as mercadorias seduzem, despertam desejos. Acredita-

se que, com a aquisição de um dado produto, é possível superar as adversidades

do cotidiano. Para Benjamin, a maquinaria, imbricada numa engrenagem de

paixões mecanicistas e cabalistas, fabrica um país das maravilhas, aniquilando

toda a ética e sensibilidade para com o outro. O fetiche da mercadoria inaugura os

seus templos, locais de peregrinação, como as exposições universais da Paris do

século XIX. O mundo é permeado por alegrias descartáveis, com prazo de

validade, que pede sempre mais e mais. A ascese do dinheiro desencadeia um

turbilhão de desejos infindáveis, e desperta os interesses mais mesquinhos.

A população negocia, e finalmente aceita a proposta dos juízes. Eles

haviam tentado de tudo: a substituição dos carrascos; a persuasão pelas ideias

racionalmente verificáveis, invertendo as variáveis; a ameaça pela força de um

202

BENJAMIN, Walter. “Paris: a capital do século XIX – Exposé de 1935”. In: “Passagens” Belo

Horizonte: Editora da UFMG, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.

Organização: Willi Bolle e Olgária C. F. Matos. P-41.

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decreto e das armas; e finalmente o suborno coletivo, que sela o corolário do

impasse em torno do qual circula a trama, que remete à morte do homem e o que

ele representa para os personagens, em diferentes níveis. O dinheiro sela o

desfecho, como a cereja do bolo. Se até então, algum cidadão mantinha firmes

suas convicções, todos acabam por se deixar seduzir pela ascese monetária. O

único que não aceita se vender é o Verdugo.

O Verdugo protege o corpo do homem com seu próprio corpo. O

Carcereiro tenta empurrá-lo, mas é violentamente empurrado pelo

Verdugo.

CIDADÃO 3: Mas afinal esse homem é teu parente ou o que é? Você

prefere ele a nós. (rumores) Olha, nós vamos fazer uma comunidade

onde todo mundo vai entrar e melhorar de vida. Com esse dinheiro

que ofereceram, todos vão trabalhar e encher a barriga. Você também

não tem filhos? A moça (aponta a Filha) não vai casar com aquele

ali? (aponta o Noivo)

NOIVO: E eu estou sem emprego. Ajudava muito.

VERDUGO (voltando para o homem, emocionado): Fala, homem de

Deus, explica pra todos quem você é.

JUIZ VELHO: Ele não tem mais o direito de falar.

JUIZ JOVEM: Pela lei, ele já está morto.

CIDADÃO 3: E de qualquer jeito, ninguém vai entender o que ele

fala. (para o Verdugo) Anda logo com isso.

Expectativa. Silêncio.

HOMEM (lentamente): Eu não soube dizer. Eu não soube dizer como

devia. Eu não me fiz entender. Eu não me fiz entender. (para o

Verdugo) Faz o teu serviço.

Silêncio completo.

VERDUGO (para o homem): Eu não posso. Eu não posso.

CIDADÃO 5: Então sai daí. 203

No ápice de seu desespero, o verdugo usa seu próprio corpo como escudo

para blindar o homem de seu destino infeliz, que nessa altura do campeonato,

parece inevitável. Todos estão pela morte do homem. Até que o próprio homem

resolve se pronunciar, contrariando os juízes que não lhe outorgaram o direito à

palavra. Em poucas palavras proferidas lentamente, o homem reconhece que

fracassara. O espetáculo que se desenrolara frente a seus olhos de cavalo

203

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

P- 424.

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demonstra que ele não fora capaz de se fazer entender. Suas palavras não haviam

entrado no coração das pessoas, senão superficialmente. Se seus ideais estavam

perdidos, não fazia mais sentido relutar em viver. Sua vida não faria diferença a

partir daquele momento. Estava selado o veredicto. O Verdugo não precisa dar

sua vida por uma causa perdida. O homem exorta o verdugo a levar a cabo seu

serviço, mas o verdugo mantém firme sua recusa. Ele não quer aceitar que tudo

termine assim. O cidadão 5, que outrora defendera o homem com muito afinco, é

o primeiro a rechaçá-lo, exigindo que saia da frente. O poeta estadunidense T. S.

Eliot, já dizia:

E o fiz inconsciente, semiconsciente, ignoto, meu.

O verdugo da carcaça faz água, as fendas reclamam o calafate.

Esta forma, este rosto, esta vida

Vivendo por viver numa esfera de tempo que me excede. Que eu

possa

Renunciar à minha vida por esta vida, à minha fala pelo inexpresso,

O desperto, lábios abertos, a esperança, os novos barcos.204

O filho entra em cena, correndo, e tenta se aproximar de seu pai. Os

cidadãos da vila procuram impedi-lo, afinal, ele poderia colocar tudo a perder. Os

cidadãos têm pressa. Seguram-no com força. O Verdugo ensaia uma última

tentativa de convencer o povo da vila de que o homem é bom, e tem os olhos de

cavalo. Antes mesmo que ele conclua sua frase, os cidadãos interrompem-no e

põem-se a rir. Sua nobreza de espírito é interpretada como devaneio: só mesmo

um louco seria capaz de falar assim. Repetem-se os mesmos argumentos da cena

do diálogo entre o verdugo, a mulher e os filhos na mesa de jantar. Porém altera-

se a correlação de forças, e o impasse é levado até as últimas consequências.

Nesse momento, mãe e filha parecem voltar atrás. O estranhamento provocado

pela repetição da cena leva-as a uma compreensão mais profunda do papel ao qual

haviam se prestado, e seus desdobramentos. Tentam se aproximar do verdugo em

um ato de súbito desespero, mas são empurradas pelos cidadãos.

Os cidadãos aproximam-se perigosamente do patíbulo. Os juízes

descem. Nesse instante entram na praça os dois homens coiotes. Estão

vestidos da seguinte maneira: calça e camisa comuns, cabeça e rosto

de lobos, mãos para trás. Ficam de frente para o público, examinam o

público fixamente e depois voltam as cabeças em direção ao patíbulo.

Tem-se a impressão de que não foram vistos por nenhum dos

cidadãos, nem pelo juízes etc. Apenas o filho do Verdugo dá a

impressão não só de que os conhece, mas de que os esperava.

204

ELIOT, T.S. “Poesia”. Tradução: Ivan Junqueira.São Paulo: Arx, 2004. P-225.

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VERDUGO (protegendo o homem com seu próprio corpo. Com

determinação): Ninguém chega perto

CIDADÃO 5: O homem tem de morrer. Vamos, vai andando. (entra

em luta com o Verdugo)

Os cidadãos atacam em conjunto, o Filho tenta escapar das mãos do

Carcereiro, mas não consegue. Frases: “Mata logo o homem” –

“Mata do nosso jeito”.

VOZ DO VERDUGO (com intensa comoção): Não. Não. Eu morro

mas...

Frase: “Então morre”. Começam a dar pauladas no homem e no

Verdugo. Cena de intensa violência. Frases soltas: “Dá uma no olho

de cavalo” – “Toma você também, seu porco”. Terminam a chacina.

Recuam vagarosamente. Silêncio esticado. Descem do patíbulo. Vê-se

o homem e o Verdugo lado a lado, mortos. 205

Ninguém é capaz de conter o furor inexorável com que os cidadãos se

dirigem contra o verdugo e seu protegido misterioso. Ambos são mortos pelas

mãos impiedosas dos cidadãos. Os seguidores do misterioso homem haviam se

convertido em seus assassinos. Sua vida é sacrificada por um bem comum, o mais

caro dos bens no sistema capitalista: o dinheiro. Não é preciso um tribunal para

que o verdugo tenha a mesma sorte que o réu condenado. A sentença já fora

pronunciada. Pelas leis, o homem já era considerado morto. Qualquer um que se

atrevesse a tentar impedir o seu remate, seria eliminado do mesmo modo, ainda

que se tratasse de toda a população da vila. Os juízes já haviam-no anunciado, está

tudo registrado em decreto. A morte do verdugo é legítima perante as leis e seus

intérpretes e se dá com o auxílio ativo dos cidadãos da vila. As lamúrias da

mulher e da filha do verdugo são tardias. O silêncio se instaura sobre as cinzas da

barbárie humana.

Como dizia Antonin Artaud, não somos senão sombras de nós mesmos,

que deixamos para um tempo fictício nosssas carcaças e cavernas do ser, para

buscarmos o maravilhoso que finca raízes no espírito. Precisamos despertar esse

espírito atordoado por um “Todo-Pensamento” imposto por decreto, que fixa a

vida tal como ela se apresenta, porém apartada, alheia à realidade de um íntimo

abandonado a valores frívolos, determinados de fora. Em vão cultuamos o

205

HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.

Pp- 426/ 427.

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Dinheiro, a Verdade, a Ordem, a Racionalidade, traçando um desvio com relação

a nós mesmos. Nos tornamos fantoches inanimados, manipulados por joguetes

sistêmicos que se comunicam por meio de signos inculcados no pensamento.

Segundo o autor:

Quem nos julga, não nasceu no espírito, neste espírito que nós

queremos viver e que existe para nós fora daquilo que chamais de

espírito. Não se deve atrair demais nossa atenção para as cadeias que

nos prendem à petrificante imbelicilidade do espírito. Nós pusemos a

mão sobre um animal novo. Os céus respondem à nossa atitude de

absurdo insensato. Estes hábitos que tendes de voltar as costas às

questões não impedirão, no dito dia, os céus de se abrirem, e uma

nova língua de se instalar em meio a vossos tratados imbecis,

queremos dizer, dos tratados imbecis do vosso pensamento.206

Solto das garras do Carcereiro, o filho observa atentamente o corpo do pai

antes de juntar-se aos homens-coiotes. A aparição dos homens-coiotes em cena é

algo curioso, a última alegoria absurda à qual Hilda Hilst recorrera para que o

texto se encerrasse em chave de esperança. Ela deu vida à alegoria da resistência,

por meio de homens com cara de coiote, que mantém firmemente a promessa de

um novo porvir. Ninguém mais é capaz de vê-los, como se fossem a materialidade

de uma ideia, um espectro de esperança que só é visível aos olhos dos sonhadores.

O destino do filho é incorporar-se à resistência e trabalhar atrás das moitas até

poder enfim mostrar sua cara de coiote, em seu para-si triunfal. Eles perderam

uma batalha, mas a luta continua. Antes que o palco se dissipe na escuridão, uma

luz violenta destaca as patas de lobo dos homens-coiotes, com suas garras afiadas,

sedentas de vingança. Seria o fim, ou o princípio de um novo começo?

El salto de ser que se realiza con el nuevo inicio no substituye el antes

com el después; em um nuevo incio, lo que ya estaba se afina del todo

y del todo se salva.

(Luisa Muraro)

206

ARTAUD, A. “Está na Mesa”. In: “Linguagem e Vida”. Tradução: Jacó Guinsburg. São Paulo:

Perspectiva, 2008. P-254.

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Capítulo VI

DONZELAS GUERREIRAS

A saga do herói de “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e

exceção” se inscreve na afirmação de uma Verdade, que se revela frágil e

relutante no decorrer na peça, enquanto em “O Verdugo”, a figura do herói é

substituída pelo protagonismo do carrasco, mas é também em função de uma

Verdade que o homem morre, em vão. Ninguém entendera a mensagem do

misterioso homem. Sua beatitude se dissipa com o fracasso de sua palavra. O tiro

sai pela culatra, e a tão esperada salvação se perde em um universo sombrio, que

cultua o dinheiro e não a liberdade. O dinheiro mesmo engendra uma promessa de

liberdade: a liberdade do consumo, que realiza e recria desejos. Também com

América a Verdade se ressignifica à luz de asceses que se invertem: a salvação

pelo amor em Cristo é substituída pelos dogmas da Ciência, um novo Deus.

Carne e espírito, profano e sagrado, materialidade e abstração, a vigília e a

fantasia. Os dualismos atravessam as duas peças, entre a fome do corpo e a fome

do espírito, aquilo que se pode comprovar cientificamente e aquilo que é da ordem

do sensível. Por exemplo, as figuras alegóricas com que o Verdugo tenta

descrever o misterioso homem – a árvore, o mar, os olhos de cavalo – são risíveis

aos olhos pragmáticos de sua esposa, sua filha e os juízes. Do mesmo modo, o

homem metamorfoseado em barata de Kafka e a ressurreição de Cristo são

ridicularizados pela Superintendente e suas postulantes por apresentarem

situações absurdas sob as lentes da ciência. As duas peças colocam em marcha um

questionamento em torno do logocentrismo e da soberba da Ciência, que despreza

todas as variáveis que não se encaixam na equação racional. O que é passível de

erro se descarta. Assim como no internato de freiras, onde América é recriminada

por questionar a Bíblia e os dogmas do Cristianismo. Os antagonismos de Ciência

versus Religião dão a tônica dos dualismos em América, e se reforçam quando os

vértices se invertem, mantendo intacto o pilar sobre o qual se sustenta a estrutura

hierárquica e excludente da sociedade. Mudam as premissas, mudam as pessoas,

mas o jogo de contrários continua em pleno vigor. Pois na base desse grande pilar

está a ideia de Verdade. Verdade entendida em sua acepção absoluta, uma

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pretensão de explicar o mundo em sua totalidade por um único viés. Em “O

Verdugo”, é em nome de uma Verdade que a beatitude do homem é levada até as

últimas consequências: o martírio. A que servira o martírio do herói? Seria em

nome de uma Verdade que ele sacrificara a vida? Mas fora outra Verdade a

responsável pela sua morte. Uma Verdade que adquire força de lei, imprime sua

efígie no dinheiro e se arvora na retidão do cálculo racional. Tanto em “O

Verdugo”, quanto em “A Empresa”, Hilda Hilst faz questão de suscitar a

ambiguidade intrínseca à ideia de Verdade. Isso se ilustra bem com as perguntas

das postulantes, quando América narra as aventuras do revolucionário, que

exterminara seus oponentes. Também quando o coro muda de posição tão logo a

filha do verdugo revela a quantia em dinheiro que ofereceram pela morte do

misterioso homem. Que Verdade é esta que se coloca à venda? Que Verdade é

esta que parece se adequar tão perfeitamente ao novo paradigma, conservando

suas hierarquias, suas linguagens, suas estruturas de pensamento?

A Verdade da ciência cai por terra quando Eta e Dzeta, estruturas

imaginárias criadas na parábola de América, começam a falhar. Mesmo a ciência

é fadada ao erro. Eliminado o erro, com a morte da protagonista, a máquina

retoma o seu curso de normalidade. O triunfo da ciência só é consagrado com a

morte do espírito, após seu último suspiro. Diferente do misterioso homem que se

arrepende no final, o verdugo leva para a cova sua verdade, consagrando uma

Verdade tacanha, acolhida pelo povo. O julgamento do homem, antes rechaçado

pela população, é finalmente legitimado. Mas não por todos. A peça termina com

a fuga do filho do verdugo, que se refugia no vale junto aos homens-coiotes. A luz

sinistra sobre a pata do coiote suscita esperanças que se projetam para o futuro.

Qual esperança se inscreve na pata desse homem metamorfoseado em animal?

Seria uma nova inversão de paradigmas ou a subversão de uma ordem de

dominação?

A metamorfose aparece em Hilda Hilst como uma transição entre o

homem e o animal que habita o homem. A alegoria que corrompe a ordem normal

das coisas para ressaltar sentidos que estão além do humano. É algo que de fora

que está dentro, que é do homem, mas também é do lobo, uma dimensão selvagem

que nos empenhamos em adestrar, do espírito convulsivo que grita dentro de nós,

e que de fora, é silenciado. O homem transformado em pássaro que personaliza o

ar livre, como a cotovia de Bachelard, de cores discretas e tamanho ínfimo, que

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se mistura com a paisagem, de maneira quase imperceptível. Sua aparente

invisibilidade camufla um canto que é também um voo. “Como uma nuvem de

fogo, ela dá asas à profundidade azul. Para a cotovia (...) a canção é voo e o voo é

canção, ela é uma flecha aguda que corre na esfera de prata”.207

Com suas cores e

formas indefinidas, ela encarna a metáfora literária, que desafia todas as metáforas

de cores e formas. Ela é uma “poesia pura”, indescritível, que transcende a

representação, sorvendo – ambos sujeito e objeto – em sua totalidade. A promessa

de salvação do misterioso homem ganha asas e alça voo, em uma abstração

radical, que remete a anseios imaginários, atravessa regiões fronteiriças e percorre

espaços infinitos, em divina leveza. Para Bachelard, “no reino de uma imaginação

criadora aérea, o corpo do pássaro é feito do ar que o cerca, e sua vida do

movimento que o arrebata.” 208

Ele não foge à realidade, mas a transcende,

fazendo das coisas que o cercam matéria-prima de criação. A libertação que o

misterioso homem propõe e ninguém entendeu é a possibilidade de abrir mão dos

fardos pesados que se abatem sobre o ser humano, e ganhar asas, como metáfora

de uma leveza, de uma transitoriedade que está além da gravidade, e de todas as

fronteiras que apartam e cindem a mente humana. O voo, real ou imaginário na

dimensão dúplice inerente à alegoria remete a uma possibilidade de criar em

movimento intermitente.

Hilda Hilst traz da poesia uma miríade de imagens, que se personificam

ou são aludidas em palavras, dotando-as de prodigalidade e de um teor explosivo,

que atravessa seu lirismo poético. As imagens dão vigor aos silêncios e gritos que

habitam os personagens, para além do curso ordinário de vidas que há muito

perderam seus sentidos. O Verdugo ressignifica sua vida, sensibilizado por

palavras novas, que só podem ser descritas através de imagens. A inversão entre o

paradigma da Verdade da ciência e a Verdade religiosa opera em América por

meio de imagens, como a parábola de Eta e Dzeta. É pelas imagens cambiantes

que Hilst realiza sua alquimia, transformando poesia em teatro.

Os cenários, não só nessas duas peças, como por toda a extensão de sua

obra, remetem a situações-limite. Tanto o corpo quanto o espírito são levados ao

insuportável, à beira de abismos fulminantes. Não há saída pela tangente, é

207

BACHELARD, G. “O Ar e os Sonhos – Ensaios sobre a imaginação do movimento”. Tradução:

Antônio de Pádua Danesi. 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2001. P-86 208

BACHELARD, G. “O Ar e os Sonhos – Ensaios sobre a imaginação do movimento”. Tradução:

Antônio de Pádua Danesi. 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2001. P-69.

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preciso rasgar todas as roupagens e encarar de peito aberto o dilema que se coloca

entre os protagonistas e o mundo. A tônica apocalíptica acompanha todo o curso

de seu teatro, levando seus questionamentos até o limite. Nessas duas peças, a

saída é a morte, que sela o fim, ou o adormecimento, de um paradigma. Mas antes

da morte, vem o suplício. O árduo fardo que recai sobre o Verdugo em sua recusa

de matar o misterioso homem, as lamúrias de América, confinada em um quarto

escuro ao se deparar com o assombro da materialização de sua ideia. A política

de Hilst passa pelas entranhas de corpos colonizados, habitados por silêncios que

abafam um grito de desespero.

Os silêncios e os gritos que habitam o corpo dos personagens de Hilst são

os silêncios de seu tempo. Homens e mulheres silenciados, confinados nos porões

do DOI-CODI, dilacerados pela tortura, física e psicológica. Os silêncios

impostos pelos verdugos de seu tempo. A dor e o suplício dos que aspiram por

liberdade. Os silêncios de América, um continente sob estado de exceção,

ditaduras que calam o povo e perseguem as ervas as daninhas questionadoras para

fazer passar a sua Verdade. América é a mulher, colonizada pelos interditos que

impedem seu livre-pensamento e calam a sua voz. América sofre, tanto sob o peso

da cruz, como sob a soberba da ciência. Ela busca uma espiritualidade em leveza,

uma liberdade de invenção que comporta, mas vai além da ciência. Algo que se

assemelha às asas do pássaro, que alçam voo na amplidão.

América e a mulher-verdugo são sombras dissonantes da donzela

guerreira, que opera uma fusão entre animus e anima. Essa alquimia é descrita

pelo músico Luiz Fiaminghi, e levada ao palco pelo Grupo Anima.

Sendo a guerra um emblema do animus, do espírito masculino, no

qual a força e o ímpeto se sobrepõem à lógica e ao verbo – outros

atributos do animus – e, por outro lado, tendo as donzelas guerreiras

adotado Palas Atena como protótipo – cujo mito representa o tecer de

estratégias, o combate por justiça e o convencimento pela sabedoria,

que são, juntamente com o dom da predição, a intuição e o espírito

criativo, atributos também associados ao anima – as donzelas

guerreiras transitam obrigatoriamente entre esses dois polos. As

narrativas das donzelas guerreiras, que se metamorfosearam ao

longo do tempo e das culturas, transmitem, portanto, a essência desse

encontro.209

209

FIAMINGHI, L. “O encontro entre animus e anima”. In: Grupo Anima. “Donzela Guerreira”.

São Paulo: SESC, 2010. P-16.

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Assim como a donzela guerreira, América e a mulher-verdugo

problematizam os polos apresentados como opostos e inconciliáveis. Ambas são

dotadas de uma dimensão heroica, bastante masculina, que nutre esse ímpeto de

transgredir os limites e o confinamento que lhe interpuseram. América bate de

frente com as irmãs como se estivesse em combate, defende com um escudo de

aço a Verdade da ciência: sua postura é, pois, dotada de um animus, algo que é

levado ao limite com o travestimento da mulher-verdugo. Para elas é preciso

recriar estratégias de empoderamento por um viés masculino. O poder é uma

palavra masculina por excelência. Mas por trás dessa couraça subsiste uma

mulher, que se realiza em sua anima. Essa luta consiste em libertar a mulher que

fora colonizada, enclausurada, relegada à esfera da privação.

Ao contrário da beatitude de América, que resiste pelo silêncio, a mulher-

verdugo encontra transcendência pela ação. Vestir o capuz do carrasco para ela é

um ato criador, mas seu livre voo é como o de uma ave de rapina, que persegue

sua presa em nome de seus desejos. Com suas pequenas mãos de carrasco, ela

encontra um sentido para sua vida, e abandona o seu silêncio. Na primeira cena,

ela está a servir seu marido e o filho com um prato de sopa, em um lar ordinário,

situado em um lugar qualquer, reproduzindo tristemente a repetição cíclica da

vida. Seu filho a considera ignorante, mas ela encontra no capuz do verdugo o

espaço para dar o seu grito. Pois ela é o “homem” com uma tarefa, tal como o

herói, disposta a sacrificar o amor de seu marido, que, por sinal, parecia-lhe

indiferente, e sua vidinha sem sentido, para realizar sua obra. O dinheiro, em

nome do qual ela arquiteta seu plano engenhoso, parece menor que a paixão que a

move, uma avidez por sair do lugar que lhe fora relegado. O dinheiro tem

relevância à medida que ele abre caminho para mudar sua vida.

Mudança, transitoriedade, metamorfose, hibridez e movimento são

palavras que dançam à beira dos abismos, e precisam ganhar asas para vencer as

vertigens que nos habitam. Com sua escrita, Hilda Hilst realiza um deslocamento

de perspectivas, problematiza as premissas existentes para criar algo novo. O

movimento que faz transbordar a medida imposta de fora, desafia a métrica que

comumente aceitamos sem pensar, a qual sacia a fome, mas evoca novos apetites.

É um movimento de amor, o amor que figura nos livros de América como uma

bola de fogo, e reaparece em “O Verdugo” como elemento transformador. O fogo

mesmo é transformador. É por ele que opera a alquimia. É o fogo que mantém a

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vida acesa, pois a gigantesca bola de fogo à qual se refere América é o sol. É

preciso ter cuidado, ele dá, mas também pode tirar a vida, ao derreter a cera que

prende asas ao corpo de Ícaro. Mas também é o sol que o fascina. Fascinante, mas

inapreensível. Como dizia Luce Irigaray:

Above all, do not swallow the Sun. Do not digest the sun. Do not

forget that, if it is inside you, it is also outside you. And that the

impossibility of our relationship arises from the imprisoning of the sun

inside a world. It can no longer flow everywhere. Irradiate everything

with light and heat. Eating the sun means reflecting its benefaction

back to it. In the end it will go out if it is never returned to itself.210

O sol precisa brilhar na amplidão. É impossível retê-lo. Porém se algum

dia alguém conseguisse o engolir, seu brilho seria ofuscado, e jamais completaria

sua elipse. Assim como o sol, o amor só existe quando compartilhado. Por que

retê-lo? Aprisionar o amor é tão estúpido quanto o ato de engolir o sol. Não se

pode apreender o inapreensível. É preciso abrir mão, e aceitar de bom grado o seu

brilho, e se deixar irradiar por seus raios. O mesmo raio que em todos brilha. Nem

mais, nem menos. O amor ao qual Hilda Hilst se refere, seja pelas reflexões de

América, seja pelo amor que maravilhara o verdugo, tem a ver com uma

concepção de amor descrita por Luisa Muraro: “una concepción del amor livre y

nómada, una concepción del ser que desconoce su contingéncia, em uma práctica

de lectura de los textos que se opone a su porosidad...” 211

Ele não se fixa em

algum ponto, mas se movimenta pelos mapas afetivos e cognitivos. O amor se

desdobra em diversos sentidos, permeáveis e móveis tal como ele mesmo, feito de

sentidos antigos, que se metamorfoseiam e inspiram novas criações.

Muraro narra o episódio mítico do nascimento de Eros (amor). Estavam os

deuses a celebrar com um farto banquete o nascimento de Afrodite, que nascera

em meio às espumas do mar. Eis que chega uma intrusa, uma mortal que atende

210

“Acima de tudo, não engula o sol. Não digira o sol. Não se esqueça que , mesmo dentro de

você, ele também está fora. E que a impossibilidade da nossa relação se remete ao aprisionamento

do sol dentro de um mundo. Ele não pode mais fluir por toda a parte. Irradiar tudo com luz e calor.

Comer o sol significa refletir seus benefícios nele mesmo. No limite, é como se eles jamais

retornassem a ele.” Tradução livre. IRIGARAY, L. “Elemental Passions”. Tradução franco-

anglófona: Joanne Collie e Judith Still. Nova York: Routledge, 1992. P-43 211

“Esta é a empresa própria do amor, sua acrobacia, porque assim há lugar para o outro passa a

ter lugar, não de intruso nem de complemento, não parte nem extra, não amo nem servo, não

absoluto nem relativo, não objeto de fé nem objeto de vontade. Ocorre, simplesmente, que há algo

outro e o reconheça, ainda que dele não saiba nada mais, porque em ti se revela como ação de um

centro de gravidade transposto para fora de ti: é como perder o equilíbrio e descobrir outro,

vertiginoso modo de se apoiar. ” MURARO, L. “El Dios de las Mujeres”. Tradução italiano-

espanhol: María-Milagros Rivera Garretas. Madrí: horas y HORAS, 2006. P-170.

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pelo nome de Carestia ou Miséria (do grego penia), e pede aos deuses algo para

comer. Fitou de soslaio a Poros, que se encontrava estirado no jardim, embriagado

de néctar divino, e resolve se aproveitar de seu estado para fazer um filho dele.

Muraro conclui que o amor, nascido da privação e da carência, desloca o centro da

gravidade para o outro, que está fora de si. É um equilíbrio difícil, que requer

malabarismos mirabolantes para que aceitemos a impossibilidade de a pessoa

realizar plenamente em um fora de si também dotado de desejos e anseios, que

não se encaixam milimetricamente. Nas palavras de Muraro:

Esta es la empresa propia del amor, su acrobacia, porque entonces hay

sitio para lo otro y lo otro tiene lugar, no de intruso ni de

complemento, no parte ni extra, no amo ni siervo, no absoluto ni

relativo, no objeto de fe ni objeto de voluntad. Sucede, simplemente,

que hay algo outro y lo sabes, aunque no sepas nada más, porque em ti

se muestra como acción de um centro de gravedad que se ha puesto

fuera de ti: es como perder al equilibrio y descobrir otro, vestiginoso

modo de sostenerse. 212

Em um equilíbrio instável, a mulher tece suas próprias parábolas, inverte o

jogo, muda de perspectiva, se desloca, grita, se cala. O teatro de Hilda Hilst não

absolutiza a mulher, mas antes enfatiza as vozes que a atravessam, desvela seu

íntimo, cria imagens para comunicar o incomunicável. Pois toda a palavra é

imprecisa quando se quer colocar em termos aquilo que é inerente ao sensitivo.

São palavras que dançam à beira do abismo e só podem se comunicar pela

ativação dos sentidos pelos quais apreendemos o mundo. A força da imagem, a

vacuidade trepidante do silêncio, o timbre agudo do grito e o sabor do néctar, que

escorre pelas entranhas e exala almíscar em tudo o que Hilda Hilst escreve.

Ao desafiar as leis da gravidade

Uma força me impele para longe do teu olhar réptil

Um grito de liberdade acalenta meu coração,

quando seus rastros se desmancham na distância

Longe do teu frio, num flanar de asas sobre o oceano

Um crepúsculo de mar e de nuvens movimenta

lentamente o respiro do universo

Uma coisa só, uma força incomensurável

Olho pela janela da minha liberdade-passarinho

Afrouxam-se os laços que me aprisionam, cala-se o interdito

Não poder amar de novo, não poder me lançar por inteiro

num precipício de sonho e de nuvens

Mal posso ouvir o pesar dos seus passos

Perdem-se no tempo e no espaço, labirinto soturno

Um raio se apaga, fraqueja a lembrança

No calcanhar uma leveza

212

MURARO, L. “El Dios de las Mujeres”. Tradução italiano-espanhol: María-Milagros Rivera

Garretas. Madrí: horas y HORAS, 2006. P-

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Coração aberto em meu voar-borboleta

Você fica pequeno, a ideia de você:

Um pontinho incandescente no escuro,

prestes a se apagar nos primeiros raios de sol

(Marina Costin Fuser)

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HILST, Hilda. Sítio eletrônico da autora: http://www.hildahilst.cjb.net

____________. Sítio eletrônico do Instituto Hilda Hilst / Centro de Estudos Casa

do Sol: http://www.hildahilst.com.br/biografia.php

NANDI, Ítala. Entrevista concedida à Revista Aplauso, ano 2005, edição 69,

disponível no sítio eletrônico:

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NIETZSCHE, Friedrich. “Assim falava Zaratustra”. Tradução: José Mendes de

Souza. Versão para eBook eBooksBrasil.com. 2002. P-358. Link:

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OLIVEIRA, Rodrigo Santos de“Máscaras Mortuárias em Hilda Hilst”, Revista

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RAGO, Luzia Margareth. “Imagens da Prostituição na Belle Époque Paulistana”.

Artigo apresentado na 1ª Conferência Internacional sobre Moças, Alice in

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http://www.ieg.ufsc.br/admin/downloads/artigos/03112009-103553rago.pdf

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LETRAS DE MÚSICA:

BARROS, Theo de; e VANDRÉ, Geraldo (composição). “Disparada”. Letra

extraída do sítio eletrônico: http://letras.terra.com.br/geraldo-vandre/46166/

BOWIE, David; e ENO, Brian (composição). Letra disponível no sítio eletrônico:

http://letras.terra.com.br/david-bowie/5354/

CAPINAM e GIL, Gilberto (composição). “Soy loco por ti América”. Cantado

por Caetano Veloso. Letra disponível no sítio eletrônico:

http://letras.terra.com.br/caetano-veloso/76612/

GIL, Gilberto; e VELOSO, Caetano (composição). “Divino Maravilhoso”,

cantada por Gal Costa. Letra disponível no sítio eletrônico:

http://letras.terra.com.br/gal-costa/248671/

HAMMETT, Kirk; HETFIELD, James, e ULRICH, Lars (composição). “Of

Wolf and Men”, interpretada pela banda Metallica. Letra disponível no sítio

eletrônico: http://letras.terra.com.br/metallica/25959/traducao.html

ROBERTO, Cláudio; e SEIXAS, Raul (composição) “Cowboy fora da lei”. Letra

disponível no sítio eletrônico: http://letras.terra.com.br/raul-seixas/48307/