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POR DIFERENTES CAMINHOS DA VIDA COTIDIANA: A ESCOLA RURAL COMO SONHO POSSÍVEL Alexsandro Rodrigues Orientadora: Prof.ª Drª Edwiges Zaccur NITERÓI 2004 Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre Em Educação. Área de Concentração: Cotidiano Escolar.

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POR DIFERENTES CAMINHOS DA VIDA COTIDIANA: A ESCOLA

RURAL COMO SONHO POSSÍVEL

Alexsandro Rodrigues

Orientadora: Prof.ª Drª Edwiges Zaccur

NITERÓI 2004

Dissertação apresentada aoPrograma de Pós-Graduação emEducação da Faculdade de Educaçãoda Universidade Federal Fluminense,como requisito parcial para obtençãodo grau de Mestre Em Educação. Áreade Concentração: Cotidiano Escolar.

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RESUMO

Em busca de compreender o complexo processo de escolarização de uma

comunidade rural, especificamente o povoado do Ribeirão de Conceição –

Carangola/MG, essa pesquisa faz uma incursão nos fragmentos da história local,

em diálogo permanente com a memória dessa gente.

As pessoas foram chegando ao sabor da conversa que puxa conversa.

Com ela, a vida foi sendo tecida, destecida e retecida mostrando uma complexa

paisagem que merecia ser vista de vários lugares e em diferentes tempos. Cada

pessoa trazia um fio desse tecido histórico, realçando algumas tramas,

escondendo outras, atando nós que se encontravam frouxos, desatando outros

que as incomodavam, acreditando que assim poderiam compreender melhor as

histórias cotidianas que o discurso oficial, ainda não sabe, ou não quis contar .

Foi preciso fazer viagens por caminhos nem sempre tranqüilos. E, além

disso, fez-se necessário estabelecer parceria com o tempo, onde passado e

presente se misturavam, no tempo da vida. À medida que se caminhava nessa

história local, andando para frente e para trás com os sujeitos dessa história, ia-se

percebendo que essa história (1914 a 2003) é atravessada por migrantes, que

entram e alteram o local. Esses migrantes movidos por vários interesses, vão

potencializando essa comunidade a conquistar ainda que devagarzinho a

educação básica.

Trançando falas desses sujeitos, práticas de professores leigos, ex-alunos e

documentos oficiais, foi possível fazer uma outra leitura desse lugar. Foi possível

entender que a roça não é lugar do atraso e nem da mesmice. Foi possível saber

que a roça ou campo anseia por novidades mas não abre mão de suas tradições.

Essa ambigüidade indicia que a roça e seus sujeitos precisam ser vistos com

outros olhos e não mais com o olhar simplificador que o paradigma da

modernidade nos ensinou. Quando dispostos estamos a exercitar o olhar sensível,

por isso carregado de rigor, podemos descobrir que a roça é espaço-tempo em

movimento, onde observação e intuição, criação e recriação são elementos

(re)alimentadores de força, sonhos, lutas e conquistas.

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ABSTRACT

With the objective of understanding the complex of the scholarship process

of a rural community, people from Ribeirão da Conceição, Carangola/MG, this

research makes a foray in the fragments of the local history in a permanent

dialogue with memory of those the people.

People were arriving for a chat and the life that has been built there. The

community shows a complex view that deserves be seen in different places and

times. Each person brings a “historical line” emphasizes plots, hides others, ties

knots, untie others, so, people believe that they could better understand their daily

history better than the official speech could know or couldn’t tell about.

The research “went” through anxious ways and besides that it needs to

stablish a relationship with the time, where the present and the past blended in life

time. The people went ahead like characters of the history. It was possible to notice

that this period (1914 to 2003) is crossed by immigrants that went away and let

their marks. These people came with their own objectives and slowly they

conquered the basic education.

Crossing the people’s chats, teacher’s works and official documents was

possible to understand that the country is about to have news, but it still tied to its

traditions. This ambiguity indicates that the country an its subjects must not be

seen with a simple look of the documents. When we are up to look at the country

with sensitive eyes, we can realize that it is a movement of space-time, where the

observations, intuition, creation are food for strengh, dreams and fights.

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ÍNDICE

* Introdução.....................................................................................1

* Pensar e viver a pesquisa, vivendo e con-vivendo

com os sujeitos da pesquisa........................................5

Aprendendo a aprender com os sujeitos da pesquisa

........................................................................... .......15

* Memórias andantes: desejos latentes .................................... .......23

* Entre o rural e o urbano: vivendo com a escola as angústias

marcadas pela lógica da lei...............................................................34

* Tempos de Passagens ............................................................................... .......47

* Presentificando o passado através dos símbolos escolares....................... .......60

* Dos Ingleses chegantes: à fé como princípio de

escolarização......................................................................73

* Ouvindo alunos e alunas, conhecendo um pouco: da

escola, seus professores e da história.........................88

* Novas falas, novas paisagens a partir dos olhares,

sentimentos e saberes de Normando e Ziza...................102

* No inesperado cotidiano: Eis que emerge a docência ................... .....122

* Saberes práticos dentro das práticas: (re)desenhando-nos a cada

dia............................................................................................................160

* Práticas que se reconhecem em outras práticas............................. .....178

* O tempo que se fez tempo, permite novas

leituras do cotidiano escolar................ .....203

* Ponto final, ou apenas reticências ............................................................... .....249

* Bibliografia ..................................................................... .....254

* Iconografia ............................................................................................. 260

Anexos..........................264

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PRÁTICAS QUE SE RECONHECEM EM OUTRAS PRÁTICAS

A história está nisso, ainda que não seja senão isto: olugar privilegiado onde o olhar se inquieta (CERTEAU:81: 2001)

O inquietar vem sendo o motor desta pesquisa, desta procura, deste

achar, ganhar e perder, do saber e do não-saber. Estou acreditando, na

companhia de Certeau, que a história está onde o olhar se inquieta, onde o

olhar mira para ver de novo, ou para ver o ainda não visto. Só nos inquieta

aquilo que gera perguntas, que provoca curiosidades, que anseia/pede/espera

por respostas que, quando encontradas ainda que em suas parcialidades,

geram outras tantas perguntas. É um inquietar histórico que passa pela visão,

pelo coração, pela audição, pela degustação, pela emoção, pela intuição e por

tudo aquilo que somos e que ainda seremos. Nesse inquietar, fazemos

história, questionamos a história, compreendemos melhor as histórias, seus

sujeitos e suas práticas. Estou procurando no ver de novo, o ainda não visto,

contando, narrando, intervindo, aumentando um ponto, muitos pontos. Nesses

pontos que se entrelaçam, vou vendo o tecido histórico ganhando consistência

nas resistências e insistências das práticas cotidianas de professores e

professoras que se fizeram na mais intima relação com o aprender-ensinar, por

isso, no refletir.

Pensar a escola rural, a partir da história local da comunidade do

Ribeirão de Conceição, vem sendo o grande desafio desta pesquisa, uma vez

que essas histórias desencaminham-se para tantas outras histórias que não

pensava conhecer. Não tendo controle sobre os sujeitos da pesquisa, uma

história vai sendo contada, mostrando que as práticas de professores se

revelam em tantas outras práticas de quem os antecederam, ainda que nisso

esteja o pensar-fazer oficial ou o que o oficial elegeu como a maneira ideal de

fazer escola.

Os textos anteriores vêm, de uma certa forma, tentando revelar entre o

dito e o não dito, entre o feito e o ainda por fazer a hipótese que vem dando

sustentabilidade a esse trabalho. Estou trabalhando com o princípio de que as

práticas pedagógicas e não só, se repetem, porém sempre com novidades,

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visto que os espaços-tempos que as originaram já não são os mesmos. Essas

configurações que não são e não estão em estado in natura, perdidas no

espaço-tempo cotidiano, vão se expressando e materializando através do uso

da memória e do praticar lembranças, reconfiguradas trazendo diferentes

sujeitos, tempos e espaços pelos quais elas se constituíram, validando essa

hipótese. Nesse sentido, a roça e seus sujeitos vivem uma contradição

permanente entre o apego à tradição (lugar das certezas/ do velho/ do já

criado) e à ânsia pela modernidade (incertezas/do novo e da recriação). Nesse

sentido, validando o que estou a dizer frente às certezas nas incertezas do

fazer, Lucila nos conta:

Tinha muita coisa que eu mesma decidia que deveria ser ensinado e como serensinado, mesmo sabendo que poderia não estar certo. Mas era a maneira que eutinha para ensinar aquelas crianças que de mim tanto precisavam e esperavam.

Nessa fala, Lucila vai marcando o lugar da autonomia e da regulação, da

repetição, (re)criação, do medo e da ousadia. Entre o certo e o errado, o que

existe é o pensar e o muito a fazer. E foi fazendo, que Lucila não só usava,

mas ousava e experimentava os saberes necessários a construção da

docência. O medo de Lucila era um medo impulsionador, desafiador,

encorajador. Era essa a maneira que conhecia e sabia ser possível fazer para

ensinar aquelas crianças a ler e escrever. Entre os espaços de (re)criação e da

ação, Lucila sabia que para fazer escola não se faz necessário inventar a roda

todos os dias. Para fazer escola o que sabia frente o fazer/saber docente,

carregado de bom senso, naquilo que se elege como consenso lhe garantia

uma certa autonomia. O consenso no fazer escola está impregnado de poder,

de saber, de história, de intuição, de emoção e de razão. Paulo Freire

pensando sobre o lugar da autonomia, naquilo que também se pode dialogar

com o que empowerment nos diz:

O exercício do bom senso, com o qual só temos o que ganhar, se fazno corpo da curiosidade. Neste sentido, quanto mais pomos emprática de forma metódica a nossa capacidade de indagar, decomparar, de duvidar, de aferir, tanto mais eficazmente curiosos nospodemos tornar e mais crítico se pode fazer nosso bom senso.(FREIRE: 1997: 69)

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Esse bom senso, presente nas práticas de professores(as), se faz entre

o limite do erro e do acerto, parecendo, para aqueles e aquelas que se

permitem ao risco criativo, ser a intuição e a emoção, forças que movem o

fazer e o ainda fazer docente. Dentro desse bom senso, Lucila busca em suas

referências de escola as razões para suas práticas, com a certeza de que

decidia sozinha o que fazer e não fazer. Lucila busca num outro, distante e

próximo e no empowement a referência para sua ação e para isso seu ex-

professor [Antônio Romano] tornava-se sujeito encarnado na ação de Lucila.

Sobre a prática alfabetizadora de Lucila ouvi:

Pensei que deveria colocar as crianças para ler e escrever sem misturar asmatérias e exercícios de matemática. Ensinava através da cartilha. A cartilha eraassim, aprendia as vogais e depois ia juntando tudo. Com o passar do tempo, euacrescentaria as outras matérias. Em junho todos os alunos já estavam lendo todas aslições da cartilha e isso era felicidade para mim, para meus alunos e os pais dosmeus alunos. No segundo semestre, passava para eles o que precisava das outrasmatérias. Guardo a cartilha que usei durante muito tempo, foi com ela que tambémaprendi a ler e escrever.

Da cartilha usada por Lucila, faltam as primeiras páginas. Suas folhas se

encontram presas umas as outras amarradas por linhas, que por diferentes

bordados e remendos também escreveram e escrevem outros saberes dessa

professora. A cartilha vai trazendo as marcas de um tempo praticado. Em cada

folha existe um código, um número, um colorido de criança querendo conhecer

o que naquela cartilha se escondia. Movido pela curiosidade frente ao código, a

criança (sobrinho da professora) pratica/refletindo sobre o código, tentando

desvendar seus segredos. Pedaços de durex unem partes de folhas que se

sabe lá como, se rasgaram ao longo de um tempo que se fez praticado e

habitado.

Em pouco tempo, essa cartilha terá um século de idade. Sua publicação

data-se do ano de 1914 que somado às idades de cada criança e adulto que

com ela foram alfabetizados e não alfabetizados chegaremos a um número

assustador. O ano de publicação dessa cartilha coincide com a chegada do

primeiro missionário inglês nessa comunidade e pelas informações que obtive,

não posso afirmar se essa cartilha chega à comunidade por suas mãos.

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Ao tocar nessa cartilha, ansioso por ver as lições, não posso negligenciar o

prefácio do autor, que apresenta nas páginas iniciais seus pressupostos.

( Foto 43 - ) Pressupostos teóricos da cartilha.

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( Foto 44 - ) Pressupostos teóricos da cartilha.

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( Foto 45 - ) Pressupostos teóricos da cartilha.

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O conteúdo direcionado ao professor pelo autor traz em si promessas e

certezas de resultados, caso a professora seguisse os caminhos determinados

pelo receituário. Mesmo querendo assegurar a excelência do método, o autor

coloca nas mãos do mestre a responsabilidade por fazê-lo mais atraente e

eficaz, ao mesmo tempo que chama o educador a responsabilidade pelo seu

fazer pedagógico. Em sua fala aparece a dimensão do coletivo e do individual

nas relações com o aprender. O tempo e o número de crianças estipulados

para, no quadro negro, experimentarem hipóteses, se é que assim podemos

pensar, esse tempo é regulado por um tempo cronometrado entre dez a quinze

minutos. Sua certeza é enquadrada numa dimensão temporal do que poderia

levar a criança à distração e fadiga. A linguagem escrita vai sendo aprendida

à medida em que as crianças vão juntando sílabas, formando palavras, frases,

sentenças, textos. Cópias, ditados, caligrafia e as posições corretas para o

corpo, já discutidos nesse trabalho, não podem faltar no receituário dos

métodos de alfabetização. A exemplo disso, apresento a lógica do seu método

silábico sintético, que preside a organização da cartilha e trabalha com o

princípio do mais simples ao mais complexo, comum a muitos outros métodos

de alfabetização já conhecidos. Comparando a primeira lição a uma das

últimas, se percebe esse princípio organizativo. O simples, porém, só é simples

numa lógica adultizada.

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( Foto 46 - ) Primeiras Lições

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( Foto 47 - ) Primeiras Lições

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( Foto 48 - ) Primeiras Lições

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Observando essa cartilha, posso perceber que somente depois da 36ª

lição, é que outros temas entram na organização do ensino. A primeira parte

da cartilha, se refere estritamente ao processo de alfabetização. A segunda

parte, busca fazer um outro movimento. O ensino dimensiona na intenção de

personalizar e criar sentidos para os fazeres/saberes escolarizados,

aparecendo neles também as marcas ideológicas da época. O método não

necessariamente é um espaço completamente fechado. Nele o fazer

pedagógico pode abrir fissuras.

( Foto 49 -) Últimas Lições da Cartilha

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( Foto 50 -) Últimas Lições da Cartilha

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( Foto 51 -) Últimas Lições da Cartilha

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Percebo que a prática de Lucila não se revestia da total autonomia,

porque nenhuma prática se reveste da autonomia absoluta. Sabemos que os

métodos de alfabetização funcionam como uma fábrica de produção em grande

escala. É ensinado às futuras professoras que se faltar um componente ou se

ele for alterado, desorganiza-se todo o processo produtivo. No entanto, as

professoras sempre inventam espaços para a criação cotidiana. Como nos diz

o autor dessa cartilha: O mestre é quem faz a excelência do método. Sendo

ele que faz a excelência do método, por que não querer se aventurar na

reinvenção da ordem já imposta/posta?

Com Lucila fico sabendo que: até o meio do ano todos os seus alunos

e alunas estavam alfabetizados e isso era razão para aplausos. Parece que

esse era o tempo da cartilha. Até o meio do ano a professora conseguia

trabalhar todas as famílias silábicas da cartilha. Ficando o outro tempo, para

trabalhar as questões gerais da educação escolar. O tempo, esse tempo

relógio, volta e meia aparece nesse trabalho, uma vez que é com ele que se

define os princípios da modernidade, demarcando a forma de conceber o

mundo e o tempo da escola. Meio ano, um ano, 4 anos, esse é o tempo da

escola primária. Nessa escola, onde Lucila exerce a docência o tempo era um

outro, era de 3 anos, até a abertura de uma salinha de aula de 4ª série, por

uma professora normalista Maria Novaes, irmã de um fazendeiro da

comunidade.

Querendo saber até que ponto todas as crianças, alunos de Lucila se

alfabetizavam no primeiro ano escolar, vivendo com o método silábico suas

primeiras experiências com a leitura e escrita, volto ao livro ata da escola.

Como resposta a essa questão, encontro a ata de exames finais do ano de

1958.

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( Foto 52 - ) Ata de exames finais do ano de 1958

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( Foto 53 - ) Ata de exames finais do ano de 1958

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Feita a leitura desse documento, não consigo compreender o que Lucila

quis dizer quando disse: Em junho todos os alunos já estavam lendo todas as

lições da cartilha e isso era felicidade para mim, para meus alunos e os pais

dos meus alunos. Se todos os alunos estavam lendo em junho todas as lições

da cartilha, o que justifica o alto índice de crianças não promovidas à 2ª série?

No ano de 1958 das 22 crianças da 1ª série, 15 delas foram reprovadas

por não saber ler e escrever, isso gera contradição com o que nos diz a

professora. Chama-me atenção que, no 1º ano de trabalho dessa professora,

todas as crianças aprovadas e reprovadas aparecem no documento de exames

finais com nome e sobrenome. Além disso, as crianças são referidas, tendo

como princípio de distinção, o patriarca da família. As crianças não são vistas

como um número a mais entre os que na escola estão. Todos, carregam

consigo o nome do pai, como indicativo de pertença à comuninade

marcada/pratriarcal.

De 1959 a 1962 só aparecem nas atas de exames finais as crianças que

foram aprovadas nominalmente, os reprovados não aparecem nos

documentos. Parece-me, que ao não aparecer nominalmente em atas, os

alunos nunca tivessem existido na escola. Se as crianças de corpo, alma e

coração não existiram para a escola, que dirá do fracasso escolar!

A partir de 1963, as crianças reprovadas continuam sem nomes,

porém, são quantificadas. Chama-me atenção nesse ano, o fato de que essa

escola inicia-se a diferenciação da primeira série fraca, da primeira série

básica. Ou seja, os iniciantes começavam a carreira escolar na primeira série

fraca e de lá seguiam, caso nada atravessasse aquele cotidiano, para a

primeira série básica. A primeira série básica era aquela na qual as crianças já

dominavam alguns rudimentos de escrita e leitura. De posse desses

documentos e dessas reflexões, surgem perguntas: Será que Lucila não

considerava o tempo de 1 ano estipulado para alfabetização? Será que Lucila

fugia a essa lógica temporal para se pensar o tempo para a alfabetização? Ou

será que não os via como alunos da 1ª série? Que alunos Lucila considera

como todos?

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Não satisfeito com essas hipóteses, retorno a Lucila novamente para

ampliar a conversa sobre a reprovação das crianças na primeira série e da

turma fraca e básica. E dela ouço:

Naquele tempo tudo era muito difícil. As crianças chegavam na escola com asmais variadas idades. Tinha criança que nunca tinha visto um lápis ou um caderno,que dirá as letras do alfabeto. Para pegar no lápis e fazer o uso dele corretamenteparecia um grande sofrimento. Tinha criança que demorava muito tempo para sair dosexercícios preparatórios, era essa a 1ª série fraca. Seus pais, numa grande maioria,eram analfabetos. Luz elétrica nem pensava em existir lá na roça. Então, o mundo dasletras pertencia somente ao universo da escola. Uma criança não se alfabetizar noprimeiro ano de escola, era normal. É isso mesmo, (...) não se alfabetizar no primeiroano de escola era normal. Mas eu não queria isso. Meu desejo sempre foi que todosaprendessem a ler e escrever, ainda que demorando mais tempo. Parecia que os paissofriam muito ao ver que seus filhos não estavam se alfabetizando. Muitos até falavamque a culpa era deles, por não saber ler e escrever e não poder ajudar as crianças emcasa. Ainda que demorando muito tempo, quase todas as crianças aprenderam a ler,menos uma menina que tinha muita dificuldade.

Essa fala de Lucila reacende uma outra discussão. Volto ao tempo

cíclico da roça, volto ao tempo do plantar, ao tempo da natureza, ao tempo

lento, ao tempo dentro do tempo, ao tempo da espera, da incerteza da colheita,

que vive todo agricultor sujeito às interperes da vida, mas que, nem por isso,

deixa de plantar. Ainda que convivendo com esse tempo da natureza, o tempo

da espera os pais sabiam do tempo que a escola determinou para a

alfabetização/escolarização, fugindo a esse tempo, alguém precisaria ser

culpablizado, nesse caso, os pais eram quem se sentiam impotentes diante do

tempo da escola e do fracasso de seus filhos.

Lucila trabalha com uma outra lógica de aprovação e reprovação,que a

meus olhos diferencia-se de muitas por nós conhecidas. Não culpa a família

por serem analfabetos, não se culpam as famílias pela lógica perversa em que

vive o homem do campo ao ter de abandonar as terras em onde se vive perto

da escola à procura de possibilidades melhores, ainda que nisso esteja o não

direito à escolarização. Nesse tempo de Lucila, não existe um antes ou depois,

no que diz respeito à escolarização das crianças. Não existe o professor que a

antecede e nem o que irá sucedê-la em seu trabalho e por isso poderá oferecer

às crianças outras possibilidades de alfabetização. Lucila faz o trabalho do

agricultor, semeia saberes escolares e ansiosa espera o tempo da colheita,

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ainda que nesse tempo, estivessem as marcas do tempo escolar. O tempo de

Lucila é do que-fazer, do agora, do presente, ainda que com ele estejam as

marcas de um passado (cultura da natureza) e o desejo de futuro com

novidades (cultura letrada). Dentro dessas novidades surge a ampliação da

escolaridade das crianças da comunidade de Conceição. Porém pode se

perceber que essas pessoas do campo são conscientes de que em momento

algum desejam abrir mão da cultura da natureza. Em busca de novidades, o

homem do campo cria estratégias a seu favor, para fazer com que seus

filhos(as) continuem, como nos fala Carlos Rodrigues Brandão (1990), a

carreira escolar.

Sabemos que todos os métodos de alfabetização já criados

alfabetizam, porém ficam algumas perguntas: Alfabetizam quem? Quem e por

que com eles não se alfabetizam? Que alfabetização é possível nessas

concepções? Essas perguntas parecem fazer parte da rotina do cotidiano da

professora alfabetizadora. Volta e meia essa questão sobre métodos

alfabetizadores ronda os diferentes espaços educativos, suscitando novas

perguntas, novos desejos em dinamizar, controlar e direcionar a prática

educativa alfabetizadora, na tentativa de encontrar sua excelência.

Numa conversa com Márcia, ex- aluna de Lucila, hoje professora , sou

surpreendido por essa fala:

Aprendi a ler e a escrever com meu pai. Desde muito pequena lembro de meupai contando histórias pra gente nos poucos livros de sua pequena biblioteca. Meu paisabia da importância da continuidade dos estudos para nós e para a comunidade.Dizia também que a única herança que os pais poderiam deixar para seus filhos era osaber escolar, pois a terra não era mais garantia. Por isso é que minha tia formada emprofessora abriu a salinha de aula para oferecer a quarta-série. Terminávamos a 3ªsérie na escolinha dos ingleses e íamos para fazenda Meia Lua, fazíamos a quarta-série com a minha tia Maria.

Curioso por saber sobre essa turma de 4ª série, peço a Márcia que me

leve para falar com sua tia, e assim, poder entender um pouco melhor essa

história. Márcia, a par da pesquisa que venho desenvolvendo, conversa com

sua tia sobre seu tempo como professora na comunidade de Conceição.

Depois de alguns dias, Márcia chega à escola que trabalhamos com algumas

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anotações dessa conversa. Disse-me que sua tia não ficaria muito a vontade

para conversar comigo. O teor da carta é surpreendente.

( Foto 54 - ) Carta da professora Maria Novaes- Marcas da ampliação de séries na comunidade

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( Foto 55 - ) Carta da professora Maria Novaes- Marcas da ampliação de séries na comunidade

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A história de Maria Novaes se aproxima muito com à de Lucila,

mulheres rurais, professoras, ligadas ao mundo do trabalho permitido às

mulheres. Mundo das linhas, agulhas, tesouras, tecidos, remendos e criação.

Costureira, profissão permitida às mulheres, uma vez que as roupas

industrializadas eram muito caras nessa época e quase não existiam em nossa

região. Alfaiates eram somente para a elite, por isso as classes populares

tinham nas costureiras a possibilidade de concretização de seus desejos.

Maria Novaes, ainda que normalista, é desafiada por um irmão a

assumir a condição de professora, no desafio, acompanhado de uma aposta,

estava o desejo de ver seus filhos dando continuidade aos seus estudos. No

sentido da aposta estava o não acreditar/acreditando que sua irmã professora

não enfrentaria/enfrentaria os sacrifícios de ser professora rural. É usando

dessa estratégia que Maria Novaes se insere no exercício do magistério.

Ainda, reside nessa aposta a possibilidade de ver seus filhos(as) concluindo o

ensino primário na comunidade e de muitos outros que também se

beneficiariam com a chegada da nova professora.

Lucila é encorajada à condição de professora através do chamamento

do missionário. Mulheres, costureiras, professoras, sonhadoras, desafiadas

assumem a docência como profissão. Em nenhum momento existe a vocação

para o exercício do magistério como muito nos ensinou o discurso educacional.

O que é necessário para essa empreitada se chama coragem. O irmão de

Maria sabia disso, o missionário também. Desejos diferentes. Um, em nome de

Deus, o outro, em nome de um futuro que sabe lá, a quem pertence. As duas

professoras sabiam que seria difícil, mas não impossível, por isso, foram lá e

fizeram os sonhos de muitos se tornarem realidade. Um fragmento da carta da

professora Maria muito chamou-me atenção:

A escola era mantida e funcionava no prédio dos missionários e quandopassou para o estado ofereceram-me a vaga da D. Lucila porque ela era protestante,mas nem eu quis, nem o Nery de Assis Marinho deixou (irmão), para que nãoprejudicasse a D. Lucila ( idéia do Padre Geraldo).

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A partir das Leituras de José Silvério Bahia Horta e Calos Roberto

Jamil Cury (1983), vou percebendo que historicamente a igreja católica sempre

se colocou no lugar de maioria e, por isso, negando “a minoria” com suas

crenças. A Constituição Imperial de 1822, fortalecendo-se nas crenças de D.

Pedro I declarava que o catolicismo era a religião oficial do país. As

discussões sobre o ensino religioso leigo ou de base eclesiástico nas escolas

oficiais fizeram parte de grandes debates políticos,religiosos e educacionais

até o final da década de 50. Como nos falam esses autores, somente no final

dos anos 50 do século passado, é que começa a surgir uma esquerda católica

(CNBB) influenciada por movimentos mundiais contraditórios ao totalitarismo

da Igreja e do Estado. As relações de poder entre o estado e a igreja

atravessam também o contexto da pequena comunidade de Conceição, com a

presença do padre Geraldo, que imbuído de poder e autoridade da igreja

católica, tenta destituir Lucila do lugar de professora dessa comunidade. Em

nome de Deus, também se exclui e mata.

Nessas conversas, em momento algum, haviam sido mencionadas as

discussões religiosas. Falando sobre as anotações de Márcia (ex-aluna de

Lucila), com Lucila pude ouvir:

Eu fiquei sabendo dessa conversa do padre Geraldo, então coloquei nas mãosde Deus. Não briguei, não discuti com ninguém. Minha mãe queria que euabandonasse a escola. Ela achava que aquilo era uma falta de respeito. Parecia queminha mãe não me conhecia direito. Depois de tanta luta e sofrimento não seria issoque iria fazer eu abandonar o magistério e aquela escola. Sabia que aquilo era intrigade algumas pessoas católicas com a minha religião.

Embora os católicos sempre exercessem seu poder na história de nosso

país, na comunidade do Ribeirão de Conceição, eram os missionários e

professores protestantes que geriam a educação local e suas atuações eram

vistas com bons olhos por toda comunidade. Somente na fala de Normando em

seu tempo de aluno (1936) é que a insatisfação com a prática de seu ex-

professor (Antônio Romano) se faz perceber. Normando, por ser católico,

percebia que seu ex-professor tratava de forma diferente os alunos católicos.

Como ele me disse, todo o ritual religioso na escola estava apoiado nas

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crenças da igreja cristã. Com exceção de Normando, ninguém mais havia

trazido em sua fala o conflito existente.

Lucila mais uma vez coloca sua vida nas mãos de Deus e resiste às

novas dificuldades. Sua trajetória, para se fazer professora, foi extremamente

árdua, como ela mesma faz questão de enfocar. Não seria uma conversa

qualquer, ainda que nela estivesse o nome e o poder do padre Geraldo, que

iria abalar a crença em seu trabalho, a fé em Deus e a certeza de dever

cumprido.

Se não se passasse de conversas, seriam duas forças em luta na

comunidade: a favor ou contra essa professora. A força da igreja Cristã com

um úmero expressivo de fiéis e a força da igreja católica que por sua vez se

reveste de poder acumulado historicamente no apoio do Estado.

Dessa conversa com Lucila, gostaria de dar destaque a uma outra parte

de seu discurso:

Naquele tempo era obrigado a ensinar a religião católica na escola. Eu nãosabia nada da religião católica. Sabia da minha. Pra mim, isso já bastava para falar deDeus. Um dia conversando com a inspetora falei: Como posso dar aula de religiãocatólica? Se eu não sei, se eu não sinto, se não é esta a minha fé.

Lucila nos ensina muito ao dizer que é impossível desenvolver ações

quando não se acredita nelas, não sente e não tem fé. Ainda que não

querendo, ainda que acreditando que não estava sendo tendenciosa na

formação religiosa e moral das crianças, Lucila fazia o que acreditava.

Tentando ver como as práticas se repetem ouço de sua ex- aluna

Márcia, hoje professora:

De D. Lucila, tenho várias lembranças, mas o que mais me marcou foram osmomentos das músicas. As músicas que hoje ensino meus alunos em sua grandemaioria aprendi com ela, sendo elas religiosas ou músicas do folclore brasileiro. Tragoessa professora quase todos os dias para minha sala de aula e muito do que eu faço,faço como ela. Ela é uma das referências que tenho para exercer a profissão deprofessora.

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Não dá para negar, as práticas pedagógicas se reconhecem em outras

práticas, ainda que alteradas pelo tempo.