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Por que rompemos com a Transição Socialista Publicamos esta crítica à Transição Socialista após termos saído dessa organização em setembro de 2018. Consideramos nossa ruptura como o amadurecimento de uma tendência política que se desenvolveu no interior da própria TS, sobretudo entre os militantes mais ativos na produção do jornal O Corneta. Rompemos por entender que a política da TS se afastou da classe trabalhadora, negando seu papel histórico como sujeito revolucionário. Grande parte da crítica contida neste texto foi exposta antes, internamente, de forma fragmentada numa série de tentativas individuais 1 feitas por nós que escrevemos este texto e também por outros militantes que tentavam defender o direcionamento da organização pela perspectiva da classe trabalhadora. Sistematicamente, essas tentativas foram atacadas e negadas pela maioria da direção. Estar dentro da TS passou a significar a legitimação de uma política completamente estranha à classe trabalhadora e a isso somos radicalmente contrários. Estar fora nos permite reunir, com independência, as forças perdidas, ou intencionalmente eliminadas, pela TS, para dirigi-las à classe trabalhadora, sendo este texto o primeiro passo. 1. A premissa da luta de classes – pressões materiais no interior da organização A composição social da TS tal como é hoje permanece praticamente a mesma desde sua fundação, tendo se modificado apenas os nomes e as posições hierárquicas dos militantes. Um corpo militante composto basicamente de professores e estudantes de universidades públicas (sobretudo da USP), ex-estudantes que passaram a assalariados de profissões “intelectuais” no setor privado e alguns funcionários públicos 2 . Sua composição militante teve e continua a ter, sobretudo em seu núcleo mais sólido e persistente, um caráter pequeno- burguês. Mesmo aqueles militantes que não saíram diretamente da pequena burguesia estão inseridos em meios historicamente determinados por essa classe, que é o caso das chamadas profissões liberais e do funcionalismo público 3 . 1 Textos enviados via relato à direção (circulação restrita aos membros do comitê central) e textos de contribuição à última conferência (circulação a todos os membros da TS). 2 No caso dos estudantes da USP e dos funcionários públicos da USP, os militantes têm sua atuação política correspondente ao seu local de estudo e de trabalho, respectivamente. Porém, os demais têm uma espécie de jornada dupla, estudando ou trabalhando onde não atuam politicamente e atuando politicamente em locais onde não trabalham nem estudam. 3 Compreendemos que historicamente também houve um processo profundo de proletarização dessas profissões. Mas ainda persiste nelas uma tendência a manter determinados privilégios em relação às outras profissões, seja por seu caráter intelectual, pelo conjunto de condições de trabalho ou por seus salários muitas vezes superiores à média dos assalariados.

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Por que rompemos com a Transição Socialista Publicamos esta crítica à Transição Socialista após termos saído dessa organização em

setembro de 2018. Consideramos nossa ruptura como o amadurecimento de uma tendência

política que se desenvolveu no interior da própria TS, sobretudo entre os militantes mais ativos

na produção do jornal O Corneta. Rompemos por entender que a política da TS se afastou da

classe trabalhadora, negando seu papel histórico como sujeito revolucionário. Grande parte da

crítica contida neste texto foi exposta antes, internamente, de forma fragmentada numa série de

tentativas individuais1 feitas por nós que escrevemos este texto e também por outros militantes

que tentavam defender o direcionamento da organização pela perspectiva da classe

trabalhadora. Sistematicamente, essas tentativas foram atacadas e negadas pela maioria da

direção. Estar dentro da TS passou a significar a legitimação de uma política completamente

estranha à classe trabalhadora e a isso somos radicalmente contrários. Estar fora nos permite

reunir, com independência, as forças perdidas, ou intencionalmente eliminadas, pela TS, para

dirigi-las à classe trabalhadora, sendo este texto o primeiro passo.

1. A premissa da luta de classes – pressões materiais no interior da organização A composição social da TS tal como é hoje permanece praticamente a mesma desde sua

fundação, tendo se modificado apenas os nomes e as posições hierárquicas dos militantes.

Um corpo militante composto basicamente de professores e estudantes de universidades

públicas (sobretudo da USP), ex-estudantes que passaram a assalariados de profissões

“intelectuais” no setor privado e alguns funcionários públicos2. Sua composição militante teve e

continua a ter, sobretudo em seu núcleo mais sólido e persistente, um caráter pequeno-

burguês. Mesmo aqueles militantes que não saíram diretamente da pequena burguesia estão

inseridos em meios historicamente determinados por essa classe, que é o caso das chamadas

profissões liberais e do funcionalismo público3.

1 Textos enviados via relato à direção (circulação restrita aos membros do comitê central) e textos de contribuição à última conferência (circulação a todos os membros da TS). 2 No caso dos estudantes da USP e dos funcionários públicos da USP, os militantes têm sua atuação política correspondente ao seu local de estudo e de trabalho, respectivamente. Porém, os demais têm uma espécie de jornada dupla, estudando ou trabalhando onde não atuam politicamente e atuando politicamente em locais onde não trabalham nem estudam. 3 Compreendemos que historicamente também houve um processo profundo de proletarização dessas profissões. Mas ainda persiste nelas uma tendência a manter determinados privilégios em relação às outras profissões, seja por seu caráter intelectual, pelo conjunto de condições de trabalho ou por seus salários muitas vezes superiores à média dos assalariados.

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Porém, apesar dessa composição social ter persistido imutável em mais de uma década de

existência, não estamos tratando de algo estático. O que vemos hoje é a consolidação de uma

política que passou por um longo processo de lutas internas. A superação de sua condição

pequeno-burguesa para uma composição proletária foi assunto recorrente de discussões. E

obviamente sempre se afirmou, em teses, uma intenção proletária. Mas, até hoje, as

resoluções para este impasse apenas limitaram-se a propostas positivas, em que bastaria

acrescentar um conteúdo proletário ao conteúdo pequeno-burguês. Nós entendemos, e

pretendemos demonstrar, que a política da TS não está imune às pressões materiais das

classes, que o conteúdo pequeno burguês não se faz presente apenas na composição de seus

membros, mas na vida da organização e em sua relação dinâmica com os conflitos reais,

orientando seu eixo estratégico.

O afastamento consciente da classe trabalhadora O movimento estratégico realizado pela TS na última década revela o retorno das mesmas

questões de classe. De 2006 progressivamente até 2010, quando ainda se denominava

Movimento Negação da Negação, havia orientado grande parte da sua militância ao

movimento dos trabalhadores, a partir da atuação em algumas categorias organizadas

(metalúrgicos, carteiros, professores etc.) e também a partir de uma esfera mais ampla, com

reuniões abertas dos chamados “Comitês MNN” e com o jornal Transição Socialista distribuído

em locais de grande circulação de trabalhadores. Não trataremos aqui dos vários problemas

que havia nos trabalhos em particular e na política da organização como um todo. Mas

concluímos que havia, de qualquer maneira, um direcionamento de boa parte das forças do

partido ao proletariado. Esse direcionamento, no entanto, foi interrompido quando, diante das

dificuldades (e de um acúmulo de erros) de construção do partido, a direção do MNN reviu sua

tese original4. Em 2011, redigiu novas teses conferenciais afirmando que o movimento da

classe trabalhadora brasileira estava em refluxo, o que justificaria “concentrar forças” para,

num outro momento, direcioná-las ao movimento operário. Mas a aplicação dessa tese levou,

na realidade, à destruição de suas forças: fechamento de todos os trabalhos de caráter

proletário e, consequentemente, saída da maioria dos militantes que estavam nesses

trabalhos. É claro que essa política encontrou resistência, formaram-se duas frações

diferentes, ambas criticas a ela, sendo uma das frações composta quase totalmente pela base

do setor Movimento Operário (os militantes do Corneta). Após a conferência de 2011,

praticamente todos esses saíram, e os militantes que permaneceram no MNN foram

4 A tese de que, com a crise política do PT desde o mensalão, abria-se uma “avenida” para a construção de uma nova direção política da classe trabalhadora.

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exatamente aqueles envolvidos na atuação universitária, mais particularmente no movimento

estudantil da USP.

Adaptação à realidade pequeno-burguesa: “programa da juventude” Ainda em 2011, novos fatos da USP que culminaram numa greve estudantil massiva

arrastaram o MNN a desviar-se de sua tese conferencial de “concentração de forças”,

passando a atuar com todo peso no movimento estudantil. O que se concretizava, portanto,

era simples: a organização eliminara suas forças na classe trabalhadora para concentrá-las, na

verdade, no movimento estudantil da USP. O que marca a atuação do MNN nesse período é a

tentativa de adaptação do programa marxista à realidade universitária. A necessidade da ação

independente da classe trabalhadora era transposta à ação dos estudantes. Diluindo o

conceito de classe social na abstração de juventude, o MNN se apresentava na universidade

como Território Livre e atuava através de um programa específico, do “poder estudantil”. O

programa da classe trabalhadora, o tão reivindicado Programa de Transição, ficava

engavetado. Enquanto a classe não está em movimento, pensava o MNN, os estudantes

poderiam atuar como força subjetiva do desenvolvimento histórico social.

Foi esse mesmo pressuposto que guiou, alguns anos depois, sua atuação no movimento

Contra Copa e, de maneira ainda mais distorcida, no movimento Fora Dilma. A luta contra a

Copa possuía um caráter mais proletário, pois agregava uma juventude vinda da classe

trabalhadora (além de parte ser de trabalhadores propriamente) que se organizava na esteira

das jornadas de junho, como um resquício desse movimento de massas. Naquele momento,

várias categorias se levantavam simultaneamente em seus locais de trabalho (em São Paulo,

os metroviários faziam uma greve com grande adesão da base, e os rodoviários faziam uma

greve à revelia do sindicato), mas o movimento Contra Copa em SP se isolava. Entre seus

participantes, jovens proletários, predominava o desprezo pelo papel da classe trabalhadora,

com o culto ao espontaneísmo e à ausência de direção, uma conclusão mal digerida de junho

de 2013. O MNN fez dessa situação de isolamento e esquerdismo uma virtude. Atuando

sempre como TL, defendia como seu papel “aquecer as ruas”. Atribuía a outros partidos, e não

a si mesmo, o papel de organizar os trabalhadores. Assim, contribuía para manter a luta “das

ruas” separada da luta nos locais de trabalho. Reafirmava, portanto, estrategicamente, sua

atuação fora dos locais de trabalho e seu programa “da juventude” – no caso do movimento

Contra Copa, adaptava o “poder dos estudantes”, defendendo o “poder popular”, estando aqui

também dissolvido o conceito de classe5.

5 “Entende-se que toda grande revolução é uma revolução popular ou nacional, no sentido de que une em torno da classe revolucionária todas as forças vivas e criadoras da nação, e reconstrói a nação em torno de um novo núcleo. Mas isso não é uma palavra de ordem, é uma descrição

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Já no movimento Fora Dilma, esses problemas que pareciam pequenos detalhes conceituais

se desenvolveram como um erro mais grave, pois não se tratava mais de um movimento

espontâneo e indeterminado de setores desorganizados da classe trabalhadora, e sim de um

movimento cuja composição era mais definidamente pequeno-burguesa, e sua direção

burguesa com um apelo de direita. O afastamento da luta de classes em sua forma mais

determinada já havia se naturalizado a tal ponto no MNN que ninguém viu problema na

ausência da classe trabalhadora naquele movimento, apoiando-o cegamente. Calculava-se

que a luta superestrutural contra a Dilma levaria a lutas espontâneas nos locais de trabalho,

inclusive com a tese de que sua derrubada necessariamente enfraqueceria o bloqueio da CUT.

Se, na luta Contra a Copa, o MNN atuava para esquentar as ruas, confiando o papel de

direção do proletariado às organizações centristas, na luta contra Dilma defendia que a direção

burguesa do processo criaria, por si mesma, condições mais favoráveis à classe trabalhadora6.

Portanto, depois de 2013, o MNN deixou de ter uma atuação exclusiva no meio universitário,

mas manteve e expandiu a visão de mundo que cultivou naquele meio: defendeu que uma

força externa à classe trabalhadora – ou a classe em sua forma dispersa e indeterminada –

poderia atuar como sujeito histórico, "esquentar as ruas" ou derrubar governos, enquanto a

luta não despertasse nos locais de trabalho7.

Mesmo no I Congresso do MNN, realizado em 2017, quando a direção reviu o “programa de

juventude” do TL (trataremos do assunto mais a frente), ainda prezou, contraditoriamente, por

uma suposta relevância do MNN “em manifestações políticas superestruturais de juventude e

na discussão com o conjunto da esquerda (ela própria minúscula)”8. Não entendeu essa

“relevância” que possuía fora do movimento da classe trabalhadora como algo que

determinava seu caráter não-proletário. Pelo contrário, enxergou nisso alguma vantagem. Com

a concentração quase total de suas forças nesses movimentos, o programa socialista do

sociológica da revolução, que requer, além disso, uma definição precisa e concreta. Como palavra de ordem, é fanfarronice e charlatanismo, é uma competição de mercado com os fascistas, ao preço de semear confusão na cabeça dos trabalhadores... (…) Para que a nação possa de fato se reconstruir em torno de um novo núcleo de classe, ela deve ser reconstruída ideologicamente e isso só pode ser alcançado se o proletariado não se dissolver no "povo", na "nação", mas, se desenvolver um programa próprio, de revolução proletária, obrigará a pequena burguesia a escolher entre dois regimes.” TROTSKY, Leon. Contra o Nacional-Comunismo. 6 O MNN defendia disputar a direção dos atos pequeno burgueses, buscando se alçar ao posto ocupado por MBL e Vem pra Rua, mas considerava o impeachment como uma pauta progressista em si mesma, independente do setor social que o realizava ou de quem o dirigia. 7 A afirmação de que a luta não havia despertado nos locais de trabalho era uma suposição sem nenhuma observação da realidade. 8 O problema dos níveis e a construção partidária – Teses I Congresso do MNN - 2017.

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proletariado, foi, na prática, sendo substituído por reivindicações parciais radicais atribuídas a

outros setores sociais.

Pensamos, portanto, que a atuação do MNN enquanto “juventude” reforçou – e ao mesmo

tempo foi determinada por – seu caráter de classe pequeno-burguês. A radicalidade política

sem a classe trabalhadora, como foi praticada pelo MNN, constitui uma forma de ultra-

esquerdismo, classicamente associado à pequena burguesia.9

Uma tendência operária na Transição Socialista Compreendemos que a política pequeno-burguesa da TS teve como base material a

composição do grupo e sua atuação (sobretudo de 2011 a 2013) à margem do movimento da

classe trabalhadora. Apesar desse traço fundamental, pesaram também sobre a TS: a defesa

de um programa revolucionário e sua perspectiva internacional, primeiro na construção da OSI

(Organização Socialista Internacionalista), vinculada ao CORQUI (Comitê de Reconstrução da

Quarta Internacional) (antes desta defender a entrada no PT10) e depois com o CIQI (Comitê

9 Tal classe, define Trotsky, é caracterizada por sua heterogeneidade - em suas camadas mais baixas se aproxima do proletariado e beira o lumpesinato, em suas camadas mais elevadas se aproxima da grande burguesia. A pequena burguesia é uma soma de forças dispersas, uma poeira humana, que só pode ser guiada em seu movimento histórico pela grande burguesia ou pelo proletariado, as classes fundamentais em luta. As guinadas à esquerda da pequena burguesia, sem poderem dar um desfecho histórico para a crise da humanidade, podem assumir, no entanto, um caráter radical. Ver Aonde vai a França? e Revolução e Contra Revolução na Alemanha. 10 "Ora, no início do ano de 1980, tomamos conhecimento de uma resolução do CC da OSI que começava a alterar totalmente a política seguida até então. Propunha-se que começássemos uma experiência de entrismo no PT. Justamente a seção que iniciaria essa experiência de entrismo seria a seção de Ribeirão Preto, aquela em que militávamos. Sobretudo, depois de conhecer as opiniões de Broué, repletas de otimismo revolucionário, era difícil aceitar que fôssemos fazer entrismo no PT, partido que era impulsionado pela "burocracia" que, em resolução do último congresso, era considerada "similar aos gângsters peronistas". A partir de então, diante de tal capitulação do CC da OSI, tivemos certeza de que precisávamos criar uma tendência de oposição. Finalmente, no período de Congresso da OSI realizado em fins do primeiro semestre de 1980, pedimos direito de tendência e lançamos a tendência Oposição de Esquerda. (…) Devido às dificuldade que a OSI criou de comunicação, saímos imediatamente com apenas dez companheiros, mas, em cerca de apenas três meses chegamos a cerca de 100 militantes que cooptamos ou entre as fileiras da própria OSI ou no movimento estudantil. (…) Percebemos a necessidade de construir um grupo ilegal forte que pudesse ser a base para a expansão de um trabalho legal mais desenvolvido. Nesse sentido, nos dedicamos ao fortalecimento teórico de todo o grupo e profissionalizamos alguns camaradas que começaram a receber formação específica para realizar trabalho no movimento operário. Pacientemente, resistindo a pressões de publicidade ou crescimento fácil, fortalecemos o grupo ilegal e por volta de 1982 começamos um trabalho no movimento operário que começou a dar resultado. Começamos fazendo uma agitação bastante modesta das "escalas móveis" (de salário e de horas de trabalho) nas fábricas metalúrgicas da zona oeste de São Paulo. Lançamos a seguir a Frente Pró-Escala Móvel, que promovia reuniões públicas explicando a importância das escalas móveis

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Internacional da Quarta Internacional); bem como sua experiência no movimento operário da

década de 1980.

O jornal O Corneta foi publicado pela primeira vez em 1985, fruto de um processo de lutas

numa fábrica de São Paulo, em que os trabalhadores ficaram em greve durante um mês e

chegaram a ocupar a fábrica por alguns dias. O jornal se ampliou, penetrando em outras

empresas, e durou até 1990, encerrado por “um processo de adaptação ao centrismo [que]

tomou conta do grupo”11. Depois de sua dissolução, permaneceu ativo apenas um pequeno

grupo de discussão teórica, cuja atuação foi basicamente acadêmica. Só 16 anos depois, em

2006, parte desses militantes refundou o Corneta, mas o interrompeu novamente em 2011,

conforme já mencionamos. Sua volta aconteceu em 2013, movida pelas pressões das jornadas

de junho, sendo apresentada num comitê criado pelo próprio MNN, chamado Aliança Operário

Estudantil. Durante todo o período de 2013 até 2017, o trabalho do Corneta era executado por

pouquíssimos militantes e não tinha centralidade na política do partido, servindo, basicamente,

para dar um verniz classista ao trabalho do TL.

A política empregada desde 2011 conduziu ao inchaço do setor de juventude, pesando

majoritariamente sobre os rumos da organização. Respondendo a tal condição, os então

dirigentes do MNN defenderam, no congresso de 2017, a proletarização como estratégia

fundamental da organização. Através do termo proletarização12, se referiam à inserção de

militantes em fábricas e pontos-chave das forças produtivas. Para isso, caberia, em primeiro

lugar, à organização de juventude, o TL, cooptar e formar jovens como militantes partidários;

depois desse processo, seria de responsabilidade do MNN dirigir a atuação de tais militantes

nos locais onde julgasse necessário. A construção do MNN enquanto partido operário era

colocada, mais uma vez, num plano futuro.

Mas os (poucos) militantes de base do Corneta esboçaram uma perspectiva distinta.

Reivindicaram a relação já existente do partido com a classe operária através do jornal e

defenderam sua expansão com o objetivo de organizar diretamente os operários do chão de

fábrica. Sustentaram que, sem romper a barreira entre o partido e a classe no presente, sem

aplicar a sua teoria programática ao movimento real da classe trabalhadora, jamais seria capaz

de proletarizar-se no futuro. Essa tese foi aprovada sem votos contrários. Como sempre, os

problemas eram compreendidos positivamente e assim o MNN se tornou uma soma daqueles para a subsistência da classe trabalhadora." (Caderno de textos da II Conferência da Liga Socialista Negação da Negação)11 Ibidem. 12 A estratégia de proletarização já vinha sendo defendida desde as teses de 2011, as mesmas teses que defenderam a “concentração de forças para o movimento operário”, estratégia que culminou no fim do trabalho operário e que não deu passos concretos para a proletarização.

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que defenderam a via do partido operário construindo-se no presente àqueles que aceitaram

que essa fosse uma política de um setor, mas não central ao partido.

De qualquer maneira, o congresso carregou de tal forma o espírito de “ir à classe operária”

que, após sua realização, a direção eleita fez um giro de forças, deslocando a maioria dos

militantes – antes responsáveis por atuar no TL – para o setor do Corneta. O número de

militantes no trabalho triplicou. O período que se abriu foi fundamental no desenvolvimento de

uma política operária na organização, pois a composição interna do grupo e sua relação

externa com a classe se modificaram nesse processo. Mesmo sem ter cooptado operários

para dentro do MNN, o acompanhamento e compreensão do movimento da classe operária e o

desenvolvimento de relações mútuas de confiança com operários dispostos a organizarem

ações em suas fábricas trouxeram um conteúdo operário para a organização. E,

reciprocamente, o jornal também pôde levar mais do seu conteúdo programático para os

trabalhadores ao se tornar uma força mais importante nos locais de trabalho onde esteve

presente e atraindo mais operários para a ação. Nas reuniões do setor, discutiam-se as

situações particulares dessas fábricas e sua relação com o movimento geral da classe

trabalhadora e com a conjuntura como um todo. A consciência política dos militantes desse

setor forjou-se, assim, no movimento da classe operária.

Contudo, os militantes do Corneta viam problemas na integração entre a atuação do Corneta o

e a atuação “geral” da TS. As discussões e posições tomadas nesse setor se davam de

maneira autônoma e se refletiam na linha do jornal, que se descolava, em algum grau, da

política pequeno-burguesa da sua direção. Os militantes do Corneta discordavam dessa

autonomia, sobretudo por entenderem que a política operária deveria ser o eixo do partido

(não apenas um setor), e pressionaram para que as análises e direcionamentos do trabalho

operário fossem assumidas pela direção eleita. O setor do Corneta exigia um planejamento

mais sério de sua intervenção na classe operária: uma política mais unitária e menos empírica,

que não fosse guiada meramente pelas particularidades e pelos fatos que surgiam a todo

momento nas fábricas; uma definição clara da relação com as direções sindicais; um plano

para a criação de comissões de empresa; um avanço no vínculo entre os operários mais

avançados e o partido; e o acompanhamento sistemático e crítico das outras organizações

inseridas no movimento operário.

O crescimento desse setor representou o desenvolvimento de uma força contraditória no

interior do partido. A tentativa de seus militantes representarem os interesses que apareciam

como "do trabalho" (realizar bem o trabalho com os operários das fábricas abrangidas pelo

jornal), abriu uma luta e formou o que identificamos como uma tendência política divergente da

direção. Ainda que em nenhum momento tenha sido uma fração organizada, o setor do

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Corneta atingiu tamanha coesão de princípio – em última instância, a organização da classe

operária – que representou uma oposição organizada, dentro da própria estrutura centralizada

pela direção oficial, disputando com essa direção.

2. Reação pequeno-burguesa à nascente tendência operária O período entre final de 2017 e meados de 2018 foi marcado pela reação à tendência que se

formava no setor do Corneta. A defesa da hegemonia operária na política do partido foi taxada

de obreirismo e esquerdismo. E, aos poucos, retirou-se o peso do trabalho operário,

pulverizando a militância em trabalhos artísticos/gráficos/intelectuais e de aproximação com a

esquerda. Consideramos que essa reação foi promovida, antes de tudo, pela maioria da

direção da organização, que naturalmente usou de sua posição, por meio da centralização

cotidiana, para pôr em prática sua política e enfraquecer a política oposta. Mas também se

utilizou formas mais democráticas, abrindo dois processos conferenciais em menos de um ano

para legitimar seu direcionamento.

O significado da mudança de nome

A conferência realizada em setembro de 2017 tinha como objetivo uma mudança de nome que

representasse a autocrítica feita pelas teses do congresso ao “sectarismo” e ao espírito

“messiânico” que carregava o MNN. Por isso a conferência discutiu longamente sobre o

estágio de construção do MNN, e sua existência enquanto partido começou a ser questionada.

Sua irrelevância na luta de classes – entendida como um fato estático/eterno, – serviu, então,

para condenar a organização à irrelevância histórica. A mudança de nome de Movimento

Negação da Negação para Transição Socialista deixava no passado a tarefa de construção de

um partido revolucionário, baseada na Quarta Internacional. Em seu lugar, a conferência

aprovou uma política ambígua, que flertou ora com uma via de construção partidária

independente, baseada no movimento da classe trabalhadora, ora no que chamou de “via do

futuro”13, “via dos revolucionários”, ou “reorganização da esquerda”; ou seja, a integração a

13 “É por isso que devemos aprofundar seriamente os nossos laços de solidariedade com o PSTU na próxima conjuntura e apontar o quanto antes para outro caminho. Nós somos pequenos e eles parecem ser grandes para nós, mas, ainda assim, diante da conjuntura e das tarefas colocadas, eles próprios são muito pequenos (e com fragilidades teóricas que bem sabemos). A via do futuro, da próxima conjuntura, abrir-se-á não somente conosco nem somente com o PSTU, mas com um processo mais geral, com base num movimento espontâneo da classe trabalhadora, dentro do qual devemos acelerar o nosso crescimento. ” (Teses do I Congresso do MNN - abril 2017) No momento do congresso, a “via dos revolucionários” já estava apontada, porém condicionada à autoconstrução do MNN junto à classe trabalhadora e sua independência política. “Devemos também, diferentemente do apontado na última conferência, dar mais e mais espaço para a construção de O Corneta. Devemos nos esforçar para progredir em sua atual função, de

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uma suposta via nacional14, já existente, das organizações de esquerda. Para se inserir nessa

via, fez uma revisão de si rejeitando caracterizações como “liga” ou “partido”, deixando seus

propósitos em aberto, considerando-se apenas “organização”. A direção promoveu tanto a

ideia de que o trabalho do Corneta deveria ser uma “vitrine para a esquerda”, quanto a de que

o Corneta deveria ser o “carro-chefe” da organização. Ao mesmo tempo em que falava sobre

“transitar pela vanguarda revolucionária”, combatia a tendência que se delimitava

exclusivamente nesse objetivo, alertando para “abrir os olhos, ver a classe em nossa frente, ter

a convicção de que podemos abarcá-la e avançar sobre ela”.

Analisando hoje, vemos que a confusão teórica interna tinha um lastro na realidade objetiva. A

ambiguidade da conferência realizada em setembro carregava ainda a forte impressão da

disposição de luta dos trabalhadores em nível nacional, vista nas paralisações de fevereiro a

abril – o que alimentou e ainda dava base para afirmar um caminho independente da classe

trabalhadora; mas já se impressionava também com seu esvaziamento, em que a ação da

classe trabalhadora, traída, foi substituída pela ação isolada da esquerda e da burocracia

sindical – o que alimentava um ceticismo e dava base para afirmar a necessidade de se unir à

estrutura partidária e sindical já existente. Mas logo predominariam sobre a TS as pressões

que vinham da derrota dos trabalhadores com a aprovação da Reforma Trabalhista. O vazio

deixado pela indeterminação da conferência seria, então, preenchido pelas resoluções

cotidianas decididas exclusivamente pelo CC. No momento em que a classe trabalhadora mais

precisaria de uma direção que se mantivesse firme e decidida, após uma profunda derrota, a

TS recuou, deixando suas bases a ver navios e se adaptando passivamente à esquerda e à

burocracia sindical.

“A direção legítima das massas”

estabelecer uma relação com a classe operaria, sentir seu ânimo. Por mais frágil que seja essa relação, queremos errar, junto com a classe operária. Queremos definir a nossa política, ao máximo, não apenas pelo que é correto do ponto de vista estratégico e tático marxista, mas também pelos humores políticos do operariado.” (Ibidem) 14 Além das relações com organizações trotskistas internacionais que mencionamos anteriormente, o MNN antes buscava se ancorar numa estratégia internacional da revolução proletária. Analisava o Brasil como “elo decisivo de ruptura na cadeia da revolução mundial e na construção do partido da revolução mundial”, ou seja, o país onde o proletariado poderia tomar o poder mais imediatamente e arrastar atrás de si a classe trabalhadora da América Latina e do mundo. Apesar dos grandes problemas dessa tese - que tira conclusões a partir de julgamentos simplistas das condições mundiais do desenvolvimento da revolução proletária - ela existia enquanto uma premissa estratégica. Já a nova política de frente das organizações da esquerda brasileira se baseia numa leitura limitada à conjuntura nacional, ignorando as posições internacionais das organizações que visa a se aproximar e apagando suas próprias leituras anteriores, sem fazer balanço.

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A luta contra as reformas pôs à prova a organização da classe trabalhadora brasileira e suas

direções oficiais. Desde pelo menos fevereiro de 2017, já havia movimentações de alguns

setores contra a Reforma da Previdência. Um motor das lutas se forjava, e as centrais

sindicais, então, fizeram um chamado que correspondeu ao anseio de luta dos trabalhadores.

Uma primeira paralisação foi convocada para o dia 15 de março. Diversas categorias pararam

neste dia, em todo o país. Observamos na grande São Paulo paralisações em fábricas de São

Bernardo do Campo, Guarulhos e Osasco, algumas por ação dos metalúrgicos organizados

pelos sindicatos e outras em decorrência da paralisação de transportes. Teve impacto grande,

aliás, a paralisação dos metroviários, que levou o debate da Reforma da Previdência a amplas

camadas da classe trabalhadora. Tornava-se visível a disposição de luta dos trabalhadores,

que se manteve pelo menos até as duas convocações seguintes, de 31 de março e de 28 de

abril. Mas, à medida que as direções sindicais conduziam as ações e as negociações com o

governo de acordo com seus interesses particulares (a defesa de Lula e do imposto sindical), a

disposição dos trabalhadores se desintegrava em desconfiança e descrédito. Além disso, a

tradição traidora das centrais e sua necessidade de não perder o controle sobre o movimento

não permitia que conduzissem uma luta sequer com traços de democracia operária15,

realizando ações meramente teatrais, que levaram à derrota, com a aprovação da Reforma

Trabalhista e ao relativo refluxo do movimento da classe16.

No período seguinte, cresceu entre os trabalhadores o ceticismo em relação às centrais

sindicais em geral, assim como em relação aos sindicatos em particular. Nas fábricas em que

atuávamos, o balanço era claro: a paralisação era uma farsa, os trabalhadores nunca eram

informados pelos sindicatos sobre nada, nem antes, nem depois. Apenas viam nos noticiários

as negociações em que os sindicalistas falavam em nome de toda a base para defender a

permanência do imposto sindical (principalmente a Força Sindical) ou a liberdade de Lula

(CUT). Mas a direção da TS, em seus textos editoriais e textos internos, calava17 as críticas,

15 Mesmo os sindicatos ligados à CSP-Conlutas e à Intersindical Instrumento, pouco conseguiram mobilizar nas fábricas. E, no caso da CSP-Conlutas em São José dos Campos (que observamos mais de perto), as ações foram praticamente ações da diretoria do sindicato. Nesse aspecto, portanto, bastante semelhantes às das demais centrais. 16 Falamos de um refluxo relativo porque o que percebemos, na realidade, é que a luta se descentralizou. Depois da aprovação da Reforma Trabalhista como lei, portanto em nível nacional/geral, viria ainda a sua aplicação, em nível local/particular, que poderia desencadear outro processo de luta. Pudemos ver isso, por exemplo, numa das fábricas da região do Vale do Paraíba, a Chery, onde os trabalhadores, em outubro de 2017, ficaram um mês em greve para resistir à aplicação da terceirização irrestrita e de outros pontos relacionados à Reforma Trabalhista. 17 É interessante notar que, num primeiro momento, quando a disposição dos trabalhadores ainda era mais confiante em relação às paralisações, a TS manteve sua crítica, inclusive denunciando que havia sido promovido, na verdade, um locaute em grande parte das fábricas. Depois, no entanto, com o esvaziamento progressivo dos trabalhadores nessas paralisações, a posição da TS

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que só deveriam ser feitas a posteriori – o que também não veio a acontecer. Não importava o

que os operários pensavam, nem o que as centrais sindicais estavam atingindo realmente com

seus chamados de luta, eles deviam ser apoiados acriticamente, dizia a direção da TS, porque

“as burocracias sindicais não se moviam por verdadeiro interesse, e sim por pressão da base e

das contradições gerais da conjuntura (que são objetivamente contradições de classe)”18. A

defesa da unidade das direções sobrepunha-se, então, à unidade dos próprios trabalhadores

que, afinal, não acontecia. Para a direção da TS, o movimento da própria classe organizando

sua própria ação não é imprescindível; basta aos trabalhadores conseguirem, por força de sua

pressão (de sua mera existência?), que as melhores decisões sejam tomadas no andar de

cima dos sindicatos. Deu o nome a essa política de frente única operária19, confundindo a

unidade de ação da classe operária com unidade de ação da burocracia sindical. Sob o

argumento da "frente única", a TS relativizou o papel ativo dos trabalhadores na luta de

classes, atribuindo a ação à burocracia. Relativizou, ao mesmo tempo, o papel ativo e

independente do partido, atribuindo-lhe o papel de mero apoio a outra direção. Sem poder

decidir sobre os acordos, por não dirigir uma central sindical nem mesmo um sindicato, coube

à TS simplesmente aderir a cada chamado dessas centrais, mesmo que essa posição fosse

contraditória ao que nos deparamos na prática: as bases operárias absolutamente

desmobilizadas.

Para justificar seu apoio à frente da burocracia, a direção da TS afirma que “somente essas

grandes centrais [sindicais] têm força (respaldo político e material) para mover a classe hoje”.

Decreta, sem qualquer fundamento histórico, que os trabalhadores não podem se movimentar reviu sua crítica, baixando sua bandeira contra o imposto sindical e deixando de denunciar os locautes ou o esvaziamento das paralisações. Percebemos nesse giro uma política centrista que, quando percebe a presença da classe trabalhadora, então assume uma posição em defesa do interesse dessa classe, à esquerda; mas quando essa mesma classe sai de cena, então essa defesa não se faz mais necessária. Em vez de acompanhar o movimento dos trabalhadores, que revelou sua posição crítica em relação ao tão descarado jogo de interesses da burocracia sindical, a TS, assim como a maior parte da esquerda, vendou seus olhos e tampou seus ouvidos para seguir em defesa da unidade das centrais, estas já sem os trabalhadores atrás de si. 18 Em texto interno, sobre a reestruturação dos trabalhos. 19 A tática da frente única da classe operária, defendida por Trotsky, se baseia na necessidade de mobilizar o conjunto da classe para a ação, mesmo sem que esta esteja organizada como um todo no partido revolucionário do proletariado. Através dessa forma de atuação, o partido que dirige uma fração da classe, pode acessar o conjunto da classe organizada sob diferentes direções. Trotsky defende a importância da tática da frente única para que os trabalhadores superem suas direções reformistas; direções com legitimidade conquistada ao longo de anos de conquistas econômicas parciais (elevação salarial, direitos trabalhistas…) que acompanharam o desenvolvimento capitalista. A frente única é uma unidade prática dos trabalhadores na ação. Seu caráter tático dá ao partido completa liberdade de manobra, flexibilidade e decisão. Isso significa que, na medida em que o compromisso com os reformistas representa um atraso à realização do anseio comum das bases mobilizadas, pode e deve ser rompido, sem prejuízos. (Ver Sobre a frente única, de Leon Trotsky)

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independentemente de suas direções oficiais. Esse argumento nefasto, proveniente da

covardia de uma direção pequeno-burguesa, incapaz por suas limitações de classe, serve

apenas para consentir que as centenas de milhares de trabalhadores que têm se levantado

contra a depreciação de suas condições de vida sejam dirigidas ao colo da burocracia sindical,

cujo papel histórico tem sido o de controlar e suprimir a luta de classes. Particularmente à TS,

serve para minar qualquer possibilidade de organização de operários pelo Corneta. Na medida

em que orienta os trabalhadores à direção dos sindicatos, leva ao aborto das movimentações

espontâneas e ao afastamento dos operários mais engajados, minando a confiança numa

ação independente, na TS como direção política e no Corneta como instrumento dessa ação.

O argumento que dá base a essa defesa, de que as grandes centrais possuem respaldo

político e material na classe trabalhadora, não se baseia em qualquer análise séria, apenas em

preconceitos. A TS jamais se comprometeu em realizar uma análise quantitativa e qualitativa

sobre a organização da classe trabalhadora brasileira e mundial: em quais partidos e

sindicatos os operários estão organizados e de que forma, pelo quê e sob a direção de quem

se mobilizam no presente momento. A CUT, por exemplo, afirma reunir cerca de 4 milhões de

trabalhadores brasileiros20. Contudo, quantos participam dos processos que elegem a política

dessa central? Quantos se mobilizam nas ações dirigidas por ela?

Basear-se nas coisas como elas aparecem hoje não serve ao partido que busca tomar as

massas em seu movimento. As estruturas que parecem sólidas oferecem pouca resistência ao

tremor que as atinge por baixo. As leis da história, isto é, da luta de classes, não respeitam

nem as formas milenares de existência social, muito menos as agências burguesas de

contenção do proletariado. A direção da TS não só entrega a direção da classe trabalhadora à

burocracia sindical hoje, como ignora o processo através do qual, hoje, as massas

trabalhadoras podem superar as velhas direções.

A “via dos revolucionários”, pela via das eleições e do PSTU

Nesse mesmo sentido se definiu na TS a política eleitoral de 2018, assim como todo o

processo anterior de aproximação com o PSTU: baseando-se no ceticismo em relação à

construção de uma nova direção e num otimismo em relação às velhas direções. O ceticismo,

por sua própria condição e limitação de classe (pequeno-burguesa) e pelo relativo refluxo do

movimento dos trabalhadores; e otimismo, pela euforia impressionada diante do aparelho do

20 Segundo dados de 2016 do Ministério do Trabalho. Este número representa 30% dos sindicalizados, fazendo da CUT a maior central sindical, sendo seguida por UGT (11%), CTB (10%) e FS (10%).

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PSTU e do giro à esquerda desse partido, simbolizado na defesa do Fora Dilma/Fora Todos e

no racha interno, interpretados como um rompimento com o petismo.

Os dirigentes da TS passaram a colocar no primeiro plano a tarefa de influenciar as velhas

direções, particularmente o PSTU. Isso porque, supostamente, a TS não conseguiria organizar

trabalhadores sem antes passar pela etapa de reorganizar a “vanguarda”. Essa política já

aparecia desde o congresso de março de 2017, mas se determinou mais claramente na

conferência de maio de 2018, com a proposta de lançar uma candidatura da TS através do

PSTU. Essa seria uma grande oportunidade para poder influenciar aquele partido. Construindo

em alguma medida o PSTU, teria mais espaço para falar aos seus militantes e daí “influenciar

a vanguarda”. Diluindo a diferença entre classe e direção, defendeu que era necessário atuar

sobre os operários militantes do PSTU, caracterizando-os como "vanguarda operária". “Somos

um grupo de intelectuais socialistas. É quase uma questão de mínimo múltiplo comum: em vez

de avançarmos com operários não socialistas (com quem pouco temos em comum), devemos

avançar primeiro entre operários socialistas”21. Empregou a fórmula "(...)para uma pequena

organização não é possível saltar a vanguarda para chegar nas massas", o que supostamente

combateria um longo histórico de "desprezo da questão de disputa da vanguarda"22.

Mas do que se tratava esse histórico de desprezo à “vanguarda”? A posição original do MNN,

a qual reivindicamos, depositava seu otimismo na possibilidade de surgir uma nova vanguarda

da classe trabalhadora. A defesa de construção de um novo partido baseava-se na crítica às

organizações de esquerda que historicamente aderiram à construção do PT, um processo que

foi decisivo para a destruição da vanguarda operária forjada a partir das greves do final da

década de 70. A direção traidora dessas greves fora responsável por conduzir os

trabalhadores de forma domesticada para uma conciliação de classes, pela via da democracia

burguesa. As lideranças operárias eram cooptadas para a política parlamentar-institucional, e

gestou-se uma nova casta burocrática, soterrando o cenário anterior do movimento operário.

Os que não aderiram, foram afastados, denunciados aos patrões; o fogo foi apagado. Quase

todos os grupos ditos marxistas e socialistas se fundiram nesse caldeirão, perdendo sua

identidade própria e servindo, afinal, para retocar a pintura vermelha de uma agência burguesa

sobre o movimento dos trabalhadores. Por tudo isso, o MNN não via nas correntes políticas

que construíram o PT uma vanguarda da classe trabalhadora, mas sim um bloqueio à

reconstrução da vanguarda baseado numa estrutura gestada na burocracia petista.

21 Vanguarda Operária e Reestruturação - Conferência da TS de maio de 2018. 22 Ibidem.

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A situação hoje é um produto desse processo: a democracia operária e a consciência de

classe foram praticamente exterminadas no proletariado brasileiro. Atualmente, apenas

despontam em poucos processos isolados. Mais de 30 anos após a última onda de greves

operárias no país, uma nova geração de trabalhadores tem de enfrentar a ofensiva dos patrões

sobre suas condições de vida. Essa geração tem ainda de forjar seus organismos de luta e

seus dirigentes. Os operários terão, muitas vezes, de partir do zero e, ao mesmo tempo, em

situações de contradições aprofundadas.

Então, questionamos: quais são as forças em que se baseia a "política voltada à vanguarda"?

A TS não elaborou qualquer análise objetiva sobre a esquerda, limitando-se a analisar (e se

impressionar com) o seu discurso aparentemente mais radical. Jamais delimitou, por exemplo,

um ou mais setores relevantes do PSTU que por sua condição fosse capaz de agir levando as

massas atrás de si, consequentemente também não apontou qualquer possibilidade de

concretizar sua política de “via dos revolucionários”. Sequer buscava influenciar a base do

PSTU, limitando-se ao contato com seus militantes dirigentes. Na verdade, não via nos

operários do PSTU o sujeito histórico, mas procurava em seus dirigentes um público disposto a

lhe ouvir.

A crítica que originara o próprio MNN, foi, assim, substituída por uma autocrítica abstrata

(desprovida de qualquer análise material e histórica) a seu sectarismo. E os que mantiveram a

crítica ao PSTU, assim como a toda prática burocrática sindical, passaram a ser taxados de

“sectários” e “esquerdistas”.

Logo que apareceu, a proposta de lançar a candidatura pelo PSTU gerou certa surpresa

indignada entre os militantes do Corneta. A proposta de candidatura ignorava as demandas do

movimento operário que acompanhávamos e, em direção oposta, apontava para um

remanejamento que implicaria numa redução das forças do Corneta.

Criticamos a aproximação com o PSTU por ter sido conduzida por interesses que não eram

claramente os da classe trabalhadora. Através do Corneta, reivindicava-se uma história do

movimento operário que lutou contra a hegemonização petista e toda sua prática sindical, um

veículo que remetia às comissões de fábrica e à participação ativa dos trabalhadores de base.

A construção da organização operária pelo Corneta era contraditória, portanto, àquela

construção histórica petista da qual o PSTU faz parte e onde a TS pretendia pôr todas as

forças. O que apareceu de forma ambígua na conferência do ano anterior, agora definia-se

como a estratégia definitiva da TS. No lugar da construção baseada no movimento operário, foi

estabelecida como estratégia a idealização de uma via comum baseada nas organizações da

esquerda (estas supostamente baseadas na classe trabalhadora) que representaria uma nova

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direção revolucionária. Para nós, essa proposta de reorganização não passa de uma tentativa

de reformar direções que falharam historicamente.

O desenrolar da campanha eleitoral confirmou as linhas gerais de nossa crítica. No aspecto

mais cotidiano e interno, ela se realizou tomando por completo as discussões da direção e as

forças da organização. A discussão sobre as condições dos trabalhadores, a situação nas

fábricas, etc. eram deixadas para depois, enquanto a preocupação central era a produção de

vídeos e textos que se dirigissem à esquerda, abordando as eleições. A derrota sofrida na

conferência pelos militantes do Corneta foi sentida duramente, paralisando quase

completamente o setor. Logo após a conferência, a direção propôs o fechamento do trabalho

em uma das fábricas que atuávamos, indicando que provavelmente outros teriam que ser

fechados também para (novamente!) “concentrar as forças”... Às vésperas das eleições, a

direção afirmou que o eixo antilulista de sua campanha tinha caráter e importância superior à

defesa dos empregos e salários; a defesa dos empregos e salários era considerada mero

discurso, incapaz de gerar algum impacto na realidade pela TS se considerar irrelevante para

a luta da classe trabalhadora, já o combate a Lula era visto como “uma medida tática com

implicações reais na eleição”23.

3. Negação dos princípios marxistas e da Quarta Internacional Sem o proletariado, o que é o antilulismo? Toda a adaptação da TS à agenda da esquerda e da burocracia sindical teve apenas uma

exceção: o antilulismo. Essa política adquiriu cada vez mais centralidade na organização

desde 2015, quando a iminência da queda de Dilma gerou uma divisão do Comitê Central do

MNN. Dessa disputa (resultando na saída de alguns de seus membros) derivou a atual direção

da TS, que defendeu com entusiasmo o novo momento aberto pelo impeachment.

Sua tese fundamental era a de que, com o PT fora do governo, estariam garantidas condições

mais favoráveis para os trabalhadores. Afirmou, na época, que o impeachment “abriria uma

23 “Em certo sentido, o retorno da polarização lulismo X antilulismo é bom para nós. Os dois eixos de nossa atuação nas eleições hoje devem ser: antilulismo e estabilidade total nos empregos e salários. Dado que a defesa da estabilidade total nos empregos e salários, de nossa parte, é bastante discursiva — pois tal medida não é pensada para ser aplicada pelo gestor político do Estado burguês, e sim pelos operários nas fábricas, e porque não temos hoje como realizar qualquer processo fabril imanente, devido à nossa externalidade em relação à produção, sobretudo em escala e direção sindical —, dado tudo isso, o eixo do lulismo se torna muito importante para nós. Ou seja, o eixo das escalas — estabilidade total —, embora fundamental para a nossa agitação, pouco significará além disso (agitação). Já o eixo do antilulismo é uma medida tática com implicações reais na eleição.” (Resolução interna de 26/08/18).

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avenida" para um “movimento autônomo da classe trabalhadora, sobretudo da classe

operária”24. Mas o próprio impeachment não foi exigido por uma ação das massas

trabalhadoras. Como dissemos anteriormente, tratava-se de uma massa mais

determinadamente pequeno-burguesa, com uma direção de direita. O descontentamento dos

trabalhadores com o governo Dilma – pautado não apenas pela corrupção, mas também pelo

aumento do desemprego, do rebaixamento salarial e da política de recessão – não foi lido

como uma força que necessitava de ação e direção próprias. Bastava, para os dirigentes da

TS, a ação da massa pequeno-burguesa aliada ao trabalho da Polícia Federal, do STF, dos

deputados etc., pois estes estavam agindo, supostamente, sob “pressão” da classe

trabalhadora. Os interesses de classe do proletariado passam a estar representados de forma

distorcida nas disputas internas ao Estado burguês, cabendo à organização que se considera

revolucionária ler (nos jornais) essas movimentações e apoiá-las (nas ruas).

Se a direção da TS não chega a afirmar que a revolução socialista pode ser conquistada com

base na passividade da classe trabalhadora, defende atuar sem ela enquanto o partido não

estiver construído, enquanto o proletariado não estiver em ação, etc... O antilulismo, antes

lastreado na crítica ao PT pela perspectiva da classe trabalhadora, hoje abandona o

proletariado como sujeito histórico, e o substitui “temporariamente” por direções pequeno-

burguesas e mesmo burguesas. Esse é o segredo da ação de massas da Transição Socialista,

que não depende do enraizamento na classe trabalhadora, pois não depende da classe em

absoluto.

Assim como a queda de Dilma, a posterior prisão de Lula e sua cassação da disputa eleitoral

foram consideradas como conquistas para os trabalhadores. A ordem do dia, para a TS, se

tornou garantir um governo burguês mais fraco, que supostamente favoreça a classe

trabalhadora. Nas eleições de 2018, seguiu essa mesma linha25 do “menos pior”: “votem em

qualquer um, menos em Haddad ou Bolsonaro”.

A oposição da TS ao PT se tornou o combate a uma figura política burguesa. Diziam que,

exceto Lula, nenhum outro político poderia dar estabilidade à dominação burguesa

continuando os ataques à classe trabalhadora – eliminar Lula equivalia a paralisar a

burguesia26. O governo Temer, porém, comprovou o erro desta linha, já que foi capaz de

24 A economia brasileira e a conjuntura política nacional. Teses do I Congresso do MNN - abril 2017. 25 O voto no PSTU não se encaixava nessa linha, e de fato fazia parte de uma política diferente. Para a esquerda, a candidatura da Transição Socialista realizava uma política de ensinamentos à “vanguarda” sobre como fazer a revolução socialista – para quando chegar a hora. 26 A economia brasileira e a conjuntura política nacional. Teses do I Congresso do MNN - abril 2017.

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aprovar o congelamento das verbas do Estado para obras sociais e a Reforma Trabalhista

apesar de ter sido o presidente com maior índice de rejeição. Da mesma forma a eleição de

Bolsonaro. Para a direção da TS, apenas Lula representaria uma possibilidade real de

recrudescimento do regime, e só sua prisão desviaria esse caminho. No entanto, Lula foi preso

e ainda estamos às portas do que será o governo mais à direita desde a redemocratização.

Assim é a história: forja no seu desenvolvimento as figuras de que necessita e, na ausência de

grandes quadros, os mais medíocres recebem os papéis importantes. As organizações

pequeno burguesas que buscam influenciar os acontecimentos por meio da burguesia e suas

disputas internas (seja tentando causar “desgoverno”, ou conquistar reformas) não estão

criando situações mais favoráveis ao proletariado, apenas contribuem para desviá-lo de seu

caminho de auto-emancipação.

Programa para transição ou programa para o futuro À medida em que apaga a necessidade de ação da classe trabalhadora e de ação do próprio

partido, a TS vem apagando também a necessidade de seu respectivo programa. As

divergências internas apareceram muitas vezes como problemas de ordem meramente prática

– como se a prática fosse algo inferior e separado da teoria. Mas entendemos que, ao passo

que a organização secundarizava as tarefas práticas de organização da classe operária,

passava a secundarizar o seu próprio programa. Pois, se para o CC era inviável a construção

da organização operária pela TS, era inviável também o programa marxista pela TS.

Assim chegamos ao ponto em que o programa marxista passou a ser "inaplicável" no

presente. A TS substituiu a defesa da atualidade do Programa de Transição por uma leitura

escolástica, que conserva o programa para o futuro. A ação da classe, o partido e seu

programa passam a ser tarefas para um período posterior. Hoje, a TS estaria construindo o

partido e, dizem seus dirigentes, “as táticas pré-desencadeamento transitório, para

enraizamento local do partido, devem ser vistas enquanto tais, e não confundidas com esse

próprio desencadeamento transitório”27. A TS propõe ao proletariado que espere, tendo suas

condições de existência esmagadas pelo capitalismo, até que os “socialistas” resolvam, entre

si, sua crise de direção, em franca oposição à premissa de Trotsky28. "É importante notar que,

27 Texto interno da maioria do CC da TS. 28 “A orientação das massas está determinada, de um lado, pelas condições objetivas do capitalismo que se deteriora; de outro, pela política traidora das velhas organizações operárias. Destes dois fatores, o fator decisivo é, sem duvida, o primeiro: as leis da História são mais poderosas que os aparelhos burocráticos. Por mais diversos que sejam os métodos dos sociais traidores - da legislação Social" de Leon Blum às falsificações judiciais de Stalin -, eles não conseguirão jamais quebrar a vontade revolucionária do proletariado.” TROTSKY, Leon. O Programa de Transição.

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no Programa de Transição, os sindicatos vêm antes dos comitês de fábrica conceitualmente.

Eles só não vêm antes, é verdade, do partido. O partido é um pressuposto de todo o processo;

está lá desde o início, desde os primeiros itens do PdeT, desde o trabalho inicial por baixo da

atuação sindical”29. Primeiro, diz a direção da TS, o partido deve se construir; depois, deve

tomar os principais sindicatos; então, criar comissões de fábrica; e, só aí, as palavras de

ordem transitórias adquirem sentido. Se tornam, de repente, palavras mágicas, capazes de

desencadear a revolução socialista. Em sentido radicalmente oposto, as tarefas do período de

transição, incluindo a construção do partido, aparecem como tarefas do presente no Programa

de Trotsky: “a edificação de partidos revolucionários em cada país, seções da IV Internacional,

é a tarefa central da época de transição” (e, repetindo, não como uma tarefa “pré-

desencadeamento transitório).

Há algo de errado com uma organização socialista que pensa não poder influir diretamente

sobre o movimento dos trabalhadores, mas acredita que pode interferir nos rumos da política

burguesa. Ai do partido que não acredita no seu programa e não se esforça para reunir todo o

povo sob a sua bandeira! Um partido assim não tem direito à existência histórica, disse

Trotsky. Ainda não somos um partido! – é a resposta ponderada da direção da TS –

pressupondo um tempo para se construir enquanto tal, antes de levantar sua bandeira e juntar

sob ela os trabalhadores. Mas morde a própria língua; pois, basta encontrar um assunto sendo

comentado nas mídias sociais, que levanta suas bandeiras e cola seus cartazes, pronta a

“intervir na conjuntura”. A direção pequeno-burguesa radical, que se faz muito humilde na hora

de apresentar o programa de transição à classe trabalhadora, fala grosso sobre o destino da

nação, que não passa, por ora, pelo levante da classe revolucionária com um programa

revolucionário.... A qual tradição do movimento marxista a Transição Socialista se aproxima?

A política que tomou corpo e se consolida na Transição Socialista entra em conflito com a

herança teórica que o grupo já reivindicou. Apesar de constar no estatuto da organização que

se posiciona “(...) claramente contra os ecletismos políticos e traidores desenvolvidos pela

corrente de Michel Pablo, Ernest Mandel, e Joseph Hansen (Secretariado Unificado da IV

Internacional), que, rompendo com os princípios desenvolvidos por Trotsky, elaborou posições

conciliatórias com o stalinismo, com setores socialdemocratas e com a produção teórico

burguesa das chamadas ‘Ciências Humanas(...)’”, apesar disso, é justamente dessa tradição

traidora que vemos a política da TS se aproximar.

29 Texto interno da maioria do CC da TS.

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A política desenvolvida por Pablo e Mandel após a II Guerra Mundial retirou da Quarta

Internacional o papel de dirigir a ação da classe trabalhadora internacional. Viam o

imperialismo e a burocracia soviética como as forças principais que definiam o

desenvolvimento histórico. Para eles, uma terceira guerra mundial, entre essas forças

poderosas, era inevitável. O destino da humanidade não estaria nas mãos do proletariado e de

sua vanguarda, como Trotsky havia afirmado, e não caberia à Quarta Internacional, que em

nenhuma parte representava a direção oficial das massas, dar ao proletariado uma direção

independente neste conflito. Renderam a Quarta Internacional ao papel de influenciar, nos

diferentes contextos mundiais, a burocracia stalinista e reformista e as direções pequeno-

burguesas nacionalistas.

O pablismo se desenvolveu como uma tendência pequeno burguesa de adaptação a todo tipo

de máquina política ignorando seu caráter de classe. Para Pablo, os conflitos de classe deviam

ser deduzidos de cada situação complexa que assumem em cada país, e muitas vezes esse

conteúdo apareceria “deformado, escondido, latente ou até potencial”. David North comenta

que “tal abordagem leva, inexoravelmente, a um modus operandi no qual o impressionismo, as

manobras e os truques táticos se tornaram os eixos do dia-a-dia das seções que aceitaram

este método”30. Algo muito semelhante ocorre na TS quando passa a intervir não exatamente

na luta de classes, mas na sua forma distorcida, nas disputas governamentais burguesas, isto

é, na disputa interburguesa. Deduzir um conteúdo proletário das manobras deste ou daquele

setor burguês passa a ditar a ação tática da TS, o que chama de “intervenção na conjuntura”.

A direção da TS toma como dado que, nesta conjuntura, a classe trabalhadora não pode

exercer uma ação independente. Assim como toma como dado que ela, TS, não é, nesta

conjuntura, uma direção da classe trabalhadora.

Um bom exemplo da lógica pequeno burguesa, presente nessas políticas, é apresentado por

Trotsky: “O pensamento marxista é dialético: considera todos os fenômenos em seu

desenvolvimento, em sua passagem de um estado a outro. O pensamento pequeno burguês

conservador é metafísico: suas concepções são imóveis e imutáveis. Entre os fenômenos

existem paredes impermeáveis. A oposição absoluta entre uma situação revolucionária e uma

situação não-revolucionária é um exemplo clássico do pensamento metafísico, segundo a

fórmula: o que existe, existe; o que não existe, não existe, e o resto é coisa de feitiçaria”31. É

exatamente essa a lógica que guia a direção da TS quando opõe um momento de

"desencadeamento transitório" a outro, "pré-desencadeamento transitório"; quando possui uma

linha de atuação “racional na estrutura”, em que o partido deve estar bem desenvolvido (e

30 NORTH, David. A herança que defendemos. Revista Mais Valia 3. 31 TROTSKY, Leon. Aonde vai a França?

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tendo ocupado a direção dos principais sindicatos), e outra de atuação “irracional na

superestrutura”, que não depende do partido estar bem formado, e onde a definição das

classes se dissolve.32

A ideia de um momento “intermediário”, de “preparação”, de necessidade de ampliação da IV

Internacional nos meios dirigentes da classe e entre os elementos mais “conscientes” foi usada

por Pablo. Dizia ele: “Enquanto nossa estratégia como a única tendência marxista

revolucionária é a conquista do poder pelo proletariado e o triunfo da revolução socialista em

escala mundial, nossa tática deve considerar as condições objetivas e subjetivas concretas de

modo a criar o mais duradouro e efetivo reagrupamento possível de forças revolucionárias

32 Vale fazermos uma citação longa de David North, quando dá uma explicação mais detalhada do método pablista, partindo do questionamento do por que uma III Guerra Munidal era tomada por Pablo e Mandel como necessária e por que não consideravam que os trabalhadores poderiam desenvolver uma saída independente, dirigida pela Quarta Internacional: “Para entender por que essas simples perguntas não eram feitas, muito menos respondidas, é necessário examinar mais de perto a distorção peculiar do método marxista feita pelas mãos de Pablo, Mandel e seus seguidores. Como eles se adaptaram ao imperialismo e suas agências stalinistas e deixaram de acreditar na capacidade dos trotskistas de tomarem a liderança da classe trabalhadora, Pablo e seus aliados adotaram um método objetivista que se adequava perfeitamente a uma perspectiva política que rendia toda a inciativa histórica a forças externas à classe trabalhadora e tendências políticas que não a Quarta Internacional. O ponto de vista do objetivismo é o da contemplação, ao invés da atividade prática revolucionária, da observação ao invés da luta; ele justifica o que está acontecendo ao invés de explicar o que deve ser feito. Esse método providenciou as bases teóricas a uma perspectiva em que o trotskismo deixa de ser visto como a doutrina guiando a atividade prática de um partido determinado a conquistar o poder e mudar o curso da história, e se torna uma interpretação geral de um processo histórico através do qual o socialismo seria finalmente realizado sob a liderança de forças não-proletárias hostis à Quarta Internacional. Se o trotskismo deveria cumprir algum papel direto no curso dos eventos, seria somente o de realizar uma espécie de processo mental subliminar, guiando as atividades dos stalinstas, neo-stalinistas, semi-stalinistas e, é claro, nacionalistas pequeno burgueses de um tipo ou outro. O Pablismo, nesse sentido, foi muito além de uma série de análises incorretas, falsos prognósticos e revisões programáticas. Ele atacou toda a fundação do socialismo científico e repudiou as principais lições extraídas pelos marxistas do desenvolvimento da luta de classes ao longo de todo um século. A maior conquista da teoria marxista no século XX - a concepção leninista de partido - foi minada por Pablo ao colocar em questão a necessidade do elemento consciente na luta do proletariado e na realização histórica da ditadura do proletariado. Para Pablo e seus seguidores não havia necessidade de educar teoricamente a classe trabalhadora e torná-la consciente de suas tarefas históricas. Não era necessário empregar uma luta pelo marxismo contra a ideologia burguesa dominante sobre o movimento espontâneo do proletariado. Assim, o marxismo deixava de ser uma arma política e teórica ativa, através da qual a vanguarda da classe trabalhadora estabelece sua autoridade entre as massas e as treina e organiza para a revolução socialista. Passava a ser meramente “confirmado” por uma abstração chamada de “processo histórico”, operando em modo semi-automático através de qualquer tendência política que surgisse às mãos, independente das forças de classe sobre as quais estivessem objetivamente baseadas e sem importar o quão conhecido fosse seu passado e quão reacionário fosse seu programa.” NORTH, David.The Heritage We Defend. Em tradução livre.

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maiores do que as nossas próprias, e também para formar, na fusão com essas forças,

grandes partidos marxistas revolucionários. Em última análise, nossa tática almeja a criação de

tais partidos revolucionários que são indispensáveis para a rápida e completa vitória da

revolução socialista mundial.”33 Em outra passagem: “Nas condições históricas concretas do

presente, a variante cada vez menos provável é a de que as massas, desiludidas com suas

organizações tradicionais de massas, venham a polarizar-se em torno de nosso presente

núcleo, com o último atuando exclusivamente e essencialmente de uma maneira

independente, vindo de fora”. Essas justificativas não passaram de um verniz para uma

atuação liquidacionista, com base no ceticismo na classe trabalhadora.

James Cannon descreve essa forma de atuação em sua “Carta Aberta aos Trotskistas do

Mundo Inteiro”, escrita no momento de rompimento com os pablistas. A atuação de Pablo -

líder da seção francesa da Quarta Internacional - na greve geral de 1953 na França serviu

como comprovação da direção que estava dando ao movimento trotskista internacional.

Segundo Cannon, a greve foi “deflagrada pelos próprios trabalhadores, contra a vontade das

suas lideranças oficiais, ela apresentou uma das mais favoráveis aberturas na história da

classe trabalhadora para o desenvolvimento de uma luta real em direção à tomada do

poder.(....) A liderança oficial, tanto a social democrata quanto a stalinista, traiu o movimento,

fazendo o máximo para contê-lo e evitar o perigo ao capitalismo francês.”34 Nesse contexto,

Pablo preservou as direções oficiais traidoras e expulsou a seção majoritária do partido,

acusando-a de indisciplina por ter combatido a direção stalinista da CGT na fábrica Renault.

Continua Cannon: “Até para a educação interna do partido dos trotskistas franceses Pablo

recusou-se a caracterizar a ação stalinista como traidora. Ele comentou ‘o papel de freio

realizado, em maior ou menor grau, pela direção das organizações tradicionais’ — uma traição

é um mero “freio”! — ‘mas também sua capacidade — especialmente da direção stalinista —

em ceder à pressão das massas quando essa pressão se torna poderosa, como foi o caso

dessas greves’”.

A crítica de Cannon à argumentação pablista é perfeitamente válida à avaliação da TS, que

afirma que a burocracia sindical pode ceder à pressão dos trabalhadores e dirigir de forma

progressista sua movimentação. Cannon também combate, nesta carta, a tendência de Bert

Cochran, colaborador internacional de Pablo, atuando no Socialist Workers Party americano. A

tendência de Cochran representou a pressão pequeno burguesa exercida sobre o SWP por

uma poderosa burocracia que se consolidou no movimento operário americano. Cannon

caracteriza sua política assim: “A tendência cochranista vê um grande potencial revolucionário

33 Idem. 34 CANNON, James. Carta aberta aos trotskistas do mundo todo.

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da classe trabalhadora americana como um projeto distante. Eles acusam de “sectária” a

análise marxista que revela os processos moleculares de criação de novos setores de luta no

proletariado norte-americano. À medida que existem tendências progressistas no interior da

classe trabalhadora dos Estados Unidos, eles as vêem apenas nas fileiras ou na periferia do

stalinismo ou, ainda, entre “sofisticados” políticos dos sindicatos — o restante da classe é

considerada irremediavelmente adormecida, e somente o impacto de uma bomba atômica

poderia acordá-la.”35

Na história da Quarta Internacional outros se aproximaram das tendências pablistas,

desenvolvendo variantes próprias. É o caso de Pierre Lambert, dirigente da seção expulsa por

Pablo durante a greve geral de 1953. Apesar de ter representado naquele momento a defesa

da tradição trotskista, também veio a traçar uma via próxima ao pablismo. Peter Schwarz fala

sobre esse processo num artigo que até o presente momento faz parte do roteiro fundamental

de estudos da TS:

“Às vésperas dos grandes conflitos de 1968, a SLL [seção inglesa do CRQI, dirigida por

Gerry Healy] também advertia sobre as consequências do ceticismo da OCI: 'Agora a

radicalização dos trabalhadores da Europa do Leste tem se espalhado rapidamente,

particularmente na França... Num momento decisivo como este, sempre existe o perigo

de que um partido revolucionário responda à situação não de forma revolucionária, mas

de forma a se adaptar à luta em que os trabalhadores estão restritos pela sua própria

experiência sob sua antiga liderança – i.e. a sua confusão inicial e inevitável. Tais

revisionismos da luta por um partido independente e do Programa de Transição

geralmente estão travestidas pelo discurso de se aproximar da classe trabalhadora,

unidade de todos na luta, não colocar ultimatos, abandonar o dogmatismo, etc.'

Esse alerta não foi ouvido. As revoltas de 1968 impulsionaram milhares de membros

novos e inexperientes às fileiras da OCI e de sua organização de juventude (AJS),

enquanto a direção da OCI se adaptava ao estado de confusão generalizado. A

reivindicação por uma “frente classista unificada” – também criticada pela SLL em 1967

– se tornou a fórmula com a qual a OCI se adaptou totalmente à burocracia social

democrata e dirigiu as novas forças recentemente conquistadas de volta aos velhos

aparatos burocráticos. (...)

A principal característica do Lambertismo é a rejeição de uma mobilização política

independente da classe trabalhadora sob a bandeira do marxismo revolucionário. Ao

invés disso, o Lambertismo luta para influenciar representantes importantes nos

sindicatos e nas máquinas partidárias. A organização de Lambert não falava para a

35 Idem

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classe trabalhadora, mas preferia sussurrar nos ouvidos de certas personalidades

importantes.

O jornalista Jamal Berraoui, antigo membro da organização de Lambert no Marrocos,

descreveu este fato em seu obituário para o jornal Aujourd’hui le Maroc. Ele escreve:

‘Lambert, durante os grandes combates da luta de classes, insistia enfaticamente: ‘Nós

não somos a direção das massas’ - ele preferia deixar este papel para os aparelhos

tradicionais. Investigando o movimento de massas, abrindo para as massas uma

perspectiva única, dando a elas palavras de ordem apropriadas, sem substituir a si

mesmo pelas direções tradicionais - essa era sua linha.’”36

Pensamos que a reprodução destas linhas de Schwarz, Cannon e North falam por nós o

bastante. Permanecemos em concordância com tais argumentos e pensamos que a política da

Transição Socialista abandonou tais críticas, passando a aderir à lógica pablista, cética em

relação à construção de novas organizações independentes e baseadas na Quarta

Internacional. Com a defesa persistente de que “só as grandes centrais podem mover os

trabalhadores”; em sua pretensa "política de vanguarda"; e no apoio à ação de forças externas

ao proletariado; a TS dá um passo atrás em sua própria história. É justamente na medida em

que essa organização se afasta progressivamente até romper com a classe trabalhadora e seu

caminho revolucionário que nós nos afastamos progressivamente até o rompimento.

36 SCHWARZ, Peter. Revisionista Francês Pierre Lambert Morre aos 86 Anos. Mais Valia 2.