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MISTÉRIO E CULTURA Uma viagem pelo país onde a Europa se une a Ásia e onde estão os maiores tesouros da cultura e da história da humanidade POR ROBERTO ARAÚJO TEXTO E FOTOS URQUIA TURQUIA T

Por roberto araújo texto e fotos · fazer uma visitinha à história da civi - lização, devia começar por Ş anlıur-fa, ou simplesmente Urfa, como eu fiz. Para que as coisas

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mistério e cultura

Uma viagem pelo país onde a Europa se une a Ásia e onde estão os maiores tesouros

da cultura e da história da humanidade

Por roberto araújo texto e fotos

urquia

turquia

T

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Era o primeiro dia. Tirei o tênis e, descalço, pisei res-peitosamente no carpete

com vista para a caverna onde, me informaram, nasceu Abraão. Sim, ele mesmo, o profeta bíblico reverenciado por judeus, cristãos e muçulmanos. Um vidro separava os fiéis da caverna propriamente dita e à direita jorrava água de uma fonte. “Pode beber”, um muçulmano me incentivou, “é limpa”. Deixei que a água escorresse por minhas mãos, molhei o rosto e bebi alguns goles. Sentindo-me purificado, comecei a viagem pela Turquia, pela cidade de Şanlıurfa, assim mesmo, escrita com cedilha no “s” e que se pronuncia com som de “x”.

Shut

terS

tock

Anoitece em Istambul: em

destaque, a Mesquita

süleymaniye

Nunca ouviu falar de Şanlıurfa? Nem eu, até então. Uma tremenda falha cultural porque é uma das ci-dades mais antigas do mundo, com mais de 10 mil anos nos seus pri-meiros assentamentos e que já se chamou Edessa. É nas redondezas dela que a civilização começou, que a agricultura foi domesticada, onde foram feitos os primeiros templos, a primeira estátua. Lembra dos livros de história da escola onde você leu sobre o Crescente Fértil? Então, era lá que eu estava.

Ia ver essa história de perto, na-vegar no Rio Eufrates, caminhar pelo sítio arqueológico mais antigo do mundo, assistir ao nascer do sol na montanha mais alta, onde An-tíoco I fez sua pirâmide de pedras soltas, e só depois ir a Istambul, a

magnífica e misteriosa cidade, cuja metade está na Europa e a outra metade na Ásia.

Uma viagem diferente de tudo o que já fiz. Muito antes de Paris ou Nova York serem inventadas, ali já se faziam templos fenomenais. Milênios se passariam até que os egípcios fizessem pirâmides (a de Djoser, a primeira pirâmide no Egi-to, começou a ser feita em 2630 a.C — uma modernidade, portanto). Ali pisaram os mais poderosos im-peradores, os profetas de todas as religiões monoteístas. Ali tem tanta cultura que, saber que foi em Şan-lıurfa que Abraão inventou o quibe cru com os ingredientes que tinha à mão, não passa de uma curiosidade ínfima. E eu estava apenas me puri-ficando para viver o primeiro dia.

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e antigo se misturam com enorme naturalidade. Depois de comprar um chip local em uma loja de celular (não dá pra ficar desconectado, não é?), foi uma boa começar pelo Şanlıurfa Bazzar.

É quase um choque ver as joalhe-rias com ouro pendurado por todo lado. Ali, ao alcance da mão, barras de ouro de 1 quilo, pulseiras, bro-ches, colares. O ouro é uma tradição na Turquia. Em um aniversário ou casamento, o presente esperado é sempre algo de ouro. Quanto maior a amizade, maior o número de gra-mas do presente. Maridos sempre devem presentear suas mulheres com ouro, a verdadeira dourada prova de amor. Em caso de divór-cio, a mulher leva todo o ouro que tiver, um “fundo de garantia” contra

Nada contra começar pela mag-nífica Istambul. Mas, se quiser

fazer uma visitinha à história da civi-lização, devia começar por Şanlıur-fa, ou simplesmente Urfa, como eu fiz. Para que as coisas façam sentido, permita-me localizar o ser humano dentro do tempo. Sim, a humani-dade saiu da África há cerca de 70 mil anos, ainda apenas caçadores/coletadores que comiam tudo o que havia em um lugar e depois seguiam em frente. Foi só há 10 mil anos, com o advento da agricultura, que aconteceu a Revolução Neolítica. Finalmente, o ser humano se fixava em um lugar e, enquanto a comi-

da crescia nos campos e os animais engordavam para o abate, homens e mulheres tinham tempo para se dedicar ao pensamento, à religião e ao comércio. Onde isso aconteceu? Isso mesmo, ali no Crescente Fértil, exatamente na região de Şanlıurfa.

É por isso que falei história da civilização, e não da humanidade. Seja você religioso ou ateu, não há como negar a importância dos mitos, dos templos e dos grandes patriarcas, como Abraão. E todas essas coisas, e várias outras, estão nos muitos pas-seios que se pode fazer na região.

Şanlıurfa é uma cidade de 2 milhões de pessoas, onde moderno

Sanliurfaa cidade do profeta

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crises conjugais . Nas lojas, nenhuma preocupação com segurança, o ouro legítimo é tratado como fazemos com bijuterias no Brasil. As mulheres também desfilam seus ouros com tranquilidade — mulher com poucas joias é considerada deselegante por ali. Dividida entre muçulmanos e católicos tradicionalistas (em am-bas as religiões as mulheres cobrem as cabeças), é uma questão de fé e respeito não cobiçar o ouro alheio.

Dividido por setores, há de tudo no Şanlıurfa Bazzar. Os mais lindos lenços, roupas, relógios, reparos de fogão doméstico, o que você ima-ginar, tem. Sem falar nas áreas de marcenaria e até um ferreiro à moda antiga, com fornalha e bigorna. No centro, uma “praça de alimentação” com comidas exóticas e perfuma-

das. Mas vá com calma, segundo a BBC World Service, cada pessoa na Turquia consome 86,5 g de pimenta por dia, enquanto no México eles comem “apenas 51 g”. Ou seja, até mexicano tem de ir com prudência por lá na hora dos temperos e, além disso, eles adoram comidas beeeeem gordurosas. Vá por mim, ser vegano é uma bênção por lá (e em outros lugares também).

A piscinA de AbrAãoAinda embevecido com os chei-

ros e cores do mercado, quase sem querer entrei no pátio onde fica a Caverna de Abraão. É ao lado da Mesquita Mevlid-i Halil (ah, esses nomes…). Não estranhe se ele for chamado de Hibrahim, o nome de Abraão para os islâmicos.

Como é hábito no mundo is-lâmico, há o lado dos homens e o das mulheres. Em protesto, uma das colegas jornalistas do grupo se recu-sou a entrar. Bebi da água sagrada e estava pronto para mergulhar nesse

mundo cheio de histórias, mistérios, lendas e crenças que a mente huma-na moldou através dos tempos.

Uma passada rápida pela mes-quita e, após uma breve caminhada, lá estava a Piscina de Abraão, que eles chamam de Balıklıgö. É um lago imenso, repleto de carpas. Vou con-tar a história do ponto de vista dos muçulmanos: Hibrahim se desen-tendeu com o poderoso Ninrod , que, para se vingar, decidiu queimar vivo o seu desafeto. Só que, quando ateou fogo à pira, Alá fez com que as chamas se tornassem água e os galhos, peixes.

Foi assim que surgiu a Piscina de Abraão, cujas carpas são enormes, sagradas e não podem ser comidas. Ah, sim, quem era Ninrod? Está no Gênesis (10:8) que ele era neto de Noé e seu reino era Babel (a torre de Babel, quando todas as línguas foram inventadas, lembra?). Eu avisei, a história é tão antiga que Sodoma e Gomorra ainda eram as cidades mais permissivas do mundo, pouco antes de terem sido destruídas.

Hoje a piscina fica em um par-que, com minaretes e construções típicas, além de bares e restaurantes, perfeitas para selfies e fotografias de todos os tipos que ninguém resiste. E esse foi apenas o primeiro dia.

Barras de ouro autênticas e tapetes nas lojas do Sanlıurfa Bazzar

A Piscina de Abraão é um lago com carpas

consideradas sagradas

Caverna onde nasceu o profeta bíblico Abraão

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Foi ele, ele mesmo. Aquele so-noro palavrão que nós, brasilei-

ros, soltamos quando palavrinhas não são suficientes pra expressar a admiração que a gente sente. Eu estava frente a frente com o mais antigo sítio arqueológico do mun-do, Göbeklitepe. É claro que não sei pronunciar essa palavra, talvez nem você. O guia Imran Ektiren

todo mundo fala turco e con-versam com naturalidade. Eu já sabia disso e entrei no jogo falan-do português (também um língua universal, na opinião de muitos brasileiros). Deu certo, um papo e tanto para comemorar a Torre de Babel de Ninrod.

O fato é que Göbeklitepe fica a 10 km de Şanlıurfa e é consi-

GobekliTepeO primeiro templo do mundo

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me ensinou que quer dizer algo como Morro da Barriga ou, mais bonitinho, Colina do Ventre, por-que essa é a topografia do lugar.

Pois, quando me escapou em voz alta o tal palavrão, um turco ao meu lado achou que eu falava com ele. E começou a conver-sar... em turco. Quando você for lá, não estranhe, eles acham que

turquia

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derado o templo mais antigo do mundo. São pedras esculpidas a cerca de 11 mil anos, na mais legítima pré-história, antes mes-mo do primeiro pote de cerâmica ser feito. Claro que você conhe-ce os misteriosos megálitos de Stonehenge, na Inglaterra; pois estes na Turquia são 6 mil anos mais antigos.

Os pilates em forma de T que compõem o círculo do templo podem chegar a quase 5 metros

de altura e pesar entre 7 e 10 toneladas. Abundam esculturas, altos e baixos relevos de leões, raposas, escorpiões e abutres. A região fica na extremidade nor-te do Crescente Fértil, com seu clima ameno e terras aráveis, e os antropólogos especulam que os antigos grupos iam até lá para realizar rituais religiosos e depois seguiam em frente.

Há uma cobertura que além de preservar o sítio arqueológico ainda protege os turistas do sol e da chuva. Não estão sendo feitas novas pesquisas. Embora só cer-ca de 5% tenha sido explorado, talvez sabiamente os arqueólogos resolveram deixar tudo como está para que as futuras gerações com

equipamentos mais desenvolvidos façam sensacionais descobertas. Para um local que tem mais de 11 mil anos, dois ou três séculos a mais ou a menos não farão muita diferença.

O local está totalmente pre-parado para receber turistas — e tudo é novinho, arrumado e exis-tem placas explicativas em turco e em inglês, detalhando cada trecho do sítio. Vans levam e trazem os tu-ristas de um centro de informações com atrações multimídias, bares e a inevitável lojinha para você não sair de lá sem umas lembrancinhas de quando pôde fazer uma oração no primeiro templo do mundo. Talvez até se recordar de ter “fa-lado” um pouco de turco.

o sítio arqueológico conta com centro de visitantes e atrações multimídia

Gobeklitepe é o mais antigo sítio arqueológico do mundo, com cerca de 11 mil anos

Imran ektIren

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pArA entender A históriASe você, como eu, não for ar-

queólogo, vai sair mordido de curio-sidade para entender o fio da história do Homo Sapiens. E ela pode estar mais perto do que você imagina: ali mesmo no Museu de Arqueologia de Şanlıurfa. Também é novinho e foi planejado dentro dos princípios mais modernos da museologia. Em termos práticos, o museu é percor-rido em um conceito cronológico, da pré-história até o presente.

Por exemplo, o que você viu no templo de Göbeklitepe pela passarela ao lado da escavação, ali no museu você caminha em uma réplica do local, pode tocar e tirar fotos ao lado dos megálitos (bonita esta palavra, aprendi lá, para desig-nar monumentos construídos com pedras enormes). Mas, nesse museu

turquia

de Urfa, um outro templo chamado Nevali Çori é o original. Como a represa de Ataturk ia deixar o pre-cioso sítio debaixo d’água, todas as suas pedras com mais de 9 mil anos foram retiradas e agora fazem par-te do museu. Só que não é possível caminhar dentro dele, mas dá para contemplar bem de pertinho. Tem também o Homem de Urfa, a mais antiga escultura naturalista em ta-manho natural do ser humano, com 1,80 metros. Fiquei encantado com os olhos que formam buracos pro-fundos preenchidos com obsidiana negra (um tipo de vidro vulcânico). Tem ainda um colar e as mãos en-trelaçadas na frente. A idade? Uns 9 mil anos, pelo menos.

Para as felizardas crianças de Urfa, o museu é uma aula completa e divertida. Mesmo porque além das

o Homem de Urfa, a mais antiga escultura naturalista em tamanho natural do ser humano, com 1,80 metros

o Museu de Arqueologia de Sanlıurfa tem mostras

cenográficas que recriam a vida dos homens pré-históricos

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Imran ektIren

milhares de peças originais, foram montados cenários para mostrar como os antigos viviam.

Ainda encantado com esse mu-seu inaugurado em 2015, bastou andar mais um pouquinho para dar de cara com o Museu de Mosaico de Haleplibahçe, que faz parte do mesmo complexo. Bem, devo con-fessar que achei que esse negócio de mosaico devia ser bem chatinho. Qual o quê! Operários preparavam o local para um estacionamento quando deram de cara com mosai-cos romanos originais. Isso mesmo. Havia naquele mesmo local uma Vila Romana lá pelo século 3 ou 4 a.C. que representam esplendidamente

cenas como guerreiras amazônicas ou Orfeu tocando lira. Foi só fazer uma cobertura de 6 mil metros e pas-sarelas para que os turistas possam ver de cima. Aliás, os turcos celebram muito o painel de Orfeu porque ele foi escavado ilegalmente da antiga cidade de Edessa (o antigo nome de Şanlıurfa) e comprado em um leilão pelo Museu de Arte de Dallas em

1999. Depois de uma longa disputa, a Turquia reaveu aquele mosaico

de Orfeu que estava ali, bem diante dos meus olhos.

Acho que poucas vezes na minha vida aprendi tanto sobre história. Para celebrar, nada como uma noi-te em um restaurante com comida, bebida e, principalmente, música. De início só os homens dançavam, mas logo uma das garotas (vai lá Natália!) do nosso grupo resolveu aderir e, pronto, toda a mulherada entrou na dança, literalmente.

Jornalistas brasileiros: cada

um com seu olhar

A figura de Jesus, uma das peças do Museu de Mosaico de Haleplibahçe

Ao lado, o templo Nevali Çori, de 9 mil anos, que foi transportado para dentro do Museu de Arqueologia (na foto abaixo)

Shut

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Aquele nome, Halfeti, não me era estranho. Passei todos os

120 km da viagem de Şanlıurfa até Halfeti forçando a memória. Mal a van estacionou e lembrei: era a ter-ra da “karagül fidesi”, o único local do planeta onde diziam que a rosa negra florescia e na qual eu já havia investido muitas horas de pesquisa para confirmar se ela existia mesmo

ou era apenas uma lenda da internet. Agora eu ia tirar isso a limpo.

Foi quando me dei conta de que, quando encontrei nas minhas pes-quisas o lugarejo de Halfeti, jamais, nem na mais remota fantasia, eu pensei que um dia poderia estar lá. E era lá que eu estava, ao lado do Rio Eufrates, pronto para navegar pelas águas que um dia regaram o

HalfeTia cidade da rosa negra

turquia

Um pouco de descontração para

celebrar o pôr do sol

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trigo selvagem einkorn para que fosse domesticado e crescesse nos campos, talvez o primeiro grão que o homem primitivo plantou, esperou se desenvolver e colheu.

A paisagem é estonteante, a água linda, o reflexo de um grupo de pes-soas sob algumas oliveiras antigas, as casas agarradas nas pedras do tempo. Perfeita para fotos, selfies, fotos de natureza. Um minarete à beira do rio dava o toque especial às fotos e não deixava esquecer onde a gente estava.

O dia quente e ensolarado convi-dava a cerveja. Saúde! Saladas, pães, queijo, peixes e... pimenta. Olha ela aí, de novo, para me fazer suar.

Como convidados do Ministé-rio de Turismo da Turquia, havia um barco só para nós, sete pessoas. O Dilan 27, como quase todos os barcos que navegam por ali, tem três áreas onde você pode ficar. Na mais protegida, toda decorada, na parte superior e na popa, sentindo o vento no corpo.

O Eufrates, como quase todos os rios do mundo, hoje é totalmente domado. Nossa navegação era na barragem de Birecik e, com águas cal-mas e tranquilas, nenhum balanço. Se você quiser saber a história que rolou por aqui, vai começar pela descoberta do Homo Erectus, datado de 450 mil anos, vai passar pelos assírios, babilô-nia, Alexandre, O Grande, império Otomano e reinados, muitos reinados pelos séculos, para não dizer milênios, que voaram por ali.

Mas vamos ficar em algo mais recente, que é o destino do nosso passeio: a cidade de Eski Savaşan Köyü, que foi parcialmente sub-mersa, mas deixou a ponta de um minarete, perto de onde o Dilan 27 ancora. Desço para ver de perto as

cavernas cavadas na rocha onde os romanos sepultavam seus mortos.

Na volta, Natália pede música típica para o capitão e, enquanto o sol se põe, a popa do barco se vê coberta de risos, danças e fotos. A gente mal vê, na margem direita, a fortaleza de Rumkale, já conhe-cida dos assírios, mas que ganhou estrutura com gregos e romanos. Foi importante na idade média onde em 1179 teve o sínodo tentando acor-do entre gregos e armênios. Ela, a fortaleza em ruínas, com sua metade debaixo de água, também não ligou para a gente, apenas mais um barco que passou por ali.

Mal desço do barco, quem me espera? Ela mesma, a “karagül fi-desi”, uma muda de roseira que me parece extremamente comum. Pergunto se a flor é preta mesma. O vendedor garante que sim. O guia Imran também entra na con-versa, diz que já viu, mas que, in-felizmente, aquela não era a época da florada — só em maio. Insisto um pouco, negra mesmo?, Imran desconversa, é um roxo-escuro, bem escuro. Penso até em trazer uma muda para o Brasil, mas de-sisto. Dizem que é só em Halfeti que ela florece.

A cidade de eski savaşan Koyü, que foi

parcialmente submersa pelas águas do mítico

rio eufrates

foi em um cenário como este, ao lado do rio eufrates, que começou a agricultura

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nemruT mOunTain naTiOnal parka montanha do homem que queria ser deus

o túmulo do rei Antíoco I tem estátuas e uma montanha de 50 metros de altura só com pequenas pedras soltas

As advertências me assustaram. Ponha casacos, é frio, muito frio

mesmo. A subida é íngreme, mui-to íngreme e com pedras soltas. A caminhada será na escuridão total porque vamos lá no alto para ver o sol nascer na Montanha Nemrut. Ah, sim a saída será às 2 horas e o café da manhã, na volta, às 11h30. Frio, escuridão e escalar com pedras soltas, tudo bem. Mas sem café da manhã? Protesto.

Lá fui eu, barriga vazia, pelas es-tradas em torno da cidade de Adi-yaman onde tinha passado a noite. Felizmente o guia Imran achou uma espécie de padaria turca e voltou com bolinhos quentinhos. Aí sim,

que viesse a trilha de pedras soltas.Falando dessa maneira, parece que se trata de turismo meio selvagem. Não é bem verdade. O governo tur-co investiu um bocado nesta região do país e nós só estávamos lá para mostrar que havia muito mais a ver do que Istambul e passeio de balão na Capadócia (aliás, a Capadócia parece que está com lotação máxi-ma, recomendam evitar). Portanto, também na Montanha Nemrut ha-via um centro turístico com restau-rantes, banheiros e lojinhas, tudo recente e bem feita para receber os turistas. Depois, vans levavam ao sopé da montanha e só então vinha a tal trilha de pedras soltas.

Mas eu ainda não sabia de nada disso quando cheguei ao centro turístico. O frio que me falaram era ainda mais intenso do que eu imaginava e era outono por lá. No inverno, o passeio é fechado por-que neve e gelo tornam impraticável qualquer caminhada. Subi na van e fui até o sopé da montanha. Na su-bida pelas pedras soltas, não teve jei-to, fiquei em último do grupo, mais patinando do que andando. Fica a dica: este caminho é o mais curto, mas do outro lado do morro tem um caminho cimentado e um pouco mais longo. Para quem não gosta de andar, burricos podem ser contra-tados para levá-lo no lombo até lá

turquia

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no alto. Finalmente, cheguei! Uma meia lua dava magia ao ambiente. As primeiras luzes da aurora mostrava olhos que brilhavam de excitação por saber que veriam um espetáculo que talvez jamais se repetiria na vida. As câmeras fotográficas dos japone-ses disparavam loucamente para que nenhum segundo se perdesse.

Foi ali que o sonho de Antíoco I se realizou. Talvez, na época, até fosse original, mas Antíoco (69-34 a.C.) queria ser deus. Seu reino era o de Commagene e foi a partir da religião zoroastrianista (Assim falou Zaratustra, o livro de Friedrich Niet-zsche, diz algo a você?) que ele criou o próprio culto. Seu grande sonho era que seu corpo fosse preservado para sempre.

Na montanha mais alta da região, a Nemrut onde eu estava, ele fez o seu túmulo e mandou que fosse feito uma montanha de pedras sobre ele. A montanha que hoje está lá tem 50 metros de altura feito só com peque-nas pedras soltas, todas praticamente do mesmo tamanho. É impossível escavar porque quando você retira

uma pedra, outra cai no lugar, em uma sucessão infinita. É tanta pedra solta que nunca ninguém descobriu se o corpo de Antíoco está lá mesmo ou não. Os arqueólogos cansaram, dizem que não vão mais tentar.

Nesse lugar alto e santo, distante das pessoas e próximo dos deuses, para adornar o túmulo, dois leões, duas águias e vários deuses gregos, além de figuras do próprio Antíoco. E são estas estátuas que dão beleza ao lugar e que eu fotografava com as mãos ardidas de tanto frio. Fanáticos religiosos quebraram as estátuas, mas elas foram deixadas assim, espalha-das, o que tornou o local ainda mais

misterioso e interessante. Artistica-mente, basta um olhar um pouco mais atento para notar que elas têm iconografia persas e gregas.

Conforme o sol foi subindo, a temperatura se tornou mais razoável e a vista se estendia a locais muito distantes e belos, já que se trata de um parque nacional. Basta caminhar um pouco mais para encontrar cavernas incríveis, e até um surpreendente alto relevo de Antíoco I cumprimentando Heracles, ou Hércules, como prefe-rir, o porteiro do Olimpo. O curioso é que Antíoco está ricamente vestido enquanto Heracles está nu, porque, como todo mundo sabe, os deuses não precisam de roupas.

Talvez pela caminhada pelas pe-dras soltas, talvez pelo encanto do lugar, o fato foi que, quando cheguei de volta ao centro de turismo, minhas pernas tremiam um pouco. Nada que um prosaico café da manhã tão esperado não resolvesse.

turistas sobem a montanha Nemrut antes do nascer do sol, mas quem não quiser caminhar pode ir de burrico; ao lado, Antíoco, de roupa, comprimenta o deus Heracles, nu

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iSTambulquando o ocidenteencontra o oriente

Não preciso lhe dar motivos para ir a Istambul. Fui apenas um

entre os 13.4 milhões de turistas que foram a essa cidade em 2019. Número tão expressivo que a Forbes classifica essa cidade como a 8º entre as mais visitadas do planeta. Falar que ela é uma cidade com metade na Europa e metade na Ásia é algo que todo mundo sabe. Que já foi chamada de Bizâncio e Constanti-nopla também. Mas, talvez, o que você não tenha prestado atenção é que o Brasil só foi descoberto pelos portugueses por causa de Istambul.

A descoberta começou no dia 29 de maio de 1453, quando Maomé II lançou um ataque total às muralhas causando a queda de Constantino-

pla. Dominada pelos muçulmanos, a partir de então, praticamente acabou o acesso da Europa à Ásia e com isso não havia mais pimenta, nem cravo, nem canela nem noz-mos-cada. O que fizeram os europeus? Lançaram-se aos mares em busca de novos caminhos para as Índias e... bem o resto você já sabe.

Seja lá o que você for fazer em Istambul, não tem como deixar de

ir a Hagia Sofia (ou Ayasofya, ou Igreja da Santa Sabedoria). Hoje ela é um museu, mas já foi igreja por 916 anos e mesquita por 482. Ou seja, é um solo sagrado há 1.398 anos e merece todo o respeito. No chão, nas paredes, no teto, nas colunas, em toda parte há histórias contadas em obras e arte, muitas em ouro, em uma incrível mistura na qual Jesus e Maomé convivem na mais perfeita

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o Canal de Bósforo separa a capital da turquia entre dois continentes e dois mundos. Ao lado, museu Hagia sofia que foi igreja por 916 anos e mesquita por 482

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paz. Uma simples rampa que leva ao mezanino já foi pisada por cavalos de imperatrizes para entradas solenes. Fiz até questão de fotografar meus pés naquelas pedras e registrar para sempre um “eu pisei aqui”.

Mas, prepare-se. Istambul é uma cidade de multidões de turistas. En-trar na Hagia Sofia significa enfren-tar filas enormes, a não ser que você esteja com um guia. A carteirinha deles é mágica, acaba com filas e abre todo tipo de porta. Se puder, contrate um. Aliás, se puder, contrate dois. Nós tivemos por toda a viagem a companhia da Ana Morais ([email protected]), uma brasileira que mora por lá e fala turco. Deu preciosas dicas para a construção dessa matéria. Obrigado, Ana.

Claro que é inevitável ir ao Grand Bazaar, no qual se distri-buem mais de 5 mil lojas por um

emaranhado de 60 ruas. Com tan-tos turistas, óbvio, nem se compara em autenticidade com o mercado de Şanlıurfa. Ainda assim, vá com tempo. Além de pechinchar, como é praxe em todo o mundo árabe, preste atenção com a procedência dos produtos. Como em todos os lugares turísticos, ali também exis-tem os produtos típicos da Turquia e os “genéricos” chineses, sempre mais baratos.

Como uma metrópole de cerca de 15 milhões de habitantes, em Istambul você encontra de tudo. A nossa festa de despedida foi em um lugar chamado Babylon, nome mais que adequado. Em uma antiga cervejaria, foram unidos bares, res-taurantes, palcos... A diversão rola solta. De música brasileira no palco da área externa a, por exemplo, um excelente show de jazz ao qual assisti.

Nos restaurantes, já sabe, a pedida é ser vegano.

Ir a Istambul, e voltar de lá, é muito fácil. A Turkish Airlines tem voos diretos de São Paulo a Istambul, inclusive com alguns mimos para os passageiros, como fones de ouvi-do de boa qualidade ou nécessaire que as outras aéreas abandonaram. Ainda bem, porque são 14 horas de voo. E o aeroporto de Istambul é moderno e gigante, preparado para ser um dos maiores do mundo.

É, os turcos estão levando o tu-rismo muito a sério. Mas, para mim, mais do que turismo, eu tinha feito uma viagem no tempo. Voltava para casa renovado de experiên-cias, purificado e feliz por fazer parte da história humana, da qual eu tinha acabado de conhecer mais alguns feitos, com as bênçãos do patriarca Abraão.

o Grand Bazaar é um emaranhado de 60 ruas com muitas lojas de produtos típicos turcos; ao lado, o Babylon, complexo de bares e restaurantes