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81 FIGUEIREDO, Antônio Régie; MARTINS, Paloma; SANTOS, Uelton da Silva. POR UM LIRISMO CRUEL: GRUPALIDADE E AFETO EM MARCELINO FREIRE. REVISTA DISCENTIS. 5ª EDIÇÃO. DEZEMBRO 2016. POR UM LIRISMO CRUEL: GRUPALIDADE E AFETO EM MARCELINO FREIRE Escrito por: Antônio Régie Figueiredo 1 Paloma Martins Uelton da Silva Santos Orientado por: Moisés Oliveira Alves 2 Resumo Traremos aqui uma reflexão sobre o conto Solar dos príncipes, de Marcelino Freire, que se encontra em sua obra Contos Negreiros (2005). Pretende-se com esse artigo aliar teoria e texto literário a fim de abordar questões em torno do conceito de grupalidade e afetação, tendo como ponto de partida o próprio conto. Atentaremos também ao que diz respeito ao lirismo cruel e a escrita ácida que há na obra do escritor pernambucano. Palavras-chave: Grupalidade; Afetação; Lirismo cruel; Escrita ácida. INTRODUÇÃO Primeiramente, iremos falar a respeito de Marcelino Freire, autor contemporâneo, escritor de contos, dentre eles os que estão na sua obra Contos Negreiros (2005), vencedor do prêmio Jabuti 2006. Seus contos possuem uma característica própria por serem curtos, diretos e líricos; estilo que se mistura, ou seja, a prosa e a poesia, nada comum por não necessariamente se enquadrarem num eixo específico, um estilo marcado pelo contemporâneo. Isso produz no leitor um certo estranhamento. A prova disso é que seus contos aproximam-se das marcas da oralidade como se pudéssemos recitá-los da mesma forma que o próprio autor faz no youtube. Faremos, sobretudo, nossa análise no conto intitulado Solar dos Príncipes. No conto em questão, um grupo de jovens negros moradores da favela, resolvem fazer um documentário sobre a vida das pessoas de classe média alta, moradores de um condomínio de luxo, e chegando lá são impedidos de fazer o que queriam, pois foram confundidos com marginais, mas não foram barrados, antes mesmo de tal ato acontecer o porteiro ficou paralisado, em pânico, sem saber o que devia fazer, pensando que esses jovens se tratavam, na verdade, de delinquentes. Assim, Marcelino Freire aborda uma questão bastante significativa que nos leva a pensar o “avesso”. Ele tem essa capacidade de inverter a ordem natural das coisas, 1 Graduandos do 4° semestre do curso de Letras da Universidade do Estado da Bahia- Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias- Campus XVI- Irecê/BA. 2 Professor Mestre e doutorando em Literatura e Cultura na Universidade Federal da Bahia.

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POR UM LIRISMO CRUEL: GRUPALIDADE E AFETO EM

MARCELINO FREIRE

Escrito por: Antônio Régie Figueiredo1

Paloma Martins

Uelton da Silva Santos

Orientado por: Moisés Oliveira Alves2

Resumo

Traremos aqui uma reflexão sobre o conto Solar dos príncipes, de Marcelino Freire, que

se encontra em sua obra Contos Negreiros (2005). Pretende-se com esse artigo aliar

teoria e texto literário a fim de abordar questões em torno do conceito de grupalidade e

afetação, tendo como ponto de partida o próprio conto. Atentaremos também ao que diz

respeito ao lirismo cruel e a escrita ácida que há na obra do escritor pernambucano.

Palavras-chave: Grupalidade; Afetação; Lirismo cruel; Escrita ácida.

INTRODUÇÃO

Primeiramente, iremos falar a respeito de Marcelino Freire, autor

contemporâneo, escritor de contos, dentre eles os que estão na sua obra Contos

Negreiros (2005), vencedor do prêmio Jabuti 2006. Seus contos possuem uma

característica própria por serem curtos, diretos e líricos; estilo que se mistura, ou seja, a

prosa e a poesia, nada comum por não necessariamente se enquadrarem num eixo

específico, um estilo marcado pelo contemporâneo. Isso produz no leitor um certo

estranhamento. A prova disso é que seus contos aproximam-se das marcas da oralidade

como se pudéssemos recitá-los da mesma forma que o próprio autor faz no youtube.

Faremos, sobretudo, nossa análise no conto intitulado Solar dos Príncipes. No

conto em questão, um grupo de jovens negros moradores da favela, resolvem fazer um

documentário sobre a vida das pessoas de classe média alta, moradores de um

condomínio de luxo, e chegando lá são impedidos de fazer o que queriam, pois foram

confundidos com marginais, mas não foram barrados, antes mesmo de tal ato acontecer

o porteiro ficou paralisado, em pânico, sem saber o que devia fazer, pensando que esses

jovens se tratavam, na verdade, de delinquentes.

Assim, Marcelino Freire aborda uma questão bastante significativa que nos leva

a pensar o “avesso”. Ele tem essa capacidade de inverter a ordem natural das coisas,

1 Graduandos do 4° semestre do curso de Letras da Universidade do Estado da Bahia- Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias- Campus XVI- Irecê/BA. 2 Professor Mestre e doutorando em Literatura e Cultura na Universidade Federal da Bahia.

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transformando o corpo do marginalizado, corpo esse que não sofre a ação, mas sim a

pratica. Ou seja, ele transforma os personagens em indivíduos que são protagonistas de

suas narrativas, sendo que são eles negros, pobres, prostitutas, gays e gordos. Mas não

só isso, o autor faz com que esses indivíduos não sejam vistos como aqueles que são

tristes dentro de uma perspectiva de um discurso hegemônico, mas sim aqueles que

distorcem essa mesma ordem. Ao sair da favela, aqueles jovens do conto citado, fazem

uma jogada inversa, pois são as pessoas de classes abastadas que fazem esse tipo de

excursão para a favela, então, os papeis dos protagonistas ganham outra vertente na

literatura contemporânea.

Ao decorrer de sua obra, podemos perceber que Marcelino Freire assume um

verdadeiro compromisso com as ditas minorias identitárias. Ele vai ler às avessas, como

já analisado aqui, trazendo um discurso crítico acerca das condições de vida dos seus

personagens, conduzindo-nos a pensar essas minorias como possuidoras de um poder

político capaz de escapar a um discurso estereotipado, ganhando voz.

Ao estudar esse viés que Marcelino toma em suas obras, vamos problematizar as

singularidades dos indivíduos, suas vivências em grupo e seu poder de afetar e ser

afetado. Este trabalho terá como base essas questões que envolvem a prática de nos tirar

de um lugar de conforto. Não queremos com isso dar respostas, pois nosso artigo não

tem um direcionamento teleológico, já que a própria literatura não nos permite um

esgotamento, uma verdade.

UM LIRISMO CRUEL

Os contos de Marcelino Freire aproximam-se da poesia devido a um lirismo que

permeia em seu texto, nesta condição, ele faz das suas narrativas um lugar de ensaio,

onde há esta mistura de gêneros poéticos e narrativos, acompanhada por uma escrita

ácida e carregada de crítica. O escritor pernambucano faz com que seus textos nos

remetam a um espaço inquietante, porque não podemos ler seus textos por uma ótica

linear. Seus contos possuem uma estrutura literária que chama atenção.

[...] A gente não só ouve samba. Não só ouve bala. Esse porteiro nem

parece preto, deixando a gente preso do lado de fora. O morro tá lá,

aberto 24 horas. A gente dá as boas-vindas de peito aberto. Os

malandrões entram, tocam no nosso passado. A gente se abre que nem

passarinho manso. A gente desabafa que nem papagaio. A gente canta,

rebola. A gente oferece a nossa coca-cola [...] (FREIRE, 2005, p. 25).

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Nesta breve citação do conto Solar dos príncipes, o ritmo e as discussões

espinhosas deixam claro o que nós queremos tratar ao falar do lirismo cruel.

A escritura de Marcelino Freire representa uma nova voz, hoje reconhecida

dentro da ficção contemporânea brasileira. Percebe-se um lirismo tão sutil e ácido que

direciona o leitor, ora, á análise do contexto social, ora, à presença de uma poesia

amarga que sobressai de suas narrativas curtas. Diferentemente de outros autores,

Marcelino cria uma literatura inovadora e chocante que discorre liricamente sobre as

adversidades sociais, como se ele quisesse testar-nos dramaticamente inserido com um

lirismo forte e testar-nos poeticamente dessa forma num único espaço de tempo. Esse

autor não usa o contexto panfletário para falar dos excluídos e dos miseráveis na

sociedade.

Os personagens marcelinos são donos, possuidores, estratégicos no sentido

político, corpos vibrantes, periféricos, mas alegres eles ditam seu próprio futuro. Não há

como negar que a leitura dos seus contos nos evoca a sensibilidade dos oxímoros; uma

crueldade alegre, em suma, um lirismo cruel.

Seus contos apresentam musicalidade e rimas que potencializam ainda mais a

sua escrita. Um texto carregado de amor e, ao mesmo tempo de amargura.

Observa-se que o autor pernambucano bebeu na fonte da oralidade por dialogar

com autores do contexto popular. Com sua escrita doce e áspera, o autor cria caracteres

performáticos em seus contos. Seus personagens marginalizados não são pessimistas,

nem dialogam com o fracasso. Ao dar voz aos silenciados, Marcelino Freire, os coloca

como donos de seu destino, sem nomear ideologias salvadoras, nem uma mensagem

pragmática e doutrinária.

Seu lirismo ácido nada tem de ingênuo, ao contrário, ele usa uma linguagem que

nos tira do comodismo e evoca algum outro lugar, pois, ao mesmo tempo, a sua forma

poética de escrever nos conduz a uma dimensão diferente do que significa um conto ou

mesmo qualquer texto de cunho literário que trabalha com a prosa. A mistura da poesia

com o conto é algo incomum, mas Marcelino Freire encontrou nessa forma de escrita

um viés que se tornou popular.

O lirismo nasceu da lira; instrumento que os gregos usavam para cantar ou

declamar seus textos literários. Então o ritmo é a chave primeira do lirismo, já que esse

conceito tem suas raízes atreladas à musicalidade.

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Os contos curtos de Marcelino com seu lirismo cruel aproximam da poesia

narrativa, e pode ser apresentado como dramas, ao observarmos um conteúdo literário

inovador. A obra do escritor pernambucano disseca a literatura, por tirar o leitor da zona

de conforto, e inferir uma escrita diferenciada dos demais autores contemporâneos.

Marcelino é um autor de cunho contemporâneo, mas o que realmente significa

ser contemporâneo? Iremos começar a problematizar essa questão a partir de uma breve

citação do conto já mencionado. “Quatro negros e uma negra pararam na frente deste

prédio. A primeira mensagem do porteiro foi: ‘Meu Deus!’ A segunda: ‘O que vocês

querem?’ ou ‘Qual o apartamento?’ Ou ‘Por que ainda não consertaram o elevador de

serviço?’” (FREIRE, 2005, p.23). Vemos neste trecho algo que nos permite encontrar

um primeiro resquício de contemporaneidade, ou seja, nos atentaremos a

descontinuidade dos textos, porque em outros momentos, podemos notar que há uma

linearidade no que diz respeito à estruturação das narrativas; inicio, meio e fim.

Nos romances e outras obras de cunho Moderno, Realista, Romântico,

confinadas num projeto político estético, sempre nos deparamos com essa estrutura

cronológica. Queremos dizer com essa lógica que é uma característica contemporânea

não narrar histórias, não há histórias a serem contadas num texto como este. Esses

autores de eixo contemporâneo, dando ênfase a Marcelino, não estão preocupados em

escrever sobre grandes temáticas; o amor, a natureza e Deus, pois há outra provocação

nas suas obras; a banalidade, ou seja, aquilo que parece não ter importância nenhuma,

ganha força, em suma, há uma criação de outros modos de vida que não tendem para

uma chave que possa ser linear, porque os próprios personagens pedem isso do autor;

são corpos que estão fora de uma lógica romântica.

E na citação acima, notamos o que estamos desenvolvendo aqui. Veja que não

existe começo de uma história nesta narrativa poética, isso quebra com muitos

parâmetros utilizados em outros momentos.

ESCRITA ÁCIDA

Meu homem é a coisa mais bonita. Os dentes perfeitos, o peito. Meu

homem leva jeito para ser modelo. Mas eu não deixo. Coloco, assim,

um cabresto. Para ele não me deixar tão cedo. Meu homem me

obedece e me respeita. Por incrível que pareça, mesmo quando me põe

de quatro, me machuca, me prende à vara da cama. Quando me

chicoteia. (FREIRE, 2005, p. 102).

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Esta citação pertence ao conto Meu negro de estimação que se encontra na

mesma obra que estamos trabalhando, começaremos a desdobrar alguns pontos neste

outro conto para afirmar o que dissemos sobre a escrita de Marcelino. Podemos notar,

sem esforço, a persistência da brutalidade lírica que vai haver em todos os seus contos.

A acidez poética de que tanto falamos está nítida no próprio titulo do conto citado

acima, na própria forma que não deixa de lado a alegria dos corpos marginais. Como

Marcelino, nós entendemos a voracidade lírica dos personagens, queremos dizer com

isso que deve haver nestes gays, negros, mulheres, putas e gordas, muita energia, pois

tem de haver energia para estar à margem. Talvez por isso, Marcelino narre seus

personagens de forma alegre no sentido de que eles se afirmam em qualquer situação.

Sabemos que escrever é uma questão que envolve a singularidade e, dessa

forma, Marcelino encontrou modos de escapar as estruturações comuns, ou seja, no

sentido de que seus textos são representantes de sujeitos subjetivos que distorcem a

própria linguagem, a política, os hábitos de leitura, e do que significa ser marginal numa

perspectiva alegre e ácida ao mesmo tempo. Não dá para conceber uma leitura do contra

em textos como este, contra no sentido de oposições de discursos, ou seja, vemos a todo

instante a mistura de textos, o periférico que é sujeito protagonista, que exerce a ação.

Segundo Deleuze, o ato de escrever é caso de devir. “Escrever é um caso de devir,

sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível

ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o

vivido. A escrita é inseparável do devir [...]” (DELEUZE, 2006, p. 11).

A partir daí, podemos pensar a escrita como um processo que não se limita

apenas às formas, ou mesmo a relatos de uma experiência. Percebendo-a como ato que

denota fuga, que não se deixa dominar pelos discursos hegemônicos/dominantes. Seus

contos são breves e isso é proposital, pois ele escreve para sugerir uma nova fonte de

formas de vida, vidas essas que não podem ser calculadas ou manobradas a partir de

qualquer representatividade, não há o que ser representado, porque os corpos subjetivos

criados por Marcelino são parte de um modo exclusivo de pensar a periferia, as

condições sociais, econômicas, históricas. E isso se faz sem rodeios, sem grandes

delongas, com a proliferação de rimas e de outros procedimentos mais próximos da

poesia do que da prosa. Fica bem evidente dentro de sua escrita, certa liberdade de

poder experimentar sem necessariamente se prender a um estilo especifico.

Estamos diante, portanto, de uma literatura que dá voz aos grupos minoritários,

que recria e reinventa formas de realidade, que não se prende a forma, trazendo atrelada

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a si uma potente desterritorialização da língua, pensando assim, as formas tradicionais.

Portanto, uma resistência política é inerente à estruturação dos seus textos e aos seus

próprios personagens. Marcelino funda um novo modo de comunicar-se. O que vale

destacar é que não se trata aqui de um idioma outro, mas um meio de interagir dentro da

própria língua. No seu caso, essa língua “estrangeira” é uma língua que corrói o que

toca, isto é, os corpos que percorrem nesses caminhos.

A SINGULARIDADE: REPENSANDO UM CONCEITO

A política, não no seu ato partidário, mas sim, tendo em vista que o sujeito é um

ser político por estar dentro de uma ótica de regras e deveres sociais é algo comum a

todos, desse modo, podemos interagir de maneira agradável ao meio. Mas o que vemos

em Solar dos príncipes é uma nova ordem política e social, ou seja, os personagens ali

reinventam outros modos por meio das suas crueldades alegres, em outras palavras;

Marcelino cria mundos que não foram pensados ainda politicamente, pois todos os seus

personagens são dotados de algo que não é comum; a potência de vida que emerge das

margens, essa potencialidade é inerente as suas criações, são eles os donos das suas

próprias histórias dentro de uma narrativa que é a marceliniana.

O que mantém a estrutura dos grupos sociais são as interpretações que eles

fazem do interesse coletivo, essas ideologias internalizadas a partir da cultura, os

conduzem a agir pacificamente a favor do bem maior, mas isso não significa que os

homens agem igualmente para alcançar um objetivo. As interações são afetivas no

interior de cada indivíduo e, ao mesmo tempo, constituída por grupos no espaço

sociocultural. O contato com o outro proporciona uma nova dimensão de visão de

mundo, isso vale para ambos os lados, é uma troca de saberes, tanto os favelados quanto

as pessoas do condomínio, aprendem algo um com o outro.

Analisar a grupalidade consiste em indagar como o grupo se faz ao se

constituir de indivíduos e, ao mesmo tempo, como cada indivíduo se

faz ao se constituir de grupos. Desse modo, podemos inverter a

clássica e óbvia afirmativa de que o grupo é formado por indivíduos e

dizer, com razão, que o indivíduo é formado por grupos. (Ávila, 2010,

p. 8).

Pensar a grupalidade é praticar um exercício sobre as questões afetivas, pois

pertencer a um grupo é estar, queira ou não, dentro de um circuito de afetos que se

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consolidam por meio das relações. O conceito de Grupalidade será o nosso foco neste

momento, pois com ele podemos analisar de forma mais aprofundada as questões

individuais de cada ambiente grupal, isso porque o termo comunidade não dá conta

dessas problemáticas por possuir um teor de “homogeneidade” entrelaçado a ele.

Os personagens marcelinos, suscitam de forma clara o que estamos tentando

trazer neste artigo sobre o que significa conviver em grupos, pois, um único indivíduo,

já é o resultado de encontros, logo essas formas de vida não podem ser reduzidas a uma

unidade homogênea. A noção que nos foi dada destoa dessa acima, pois ainda acredita-

se numa localidade de caráter uno, mas, em Solar dos príncipes, é como se os jovens da

favela não tivessem essa limitação de espaços que fomentam a vida urbana (Favela e

Condomínio), pois a noção de localidade não é natural, mas sim produzida. O autor de

Contos Negreiros irá nos induzir a pensar uma pós-comunidade, no sentido de não mais

existir muros entre esses indivíduos, um exemplo disso são os jovens do conto, que

saem da favela indo até o condomínio entrevistar os moradores deste espaço.

Nesse caso, a figura do porteiro existe como um signo de fronteira entre um

mundo e outro, que ameaça e ora protege: “[...] ‘A ideia é entrar num apartamento do

prédio, de supetão, e filmar, fazer uma entrevista com o morador.’ O porteiro: ‘Entrar

num apartamento?’ O porteiro: ‘Não.’ O pensamento: ‘tô fodido.’” (FREIRE, 2005,

p.24). Naquele momento é negado a eles o direito de atravessar, apesar disso existe uma

produção do comum entre o porteiro e esses jovens, a saber: os hábitos compartilhados,

a vida em comum entrando em cena.

A comunidade que deveria ser vista como um lugar de todos, já não é articulada

dessa maneira, pensar em São Paulo, então, é dividir a zona norte da zona sul. No

entanto, a multidão marcelina produz linhas de fuga, constroem modos de

desassujeitamento de não submissão a forças maiores, quando afirmam suas condições

de sobrevivência.

A estrutura física (condomínio) foi pensada para atender outras questões que não

os envolvem. Contudo a favela, também, tem particularidades que não são entendidas

do ponto de vista de uma classe abastada. Quando relacionamos esse texto ao modo

como a arquitetura modifica os ambientes, isso fica mais claro nas nossas mentes, já que

esses projetos arquitetônicos são desenhados para lidar com um modelo cultural.

O afeto gerado pelo conjunto elimina, de uma vez, a possibilidade de pensarmos

numa comunidade que traz as mesmas ideais a cada personagem presente ali, pois essas

afetividades os tornam pessoas diferentes. Desde que nascem as crianças são carregadas

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de características distintas; pela religião, por ser de uma determinada região, por ter uma

cor de pele diferente dos demais, isso os faz, ideologicamente, singulares. Interagir nos

faz mudar, quando o outro faz isso ele também muda e não de forma igual.

A ideia de um entrelaçamento psíquico intersubjetivo é correlata de

outra que se refere a uma estrutura da psique na intersubjetividade,

sendo o aparelho psíquico constituído de lugares e processos que

contêm ou introjetam as formações psíquicas de mais de um outro

num feixe de traços, marcas, vestígios, emblemas, signos e

significantes, que o sujeito herda, recebe e deposita, transforma e

transmite. (FERNANDES, 2003, p. 51).

Com essa citação percorremos todo o texto, pois nela há um diálogo intenso com

tudo que estamos analisando. O sujeito interage, dessa forma, ao se relacionar com o

outro, muda e transforma também a si mesmo. O grupo não é dotado de uma única

perspectiva que constitui a todos, o grupo é feito a partir de pensamentos únicos, nisto

ele se ergue de pensamentos individuais visando o foco coletivo. É neste ponto que

podemos notar que não há comunidades, porque é a favela que cria o condomínio e é o

condomínio que cria a favela, tudo isso não passa de narrações subjetivas, mas que em

algum ponto tornam-se o eixo das vivências, dos modos de vida.

E em que medida isso tem relação com o conto? Produzir arte, o modo de ler os

problemas e outros infinitos exemplos que poderíamos dar, é o que separa as pessoas

que vivem num lugar cheio de muros com os seus carros, daquelas que jogam pelada na

rua em pleno ar livre na favela. Não queremos dizer que somente isso é o bastante para

esclarecer as problemáticas afetivas e grupais, mas as relações entre sujeitos que

convivem buscando estabelecer um horizonte são construídas de modos dessemelhantes

para cada um. Ao falar dos condomínios e favelas, estamos buscando entender as

potências que cada ambiente desses têm e o que podem provocar na atmosfera que os

cercam.

A produção de movimentos políticos é intensificada no âmbito social. No

entanto, há modificações que partem de um sujeito, por isso podemos pensar nas

contribuições de teóricos e pensadores que produziram um conceito ou muitos sozinhos,

mesmo assim, só foi possível estabelecer essas definições por terem tido contato com

outros teóricos e com os membros que interagiram ao seu redor. O passado cultural

admite o presente e o futuro das capacidades humanas em seus aspectos individuais e

interativos, essa é uma forma de dizer que os sujeitos constroem-se a partir do contato

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com o outro e com suas cargas ideológicas, isso, da mesma forma, os tornam diferentes

ou singulares.

Quatro negros, uma negra, um porteiro e um espaço a ser explorado por dentro,

culturalmente falando, algo inédito estava prestes a acontecer, mas os muros não os

permitiram adentrar àquele lugar ainda estranho, então o poder das construções

históricas e políticas foram clamados e a sirene da polícia se fez forte e tudo termina. O

que vemos a partir disso é a energia, a vibração de sujeitos que estão na periferia e

encontram modos de criar suas próprias políticas.

O modo capitalista tem deixado marcas fortes se atentarmos para a forma como

as cidades e eixos que nelas consistem envolvem-se, já que o modo como as

construções são formadas hoje são pensadas para atender a um modelo cultural, as

capitais são gigantescas e os edifícios de muitos andares vão empurrando o restante da

população para as margens. No entanto, mesmo num edifício, os corpos não são iguais,

muito menos seus pensamentos, isso acontece em todos os lugares, por isso o traço

singular ao se falar em grupalidade. A crise da identidade cultural nada mais é do que o

reflexo das singularidades de cada homem e mulher. Não há um propósito conjuntivo

que possa agradar a todos, suas identidades são distintas, o homogêneo não atende as

relações entre corpos, então a heterogeneidade estabelece como o conjunto é criado a

partir das interações e processos particulares.

Os condomínios atendem as necessidades dos indivíduos que procuram

segurança. Geralmente quem possui bens econômicos e materiais moram em lugares

assim. O acesso é restrito. O medo os tornam reféns, exemplo; no conto antes

mencionado, o porteiro fica aflito achando que os jovens querem roubar, mas só

queriam fazer um documentário, então podemos concentrar nosso foco nas ideias que as

pessoas têm das outras, por morarem em regiões distintas, o embate que há nas relações

é econômico, se refletirmos por esse ponto de vista. Mas não só isso, as margens que

impedem um maior contato entre esses grupos são construídos culturalmente. Ricos vão

para o sul e os pobres para o norte geograficamente. Os lugares são feitos a partir de um

pensamento ideológico, a arquitetura que o diga.

Edward Said (2007), fala justamente dos espaços criados a partir dos discursos,

as demarcações geográficas são uma delas, esses espaços também são demarcados entre

corpos, como acontece no Solar dos príncipes. As particularidades desses homens os

fazem escolher por onde devem trilhar seus caminhos. Pierre Bourdieu (2007), fala que

é o gosto que faz o sujeito transitar entre classes sociais, ele traz essa ideia para dizer

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que o modo como Marx conceitua o capitalismo não dá conta das questões individuais

das pessoas, já que Marx descrevia as classes sociais sem conceituar o interesse

particular do sujeito, ele não levava em conta que o sujeito poderia ver-se dentro desse

sistema. Para Bourdieu, dividir a sociedade em blocos não é suficiente, já que cada

grupo desses é acarretado por outras questões, pois são pessoas que constituem esses

grupos e como humanos, eles se transformam, interagem e criam outras formas de

pensar.

[...] a comunidade perdida não passa de um fantasma. Ou aquilo que

supostamente se perdeu da “comunidade”, aquela comunhão, unidade,

copertinência, é essa perda que é precisamente constitutiva da

comunidade. Em outros termos, e da maneira mais paradoxal, a

comunidade só é pensável enquanto negação da fusão, da

homogeneidade, da identidade consigo mesma. A comunidade tem por

condição precisamente a heterogeneidade, a pluralidade, à distância.

[...] (PELBART, 2007, p. 5).

O campo de concentração dos argumentos dados aqui, pensando no conto, não

se fecha, muito pelo contrário, as problemáticas acerca do conceito de grupalidade

abrem outras brechas de discussões. Pensar o sujeito é analisá-lo de forma grupal e

individual ao mesmo tempo é um trabalho árduo e que requer muitos estudos,

principalmente na área de psicanálise. Nosso objetivo é contemplar essa experiência,

refletir sobre a vida e suas afetividades culturais, individuais e subjetivas.

O COMUM: PARTES DE UM CONJUNTO

O que é comum? Numa perspectiva ligada ao âmbito social e coletivo, o comum

seria a democracia, os símbolos criados através da cultura, sendo assim, a comunidade

tem esse resquício, pois é nela que esse comum ganha força. Em Solar dos príncipes,

sem que aqueles personagens percebam, eles estão criando um espaço do comum; os

hábitos, ou seja, a comunidade não existe fisicamente, mas sim subjetivamente, o que

nos torna envolvidos, dessa forma, nestes discursos são os hábitos que nos tornam

agentes do comum, vivendo numa realidade reinventada pelas narrativas, pelas

ideologias por meio da linguagem.

O porteiro é curioso desse ponto de vista, porque ele faz parte da Favela, ele é

negro, mas quando está no Condomínio, esse mesmo personagem vira uma espécie de

protetor num espaço que fora designado a partir de uma visão econômica e subjetiva, ou

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seja, ele tem que proteger pessoas que vivem num âmbito historicamente pensado para

mantê-las seguras do outro, no caso, das pessoas da favela. E essas demarcações

subjetivas são entendidas de todos os ângulos, porque também é comum. Em suma, o

comum é uma produção criativa.

O comum é intensificado pelas intervenções do sujeito e suas particularidades,

com isso, a subjetividade tem um papel fundamental, já que ser singular é ter suas

próprias ideias individuais, o que nos remete ao indicio da subjetividade das pessoas. O

subjetivo é algo que transpassa o próprio corpo e suas interações com o meio social,

podemos perceber essas intervenções nos pensamentos críticos das pessoas, quando elas

dizem coisas que vão de encontro às ideias das outras, isso acontece porque cada uma

delas têm suas próprias subjetividades. Desse modo, à humanidade cria um vínculo de

negação de um espaço e aceita outro. A subjetividade tem uma potência que está,

excessivamente, criando o lugar do comum, por isso podemos pensar as territorialidades

como esse lugar inventado pelos sujeitos a partir das subjetividades e isso é muito

significativo e simbólico, pois a língua e a lei que se tem como hábitos comuns, tornam

essa subjetividade um espaço quase que concreto e as pessoas ou mesmo personagens,

no caso, não pensam nisso, porque é real para eles.

A comunidade é o lugar de origem de todo sujeito ou indivíduo, na

medida em que esses emergem como confrontação identitária, pela

exclusão daquilo que os constituem (as diferenças). Por outro lado,

não deixa de ser paradoxal que o reconhecimento desses, enquanto

sujeito ou indivíduo, é marcado pela impossibilidade de sê-lo. Por

mais que eles se isolem, o outro os acompanha e os constituem

ontologicamente, pois sem o outro não haveria consciência de si.

(YAMAMOTO, 2013, p. 65).

Como vimos nesta breve citação, o conhecimento de si mesmo é realizado

através do contato com o outro, mas mesmo assim, o indivíduo não pode ver-se no

outro, pois são sujeitos que constituem um espaço conjuntivo, neste ponto, seus contatos

os constroem a si mesmos, mas de outro lado, por terem outros contatos e afetações,

eles se tornam diferentes.

Embora o conto Solar dos príncipes esteja representando dois espaços comuns

do ponto de vista democrático, os sujeitos da favela e do condomínio são isolados por

terem contato com certas ideologias, esse isolamento não quer dizer que estão

confinados em culturas diferentes, pois mesmo a cultura é criada no intermédio coletivo,

queremos dizer que justamente por terem esses encontros, os dois grupos afastam-se,

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isso na medida em que os discursos são criados sempre se voltando ao lugar do poder,

politicamente neste caso.

O que esses contemporâneos da comunidade tentam explicitar é o fato

de que a tradição política moderna nada mais fez do que essencializar

o “supostamente” comum expropriado. Ora, é justamente esse desejo

de reparação que legitimou, ao longo da história, a apropriação de

territórios, línguas, tradições num Uno, numa Ordem, numa Ideia. Por

outro lado, e seguindo a trilha desses filósofos contemporâneos da

comunidade, Ser/Estar em comunidade não é a busca pelo

ressarcimento, mas o aprofundamento ainda maior da falta.

(YAMAMOTO, 2013, p. 67).

O comum em Marcelino Freire é tornar os discursos de comunidade uma falta

dela mesma, pois a criação dos sujeitos e grupos, tendo como foco o homogêneo é

apagada, vestígios de lugares marginalizados ganham outros sentidos e os personagens

da narrativa traçam rotas que ameaçam os íntimos do discurso comunitário. Então

voltemos à pergunta; o que é comum? A resposta está atrelada as várias indagações que

hoje vemos nas mais diversas formas de vida social. A crise da identidade que Stuart

Hall (2011), toma como foco de análise, indica a globalização interferente nos modos de

vida social, por isso os sujeitos estão experimentando viver de modos diferentes e

diversos, o que expõe a singularidade do individuo de uma maneira exponencial.

CONCLUSÃO

Concluímos que Marcelino Freire aborda de forma bastante significativa as

questões minoritárias e com isso assume um compromisso de modificação de um

pensamento político hegemônico. Tomando como ponto de partida a força que há nas

suas narrativas, com a mistura desse lirismo que é, ao mesmo tempo, ácido e cruel, ele

fala de forma nua e crua das vivências dessas classes minoritárias, sendo que esses

personagens estão como protagonistas nas suas histórias.

E dentro do conto Solar dos príncipes, podemos notar as convivências de

sujeitos de classes diferentes, favela e condomínio, que nos possibilita pensar o grupo, e

dentro dessas relações a forma como os sujeitos são afetados.

Dessa forma, escrevendo suas problematizações de um jeito desigual, Marcelino

inventa outros espaços comuns, desterritorializando pensamentos, subjetividades, em

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suma, Marcelino nos evoca a pensar para além da comunidade, transformando esses

discursos internalizados em outras formas de ver e viver a vida.

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