POR UMA ANTROPOLOGIA DO CIBERPAJÉ:

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MISTICISMO E TRANSCENDÊNCIA TECNOLÓGICA NA OBRA FICCIONAL TRANSMÍDIA DE EDGAR SILVEIRA FRANCO Edgar Indalecio Smaniotto*

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    VII Simpsio Nacional de Histria Cultural

    HISTRIA CULTURAL: ESCRITAS, CIRCULAO,

    LEITURAS E RECEPES

    Universidade de So Paulo USP

    So Paulo SP

    10 e 14 de Novembro de 2014

    POR UMA ANTROPOLOGIA DO CIBERPAJ: MISTICISMO E

    TRANSCENDNCIA TECNOLGICA NA OBRA FICCIONAL

    TRANSMDIA DE EDGAR SILVEIRA FRANCO

    Edgar Indalecio Smaniotto*

    A evoluo biolgica humana, diferentemente da evoluo cultural, esteve

    sempre merc dos ditames da natureza, no mximo sendo objeto de cultivo, intervenes

    paliativas e correcionais: cirurgias, prteses, esteroides e outras drogas farmacuticas. O

    avano da cincia e da tecnologia, particularmente da gentica e da robtica, coloca em

    discusso, pela primeira vez na histria humana, a real possibilidade do ser humano

    projetar e modificar sua evoluo biolgica.

    Essa possibilidade tcnica, ainda que no consumada at o presente momento,

    j objeto de discusso tico-filosfica e sociopoltica; no apenas no mbito acadmico,

    como tambm entre novos grupos sociais que se autodenominam ps-humanistas ou

    transumanistas, defensores da possibilidade do homem controlar sua prpria evoluo

    biolgica. Em geral, esses grupos pretendem associar e acelerar todas as conquistas das

    cincias de ponta criogenia, modificaes genticas, sntese do ser humano com o

    * Licenciado em Filosofia, mestre e doutor em Cincias Sociais pela UNESP/Marlia. Professor da Faculdade de Ensino Superior do Interior Paulista FAIP, desenvolve pesquisas relacionadas fico cientfica, transhumanismo, tica e histria social da cincia. Membro da Sociedade Brasileira para o

    Progresso da Cincia SBPC, da Associao Brasileira de Antropologia ABA, da Associao de Pesquisadores em Arte Sequencial ASPAS e do Centro de Educao Transdisciplinar CETRANS.

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    computador, nanotecnologia, modificaes corporais, informtica, bioengenharia para

    um projeto consciente de acelerao da evoluo humana.

    Para o pensador transumanista norte-americano Raymond Kurzweil (2006), o

    futuro do ser humano ser marcado pela interao entre nosso corpo biolgico e

    nanorobs construdos por ns mesmo:

    ...teremos um poder muito grande: as habilidades da mquina, como

    velocidade e memria, combinadas com o reconhecimento de padres

    da inteligncia humana ... falo de nanobolts, robs do tamanho das

    clulas do sangue. J esto sendo testados com sucesso em animais e

    devem estar sofisticados em 2020. Os nanobolts chegaro ao crebro

    pelas veias e podero interagir com nossos neurnios biolgicos,

    tornando-nos mais inteligentes, melhorando nosso bem estar fsico e

    aumentando a longevidade (p. 14).

    A longevidade , sem dvida, uma das maiores preocupaes dos

    transumanistas, Kursweil inclusive se diz em preparao para alcanar a imortalidade,

    Estou me preparando para isso. No livro A Medicina da Imortalidade,

    que assino com Terry Grossman, falamos de trs pontes que levaro

    extenso da vida. A primeira a que pessoas como eu j esto trilhando,

    fazendo uso do conhecimento existente para se manter em boa forma,

    envelhecendo o menos possvel. S assim poderemos cruzar a segunda

    ponte, que ser a reprogramao da biologia, resultado da revoluo da

    biotecnologia. Descobrimos recentemente que podemos ligar ou

    desligar genes, adicionar novos, ligar enzimas e reprogramar a biologia,

    de modo a evitar doenas e envelhecimento. Em dez ou quinze anos

    vamos ter as ferramentas para superar o processo de envelhecimento e

    de muitas doenas ... e at l teremos ferramentas ainda mais poderosas

    ... os nanobolts, que sero colocados no corpo e nos mantero saudveis

    de dentro para fora (2006, p. 14).

    No geral, o que pretende os defensores do ps-humanismo, ou transumanismo,

    a busca de uma continuao e acelerao da evoluo da vida inteligente, para alm da

    sua atual forma e limites humanos, por meio da cincia e da tecnologia. Esse novo mundo,

    de acordo com Ben Goertzel (2001), viria acompanhado de uma gama de princpios

    sociopolticos, pois a maioria dos extropianos so libertrios radicais, defendendo a total,

    ou quase total, eliminao do governo.

    So algumas dessas ideias extropianas e a possvel modificao de certa

    natureza humana, via biotecnologia, que fazem vrios intelectuais compararem a

    filosofia ps-humana a uma nova eugenia, entre eles temos o filsofo alemo Jrgen

    Habermas (2004).

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    AURORA PS-HUMANA OU AURORA BIOCIBERTECNOLGICA: UMA

    VISO DO FUTURO HUMANO ATRAVS DA OBRA DE EDGAR FRANCO

    Edgar Silveira Franco1 um pensador multimdia, que tem boa parte de sua obra

    dedicada a reflexes sobre ps-humanismo, biocibertecnologia e manipulao. Ele um

    dos principais autores e criadores dos Quadrinhos Fantstico-Filosficos, um gnero

    de HQs produzido por artistas brasileiros, que pretende discutir, atravs da arte, a

    complexidade da sociedade tecnolgica moderna. O pesquisador Henrique Magalhes

    (2000, p. 18), de fato, afirma que:

    O ponto comum desses autores a produo de quadrinhos de carter

    muito pessoal, que podemos considerar como sendo poticos e

    filosficos, pois aludem s questes mais interiorizadas de cada um.

    Outro elemento marcante o rompimento com a formalidade dos

    quadrinhos comerciais, com a frequente eliminao do quadro como

    limite espacial e pelo fluxo atpico de narrativa... Certas vezes no vejo

    muita clareza nas idias que publico, fixando-me mais no aspecto

    grfico, cada vez mais sofisticado. Mas necessrio reconhecer o

    potencial desse universo to etreo, quanto mstico. Como editor,

    procuro, no entanto, privilegiar as HQs que ajudem reflexo, busca

    do autoconhecimento, ao aprofundamento das questes ligadas aos

    conflitos do ser humano... o texto deve estar vinculado imagem,

    complementando-a ou reforando-a, sem descrev-la literalmente... o

    autor trabalha sua subjetividade, aguando a percepo do leitor e

    propondo novas formas de leitura. Uma leitura centrada na imagem que

    eventualmente complementada pelo texto, que por sua vez apresenta-

    se repleto de subjetividade.

    Edgar Silveira Franco, sendo um artista multimdia, faz uso, em suas diversas

    intervenes artstico-filosficas, de histrias em quadrinhos com suporte de papel

    tradicional, HQtrnicas (suporte eletrnico), sendo um pioneiro dessa arte no Brasil, pois,

    em suas histrias, o meio eletrnico no apenas suporte para elas, mas sim parte

    integrante delas, o que torna o recurso tecnolgico interativo utilizado uma parte

    indispensvel de cada histria. Ele tambm recorre msica, performances, aforismos e

    textos diversos.

    1 Edgar Silveira Franco formado em arquitetura, com mestrado em Multimeios (Unicamp),e doutorado

    em Artes (USP), sendo atualmente professor adjunto da FAV Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal da Gois. Alm de trabalhos acadmicos, Edgar Franco tambm compositor e

    quadrinista, fazendo uso de recursos tecnolgicos, tanto na produo musical, como na de histrias em

    quadrinhos.

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    Franco se dedica especialmente a pensar a condio humana frente ao

    desenvolvimento das novas tecnologias, que permitiram a manipulao

    biocibertecnolgica do ser humano. Para tanto, desenvolve o universo ficcional Aurora

    Biocibertecnolgica ou Aurora Ps-humana como forma artstico-filosfica para discutir

    o ps-humanismo, gentica, biotecnologia, transumanismo e inteligncia artificial. Para

    o autor, a ideia inicial foi imaginar um futuro, no muito distante, onde a maioria das

    proposies da cincia & tecnologia de ponta fossem uma realidade trivial, e a raa

    humana j tivesse passado por uma ruptura brusca de valores, de forma (fsica) e

    contedo (ideolgico/religioso/social/cultural) (SANTOS e GUIMARES, 2008,

    [CP]).

    Dessa forma, Edgar Silveira Franco se utiliza de um universo ficcional imagtico

    para trabalhar suas propostas filosficas, e no textos tericos, como corriqueiro no

    pensamento ocidental o que em si j demarca a forma inovadora com que Edgar Franco

    pretende discutir os novos paradigmas filosficos e tecnolgicos que se apresentam no

    mundo contemporneo: para um novo pensamento, novos suportes de discusso textuais

    e imagticos. De acordo com Elydio dos Santos Neto (2008, p. 05),

    Fico e fico cientfica, por no apresentarem frutos de pesquisa

    cientfica (embora muitas vezes estejam fortemente embasadas nas

    construes cientficas), mas sim da especulao e da imaginao, tm

    sido sistematicamente desprezadas, sobretudo na perspectiva

    cartesiana. possvel, no entanto, pensar, por exemplo, que os

    ficcionistas colocam a imaginao a servio da reflexo que toma como

    ponto de partida os problemas gerados pela cincia e pela tecnologia de

    nosso tempo. Edgar Franco criou um universo ficcional prprio para

    pensar a humanidade, a aurora ps-humana, e ao traz-la projeta para o

    futuro, pelo poder criativo da imaginao, os problemas que estamos

    vivendo hoje. A inteno, assim compreendo, no fugir dos

    problemas. Ao contrrio. uma opo de enfrentamento dos problemas

    considerando no apenas nossa razo, mas tambm nossa sensibilidade,

    nossa intuio, nossa capacidade de seres da narrativa e da criao que

    partem da experincia existencial.

    Fazendo uso do discurso da fico cientfica e de diferentes suportes imagticos

    quadrinhos, msica, aforismos e performances , Edgar Franco pe em debate questes

    filosficas atuais ao criar um universo ficcional futurista no qual a tecnologia humana

    possibilitou avanos fantsticos no campo da gentica, robtica, inteligncia artificial e

    outras cincias correlatas. Nesse futuro hipertecnolgico, j possvel a transferncia da

    conscincia humana para chips de computador, gerando os chamados Extropianos, ou a

    mescla entre elementos tecnolgicos e biolgicos (Cyborgs). A bioengenharia avanou

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    ao ponto de permitir a hibridizao gentica entre humanos, animais e vegetais, dando

    origem aos intitulados Tecnogenticos, seres hbridos. Extropianos e Tecnogenticos so

    os ps-humanos, que ainda convivem com uma pequena parcela da populao humana

    normal, conhecida como os Resistentes.

    Alm dessas trs categorias de humanos, o universo futurista criado por Edgar

    Franco habitado por Inteligncias Artificiais (androides e redes computacionais), os

    Artlectos (neologismo de artificial e intelecto).

    O autor faz uso de referncias intelectuais diversificadas para compor seu

    universo ficcional:

    A base bibliogrfica de meu universo ficcional envolve o estudo das

    obras e artigos de artistas como Stelarc, Roy Ascott, Natasha Vita-more,

    Eduardo Kac, Mark Pauline, Orlan, H.R.Giger, Diana Domingues,

    Suzete Venturelli, Gilbertto Prado; de filsofos e pesquisadores da

    conscincia como Max More, Ray Kurzweil, Laymert Garcia, Hans

    Moravec, Rupert Sheldrake, Vernon Vinge, Lovelock, Teilhard de

    Chardin, Maturana e Varella, Stanislav Grof, Robert Anton Wilson,

    Erik Davis, Austin Osman Spare, Terence MacKenna, John Lilly, Tim

    Leary, Ken Wilber, Lee M.Silver, Steven Johnson, Helena Blavastsky,

    Leonardo Boff, entre muitos outros (SANTOS e GUIMARES, Quem

    esse Cara? Entrevista com Edgar Franco, 2008).

    Franco faz referncias e pesquisa a partir de uma gama enorme de autores no

    acadmicos, sendo que muitos so pesquisadores independentes, ligados a grupos

    esotricos ou empresas e instituies de pesquisa particulares em um leque que vai da

    fundadora da Teosofia, Helena Blavastsky, ao contraculturalista Tim Leary, a cientistas

    independentes como Rupert Sheldrake (que defende a conexo entre todos os humanos

    via campos morfolgicos) e a ps-humanistas como Stelarc e Ray Kurzweil.

    Edgar Franco afirma que esses pensadores o ajudam a criar sua obra artstica e

    entender o mundo atual:

    Para falar das bases de meu trabalho atualmente e de todas as

    investigaes tericas que envolvem minhas criaes importante

    tratar da Aurora Ps-humana, um universo ficcional futurista criado por mim inspirado por artistas, cientistas e filsofos que refletem sobre

    o impacto das novas tecnologias: bioengenharia, nanotecnologia,

    robtica, telemtica e realidade virtual sobre a espcie humana. Para

    sua criao tambm me inspirei no reflexo desses questionamentos na

    cultura pop, com o surgimento de filmes (eXistenZ, Matrix, 13 Andar,

    Gattaca) e de seitas como as dos Imortalistas, Prometestas,

    Transtopianos e Raelianos. Esses ltimos, por exemplo, crem na

    clonagem como possibilidade de acesso vida eterna, nos alimentos

    transgnicos como responsveis futuros pelo fim da fome no planeta, e

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    na nanotecnologia e robtica como panacia que eliminar o trabalho

    humano, liderados pelo pseudo-guru Ral, um hedonista que constri

    todo seu discurso a partir das previses mais otimistas da cincia,

    baseando seu pensamento em afirmaes messinicas controversas.

    (SANTOS e GUIMARES, Quem esse Cara? Entrevista com Edgar

    Franco, 2008).

    XAMANISMO E TECNOLOGIA: O CIBERPAJ

    No processo de entendimento e criao filosfico artstico de sua obra, Edgar

    Franco, em 20 de setembro de 2011, declarou-se um ciberpaj. O conceito parte das

    possibilidades do resgate do pensamento mgico dos xams, incorporado s novas

    possibilidades tecnolgicas contemporneas. A aproximao entre magia e tecnologia

    no nova na cultura ocidental, o termo tecnomago, por exemplo, utilizado em sries

    norte-americanas como Excalibur (Galen, interpretado por Peter Woodward), em

    histrias em quadrinhos e nas obras de Robert Anton Wilson (2004).

    J h alguns anos, Edgar Silveira Franco vinha publicando, primeiramente pela

    SM Editora e, posteriormente, pela Editora Marca de Fantasia, a revista em quadrinhos

    anual Artlectos e Ps-humanos. O nmero seis dessa publicao foi dedicado h expor

    sua proposta como ciberpaj, apresentando os motivos de sua proposta mstico-artstica:

    A figura do paj fascinante, ele tem a capacidade de conectar-se

    diretamente com a natureza para modificar-se a realidade. Ele mistura

    os mundos, o mundo de suas cosmogonias transcendentes ao mundo

    real e assim consegue reestruturar a realidade. Sou um ser que criou cosmogonias, mundos ficcionais e tenho utilizado gradativamente esses

    mundos para modificar a minha realidade. Atravs da mixagem de meus

    mundos com o pretenso mundo real, eu reconstruo minha realidade

    buscando simplesmente ser eu mesmo! (FRANCO, 2012, p.03).

    A proposta de Edgar Franco visa fazer uma ponte entre o artista criador ocidental

    muitas vezes alienado at mesmo quanto a sua arte, que se realiza segundo os ditames

    da tcnica e do modo capitalista de produo com o mundo criador dos pajs brasileiros.

    Assim, o autor pretende trabalhar com possibilidades artsticas que vo alm da

    reproduo tcnica (para usarmos uma terminologia de Walter Benjamim), para talvez

    conseguir retomar uma arte criativa e criadora de mundos e novas realidades para alm

    da mera produo mercantil capitalista. O paj a retomada do arqutipo do criador-

    artista primordial.

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    Orlando Villas Boas, em seu estudo A Arte dos Pajs (2000), derivado de sua

    longa vida entre os ndios xinguanos, busca compreender o paj e seu papel entre os

    indgenas. Para o autor, o ndio mais um tesofo do que um telogo. Isso porque sua

    concepo de divindade fruto de uma introspeco em que a f deve nascer da intuio

    e no da doutrinao de outrem (2000, p. 26).

    Sobre a relao entre o ndio e a realidade, Boas (2000) compreende que para o

    indgena a realidade mtica, essa realidade representa sua convico metafsica, que

    constitui a base da unidade tribal. seu mundo ancestral, um universo paralelo em que

    seus heris culturais aqueles que os criaram continuam existindo (p. 39).

    A distino entre o real (como sinnimo de Verdadeiro), to caro concepo

    cientificista ocidental, no se faz presente na cultura indgena, a narrativa no uma

    falsidade, uma cpia do real, como queria Aristteles e toda uma tradio ocidental, o

    mito a sntese de um enredo fantstico que responde as indagaes das origens dos

    seres reais e, sobretudo, dos valores, regras e conhecimentos elementares da criatura

    (BOAS, 2000, p. 39).

    J o paj constitui o elo entre o sobrenatural e a aldeia (p. 40), nesse sentido

    ele quem faz o elo entre o mundo da narrativa mtica e o cotidiano; um tesofo, dando

    sentido e estabelecendo contato entre dois mundos, que, na realidade, apenas um,

    separados mais pelas limitaes culturais epistemolgicas desenvolvidas pelo prprio

    homem do que por uma pretensa linha de realidade divisria.

    Para Douglas Gillette (2000), o xamanismo um poderoso processo

    psicolgico e espiritual para recriar o cosmo e transformar a morte em vida em todas as

    dimenses da realidade!, ou uma tecnologia da ressurreio. Ao utilizar a palavra

    tecnologia, Gillette (2000) recoloca o xamanismo, ou pajelana, em novas dimenses,

    que no o da superstio ou mentira, mas no sentido de conhecimento, episteme.

    Terence McKenna (1995), em sua definio de xamanismo, tambm recorre a

    uma semntica da tcnica:

    O xamanismo o uso de tcnicas arcaicas de xtase que foram

    desenvolvidas independentemente de qualquer filosofia religiosa tcnicas empiricamente comprovadas e experimentalmente

    operacionais, que produzem o xtase O xtase a contemplao do

    Todo. Por isso quem experimenta o xtase quem contempla o Todo volta refeito poltica e socialmente, porque teve uma viso mais ampla (p. 31).

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    Essa reconstruo do eu descrita por Edgar Franco atravs das 10 chaves da

    transmutao que marcaram sua transformao em um ciberpaj: o sereno, o momento, o

    equilibrado, o sincero, o delicado, o amoroso, o selvagem, o complementar, a renovao

    e o renascido (FRANCO, 2012).

    Ao entendermos o xamanismo como tecnologia, podemos compreender melhor

    a proposta de Edgar Franco ao inserir o elemento ciber ao termo paj: o prefixo ciber,

    da ciberntica, foi agregado ao termo paj porque ele incorpora as novas possibilidades

    tecnolgicas como um campo amplo para os exerccios mgicos de conexo entre mundos

    que o ciberpaj promove (2012, p. 03).

    Se entendemos o xamanismo, ou pajelana, nos termos de Douglas Gillette

    (2001), Terence Mckenna (1995) e Orlando Villas Boas (2000), compreendemos que este

    no uma religio, ou processos mgicos de culturas supersticiosas e atrasadas, mas uma

    tecnologia espiritual viva e possvel de ser lida, relida e transformada por cada praticante,

    devido ao seu carter no teolgico e no dogmtico. nesse sentido que podemos

    compreender a ciberpajelana proposta por Edgar Silveira Franco.

    HISTRIAS EM QUADRINHOS, XAMANISMO E TRANSUMANISMO

    Hightech uma histria em quadrinhos eletrnica que pode ser lida no CD-ROM

    interativo que acompanha o livro HQtrnicas: do suporte de papel rede Internet (2004).

    Nessa histria, os altamente avanados ps-humanos recorrem a um paj para enfrentar

    uma crise em sua sociedade. Ao ser inquerido por um estudante por que, em momentos

    de crise, essa sociedade hipertecnolgica recorre a um paj, este responde ao estudante

    que isso ocorre porque o paj domina uma tecnologia superior a nossa. Segundo Edgar

    Franco,

    Nessa curta histria uso como elemento chave um ndio mais especificamente um xam , o ltimo existente no planeta, para refletir sobre questes como a destruio das culturas ditas inferiores e a perda

    de conhecimentos imensurveis que advm dessa destruio (p. 20).

    O autor salienta ainda o propsito de utilizar o termo high-tech no para a tcnica

    dos ps-humanos, mas para aquela dos xams, da intuio. Nessa histria, est marcada

    a posio que Franco desenvolveria mais tarde em sua prpria vida como artista/ciberpaj,

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    uma viso do xamanismo como uma tecnologia da intuio, que no substitui, mas que

    incorpora novas tecnologias a sua proposta. Afinal, podemos chegar a uma definio do

    ciberxamanismo como um amlgama entre tecnologias antigas e novas, e no uma

    mistificao da tcnica.

    J na revista Artlectos e Ps-Humanos 03 (Editora Marca de Fantasia, 2009),

    Franco retoma o tema do xamanismo na histria Gnesis Revisto, em que, inclusive, cita

    Terence Mackenna e prope a reconexo do homem com o universo atravs da realidade

    vegetal. Em Artlectos e Ps-Humanos 04 (Editora Marca de Fantasia, 2010), na histria

    Em Louvor aos Biociberxams, Franco faz uma crtica aos limites da cincia cartesiana e

    prope que, diante de seus limites, agora tem, na volta transcendncia e ao estudo de

    antigas tradies, como o xamanismo, uma possibilidade de ir muito alm.

    As reflexes postuladas por Edgar Franco em suas HQs podem nos levar ao

    desenvolvimento de uma nova filosofia ciberntica, para alm do extropianismo atual,

    um ps-humanismo que valorize muitas conquistas que ns, seres humanos, alcanamos

    durante nossa evoluo. Pensamos no transumanismo no como uma total ruptura

    evolutiva, mas como uma continuao de nossa evoluo natural.

    Franco, em entrevistas, mas tambm em algumas histrias, como Neomaso

    Prometeu, crtico quanto ao uso da tecnologia e da gentica sem propsito, ou com

    propsitos destrutivos:

    Vivemos em um mundo beira do colapso total ou em vias de realizar

    o salto quntico que levar a humanidade a um novo patamar de

    conscincia. Desde a Revoluo Industrial, do advento da viso

    cartesiana-materialista da vida, a nossa espcie desconectou-se da

    totalidade, passamos a nos entender como partes desconectadas da

    natureza e desenvolvemos um sistema de vida completamente egosta e

    egocentrista. Toda a destruio do planeta parte do princpio de que

    somos criaturas independentes dele, esquecemos que, na verdade,

    somos todos partes de um grande sistema vivo chamado Gaia! O

    monetarismo desenvolveu tambm uma busca desastrosa pelo "ter", a

    felicidade passou a depender de objetos e esse sistema ensinou-nos no

    s a desprezar Gaia, mas desprezarmos e competirmos com nossa

    prpria espcie. A publicidade a "magia negra" do nosso tempo, pois

    ela mobiliza bilhes de seres humanos e trabalha em favor desse sistema

    egolucrativo, e a publicidade trabalha com imagens "belas". Veja s,

    alguns bancos lucram milhes e ajudam a explorar populaes

    empobrecidas, mas fazem propagandas com famlias felizes em parques

    verdejantes! Montadoras de veculos (que esto pesteando o planeta

    com a praga egosta dos flicos carros) mostram jovens e belos casais

    dirigindo por ruas vazias e parques lindos (mentira deslavada!).

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    Publicidade bela e limpa tambm utilizada por sistemas dogmticos,

    sobretudo as religies.2

    Ainda que possamos encontrar, nas histrias em quadrinhos de Edgar Franco,

    crticas ao ps-humanismo, o autor no deixa de ser um defensor do ps-humanismo,

    como enfatiza:

    os avanos tecnolgicos produziro uma nova conscincia

    transcendente, levando a humanidade uma reconexo absoluta com o

    cosmos - nesse momento seremos ps-humanos, ultrapassaremos tudo

    aquilo de podre que o egocentrismo e o esquecimento da viso sistmica

    causaram a Gaia e a ns mesmos -, seremos uma nova ps-

    humanidade.3

    Nesse caso, o ps-humanismo no apenas uma filosofia materialista hedonista,

    uma retomada a um culto Ubermensch de elitistas nietzcheanos do sculo XXI, como

    descreve Bem Goertzel (2001), mas uma possibilidade de transcendncia tcnico-mstica.

    Edgar Franco continua, afirmando a

    possibilidade de alcanarmos um desejvel novo patamar de

    conscincia transcendente atravs de processos tecnolgicos ligados a

    ancentrais processos de conexo com o universo. Acho que, lembrando

    o artista Roy Ascott e o etnobotnico Terence McKenna, devemos aliar

    as possibilidades de trs realidades: a realidade validada (nossa vida

    material, baseada na percepo dos 5 sentidos), a realidade vegetal

    (baseada na ingesto de entegenos - as drogas de poder que nos fazem

    vislumbrar nossa dimenso universal, vises de conexo que j existiam

    desde a ancestralidade e foram esquecidas e renegadas pelo

    cartesianismo-egosta-monetarista) e finalmente as novas realidades

    virtuais (a possibilidade de criao de mundos simulados e a expanso

    da conscincia in silcio). Somar uma vivncia contnua dessas 3

    realidades expresso artstica pode levar-nos a um outro patamar

    como espcie4.

    Nesse caso, a proposta de Edgar Franco, tambm uma filosofia ps-humanista,

    de modificao, mas mais direcionada modificao da conscincia. Para tanto, o homem

    pode utilizar-se tanto de entegeneos (realidade vegetal) como de tecnologia, inclusive

    2 Posthuman Tantra: Entrevista com Edgar Franco ao site italiano Alone Music, em 21/06/2009.

    Verso em portugus disponvel em: O artista multimdia Edgar Franco entrevistado em site

    italiano de msica. Trad. Edgar Silveira Franco. Disponvel em:

    http://infernoticias.blogspot.com/2009/06/o-artista-multimidia-edgar-franco-e.html. Acesso em:

    23/06/2009.

    3 Ibid.

    4 Ibid Idem.

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    1

    com a expanso, ou fuso, da mente humana com silcio. Essa filosofia ps-humana fica

    mais clara nas histrias em que Edgar Franco tem pretenses tecnognsticas, j

    comentadas neste texto.

    A tecnognose ou tecnoxamanismo, uma busca por fundir o cientfico com o

    espiritual em um mesmo cenrio, como descrito nas histrias HighTech e Em Louvor aos

    Biociberxams de Edgar Franco. Na segunda histria, fica patente que atravs da juno

    entre essas duas formas de conhecimento, xamanismo e cincia, que o homem atingir o

    verdadeiro conhecimento. Nesse cenrio, Edgar Franco no est sozinho, pois diversas

    obras publicadas recentemente reafirmam uma nova postura intelectual tecnognstica.

    Segundo Erick Felinto (2004),

    Em obras que vo da crtica literria fsica, passando pela filosofia e

    pela biologia, o imaginrio mtico se exprime com um vigor inesperado.

    O que dizer, pois, de um livro como The Physics of Immortality (1995),

    do respeitado fsico Frank J. Tippler, onde se prope estabelecer

    profundas relaes entre a cosmologia moderna e as tradicionais vises

    religiosas sobre a divindade e a ressurreio dos mortos? Ou do libelo

    do igualmente respeitado hebrasta Richard Eliott Friedman, The

    Disappearance of God (1995), no qual se sugere uma nova forma de

    religio universal, misto paradoxal de cincia, misticismo e

    nietzschianismo? A lista pode continuar, passando pelo espantoso

    panfleto de Harold Bloom, Omens of Millennium (1996), em que a

    experincia esttica e a crtica literria se transformam no fundamento

    para a proposio de um gnosticismo renovado que, segundo Bloom, j

    estaria mesmo na base das grandes tradies religiosas norte-

    americanas; ou ento o curioso La Structure Absolue (1965), do filsofo

    Raymond Abellio, ex-aluno dos clebres seminrios de Alexandre

    Kojve, agora convertido em gnstico proponente de uma filosofia

    onde a fenomenologia de Husserl se encontra com a mstica judaica e

    com as tradies religiosas da ndia (p. 15-16).

    nesse cenrio que Edgar Silveira Franco prope um novo transumanismo, que

    valoriza tanto as conquistas tecnolgicas do ocidente moderno quanto a tecnologia

    xamnica milenar. O cineasta, poeta, quadrinista e psicomago Alejandro Jodorowski,

    criador das sries em quadrinhos Inca, Metabares e Brgia, apresenta ideias similares a

    de Edgar Silveira Franco. Para Jodorowski, a gentica sagrada (2009, p. 225),

    absolutamente imprescindvel ao possibilitar uma nova humanidade superdotada e

    longeva: uma mutao da humanidade para algo infinitamente melhor do que somos

    agora (2009, p. 226). Isso no significa cair nos erros da eugenia, que no era uma

    tentativa de busca por melhora na condio humana, mas o da segregao biolgica com

    base no conceito de raa (SMANIOTTO, 2012).

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    A possibilidade de uma segregao biolgica dos modificados com relao aos

    no modificados, discutido em filmes como Gattaca, de Andrew Niccol, pelo prprio

    Edgar Franco e outros autores de fico cientfica, com o avano da tecnologia gentica,

    no objeto deste texto. Mas, como salienta Jodorowski, no estamos falando de uma

    raa superior, mas de uma humanidade superior:

    Como viveremos muito mais tempo, ser um prazer quando tivermos

    trs mil anos de vida, porque ficar velho estar com o cosmos e com o

    universo. Ns vamos sentir o universo. A vida um presente divino.

    Estar vivo um presente inimaginvel. Ns temos que trabalhar para

    melhorar esta maravilha (2009, p. 227).

    CONSIDERAES FINAIS

    Em Jodorowski, d-se, tambm, o encontro entre tcnica, magia e arte, assim

    como para Edgar Franco. nessa confluncia, a qual ns poderamos acrescentar a

    filosofia, que podemos pensar em um transumanismo tecnognstico que no deixe de

    pensar nos benefcios que a bioengenharia, telemtica e outras tecnologias podem

    oferecer, tais como: prolongamento da vida saudvel; aumento de elementos da cognio

    como a memria, concentrao e energia mental; melhoramento do bem estar emocional;

    cura de doenas genticas; etc. E, somado a estas conquistas da cincia: a tecnologia e a

    sabedoria xamnica e artstica.

    O transumano no , ento, um ubermench nitzchiano elitista, a criar uma nova

    casta eugnica, mas sim um novo patamar possvel na evoluo humana em busca de uma

    compreenso maior de sua prpria existncia e de seu lugar no cosmo. parte da busca,

    no o ponto de chegada.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    ________. Artlectos e Ps-Humanos 02. Ja, SP: Editora SM, 2007.

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