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50 TEXTOS 

DE 

HISTÓRIA DO BRASIL

Seleção e organização DEA RIBEIRO FENELON

EDITORA HUCITECSão Paulo, 1990

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Portugal e o Brasil no Quadro da Modernidade Européia

4. Causas da expansão port uguesa no mundo 

Desde as últimas décadas do século passado tem cha-mado a atenção dos historiadores a prodigiosa expansão dagrei lusitana, iniciada após o advento da dinastia de Avize continuada durante centúrias, que irrompeu em todos oscantos do globo numa corrente ininterrupta de navegadores eguerreiros; de comerciantes e colonizadores, de missionáriose aventureiros. Estas hostes de homens fortes espalharam porregiões ainda por devassar seu sangue e •sentimentos, suascrenças e línguas, de que deixaram impressões indeléveis;pioneiros da era fecunda do Renascimento nas letras e artes,contribuíram poderosamente para a civilização, introduzindonovos processos na arte de navegar, revolucionando concep-

ções geográficas, enriquecendo o cabedal científico e reve-lando as condições sociais de muitos povos exóticos [ . . . ] Nãome disponho agora a discorrer de qualquer destes feitos, porinteressantes que se antolhem, e apenas a algumas reflexõessobre um dos vários problemas que suscitam, o das suascausas primárias.

Todos quantos as estudaram concordam em lhes remon-tar os efeitos a 1415, quando da primeira expedição ultra-marina dos portugueses, coroada com a tomada da cidademarroquina de Ceuta. Acerca das causas deste ao tempo con-siderável esforço divergem as opiniões, que num livro re-cente Vitorino Magalhães Godinho analisou com penetração,à luz do ambiente político e religioso de Portugal de então,e do estado econômico da Europa no século XIV e na pri-

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meira metade do seguinte. As causas invocadas do feito guer-

reiro foram zelo religioso, energia bélica, conveniências po-líticas e de segurança e esperança de proveitos materiais:e elas teriam atuado na subseqüente expansão, embora nemtodas contínua nem simultaneamente, como vamos ver.

Oliveira Martins faz do Infante D. Henrique a alta fi-gura representativa do primeiro meio século da nossa dis-persão no mundo. Inflamado em fervor cristão e ansioso porguerrear infiéis, distinguiase em que nutria e pôs em ação

planos de larga envergadura. Arrancar aos Mouros o baluartede Ceuta, com ajuda de valorosos companheiros de armase absorver as riquezas ali afluentes do Levante e do interiorafricano, eram serviços a Deus e ao reino; e mais de enca-recer a conquista de todo o Marrocos, em que constantementepensava. Por outro lado, promover descobrimentos na costado continente negro permitialhe apossarse do tráfego aurífero de seus sertões, e não só alcançar por essa costa os do-

mínios etiópicos do opulento preste João das Índias, comotambém atinar com o caminho marítimo para este empóriodas apetecidas especiarias. Exaltação da fé cristã, exercício dasarmas, enriquecimento do reino e cobiça do comércio oriental,tais os móveis que à empresa de Ceuta e ao período inicialda expansão portuguesa assina o brilhante historiador deOs Filhos de D. João I.

Esta tese, da qual nasceram outras, tem pontos vulnerá-veis. Conta o cronista Zurara que D. João I, depois de to-mada Ceuta, pensava em apossarse doutras praças marro-quinas, e analogamente decerto pensava o Infante; mas nãopodia ser sua idéia fixa subjugar todo o populoso e aguerridoMarrocos, pois sabia da grande desproporção ao fim dos meiosdisponíveis. Ê certo que a guerra era benvinda aos cava-leiros portugueses, e tanto mais quanto com os conseqüentessaques e as mercês régias esperadas poderiam atenuar o de-créscimo ao tempo acentuado de suas rendas senhoriais. As

guerras a infiéis eram reputadas serviço a Deus, mas estefator era secundário em face doutras vantagens que delaspodiam advir: ora na de Ceuta bem como nas seguintes emMarrocos, havia a ganhar terras, tributos, rapinas e mercês;coisas mais atendíveis do que chacinar mouros em nome deDeus. Ceuta era farta de produtos ricos e com seu saque fol-garam os conquistadores, mas depois dele cessou quase por

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inteiro o afluxo de riquezas, de sorte que elas teriam sidoum estímulo inicial, mas não o foram permanente da expan-

são africana; continuou fechado o acesso ao ouro e a outrasmercês do Sudão, que mais tarde o Infante tentou, aliás comfraco êxito, atrair à costa e daí carrear ao reino. A empresados Descobrimentos teve esta tentativa por objetivo, mas nãoachar a via marítima da índia Oriental, como quer uma tra-dição errônea; e apenas se lhe deve atribuir o acessório debuscar caminho terrestre para Índia etiópica do preste João.

Antônio Sérgio, postergando os impulsos religioso e bé-

lico da conquista de Ceuta, considera preponderantes asaspirações da influente burguesia comercial do reino, en-grandecida por sua decisiva cooperação na revolução queentronizou D. João I: foi ela que lhe sugeriu o feito militar,de cujo êxito confiava auferir grande lucro. Entende o ilustrepublicista que a posse naquela praça, ao passo que permitiaentravar a pirataria mourisca nos mares vizinhos, altamentenociva ao comércio marítimo, abria o farto celeiro marroquinoa Portugal, pobre de trigo, e facultarlheia entrada nas vias

do ouro sudanês e do fascinante Oriente, obstruídas por po-tências islamitas.

Reparo todavia em que Ceuta não era centro exportadorde trigo, que vinha de portos marroquinos do Atlântico, paraos quais havia então suficiente navegação; de modo que se-ria possível obter o cereal em falta por pacíficas permutasmercantis, sem necessidade de arriscar o assalto a um fortereduto inimigo. Demais suponho bastante perspicazes os

burgueses reinóis para desconfiar de que as correntes comer-ciais para a Ceuta mourisca continuariam para a Ceuta cristã:era de prever que se escoassem para portos vizinhos do Me-diterrâneo, e assim sucedeu, pois quase estancou a fonte ceptense de riquezas levantinas e sudanesas. Estas objeções levamme a crer, contra o parecer de V. Godinho, que a únicavantagem apreciável que Ceuta podia trazer à economia por-tuguesa era reprimir a guerra de corso dos Mouros, e faci-litar a portuguesa, praticada com não menor assiduidade que

a paralela. Joaquim Bensaúde retomou a tese de Oliveira Martins,

diminuindo nela a parte dos fatores econômicos e exageran-do a da combatividade religiosa. O insigne historiador danossa antiga ciência náutica considera o Infante D. Henrique

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o principal fautor da empresa de Ceuta e do nosso espargimento no mundo. Inteiramente isento de ambições materiais,seu ideal de vida foi o dum cruzado medieval, imbuído deheroísmo religioso ao serviço da cristandade ameaçada pelopoder crescente dos Turcos, contra os quais a Santa Sé, emsucessivos apelos, debalde concitava os príncipes europeus.Era duplo seu plano em defesa da fé: dum lado apoderarsede Ceuta, chave do Mediterrâneo que dominava a via peloLevante das índias, bem como doutros postos avançados noMarrocos atlântico, erguendo deste modo uma forte mura-

lha contra ataques aos cristãos da Península Ibérica; e doutrolado tentar a circunavegação do continente africano até àÍndia Oriental, não com vista cobiçosa nas suas especiarias,mas para ali esmagar o Islame, atacandoo pela retaguarda.Esta concepção padece de vícios, cronológicos e outros. Em1415 não cuidava ainda o príncipe de descobrimentos, co-meçados modestamente uns seis anos mais tarde, que sãototalmente independentes de conquistas de praças em poder

de infiéis, e não se inspiraram em crenças religiosas. O In-fante, ao mandar caravelas ao longo do litoral africano, nãocogitava de alcançar por mar a Índia Oriental, pois não estavaseguro de ser navegável a zona tórrida nas proximidades daequinocial, que talvez não seria possível ultrapassar. Tal pro-

 jeto só o poderia conceber o príncipe mais tarde, se realmen-te o concebeu (o que é inacreditável); mas não o fez comvista ao perigo turco, que, embora já se desenhasse no Orien-

te europeu, só se acentuou com a queda de Constantinopolaem 1453, 38 anos após a de Ceuta. Em verdade o infantenão se preocupava com os infiéis turcos, e apenas com os in-fiéis marroquinos, cujas terras queria tomar pela força dasarmas. Como quer que fosse, porém, era insensato o planode sustar a invasão da Europa cristã pelas hordas otomanas,batalhando com as sarracenas da Índia Oriental, porque talnão poderia suceder antes de decorridos longuíssimos anos,durante os quais a cristandade cairia em poder dos inféis,se não tivesse melhor defesa que a suposta portuguesa.

 Jaime Cortesão vê na conquista de Ceuta o primeiropasso na execução dum vasto plano, a um tempo religioso,político e econômico. A posição dessa praça facilitava a re-pressão da pirataria mourisca nos mares vizinhos; e sua posse,seguida da doutras praças marroquinas, permitiria aos Portu

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gueses desafiar os ataques muçulmanos à cristandade dapenínsula hispânica, e mais ainda, coarctar a expansão que

os Castelhanos planejavam à mauritânia, à qual se arrogavamdireitos históricos. Os descobrimentos foram de início anima-dos pela esperança de desviar para o reino o curso auríferovindo do Sudão, mas depois alargoulhès o âmbito o receioduma invasão da Europa cristã pelos Turcos. Ele inspirouao Infante o projeto genial de ferir de morte o Islame, sola-pando seus alicerces econômicos: pensou em arrebatarlheos monopólios de ouro africano, o que já começara a fazer,e das especiarias orientais, e para tanto diligenciou circundara África até a índia gangética. Esta síntese sedutora é de-fensável na parte religiosa e política, se bem que não fosseprovável qualquer arremesso dos Mouros contra a Península,mas apenas contra as praças conquistadas pelos Portugueses:mas ao plano indiano de D. Henrique, que ele não ideounem podia idear, já opus objeções a que não espero réplicavitoriosa. Tal plano pertence a D. João II, nem o atribuem aoutro dirigente todos os autores anteriores a Damião de Góis.

Da precedente exposição parece assisado concluir quea fase henriquina da expansão portuguesa teve por incentivosas aquisições territoriais, a coberto de zelo religioso e asso-ciadas a interesses políticos e a alguns econômicos. Seus efei-tos continuaram após o traspasse do Infante em 1460. Asconquistas prosseguiram na África, em Alcácer Ceguer, Aráõlae Tânger no reinado de D. Afonso V, e no de D. Manuelem Safim, Azamor e noutros lugares: elas culminaram emterras orientais e americanas. O fator econômico foi repre-

sentado no comércio de escravos, marfim, malagueta e ouro,que abundava na Mina, ao que se veio juntar o riquíssimomanancial das especiarias da índia e das Molucas.

Observo que até o termo do século XV este movimentodispersivo de gentes e de energia deslocou do reino umapequena parte da população: foi o êxodo apenas duns mi-lhares de homens de armas e duns centos de marítimos, osci-lando em idas e vindas; mas a descoberta das índias e do

Brasil provocou duas grandes correntes migratórias, umainicialmente vultuosa mas progressivamente decrescente parao Oriente, outra para o Novo Mundo, a princípio modestamas com o tempo engrossada a proporções torrenciais. Àque-la seduziu a perspectiva de fácil riqueza e também o relaxe

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à distância da disciplina social da metrópole, e esta a ânsia

de liberdade e a esperança de simples bemestar, que nãofruía na pátria: a primeira, da qual a maior parte aspiravaa regressar amealhada de abundantes bens, conduziu a umimpério de fastos gloriosos, mas em Breve deliquescente; asegunda fixouse na nova terra, e dela nasceu uma grandenação, de prometedor futuro.

S i l v a , Duarte Leite Pereira da. História dos Descobrimentos: Co- letânea de Esparsos,  organização, notas e estudo final de Vitormo Ma-

galhães Godinho, Lisboa, Ed. Cosmos, 1958, pp. 17—22.

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5. O comércio da Áf r i ca 

Ê portanto de evidência que, no meio de aparente pros-peridade a nação empobrecia. Podiam os empreendimentosda Coroa ser de vantagem para alguns particulares. Assim

os feitos de África rendiam tenças e graças à fidalguia; como tráfico da Guiné enriqueciam certos mercadores; mas, paraesses lograrem proveitos, recaía sobre os povos o fardo dosimpostos, e o agravo das levas para o serviço militar, queum estado perpétuo de guerra exigia, ao mesmo tempo queno país escasseavam os braços laboriosos. Sucedeu, porém,que o ganho de alguns, poucos, depressa se tomou, comosempre, sedução para todos. E foi como a empresa de África,

aventura de ocasião e local derivou para o imperialismo, es-tendido a quatro partes do mundo. Primeiro, tentando alargara ocupação, o que a resistência da mourama, e a exigüidadedos recursos empregados, não consentia. Depois, renunciadoo propósito, levando domínio, por avanços sucessivos, a terrasdistantes para exploração comercial.

Os achados do metal precioso e da especiaria, na costaafricana, ministraram aos príncipes a norma da política, trans-

formaram a mente do povo, dando às suas aspirações outrameta, e divergiram para vias novas, de considerável efeitono mundo, a corrente da história.

Até aí os portugueses tinhamse empregado em consti-tuir a nacionalidade, usando as armas para adquirir terras,despojos, tributos, cativos; agora a emulação de Veneza, opu-lenta pelo comércio, impeliaos ao remoto Oriente. Já o mo-

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nopólio fora quebrado, e a pimenta da África concorria coma especiaria da Índia. Tão estimada quanto os metais pre-ciosos, a pimenta era na Europa objeto das maiores cobiças.Sirva de exemplo este fato: em 1378, precisando a repúbli-ca de Gênova de tomar por empréstimo uma soma avultada,propunha o reembolso em ouro ou pimenta, à vontade doscredores. Em Portugal, o êxito da competência pela malagueta,incitava a continuar nos esforços, e a buscar a posse total dotráfico.

De escala em escala torneouse a ponta de África, além

da qual estava a terra do ambicionado produto, e também,ao que se conjeturava, tesouros de pedrarias e metais pre-ciosos. Nesta época tinha acabado de se integrar a monar-quia nos moldes do moderno absolutismo: a nobreza sub-metida ao nuto régio; os municípios domados nas suas oca-sionais manifestações de independência; a nação, vasta pro-priedade territorial, que o soberano a seu capricho explorava.Esta, como diz Alberto Sampaio — “uma casa de negócio,cuja prosperidade dependeria tanto de condições fortuitas

como da habilidade do patrão”. Foi a obra de D. João II,que teve a dita de ser conjuntamente hábil e favorecido dascircunstâncias.

O dono da nação era agora comerciante, como tinhasido em outros tempos lavrador. A transição não se podedizer repentina. Já no reinado de D. Fernando se exportavampor conta da coroa vinhos e outras mercadorias, importandoseas de que havia necessidade: é provável que objetos de luxo,além de armamentos. Reprovaramlhe as Côrtes a pratica,porque os gêneros exportados não eram dos que o rei tinhapróprios, produtos de rendas e impostos, mas adquiridos porcompra e a crédito, achandose em atraso os pagamentos.A exemplo do soberano, os principais fidalgos não desdenha-vam os lucros do comércio, comprando os gêneros de con-sumo para revender, e provocando a carestia. Os povos, quei-xosos do açambarcamento, increpavamnos de se haveremtodos tomado mercadores e regatões.

A tendência avivouse com o impulso dado à navegaçãopelos, descobrimentos. No reinado de D. Afonso V, o InfanteD. Fernando, o Duque de Bragança e vários fidalgos, sãoarmadores de barcos de comércio, em que mandam a Flandresvinho e outras cargas [...]

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No reinado de D. Manuel, a transformação tinhase com-

pletado. A corte era verdadeiramente uma grande casa denegócio, e a geral aspiração consistia em haver parte, maiorou menor, nos lucros da Índia. A pimenta que trariam asnaus, o preço porque havia de venderse em Flandres, comque novas conquistas poderia alargarse a área das transa-ções, era o em que os governantes punham o pensamento, eos cortesãos sequiosos a esperança. Das altas esferas a idéiaobsessora comunicouse à nação inteira, produzindo aqueleestado de ilusão coletiva a que chamaram  fumos da Índia. Designação justa, porque seu objeto do fumo tinha a incon-sistência, e dele veio a ter a duração efêmera.

Entretanto, mudadas as condições econômicas, alteravamse os costumes, e modificavase a fisionomia da nação, o quedava cuidado aos rabugentos, saudosos do estado antigo [ . . . ]

Assim como Gil Vicente na Exortação da guerra, verberando o luxo e exaltando a índole belicosa dos antepassados.

Estamos em 1513, e o gosto pelo fausto, que invadiu a corte,desagrada ao poeta, porque tudo isso, diz, é gastar sem pres-tar   [ . . . ]

Não se pode melhor estabelecer o contraste das duasépocas. A tradição era a do português sóbrio e belicoso, ho-mem de armas e não chatim. O que nem sempre correspondiaà realidade. Mas, sem dúvida que o sentido genovês da vida,como Gil Vicente o entendia, se apossara da nação. Os ge

noveses eram os grandes usurários da época; em Lisboa haviamuitos, ocupados no comércio. A tragicomédia da Exortação da guerra  celebrava a expedição de Azamor, que ia fazersesem ter por móvel o intuito comercial, como as da Índia. Igualpensamento ao do épico, mais tarde, no discurso do velhodo Rastelo.

Nem este nem a Pantasiléia da Exortação  puderam serouvidos. Os tempos exigiam outra política, de resultados mais

palpáveis. Por ela os reis buscavam aumentar o seu poderio,e contentar as ambições da classe da nobreza, de antiga emoderna estirpe, que terminada a conquista do território, naPenínsula, não tinham dentro dele adequada satisfação.

Az e v e d o ,  João Lúcio de. Época d e Por t ugal Econômi co: Esbo- ços de Hi stóri a,  Clássica Editora Lisboa, 1929, pp. 83—87

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6. A cari a de Pero Vaz Caminha 

E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo,até que terçafeira das Oitavas da Páscoa, que foram 21 diasde abril, topamos alguns sinais de terra, estando (distantes)da dita Ilha, — segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou670 léguas — os quais (sinais) eram muita quantidade dehervas compridas, a que os mareantes chamam botelho,  eassim mesmo outras a que dão o nome de rabos de asno.

E quarta feira seguinte, pela manhã, topamos aves a quechamam  furabuchos!  Neste mesmo dia, a horas de véspera,houvemos visto a terra! A saber, primeiramente um grandemonte, mui alto e redondo; e de outras serras mais baixasao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qualmonte alto o Capitão pôs nome o  Monte Pascoal,  e a terra

 A Terra de Vera Cruz!Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças.

E ao sol posto umas seis léguas da terra, surgimos âncoras,em dezenove braças — ancoragem limpa. Alí ficamonos todaaquela noite. E quintafeira, pela manhã, fizemos vela e se-guimos em direitura à terra, indo os navios pequenos diante/ por dezessete, dezesseis, quinze, quatorze, doze, nove bra-ças — até meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras,em frente da boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragemàs 10 horas, pouco mais ou menos.

E dali avistamos homens que andavam pela praia, uns

sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos que che-garam primeiro.

Então lançamos fora os batéis e esquifes. E logo vieramtodos os capitães das naus a esta nau do Capitãomor. E alifalaram. E o Capitão mandou em terra a Nicolau Coelhopara ver aquele rio. E tanto que ele começou a irse paralá, acudiram pela praia homens, aos dois e aos três, de ma-neira que, quando o batei chegou à boca do rio, já lá estavam

dezoito ou vinte.Pardos, nús, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas

vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinhamtodos rijamente em direção ao batei. E Nicolau Coelho lhesfez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas

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não pode deles haver fala nem entendimento que aprovei-tasse, por o mar quebrar na costa. Somente arremessoulhes

um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levavana sua cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arre-messou um sombreiro de penas d’ave, compridas, com umacopazinha pequena de penas vermelhas e pardas como depapagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhasbrancas, miúdas que querem parecer de aljofar, as quais peçascreio que o Capitão manda a Vossa Alteza. E com isto sevolveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais

fala, por causa do mar [ . . . ]E velejando nós pela costa, na distância de dez léguasdo sítio onde tínhamos levantado ferro, acharam os ditosnavios pequenos um recife com um porto dentro, muito bome muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteramsedentro e amainaram. E as naus foramse chegando, atrás deles.E um pouco antes de solposto amainaram também, talveza uma légua do recife, e ancoraram a onze braças.

E estando Afonso Lopez, nosso piloto, em um daquelesnavios pequenos, foi, por mandado do Capitão, por ser ho-mem vivo e destro para isso, meterse logo no esquife a son-dar o porto dentro. E tomou dois daqueles homens da terra

3ue estavam numa almadia: mancebos e de bons corpos. Umeles trazia um arco, e seis ou sete setas. E na praia andavam

muitos com seus arcos e setas; mas não os aproveitou. Logo, já de noite, levouos à Capitânia, onde foram recebidos commuito prazer e festa.

A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, debons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nús, sem co-bertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixarde encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acercadisso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço debaixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de compri-mento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso dealgodão, agudo na ponta como um furador. Metemnos pela

parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre obeiço e o dente é feita a modo de roquedexadrez. E trazemno alí encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põeestorvo no falar, nem no comer e beber.

Os cabelos deles são corredios. E andavam tosquiados,de tosquia alta antes do que sobre pente, de boa grandeza,

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raspados todavia por cima das orelhas. E um deles traziapor baixo da covinha, de fonte a fonte, na parte de trás, uma

espécie de cabeleira, de penas de ave amarela, que seria docomprimento de um côto, mui basta e mui cerrada, que lhecobria o toutiço c as orelhas. E andava pegada aos cabelos,pena por pena, com uma confeição branda como cera (masnão era cera), de maneira tal que a cabeleira era mui re-donda e mui basta, e mui igual, e não fazia mingua maislavagem para a levantar.

O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em umacadeira, aos pés uma alcatifa por estrado; e bem vestido,

com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço. E Sanchode Toar, e Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e AiresCorrea, e nós outros que aqui na nau com ele imos, sentadosno chão, nessa alcatifa. Acenderamse tochas. E eles entra-ram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de (querer)falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou ocolar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão emdireção à terra, e depois para o colar, como se quisesse dizernos que havia ouro na terra. E também olhou para um cas-tiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e nova-mente para o castiçal, como se lá também houvesse prata!

Mostraramlhes um papagaio pardo que o Capitão trazconsigo; tomaramno logo na mão e acenaram para a terra,como se os houvesse ali.

Mostraramlhes um carneiro; não fizeram caso dele.Mostraramlhes uma galinha; quase tiveram medo dela,

e não lhe queriam por mão. Depois lhe pegaram, mas comoespantados.

Deramlhes alí de comer: pão e peixe cozido, confeitos,fartens (bolos), mel, figos passados. Não quiseram comerdaquilo quase nada; e se provaram alguma coisa, logo alançavam fora.

Trouxeramlhes vinho em uma taça; mal lhe puseram aboca, não gostaram dele nada, nem quiseram mais.

Trouxeramlhes água em uma albarrada, provaram cada

um o seu bochecho, mas não beberam; apenas lavaram asbocas e lançaramnas fora.Viu um deles umas contas de rosário, brancas; fez sinal

que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lançouas ao

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pescoço; e depois tirouas e meteuas em volta do braço, eacenava para a terra e novamente para as contas e para ocolar do Capitão, como se dariam ouro por aquilo.

Isso tomavamos nós nesse sentido,! por assim o desejar-mos! Mas se ele queria dizer que... levaria as contas e maiso colar, isto não queríamos nós entender,! porque lho nãohaviamos de dar! E depois tomou (a entregar) as contas aquem lhas dera. E então estiraramse de tostas na alcatifa,a dormir, sem procurarem maneiras de encobrir suas ver-gonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas es

tavam bem'raspadas e feitas.O Capitão mandou por baixo da cabeça de cada um

seu coxim; e o da cabeleira esforçavase por não a estragar.E deitaram um manto por cima deles; e consentindo, acon-chegaramse e adormeceram I . . . ]

Vêrsão em linguagem atual, com anotações da Dra. Carolina Mi chaelis de Vasconcelos, da Universidade de" Coimbra. I n :   D i a s , Carlos Malheiros (org.), Hi stóri a da Col oni zação Por t uguesa do Brasil ,  ed. monumental comemorativa do 1. Centenário da Independência do Brasil, Litografia Nacional, Porto, 1921, vol. 1, pp. 87—90.

24 PORTUGAL E BRASIL NO QUADRO DA MODERNIDADE EUROPÉIA

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III

Caráter e Natureza do 

Sistema Colonial Português

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7. O Brasi l nos quadros do ant i go sistema, col oni al 

A História do Brasil, nos três primeiros séculos, está in-timamente ligada à da expansão comercial e colonial euro-péia na época moderna. Parte integrante do império ultra-

marino português, o Brasilcolônia refletiu, em todo o largoperíodo da sua formação colonial, os problemas e os meca xnismos de conjunto que agitaram a política imperial lusitanaJ )Por outro lado, a história da expansão ultramarina e da ex-ploração colonial portuguesa se desenrola no amplo quadra ^da competição entre as várias potências, em busca do equi-líbrio europeu; desta forma, é na história do sistema geralde colonização européia moderna que devemos procurar oesquema de determinações dentro do qual se processou a

organização da vida econômica e social do Brasil na primeirafase de sua história, e se encaminharam as problemas polí-ticos de que esta região foi o teatro. Procuraremos sinteti-zar as linhas mestras do sistema colonial da época mercan-tilista, tentando marcar a posição do Brasil nesse contexto.

A atividade colonizadora dos povos europeus na época^moderna, inaugurada com a ocupação e. utilização. da&Jlhasatlânticas, e logo desenvolvida em larga escala com o po-voamento e valorização econômica da América, distinguese

da empresa de exploração comercial que desde o século XV já vinham realizando os portugueses nos numerosos entre-postos do litoral atlântícçtafricanp e no mundo indiano. Efe-tivamente, a empresa colonial é mais complexa, envolvendo

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26 CARÁTER E NATUREZA DO SISTEMA COLONIAL PORTUGUÊS

povoamento europeu, organização de uma economia comple-mentar voltada para o mercado metropolitano. Em outraspalavras, podese dizer que nos entrepostos  africanos e asiá

\(   ticos a atividade econômica dos europeus (pelo menos nestaprimeira fase) se circunscreve nos limites da circulação  dasmercadorias; a colonização  promoverá a intervenção diretados empresários europeus no âmbito da produção.  Contudo,se é possível e mesmo útil estabelecer a distinção, cumpreacrescentar logo em seguida que, no processo histórico con-creto as duas formas não são sucessivas, mas coexistentes; e

mais, o caráter de exploração comercial não é abandonadopela empresa ultramarina européia, quando ela se desdobrana atividade mais complexa da colonização. Pelo contrário,esse' caráter de exploração mercantil marca profundamenteo tipo de vida econômica que se organizará nas áreas co-loniais. A colonização da época moderna se apresenta, pois,em primeiro lugar, como um desdobramento da expansãomarítimocomercial européia que assinala a abertura dos

Tempos Modernos [...]Como desdobramento da expansão comercial, a coloniza-ção se insere no processo de superação das barreiras que se  antepuseram, no fim da Idade Média, ao desenvolvimento da  

 / econom ia mercantil, e ao fortalecim ento das camadas urbanas  _ e burguesas.  Com efeito, o renascimento do comércio, vigo-

rosamente consolidado a partir do século XI, intensificara oritmo das atividades econômicas no curso de toda a segunda

Idade Média; entretanto, no final do período, sobretudo apartir do século XIV, uma série de fatores internos e externospõem em xeque a possibilidade de se prosseguir na linha dedesenvolvimento econômico, desencadeando um conjunto detensões, através das quais se criam condições, ao mesmo tem-po para as mudanças na organização política européia e paraa abertura de novas rotas e conquistas de maiores merca-dos [ . . . ] Devemos reter aqui apenas os elementos indispensá-

veis para a compreensão da história do sistema colonial, orga-nizado em função desse movimento. Para tanto, cumpre des-tacar a conexão que vincula os dois processos paralelos de

i expansão mercantil e a formação de Estados de tipo m oderno. Realmente, a abertura de novas rotas, a fim de superar os en-traves derivados do monopólio das importações orientais pelos

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venezianos e muçulmanos e a escassez do metal nobre, im-plicavam em dificuldades técnicas (navegação do Mar Ocea-no) e econômicas (o alto custo de investimentos, o grau muitoelevado de risco da empresa), o que exigia larga mobilizaçãode recursos; as formas de organização empresarial então exis-tentes, por seu turno, dado seu caráter embrionário, reve-lavamse incapazes de propiciar a acumulação de meios in-dispensáveis ao empreendimento. Desta forma, o Estadocentralizado, capaz de mobilizar recursos em escala nacional,tornouse um prérequisito à expansão ultramarina; por outro _

lado, desencadeados os mecanismos dê exploração comerciale colonial do Ultramar, fortalecese reversivamente o Estadocolonizador. Em outras palavras, a expansão marítima, comer-cial e colonial, postulando um certo grau de centralizaçãodo poder para tornarse realizável, constituise, por seu turno,em fator essencial do poder do Estado metropolitano.

Temos assim os dois elementos essenciais à compreensãodo modo de organização e dos mecanismos de funcionamentodo antigo Sistema Colonial: como instrução de expansão daeconomia mercantil européia, em face das condições desta

*nos fins da Idade Média e início da Época Moderna, todaatividade econômica colonial se orientará segundo os intereses da burguesia comercial da Europa; como resultado doesforço econômico coordenado pelos novos Estados modernos,as colonias se constituem em instrumento de poder das res-pectivas metrópoles. Na medida em que os velhos reinos me-dievais se organizam em Estados do tipo moderno, unificados

e centralizados, vão, uns após outros abrindo caminho noultramar e participando da exploração colonial: Portugal,Espanha, PaísesBaixoF, França, Inglaterra, do século XV aoXVII realizam sucessivamente a transição para a forma modema^de Estado, e se lançam à elaboração de seus respecti-vos impérios coloniais. Paralelamente, agudizamse as tensõespolíticas entre as várias potências, e os problemas tradicionaisda vélha Europa se complicam com novos atritos pela partilhado mundo colonial; o equilíbrio europeu, quimera constante

da diplomacia na Época Moderna, tornase cada vez maisdifícil, enquanto se sucedem as hegemonias coloniais ou con-tinentais.

É emoldurada no complicado quadro dessas tensões que sedesenrola a história da colonização e do sistema colonial [ . . . ]

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28 CARÁTER E NATUREZA DO SISTEMA COLONIAL PORTUGUÊS

Para se completar o quadro falta porém um elemento e essen-

cial. Na medida em que a colonização se constituía num doselementos, quiçá o mais importante, no processo de fortale-cimento dos Estados modernos e de superação das limitaçõesao desenvolvimento da economia capitalista européia, a po-lítica colonial seguida pelas potências, que se vai elaboran-do juntamente com o próprio movimento colonizador, passaa integrar um esquema mais amplo de política econômica,que teoriza e coordena a ação estatal na época moderna:a política mercantilista.  Efetivamente, a expansão da econo-mia de mercado para assumir o domínio da vida econômicaeuropéia, esbarrava com uma série de óbices institucionais,legados pelo feudalismo; ao mesmo tempo" como viipos, ograu de desenvolvimento espontâneo da economia mercantilnão a tinha capacitado para ultrapassar os limites geográficosem que até então se vinculava o comércio europeu. A emersão dos Estados do tipo moderno rompendo essas barreiras,cria condições de enriquecimento da burguesia mercantil e

seu fortalecimento face às demais “ordens” da sociedade euro-péia. Á política econômica do mercantilismo ataca simulta-neamente todas as frentes, preconizando a abolição das adua-nas internas, tributação em escala nacional, unidade de pesos emedidas, política tarifária protecionista, balança favorável comconseqüente ingresso do bulhão, colonias para complementara economia metropolitana. A política mercantilista, conformea clássica análise de Heckscher, visava a unificação e ao poder

do Estado.O sistema de colonização que a política econômica mer-

cantilista visa desenvolver tem em mira os mesmos fins maisgerais do mercantilismo e a eles se subordina. Por isso, aprimeira preocupação dos Estados Colonizadores será deresguardar a área de seu império coloniai face às demaispotências; a administração se fará a partir da metrópole,e a preocupação fiscal dominará todo o mecanismo adminis

trativo.VMas a medula do sistema, seu elemento definidor,reside no monopólio do comércio colonial. Em tomo da pre' /servação desse privilégio, assumido inteiramente pelo Estado,ou reservado à classe mercantil da metrópole ou parte dela,é que gira toda a política do sistema colonial. E aqui reapa-rece o caráter de exploração mercantil, que a colonização

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CARÁTER E NATUREZA DO SISTEMA COLONIAL PORTUGUÊS 29

incorporou da expansão comercial, da qual foi um desdo-bramento.

O monopólio do comércio  das colonias pela metrópoledefine o sistema colonial porque é através dele qüe as co-lonias preenchem a sua  função histórica^  isto é, respondemaos estímulos que lhes deram origem que formam a sua ra-zão de ser, enfim, que lhes dão sentido. E realmente, reser-vando a si com exclusividade à aquisição dos produtos co-loniais, a burguesia mercantil metropolitana pode forçar a.,baixa dos seus preços até o mínimo além do qual se tor-

naria antieconômica a produção; a revenda, na metrópole oualhures a preço de mercado, cria uma margem de lucrosde monopólio apropriada pelos mercadores intermediários: sevendido no próprio mercado consumidor metropolitano osprodutos coloniais, transferemse rendas da massa da popu-lação metropolitana (bem como dos produtores coloniais)para a burguesia mercantil; se vendidos em outros paísestratase de ingresso externo, apropriado pelos mercadores

metropolitanos. Igualmente, adquirindo a preço de mercado,na própria metrópole ou no mercado europeu, os produtosde consumo colonial (produtos manufaturados sobretudo),e revendendoos na colonia a preços monopolistas, o grupoprivilegiado se apropria mais uma vez de lucros extraordiná

^ rios. Num e noutro sentido uma parte significativa da massade renda real gerada pela produção da colonia é transferidapelo sistema de colonização para a metrópole e apropriada

pela burguesia mercantil; essa transferência corresponde àsnecessidades históricas de expansão da economia capitalista \de mercado na etapa de sua formação. Ao mesmo tempo,garantindo o funcionamento do sistema, face às demais po>tências, e diante dos produtores coloniais e mesmo das de-mais camadas da população metropolitana, o Estado realizaa política hurguesa, e simultaneamente se fortalece, abrindo

' novas fontes de tributação. Estado centralizado e sistemaf colonial conjugamse pois para acelerar a acumulação de 

capital comercial pela burguesia mercantil européia.

No v a is , Fernando A. Itu Brasil em Perspectiva   (org. Carlos G. Bota). Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1971, pp. 47—52.

c ^ f a d o [ v Q t i b U k .

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30 CARÁTER E NATUREZA DO SISTEMA COLONIAL PORTUGUÊS

8. Fat ores do êxi t o da empresa agrícol a 

Coube a Portugal a tarefa de encontrar uma forma deutilização econômica das terras americanas que não fossea fácil extração de metais preciosos. Somente assim seria pos-sível cobrir os gastos de defesa dessas terras. Este problemafoi discutido amplamente e a alto nível, com a interferênciade gente — como Damião de Góis — que via o desenvolvi-

mento da Europa contemporânea com uma ampla perspectiva.Das medidas políticas que então foram tomadas resultou oinício da exploração agrícola das terras brasileiras, aconteci-mento de enorme importância na história americana. De sim-ples empresa espoliativa e extrativa — idêntica à que na mes-ma época estava sendo empreendida na costa da África enas Índias Orientais — a América passa a constituir parteintegrante da economia reprodutiva européia, cuja técnica e

capitais nela se aplicam para criar de forma permanente umfluxo de bens destinados ao mercado europeu.A exploração econômica das terras americanas deveria

parecer, no século XVI, uma empresa completamente inviável.Por essa época, nenhum produto agrícola era objeto de co-mércio em grande escala dentro da Europa. O principal pro-duto da terra — o trigo — dispunha de abundantes fontes deabastecimento dentro do continente. Os fretes eram de talforma elevados — em razão da insegurança do transporte agrandes distâncias — que somente os produtos manufaturadose as chamadas especiarias do Oriente podiam comportálos.Demais, era fácil imaginar os enormes custos que não teriade enfrentar uma empresa agrícola nas distantes terras daAmérica. É fato universalmente conhecido que aos portugue-ses coube a primazia nesse empreendimento. Se seus esforçosnão tivessem sido coroados de êxito, a defesa das terras doBrasil terseia transformado em ônus demasiado grande e —

excluída a hipótese de antecipação na descoberta do ouro —dificilmente Portugal teria perdurado como grande potênciacolonial na América.

Um conjunto de fatores particularmente favoráveis tomoupossível o êxito dessa primeira grande empresa colonial agrí-cola européia. Os portugueses haviam já iniciado há algumas

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OAEÁTER E NATUREZA DO SISTEMA COLONIAL PORTUGUÊS 31

dezenas de anos a produção, em escala relativamente grande,nas ilhas do Atlântico, de uma das especiarias mais apreciadasno mercado europeu: o açúcar. Essa experiência resultou serde enorme importância, pois, demais de permitir a soluçãodos problemas técnicos relacionados com a produção do açú-car, fomentou o desenvolvimento em Portugal da indústriade equipamentos para os engenhos açucareiros. Se se têmem conta as dificuldades que se enfrentavam na época paraconhecer qualquer técnica de produção e as proibições quehavia para exportação de equipamentos, comprendese facil-

mente que, sem o relativo avanço técnico de Portugal nessesetor, o êxito da empresa brasileira teria sido mais difícilou mais remoto [ . . . ]

A partir da metade do século XVI a produção portu-guesa de açúcar passa a ser mais e mais uma empresa emcomum com os flamengos, inicialmente representados pelosinteresses de Antuérpia e em seguida pelos de Amsterdã. Osflamengos recolhiam o produto em Lisboa, refinavamno efaziam a distribuição por toda a Europa, particularmente oBáltico, a França e a Inglaterra.

A contribuição dos flamengos — particularmente dos ho-landeses — para a grande expansão do mercado do açúcar,na segunda metade do século XVI, constitui um fator fun-damental do êxito da colonização do Brasil. Especializadosno comércio intraeuropeu, grande parte do qual financiavam,os holandeses eram nessa época o único povo que dispunhade suficiente organização comercial para criar um mercado

de grandes dimensões para um produto praticamente novo,como era o açúcar. Se se tem em conta, por um lado, asgrandes dificuldades encontradas inicialmente para colocara pequena produção da Madeira, e por outro a estupendaexpansão subseqüente do mercado, que absorveu com preçosfirmes a grande produção brasileira, tornase evidente a im-portância da etapa comercial para o êxito de toda a empresa•açucareira.

E não somente com sua experiência comercial contribuí-ram os holandeses. Parte substancial dos capitais requeridospela empresa açucareira viera dos PaísesBaixos. Existem in-dícios abundantes de que os capitalistas holandeses não selimitaram a financiar a refinação e comercialização dó pro-duto. Tudo indica que capitais flamengos participaram no

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financiamento das instalações produtivas no Brasil bem comono da importação da mão de obra escrava. O menos que sepode admitir é que, uma vez demonstrada a viabilidade daempresa e comprovada sua alta rentabilidade, a tarefa definanciarlhe a expansão que haja apresentado maiores difi-culdades. Poderosos grupos financeiros holandeses, interessa-dos como estavam na expansão das vendas do produto bra-sileiro, seguramente terão facilitado os recursos requeridospara a expansão da capacidade produtiva.

Mas não bastavam a experiência técnica dos portugueses

na fase produtiva e a capacidade comercial e o poder finan-ceiro dos holandeses para tornar viável a empresa colonizadora agrícola das terras do Brasil. Demais, existia o proble-ma da mão de obra. Transportála na quantidade necessáriada Europa teria requerido uma inversão demasiadamentegrande, que provavelmente tornaria antieconômica toda aempresa. As condições de trabalho eram tais que somentepagando salários bem mais elevados que os da Europa seria

possível atrair mão de obra dessa região. A possibilidade dereduzir os custos, retribuindo com terras o trabalho que o co-lono realizasse durante um certo número de anos, não apre-sentava atrativo ou viabilidade, pois, sem grandes concentra-ções de capital, as terras praticamente não tinham valia eco-nômica. Por último, havia a considerar a escassez de ofertade mãodeobra que prevalecia em Portugal, particularmentenessa etapa de magnífico florescimento da empresa das ÍndiasOrientais. Sem embargo, também neste caso uma circuns-tância veio facilitar enormemente a solução do problema.Por essa época os portugueses eram já senhores de um com-pleto conhecimento do mercado africano de escravos. As ope-rações de guerra para captura de negros pagãos, iniciadasquase um século antes nos tempos de D. Henrique, haviamevoluído num bem organizado e lucrativo escambo que abas-tecia certas regiões da Europa de mão de obra escrava. Me-diante recursos suficientes, seria possível ampliar esse ne-

gócio e organizar a transferência para a nova colonia agrícolada mão da obra barata, sem a qual ela seria economicamenteinviável.

Cada um dos problemas referidos — técnica de produção,criação de mercado, financiamento, mãodeobra — pôde serresolvido no tempo oportuno, independentemente da existên-

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CARÁTER E NATUREZA DO SISTEMA COLONIAL PORTUGUÊS 33

cia de um plano geral preestabelecido. O que importa terem conta é que houve um conjunto de circunstâncias favo-

ráveis sem o qual a empresa não teria conhecido o enormeêxito que alcançou. Não há dúvida que por trás de tudoestavam o desejo e o empenho do governo português deconservar a parte que lhe cabia das terras da América, dasquais sempre se esperava que um dia sairia o ouro em gran-de escala. Sem embargo, esse desejo só poderia transformarse em política atuante se encontrasse algo concreto em quese apoiar. Caso a defesa das novas terras houvesse perma-necido por muito tempo como uma carga financeira parao pequeno reino, seria de esperar que tendesse a relaxarse.O êxito da grande empresa agrícola do século XVI — únicada época —constituiu portanto a razão de ser da continuidadeda presença dos portugueses em uma grande extensão dasterras americanas. No século seguinte, quando se modificaa relação de forças na Europa com o predomínio das naçõesexcluídas da América pelo Tratado de Tordesilhas, Portugal já havia avançado enormemente na ocupação efetiva da parte

que lhe coubera.F u r t a d o , Celso. Formação Econômi ca do Brasi l ,  Cia. Ed. Nacio-

nal, S. Paulo, 1971, pp. 8—12.

9. A grande propri edade rural 

A conciliação dos motivos preponderantemente comer-ciais com a urgente necessidade de ocupar o Brasil, está ex-

pressa no plano de ação da metrópole portuguesa. A grandelavoura que se estabelece com as donatárias, organizousepara fornecer em grande escala, para o exterior, gêneros tro-picais produzidos em quantidade ínfima na Europa, desconhecidos nela ou importados do Oriente. Por esse motivo,seja no engenho de açúcar, como na lavoura algodoeira ouna fazenda de fumo, a exploração agrária mantém os carac-terísticos fundamentais comuns que IHé üdvém da similarorganização da produção, condicionada que foi pelos mesmosobjetivos preponderantemente mercantis.

A célula fundamental da exploração agrária será a gran-de propriedade monocultora e escravocrata. A organizaçãoagrária que corresponde à exploração em grande escala, não

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34 CARÁTER E NATUREZA DO SISTEMA OOLONIAL PORTUGUÊS

fora acidental, mas derivara, em grande parte, das próprias

circunstâncias que presidiram à colonização, a que já nosreferimos. A posse e a propriedade da terra resultaram desimples doação, na forma de sesmarias, sem restrições demaior importância que não fossem a obrigatoriedade deocupála. Na cartapatente de Martim Afonso de Sousa (20de novembro de 1530), que registra pela primeira vez otransplante da instituição da sesmaria para o Brasil, esta-belecese a doação da terra como atrativo dos mais impor-tantes para os que se dispuserem a permanecer nela e po-voála [... ]

Mas o velho preceito das ordenações manuelinas e filipinas que proibia que se desse a uma pessoa maiores terrasalém das que razoavelmente poderiam aproveitar, assumiuna colonia, mercê da imensidade de seu território e dos re-clamos da produção em grande escala, feitio particular. Aindaque tenha havido, em muitos casos, a convergência de de-zenas de léguas de terras em mãos de um único colono, ten-deuse mais geralmente à concessão de sesmarias de uma,duas, três ou quatro léguas de testada. O fato de se tomarde imediato grande proprietário constituía uma chamarizipara o colonizador. Se não estavam em jogo distinções àbase da hierarquia social do sesmeiro, a obrigatoriedade deocupar e povoar a terra implicava em discriminação de na-tureza capitalista, pois os meios para explorála, em últimaanálise, iam condicionar a posse efetiva do solo. Ao capita-

lismo comercial, baseado na iniciativa privada ou dirigidopelo Estado, qutTcaracterizara a atividade portuguesa nasfeitorias asiáticas e africanas^ sucedia um capitalismo agrário, no qual, tal como havia ocorrido nas ilhas atlânticas decolonização portuguesa da África, os investimentos se faziamem plantações, aparelhamentos e escravos.

Por outro lado, a grande propriedade e a produção emgrande escala, correspondem às exigências da mentalidade

do colonizador e da técnica de exploração. O colono europeuque vinha se fixar no Brasil, dispondo de alguns recursospara adquirir os meios indispensáveis de exploração da terra(aparelhos e utensílios, escravos, animais de trabalho, se-mentes e mudas de plantas cultivadas), identificavase coma figura do empresário, do homem de negócios. A extensãodas terras é garantida, em potencial, da possibilidade de .

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CARÁTER E NATUREZA DO SISTEMA COLONIAL PORTUGUÊS 35

/estender as culturas que lhe permitiam auferir lucros maiores.Além disso, o estágio da técnica das culturas extensivas e

do beneficiamento. as exigências própria da capitalizaçãoque, no caso em apreço, inclui também a mão de obra, alia-vamse para tornar a grande propriedade a constante implí-cita, inseparável do sistema de exploração agrícola adota-do \

A grande propriedade é sempre monocultora. Voltadapara a procfução em grande cscala de mercadorias de altovalor comercial, para exportar, nela se concentravam todos

os recursos do colono. Aqui, como nas ilhas antUfiãnas, ve-rificase a diferença fundamental entre os pequenos agricul-tores dedicados à lavoura de subsistência com o recurso apenas dos braços da família, e a grande lavoura monocultorae escravocrata, inteiramente concentrada na produção de umgpnerr> para exportar. O documentário publicado sobre ascontas nos anos 162253, do engenho de Sergipe do Conde,da Bahia (o qual se tornaria famoso pela descrição que delefez, no início do século XVIII, o jesuita André João Antonil),

mostranos que o engenho jproduzia apenas açúcar, adqui'rindo todas as demais mercadorias necessárias à sua manutenção, desde as frutas frescas e em conserva, os ovos e asgalinhas, o mel de pau e a farinha de mandioca, até os te-cidos grosseiros, para as roupas dos escravos.

A grande lavoura Colonial é escravocrata. O problemada mãodeobra foi resolvido, de início, com a escravidão doíndio. Já o corte do paubrasil se organizara à base do apro-veitamento da mão de obra indígena livre; esta retirava dafloresta e transportava os troncos de madeira preciosa em Ltroca de machados e quinquilharias européias. Contudo so-mente o escravo podia garantir os trabalhos de exploraçãoregular, metódica e contínua da grande lavoura. Desde osfins do século XVI começou a se organizar no sul da colonia,na Capitania de S. Vicente, um gênero de vida à base dacaptura e escravização do índio que era vendido para serutilizado como força de trabalho na grande lavoura. Na pri

meira metade do século XVII, justamente^ quando a lavouracanavieira adquiriu sua maior importância, as densas reservasde mãodeobra indígena que os jesuítas haviam organizadocm suas reduções, ha baciado Rio Paraná, fórãm 3esmanteladas por sucessivas pilhagens levadas a efeito pelos ban-

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36 CARÁTER E NATUREZA DO SISTEMA COLONIAL PORTUGUÊS

deirantes paulistas. A mercadoria humana se encaminhava

p ari os engenhos do Jtüo de Janeiro, da tíahia, de Pernam-buco, permitindo ao paulista obter os produtos manufaturadosque estes importavam de Portugal. Todavia, desde o séculoXVI, uma tênue corrente de importação de escravos africa-nos começara a fluir para a zona da grande lavoura açucareira. .Comprovada a possibilidade de desenvolver em alta 1

Hscala a produção do açúcar na colonia, e assegurada assima rentabilidade da empresa que se iniciava, os interesses vol-

taramse desde cedo para a aquisição do escravo negro, maiscaro, na verdade, porém mais ajustado à rotina pesada dostrabalhos na grande lavoura. O indígena não foi completa-mente eliminado, pois continuou a ser empregado em ativi-dades complementares, mas o escravo africano tornouse oelemento essencial da grande lavoura como força de trabalho.Representava ele a mão de obra por excelência, “as'mãose_os pés do senhor de engenho”, na frase tão conhecida do

 jesuita Antonil. O português que emigrava para a colonia y

não o fazia com o interesse de se tornar simples trabalhadora jornal. Ambicionava a riqueza e a importância que podiam

 jjdvir do fato de ser dono e explorador de vastas extensõesde terras [ . . . ] Seja nas áreas de exploração de metal, comonaquelas empenhadas em produzirem grande escala gênerostropicais a colonização somente se assentou em bases defi-nitivas quando se resolveu o problema da mãodeobra: pri-meiramente com o recurso da semiescravidão branca nas

colonias inglesas (os indentured servants, sobretudo noséculo XVII), ou da semiescravidão vermelha, na Américaespanhola [ . . . ] e mais tarde, com o recurso da escravidãoafricana [... ]

Nenhuma outra forma de exploração agrária no Brasilcolonial resume tão bem as características. básicas da grandelavoura como o engenho do açúcar. Assim aconteceu, dadoo seu nível de capitalização, pois requeria, além dos trabalhos

de cultivo do solo, uma série de outras operações demoradase_exaustivas para a manufatura do açúcar, o que implica emaparelhamento caro e mãodeobra abundante. Por essa razãomesma, nenhuma outra forma de exploração agrícola daépoca colonial foi tão complexa nn .cen fnnpionamento.

.O engenho do açúcar, com seus vários edifícios paramoradia e para instalar o aparelhamento necessário, forma

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um pequeno aglomerado humano, um núcleo de população.Representa a atividade sedentária que fecunda o solo, ama-

nha a riqueza e lança as raízes da comunidade social. Inicialmente o engenho ocupava apenas uma clareira na flo-resta; a paisagem primitiva da zona açucareira constituíasede áreas extensas cobertas de espessa vegetação florestal queseparavam pequenos espaços onde se agrupavam as cons-truções de tijolos ou de adobe e cal circundadas pelos campos cultivados. £ 

A casagrande, residência do senhor de engenho, é uma

vasta e sólida mansão térrea ou em sobrado; distinguese peloseu estilo arquitetônico sóbrio, mas imponente, que aindahoje empresta majestade à paisagem rural, nas velhas fa-zendas de açúcar que a preservaram. Constituía o centrode irradiação de toda a atividade econômica e social da pro-priedade. A casagrande completavase com a capela, ondese realizavam os ofícios e as cerimônias religiosas [ . . . ] Pró-ximo se erguia a senzala, habitação dos escravos, os quais,nos grandes engenhos, podiam alcançar algumas centenas de

“peças”^ Pouco além serpenteava o rio, traçando através dafloresta uma via de comunicação vital. O rio é o mar semantiveram, no período colonial, como elementos constantesde preferência para a escolha da situarão da grande lavoura.Ambas constituíam as artérias vivificantes: por meio deíaso engenho fazia escoar suas safras de açúcar e, por elas,singravam os barcos que conduziam as toras de madeira aba-tidas na floresta, que alimentavam as fornalhas do engenho,

ou a variedade e a multiplicidade de gêneros e artigos ma-nufaturados que o engenho adquiria alhures [ . . . ]A casa do engenho abrigava todas as instalações necessá-

rias ao prepãro~do açúcar. Muitas vezes se repartia em váriasconstruções, algumas isoladas, outras contmuas, cada umadestinada a um ou mais conjuntos de aparelhamentos, deacordo com as funções a que se destinavam. Na casa damoenda permaneciam os tambores movidos a água ou a força

animal utilizados para extrair o suço da cana de açúcar. Õsengenhos d’agua, de maior capacidade produtiva, eram cha tmados reais, “por terem a realeza de moerem com água, àdiferença de outros, que moem com cavalos, e bois, e sãomenos providos, e aparelhados” [ . . . ]

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38 CARÁTER E NATUREZA Do &1STKMA COLONIAL PORTUGUÊS

A casagrande, a senzala, a capela e a casa de engenhoformam o quadrilátero principal e característico do engenho

de açúcar. Outras construções, em número variável, servemde residência ao capelão, ao mestre de açúcar, aos feitorese a outros poucos trabalhadores assalariados. Além do núcleo3e construções sucediamse as culturas de canadeaçúcarfeitas pelos escravos do próprio engenho ou pelos lavradoreslivres ou a ele obrigados.

C a n a b r a v a , Alice. In: História Geral da Civilização Brasileira, dir. de Sérgio Buarque de Holanda, Difusão Européia do Livro, São

Paulo, 1963, tomo I, vol. 2, pp. 198—206.

V 7 , , k ?úr < ío .c t a < a Ò *  

10. A sesmari a e a dat a de t er ra  /  —X

A sesmaria como tipo de propriedade concedida em ter _ras do Brasil era uma transladação do regime jurídico por-

tuguês. No reino fora disciplinada sua concessão com a Lei

das Sesmarias, datada de 26 de maio de 1375, e baixada porD. Fernando. Seu objetivo era fazèr progredir a agricultura,então abandonada como clecorrência das lutas internas veri-ficadas. À escassez dos gêneros correspondiam os altos preçosdos poucos produzidos. Insuficientes os gêneros eram tam-bém inacessíveis à população. Daí a Lei das Sesmarias que^trazia a finalidade de obrigar os proprietários a cultivareme semeârem as terras; e não o fazendo cederem parte a um

agricultor para que realize a lavoura.Como a sesmaria também a data de terra, que se tomou

de origem portuguesa, e representava a pequena propriedade.Distinguiase da sesmaria pelo tamanho que. lhe era atribuído.Não se chocavam, de certo, os dois regimes, muito emboraa prevalência de um — o das sesmarias — sobre .o outro, oque tomou este menos comum no Brasil.

A sesmaria se traduzia numa área quase sempre variável.Se se encontram concessões de uma légua em quadrá ou detrês léguas de extensão por uma de largura, encontramsetambém concessões de 10, 20, às vezes 50 ou mais léguas.Estudandose as súmulas das sesmarias divulgadas por Felisbelo Freire verificase a existência de sesmarias de diferentes

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tamanhos. Deste modo não havia norma rígida, inflexível,em relação ao assunto. Enquanto isso, a data de terra ex-

pressase por apenas um quatro de légua em quadra. Trans-formandose estes elementos em hectares, temos então quea sesmaria de uma légua ou de três léguas representa umasuperfície total que varia, em números redondos, entre 10mil e 13 mg hectares, ao passo que a data de terra correspondea 272 hectares.

Cada um desses tipos de propriedade teve o seu papele a sua oportunidade no Brasil. A sesmaria foi a propriedadeque se destinou à ocupação do território, num sentido de

extensão; destinavase à grande lavoura, no caso a da canadeaçúcar, e, em parte, a do algodão, e à criação de gado,e, posteriormente, alongouse ao extrativismo vegetal, aocacau e ao café. Traduzia a exploração econômica da terrade maneira rápida; e fundamentou a organização social ede trabalho implantada no Brasil, com a fazenda, isto é, agrande propriedade latifundiária, monocultora e escravagista,

i: Recebiam a sesmaria homens ligados à pequena nobrezaem Portugal, oujnilitares e navegantes com títulos de vitória,que lhes asseguravam o mérito de uma recompensa. Nãodeixou a sesmaria, no Brasil, de ser uma concessão tipicamen-te desse gênero, isto é, destinada a premiar serviços relevantesprestados à coroa. De outro lado, porém, exigia o empregode capitais, fosse para o desbravamento da terra, fosse paraa aquisição de escravos, de modo que se transformava num—J  empreendimento que reclamasse, dos que a recebiam, possede tecuisos—pecuniários. .

Modesta, sem tais exigências, era a data de terra. Destinavase principalmente à pequena exploração, não rãíomenos monocultora e mais diversificada. Serviu déTTase, emparticular, para experiência de colonização, como foi o casodos açorianos no século XVIII ou ainda para a formação denúcleos coloniais, no século XIX, com imigrantes estrangei-ros. Exigia menor mão de obra, menos recursos: suas atividades eram mais oú quase sempre de natureza familiar. Coma data de terra, surge a pequena ou média propriedade, ou

o síri o, p m CP11»; pr i mpi r nc t Pf npnçNas zonas de mineração foram mais comuns as conces-

sões de datas que as dê sesmarias. Estas eram preferentemente concedidas para atividades agrícolas ou pastoris. No caso

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das Minas, a agricultura era atividade secundária, pura la-voura de manutenção: milho, feijão, mandioca. Só mais tardeaparece a canadeaçúcar e, também, o arroz, este come-çando a interessar a lavoura nos meados do século XVIII.

As datas concedidas nas Minas eram áreas de 30x30 bra-ças, correspondendo cada braça a 1,10 m. Só eram concedi-das a quem tivesse pelo menos doze escravos^ de trabalhopara as lavras; concediamse frações de 2,5x2,5 braças porescravo, a quem tivesse menor número de escravos. De outrolado não se concedia segunda data a quem não houvesse

provado explorar a primeira e contar com mais escravos paraoutra.

Tanto a sesmaria como a data de terra foram meios depovoamento, aquela mãis que esta, máis sensível ao sistemade colonização. Não raro se confundiram as concessões. Háconcessões de datas de terra ou pelo menos assim denomi-nadas em documentos, que acusam áreas semelhantes à dasesmaria. O que não lhe restringe, porém, o significado. Sua

importância povoadora foi grande; muito embora se possaconsiderar muito maior como expressão do regime de colo-nização experimentado no Brasil. A sesmaria, na realidade,através da grande propriedade monocultora, de. trabalho es-

cravo, foi que reapresentou, a seu tempo, o instrumento deocupação da terra e de verdadeiro povoamento.

Diégues Jh., Manuel. População e propriedade da terra no Brasil, União PanAmericana, Washington, D.C., 1959, pp. 15—17.

11. A região das mi nas 

“A  sede insaciável do ouro estimulou a tantos a deixa-rem suas terras, e a meteremse por caminhos tão ásperoscomo são os das minas, que dificultosamente se poderá darconta do número de pessoas que atualmente aí estão”. Estesdifíceis caminhos desembocavam numa região de solos pobrese acidentada topografia que coincide, aproximadamente, coma atual “zona metalúrgica”, situada ao centro do atual Estadode Minas. Nela se concentraria uma população que, cres-cendo rapidamente, atingiria cerca de 320 000 habitantesem 1776.

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A civilização que alí se gestou, ao contrário da que seconsolidou no litoral nordestino, compreendia pequenos, mé-dios e grandes proprietários, cuja posição relativa estava su-

 jeita a bruscas mudanças provocadas pelos imprevisíveis su-cessos e insucessos do garimpo. Integralmente devotada àmineração, pelo menos em seus primórdios, a economia aurífera introduziu dois fenômenos novos e profundamente re-novadores no quadro colonial. Tratavase de uma região devida econômica integralmente voltada para mercado e coma população predominantemente distribuída por centros urba-

nos. Estes não poderiam ser confundidos com as demais for-mas de vida urbana no País. Não se tratavam nem de lugarejosunicamente animados por feiras e comemorações cívicoreligiosas, nem de centros administrativoportuários, concentra-dores do comércio importadorexportador. A vida urbana aíse desenvolvia na vizinhança mesmo das atividades primárias,chamando a si uma série de funções terciárias e não tardandoa servir de base às atividades artesanais e industriais, quecedo despontariam na região.

A concentração sobre os trabalhos de extração era, deinício, conseqüência da altíssima rentabilidade do empreen-dimento (para os exploradores bem sucedidos, muito maisque para a média). A qualidade dos solos e a topografiada área contribuíam também para a não diversificação dasatividades. Daqui se infere uma desusada dependência destaeconomia de exportação, que devia importar quase tudo oque necessitasse. A distância do litoral e as imensas dificul-dades de transporte interno deixavam claro, no entanto, queo elevado grau de “abertura externa” não deveria perdurar.A evolução da região mineira revelaria justamente forte ten-dência à diversificação produtiva. É fácil compreendêla: onão provimento local das necessidades acarretou, desde osprimórdios do ciclo minerador, períodos de grandes priva-ções; além disto, os preços dos gêneros, utensílios de ferroetc., mantinhamse elevadíssimos. O desenvolvimento de ou-tras atividades que não a mineradora foi, no entanto, sempre

mal vista e combatida pela Metrópole colonial. Já em 1715,muito antes do apogeu das minas, uma carta régia ordenavaao governador “que proibisse o levantamento de mais en-genhos de açúcar, porque ocupavam grande número de ne-gros que deviam estar empregados na extração de ouro.

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A política do Reino visava, pois, a impor a especialização

produtiva num ramo que fornecia vultosos rendimentos àCoroa. Mais tarde (1785), D. Maria I iria proibir o esta-belecimento e funcionamento de fábricas com o intuito deimpedir a substituição de importações, resposta natural àqueda da capacidade de importar acarretada pelo declíniodas minas, a partir do terceiro quartel do século XVIII.Esta drástica medida exprimia o descontentamento da Me-trópole com uma situação que já há algum tempo vinha

sendo denunciada: “. . . a respeito das fábricas estabelecidasnesta Capitania ( Minas), as quais eu encontrei em um aumen-to considerável, que, se continuassem nele, dentro de muitopouco tempo ficariam os habitantes desta capitania indepen-dentes dos desse reino, pela diversidade de gêneros que jánas suas fábricas se trabalhavam. . . ”

A crise e decadência da economia do ouro, ao contráriodos demais casos da história brasileira, teve origem na inca-

pacidade de sustentação da oferta. Este talvez seja o primeiroelemento a merecer destaque no estudo da notável, aindaque fracassada, busca de alternativas econômicas, que sesegue ao declínio das minas. A meados do século XVIII, oaprofundamento da crise era sentido ano a ano no empobre-cimento das jazidas e esgotamento das ocorrências aluvionaisde metal precioso. O problema não vinha de fora; se exis-tissem possibilidades de recuperação elas teriam que resultar

de uma resposta local para o problema em agravamento.A introdução de melhores técnicas era pouco provável.

O avanço nesta direção exigiria a superação de característicasinerentes ao regime de Trabalho escravo — inclusive no quetoca ao comportamento das camadas proprietárias. A atitudeda Metrópole era também poderoso obstáculo ao avanço tec-nológico. À queda da receita de tributos não lhe ocorria outra

reação que multiplicar impostos e taxas. Não é de surpreender,nestas circunstâncias, a deterioração das relações entre o povomineiro e a Metrópole, revelada em sucessivos atritos quelevariam à Conjuração.

C a s t r o , Antônio Barros de, 7 Ensaios Sobre a Economia Brasi- leira,  Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1971, pp. 33—36.

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12. Caract eríst i cas sociais do povoament o de M inas 

A sociedade sui generis no Brasil, que se constitui nasMinas Gerais, agregado mais ou menos informe de elementosde várias procedências e de todos os estratos, espelha, e es-pelhará ainda por longo tempo, essa formação compósita. Nãoparece excessivo dizer, ao menos em confronto com a deoutras partes da América lusitana, que a ocupação do terri-tório se processou ali democraticamente. Muito mais, semdúvida, do que a das áreas açucareiras.

Para começar, já o sistema das demarcações era, ao me-nos em teoria, e muitas vezes na prática, um convite à pro-miscuidade entre gente de toda casta que aflui aos decobertos. Aqui lucram tanto os humildes como os abastados, aindaquando estes disponham de numerosos escravos e os primeirosde raros, pois tudo acontece como nos jogos: ganha o quetem mais sorte, não o que mais pode. Quando o legislador

procura assegurar os pobres contra os poderosos, não é porsimples afetação, como se poderia supor. Ele sabe que aque-les buscam mais afanosamente do que estes tirar proveitodas concessões, não dispondo de outros recursos que os dei-xem esperar ou descansar, e ao cabo esse afã só pode be-neficiar o erário régio.

É certo que as leis foram, também no Brasil, “obedecidas,mas não cumpridas”, segundo o refrão popular nas índiasde Castela. Contudo o simples princípio de que se hão dedefender os pobres e miseráveis “em parte de sua data, porachar com pinta rica”, de algum poderoso que pretenda esbulhálos de seu bem —conforme se lê no Begimento de 1702— representa ao menos um limite ideal para os abusos dopoder, coisa que não existe, salvo por exceção, nas grandespropriedades canavieiras. Até a onipresença obrigatória dosagentes da Coroa, significando a todo instante os direitos dosoberano, com um aparelho fiscal sempre ameaçador, mesmo

se ineficaz ou momentaneamente complacente, é para o mi-neiro um desses limites. ,Acresce que os instrumentos rudimentares exigidos nas

faisqueiras, a que de início todos se dedicam e que, maistarde, nem os ricos desdenham, servem para afirmar o cünho

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relativamente democrático que assume o povoamento dasGerais, por isso que ajudam ainda mais a nivelar a gente que

vive de catar e mandar catar. É só com o progressivo apurodas técnicas reclamadas para a exploração das matrizes quese pode introduzir. algum princípio de diferenciação entreelementos oriundos desse meio amorfo. Mais depressa do queem outras partes, a escala social vem a ser determinada pelaposse maior ou menor de bens da fortuna: o fato, registradoem inúmeros documentos, dará lugar a mordentes sátiras doautor das Carta,s Chilenas.  Quem, senão os que pela riqueza,

bem ou mal ganha, se colocam em posição sobranceira nasociedade, pode dispor daquelas máquinas usadas pelos mi-neiros “de roda”, a que alude Silva Pontes em fins do séculoXVIII? Algumas delas, diz, com efeito, chegam a constar dequatrocentas chapas de ferro, e cada chapa de oito librasde peso, fora as cavilhas e chavetas do mesmo metal, o queas faz sumamente dispendiosas, além de estarem sujeitas adesmancharse toda vez que a caixa onde trabalha por seus

rodetes passa do ângulo de 45° com o horizonte.Por outro lado, a brevíssima extensão das datas, a neces-sidade de constante vigilância sobre os operários das minas,que procuram, não raro, beneficiarse das lavras de seu se-nhor, mormente nas horas noturnas, tendia a apagar diferençase distâncias entre os homens e, em numerosos casos, de livrespara escravos. A constituição de arraiais mais ou menos po-pulosos e freqüentemente pouco apartados uns de outros,

processase assim com notável rapidez, embora no começo,quando vigorava quase unicamente a utilização do ouro de placer,  tendessem alguns deles a desaparecer com igual pres-teza. A maior permanência, assim como a complexidade maiorda estrutura social e econômica das comunidades mineiras, de-pende largamente do caráter das betas existentes e dos méto-dos de exploração delas.

Todas estas circunstâncias, somadas à conveniência dos

tratos e contratos, senão dos continuados pleitos, demandas,rabulices, que se acham de ordinário nas minas de ouro, esão mais próprios dos meios citadinos do que dos campos,irão militar fortemente no sentido das formações urbanas,que concentram os moradores em dias de folga ou festa.As autoridades, por sua vez, são levadas a animar essa ten-

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comércio com a Bahia e as capitanias do norte, fonte notóriade muitos descaminhos.

Por outro lado a própria lavoura, que os antigos tinhamdescurado, ganhava alento novo, com os grandes proveitosderivados da venda de seus frutos. A princípio não ia elamuito além das primitivas roças de milho, cujo produto eravendido a preço exorbitante e passaria a constituir, mesmodepois, uma das bases de sustento dos moradores.

B u a r q u e d e H o l a n d a , Sérgio. In: História Geral da Civilização Brasileira,  Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1960, tomo I, vol. 2,

pp. 282289.

13. A t i v i dades acessóri as 

Numa economia como a brasileira — particularmente emsua primeira fase — é preciso distinguir dois setores bemdiferentes da produção. O primeiro é dos grandes produtosde exportação, como o açúcar e o tabaco, que vimos no ca-pítulo anterior; o outro é das atividades acessórias cujo fimé manter em funcionamento aquela economia de exportação.São sobretudo as que se destinam a fornecer os meios desubsistência à população empregada nesta última; e pode-ríamos, em oposição à outra, denominála economia de sub-sistência.  A distinção é muito importante, porque além dascaracterísticas próprias que acompanham um e outro setor,

ela serve para conclusões de grande relevo na vida e na evo-lução econômica da colônia. No primeiro capítulo em queprocurei destacar o caráter geral da colonização brasileira, já se verificou que ele é o de uma colônia destinada a for-necer ao comércio europeu alguns gêneros tropicais de gran-de expressão econômica. É para isto que se constituiu. Anossa economia subordinarseá por isso inteiramente a talfim, isto é, se organizará e funcionará para produzir e ex-

portar aqueles gêneros. Tudo mais que nela existe, e que.aliás, será sempre de pequena monta, é subsidiário e desti-nado unicamente a amparar e tornar possível a realizaçãodaquele objetivo essencial.

Incluise aí a economia de subsistência de que trataremosagora. Ao contrário da canadeaçúcar, onde encontramos a

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exploração em larga escala, neste setor são outras formas etipos de organização que vamos observar. Eles são aliás va-riáveis. Encontramos a produção de gêneros de consumo, emprimeiro lugar, incluída nos próprios domínios da grandelavoura, nos engenhos e nas fazendas. Estes são em regraautônomos no que diz respeito à subsistência alimentar da-queles que os habitam e neles trabalham. Praticavamse aí,subsidiariamente, as culturas necessárias a este fim, ou nosmesmos terrenos dedicados à cultura principal, e entremean-doa; ou em terras à parte destinadas especialmente a elas.

Parte é realizada por conta do proprietário, que emprega osmesmos escravos que tratam da lavoura principal e que nãoestão permanentemente ocupados nela; outra, por conta dospróprios escravos, aos quais se concede um dia por semana,geralmente o domingo, e até às vezes, no caso de um senhorparticularmente generoso, mais outro dia qualquer, para tra-tarem de suas culturas. Assim, de um modo geral, podesedizer que a população rural da colônia ocupada riãs grandeslavouras e que constituiu a quase totalidade dela, provê su-

ficientemente a sua subsistência com culturas alimentares aque se dedica subsidiariamente, e sem necessidade de recorrerpara fora.

Não está nestas condições a urbana. É certo que no pri-meiro século e meio da colonização os centros urbanos sãomuito pequenos. Assim mesmo, incluem uma população de-dicada sobretudo à administração e ao comércio que não temtempo nem meios para ocuparse de sua subsistência, e cujo

número é suficiente para fazer sentir o problema da sua ma-nutenção. Em parte, abastecemna com seus excessos os gran-des domínios. Parte pequena, freqüentemente nula. O açú-car se encontra numa fase de prosperidade ascendente; ospreços são vantajosos, e os esforços se canalizam no máximopara sua produção. Não sobra assim grande margem paraatender às necessidades alimentares dos centros urbanos. Poresse motivo constituemse lavouras especializadas, isto é, dedicadás unicamente à produção de gêneros de manutenção.

Formase assim um tipo de exploração rural diferente, se-parado da grande lavoura, e cujo sistema dé organização émuito diverso. Tratase de pequenas unidades que se aproxi-mam do tipo camponês europeu, em que é o proprietário quetrabalha ele próprio, ajudado quando muito por pequeno

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número de auxiliares, sua própria família em regra, e maisraramente algum escravo. A população indígena contribuiu

em grande parte para esta classe de pequenos produtoresautônomos. Os primeiros colonos chegados tiveram natural-mente que apelar, de início, para os índios a fim de satisfa-zerem suas necessidades alimentares; ocupados em organi-zarem suas emprêsas, não lhes sobrava tempo para se dedi-carem a outras atividades. Os índios, que no seu estado nativo já praticavam alguma agricultura, embora muito rudimentare seminômade, encontraram neste abastecimento dos colonos

brancos um meio de obter os objetos e mercadorias que tantoprezavam. Muitos deles foramse por isso fixando em tornodos núcleos coloniais e adotando uma vida sedentária. Mestiçandose depois aos poucos, e adotando os hábitos e costumeseuropeus, embora de mistura com suas tradições próprias,constituirão o que mais tarde se chamou de “caboclos”, eformarão o embrião de uma classe média eqüidistante dosgrandes proprietários e dos escravos.

Quanto aos produtos desta pequena agricultura de sub-sistência, eles foram em grande parte procurados na culturaindígena. Assim, diferentes espécies de tubérculos, em par-ticular a mandioca (Manihot utilissima,  Pohl). Este gêneroserá a base de alimentação vegetal da colônia, e cultivarseáem toda parte. Depois da mandioca vem o milho, cujo valoré acrescido pelo fato de tratarse de excelente forragem ani-mal. O arroz e o feijão seguem nesta lista. As verduras, pelo

contrário, sempre foram pouco consumidas na colônia. A abun-dância de frutas substitui suas qualidades nutritivas; não so-mente a flora nativa do Brasil conta com grande númerode frutas comestíveis e saborosas, como algumas espécies exó-ticas (a banana e a laranja sobretudo), introduzidas desdeo início da colonização, foram largamente disseminadas.

O papel secundário a que o sistema econômico do país,absorvido pela grande lavoura, vota à agricultura de sub-

sistência, determinou um problema dos mais sérios que apopulação colonial teve de enfrentar. Refirome ao abasteci-mento dos núcleos de povoamento mais denso, onde a insu-ficiência alimentar se tomou quase sempre a regra. Natural-mente a questão aparece mais seriamente no séc. XVIII,quando os centros urbanos adquirem relativa importância;

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mas o problema já existe desde o princípio da colonização,e a legislação preocupase muito com ele. [ . . . ]

As importantes conseqüências deste fato, que podem seravaliadas sem necessidade de maior insistência na matéria,

 justifica suficientemente só por si a necessidade de dis-tinguir na economia brasileira aqueles dois setores em quese dividem suas atividades produtivas: o da grande lavourae o da subsistência. Se não, não se explicaria este quadrocaracterístico da vida colonial: de um lado abastança, pros-peridade e grande atividade econômica; doutro, a falta de

satisfação da mais elementar necessidade da grande massada população: a fome.Neste setor da subsistência também entra a pecuária.

Ela também se destina a satisfazer as necessidades alimentares da população. A carne de vaca será um dos gênerosfundamentais do consumo colonial. Mas a pecuária, apesarda importância relativa que atinge, e do grande papel querepresenta na colonização e ocupação de novos territórios,é assim mesmo uma atividade nitidamente secundária e aces-sória. Havemos de observálo em todos os caracteres que aacompanham: o seu lugar será sempre de segundo plano,subordinandose às atividades principais da grande lavoura,e sofrendolhe de perto todas as contingências. [ . . . ]

Apesar das condições desvantajosas — em parte graçasa elas porque forçaram uma grande dispersão —, as fazendasde gado se multiplicaram rapidamente, estendendose, em-bora numa ocupação muito rala e cheia de vácuos, por gran-

des áreas. Seus centros de irradiação são a Bahia e Pernam-buco. A partir do primeiro, elas se espalham sobretudo paranorte e noroeste em direção do rio São Francisco, que já éalcançado em seu curso médio no correr do séc. XVII. DePernambuco, o movimento também segue uma direção nortee noroeste, indo ocupar o interior dos atuais Estados da Pa-raíba e do Bio Grande do Norte. Um núcleo secundário quetambém deu origem a um certo movimento expansionista

de fazendas de gado é o Maranhão: elas se localizam aí aolongo do rio Itapicuru.A rapidez com que se alastraram as fazendas no sertão

nordestino se explica, de uma parte, pelo consumo crescentedo litoral onde se desenvolvia ativamente a produção açu

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careira e o povoamento; doutra, pela pequena densidade eco-nômica e baixa produtividade da indústria. Mas também pela

facilidade com que se estabeleciam as fazendas: levantadanma casa, coberta em geral de palha — são as folhas de umaespécie de palmeira, a carnaubeira,  muito abundante, que seempregam —, feitos uns toscos currais e introduzido o gado(algumas centenas de cabeças), estão ocupadas três léguas(área média das fazendas) e formado um estabelecimento.Dez ou doze homens constituem o pessoal necessário: recru-tamse entre índios e mestiços, bem como entre foragidos

dos centros policiados do litoral: criminosos escapos da jus-tiça, escravos em fuga, aventureiros de toda ordem que logoabundam numa região onde o deserto lhes dá liberdade edesafogo.

Uma fazenda se constitui em regra com três léguas dis-postas ao longo de um curso d’água, por uma de largura,sendo meia para cada margem. Daí aliás o nome genéricode “ribeira” que se dá às várias regiões do interior nordestino:

a designação vem da estrutura do povoamento que se originanas fazendas que margeiam os rios. Entre cada fazenda medeava uma légua de terras que se conservam devolutas; nestalégua nenhum dos confiantes pode levantar construções ourealizar quaisquer obras. Ela serve apenas de divisa, provi-dência necessária onde, por falta de materiais apropriados,não se usam cercas ou quaisquer outras tapagens. Evitamseassim as incursões do gado em fazendas vizinhas e confusão

dos rebanhos.O trabalho é em regra livre. Nestes territórios imensos,pouco povoados e sem autoridades, é difícil manter a ne-cessária vigilância sobre trabalhadores escravos. A fazendaé dirigida por um administrador, o vaqueiro; o proprietário,em regra senhor de muitas fazendas, é um absentista que re-side ordinariamente nos grandes centros do litoral.

Para o abastecimento dos núcleos coloniais do Sul (Rio

de Janeiro, São Vicente), formamse outras regiões criatórias.O Rio de Janeiro se abastece, sobretudo nesta primeira faseda colonização, nos chamados Campos dos Goitacases, queficam a leste do atual Estado da Guanabara, margeando obaixo curso do rio Paraíba. São Vicente — e subsidiariamentetambém o Rio de Janeiro — recebem seu gado dos CamposGerais estendidos para o sul dos atuais Estados de São Paulo

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e Paraná. Nestas regiões as condições naturais são muitosuperiores às do Nordeste. A qualidade do gado é por isso

melhor, sua densidade mais elevada. E em conseqüência asfazendas não se dispersaram tanto como no Nordeste. Emparte também porque o Rio de Janeiro e São Vicente cons-tituem, nos dois primeiros séculos, núcleos secundários e muitomenos povoados que os do Norte; as suas necessidades decarne são por isso menores.

P u a d o  Ju„ Caio. História Econômica do Brasil  São Paulo, EditoraBrasiliense, 1970, pp. 41—46.

14. O pr obl ema da mãodeobra: o escravo  africano 

À medida, entretanto, em que a empresa colonial ga-nhava corpo, que à indústria da extração de madenas vinhasomarse a do açúcar, logo sobrepujandoa em importância,

começou a ressaltar à apreciação coletiva, sobretudo nas ca-pitanias do norte, a inadaptabilidade da mão de obra indí-gena para vários misteres. Mais, assim, do que os óbiceslevantados à livre exploração dos índios, é a agroindústriaque reclama e incrementa a vinda para o Brasil dos africa-nos, máquinas de trabalho afeitas a toda sorte de esforço ecuja excelência como escravos já se comprovara na çoloaização portuguesa das ilhas do Atlântico.

Sem dúvida a atuação dos jesuítas no Brasil, como a dosdominicanos, no Haiti, insurgindose contra a escravizaçãodo gentio, concorreu para apressar a vinda dos negros parao. Novo Mundo. A favor dos aborígenes da América pronun-ciarase igualmente, em 1537, o Papa Paulo III, declarandoque a ninguém, sob pena de excomunhão, era lícito pertur I  bálos no gozo de sua liberdade, enquanto, no que tocava àescravatura negra, a piedade e a cobiça, o missionário e ocolono, o legislador e o teólogo, Roma e a Reforma, falavam!

a mesma linguagem, proclamandolhe a legitimidade. Mas,apesar disso, como os próprios dominicanos faziam notar aCarlos V, em 1519, não eram eles, como não seriam os je-suítas no Brasil, que propugnavam a necessidade da intro dução de Africanos na América. Eram os colonos que os

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matavam — nos matam, escreviam ao Imperador — “com seuspedidos para terem negros.”

Também os colonos no Brasil, a esse tempo como assi-nala Antonil referindose ao século XVII, já deviam pensarnos negros que eram as mãos e os pés dos senhores de enge-nho.  Já então, sem eles, não lhes devia parecer possível  fazer, conservar e aumentar a fazenda.  Mas também sob esse aspec-to, a maninha colonia sulamericana, na qual não se encon-trara nenhum ouro ou prata, ou outra coisa de metal ou ferro, ia ser relegada pela coroa portuguesa a plano secundário,

uma vez que não lhe convinha que a venda de negros, for-necidos às toneladas, desd< as primeiras décadas do 500, paraas Índias de Castela, propiciando pingues lucros à fazendareal, fosse desviada para cá [... ]

Assim, até 1550, ano em que a metrópole manda umapartida de africanos para _a nova cidade do Salvador, “parase repartirem entre os moradores, descontandose o seu valordos soidos e ordenados destes”, não se tem notícia de qual-

quer chegada em grupo de negros ao Brasil. Ao contrário,diante de todos os documentos conhecidos, seriam apenasalguns, até então, os negros existentes na colonia, todos, ouquase todos, trazidos do reino na bagagem dos povoadores,como trastes de uso individual e doméstico. E essa a primeiravez que o negro é exportado   para o Brasil como mercadoriadestinada ao consumo da coletividade, mas ainda assim, emquantidade tão reduzida, que Nóbrega, no ano seguinte, era

obrigado a escrever a D. João III, encarecendo â necessidadede alguns negros para o colégio da Bahia.Nessas condições, é só, efetivamente^ a partir do alvará

São Tomé e ordenando que, à vista de certidão passada pelogovernador do Brasil, cada senhor de engenho pudesse res-gatar até 120 escravos do Congo, pagando apenas um terçode direitos, que começa a ser menor a penúria de braços

africanos na colonia.^Eles jamais serão fartos entre nós, aomenos até os fins do século XVII, quando cessam as ativi-dades negreiras de Portugal nas Índias de Castela, cujos por-tos lhe são fechados, primeiro em benefício dos franceses, aseguir, e definitivamente, dos ingleses. Até então, sob a orien-tação displicente e caótica do governo da metrópole, os assen

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tistas reinóis continuarão mais empenhados em vender negrospara Castela do que em atender às necessidades do Brasil.

Assim, ainda por um longo período, e mesmo nas ca-pitanias do norte, a mão de obra indígena continuará parti-cipando, ativamente, da exploração colonial. Em 1587, Ga-briel Soares atribuía à Bahia uma população de 2 mil euro-peus, 4 mil negros e 6 mil índios [ . . . ]

Mas, de qualquer modo, com a alvará de 1559, a Coroacomeçou a responder aos reclamos 3a nascente indústria açucareira da colonia e a ele, preponderantemente, devem ser

atribuídos os 2 ou 3 mil africanos que Magalhães Gandavoencontra aqui onze anos depois. A escravaria que desembarcano Brasil, nos últimos quarenta anos do século XVI, comoa que chega aos nossos portos, em todo o correr do 1600, éem função sobretudo da cana_e_ do., seu preparn indnstrial,a força do tráfico é determinada e mantida pelo açúcar, damesma forma que a mineração e o café lhe imprimirão osrumos nos séculos seguintes.

Tão vital, com efeito, era a necessidade da mão de obraafricana no trabalho dos engenhos, que Nassau, dirigindoseao Conselho dos XIX da Companhia das índias Ocidentais,achava que não era a Bahia, mas, Angola, o maior manancialde escravos do continente negro, que devia ser atacada etomada, pois nenhuma outra conquista, como a dessa colonia,podia trazer maiores vantagens à Nova Holanda [ ■■1

Com o descobrimento das minas pelos paulistas, nosfins do Seiscentos, subvertese o caráter agrícola da empresa

sulamericana, desviamse, bruscamente, as energias coloniaispara desertas e imensas regiões. Perturbase e agravase, então, o problema da mãodeobra negra, cujo preço, como ode todas as demais utilidades, sofre a alta provocada pelasnovas fontes de consumo.^

 Já em 1700, os oficiais da Câmara do Rio de Janeirorepresentavam ao soberano sobre o aumento do preço dosnegros,  pelos ali irem comprar os paulistas.  Era a falta de

escravos a principal causa do dano de que padecia a Bahia,queixavase D. Luiz Cesar de Meneses, em 1706, “por seirem para elas (as minas) a maior parte dos escravos, emrazão do maior interesse das ditas minas.” Igualmente segundo D. RodrigcTda Costa, a míngua de mãodeobra ca-

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tiva e á corrida para as Gerais ameaçavam mortalmente ascapitanias do norte, cujos colonos, ele alertava o rei, na im-

possibilidade de prosseguirem nas suas lavouras, levavam ouvendiam os seus pretos para as minas, só por lograram os excessivos que por eles ali se davam [ . . . ] E embora o concur-so do braço indígena, notadamente nos dois primeiros séculos,tenha sido de grande valia para o povoador português, foio escravo africano, a princípio nas capitanias do norte, ea partir dos começos do 1700, em outras regiões, que lhetornou possíveis, como incomparável máquina humana detrabalho, a exploração e o aproveitamento das riquezas co-loniais.

G o u l a r t , Maurício. In: História Geral da Civilização Brasileira, Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1960, tomo I, vol. 2, pp. 185—100.

15. A sociedade colonial 

A sociedade colonial brasileira é o reflexo fiel de suabase material: a economia agrária que descrevemos. .Assimcomo a grande exploração absorve a terra, o senhor ruralmonopoliza a riqueza, e com ela seus atributos naturais: oprestígio, o_ domínio. “O ser senhor de engenho, refere umcronista, é título a que muitos aspiram porque traz consigoo ser servido, obedecido e respeitado de muitos.” Alcançavampor vezes os haveres destes grandes lavradores somas consi-

deráveis para a época. A posição privilegiada do Brasil noprimeiro século da colonização, como século produtor doaçúcar, posição que só começa a perder em meados do séculoseguinte, favorece uma rápida prosperidade que cedo se re-vela na constituição de grandes fortunas [ . . . ] Naturalmentetal abastança exigia o esforço de dezenas e centenas de...tra-balhadores; sua condição necessária era pois uma ínfima mi-noria de colonos, formando uma aristocracia de plutocratas.

Tal e   ã classe que geram as grandes explorações.Compreendese a importância destes grandes agricultores em meio de uma população miserável de índios, mestiçose negros escravos. E desde o início da colonização é destesque se constitui a massa popular. É de fato numa base essen-cialmente escravista, ninguém o ignora, que assenta a eco

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nomia colonial brasileira. Sem escravos não era possível aoscolonos abasteceremse da mãodeobra de que necessitavam.

A imigração branca era escassa, e tomavase assim indispen-sável o emprego do braço escravo de outras raças. Ao pardisto tratavase apenas de seguir o exemplo da metrópole,onde a instituição servil largamente se difundira desde asguerras da conquista [ . . . ]

Esta massa de escravos índios ou negros constituía amaior parte da população colonial. Quanto à parte qüe, em-bora livre, não dispunha de recursos suficientes para se cias.

sificar entre os grandes senhores, e que dependia por issopara sua manutenção do trabalho próprio, tinha ela que for-çosamente sofrer a influência aviltante da massa escrava que.a circunda, e que punha seu marco deprimente em todo otrabalho da colônia. Por isso o próprio trabalho em princípiolivre, pouco se diferencia do do escravo. Mesmo o pequenoproprietário que lavra terras próprias — aliás raro, como vi-mos — é pouco mais que um servo. Sua gleba é antes umadependência do grande domínio com que confina que outra

coisa qualquer.Ao lado destes pequenos proprietários encontramos o tipo

mais comum dos agregados.  São estes os indivíduos — emgeral escravos libertos ou mestiços espúrios — que vivem nosgrandes domínios prestando aos senhores toda sorte de serviços: guarda da propriedade, mensageiro, etc. Entre eles fi-guram também os rendeiros, que pagam seus aluguéis cmdinheiro ou mais comumente em produtos naturais ou em

serviços. A situação destes rendeiros é a mais precária possível. Raramente se faziam contratos escritos, e mesmo nãohavia autoridades para os sancionar. Na propriedade quem.domina incontrastavelmente é o senhor. Todos osjjue se. fixamem suas terras cedem, em troca da gleba que cultivam paraseu sustento e da proteção que lhes outorga o senhor contraoutros mandões do sertão ou a própria Justiça, praticamente,toda' a liberdade F. ■.]

Tais são em linhas gerais a composição e condições dasclasses sociais da colonia. Não falamos nos assalariados porque seu contingente é mínimo. Encontramolos em algumasfunções mais qualificadas do engenho_ de .açúcar — feitores,mestres de açúcar, etc. — e em outras poucas ocupações.

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Mas são casos excepcionais que não chegam a constituir umacategoria à parte de alguma importância social.

 JÉ assim extremamente simples a estrutura social da co-lônia no primeiro século e meio da colonização. Reduzse emcnma a duas classes: de um lado os proprietários rurais, aclasse abastada dos senhores de engenho e fazendas; doutroa massa da população espúria dos trabalhadores do campo,escravos e semilivres. Da simplicidade da infraestrutura, —econômica, — a terra, única força produtiva, absorvida pelagrande exploração agrícola — deriva a da estrutura social;

a reduzida classe de .proprietários, e a grande massa quetrabalha e produz, explorada e oprimida. Há naturalmenteno seio desta massa gradações, que assinalamos. Mas elasnão são contudo bastante profundas para se caracterizaremem situações radicalmente distintas. Trabalhadores escravosou pseudo livres; proprietários de pequenas glebas mais oumenos dependentes, ou simples rendeiros, todos em linhasgerais se eqüivalem. Vivam do seu salário, diretamente desuas produções ou do sustento que lhes concede o senhor,suas condições materiais de vida, sua classificação social épraticamente a mesma. [ . . . ]

A relativa simplicidade da estrutura social brasileira noprimeiro século e meio do descobrimento se complica na se-gunda metade do séc. XVII, com o aumento da riqueza edesenvolvimento econômico do país, pela intromissão denovas formas econômicas e sociais. Ao lado da economia agrícola que até então dominara, se desenvolve a mobiliária: ocomércio e o crédito. E com ela surge uma rica burguesia denegociantes, que por seus haveres rapidamente acumulados,começa a por èm xeque a nobreza dos proprietários rurais,até então a única classe abastada, e portanto de prestígioda colonia. £ por obra dela que as cidades do litoral, ondese^fixa, se transformam em centros populosos e ricos. Recife,que antes da ocupação holandesa não passava de um ajunta-mento de choças habitadas quase exclusivamente por humil-

des pescadores, vai ofuscar a capital de Pernambuco, Olinda,a cidade da nobreza [ . . . ]

Esta classe comercial estava naturalmente por seus in-teresses, estreitamente ligada ao regime de colônia do Brasil.As. leis da metrópole excluiam os concorrentes de outras nações, que aqui nao se podiam estabelecer. Além disto, eram

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os negociantes portugueses da colonia direta ou indiretamenteinteressados nas companhias privilegiadas, ou como acionistas— muitos deles o foram — ou como representantes dela? nopaís. Eram ainda eles, em geral, os arrematadores, dos, coptmtos reais: estancos, monopólios, rendimentos fiscais da co-lônia. Prosperavam portanto à sombra da opressiva políticacomercial da metrópole,, constituindose por esta forma emadversários natos das demais classes da colônia [ . . . ]

Alinhamse assim, frente a frente, diferenciados pela evo-lução econômica e social da colônia, interesses opostos: de

um lado os dos brasileiros, especialmente dos proprietáriosrurais, a aristocracia fundiária nacional, que mais diretamentesofria o ônus da opressão colonial; doutro, os da metrópole,e a eles ligados, os dos mercadores portugueses, a burguesiacomercial. J

P r a d o  J r . j Caio. Evolução Política do Brasil e outros Estudos, Ed. Brasiliense, São Paulo, 1953, p. 22—41.

16. A est rat i f i cação social da colôni a 

A Colônia possuía estratificação social simples, clara dediscernir, sem profundas complexidades. Ao lado do esta-mento burocrático, de ligação e origem metropolitanas, cujoestudo já mereceu o cuidado deste ensaio, existiam as classes,que dele se distinguiam.

As classes definemse, segundo a técnica, werberiana, queainda neste passo será empregada, em dois polos: o positivoe o negativamente privilegiado. Elas existem na medida dapropriedade ou da carência de beijs econômicos. A situaçãode classe determinase pelo mercado, na referência a certaordem econômica, que marca a posição externa de seus mem-bros no quadro social e lhes assegura a possibilidade de dis-por on obter rendas, bens, interesses lucrativos ou proprieda-des imóveis. O destino pessoal dos indivíduos que são abrangidos na classe ocorre com a valorização, no jogo do mercado,dos bens e trabalho. De modo típico, caracterizamse elasem três categorias: classe proprietária,  na quaLas JLifetencas de propriedade  determinam de um modo primário a situação:classe lucrativa  na qual as probabilidades da valorização de

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bens e serviços no mercado  lhe determinam a situação; eclasse social,  na qual se nota um intercâmbio interno, pes-

soal e no curso das gerações, como o proletariado, a pequenaburguesia e os proprietários e privilegiados por educação.O problema, no caso brasileiro, será determinar qual a

classe predominante: se a proprietária, ou a lucrativa. Temseentendido — sem razão em nossa opinião — que até o fim doséculo XVII, apenas uma classe existia 110  Brasil, a proprietá-ria, em seus dois polos. De um lado, os senhores territoriais,donos de terras, engenhos e fazendas; de outro, a população

dos campesinos, trabalhadores livres, servilizados por relaçõesde fidelidade, e escravos. Como elemento de produção, uni-camente a terra contaria, com suas plantações e pastoreios.Entre os dois extremos, haveria a classe média de pequenosproprietários, dependentes, gravitando em torno dos lati-fúndios.

•' Em realidade, classes proprietárias, 110  aspecto positiva-mente privilegiado, são as que dispõem do monopólio dacompra de objetos de consumo de preços elevados, da possi-bilidade de planejar as vendas, impondo o preço pelo volumede suas produções, do recurso de economizar capital, distinguindose, particularmente, por um teor de vida altamentecustoso. Em vista disso, são rendeiros, sejam de terras, es-cravos, minas, barcos e outros valores. No lado oposto —dentro da mesma categoria — estão os escravos devedores,,“déclassés” e pobres.

A disposição de capital, que lhes assegura renda fixa,garantelhes um modo de vida distinto, estabilizado, relati-vamente a salvo dos bruscos giros do carro da fortuna.

Tal classe, com a significação,que. se lhe traçou, nãoexistiu, em forma influente, nos dois primeiros séculos decolonização. É um fruto tardio de nossa evolução soeial. apa-recendo com a fixação da produção da terra, ensejando aos

proprietários de fazendas e engenhos o absenteísmo na di-reção de seus negócios. Incrementouse com a compra deterras por parte dos comerciantes, que com isso se nobilitavam, não as explorando diretamente, arrendandoas ou culti-vandoas à distância. Perseguiam a renda ordinária, e nãoo enriquecimento da faina agrícola.

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Esta circunstância — da ausência da classe proprietária

— é particular ao Brasil, onde a riqueza devia ser criada naterra bravia. Os colonizadores não encontraram, aqui, a plan-tação permanente, que pudessem explorar com a ocupação,arrendando as terras a juro e herdade. A situação é diversada Europa, onde os conquistadores, pelo esforço das armas,se sobrepuseram, como classe que tendia ao feudalismo, so-bre uma economia já estável.

Na colônia americana, a colonização foi uma tarefa agrí-cola que saiu do nada. O sertão teve que ser desbravado,

para, nas clareiras, ser cultivada a terra, em demanda da pro-dução, com o fito dos lucros. Procuravase o enriquecimento,“o monopólio da direção da produção de bens no interessedos fins lucrativos de seus próprios membros” e o “asseguramento de oportunidades lucrativas”, que são os supostosda classe lucrativa  positivamente privilegiada. A agricultura,como a indústria dos engenhos, como a exploração rias minas, era uma empresa lucratiya. Nela se empenharam empresários

agrícolas, produtores de açúcar, tabaco, algodão, ouro e dia'mantes, com o emprego pessoal e direto dos donos do capital.A seu lado, como associados, e dentro do mesmo espírito,floresceram os financiadores e prestamistas de dinheiro, oscomerciantes exportadores que adiantavam bens de consumoem troca das safras, e os armadores, que se beneficiavam dotransporte, constituindo a mais rica classe de Portugal [ . . . ]

Essa classe se completa com seus membros negativamen-te privilegiados, os trabalhadores qualificados e braçais dos

engenhos, técnicos em minas, livres e escravos. No meio estavam os profissionais liberais, caixeirosviajantes, etc.

As duas categorias sociais não se mantiveram em compartimèntos estanques. ínterpenetravamse tendo havido movimento de uma para outra: a classe lucrativa, imperante nosdois primeiros séculos, com a fixação da riqneya mrnrporonse. em grande porção. _à—proprietária. Uma , circunstânciainfluia poderosamente para deslocar o comando social de uma

classe para outra: a introdução do braço escravo. Trazidopor empresários, armadores e comerciantes, propiciou à la-voura o trabalho organizado, permitindo ao proprietário dasterras aumentar sua empresa, dela se utilizando como renda,ausentandose do cuidado efetivo ou erradicandose nas ci-dades.

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60 CARÁTER E NATUREZA DO SISTEMA COLONIAL PORTUGUÊS

O çscravo teve como conseqüência, também, ainda maisabater á classe média de camponeses' e pequenos proprietá-

rios. Sem recursos para comprálos, foram vencidos pela con-corrência daqueles que o empregavam. Sem o concurso dele,ainda, não podia instalar engenhos, empregando trabalhadoreslivres. Foram impelidos, dessa sorte, para as cidades, ali£inhandose. na classe social  dos artistas, dedicados ao arte-sanato da pequena burguesia urbana [ . . . ]

Os habitantes dos sobrados (comerciantes), constituindose em forte, classe urbana alteraram, ou contribuíram para

alterar a fisionomia social da Colônia. Sua influência se fezsentir £m. dois setores: comprando terras e engenhos para seamoldarem aos hábitos dos senhores rurais, que desfrutavamde prestígio político, desmantelando o empresário agrícola,e transformandose em rendeiros./Passaram de classe lucra-tiva para classe proprietária/ Por outro lado, deram maiorexpressão à burocracia colonial, alimentandoa com ingressose tributos, e, reforçandoa pela integração nela de seus re-

bentos, letrados das universidades portuguesas.Na época em que a classe comercial urbana tendia aprevalecer — no século XVIII — os empresários agrícolas,por influência da lavoura escravagista, já se haviam tomadorendeiros. Acentuou aquela esse rumo social, adquirindo propriedades rurais.' ~sêm abandonar a cidade. Raramente _umcomerciante vendia seus interesses para_mudarse ao campo,integrandose jna classe .proprietária, lutando, contra a classede origem — quando havia acesa hostilidade entre as duascamadas, como nà Guerra dos Mascates. Em regra, perma-neciam nos sobrados, arrendando as casas de negócio ren-deiros de bens rurais e urbanos. Procuravam desviar as preo-cupações para a política aproximandose da administração,seja elegendose para as Câmaras, seja conseguindo empregospara os filhos bacharéis.

A conseqüência econômica desse estado de coisas, queainda mais acirrava a rivalidade, era a dependência, sempreacentuada, da empresa agrícola aos exportadores urbanos,agravandose nos tempos de crise, com as dívidas maiores.A terra tomavase apêndice, nessas ocasiões, dos financiado-res urbanos; seja pela venda de escravos, seja pelos forneci-mentos a longo prazo. No segundo Reinado tentouse, emvão, remediar o problema, organizandose o crédito agrícola.

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CARÁTER E NATUREZA DO SISTEMA COLONIAL PORTUGUÊS 61

O estamento burocrático, que de Portugal se estendera

ao Brasil, ganha incremento com o enriquecimento da bur-guesia urbana. Não se integrou esta naquele, senão que oreforçou, ajudandoa a burocracia com as fontes de negócios(contratos, privilégios, arrendamentos, fornecimentos) quelhe propiciava. Enquanto os empresários agrícolas, afirmandose como rendeiros, abandonavam a classe lucrativa para seintegrarem na classe proprietária, que aspirava evoluir parao estamento feudal, como estratificação própria hostil à. bu-rocracia e à sua camada original, o comércio percorria ca-

minho oposto. Fiel à sua classe, agrupavase em tomo doestamento burocrático, procurando nele ingressar, seduzidopela fascinação que lhe despertava, com a entrega de seusfilhos. Muitos dos membros da burguesia comercial eram“cristãosnovos”, cujos filhos transformavam Coimbra em “co-vil de heréticos”.

Na reação centralizadora, ElRei contaria, além da no-breza administrativa reinol e americana, recrutada pelas pro-

messas de prêmios e com cargos civis e militares, com oapoio das cidades, dirigidas pelos mercadores. Foilhe fácila disciplinação contra os senhores rurais e caudilhos, na Amé-rica, contando com a máquina, já montada e experimentada,e com contingentes novos de burocratas e comerciantes.

A Colônia conheceu forte conflito social, latente e aberto,entre os senhores territoriais, cuja concepção de vida se aproximava do espírito feudal, liberal e descentralizador, e aclasse mercantil. Era a hostilidade entre a classe proprietária,assim convertida pela prosperidade da lavoura, e. a classe lu-crativa. Com o apoio dado a esta pela administração real,aquela foi contida, atada, imobilizada. As coisas mudaram,porém, com a Independência, quando o estamento burocráticosofreu sério colapso interno, predominando, então, os senho-res rurais, com o liberalismo agressivo dos recéminiciados.Bateram, nessa época, os comerciantes, que se entrincheira-vam no partido português, cuja alma era a velha burocracia

colonial. O espisódio mais dramático dessà luta foi a Guerrados Mascates, que terminou com o triunfo da cidade comer-cial do Recife. O conflito se estenderá por toda a históriabrasileira, ocupando o primeiro plano. Diante dele desapa-recem as pequenas rebeliões interiores das classes entre domi-

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nados e senhores, como as rebeliões negras e as resistênciasdos indígenas à escravização.

Faoro, Raimundo. Os Donos do Poder,  Ed. Globo, P. Alegre,1958, pp. 106110.

17. Sesmari a doada por M art im A fonso de Sousa a  Rui Pinto 

“Martim Affonso de Sousa, do conselho de ElRei NossoSenhor e governador das terras do Brasil, etc”.

“Faço saber aos que esta minha carta virem que ha-vendo respeito como Ruy Pinto, cavalleiro da ordem deChristo, servio cá n’estas partes Sua Alteza e ficou para povoador desta terra, que com ajuda de Nosso Senhor ficoupovoando”.

“Hei por bem de lhe dar as terras do /Porto das Alma

dias/ onde desembarcam quando vão para /Piratinim/ quan-do vão d’esta Ilha de São Vicente, que se chama /Apiaçába,/que agora novamente chamase porto de /Santa Cruz/, eda banda do Sul partirá pela barra do /Cubatão/ pelo portodos outeiros que estão na boca da dita barra, entrando osditos outeiros dentro das ditas terras do dito Ruy Pinto. Ed’ahi subirá direito para a serra por um lombo que faz, porum valle que está entre um lombo por uma água branca

que lhe cahe do alto, que chamam Ytutinga/ e para melhorse saber, este lombo, entre a dita água branca por as ditasterras não se mette mais de um só valle e assim irá pelo ditolombo acima, como dito e até o cume do serro alto que vaisobre o mar e pelo dito cume irá pelos outeiros descalvadosque estão no caminho que vem de /Piratinim/. E atraves-sando o dito caminho irá pela mesma serra até chegar sobre ovalle do /Ururay/ que é da banda do Norte das ditas terras,

onde a serra faz uma fenda por uma sellada, que pareceque fenece por alli, a qual serra é mais alta que outra por alliajunta e d’ella que vem por riba do valle de /Ururay/, daqual aberta cahe uma água branca do alto d’esta dita serradesce diretamente ao rio de /Ururay/ e pela veia d’águairá abaixo até se metter no mar e outeiros escalvados, as

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CARÁTER E NATUREZA DO SISTEMA COLONIAL PORTUGUÊS 63

quaes terras lhe dou por virtude de uma doação que paraisso tenho de ElRei Nosso Senhor de que o traslado /verbo

ad verbum/ é o seguinte: “Dom João por graça de DeusRei de Portugal e dos Algarves, d’aquém e d’além mar eAfrica, Senhor de Guiné e da conquista, navegação, commércio de Etiópia, Arábia, Persia e da índia. A quantos estaminha carta virem, faço saber que as terras que MartimAffonso de Sousa, do meu conselho, achar e descobrir naterra do Brasil, onde eu o envio por meu capitãomor, quese possa aproveitar por esta minha carta, lhe dou poder paraque elle dito Martim Affonso de Sousa possa dar ás pessoas■que comsigo levar e as pessoas que na dita terra quizeremver e povoar aquellas partes das ditas terras que lhe bemparecer, segundo o merecem as ditas pessoas por seu serviçoe qualidades, e as terras que assim der serão para ellas epara todos os seus descendentes e das que assim lhes derlhes passará suas cartas que dentro de dois annos da data,cada úm aproveite a sua, e que se no dito tempo assim nãofizer os poderá dar a outras pessoas que as aproveitem com

a dita condição; e nas ditas cartas que assim der irá trasla-dada esta minha carta, para se saber a todo o tempo comoo fez por meu mandado e lhe será inteiramente guardada a<juem a tiver, e porque assim me praz lhe mandei passar estaminha carta por mim assignada e sellada com o meu sêllopendente. Dada na villa de Castro Verde aos 20 dias do mezde Novembro. Fernam da Costa a fez. Anno do Nascimento■de Nosso Senhor Jesus Christo de mil quinhentos e trintaannos. — Rei”.

“E por virtude da qual doação dou as ditas terras ao■dito Ruy Pinto com todas entradas e sahidas e rios e cabeçosd’água que nas ditas terras dentro da sobredita demarcaçãoTiouver para serem para elle e para os seus descendentespresentes e futuros sem pagarem nem um direito somentedízimo a Deus”.

“E isto com a condição que elle dito Ruy Pinto aproveiteas ditas terras n’estes dois annos primeiros e seguintes e não

o fazendo as ditas terras ficarão devolutas e para se n’ellasse fazer o que bem parecer e por virtude d’esta, mando quefique logo mettido de posse das ditas terras e esta será re-gistrada no livro do tombo que para este fim se há de fazer.

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Dada na villa de São Vicente aos dez dias do mez deFevereiro de Mil e quinhentos e trinta e três. Martim Affonso

de Sousa”.(Cartório 1.° de órfão de São Paulo, inventário de

Simão de Toledo e maço 4.° de próprios nacionais.)

In:  M a h q u e s , Manuel de Azevedo.  Apontamentos históricos, geo- gráficos, biográficos estatísticos e noticiosos da Província de São Paulo, seguidos da cronologia dos acontecimentos da Capitania de São V i- cente até o ano de 1876,  São Paulo, Martins, 1953, p. 269.

18. Da escol ha da t er ra para pl ant ar canasdeaçúcar  e para os mant iment os necessári os e prov iment os  do engenho 

“As terras boas ou más são o fundamento principal parater um engenho real bom ou mau rendimento. As que cha-mam massapésj terras negras e fortes, são as mais excelentes

para a planta das canas. Seguemse, atrás destas, os salões,terra vermelha, capaz de poucos cortes, porque logo enfra-quece. As areíscas, que são uma mistura de areia e salõesservem para mandioca e legumes, mas não para cana. E omesmo digo das terras brancas, que chamam terras de areia,como as do Camamu e dã Sambara.

A terra que se escolhe para o pasto ao redor do engenhohá de ter água e há de ser cercada, ou com plantas vivas,

como são as de pinhões, ou com estacas e varas do mato.O melhor pasto é o que tem muita grama, parte em outeiroe parte em várzea, porque, desta sorte, em todo o tempo,ou em uma ou em outra parte, assim os bois como bestasacharão que comer. O pasto se há de conservar limpo deoutras ervas, que matam a grama, e no tempo do inverno sehão de botar fora dele os porcos, porque o destroem fossando.Nele há de haver um ou dois currais, onde se metam osbois para comerem os olhos da cana e para estarem pertodo serviço dos carros. E também as bestas se recolhem noseu curral, para as não haver de buscar espalhadas.

Andam no pasto, além das éguas, bois, ovelhas e cabras;e ao redor do engenho a criação miúda, como são perus,

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galinhas e patos, que são o remédio mais pronto para aga-salhar os hóspedes que vêm de improviso. Mas, porque as

ovelhas e os cavalos chegam muito com o dente à raiz dagrama, são de prejuízo ao pasto dos bois, e por isso se odestes fosse diverso, seria melhor.

Os matos dão as madeiras e a lenha para as fornalhas.Os mangues dão caibros e marisco. E os apicus (que sãoas coroas que faz o mar entre si e a terra firme e as cobrea maré) dão o barro, para purgar o açúcar nas formas epara a oleria, que na opinião de alguns se não escusa nos

engenhos reais.De todas estas castas de terras tem necessidade um en-genho real, porque umas servem para canas, outras paramantimentos da gente e outras para o aparelho e provimentodo engenho, além do que se procura do reino. Porém, nemtodos os engenhos podem ter esta dita, antes, nenhum seachará a quem não falte alguma destas coisas. Porque, aosque estão à beiramar, comumente faltam as roças e lenha,e aos que estão pela terra dentro faltam outras muitas con-veniências que têm os que estão à beiramar, no Recôncavo.Contudo, de ter ou não ter o senhor do engenho cabedale gente, feitores fiéis e de experiência, bois e bestas, barcose carros, depende o menear e governar bem ou mal o seuengenho. /

E, se não tiver gente para trabalhar e beneficiar as terrasa seu tempo, será o mesmo que ter mato bravo com pouco ounenhum rendimento, assim como não basta para a vida po-

lítica ter bom natural, se não houver mestre que com o en-sino trate de o aperfeiçoar, ajudandoo.”

In:  A n d r o n i , Giovanni Antonio ( A n t o n i l ) . Cultura e opulência do Brasil,  texto da edição de 1711; introdução e vocabulário por AliceCanabrava; São Paulo, Editora Nacional, 1967, p. 173.

19. Como se há de haver o senhor de engenho com  

seus escravos 

Os escravos são as mãos e os pés do senhor1de engenho,porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar

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e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente. E ao moda.com que se há com eles depende têlos bons ou maus parao serviço. Por isso, é necessário comprar cada ano algumaspeçã;T e repartilas pelos partidos, roças, serrarias e barcas.E porque comumente são de nações diversas, e uns mais bo-çais que outros e de forças muito diferentes, se há de fazera repartição com reparo e escolha, e não às cegas. Os quevem para o Brasil são ardas, minas, congos de São Tomé,de Angola, de Cabo Verde e alguns de Moçambique, quevêm nas naus da Índia. Os ardas e os minas são robustos.Os de Cabo Verde e de São Tomé são mais fracos. Os de

Angola, criados em Luanda, são mais capazes de aprenderofícios mecânicos que os das outras partes já nomeadas. Entreos congos, há também alguns bastantemente industriosos ebons não somente para o serviço da cana, mas para as oficinas e para o meneio da casa.

Uns chegam ao Brasil muito rudes e muito fechados eassim continuam por toda a vida._ Outros, em poucos anossaem ladinos e espertos, assim para aprenderem a doutrina

cristã, como para buscarem modo de passar a vida e parase lhes encomendar um barco, para levarem recados e fa-zerem qualquer diligência das que costumam ordinariamenteooorrer. As mulheres usam de foice e enxada, como os homens,porém, nos matos, somente os escravos usam de machado.Dos ladinos, se faz escolha para caldeireiros, carapinas, calafates, tacheiros, barqueiros e marinheiros porque estas ocupa-ções querem maior advertência. Os que desde novatos semeterem em alguma fazenda, não é bem que se tirem dela

contra sua vontade, porque facilmente se amofínam e mor-rem. Os que nasceram no Brasil, ou se criaram desde peque-nos em casa dos brancos, afeiçoandose a seus senhores, dãoboa conta de si; e, levando bom cativeiro, qualquer delesvale por quatro boçais.

Melhores ainda são, para qualquer ofício, os mulatos;porém, muitos deles, usando mal do favor dos senhores, sãosoberbos e viciosos, e prezamse de valentes, aparelhados

para qualquer desaforo. E, contudo, eles e elas da mesmacor, ordinariamente lévam no Brasil a melhor sorte; porque,com aquela parte de sangue de brancos que têm nas veiase, talvez, dos seus mesmos senhores, os enfeitiçam. de talmaneira, que alguns tudo lhes sofrem, tudo lhes perdoam; e

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parece que se não atrevem a repreendêlos: antes, todos osmimos são seus. E não é fácil coisa decidir se nesta parte são

mais remissos os senhores ou as senhoras, pois não faltaentre eles e elas quem se deixe governar de mulatos, quenão são os melhores, para que se verifique o provérbio quediz: que o Brasil é inferno dos negros, purgatório dos brancose paraíso dos mulàtos é das mulatas: sãlvo qüandõTpor algu-ma desconfiança ou ciúme o amor se muda em ódio e saiarmado de todo o gênero de crueldade e rigor. Bom é valerse de suas habilidades quando quiserem usar bem delas,como assim o fazem alguns; porém não se lhes há de dartanto a mão que peguem no braço, e de escravos se façamsenhores. Forrar mulatas desinquietas é perdição manifesta,porque o dinheiro que dão para se livrarem, raras vezes saide outras minas que dos seus mesmos corpos, com repetidospecados; e, depois de forras, continuam a ser ruína demuitos [ . . . ]

O que pertence ao sustento, vestido e moderação detrabalho, claro está, que se lhes não deve negar, porque a

quem o serve deve o senhor, de justiça, dar suficiente ali-mento, mesinhas na doença e modo com que decèntementese cubra e vista, como pede o estado de servo e não apa-recendo quase nu pelas ruas; e deve também moderar oserviço de sorte que não seja superior às forças dos quetrabalham, se quer que possam aturar. No Brasil, costumamdizer que para o escravo são necessários três PPP, a saber,

Yipau, pão e pano. E posto que comecem mal, principiando pelocastigo que é o pau, contudo, prouvera a Deus que tão abun-dante fosse ojçomer e o vestir como muitas vezes é o castigo,dado por qualquer causa pouco provada, ou levantada; ecom instrumentos de muito rigor, ainda quando os crimessão certos, de que se não usa nem com os brutos animais,fazendo algum senhor mais caso de um cavalo que de meiadúzia de escravos, pois o cavalo é servido, e tem quem lhebusque capim, tem pano para o suor, e sela e freio dourado.

Dos escravos novos se há de ter maior cuidado, porque

ainda não tem modo de viver, como os que tratam de plantarsuas roças: e os que as têm por sua indústria, não convémque sejam só reconhecidos por escravos na repartição dotrabalho e esquecidos na doença e na farda. Os domingose dias santos de Deus, eles os recebem, e quando seu senhor

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Ihos tira e os obriga a trabalhar, como nos dias de serviço,se amofinam e lhe rogam mii pragas. Costumam alguns se-nhores dar aos escravos um dia em cada semana, para plan-tarem para si, mandando algumas vezes com eles o feitor,para que se não descuidem; e isto serve para que não pa-deçam fome nem cerquem cada dia a casa de seu senhor,pedindolhe a ração de farinha. Porém, não lhes dar farinha,nem dia para a plantarem, e querer que sirvam de sol a solno partido, de dia, e de noite com pouco descanso no en-genho, como se admitirá no tribunal de Deus sem castigo?Se o negar a esmola a quem com grave necessidade a pede

e negála a Cristo Senhor nosso, como Ele o diz no Evan-gelho, que será negar o sustento e o vestido ao seu escravo?E que razão dará de si quem dá serafina e seda e outrasfalas, as que são ocasião da sua perdição, e depois negaquatro ou cinco varas de algodão e outras poucas de panoda serra, a quem se derrete em suor para o servir e apenastem tempo para buscar uma raiz e um carangueijo para co-mer? E se, em cima disto, o castigo for freqüente e excessivo,

ou se irão embora, fugindo para o mato, ou se matarão porsi, como costumam, tomando a respiração ou enforcandose,ou procurarão tirar a vida aos que lha dão tão má, recorrendo(se for necessário) a àrtes diabólicas, ou cíamarão de talsorte a Deus, que os ouvirá e fará aos senhores o que já fezaos egípcios, quando avexavam com extraordinário trabalhoaos hebreus, mandando as pragas terríveis contra suas fazen-das e filhos, que se lêem na Sagrada Escritura, ou permitiráque assim como os hebreus foram levados cativos para aBabilônia, em pena do duro cativeiro que davam aos seusescravos, assim algum cruel inimigo leve esses senhores parasuas terras, para que nelas experimentem quão penosa é avida que eles deram e dão continuamente aos seus escravos.

Não castigar os excessos que eles cometem seria culpanão leve, porém estes se hão de averiguar antes, para nãocastigar inocentes, e se hão de ouvir os delatados e, conven-cidos, castigarseão com açoites moderados ou com os me

terem em uma corrente de ferro por algum tempo ou tronco.Castigar com ímpeto, com ânimo vingativo, por mão pró-pria e còm instrumentos terríveis e chegar talvgz aos pobrescom fogo ou lacre ardente, ou marcálos na cara, não seriapam .se sofrer entre bárbaros, muito menos entre cristãos ca-

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CARÁTER E NATUREZA DO SISTEMA COLONIAL PORTUGUÊS 69

tólicos. O certo é que, se o senhor se houver com os escravoscomo pai, dandolhes o necessário para o sustento e vestido,

e algum descanso no trabalho, se poderá também depoishaver como senhor, e não estranharão, sendo convencidosdas culpas que cometeram, de receberem com misericórdia o

 justo e merecido castigo. E se, depois de errarem como fra-cos, vierem por si mesmos a pedir perdão ao senhor ou bus-carem padrinhos que os acompanharem, em tal caso é cos-tume, no Brasil, perdoarlhes. E bem é que saibam que istolhes há de valer, porque, de outra sorte, fugirão por umavez para algum mocambo no mato, e se forem apanhados,poderá ser que se matem a si mesmos, antes que o senhorchegue a açoitálos ou algum seu parente tome à sua contaa vingança, ou com feitiço, ou com veneno.

Negarlhes totalmente os seus folguedos, que são o únicoalívio de seu cativeiro, é querêlos desconsolados e melancócólicos, de pouca vida e saúde. Portanto, não lhes estranhemos senhores o criarem seus reis, cantar e bailar por algumashoras honestamente em alguns dias do ano, e o alegraremse

inocentemente à tarde depois de terem feito pela manhã suasfestas de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito e doorgão da capela do engenho, sem gasto dos escravos, sa-cudindo o senhor com sua liberalidade aos juizes e dandolhesalgum premio do seu continuado trabalho. Porque se os juizes e juízas da festa houverem de gastar do seu serácausa de muitos inconvenientes e ofensas a Deus, por serempoucos os que o podem licitamente ajuntar. __ O que se há de evitar nos engenhos é o emborraeharemse com garapa azeda, ou aguardente, bastando cõncederlhesa garapa doce, que lhes não faz dano, e com ela fazem seusresgastes com os que a troco lhes dão farinha, feijões, aipinse batatas.

Ver que os senhores têm cuidado de dar alguma coisados sobejos da mesa aos seus filhos pequenos é causa deque os escravos os sirvam de boa vontade e que se alegremde lhes multiplicar servos e servas. Pelo contrário, algumas

escravas procuram de propósito o aborto, só para que nãocheguem og filTins de suas entranhas a padecer o que elaspadecem.

In:  Andreo ni , Giovanni Antonio ( A n t o n i l ). Cultura e Opulên-cia do Brasil,  texto da ed. 1711, introdução e vocabulário por AliceCanabrava, São Paulo, Ed. Nacional, 1967, pp. 159—164.

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A Desarticulação do Sistema Colonial e a Presença Inglesa

IV 

20. Encer rament o da et apa colonial 

Assim como seria difícil explicar o grande êxito da em-presa açucareira sem ter em conta a cooperação comercialfinanceira holandesa, a persistência do pequeno e empobre-

cido reino como grande potência colonial na segunda metadedo século XVII, bem como sua recuperação no século XVIII— durante o qual reteve sem disputas a colônia mais lucrativada época — também só pode explicarse tendo em conta asituação especial de semidependência que aceitou como formade soberania o governo português. Os privilégios conseguidospelos comerciantes ingleses em Portugal foram de tal ordem— incluiam extensa jurisdição extraterritorial, liberdade decomércio com as colonias, controle sobre as tarifas que as

mercadorias importadas da Inglaterra deveriam pagar — queos mesmos passaram a constituir um poderoso e influentegrupo com ascendência crescente sobre o governo português.Nas palavras de um meticuloso estudioso da matéria: “Por-tugal became virtually England’s commercial vassal”. O espí-rito dos vários tratados firmados entre os dois países, nosprimeiros dois decênios que se seguiram à independência,era sempre o mesmo: Portugal fazia concessões econômicas ea Inglaterra pagava com promessas ou garantias políticas [ . . . ]

Contudo, as garantias de sobrevivência não solucionavamo problema fundamental que era a própria decadência dacolônia, decorrente da desorganização do mercado do açúcar.As dificuldades econômicas do reino continuam a agravarse

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e se repetem as desvalorizações monetárias. No último quar-tel do século tomase consciência da necessidade de recon-siderar a política econômica do país. A idéia de encontrar

solução para as dificuldades da balança comercial nos pro-dutos coloniais de exportação já não parece suficiente. Pen-sase em reduzir as importações fomentando a produção in-terna no setor manufatureiro. Essa política alcançou daralguns frutos e durante dois decenios se chegou mesmo ainterditar a importação de tecidos de lã, principal manufa-tura então importada. Tal política, entretanto, não chegariaa amadurecer plenamente. O rápido desenvolvimento da pro-

dução de ouro no Brasil, a partir do primeiro decênio doséculo XVII, modificaria fundamentalmente os termos doproblema [ . . . ] e o acordo comercial celebrado com a In-glaterra em 1703, desempenhou papel básico no curso tomadopelos acontecimentos. Esse acordo significou para Portugalrenunciar a todo desenvolvimento manufatureiro e implicoutransferir para a Inglaterra o impulso dinâmico criado pelaprodução aurífera no Brasil. Graças a esse acordo, entretanto,

Portugal conservou uma sólida posição política numa etapaque resultou ser fundamental para a consolidação definitivado território de sua colônia americana. O mesmo agente inglêsque negociou o acordo comercial de 1703 (John Methuen)também tratou das condições da entrada de Portugal naguerra que lhe valeria uma sólida posição na conferênciade Utrecht. Aí conseguiu o governo lusitano que a Françarenunciasse a quaisquer reclamações sobre a foz do Amazonase a quaisquer direitos de navegação nesse rio. Igualmentenessa conferência Portugal conseguiu da Espanha o recocimento de seus direitos sobre a colônia de Sacramento.Ambos os acordos receberam a garantia direta da Inglaterrae vieram a constituir fundamentos da estabilidade territorialda América portuguesa.

Observada de uma perspectiva ampla, a economia lusobrasileira do século XVIII se configurava com uma articula-ção — e articulação fundamental — do sistema econômicoem mais rápida expansão na época, ou seja, a economia in-glesa. O ciclo do ouro constitui um sistema mais ou menosintegrado, dentro do qual coube a Portugal a posição secun-dária de simples entreposto. Ao Brasil o ouro permitiu finan-ciar uma grande expansão demográfica, que trouxe alterações

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fundamentais à estrutura de sua população, na qual os es-cravos passaram a constituir minoria e o elemento de origem

européia, a maioria. Para a Inglaterra o ciclo do ouro bra-sileiro trouxe forte estímulo ao desenvolvimento manufatureiro, uma grande flexibilidade à sua capacidade para im-portar, e permitiu uma concentração de reservas que fizeram,do sistema bancário inglês, o principal centro financeiro daEuropa. A Portugal, entretanto, a economia do ouro propor-cionou apenas uma aparência de riqueza, repetindo o pe-queno reino a experiência da Espanha no século anterior.Como agudamente observou Pombal, na segunda metade doséculo, o ouro era uma riqueza puramente fictícia para Por-tugal: os próprios negros que trabalhavam nas minas tinhamque ser vestidos pelos ingleses. Contudo, nem mesmo Pombal,que tinha uma visão lúcida da situação da dependência po-lítica em que vivia seu país e uma vontade de ferro, conse-guiu modificar fundamentalmente as relações com a Inglaterra.Na verdade, essas relações constituíam uma ordem superiorde coisas sem a qual não seria fácil explicar a sobrevivência

do pequeno reino como Metrópole de um dos mais ricosimpérios coloniais da época [...']O último quartel do século XVII veria a decadência da

mineração do ouro no Brasil. A Inglaterra já havia, semembargo, entrado em plena revolução industrial. As necessi-dades de mercados cada vez mais amplos para as manufa-turas em processo de rápida mecanização impõem nesse paíso abandono progressivo dos princípios protecionistas. O tra-tado de Methuen, que criava uma situação de privilégio paraos vizinhos portugueses no mercado inglês, é fortemente cri-ticado do ponto de vista dos novos ideais liberais. O proble-ma fundamental da Inglaterra passa a ser a abertura dos gran-des mercados europeus para as suas manufaturas, e com essefim tornavase indispensável eliminar as ataduras da eramercantilista. Com efeito, no tratado de 1786, firmado coma França, a Inglaterra pôs praticamente fim ao privilégioaduaneiro que desde o começo do século haviam gozado os

vinhos portugueses em seu mercado, única contrapartida eco-nômica que recebera Portugal nos cento e cinqüenta anosanteriores de vassalagem econômica. Minguara o mercadoda economia lusobrasiíeira com a decadência da mineraçãoe já não se justificava manter um privilégio que constituía

DESARTICULAÇÃO DO SISTEMA COLONIAL E PRESENÇA INGLESA 73

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74 DESARTICULAÇÃO DO SISTEMA COLONIAL E PRESENÇA INGLESA

um empecilho à ampla penetração no principal mercado daeuropa continental que era a França.

A forma peculiar como se processou a independência daAmérica portuguesa teve conseqüências fundamentais no seusubseqüente desenvolvimento. Transferindose o governo por-tuguês para o Brasil sob a proteção inglesa e operandose aindependência sem descontinuidade na chefia do governo, osprivilégios econômicos de que se beneficiava a Inglaterra emPortugal transferiramse automaticamente para o Brasil inde-pendente. Com efeito, se bem haja conseguido separarsede Portugal em 1822, o Brasü necessitou vários decênios maispara eliminar a tutelagem que, graças a sólidos acordos in-ternacionais, mantinha sobre ele a Inglaterra. Esses acordosforam firmados em momentos difíceis e constituíam, dentroda tradição das relações lusoinglesas, pagamentos em privi-légios econômicos de importantes favores políticos. Os acor-dos de 1810 foram firmados contra a garantia da Inglaterrade que nenhum governo imposto por Napoleão em Portugalseria reconhecido. Por eles se transferiram para o Brasil todos

os privilégios de que gozavam os ingleses em Portugal —inclusive os de extraterritorialidade — e se lhes reconheciademais uma tarifa preferencial. Tudo indica que negociandoesses acordos o govemo português tinha estritamente emvista a continuidade da casa reinante em Portugal, enquantoos ingleses se preocupavam em firmarse definitivamente nacolônia, cujas perspectivas comerciais eram bem mais^ pro-missoras que as de Portugal.

A independência, se do ponto de vista militar consti-tuiu uma operação simples, do ponto de vista diplomáticoexigiu um grande esforço. Portugal tinha em mãos uma cartade alto valor: sua dependência política da Inglaterra. Se seinterpretasse a independência do Brasil como um ato deagressão a Portugal, a Inglaterra estava obrigada a vir emsocorro de seu aliano agredido. As demarches feitas em Lon-dres nesse sentido pelo govemo lusitano foram infrutíferas,

pois, para os ingleses, restabelecer o entreposto portuguêsseria obviamente mau negócio. O que importava era garantir junto ao novo govemo brasileiro a continuidade dos privi-légios conseguidos sobre a colônia. Assim, de uma posiçãoexcepcionalmente forte, pode o govemo inglês negociar oreconhecimento da independência da América portuguesa.

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Pelo tratado de 1827, o governo brasileiro reconheceu à In-

glaterra a situação de potência privilegiada, autolimitandosua própria soberania no campo econômico.A primeira metade do século XIX constitui um período

de transição durante o qual se consolidou a integridade ter-ritorial e se firmou a independência política. Os privilégio?concedidos à Inglaterra criaram sérias dificuldades econômi-cas [ . . . ] Essas dificuldades econômicas por um lado redu-ziam a capacidade de ação do poder central e, por outro,através do descontentamento, criavam focos de desagregaçãoterritorial. É pela metade do século que ocorrem alguns fatosque permitirão consolidar definitivamente o país, e que mar-carão o sentido de seu subseqüente desenvolvimento. Namedida em que o café aumenta sua importância dentro daeconomia brasileira, ampliamse as relações econômicas comos EUA. Já na primeira metade do século esse país passaa ser o principal mercado importador do Brasil. Essa ligaçãoe a ideologia nascente de solidariedade continental contri-

buem para firmar o sentido da independência visavis  daInglaterra. Assim quando expira em 1842 o acordo com esteúltimo país, o Brasil consegue resistir à forte pressão dogoverno inglês para firmar outros documentos do mesmoestilo. Eliminado o obstáculo do tratado de 1827, estava abertoo caminho para a elevação da tarifa e o conseqüente aumentodo poder financeiro do governo central, cuja autoridade se con-solida definitivamente nessa etapa. O passivo político da co-

lônia portuguesa estava liquidado. Contudo do ponto de vistade sua estrutura econômica, o Brasil da metade do século XIXnão diferia muito do que fora nos três séculos anteriores. Aestrutura econômica baseada principalmente no trabalho es-cravo, se mantivera imutável nas etapas de expansão e deca-dência. A ausência de tensões internas, resultante dessa imu-tabilidade, é responsável pelo atraso relativo da industriali-zação. A expansão cafeeira da segunda metade do século XIX,durante a qual se modificou as bases do sistema econômico,

constitui uma etapa de transição econômica, assim como aprimeira metade desse século representou uma fase de tran-sição política. É das tensões internas da economia cafeeiraem sua etapa de crise que surgirão os elementos de um sis-tema econômico autônomo, capaz de gerar o seu próprio

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impulso de crescimento, concluindosc então definitivamentea etapa colonial da economia brasileira.

F u r t a d o , Celso. Formação Econômica do Brasil,  Cia. Ed. Nacional,1971, São Paulo, pp. 33—38.

21. O Nor deste brasi l ei ro, da descol oni zação   à dependênci a i ngl esa 

A insurreição nordestina dc 1817 ocorreu na confluênciadc dois processos distintos, porém complcmentarcs: o de des-colonização portuguesa c o de penetração inglesa na economiabrasileira. Tais processos que atingiram o clímax apenas nosegundo quartel do século XIX, já podiam ser entrevistosnas revoltas que anunciavam a independência política de1822.

Observada a história econômica do Brasil na primeirametade do século passado, ressalta a tendência à baixa rela-tiva dos preços das exportações. Segundo Celso Furtado, asprovíncias do norte — sobretudo Bahia, Pernambuco c Ma-ranhão — atravessaram nesse período sérias dificuldades. “Ospreços do açúcar caem persistentemente na primeira metadedo século e os do algodão ainda mais acentuadamente.” Etal declínio repercutiu por certo na renda per capita dessasregiões aumentando os índices de pauperização.

O movimento cclodido em 1817 no Nordeste brasileiro

está situado numa fase de recessão generalizada, cujas mani-festações mais visíveis podem ser surprendidas no nível dasflutuações dos preços dos principais gêneros exportados. Asegunda década do século assistiu à entrada no processo re-cessivo (anosbase: 1S12/1815). As cotações do açúcar bra-sileiro na Bolsa de Amsterdã, bem como o preço do algodãopassaram a registrar tal ocorrência, em termos globais; c emparticular, os preços do algodão e do açúcar nordestino indi-

cavam a natureza da crise enfrentada pela ampla região po-larizada por Recife: de fato, se se observar a cotação da pro-dução algodoeira fornecida pelo CORREIO BRAZILTENSE.do 1814 a 1821, verificarseá que o principal gênero degrande exportação daquela área sofreu queda sensível c per-manente no mercado inglês I . . . ]

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Os acontecimentos nordestinos acelerados em 1817 não

podem ser entendidos fora de seu contexto mais amplo: cons-tituíam a primeira manifestação mais significativa de umasérie de rebeliões que iriam marcar o trânsito do Brasil doAntigo Sistema Colonial português para os quadros doImperialismo da potência mais idustrializada da época (da-tas de referência: 1810 e 1827). Os motins de 1821, que atin-giram o Maranhão, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, bemcomo os levantes de 1822 no Pará, no Rio Grande do Nortee em Pernambuco, criaram o ambiente para o Fico e anun-

ciaram a eclosão das Guerras de Independência. As dificul-dades para o abafamento dos levantes regionais, após a de-claração de independência, foram superadas com o auxílioinglês, sendo que em Pernambuco acabou por surgir a con-testação mais séria ao poder central, controlado por Pedro I:a Confederação do Equador, movimento que aglutinava asProvíncias do Nordeste numa mesma organização políticasupraregional (1824). Este movimento, de cunho republi

canista e separatista, e que configura um desdobramento dainsurreição de 1817 foi abafado pelos representantes do absolutismo unificador de Pedro I, encerrandose assim a pri-meira vaga de convulsões do século XIX.

Numa perspectiva mais ampla, o estudo do movimentode 1817 não pode deixar de lado a compreensão do conjuntoem que se produziu. Na verdade, tratase de processo con-comitante ao levantamento de Gomes Freire de Andrade, noPorto. Os dois movimentos revelam as duas faces de uma

mesma realidade: a tentativa portuguesa de desvencilhamento dos laços de dependência com a Inglaterra indicando comnitidez a natureza das relações entre Portugal e essa potência;o ensaio revolucionário brasileiro, por seu lado, demonstrandoo esforço descolonizador de uma primeira camada dirigentenativa, que procurou o auxílio da Inglaterra (e dos EstadosUnidos), em sua tentativa de libertação em relação ao jugoportuguês. Os dois movimentos estavam circunscritos à área

de dominação econômica inglesa, e, em relação a ela, é queprocuravam definirse. No caso do Brasil, após a ocupaçãodo reino português pelas tropas de Junot, á penetração inglesa— que vinha se verificando de maneira acentuada desde oúltimo quartel do século anterior — obtivera a formalizaçãode suas atividades através dos tratados de 1810, caracteri-

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zandose assim o estatuto de potência privilegiada, com di-reitos de extra territorialidade e tarifas preferenciais a níveis

extremamente baixos, como bem mostrou Celso Furtado. Nocaso metropolitano, a expulsão das tropas francesas só setornara possível com o concurso de capitais e armamentos in-gleses, os quais, de resto, saberiam cobrar altos juros no planopolítico.

Assim, dentro dos quadros do nascente imperialismoinglês, ligado à Revolução Industrial, é que se pode comprender a dinâmica dos dois movimentos insurrecionais. As

velhas linhas legadas pelo monopólio comercial, ainda atuan-tes no Nordeste, não interessavam nem aos ingleses, nem aosrepresentantes da grande lavoura e de uma incipiente bur-guesia comercial, e, nesse sentido, é que se observou a con-vergência de interesses da aristocracia agraria e dos agentesingleses. Demais, no caso do Brasil, bastaria lembrar que oseventos que se cristalizaram no Nordeste às vésperas' daindependência política se passaram após os tratados decisi-

vos de 1810. As necessidades poderosas do capitalismo in-dustrial inglês imporiam as linhas de desenvolvimento dapolítica agressiva nos anos posteriores, no sentido de orga-nizar os fatores imprescindíveis à economia em mais francaexpansão do período. Com o instrumento precioso elaboradoapós a transferência da Corte (1807/1808), condição mesmapara a sobrevivência política de Portugal, a Inglaterra con-seguiria modelar o futuro da excolônia portuguesa, tornan-

doa exemplo clássico de persistência no século XIX de áreadependente, especializada na agricultura de exportação ecultivada por mão de obra escrava.

Não será demasiado notar, nessa perspectiva, que algunseventos acidentais, notadamente a Restauração em 1815 e aRevolução portuguesa de 1820, imprimiram suas marcas nosprocessos ocorrentes no Nordeste. A rigor, a insurreição de1817 desencadeouse num momento ambíguo,  em termos de

conjuntura política internacional. Por um lado, a Europa esuas colônias procuravam reorganizarse buscando as coorde-nadas do Antigo Regime; por outro, o mundo lusobrasileirotendia à liberalização, que culminaria na revolução metro-politana de 24 de agosto de 1820 — revolução liberal queem pouco tempo mostrou seu caráter igualmente ambíguo,

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ao revelarse recolonizadora. Em suma, foi num meio tempoentre um momento de reação absolutista européia e uma

tendência à liberalização no sistema lusobrasileiro que ocor-reu o movimento nordestino. Basta ainda notar, no planointernacional, que a uma Europa tumultuada, oscilando entrea liberalização e o autoritarismo, correspondia uma fase derelativa elaboração democrática nos Estados Unidos da Amé-rica do Norte: tal contraste, associado aos nascentes inte-resses comerciais norteamericanos em relação à América doSul, acabou por se projetar nas consciências das lideranças

revolucionárias nordestinas, carentes que andavam de mo-delos externos para orientar suas ações.

M o t a , Carlos G. Nordeste 1817, Ed. Perspectiva,  São Paulo, 1972,p. 1179.

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22. I nt rodução ao est udo da emanci pação polít i ca  do Brasil 

As relações entre metrópole e colônia estabeleceramsedesde a época dos descobrimentos em função dos interessesda burguesia mercantil e das exigências do Estado moderno.A debilidade do capitalismo incipiente, a fraqueza das insti-tuições estatais que não se conseguem adequar tão rapida-mente quanto seria necessário às novas formas de produçãoe consumo, determinam a aliança entre os mercadores e a

Coroa, numa troca de serviços e garantias que se define porum sistema de monopólio e privilégios concedidos pelo Es-tado aos mercadores.

A burguesia mercantil interessava o estabelecimento deum Estado suficientemente forte para “proteger os interessescomerciais e romper as barreiras medievais que se opunhamà expansão do comércio.” Uma das bases fundamentais doEstado seria o princípio da regulamentação e da restrição,aplicado em maior escala, através da proteção e do mono-pólio, com o objetivo de assegurar ao capital comercial mer-cados mais amplos e seguros.

A expressão teórica da aliança entre o capitalismo co-mercial e o Estado seria o mercantilismo. Para os mercadores,

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a riqueza consistia em armazenar ouro e prata, o que explicao extraordinário empenho dos colonizadores em descobrir ja-

zidas na América. O capital identificado ao dinheiro, o lucroé visto como a diferença de preço entre a compra e a vendados produtos. O principal objetivo da produção é obter ex-cedente exportável. Na opinião do comerciante, o Estadodeve proteger os interesses comerciais, uma vez que o lucrodo comerciante é condição de engrandecimento do Estado.A política colonial organizouse nos primeiros séculos, a partirdesses pressupostos. As colônias são vistas como fonte de ri-

quezas minerais ou agrícolas, devendo especializarse em pro-dutos de difícil obtenção no mercado europeu. Ao mesmotempo são cerceadas as outras atividades, ficando as colôniasobrigadas a adquirir na metrópole ou através da metrópoleo que necessitam. A economia colonial organizase em funçãodo mercado externo e toda produção e comércio estão sujeitosa severa regulamentação por parte da metrópole. Um con-

 junto de regulamentos e disposições progressivamente restri-tivos prendem a colônia numa teia de monopólios, privilé-gios e taxas que resultam na sua total subordinação.

O sistema colonial montado pelo capitalismo comercialentrou em crise quando o capital industrial se tornou pre-ponderante e o Estado absolutista foi posto em xeque pelasnovas aspirações da burguesia, ansiosa por controlar o poderatravés de formas representativas de governo. A partir deentão, o sistema de monopólios e privilégios que regulavaas relações entre metrópole e colônia começa a ser conde-nado. Reformulase a teoria econômica, passase do mercan-tilismo para o livrecambismo, surge uma nova noção de co-lônia e uma nova política colonial se esboça. Entram emluta o capitalismo orientado no sentido das possibilidadesfiscais e coloniais e os monopólios de Estado e o capitalismoorientado no sentido das possibilidades automáticas do mer-cado, no valor substantivo das realizações mercantis. O ex-traordinário aumento proporcionado pela máquina à produ-

ção seria pouco compatível com a persistência dos mercadosfechados e das áreas enclausuradas pelos monopólios e privi-légios.

Adam Smith em 1776 critica a política mercantil, con-dena as restrições, os monopólios, os tratados de comércio,o trabalho escravo, propondo um regime de livre concorrência

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o afirmando a superioridade do trabalho livre sobre o es-cravo ( . . . ) Jean Baptiste Say, no Tratado de Economia, publicado cm 1803, denuncia o caráter c.xpoliativo do sistemacolonial tradicional observando que as colônias são onerosaspara as metrópoles por obrigarem a despesas de manutençãode exército, administração civil e judicial, estabelecimentospúblicos e fortificações. Afirma que os privilégios comerciaisque ligam a metrópole à colônia, favorecendo os produtoscoloniais são enganosos: a França pagava a Guadalupe oaçúcar a razão de 50 francos, quando poderia obtêlo em Ha-

vana por 35. Conclui que “'as verdadeiras colônias de umpovo comerciante são os povos independentes de todas aspartes do mundo.” Portanto, qualquer povo comerciante de-veria desejar que todos fossem independentes, porque todosse tornariam mais industriosos e ricos, e quanto mais nume-rosos e produtivos, tanto maiores ocasiões e facilidades seapresentariam para o comércio. A crítica atingia os mono-pólios, os privilégios e a escravidão. Era, enfim, a própriaidéia tradicional de colônia que ele condenava.

A crítica ao sistema colonial corresponde às mudançasnas relações políticas c comerciais entre metrópole c colônia.Não implica, entretanto, na mudança de estrutura básica daprodução colonial que ao capitalismo industrial convinhamanter nas grandes linhas.

As novas concepções sobre as colônias expressam as aspi-rações dos grupos ligados ao capitalismo industrial que con-seguiriam imprimir à política as suas diretrizes. É na Ingla-terra, onde a transição do capitalismo comercial para o in-dustrial ocorre inicialmente, que se esboça, pela primeira vez,uma nova orientação na política colonial em relação à Amé-rica, a partir do momento em que sua mais importante colôniaconquistou a liberdade.

As colônias iberoamericanas teriam, a partir de então,condições mais favoráveis para pleitear a independência po-lítica, pois contariam com a simpatia e o apoio da Ingla-terra [ . . . ]

Durante o período colonial, os monopólios foram alvode numerosas críticas, havendo uma tensão permanente entreprodutores e distribuidores, entre fazendeiros de açúcar ecomerciantes, entre os que disputavam o usufruto dos pri

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vilégios'. No nível internacional, o regime de monopólios deumargem a atritos constantes entre nações detentoras de mo-

nopólios e nações impedidas de participar do comércio [ . . . ]Ao nível das colônias, as tensões manifestavamse sobaspectos diversos, em conflitos até hoje mal estudados, comopor exemplo o dos mascates, em Pernambuco, dos Beckman,no Maranhão, e os levantes ocorridos nas Gerais na épocado ouro, emboabas principalmente.

Ao findar o século XVIII, o regime de monopólios dete-rioravase rapidamente. A concorrência estrangeira e a impos-

sibilidade de eliminála, o interesse das populações coloniaisno contrabando, tornavam inoperantes os monopólios [ . . . ]O enriquecimnto e o aumento das populações coloniais,

principalmente depois da descoberta do ouro, aumentando asexigências de troca e, por outro lado, a ampliação do mer-cado europeu, fazendo crescer a demanda de produtos co-loniais, tomaram, com o tempo, cada vez mais odiosos osmonopólios e as restrições comerciais, criando na colônia um

ambiente hostil à metrópole e receptivo à pregação revolu-cionária.Rompiase, ao nível do sistema, a comunhão de inte-

resses existente entre o produtor colonial, o comercial e aCoroa, garantida pelos monopólios e privilégios. A partir deentão, eles se configuram como uma restrição penosa, e opacto colonial, de um pacto entre irmãos, passa a ser umcontrato unilateral, visto pelos colonos como um acordo quedevia ser desfeito.

As contradições e a inviabilidade do sistema não sãoentretanto claramente percebidas pelos agentes do processo.A Coroa e os agentes da metrópole dãose conta dos desca-minhos do omo, dos prejuízos que o contrabando acarreta,da queda na arrecadação dos impostos. Os colonos, por suavez, rebelamse contra as interdições da Coroa, os excessosfiscais, os desmandos dos administradores.

A tomada de consciência, necessária a ação dos colonosem favor da emancipação dos laços coloniais, darseia atra-vés de um lento processo, em que nem sempre os significadoseram claramente apreendidos pelos colonos que se insurgiamcontra o poder da Coroa, manifestando sua repulsa às res-trições à importação de escravos, aos impedimentos postos

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pela Coroa ao livre comércio e à circulação ou aos excessosdo fisco. Os conflitos de interesses, as sublevações e as re-

pressões violentas revelariam, progressivamente, a alguns se-tores da sociedade, o antagonismo latente. Os colonos quea principio se consideravam os “portugueses do Brasil”, acre-ditando que a única diferença entre os habitantes do impérioera de área geográfica, percebem, cada vez mais claramente,a incompatibilidade existente entre seus interesses e os da me-trópole. A luta, que inicialmente se manifesta como uma lutade vassalos contra o rei, muda de sentido, convertendose em

luta de colonos contra a metrópole.V i o t t i d a C o s t a , Emüia. In: Brasil em Perspectiva,  Difusão Eu-

ropéia do Livro, São Paulo, 1971, pp. 67—72.