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In: DI FELICE, M. e PIREDDU, M. Pós-humanismo: as relações entre o humano e a técnica na época das redes. São Caetano do Sul: Difusão Editora, 2010 Capítulo 3 PÓS-HUMANO, PÓS-HUMANISMO E ANTI-HUMANISMO: DISCRIMINAÇÕES Lúcia Santaella 1 Para os poucos que ainda freqüentam os arquivos, é difícil evitar a impressão de que nossa vida é a confusa resposta a indagações de cuja origem há muito nos esquecemos. (Peter Sloterdijk) Comecei a pensar na expressão “pós-humano” no início dos anos 1990, antes que tivesse ouvido ou lido qualquer coisa sobre isso. Evidentemente, nessa época, o prefixo “pós” estava na ordem do dia e era anteposto não só a -moderno, - modernismo e -modernidade, mas também a outras palavras, como -industrial, - história, -utopia, -teoria etc. No contexto brasileiro daqueles anos, o poeta Augusto de Campos até escreveu um poema com o instigante título de Pós-tudo 2 . Revolvendo a memória, vem-me à lembrança que estava naqueles anos bastante impressionada com a leitura do livro O inumano, de Lyotard 3 , leitura que lançou uma luz nova à minha compreensão do conceito de pulsão de morte em Freud. Numa interpretação livre, desde então, passei a ver a tendência à inércia, à morte, à destruição como a dimensão não-humana, inumana que habita o cerne do humano. Há algo de inumano no coração mesmo do humano. Paralelamente a isso, também estava às voltas com leituras de obras de Prigogine 4 nas quais o autor evidencia que, na natureza, em sistemas dinâmicos fora do equilíbrio, existe uma tendência do caos para a ordem. Trata-se, portanto, de um princípio que age como uma espécie de análogo antitético do princípio que comanda 1 Professora titular na pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUCSP. Doutora em Teoria Literária pela PUCSP e Livre-docente em Ciências da Comunicação pela USP. É coordenadora do programa de pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (PUCSP), presidente honorária da Federação Latino-Americana de Semiótica. É Diretora do Cimid, Centro de Investigação em Mídias Digitais e Diretora do Centro de Estudos Peirceanos, ambos na PUCSP. É membro correspondente da Academia Argentina de Belas Artes e Presidente em 2007 da Charles S. Peirce Society, USA. Recebeu o prêmio Sergio Motta - Líber de Arte e Tecnologia, em 2005. Organizou 11 livros e, de sua autoria, publicou 30 livros, entre os quais incluem-se Matrizes da Linguagem e Pensamento: Sonora, Visual, Verbal (prêmio Jabuti 2002) e o mais recente Linguagens líquidas na era da mobilidade (2007). 2 Campos, Augusto de. Pós-Tudo, Folhetim, Folha de São Paulo, 31/03/1985. Esse poema foi inserido no livro À margem da margem (1989) e integra também o livro Despoesia (1994). Para uma análise primorosa desse poema, ver Motta, Leda Tenório. Sete chaves para pós-tudo. Revista Mnemozine, 2008, 67-74. 3 Lyotard, Jean-François. L'Inhumain, causeries sur le temps. Paris: Galilée, 1988. Tradução brasileira: O inumano: considerações sobre o tempo. Estampa, 1997. 4 Prigogine, Ilya. O nascimento do tempo. Lisboa: Edições 70, 1990. Prigogine, I. e Stengers, I. A nova aliança: metamorfose da ciência. Brasília: UNB, 1984.

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In: DI FELICE, M. e PIREDDU, M. Pós-humanismo: as relações entreo humano e a técnica na época das redes. São Caetano do Sul: Difusão Editora, 2010

Capítulo 3

PÓS-HUMANO, PÓS-HUMANISMO E ANTI-HUMANISMO: DISCRIMINAÇÕES

Lúcia Santaella1

Para os poucos que ainda freqüentam os arquivos,é difícil evitar a impressão de que nossa vida

é a confusa resposta a indagações de cuja origem há muito nos esquecemos.

(Peter Sloterdijk)

Comecei a pensar na expressão “pós-humano” no início dos anos 1990, antesque tivesse ouvido ou lido qualquer coisa sobre isso. Evidentemente, nessa época, oprefixo “pós” estava na ordem do dia e era anteposto não só a -moderno, -modernismo e -modernidade, mas também a outras palavras, como -industrial, -história, -utopia, -teoria etc. No contexto brasileiro daqueles anos, o poeta Augusto de Campos até escreveu um poema com o instigante título de Pós-tudo 2.

Revolvendo a memória, vem-me à lembrança que estava naqueles anos bastante impressionada com a leitura do livro O inumano, de Lyotard3, leitura que lançou uma luz nova à minha compreensão do conceito de pulsão de morte em Freud. Numa interpretação livre, desde então, passei a ver a tendência à inércia, à morte, à destruição como a dimensão não-humana, inumana que habita o cerne do humano. Há algo de inumano no coração mesmo do humano.

Paralelamente a isso, também estava às voltas com leituras de obras de Prigogine4 nas quais o autor evidencia que, na natureza, em sistemas dinâmicos forado equilíbrio, existe uma tendência do caos para a ordem. Trata-se, portanto, de um princípio que age como uma espécie de análogo antitético do princípio que comanda

1 Professora titular na pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUCSP. Doutora em Teoria Literária pela PUCSP e Livre-docente em Ciências da Comunicação pela USP. É coordenadora do programa de pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (PUCSP), presidente honorária da Federação Latino-Americana de Semiótica. É Diretora do Cimid, Centro de Investigação em Mídias Digitais e Diretora do Centro de Estudos Peirceanos, ambos na PUCSP. É membro correspondente da Academia Argentina de Belas Artes e Presidente em 2007 da Charles S. Peirce Society, USA. Recebeu o prêmio Sergio Motta - Líber de Arte e Tecnologia, em 2005. Organizou 11 livros e, de sua autoria, publicou 30 livros, entre os quais incluem-se Matrizes da Linguagem e Pensamento: Sonora, Visual, Verbal (prêmio Jabuti 2002) e o mais recente Linguagens líquidas na era da mobilidade (2007). 2 Campos, Augusto de. Pós-Tudo, Folhetim, Folha de São Paulo, 31/03/1985. Esse poema foi inserido no livro À margem da margem (1989) e integra também o livro Despoesia (1994). Para uma análise primorosa desse poema, ver Motta, Leda Tenório. Sete chaves para pós-tudo. Revista Mnemozine, 2008, 67-74.3 Lyotard, Jean-François. L'Inhumain, causeries sur le temps. Paris: Galilée, 1988. Tradução brasileira: O inumano: considerações sobre o tempo. Estampa, 1997.4 Prigogine, Ilya. O nascimento do tempo. Lisboa: Edições 70, 1990. Prigogine, I. e Stengers, I. A nova aliança: metamorfose da ciência. Brasília: UNB, 1984.

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a pulsão de morte na vida humana. Foi esse ponto de cruzamento entre uma tendência para a ordem que prevalece na natureza e uma tendência para a morte, operando no íntimo da psique humana, que despertou em mim a idéia de algo que poderia ser chamado de “pós-humano”.

Como disse J. L. Borges, somos leitores distraídos de atenções parciais. Não demorou muito para que a parcialidade da minha atenção começasse a se deparar com obras, lançadas por aqueles anos, cujos títulos estampavam a expressão “pós-humano5, evidentemente trazendo entendimentos do conceito bem distintos daquele que havia surgido para mim. Pepperell, artista inglês voltado para as emergências tecnológicas, é bem claro na perspectiva que adota sobre o pós-humano. Ele usa esse nome para se referir tanto à derrocada do humanismo tradicional para dar conta das transformações por que o humano está passando, quanto às fontes principais dessas transformações que se encontram na convergência do humano com as tecnologias, tais como: comunicação global, realidade virtual, protética, nanotecnologia, redes neurais, algoritmos genéticos, manipulação genética e vida artificial. A dupla Halberstam e Livingstone, dentro de uma moldura feminista, trata as implicações dos corpos com as mudanças tecnológicas, representacionais, sexuais e teóricas.

Coincidentemente, também nesse período, a artista Diana Dominguez, então minha orientanda de doutorado, havia voltado de um estágio de pesquisa em Paris, carregando um arsenal de novidades em livros sobre imagens tecnológicas, arte, computação, mídia, comunicação, livros que ela me disponibilizou para que pudéssemos ter um diálogo mais profundo em relação aos rumos que ela daria à sua pesquisa. Nessa bibliografia, dominava a questão do pós-humano que, acompanhado de expressões sinonímicas, como pós-biológico6, autômata cibernético7, pós-evolucionismo8, bio-maquínico9, reportava-se prioritariamente às transformações do corpo humano provocadas pelas próteses tecnológicas.

A partir daí, tenho obstinadamente perseguido e perscrutado esse tema. Por isso, justifico a liberdade de apresentar este retrospecto de biografia intelectual uma vez que, desde 1998, venho copiosamente publicando sobre o pós-humano. Comecei pelo corpo protético, que chamo de bio-cibernético, justo o ângulo que tem dominado nas discussões sobre o pós-humano10. Mas, logo, passei a explorá-lo sob

5 Pepperell, Robert. The post-human condition. Oxford: Intellect, 1995. Halberstam, J. e Livingstone, Ira. Posthuman bodies. Bloomington: Indiana University Press, 1995.6 Moravec, Hans. Mind children. Harvard University Press, 1988. Ascott, Roy (1995). Le retour à la nature II. In L’esthétique des arts médiatiques, Louise Poissant (org.) Presses de l´Université du Quebec, 1995, 437-451.7 Beaunne, Jean Claude (1989). The classical age of automata. In Fragments for a history of human body, Michel Ferrer et al. (orgs.) New York: Zone Books.8 Stelarc. Da strategie psichologiche a cyberstrategie: prostetica, robotica ed esistenza remota. In Il corpo tecnologico, Luigi Capucci (org.) Bologna: Baskerville, 1994, 61-76. Idem. Design et adaptation du corps dans l’univers cybernétique. In L’esthetique des arts médiatiques, Louise Poissant (org.) Presses de l´Université du Quebec, 1995, 383-389. Idem. Das estrategias psicológicas às estratégias cibernéticas: a prótese, a robótica e a existência remota. In A Arte no Século XXI, Diana Domingues (ed.). São Paulo: Unesp, 1997, 52-61.9 Antonnucci, Francesco. Il corpo della mente. In Il corpo tecnologico, Luigi Capucci (org.) Bologna: Baskerville, 1994, 17-24.10 Santaella, Lucia. Cultura tecnológica e o corpo biocibernético. Margem 8. Tecnologia e Cultura, 1998, 33-44. Esse mesmo artigo foi republicado em Interlab. Labirintos do pensamento contemporâneo, Lucia Leão (org.). São Paulo: Fapesp/Iluminuras, 2002, 197-206. Ver também Idem. Corpo e comunicação. Sintoma da cultura. São Paulo: Paulus, 2004.

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os pontos de vista da arte11, da semiótica12 e da psicanálise13. Após essas publicações, sem que pudesse ter previsto quando me apaixonei pela questão, o assunto foi se tornando, nacional e internacionalmente, moeda cada vez mais corrente, incluindo sites que proliferam na internet e exibições até em bancas de revistas. Como fruto disso, sua complexidade foi crescendo e exigindo atenção para a pluralidade de facetas com que vem aparecendo.

A diversidade progressiva dos sentidos do pós-humano passou a demandar que as árvores dessa floresta sejam distinguidas, o que me levou a retomar o tema, em algumas outras ocasiões, inclusive, para esclarecer tópicos que, por terem sido anteriormente tratados com brevidade, poderiam gerar equívocos. Assim, localizei a genealogia e contextualização do pós-humano na pós-modernidade e recuei a buscadas suas origens em alguns anos, para encontrá-la na literatura cyberpunk, assim como estabeleci a distinção entre um pós-humano ilusionista versus um pós-humanocrítico. As questões relativas ao corpo protético, até então dominantes, cederam um pouco de seu espaço para discussões sobre a condição pós-humana em geral14.

Tendo esse relato retrospectivo como cenário, é agora chegada a hora de acertar pelo menos algumas contas com a filosofia. Afinal, falar em pós-humano implica discutir o que se entende por humano, tarefa que ainda não havia enfrentadoe que me parece fundamental para evidenciar as distinções entre um pós-humanismo antes do pós-humano e um pós-humanismo depois do pós-humano, enunciado este que, por si só, já evidencia que também há uma diferença a ser discutida entre pós-humano e pós-humanismo os quais, de modo algum, podem ser confundidos com um anti-humanismo, se entendermos este último como a negação do humano, entendimento que levaria à porta de saída mais fácil e preconceituosa para abandonar o debate. Então vejamos.

1. A carta de Heidegger sobre o humanismoAntes da emergência contemporânea do pós-humano no ambiente das

revoluções tecnológicas atuais, a carta de Heidegger sobre o humanismo15 é a obra mais influente a discutir explicitamente a crise do humanismo clássico e a necessidade de um pós-humanismo ou, mais adequadamente, de um trans-humanismo. Embora o texto sartreano “O existencialismo é um humanismo”16 também tenha sido, na sua época, até mais influente do que o de Heidegger, a necessidade de um trans-humanismo não se colocou para Sartre.

Heidegger escreveu seu artigo em resposta a algumas perguntas que lhe foram dirigidas por seu amigo francês Jean Beaufret, “um pensador jovem que tinha tomado a liberdade, durante a ocupação da França pelos alemães, de deixar-se entusiasmar por um filósofo alemão”17. Entre as perguntas, a central: “Como dar de volta um sentido à palavra Humanismo?”

11 Santaella, Lucia. O corpo bio-cibernético e o advento do pós-humano. In Idem. Culturas e artes do pós-humano. Da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003, 181-208.

12 Santaella, Lucia. A semiose do pós-humano. In Idem. Culturas e artes do pós-humano, op. cit., 209-230.13 Santaella, Lucia. A psicanálise e o desafio do pós-humano. In Idem. Culturas e artes do pós-humano, op. cit., 231-250.14 Santaella, Lucia. Pós-humano. Por quê? Revista da USP, vol. 74, 2007a, 126-137. Idem. Os múltiplos sentidos do pós-humano. In Idem. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007b, 31-54. Idem. Pós-humano: um conceito polissêmico. In Horizontes e flagelos da cibercultura. Eugenio Trivinho (org.), 2009.15 Heidegger, Martin. Carta sobre el humanismo. In Sobre el humanismo. Buenos Aires: Sur, 1960, 63-121.16 Sartre, Jean-Paul. El existencialismo es un humanismo. In Sobre el humanismo. Buenos Aires: Sur, 1960, 9-61.17 Sloterdijk, Peter. Regras para o parque humano. Uma resposta da carta de Heidegger sobre o humanismo, José Oscar de Almeida Marques (trad.). São Paulo: Estação Liberdade, 2000, 21.

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O contexto do texto heideggeriano era o outono de 1946, no momento mais miserável da crise européia do pós-guerra. A situação de Heidegger era delicada, dada a dubiedade de suas posições políticas nos terríveis anos anteriores. Como afirma Sloterdijk, “Heidegger sabia, ao redigir essa carta, que tinha de falar com voz frágil ou escrever com mão hesitante”18. Embora cuidadoso, o texto é, afinal, corajoso e, em nada, o autor arredou seu espírito dos princípios filosóficos já expostos em Ser e tempo19. Ao contrário, tomou-os como fundamentos para a urgência de um humanismo em sentido extremado, que pensa a humanitas do homem a partir da cercania do ser.

Por isso mesmo, já na terceira página do texto, Heidegger responde a Beaufret como um mestre ao discípulo: “Essa pergunta decorre do intento de reter a palavra “humanismo”. Pergunto-me se isso é necessário. Ou não é ainda suficientemente notória a desgraça que causam títulos dessa espécie? Faz tempo que se desconfia dos “ismos”. Mas o mercado da opinião pública pede constantemente novos. E alguém está sempre disposto a responder a essa demanda”20. A que humanismo Heidegger estava se opondo e ao qual propunha como substituto um humanismo extremado? Eis a questão.

A humanitas, com esse nome, foi considerada e desejada pela primeira vez nos tempos da República Romana, na qual o homem humano se contrapunha ao homem bárbaro. O humano é aqui o romano que eleva e enobrece a virtude romana porque incorporou a humanidade recebida dos gregos, mais propriamente do helenismo, cuja cultura foi ensinada nas escolas filosóficas. Já no Renascimento, o bárbaro não é mais o estrangeiro, mas o barbarismo da escolástica gótica do Medievo. Tal como entendido historicamente, o humanismo pertence sempre a um estudo da humanidade que remete à antigüidade e que sempre se converte em se reviver os gregos. É isso que se mostra no humanismo do século XVIII, sustentado, entre outros, por Goethe e Schiller, com exceção de Hölderlin, pois este “pensa o destino da essência do homem mais originariamente do que é capaz de fazê-lo essehumanismo” (p.73)21.

Entretanto, se entendemos o humanismo em geral como o empenho para queo homem tenha a liberdade de assumir sua liberdade e nisso encontre a sua dignidade, então, dependendo da maneira como se entende liberdade e dignidade, ohumanismo, em cada caso, diferirá. Assim, o humanismo de Marx não é o mesmo humanismo de Sartre, assim como estes não se confundem com o humanismo cristão. Não obstante as diferenças enquanto fundamento e fim, enquanto espécie e meios para sua realização, segundo Heidegger, todas essas modalidades de humanismo têm em comum o fato que a humanidade é determinada a partir de uma interpretação já estabelecida da natureza, da história, do mundo, do fundamento do mundo. Todas essas versões do humanismo são metafísicas ou se convertem em fundamentos da metafísica, pois “toda determinação da essência do homem que supõe a interpretação do ente, sem a pergunta pela verdade do ser – quer seja sabendo-o ou não – é metafísica (pp. 73-74).

Desde o humanismo romano, todas as espécies de humanismo tomam a essência geral do homem como subentendida: “o homem é um animal racional”. Embora essa determinação essencial do homem não seja falsa, para Heidegger, ela está condicionada pela metafísica. Ora, essa animalidade é justamente o atributo que a ontologia pura e radical de Heidegger não podia absorver. Acreditar na animalidade significa pensar o homem a partir de seu caráter animal e não de seu caráter humano. “Que a fisiologia e a química fisiológica possam examinar

18 Ibid.: 20.19 Heidegger, Martin, "El Ser y el Tiempo", J. Gaos (trad), 7ª ed. México/Madrid/Buenos Aires, F. Cultura Economica, 1989.20 Heidegger, Martin. Carta sobre el humanismo. Op. cit., 67-68.21 Como se trata de uma breve exegese da carta heideggeriana, as páginas de referência serão, daqui para a frente, indicadas no corpo do meu texto.

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cientificamente o homem como organismo, não é uma demonstração de que, no “orgânico”, isto é, no corpo cientificamente explicado, resida a essência do homem” (p. 77).

Ao contrário, “o pensar deve primeiramente chegar a dizer o ser em sua verdade, em vez de explicá-lo como um ente por meio de outros entes” (p. 88). Por isso, a metafísica é o esquecimento da verdade do ser em benefício do ente, não considerado em sua essência. “A metafísica não pergunta pela verdade do ser. Tampouco pergunta pelo modo em que a essência do homem pertence à verdade do ser (p. 75). Com isso, “a metafísica está fechada para o conteúdo essencial de que o homem só é essencialmente em sua essência, enquanto o ser lhe dirige a palavra” (p. 76).

É notória a convicção com que Heidegger retorna nesse texto aos princípios de sua filosofia. Essa convicção não vem do voluntarismo. Os horrores da guerra brutalmente escancararam a falência do pressuposto da racionalidade humana que guiava todas as versões do humanismo. Era preciso retomar o empenho de recondução do homem à sua essência.

Se o homem deve encontrar de novo o caminho da proximidade do ser, então tem primeiro que aprender a existir no inominado. Tem de reconhecer tanto a sedução da publicidade quanto a impotência do privado.Antes de falar, o homem tem que deixar que o ser novamente lhe dirija a palavra, correndo o risco de que, embargado deste modo, não tenha nada a dizer, ou apenas muito raramente. Só assim se devolve à palavra a preciosidade de sua essência, e ao homem a morada para que habite na verdade do ser (p. 71).

A essência não se determina nem a partir do ser-essência, nem do ser-existência, mas a partir do ec-estático do existir. O modo como o homem é essencialmente sua própria essência é o estar ec-estático na verdade do ser. Diferentemente de existência que significa atualidade, ec-xistência é o sair-se para averdade do ser. “Ec-sistência nomeia a determinação daquilo que o homem é no destino da verdade” (p. 79). Quando, em Ser e Tempo, Heidegger fala da ec-xistência estática como cuidado, chama a atenção para o ato de resguardar a verdade do ser: o homem como guardião do ser. O ser é o que está mais perto, masessa cercania parece distante porque o homem se atém sempre ao ente. Do mesmomodo que a humanidade do homem animal oculta a ec-xistência, ela também oculta a essência da fala do ponto de vista do ser. Segundo essa essência, a fala é a casa do ser, acontecida e transpassada pelo ser. Por isso, em correspondência com o ser, a essência da fala é a morada da essência do homem. Este não é apenas um ser com vida que, ao lado de outras faculdades, possui também a fala, mas a fala é a casa do ser. Nela habitando, o homem ec-xiste, enquanto resguardando-a, pertence à verdade do ser (p. 87).

Diante disso, como se pode voltar a dar sentido à palavra humanismo? Para Heidegger, a pergunta de Beaufret não apenas supõe o desejo de reter a palavra “humanismo”, como também testemunha como essa palavra perdeu o sentido (p. 99). Já em Ser e tempo, o pensamento de Heidegger colocava-se contra o humanismo, o que não significa ir ao extremo de preconizar o inumano, defendendo o desumano e degradando a dignidade do homem. Significa, isto sim, dar à humanidade um sentido tão decisivo que não foi e não será jamais pensado por qualquer metafísica. Não seria, então, ainda um humanismo, mas um humanismo extremado esse que pensa a humanidade do homem a partir da cercania do ser, do ec-stático habitar na cercania do ser? Certamente sim, afirma Heidegger.

O pós-humanismo heideggeriano é evidentemente um pós-humanismo historicamente anterior aos debates que, sob o nome de pós-humano, emergiram sob efeito de uma pluralidade de fatores resultantes dos avanços tecnológicos. Mas

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esse tópico só será discutido depois do exame da resposta de Sloterdijk a Heidegger, como se segue.

2. O parque humano segundo SloterdijkA aguda lucidez desse texto de Sloterdijk22 convida-nos a seguir o seu

percurso passo a passo, ainda mais porque, em um de seus argumentos centrais, encontro um endereçamento para a exposição posterior de alguns dos dilemas cruciais do pós-humano.

O autor começa com um retrospecto histórico do surgimento e desenvolvimento do humanismo no qual aprofunda, com uma ótica própria, as breves perspectivas históricas apresentadas por Heidegger. Para Sloterdijk, o que, desde Cícero, recebe o nome de humanitas, tanto no sentido amplo, quanto no sentido estreito, é uma das conseqüências da alfabetização. A filosofia não é apenas“um discurso sobre o amor à sabedoria, mas também quer impelir outros a esse amor”, o que explica o êxito de seu contágio por mais de 2.500 anos (p. 7)23. Não teria havido o humanismo nem a cultura filosófica em línguas vernáculas, sem a disposição dos romanos em entabular conversa com os textos escritos dos gregos, tornando-os acessíveis às culturas européias posteriores.

No início, os humanizados eram os participantes da elite dos que sabiam ler. Mais tarde, nos séculos XIX e XX, quando “o padrão da sociedade literária ampliou-se para norma da sociedade política”, então programático e pragmático, o humanismo fazia parte integrante da ideologia ginasial dos Estados nacionais burgueses. Para cada território nacional, havia um cânon obrigatório de leitura que, ao lado dos autores da Antigüidade, comum a todos, era composto de clássicos nacionais e modernos distribuídos pelo mercado editorial (p. 11-12). O ápice do nacional humanismo livresco deu-se entre 1789 a 1945, quando “vicejava, vaidosa econsciente do seu poder, a casta dos filólogos clássicos e modernos, que se sabiam incumbidos da tarefa de iniciar os descendentes no círculo de receptores” dos autores “que deviam ser considerados como remetentes de escritos fundadores da comunidade”. O pleno poder de impingir os clássicos à mocidade e reivindicar o valor universal das leituras nacionais constituiu-se nos fundamentos do humanismo burguês, fundamentos que, de 1945 em diante, irremediavelmente se esgotaram (p. 13). Por quê? A resposta de Sloterdijk é taxativa.

Com o estabelecimento midiático da cultura de massas no Primeiro Mundo em 1918 (radiodifusão) e depois de 1945 (televisão), e mais ainda pela atual revolução da Internet, a coexistência humana nas sociedades atuais foi retomada a partir de novas bases que são decididamente pós-literárias, pós-espistolares e, conseqüentemente, pós-humanistas. Isso não significa que o mundo dos livros tenhachegado ao seu fim, mas passou a ser uma sub-cultura sui-generis e os dias de sua supervalorização como portadora dos espíritos nacionais estão findos (p. 14).

A síntese social não é mais – nem mesmo em aparência – algo em que livros e cartas tenham papel predominante. Nesse meio tempo, novos meios de telecomunicação político-cultural assumiram a liderança, reduzindo a uma modesta medida o esquema das amizades nascidas da escrita. A era do humanismo moderno como modelo de escola e de formação terminou porque não se sustenta mais a ilusão de que grandes estruturas políticas e econômicas possam ser organizadas segundo o amigável modelo da sociedade literária (pp. 14-15).

Já ao final da Primeira Guerra Mundial era reconhecido o desmatelamento dessa ilusão. Mas não faltaram revivescências, especialmente depois dos flagelos 22 Sloterdijk, Peter. Regras sobre o parque humano. Op. cit.23 Daqui para frente, as páginas de referência serão indicadas no corpo do meu texto.

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da Segunda Guerra. Conforme Sloterdijk, do ponto de vista que sua tradição e vivência centro-européias lhe dão, esses anos viram emergir um neo-humanismo inspirado no recém descoberto Ocidente fundado no humanismo cristão, que abrigava o sonho de salvação da alma européia “por meio de uma bibliofilia radicalizada – um entusiasmo melancólico pelo poder civilizador e humanizador da leitura clássica – se, por um momento, nos dermos a liberdade de conceber Cícero eCristo lado a lado como clássicos” (p. 16).

Foi justamente nesse período que foi escrita a carta heideggeriana com sua proposição pós-humanista ou trans-humanista. A leitura que Sloterdijk faz dela, embora respeitosa, não oculta uma ironia sutil e velada. Com suas imagens no domínio do pastoral e do idílio, Heidegger opõe-se, mas ao mesmo tempo radicaliza o humanismo clássico, transferindo-o do campo pedagógico para o centro da consciência ontológica. O que dá segurança a Heidegger da mudança de rumo é sua vinculação do homem ao ser em uma correspondência que confina o homem-pastor nas proximidades ou cercanias da casa -- a linguagem como casa do ser -- expondo-o, portanto, a uma imobilidade e uma servidão resignada. Com isso, “Heidegger quer um homem mais servil do que seria um mero bom leitor” (p. 28).

O mundo histórico da Europa, concebido por Heidegger como um teatro dos humanismos militantes, à maneira de armamentos da subjetividade, levou a cabo sua fatídica tomada de poder sobre todos os seres. Assim, o humanismo se oferece como cúmplice natural de todos os possíveis horrores que podem ser cometidos em nome do bem humano. Daí Heidegger propagar uma mudança de atitude que dirige o homem para uma ascese reflexiva que vai bem mais longe que todas as metas de educação humanistas. Só a força dessa ascese poderia formar uma sociedade de reflexivos (p. 30).

O que fica vago, diz Sloterdijk, é como se poderia erigir uma sociedade de vizinhos do ser. “Até que surja algo mais nítido, ela deve ser concebida como uma igreja invisível de indivíduos dispersos, dos quais cada um a seu modo escuta às escondidas o assombroso e espera as palavras nas quais se expressa o que a própria linguagem concede ao falante dizer” (p. 29). Em vista disso, o julgamento de Sloterdijk não faz rodeios: “a bucólica pastoral ontológica de Heidegger – que já na sua época soava estranha e escandalosa – hoje parece completamente anacrônica” (p. 31).

Para Sloterdijk, o humanismo sempre se definiu em oposição ao barbarismo. É por isso que ele tende a re-emergir em todos os momentos históricos em que o potencial bárbaro dos homens se atualiza em toda a sua torpeza. Por trás de qualquer questionamento sobre o destino da humanidade e dos meios de humanização reside a interrogação acerca da subsistência da esperança de que as tendências embrutecedoras entre os homens possam ser dominadas. A palavra humanismo recorda a contínua disputa entre as tendências bestiais e as tendências domesticáveis do humano e faz parte do humanismo crer que os seres humanos podem ser porosos a influências domesticadoras. Assim Sloterdijk entende o humanismo, no cerne do qual se trava a batalha primordial de que os romanos nos forneceram o modelo paradigmático: de um lado, a leitura filosófica humanizadora, paciente e provedora de consciência, do outro lado, o militarismo onipenetrante e os espetáculos sangrentos das execuções, combates de gladiadores e açulamento de animais.

Sloterdijk vai mais fundo. Na obstinada reserva contra toda a antropologia e na ânsia de preservar o ponto de partida ontologicamente puro do Estar-aí (Dasein), Heidegger recusou-se enxergar a constituição animal do ser humano. Um animal cujo caráter paradoxal pode ser traçado na história da espécie que, pela precocidade do nascimento, pela neotenia, por não nascer pronto, possui uma imaturidade animalesca crônica. Desse fracasso como animal, resume Sloterdijk, “esse ser indeterminado tomba para fora de seu ambiente e com isso ganha o

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mundo no sentido ontológico”. Mas “se o homem está-no-mundo, é porque toma parte de um movimento que o traz ao mundo e o abandona ao mundo. (...) Esse êxodo geraria apenas animais psicóticos (...) se o chegar-ao-mundo humano não assumisse desde cedo os traços de um chegar-à-linguagem” (pp. 34-35).

Quando escreveu essa resposta à carta heideggeriana, Sloterdijk já havia terminado de escrever os dois primeiros volumes Bolhas (Blasen) – Microesferologiae Globos (Globen) – Macroesferologia da sua monumental obra em três volumes Esferas (Sphären)24. Em Bolhas, todos os espaços humanos aparecem como reminiscências do abrigo original da primeira esfera humana, o feto-útero, que é brutalmente rompida com o nascimento, mas é reencenada na para sempre acalentada díada mãe-filho, formação esférica, cheia de tons e ressonâncias sonoras, espaço protetor contra a absoluta impotência do infans, mas que, ao mesmo tempo, propicia a relação eu-outro e o desenvolvimento da linguagem.

Também em Freud, o desamparo irredutível em que o ser humano é lançado ao mundo encontra na simbiose mãe-filho a seiva propícia ao surgimento do amor, sentimento que é tensionado e fragilizado no confronto com os vieses do desejo e asvicissitudes das pulsões e que, por isso mesmo, está longe de vencer as forças antitéticas da tendência humana destrutiva e mortífera.

Sem dúvida, a intuição mais profunda do filme Artificial Intelligence, de Spielberg (2001) foi a de evidenciar que, mesmo em um futuro povoado de robôs, ospólos caracterizadores da psique humana, antagônicos e inconciliáveis do amor e dadestrutividade continuarão, cada um com sua força própria, inflexíveis. Com um argumento que se faz passar por um conto de fadas futurístico, o filme encerra um ensinamento que ilustra tanto a tese central do texto de Sloterdijk quanto as mais perturbadoras conclusões freudianas.

Em um futuro não muito remoto, após o degelo dos pólos terrestres e da elevação do nível dos oceanos, a civilização humana, recuada para o centro dos continentes, continua sua jornada de avanços tecnológicos até o ponto de criar robôs equipados com a terna capacidade de sentir. Esse é o caso de David, um menino artificial de 11 anos, a última maravilha do progresso tecnológico, o primeiro robô dotado de sentimento que foi fabricado para preencher temporariamente o vazio deixado pelo filho verdadeiro de um casal que, devido a uma doença incurável,estava congelado, até que surgisse uma cura e a criança pudesse voltar à vida.

Tudo pareceria perfeito para esse robozinho dócil no resguardo de um lar quepoderia ser feliz, caso sua capacidade de sentir não fosse além das medidas, gradativamente se acentuando na vontade de ser amado pela mãe como se fosse um filho real. Essa vontade se transforma em obstinação, quando o filho verdadeiro, curado de sua doença, volta à casa e David é abandonado à sua dura verdade: apenas um robô. Na sua busca infatigável por ser real, empreende uma jornada pelafloresta onde assiste aos horrores do destino robótico. A fúria dos homens, ainda tãobrutal e ativa quanto nos tempos romanos, em espetáculos que visam atender ao entretenimento bestial, submete os robôs a combates nos quais, embora não jorre sangue, a violência e crueldade são abominavelmente postas a nu.

Depois desse rito de passagem, David mergulha até o mais profundo das cidades submersas onde encontra a fada que poderá satisfazer seu inamovível desejo: a carícia absoluta do amor materno. Nem que seja por um dia, basta um dia,só um dia de retorno da mãe, para além da morte, em que pudesse ser alcançado o sopro de eternidade na plenitude do encontro com que sonha o sentimento de amor.E assim se fez.

Aí está desenhada a oposição fatal entre a destrutividade mais bruta e o amorna sua luta meigamente insana de vencer a morte, ir além da morte, tanto a devastadora dor implícita no sentido literal da morte, quanto as pequenas mortes das separações irreversíveis, das incompatibilidades irremediáveis, das

24 Sloterdijk, Peter. Sphären, 3 vols. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2004.

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incompreensões onipresentes e também do tempo da vida que, a cada instante passa, para sempre engolindo o vivido.

A tese central de Sloterdijk chama atenção justamente para a luta titânica entre os impulsos bestializadores e os impulsos domesticadores que se trava no mundo contemporâneo, em que, no processo civilizatório, avança de maneira irrefreável uma onda desinibidora sem precedentes, que, à luz de Lacan chamaríamos de imperativo do gozo, o gozo a qualquer preço.

De fato, não são poucos os que têm lançado enfáticos sinais de alerta contra a intensificação dos poderes da crueldade. Em artigo recente, Boff25 citou um pensamento de Girard, estudioso da violência: “Tudo parece provar que as forças geradoras da violência neste mundo, por razões misteriosas que eu tento compreender, num certo nível são mais poderosas que a harmonia e a unidade. Este é o aspecto sempre presente do pecado original, enquanto, para além de qualquer concepção mítica, representa um nome para a violência na história”. Boff concorda com o sombrio veredito e acrescenta que temos de

conviver com a sombra de que somos seres com imensa capacidade de autodestruição, até o último homem. Há anos uma pesquisa alemã sobre as guerras na história da humanidade, citada por Michel Serres em seu último livro Guerre mondiale (2008), chegava aos seguintes dados: de três mil anos antes de nossa era até o presente momento, três bilhões e oitocentos milhões de seres humanos teriam sido chacinados, muitos delesem guerras de total extermínio. Só no século XX foram mortas duzentos milhões de pessoas. Como não se questionar, honestamente, sobre a natureza deste ser complexo, contraditório, anjo bom e satã da Terra que éo ser humano?

Nesse contexto, também é notória a maneira como tem estado presente, nos discursos atuais sobre a cibercultura, cibermobilidade e pós-humano, a oposição entre, de um lado, a imposição de uma gigantesca e poderosa grelha de controle sobre o planeta, de outro lado, as novas possibilidades para articulações inéditas entre humanos, natureza e tecnologia, ambos os lados dessa oposição potencializados pelas tecnologias digitais. Minha hipótese é que, nesta era pós-humana, o agudo antagonismo entre os pólos da psique humana vem se acentuando na medida mesma em que a evolução tecnológica tem aberto as portas para o crescimento desmedido da complexidade da natureza e da natureza humana.Mas vamos mais devagar com este andor. Antes é preciso apresentar as determinações contextuais e um panorama mesmo que breve da condição pós-humana para, então, me deter na questão da tecnologia, pois o entendimento que setem da própria tecnologia determina o ponto de vista que se assume para interpretaro pós-humano, numa escala que vai desde a rejeição mais cabal até a laudação mais ingênua.

4. Determinações contextuais do pós-humanoAs determinações histórico-sociais, com todas as suas implicações

econômicas, políticas e culturais, que estão na base daquilo que, cada vez mais freqüentemente, está sendo chamado de pós-humano, condição pós-humana e pós-humanismo, encontram-se indubitavelmente ligadas ao rápido avanço tecnológico que vem se processando desde a Segunda Guerra Mundial. Mesmo que longe de exaurir essas determinações, não custa enumerar algumas delas.

Em primeiro lugar, a condição pós-humana não flutua no ar, mas está enraizada no modo de produção característico desta era, chamado de turbo capitalismo globalizado por Luttwak26 e cujas características são menos governo, mais tecnologia e mobilidade, a erradicação das fronteiras nacionais, comércio à

25 Boff, Leonardo. Todos em guerra contra Gaia. Revista Cronópios, http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=3733. Acesso em 27/06/2009.

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velocidade da luz, enfim, uma mudança estrutural acelerada que produz mais criação e mais destruição, mais eficiência e mais desigualdade e que calorosamenteacolhe as máquinas de guerra, as mais lucrativas do globo. Além das chacinas intermitentes, como conseqüência, assiste-se ao reordenamento violento das atividades da vida social e pessoal, provocado pela aceleração do tempo de produção, distribuição e consumo de bens materiais que, instigados pela indústria publicitária, adquirem traços de bens simbólicos. Ao mesmo tempo, a desmesurada inflação produtiva da dimensão da cultura oblitera as tradicionais distinções entre bens simbólicos e bens materiais, numa dinâmica em que nada -- nem mesmo o sentimento – pode escapar do fetichismo das mercadorias.

Se na era das tecnologias reprodutivas, tão bem estudadas por Walter Benjamin27, o sensório humano foi submetido a um complexo tipo de treinamento, que resultou na habilidade de reagir à experiência do choque, agora a imersão na dromosfera28 conforma os espaços sociais, políticos, militares, culturais e psíquicos avetores de movimento e à velocidade de transmissão com que esses vetores se realizam. Em lugar da aldeia global de ações sociais simultâneas e consciências unificadas preconizada por McLuhan29, tem-se o não-lugar-do-espaço-veloz em que o tempo é medido em nano-segundos, impingindo ao ser humano um ininterrupto reajustamento do senso de realidade.

Com a contínua substituição geracional e crescente sofisticação da indústria computacional e das conexões planetárias que ela instaura, disseminou-se uma cultura fundada nas multifacetadas possibilidades ofertadas pela comunicação digital. Essa cultura tem recebido o nome de cibercultura, agora turbinada pelos equipamentos móveis. Dando a formação cultural o sentido de articulação histórica de práticas semióticas com uma variedade de outras práticas culturais, sociais, econômicas e políticas30, do meu ponto de vista, a cibercultura é uma formação cultural com especificidades que são próprias do potencial informacional das conquistas computacionais e que convive de maneira cada vez mais híbrida com outras formações culturais precedentes, remanescentes e ainda vivas: a oralidade, acultura escrita, a impressa, a massiva e a cultura das mídias31. Dessa hibridação resulta um torvelinho de misturas culturais das mais diversas ordens que tenho chamado de ecologia pluralista da comunicação e da cultura.

Diferentemente das máquinas acéfalas da primeira revolução industrial e dos aparelhos sensórios próprios da cultura de massas (fotografia, cinema, rádio, televisão), na cultura do computador32, perturbadoramente os dispositivos estão ficando crescentemente inteligentes e as interfaces com o humano cada vez mais íntimas, sutis e mesmo imperceptíveis. Dessa intimidade brotam organismos híbridos entre o carbono, o silício e outros possíveis materiais capazes de incorporarinteligência. Não por acaso esses híbridos foram batizados de ciborgues, uma

26 Luttwak, Edward. Turbo-capitalism: Winners and losers in the global economy. New York:HarperCollins, 1999.27 Benjamin, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Em Os PensadoresXLVIII. São Paulo: Abril Cultural, 1975, 9-34.28 Virilio, Paul. Vitesse e politique. Paris: Galilée, 1977. Idem. L´horizon negatif: Essai de dromoscopie.Paris: Galilée, 1984. Ver Trivinho, Eugenio. A dromocracia cibercultural: Lógica da vida humana nacivilização mediática avançada. São Paulo: Paulus, 2007.29 Mcluhan, M. Galáxia de Gutenberg. São Paulo: Cultrix, (1962) 1971. Idem. Understanding media: Theextensions of man. New York: McGraw Hill, 1964.30

Ver Foster, Thomas. The souls of cyberfolk. Minneapolis: University of Minneapolis Press, 2005, apudFelinto, Erick. Think different: estilos de vida digitais e a cibercultura como expressão cultural. RevistaFamecos 37, dezembro de 2008, 13-19.31 Essa questão foi trabalhada detalhadamente em Santaella, Lucia. Culturas e artes do pós-hunano,op. cit. Idem. Linguagens líquidas na era da mobilidade, op. cit. 32 Santaella, Lucia. Cultura das mídias. São Paulo: Experimento. 4ª. ed. 2004a.

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população que cresce e se diversifica de modo desconcertante e não por acaso a questão do corpo passou a ocupar o centro dos debates sobre esse desconcerto.

Conforme busquei sistematizar no livro Corpo e comunicação. Sintoma da cultura33, as transformações por que passa o corpo biocibernético apresentam três movimentos: de dentro para fora do corpo, na superfície entre fora e dentro do corpoe de fora para dentro do corpo. O primeiro movimento, de dentro para fora, refere-seàs extensões do corpo, isto é, reporta-se às conexões permitidas por serviços informáticos telecomunicacionais, acessíveis por meio de um enxame de dispositivos que vão desde os computadores portáteis, telefones celulares, pagers etc. até a telepresença, realidade virtual etc. Tais dispositivos possibilitam ultrapassar os limites espaciais, transportando a mente sem a necessidade de se deslocar o corpo. O segundo movimento é intersticial, quer dizer, exibe-se na aparência do corpo, localizando-se entre fora e dentro. São as técnicas de body building e body modification. O terceiro vem de fora do corpo para dentro dele. Trata-se dos implantes e próteses que pretendem corrigir funções orgânicas avariadas, ou ampliá-las, transformá-las e até mesmo criar novas funções. Aqui falamos dos perturbadores avanços das drogas medicinais, da biotecnologia, neurotecnologia e nanobiotecnologia.

Drogas cada vez mais eficazes, que se estendem do gênero Viagra ao gêneroProzac, corrigem falhas sexuais, aumentam a concentração mental, retardam a senilidade do cérebro, desafogam a depressão psíquica e pesquisas mais específicas sobre modificadores neuroquímicos seguem à frente quando lhes são aplicadas as novas ferramentas provenientes da biologia molecular, do design computacional computadorizado e das neuroimagens. Vírus engenheirados para alterar a estrutura de qualquer célula, pesquisas com células tronco, neurotransplantes como opções para tratamento de doenças mentais degenerativas estão abrindo o caminho para um controle pervasivo da morfologia e fisiologia dos organismos, enquanto a nanotecnologia vai na direção do controle da matéria átomoa átomo. Quando as tecnologias nano e bio se juntam dão origem ao que vem sendochamado de convergência NBIC (nano, bio, informacional e cognitiva), uma convergência cujas aplicações permitem interfaces cognitivas híbridas entre a matéria e a mente34, uma perspectiva assombrosa para as almas fiéis ao cartesianismo e de que só pode dar conta a filosofia sinequista de C. S. Peirce, ao professar a continuidade entre matéria e mente35.

Do ponto de vista da nanobiotecnologia, é possível entender a matéria em termos de informação, o que promete a integração entre quaisquer estruturas materiais, sejam elas biológicas ou não biológicas, tornando o design de novos organismos uma realidade. Quando aplicada à tecnologia informacional, a nanobiotecnologia dá à luz os nanobots, nano robôs inteligentes que criam inacreditáveis possibilidades de redesenhar e expandir as capacidades cognitivas humanas36. Para compreender minimamente tal simbiose entre o orgânico e o maquínico, é preciso considerar que aquilo que costumávamos chamar de máquinasestão ficando mais e mais orgânicas, inteligentes, auto-modificáveis. A era dos marcapassos, das juntas artificiais e das lentes de contato apenas sinalizaram o início de uma jornada que, por enquanto, visa chegar ao ponto de conectar neurônios, células e moléculas com componentes eletrônicos.

Toda essa avalanche mutacional não poderia deixar intocáveis as fronteiras que tradicionalmente separavam em territórios bem protegidos o orgânico e o

33 Santaella, Lucia. São Paulo: Paulus, 2004b.34 Lemos, Renata e Kern, Vinicius. Technontologies, Complexity & Hybrid Interfaces. Triple C.Cognition. Communication. Co-operation, no prelo. 35 Santaella, Lucia. Os significados pragmáticos da mente e do sinequismo em Peirce. Cognitio, SãoPaulo, vol. 3, 2002, pp. 97-106. Idem. Sinequismo e a onipresença da semiose. Cognitio vol. 8, no. 1,pp. 141-149.36 Lemos, Renata e Kern, Vinicius. Op. cit., p. 1.

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inorgânico, o humano e o tecnológico, o espaço e a presença, o corpo e a mente, o eu e o outro, o próximo e o distante. Não poderia deixar incólumes as normas tradicionais que regiam o espaço e tempo, a vida, o trabalho, a saúde e a educação. Enfim, não poderia deixar de chacoalhar as certezas sobre as identidades, os gêneros e, sobretudo, sobre o grande mastro da antropologia, a distinção entre cultura e natureza.

Agora que as ciências da complexidade estão estudando os fenômenos físicos como complexos processos biológicos (vida não orgânica), pois a matéria inerte pode exibir comportamento complexo similar à vida, agora que estão nos dando uma visão pluralista das redes em lugar das estruturas, conexões e transgressões em lugar de sistemas isolados, o hiato entre os mundos fisicoquímicos e biológicos estreita-se a ponto de se tocarem. Diante disso, não é dese surpreender que uma condição humana inédita sob o nome de pós-humano e pós-humanismo esteja sendo colocada em pauta de discussão para que dela possam emergir uma nova ontologia e epistemologia e novas teorias fluidas capazesde abraçar os imensos processos epistemológicos que conectam o físico, o biológico, o social e o cultural. De fato, de maneira gradual, firme, mas mudando constantemente, por levar em conta as tecnologias emergentes, especialmente a biologia e a robótica evolucionárias, o tema do pós-humano tem se feito tão presenteaté o ponto de não poder mais ser ignorado.

5. Breve panorama do pós-humanoA primeira e mais óbvia compreensão que se costuma ter do pós-humano

está ligada às imagens de corpos híbridos, bizarras e assustadoras misturas de humanos e máquinas, ambientes povoados de ciborgues como, há anos, vem aparecendo nos filmes de Hollywood, estes inspirados em ficções científicas batizadas de cyberpunk. Dessas ficções foram derivadas visões rasas e ingenuamente utópicas de que a evolução tecnológica nos conduzirá à vida eterna da mente por meio da substituição das fragilidades do corpo mortal por potentes aparelhos de silício. A internet está pontilhada de sites que, com o batismo de trans-humano e trans-humanismo, prometem que a imortalidade está batendo à nossa porta. Ligadas a esse imaginário estão também idéias que, embora unidas na suposição de que pós-humano significa a emergência de outra espécie, distinta da atual espécie humana, caminham em duas direções: de um lado, aqueles que crêemque as duas espécies, humana e pós-humana, conviverão no futuro, de outro lado, acrença de que o pós-humano engenheirado substituirá o humano.

Embora variem em graus que vão de prognósticos com base em pesquisas científicas atuais até a mais pura leviandade, parece inócuo perder tempo com propostas que não apresentam fundamentos nem mesmo no seu pressuposto evolucionismo. O que cumpre notar é que a noção do ciborgue que, à primeira vista, poderia dizer respeito apenas às misturas entre corpos humanos e corpos maquínicos, está muito longe de ser homogênea, apresentando uma diversidade de facetas. No campo especulativo, fez história o Manifesto ciborgue de Danna Haraway. Publicado pela primeira vez em 1985, esse texto lançou as bases para o desenvolvimento do ciberfeminismo no campo dos estudos culturais. Haraway usa a figura do ciborgue como uma metáfora carregada de ironia, com a intenção de fazer essa imagem funcionar como uma blasfêmia contra o capitalismo patriarcal dominante. A imagem lhe parece suficientemente forte porque há no ciborgue algo de monstruoso na medida em que implica o derretimento das fronteiras entre humano e animal, entre gêneros, entre humano e maquínico, natural e artificial, mente e corpo, físico e não físico. A autora toma partido dessas indeterminações como recurso imaginativo para construir seu argumento prazeroso, e mesmo perverso, sobre uma ontologia de fronteiras transgredidas, fusões potentes, possibilidades perigosas e sobre uma epistemologia que não teme identidades

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permanentemente parciais e pontos de partida contraditórios. O alvo da transgressão, ao fim e ao cabo, é a constituição histórica e social de gênero, raça e classe própria do patriarcado, colonialismo e capitalismo.

Como queria a autora, o texto contribuiu grandemente para redirecionar a cultura do feminismo socialista. Desde então, a noção tanto metafórica quanto literal do ciborgue passou a fazer parte dos estudos culturais de linha feminista. Formou-seassim uma comunidade discursiva que passou a ser conhecida como uma das tendências do pós-humano crítico. Aproveitando-se da brecha aberta pelo ciborgue, na sua subversão de todos os tipos de dualismos que deram subsídios às hierarquias dominadoras das sociedades patriarcais, as feministas viram a chance de livrar o feminino dos constrangimentos impostos por uma cultura secular dominada por pontos de vista exclusivamente masculinos. Com isso, entraram em cena os abundantes discursos sobre a crise das identidades unas e a emergência do múltiplo, do instável, do volátil, livre das amarras das normas institucionalizadas.

Para além das questões de gênero e identidade, outra tendência crítica com ambições mais filosóficas, representada, por exemplo, por Hayles37, coloca o dedo na ferida do humanismo liberal, especialmente na crença que este cultiva de que o corpo é um invólucro ou veículo da mente, crença que não pode mais ser sustentadapor ser justamente o estatuto do corpo, da presença e ausência, do real e do virtual que as tecnologias informacionais colocam frontalmente sob interrogação. Não é casual que quilômetros de discursos sobre o corpo vêm sendo produzidos nas mais diversas áreas de conhecimento, da filosofia à arte, da psicologia e psicanálise à antropologia e sociologia e, certamente, nos estudos das mídias.

Indo ainda mais fundo no questionamento filosófico, o pós-humano crítico recusa qualquer ramo da filosofia humanista que, postulando a unidade da essência humana, toma como segura a universalidade da natureza humana. Contra qualquer forma de universalismo ou de qualquer cenário fixo e eterno, o pós-humano reconhece a heterogeneidade, a multiplicidade, a contradição, o contexto, a objetividade situada como constitutivos do humano, do que decorre uma nova ontologia das instabilidades.

Como fruto das tendências do pós-humano, brevemente apresentadas acima,emerge o pós-humanismo que lhe é agregado, um pós-humanismo com características muito próprias que estão bem longe de serem homogêneas, pois essas características também abrigam discursos que contestam o pós-humano, embora pudessem estar associados ao pós-humanismo, na medida em que colocamem pauta justamente as determinações contextuais do pós-humano. É o caso, por exemplo, de uma figura influente como De Landa. Não obstante reivindique, com base em Deleuze e Guattari38, um realismo ontológico renovado, que poderia muito bem subsidiar filosoficamente as discussões sobre o pós-humano, descrê dessa expressão por considerá-la tola39.

Seja como for, a meu ver, por trás da diversidade de interpretações, adesões e rejeições às noções do pós-humano e pós-humanismo que, como é fácil constatar,não se confundem com um simples anti-humanismo, subjazem diversos entendimentos da tecnologia, distintos modos de ver a tecnologia que orientam as perspectivas e pontos de vista assumidos diante das determinações históricas contemporâneas que adubaram o terreno em que brotou o pós-humano.

6. Tecnologia: o grande pivô37 Hayles, Catherine. How we Became Post-Human. Virtual Bodies in Cybernetics, Literature, andInformatics. The University of Chicago Press, 1999.

38 De Landa, Manuel. Intensive Science and Virtual Philosophy. London & New York: Continuum,2002.39 CTHEORY Interview with Manuel De Landa. http://www.ctheory.net/articles.aspx?id=383.Acesso em 27/06/2009.

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Nas noções correntes, tecnologia é concebida como instrumentalidade que pode ser definida em dois sentidos, ambos trabalhados por Heidegger no seu famoso ensaio sobre a questão da técnica40. De um lado, a técnica é um meio para um fim e, de outro, ela é intrínseca à atividade humana. Ora, fins pressupõem causas, o que levou Heidegger de volta às quatro causas aristotélicas: a causa material, eficiente, formal e final, que podem ser simplificadamente traduzidas como o material de que algo é feito, o método de sua feitura, a forma que essa feitura lhe dá e a finalidade a que se destina. O jogo dessas quatro causas permite que algo ainda não presente se faça presente. É o que os gregos chamavam de poiesis: fazeralgo vir a ser e que Heidegger traduziu por “revelar”, implicando que, antes desse fazer, algo estava oculto. Esse método de revelação nos conduz à essência da técnica. Em vez de simplesmente prover um meio para um fim, a técnica é muito mais um modo de revelar. A natureza e o universo trazem dentro de si um potencial para que qualquer coisa possa ser feita. Dependendo da engenhosidade e do estágio de conhecimento humanos, esse potencial emerge e algo é revelado. O insight e conhecimento seguram a chave para a abertura e revelação dos potenciais latentes na natureza. No grego, techne está associado a episteme, do que se depreende que techne diz respeito à revelação pela mente humana das coisas feitaspela mão humana. Para Heidegger, a revelação carrega uma verdade. Assim, há arte e verdade naquilo que os artesãos, os artistas e os poetas revelam41.

Entretanto, ao examinar a natureza da tecnologia moderna, Heidegger se dá conta de que a revelação se processa de maneira desafiadora, como uma espécie de ousadia, como ameaça. Disso decorre a diferença que vai entre um moinho e uma represa. O primeiro transfere a energia do vento sem roubar-lhe essa energia, ou transforma o vento, guardando sua energia para ser usada depois. A segunda requer o ajustamento da natureza. Quando se paralisa o fluxo da água, o rio perde asua essência, tornando-se uma fonte de força. Embora a revelação ainda apareça aí, trata-se de uma captura e transformação desafiadora que visa a um só propósito de geração de força, apagando todos os outros possíveis propósitos da existência do rio na natureza. A ameaça e o perigo nesse caso não são tão letais quanto os de uma arma, mas constrangem, emolduram as coisas e as pessoas, cortando e impedindo a abertura e auto-revelação, inibindo o pensamento e colocando o ser humano em uma relação estéril e subserviente com a tecnologia e com o mundo circundante.

Fiel aos princípios filosóficos ratificados em sua carta ao humanismo, Heidegger pensou a tecnologia sob o signo da negação. A tecnologia como destino do ocidente, o destino a que o esquecimento do ser acabou por conduzir o ocidente. Um fim cujo princípio já estava na busca, empreendida por Platão e Aristóteles, de definição do ser pela abstração conceitual dos entes. Essa abstração intensificou-se na ciência e filosofia modernas pela mensuração e cálculo dos entes por meio da observação, classificação, generalização, previsão e controle, numa longa caminhada histórica que levou ao esquecimento do ser e que culminou na tecnologia42.

Na história do ocidente, a genealogia da técnica apresenta três momentos fundamentais: o cartesiano, o kantiano e o nietzschiano. No primeiro, a relação com a natureza é de dominação. A res extensa esquadrinhada pela ciência é posta sob ojugo humano. No segundo, o domínio se faz em nome da emancipação e autonomia da humanidade rumo ao progresso do projeto moderno. No terceiro, a vontade de poder e a hegemonia da técnica levam à dominação pela dominação, ao controle

40 Heidegger, M. A questão da técnica. In Ensaios e conferências, Emmanuel Carneiro Leão et al.(trads.). Petrópollis: Vozes, 2002. 41 Whylant, Barry. Industrial design insight: Seeing technology in the wildest sense.http://www.idsa.org/absolutenm/articlefiles/Barry_Wylant.pdf. Acesso em 27/06/2009.42 Critelli, Dulce. Martin Heidegger e a essência da técnica. Margem 16, São Paulo, 2002, pp. 83-89.

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pelo controle, à técnica como uma finalidade em si mesma43. Assim, a essência da tecnologia se confunde com a essência mesma da ocidentalidade, até o ponto de transformar o pastor do ser em prisioneiro da tecnologia.

A visão da tecnologia como rapto ou mesmo estupro da natureza e desvio da verdadeira natureza humana é uma visão que domina mesmo entre aqueles que desconhecem as sutilezas do pensamento heideggeriano. Para essa visão, o pós-humano, nas misturas promíscuas que apresenta entre o humano e as máquinas, está selado com a insígnia do monstruoso. Se Heidegger já recusava com veemência qualquer aliança entre humanos e animais, a quantos anos luz de distância do ser podem estar hoje os híbridos já batizados de humáquinas?

Embora haja, na concepção heideggeriana da revelação, um insight profundo sobre o ideal fundamental da verdade poética e artística, no seu magnífico ensaio sobre “O estado ético da tecnologia genética”44, proveniente de uma conferência proferida em Harvard, em 2000, Sloterdijk deixa entrever que a concepção de Heidegger só pode fazer algum sentido em relação à tecnologia mecânica. Quando se trata das mutações resultantes da evolução tecnológica cujo estado da arte encontra-se no campo aberto pela manipulação genética, nem a concepção heideggeriana, nem muito menos a metafísica clássica podem dar conta.

Ao combinar uma ontologia monovalente (o ser é, o não ser não é) e uma lógica bivalente (o que é verdadeiro não é falso, o que é falso não é verdadeiro, tertium non datur), a metafísica clássica apresenta uma inabilidade absoluta para descrever de maneira ontologicamente adequada fenômenos culturais tais como ferramentas, signos, obras de arte, máquinas, leis, costumes, livros e outros artifícios. A razão para essa inabilidade encontra-se no fato de que as oposições costumeiramente fundamentais entre mente e coisa, espírito e matéria, sujeito e objeto, liberdade e mecanismo não estão aptas a descrever fenômenos dessa ordem, pois eles são, em sua própria constituição, fenômenos híbridos com componentes espirituais e materiais. Daí que qualquer tentativa de afirmar o que eles autenticamente são, dentro de uma lógica bivalente e uma ontologia monovalente, leva inevitavelmente a reducionismos.

A descoberta do princípio da informação como participante da estrutura material fundamental da vida revelou que aí não se encontra mais nada material no sentido que a velha ontologia dava à matéria. Isso levou à ruína a clássica divisão entre, de um lado, o subjetivo, o eu, o humano, dotado de uma superabundância de características e capacidades, de outro lado, o objetivo, a coisa, o mecanismo. Desse modo, avalia Sloterdijk, a histeria anti-tecnológica que toma conta de grande parte do mundo ocidental é um produto da decomposição da metafísica, pois essa histeria se agarra a falsas classificações de modo a se revoltar contra processos nosquais essas classificações estão superadas. O horror ao tecnológico é inversamenteproporcional ao apego às velhas verdades metafísicas. Por isso, a histeria é reacionária, pois ela expressa o ressentimento de uma bivalência anacrônica que contrasta com um polivalência que ela não pode entender.

Na verdade, se há ser humano é porque uma tecnologia o fez evoluir a partir do pré-humano. Com esse postulado de uma antropologia histórica radicalizada, Sloterdijk agora coloca o dedo na ferida da ontologia pura de Heidegger. Os humanos não encontram nada estranho quando se expõem à criação e manipulaçãoe não fazem nada perverso quando se transformam autotecnologicamente, visto quetais intervenções ocorrem em tão alto nível de insight sobre a natureza biológica e social do homem, que elas se tornam efetivas como co-produções autênticas,

43 Machado da Silva, Juremir. De Heidegger a Baudrillard: Os paradoxos da técnica. Famecos 13,Porto Alegre, 2000, pp. 155-62.44 Sloterdijk, Peter. The operable man. On the ethical state of gene technology. http://www.petersloterdijk.net/international/texts/en_texts/en_texts_PS_operable_man.html. Acessoem 27/06/2009.

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inteligentes e bem sucedidas com potencial evolutivo. Desse modo, a condição humana pode ser interpretada como a emergência de um desenvolvimento autoplástico, contanto que não se utilizem as lentes de falsas classificações metafísicas para enxergar as novas possíveis operações antropoplásticas do transplante de órgãos à terapia genética como se o amo subjetivo ainda quisesse escravizar uma matéria objetiva, ou o que é pior, quisesse se transformar em um super-amo no comando de uma matéria ainda mais profundamente subjugada.

O esquema de um amo-sujeito que exerce poder sobre uma matéria subserviente era até plausível na era da metafísica tradicional. Sob esse prisma, tendia a ser verdadeiro que um amo subjetivo, usando ferramentas, escravizava os objetos, sem reconhecer sua natureza. Essa é a imagem de tecnologias modeladas como simples ferramentas ou máquinas clássicas, executando reestruturações violentas e antinaturais na medida em que a matéria é usada para finalidades alheias à matéria ela mesma. Contudo, quando o princípio de informação e, mais que isso, o de auto-organização, morfogênese e complexidade entram em cena, perde sua plausibilidade a imagem da tecnologia como escravização da natureza e dos homens. Com as tecnologias da inteligência, uma forma de operatividade não dominadora está emergindo. Sloterdijk a batiza de homeotecnologia, pois ela não pode desejar nada diferente daquilo que as coisas são em si mesmas ou podem vir a ser de acordo com seus propósitos. Assim, os materiais passam a ser concebidos de acordo com sua própria teimosia para serem integrados em operações relativas àsua máxima aptidão. Para eles não vale mais o que se costumava chamar de material bruto.

Materiais brutos só podem ser encontrados onde sujeitos brutos – sejam eles humanistas ou outros egoístas – se lhes aplicam tecnologias brutas. A homeotecnologia, tendo de lidar com informação realmente existente (...), adquire inteligência inteligentemente, ao criar novos estágios de inteligência (...). Ela tem de confiar em estratégias co-inteligentes, co-informativas, mesmo onde ela é empregada egoisticamente e regionalmente como qualquer tecnologia. Ela se caracteriza mais pela cooperação do que pela dominação, mesmo nas relações assimétricas. Idéias similares são expressas por cientistas renomados por meio da metáfora do “diálogo com a natureza”. Criar tecnologias, no futuro, significará ler as notações de inteligência encarnada e pavimentar o terrenopara performances adicionais de suas próprias peças. Os casos mais extremos de homeotecnologia são as horas da verdade para a co-inteligência45.

Por tudo isso, Sloterdijk acredita que as biotecnologias e nanotecnologias alimentam, por sua própria natureza, um sujeito que é refinado, cooperativo e inclinado a brincar consigo mesmo. Um sujeito que toma forma nos intercursos com textos complexos e contextos hipercomplexos. Acredita ainda que no mundo das redes interinteligentemente condensadas, amos e estupradores tem menos chances de sucesso do que os cooperadores e promotores que tendem a se juntar de modo mais numeroso e adequado.

Embora Sloterdijk não faça uso da expressão “pós-humano”, sua idéia de homeotecnologia sintoniza muito bem com o pensamento que labuta em prol de novas antologias e epistemologias que possam dar conta das inteligências híbridas que se apresentam nas continuidades entre a natureza e o homem, o animal e o homem e entre a inteligência artificial e o homem. Sem uma antropologia histórica radicalizada, como é proposta por Sloterdijk e, mais do que isso, sem o auxílio da biologia evolucionista não é possível compreender, sem cair em lamentos nostálgicos, o salto antropológico que a simbiose do humano com a vida e inteligência artificiais está propiciando.

45 Sloterdijk, Peter. The operable man. Op cit., pp. 7.

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De fato, é nos autores que estão colaborando para o desenvolvimento de umaantropologia co-evolucionária entre os homens e as máquinas que podem ser encontrados valiosos insights para se entrar nos umbrais do pós-humano, livres de protetores preconceitos nostálgicos. Nos esplêndidos estudos, arqueológica e biologicamente fundamentados, sobre a evolução da mente humana, que Donald46 chama de “uma mente tão rara”, no sentido de especial e especializada, é desenvolvida a tese de que a co-evolução atual entre humanos e tecnologias finas, resulta de três estágios ou transições evolutivas do sapiens sapiens.

Na primeira transição, os homínidas desenvolveram as habilidades miméticas da brincadeira, da linguagem corporal, da imitação precisa e do gesto como extensão do controle consciente no domínio da ação. O que se tem nisso é um modo de expressão cultural e de solidificação de uma mentalidade grupal. É a mimese que permitiu o refinamento das habilidades de cortar, atirar, da feitura de ferramentas e, last but not least, da produção de sons vocais intencionais. Embora ainda não se constituíssem em uma linguagem, esses sons já eram expressivos.

A segunda transição teve início com a chegada do Homo Sapiens arcaico há cerca de um milhão de anos que culminou na evolução da nossa sub-espécie particular, o Homo Sapiens Sapiens, 125 mil anos atrás, quando o cérebro e o trato vocal passaram por mudanças profundas. Desse modo, instrumentos sofisticados foram inventados para a produção de objetos finamente desenhados, de aperfeiçoadas habitações e túmulos elaborados. Mais dez mil anos e já eram utilizados o auto-adorno e uma variedade de objetos como armas, artefatos rituais quase simbólicos e instrumentos musicais simples, tudo isso sob a égide do poder especial que o desenvolvimento da linguagem falada lhes dava.

A terceira transição corresponde ao triunfo cognitivo das tecnologias simbólicas que externalizando a memória, foram dilatando de modo crescentemente notável a dimensão e o papel desempenhado pela cultura humana. Enquanto os humanos precedentes dependiam inteiramente da memória biológica, hoje, o ser humano tem a seu dispor um imenso número de poderosos recursos simbólicos externos para armazenar e recuperar o conhecimento culturalmente acumulado47. Tendo isso em vista, a evolução biológica humana é inseparável da evolução tecnológica até o ponto de se tornar impossível explicar a primeira na ausência da segunda, conforme tem sido trabalhado por autores que defendem a co-evolução entre os humanos e as máquinas48.

Além disso, ainda segundo Donald, a cultura humana, no seu caminho de hibridização crescente, contém, dentro de si, todas as transições e estágios prévios de sua evolução cognitiva: o mimético, o lingüístico e o atual estágio da cognição externalizada em tecnologias sígnicas, produzindo uma intrincadíssima mistura que corresponde ao estágio atual de hibridismo da mente humana, hoje inseparável das mídias nas quais uma gigantesca mente coletiva pulsa e palpita.

Nas minhas especulações sobre o processo evolucionário que hoje culmina no pós-humano49, tenho ido ainda um pouco mais fundo do que os autores acima, aopostular que a primeira tecnologia -- a tecnologia primordial -- foi instalada em nossopróprio corpo, a tecnologia da fala que envolve uma integração indissolúvel entre mente e corpo. A atenção acurada à evolução das mídias, desde os seus primórdios, revela-nos que, em passos cada vez mais acelerados, as mídias foram armazenando a memória humana para fora do corpo, tais como desenho, escultura,

46 Donald, Merlin. The origin of modern mind. Three stages in the evolution of culture and cognition.Cambridge; Mass.: Harvard University Press, 1991. Idem. A mind so rare. The evolution of humanconsciousness. New York: W. W. Norton & Company, 2001.47 Idem. A mind so rare. Op. cit., pp. 261-262.48 Mazlich, Bruce. The fourth discontinuity. The co-evolution of humans and machines. New Haven:Yale University Press.49 Ver especialmente Santaella, Lucia. A semiose do pós-humano. In Culturas e artes do pós-humano.Op. cit., pp. 209-230.

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escrita, pintura, impressão e que se processou uma enorme e crescente expansão na produção dos signos, a partir da revolução industrial, por meio da proliferação de mídias técnicas, seguida pela proliferação das mídias tecnológicas, desde a revolução eletrônica e computacional, esta última no estágio atual da comunicação móvel.

Assim explicado, esse processo evolutivo não se baseia em uma pretensa naturalidade da fala, nem do tão cultuado sopro da fala, em oposição à artificialidadedas mídias, visto que a primeira mídia, a fala, híbrida entre o natural e o artificial, foi instalada em nosso próprio corpo de modo que todas as outras mídias técnicas e tecnológicas externas estão umbilicalmente ligadas a ela. Nessa medida, a casa do ser, pensada por Heidegger, é, de saída, uma casa tecnológica, pois a fala humana já carrega em si a marca do inatural. Como foi lembrado mais de uma vez por Freud e também por Lacan, porque fala o ser humano não é natural e só pode estar na natureza de modo paradoxal.

Todavia, embora aparentemente adequadas e coerentes, todas as hipóteses explanatórias a que podemos recorrer não são capazes de explicar porque, mesmo neste novo estatuto de pós-humano, de evolução co-inteligente entre o orgânico e o inorgânico, ainda vivemos em um tempo em que a paranóia e o apocalipse humano não apenas não se extinguiram quanto se transformaram em uma experiência rotineira. Se estiver correta a desconcertante hipótese freudiana de que somos, ao mesmo tempo, humanos e inumanos, temos de enfrentar o fato de que, ao crescimento da complexidade do humano, corresponde o crescimento da complexidade do inumano e que esse abismo entre ambos não poderá ser ultrapassado por nenhuma confraternização entre a inteligência humana e a inteligência artificial, por mais íntima, sutil e avançada que essa confraternização possa vir a ser.

Isso não significa que só nos resta a inércia da resignação. Significa, de um lado, que vociferar contra o poder, o controle e as forças do mal não tem produzido efeitos, como está mais do que comprovado pelas toneladas de discursos críticos que, sem resultados, o século XX produziu a esse respeito. De outro lado, significa que o caminho que se aponta é aquele da nossa escolha pelo engrossamento das fileiras em prol do crescimento da razoabilidade, da cooperação, da solidariedade, da criação e da dignidade como tem ficado claro nos manifestos que estão surgindo para, sem resvalar em pregações, conclamar a necessidade de novos modelos de produção e disseminação do conhecimento humano, baseados na co-criação, na abertura, no contingente, no expansivo, na complexidade em larga escala50. Também para reclamar pela urgência “da busca por discernir e mapear os contornosde caminhos viáveis de ação política e social que sejam inovadores e adequados à realidade de nosso presente, sem nos perdemos em especulações sobre futuros imaginários ou em apegos inúteis às estruturas que herdamos do passado”51.

Enfim, parece que, mais do que nunca, precisamos continuar a cultivar a esperança de que nosso empenho ético em direção ao razoável possa engrossar as fileiras daqueles que batalham em prol do humano, especialmente neste momento em que se atravessa a desafiadora fronteira rumo ao pós-humano.

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