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Somaly Mam 67 NOMEADA • Páginas 67–91 POR QUE SOMALY É NOMEADA? Somaly Mam é nomeada ao WCPRC 2008 por sua longa e muitas vezes perigosa luta para salvar meninas vendi- das como escravas para e nos bordéis do Camboja. Somaly, que foi vendida para um bordel quando criança, deseja que as meninas que foram escravas tenham as mesmas oportunidades na vida que as outras crianças. Através da organização AFESIP, ela construiu três lares seguros para as meninas que foram salvas da escravi- dão. Ali, elas têm alimentação, tratamento de saúde, um lar, chance de freqüentar uma escola e, mais tarde, acesso à educação profissionalizante. Sobretudo, Somaly oferece às meninas segurança, carinho e amor. 3.000 meninas que antes eram escravas, conquistaram uma vida melhor graças a Somaly. Ela e a AFESIP repre- sentam as meninas no Camboja e cobram constante- mente do governo e das diversas organizações, para que cuidem das meninas do país. Somaly é freqüente- mente ameaçada de morte. Em 2006, sua filha de 14 anos foi seqüestrada, estuprada e vendida para um bor- del. Essa foi a punição de Somaly por sua luta em prol dos direitos das meninas. – Sua filha desapareceu, Somaly. Ela não estava na escola quando fui buscá-la. Eu não sei onde ela está! Somaly mal consegue respirar. Seu guarda- costas telefona e Somaly teme que o pior tenha acontecido. A família vive sob ameaça constante de morte. A luta de Somaly pelas milhares de meninas vendidas como escravas no Camboja lhe rendeu muitos inimigos. O que fizeram com sua amada filha Champa? A tamente a procurar por Champa, 14 anos, entre as gangues criminosas donas dos bordéis da capital do Camboja, Phnom Penh. É lá que estão muitos dos ini- migos de Somaly. Por todo o país, seus colegas de traba- lho procuram dia e noite. Quando Champa está desa- parecida há 4 dias, a polícia telefona e diz que sua pista foi rastreada no norte do país, na fronteira com a Tailândia. Uma região conhecida pelo comércio de meninas escravas. Somaly segue direto para lá. Quando ela chega, a polícia já encon- trou Champa em um bordel. Os seqüestradores a TEXTO: ANDREAS LÖNN FOTO: PAUL BLOMGREN Angkor Wat v i e t n ã laos t a ilâ n d i a Camboja Phnom Penh polícia começa imedia- G o l f o d a T a i l â n d i a 67-91Kambodja_sve,eng,port_korra67 67 07-11-07 14.09.19

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NOMEADA • Páginas 67–91 – Sua filha desapareceu, Somaly. Ela não estava na escola quando fui buscá-la. Eu não sei onde ela está! Somaly mal consegue respirar. Seu guarda- costas telefona e Somaly teme que o pior tenha acontecido. A família vive sob ameaça constante de morte. A luta de Somaly pelas milhares de meninas vendidas como escravas no Camboja lhe rendeu muitos inimigos. O que fizeram com sua amada filha Champa? vietnã polícia começa imedia- 67 Phnom Penh Angkor Wat

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Somaly Mam

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NOMEADA • Páginas 67–91

POR QUE SOMALY É NOMEADA?

Somaly Mam é nomeada ao WCPRC 2008 por sua longa e muitas vezes perigosa luta para salvar meninas vendi-das como escravas para e nos bordéis do Camboja. Somaly, que foi vendida para um bordel quando criança, deseja que as meninas que foram escravas tenham as mesmas oportunidades na vida que as outras crianças. Através da organização AFESIP, ela construiu três lares seguros para as meninas que foram salvas da escravi-dão. Ali, elas têm alimentação, tratamento de saúde, um lar, chance de freqüentar uma escola e, mais tarde, acesso à educação profissionalizante. Sobretudo, Somaly oferece às meninas segurança, carinho e amor. 3.000 meninas que antes eram escravas, conquistaram uma vida melhor graças a Somaly. Ela e a AFESIP repre-sentam as meninas no Camboja e cobram constante-mente do governo e das diversas organizações, para que cuidem das meninas do país. Somaly é freqüente-mente ameaçada de morte. Em 2006, sua filha de 14 anos foi seqüestrada, estuprada e vendida para um bor-del. Essa foi a punição de Somaly por sua luta em prol dos direitos das meninas.

– Sua filha desapareceu, Somaly. Ela não estava na escola quando fui buscá-la. Eu não sei onde ela está!

Somaly mal consegue respirar. Seu guarda-costas telefona e Somaly teme que o pior tenha acontecido. A família vive sob ameaça constante de morte. A luta de Somaly pelas milhares de meninas vendidas como escravas no Camboja lhe rendeu muitos inimigos. O que fizeram com sua amada filha Champa?

A tamente a procurar por Champa, 14 anos,

entre as gangues criminosas donas dos bordéis da capital do Camboja, Phnom Penh. É lá que estão muitos dos ini-migos de Somaly. Por todo o país, seus colegas de traba-lho procuram dia e noite. Quando Champa está desa-

parecida há 4 dias, a polícia telefona e diz que sua pista foi rastreada no norte do país, na fronteira com a Tailândia. Uma região conhecida pelo comércio de meninas escravas. Somaly segue direto para lá. Quando ela chega, a polícia já encon-trou Champa em um bordel. Os seqüestradores a

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estupraram e depois a ven-deram para o bordel.

O seqüestro de Champa foi uma experiência terrível para Somaly.

– Eu não conseguia parar de chorar quando a abracei. Ela estava drogada e não me reconheceu. Eu tomei seu lindo rosto entre as mãos e lhe pedi perdão repetida-mente. Doía tanto. Meus ini-migos haviam feito mal à minha amada filha como retaliação contra mim. Ela havia sido obrigada a passar

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pelos mesmos abusos terrí-veis pelos quais eu passei durante tantos anos.

Sem pai nem mãeA história de Somaly come-ça na floresta da montanha, ao leste do Camboja. Ela cresceu em um vilarejo, sem mãe nem pai. Ninguém sabia para onde eles haviam partido. O povo do vilarejo cuidou de Somaly. Sempre havia comida e um lugar para ela dormir na casa de alguma família.

– Mas quando íamos dor-mir, eu via que as outras crianças se deitavam junti-nho de suas mães. Eu me deitava sozinha e passava frio. Eu me sentia muito abandonada.

Um dia, quando Somaly tinha nove anos, um homem chegou ao vilarejo para comprar madeira para ven-der na planície. Alguém no

vilarejo contou que o homem vinha da mesma cidade que o pai de Somaly.

– Ele disse que conhecia meus parentes, e fiquei con-tente quando ele perguntou se eu queria ir com ele. Eu tinha esperança de encon-trar meu pai lá na cidade.

Nada foi como Somaly pensara. Ela não conseguiu encontrar o pai, e o homem, que Somaly havia passado a chamar de avô, deixou de ser gentil.

– Ele não era casado e nem tinha filhos, portanto precisava de alguém para ajudar em todas as tarefas domésticas. Ele também precisava de ajuda para ganhar dinheiro para com-prar bebida alcoólica. Tornei-me sua escrava. Eu tinha que me levantar às três horas toda manhã para buscar água no rio. Eu ven-dia a água para vários res-

taurantes que serviam sopa no café da manhã.

Somaly caminhava por muitas horas com os pesados baldes d’água. Ao terminar, ela lavava a louça em um dos restaurantes, antes de correr para casa e fazer o almoço do avô. Durante o resto do dia, ela trabalhava para vizinhos que precisas-sem de ajuda nos campos de arroz.

– Depois, eu ia toda noite para um lugar na cidade onde se fabricavam noodles. Lá, eu moia os grãos de arroz usando um pesado moinho de pedra para fazer farinha. Eu nunca chegava em casa antes da meia-noite.

Se Somaly chegasse em casa com dinheiro suficiente para a bebida do avô, ele ficava bastante satisfeito. Caso contrário, ele ficava doido de raiva.

– Ele me amarrava, me

açoitava com chibata e me chutava feito um louco.

Vendida pela primeira vezUm dia, quando Somaly tinha doze anos, o avô lhe disse para ir buscar quero-sene para a lamparina na casa do comerciante.

– Eu conhecia bem o comerciante. Ele costumava ser gentil e me dava doces. Porém, dessa vez, ele me bateu forte no rosto, arran-cou minhas roupas e me estuprou. Depois, ele disse que me mataria se eu con-tasse para alguém. Ele tam-bém falou que meu avô lhe devia muito dinheiro. Agora eu sei que meu avô havia pagado sua dívida, permi-tindo que o homem me estu-prasse. Essa foi a primeira vez que fui vendida.

– À noite, me deitei sob uma grande mangueira e chorei. Eu sentia dores por

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fui espancada e estuprada pelo dono do bordel. Depois ele me trancou em um quar-tinho. Antes de sair, ele dis-se: ”Faça o que eu mando, ou então vou te bater e te estuprar todos os dias!”

Somaly sonhava o tempo todo em fugir e, certa vez, ela conseguiu. Entretanto, eles a encontraram e, como punição, ela foi amarrada e abusada por vários homens durante mais de uma sema-na. - Eles conseguiram me domar. Eu tinha perdido, diz Somaly.

Resgata a primeira meninaSomaly ia em frente e tenta-va simplesmente sobreviver. Mas então ocorreu algo que mudaria sua vida.

– Um dia chegou uma menina nova. Ela tinha só

dez anos. Ela tinha pele escura e era muito magra. Era como se fosse eu mesma que tivesse entrado por aquela porta. Eu sabia que essa menina seria arruinada como eu havia sido. Mas ela ainda podia ter uma boa vida. Logo lhe dei o dinhei-ro que eu tinha. Os donos e os vigias não estavam lá, e consegui deixá-la sair. Ela estava livre.

Quando os donos perce-beram a fuga, disseram que puniriam todas as meninas.

– Porém contei que fui eu quem a libertou. Eles fica-ram loucos de raiva e me bateram por muitas horas. Depois me trancaram em uma gaiolinha apertada para mostrar às outras o que acontecia com quem era desobediente.

todo o corpo e me sentia confusa e suja. Eu não entendia o que havia aconte-cido. Como não tinha nin-guém com quem conversar, tentei falar com a árvore.

Vendida novamenteUm dia, quando Somaly tinha quinze anos, o avô disse que eles iam viajar para a capital, Phnom Penh,

para visitar os parentes dele. Todavia, ela foi enganada. A casa para onde o avô a levou não era de seus parentes, mas sim um bordel. Ele a havia vendido. De novo.

– Quando entendi em que tipo de lugar eu tinha ido parar, tentei impor o máxi-mo de resistência que pude. Eu me negava a atender ”clientes”. Como punição,

Somaly conversa com uma jovem garota e sua mãe. Somaly conta que a AFESIP está lá, caso as famílias precisem de ajuda.

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AFESIPSalvou todas!Os anos se passaram. Somaly havia sofrido tantos maus tratos que não tinha mais autoconfi ança e nem coragem de fugir. No fi nal, os donos do bordel confi a-vam tanto nela que a deixa-vam sair com seus clientes. Ela sempre voltava com o dinheiro. Durante um tem-po, ela tinha um cliente ame-ricano rico que queria se casar com ela, mas ela não aceitou. Ela temia que ele a vendesse nos EUA. Antes de viajar de volta para casa, o homem deu 3.000 dólares a Somaly, para que ela pudes-

uma sensação incrível ver as meninas como pessoas livres!

A primeira incursãoSomaly conheceu um agente humanitário francês chama-do Pierre. Ele a encorajou a começar uma nova vida. Ele disse que ela conseguiria. Eles se casaram, e depois de oito anos Somaly fi nalmente estava livre. Todavia, ela pensava o tempo todo nas

se começar uma nova vida. Era uma quantia enorme em dinheiro. Somaly podia comprar uma casa e ainda abrir um pequeno negócio.

– Mas eu sabia que as outras meninas do bordel sofriam exatamente como eu. Desde que ajudei a pri-meira garotinha a fugir, meu sonho era libertar as outras também. Portanto, dei o dinheiro ao dono do bordel e ele concordou em libertar todas as dez meninas! Foi

Como a organização de Somaly, a AFESIP, atua:

• Visitam os bordéis para ajudar as meninas que são obrigadas a trabalhar lá e para procurar meninas menores de 18 anos que foram vendidas como escravas.

• Fazem incursões conjuntas com a polícia para libertar as meninas menores de 18 anos identifi cadas.

• Ajudam as meninas a denun-ciarem aqueles que as vende-ram, compraram e abusaram delas. Também cuidam para que as meninas tenham advogados em casos de pro-cessos judiciais.

• Proporcionam às meninas resgatadas um lar, alimentação, tratamento de saúde, ajuda psicológica, chance de fre-qüentar a escola fundamental e de, mais tarde, obter uma edu-cação profi ssionalizante como estilistas ou cabeleireiras.

• Ajudam as meninas a voltarem para suas famílias, quando possível.

• Ajudam as meninas a começa-rem uma nova vida, oferecendo educação profi ssionalizante. Eles também fornecem os equipamentos de que as meni-nas precisam. A AFESIP visita cada menina durante pelo menos três anos para verifi car se tudo vai bem.

• Disponibiliza um telefone de auxílio para onde as meninas podem ligar 24 horas por dia.

–O mais importante é que damos carinho e amor às meninas. Nada é mais impor-tante do que isso. Assim, a maioria das meninas podem crescer fortes e cuidar de si mesmas, apesar de todas as experiências pelas quais passaram, diz Somaly.

Somaly brinca com uma menina de um bairro pobre. A AFESIP presta muita atenção nas meninas peque-nas, pois o risco de que sejam vendidas para bordéis em breve é grande.

Medo do escuro

– Detesto fi car sozinha no escuro. É nesse momento que todas as

lembranças terríveis voltam. Adoro estar ao ar livre e brincar com as

meninas no campo de arroz. Quando jogamos futebol, pescamos e caçamos caranguejos juntas, eu me sinto viva novamente,

diz Somaly.

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milhares de meninas que ainda estavam escravizadas nos bordéis. Todo dia, ela observava como meninas pequenas eram expostas a abusos terríveis. O sonho de Somaly era salvar todas as meninas da escravidão.

– Conversei com Pierre sobre meus sonhos e nós decidimos fundar a organi-zação AFESIP (em francês: Agir pour les Femmes en Situation Précaire – em por-tuguês: Ação pelas Mulheres em Situação Vulnerável) para ajudar as meninas no Camboja.

Somaly passou a visitar os bordéis em Phnom Penh. Ela ensinava às meninas sobre os cuidados com a saúde e como se proteger contra a AIDS. Ela levava as meninas doentes para o hospital. Os donos dos bordéis queriam garotas saudáveis, e deixa-vam Somaly fazer visitas freqüentes. O que eles não sabiam, era que ela sempre procurava por meninas menores de dezoito anos e que haviam sido vendidas como escravas. Logo a AFESIP fez sua primeira incursão conjunta com a polícia para salvar uma das

meninas que Somaly havia descoberto. Era uma garoti-nha de quatorze anos cha-mada Srey, que era mantida drogada. Somaly e Pierre cuidaram de Srey em sua casa. Com o tempo, vieram mais e mais meninas morar com eles. Todo o dinheiro que tinham foi usado. Somaly entrou em contato com todas as organizações assistenciais que conhecia e lhes pediu ajuda financeira para salvar as meninas. Após um ano, em 1997, Somaly finalmente conse-guiu ajuda e teve a oportuni-dade de abrir um pequeno centro onde podia cuidar das meninas que eram res-gatadas.

Vale a pena morrer por essa causaOnze anos se passaram des-de a fundação, e mais de 3.000 meninas foram salvas da escravidão e conquista-ram uma vida melhor graças ao trabalho duro de Somaly e da AFESIP. Hoje, eles têm três lares seguros onde vivem 150 meninas resgata-das. Atualmente, a AFESIP conta com centros na Tailândia, no Vietnã e no

Laos. Entretanto, Somaly tem muitos inimigos e vive sob constante ameaça de morte. Ela recebe telefone-mas ameaçadores no meio da noite, carros a seguem e os lares para as meninas res-gatadas da AFESIP sofrem ameaças de bombas. Alguém incendiou sua casa, e Somaly tem que andar sempre acom-panhada de guarda-costas. Ela é obrigada a viajar regu-larmente para o exterior, quando se torna perigoso demais ficar no Camboja.

– Dizem que o tráfico de escravas rende mais dinheiro que o tráfico de drogas. Por isso, é difícil e perigoso aca-bar com ele. Os donos de bordéis, a máfia, certos poli-ciais, juízes e políticos que ocupam altos cargos ganham muito dinheiro com o tráfico de meninas.

Certas pessoas acreditam que pelo menos 20 mil meni-nas menores de dezoito anos sejam mantidas como escra-vas no Camboja. Somaly não irá interromper sua luta pelos direitos delas.

– Eu quase desisti quando minha filha, Champa, foi seqüestrada e vendida para um bordel. Porém, ela me

disse com tranqüilidade que eu deveria continuar. Champa disse que tinha a mim, e que ficaria bem ape-sar de tudo. Mas ela não sabia o que seria das outras meninas se eu desistisse. As palavras dela me deram for-ça para seguir adiante. As meninas me chamam de mãe e eu realmente sinto como se elas fossem minhas filhas. Eu as amo. As garotas e eu passamos por experiências semelhantes, portanto eu sei do que elas precisam. Segurança, carinho e amor. Como eu poderia desapon-tá-las ou abandoná-las? Sei que posso ser assassinada a qualquer momento, mas lutar para que as meninas possam ter um bom futuro é uma causa pela qual vale à pena morrer.

– A única coisa que realmente me deixa contente é ver as meninas voltarem a brincar e rir. Aí eu também fico feliz! diz Somaly.

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Camboja duramente afetado

Durante a guerra dos EUA contra o Vietnã (1959–1975), o vizinho, Camboja, também foi atingido. Entre os anos de 1969 e 1973, os EUA lançaram mais de 500 mil toneladas de bombas sobre o Camboja. Determinadas regiões do país foram totalmente destruí-das e centenas de milhares de pessoas foram mortas.

Entre 1975 e 1979, o partido comunista do Camboja, o Khmer Vermelho, tomou o poder no país. O líder do partido se chamava Pol Pot. Durante esse período, quase 2 milhões de pessoas morreram de fome e foram submetidas ao trabalho forçado, à tortura ou assassinadas. Até mesmo crianças foram mortas. Milhares de pessoas desapareceram sem deixar rastros.

– Muitos dizem que meu pai foi levado pelo Khmer Vermelho e desapareceu, mas ninguém tem certeza sobre o que ocorreu, diz Somaly.

O crime do Khmer Vermelho contra o povo do Camboja é considerado um dos piores genocídios da história da humanidade. (Leia mais sobre genocídio no site www.childrensworld.org)

A guerra e a violência tornaram o Camboja um dos países mais pobres do mundo na atualidade. Um terço da população do país vive com menos de 1 dólar por dia. Quase metade (45%) das crianças cambojianas são subnutridas.

– A guerra e a violência não apenas tornaram o Camboja muito pobre, mas também destruíram as pes-soas. Muitos perderam a noção de certo e errado. As pessoas se tornaram brutais, e se importam apenas com sua própria sobrevivência. A vida de outra pessoa não tem tanto valor. Acho que é por isso que tantas famílias vendem suas próprias fi lhas para bordéis como escravas. As meninas são as mais atingidas, porque, do ponto de vista cultural, uma menina vale menos do que um menino no Camboja. Uma menina muitas vezes é vista como uma escrava, que pode ser usada tanto pela família quanto por outros adultos. Nós lutamos para que meninas e meninos tenham o mesmo valor, diz Somaly.

A partir de 1963, guerras sangrentas irromperam no Camboja, devastando casas, estradas e terras cultiváveis e matando muitas pessoas:

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Sreypao

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foi vendida como escravaAos sete anos de idade, Sreypao foi vendida como escrava para um bordel por sua própria mãe. Foi o início de um longo pesadelo.

– Acho que eu teria morrido se Somaly não tives-se me ajudado. Ela salvou minha vida e eu a amo por isso. Somaly é minha nova mãe, diz Sreypao.

te. Hoje é ela que está com a pesada pá de ferro usada para desenterrar os caran-guejos dos buracos fundos na lama. Durante a estação chuvosa, Sreypao e as outras garotas, que moram no lar para meninas resgatadas de Somaly, saem à procura de caranguejos quase toda tarde.

Sreypao observa as garras saindo da lama. Ela cava em torno do caranguejo com fi r-meza e cuidado, para ter cer-teza que não irá perdê-lo.

Mora: No lar de Somaly para meninas resgatadas.Ama: A vida!Detesta: Que seja possível comprar e vender seres humanos.O pior que já lhe aconteceu: Ser vendida como escrava para um bordel.O melhor que já lhe aconteceu: Quando Somaly e a AFESIP me salvaram.Admira: Somaly! Ela salvou minha vida!Quer ser: Como Somaly, e salvar meninas da escravidão.

Acavar aqui! Depressa!Sreypao corre o mais

rápido que consegue até as meninas ajoelhadas no cam-po de arroz um pouco adian-

– qui tem um! Venha

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Depois ela enfia a mão na lama, tão rápido quanto um raio.

– Não foi tão mal, hein? grita ela, pulando e chacoa-lhando o caranguejo o mais próximo que consegue dos rostos de suas amigas. Sreypao ri. Entretanto, durante muito tempo não havia alegria em sua vida.

Muitas vezes faminta– Meu pai morreu quando eu tinha um ano. Minha mãe tentava cuidar de mim e de meus cinco irmãos. Não era fácil para ela. Eu era a filha mais velha, por isso tinha que ajudar bastante. Eu cozinhava, lavava a lou-ça, cuidava dos irmãos menores, fazia de tudo um pouco. Eu trabalhava nos campos de arroz dos vizi-nhos para ganhar um dinheiro extra. Muitas vezes, passávamos fome. Às

vezes comíamos uma vez por dia, às vezes não comía-mos nada, lembra Sreypao.

Um dia, quando ela tinha sete anos, uma mulher e um homem vieram visitar. Sreypao nunca os tinha visto antes. O casal disse que podia ajudar a família, empregan-do Sreypao como trabalha-dora doméstica na casa de um parente deles na capital, Phnom Penh.

– Minha mãe acabou con-cordando com a proposta e eu também. Eu queria aju-dar, pois sabia que precisá-vamos de todo o dinheiro que pudéssemos conseguir.

Sreypao começou a se pre-ocupar quando eles se apro-ximaram de Phnom Penh. Ela nunca havia estado em uma cidade grande antes. A mulher e o homem foram gentis e disseram que não havia nada a temer.

Mora: No lar de Somaly para meninas resgatadas.Ama: A vida!Detesta: Que seja possível comprar e vender seres humanos.O pior que já lhe aconteceu: Ser vendida como escrava para um bordel.O melhor que já lhe aconteceu: Quando Somaly e a AFESIP me salvaram.Admira: Somaly! Ela salvou minha vida!Quer ser: Como Somaly, e salvar meninas da escravidão.

“Nós te matamos!”Mas assim que entraram na casa, o homem e a mulher mudaram completamente.

– Eles me jogaram em um quartinho e trancaram a porta. Eu fiquei com medo e comecei a chorar. Eu não

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O que é preciso para uma boa caça a caranguejos?

Uma pá de ferro...

... e amigos!

... um balde...

Cada uma das meninas do lar de Somaly tem seu armá-rio no quarto, onde guardam todas as suas coisas. No armário de Sreypao há:

Uma bolsa escolar, com livros e canetas.Um sabonete.Um vidro de xampu.Uma escova de dente.Um creme dental.Um prato e uma colher.Um travesseiro.O colchão de palha colorido onde ela dorme, fi ca inclina-do contra a parede em um canto do quarto, pois não cabe no armário.

– Além disso, é claro que tenho minhas roupas no armário. Eu adoro roupas!

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O maior templo do mundo!O templo budista na camiseta de Khema se chama Angkor Wat e fi ca no noroeste do Camboja. Ele foi cons-truído no século XII e é a maior construção religiosa do mundo. Todos no Camboja se orgulham muito do templo. O Angkor Wat está estampado até mesmo na bandeira e nas cédulas do país! Às vezes, as meninas resgatadas por Somaly e pela AFESIP fazem um passeio até Angkor Wat.

O guarda-roupa de Sreypao

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entendi nada e gritei: ”Por que vocês me trancaram? Eu vim para cá trabalhar como doméstica!” Então eles dis-seram: “Pare de gritar! Se você não se calar, vamos te matar!” Fiquei morrendo medo e quis voltar para casa.

Os dias se passaram e Sreypao não foi libertada. Davam-lhe água, mas nada para comer. Depois de uma semana, o homem veio até ela e disse: “Cuide de um cliente”.

– Eu disse que não sabia o que aquilo signifi cava. Eu pensava ter ido para lá para limpar a casa e lavar a lou-ça. O homem fi cou furioso e mandou quatro homens entrarem no quarto. Eles rasgaram minhas roupas e me bateram com cinto e fi os elétricos por todo o corpo. Depois eles me fi zeram um mal terrível. Na época eu não sabia o que era aquilo. Agora sei que eles me estu-praram. Eu chorava e pedia

que eles parassem. Por fi m, acabei desmaiando.

Escorpiões e aranhas– Acordei com eles me jogando água e perguntan-do se eu ia “cuidar de um cliente”. Quando eu disse que ainda não entendia o que aquilo queria dizer, eles me trancaram em outro quarto. O quarto estava cheio de aranhas, escorpiões e animais venenosos. Depois de alguns dias, eu tinha ferimentos no corpo todo e fi quei muito doente. Eu chorei e gritei pela minha mãe, mas eles apenas disseram: “Não adianta, ela não te ouve. Ela não vai te ajudar!”. Eu não entendia o que estava acontecendo. Eles não me deixavam sair nem quando eu precisava ir ao banheiro. Até que não consegui mais segurar. Fui obrigada a fazer na roupa ou no chão. Quando os homens viram o que havia

ocorrido, fi caram loucos da vida e gritaram: “Por que você não avisou?”. Eu fui punida. Eles me bateram e me açoitaram novamente.

Desistiu– Por fi m, acabei desistindo. Eu não agüentava mais apa-nhar, e acabei concordando com o que eles me pediram. Mas nada melhorou, muito pelo contrário. Descobri que “cuidar dos clientes” era a mesma coisa. Estupro e agressão. Durante noites inteiras e com muitos homens diferentes. Em pou-co tempo, parecia que meus sentimentos haviam sido destruídos de alguma for-ma. Como se eu estivesse morta.

Sreypao foi vendida para outros bordéis. Uma noite, quando tinha onze anos e era escrava em diferentes bor-déis há mais de quatro anos, ela tomou uma decisão.

– Um novo “cliente”

O uniforme escolar...... as roupas tradicionais que usamos para costurar e tecer. Foram as meninas que moram no lar de Somaly para garotas um pouco mais velhas que fi zeram as roupas. Elas vão ser estilistas, e fazem roupas muito bem!

Minhas roupas de ginástica...

... e minhas roupas preferi-das. Eu ganhei a saia e as calças de Somaly. São as melhores coisas que tenho!

aguardava quando senti que não conseguiria. Não mais uma vez. Eu ia fugir a qual-quer preço. Mesmo que eles me matassem.

A fugaSreypao perguntou se podia comprar um bolo na loja da esquina antes do próximo cliente. Eles permitiram, mas dois homens iriam junto, como vigias.

– Então eu disse que, se estavam com medo que eu fugisse, talvez fosse melhor eles irem comprar o bolo, enquanto eu esperava em frente ao bordel. Os homens nunca imaginaram que eu sairia dali. No entanto, assim que eles viraram as costas, eu corri o máximo que pude. Quando virei, vi que eles haviam me desco-berto e estavam me seguin-do. Eu chorava e meu cora-ção batia forte.

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– Eu olhei para trás de sos-laio e corri direto até trom-bar com um casal que cami-nhava. Eles viram que eu estava chorando e pergunta-ram o que houve. Expliquei o melhor que pude, e eles disseram que podiam me ajudar. Eles me mandaram subir depressa em sua moto-cicleta. Eu tinha muito medo de ser vendida novamente. Porém, o casal trabalhava para a AFESIP e estavam em sua ronda noturna usual no

parque, à procura de meni-nas que precisam de ajuda!

O resgate– Quando chegamos à AFESIP, todos foram muito gentis comigo, e entendi que estava salva. Somaly me abraçou e disse que tudo fi caria bem. Eu confi ei nela imediatamente. Eu sentia que ela entendia exatamente

pelo que eu tinha passado. Ganhei um sabonete e rou-pas limpas. Um médico me examinou e depois me encontrei com um psicólogo. Foi uma sensação muito boa poder falar sobre todas as coisas terríveis que haviam acontecido.

Após quatro meses, Somaly quis saber se Sreypao não tinha vontade de se mudar

A mãe da casa, Sochenda, ajuda Sreypao a fazer a sopa.

CaldoTom Yam

Coentro para a sopa de caranguejo.

para sua casa na zona rural e freqüentar uma escola.

– Fiquei muito feliz. Imagine, poder deixar Phnom Penh e todas as lem-branças ruins! E eu nunca havia tido chance de ir à escola. O dia em que entrei na sala de aula foi o mais feliz de minha vida.

Agora já faz quase cinco anos que Sreypao mora no lar para meninas resgatadas de Somaly.

– Sinto-me totalmente segura aqui. Somaly, nossa mãe da casa e todas as outras pessoas da AFESIP nos dão muito amor. Nós, meninas, somos como uma família e cuidamos umas das outras. Às vezes conversa-mos sobre todas as coisas terríveis que aconteceram. Toda quinta-feira, uma psi-cóloga vem aqui para nos ajudar. Tentamos fazer coi-sas divertidas e pensar em tudo de bom que pode acon-tecer no futuro.

Juntas. As meninas nunca saem sozinhas, elas cuidam umas das outras para que nada de mal aconteça.

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O mesmo valorSreypao quer lutar pelos direitos das meninas no futuro. Assim como Somaly, ela quer fazê-lo contando sua própria história.

– Para que essa situação mude, os rapazes têm que mudar. Há algo muito erra-do quando alguém pensa que pode se aproveitar de meninas e mulheres, como fi zeram comigo. Eles não têm coração? Eles gostariam que suas fi lhas, irmãs, espo-sas ou mães fossem tratadas dessa forma? Os rapazes precisam começar a ver as meninas de outra forma. Eles têm que entender que temos o mesmo valor e deve-

Somaly, minha nova mãe!– Tenho certeza de que minha mãe sabia que estava me vendendo para um bordel. Ela me mandou sair da sala quando o homem e a mulher chegaram, para que eu não ouvisse o que falavam. Não sei quan-to dinheiro ela recebeu por mim. É claro que minha mãe era pobre, mas mesmo assim não entendo como alguém pode vender sua própria fi lha. A AFESIP me

ajudou a encontrar com minha mãe algu-mas vezes. Porém, ainda tenho raiva dela e não quero morar lá nunca mais. Na ver-dade, eu gostaria que ela fosse presa, mas não posso denunciá-la. Seja como for, ela é minha própria mãe. Apesar de que, agora, Somaly é minha nova mãe! Ela me ama e diz que vai me ajudar a reali-zar meus sonhos.

– Quando me sinto triste e cansada, vou para o lar de meninas onde Sreypao mora. As meninas me dão força e vontade para continuar lutan-do. Eu as amo! Nós somos boas umas para as outras, diz Somaly.

O lar é para as meninas mais jovens resgatadas da escravi-dão. Há 39 meninas morando lá no momento. A mais nova tem apenas sete anos.

Quando as meninas termi-nam o ensino fundamental, a maioria se muda para um dos outros dois lares de Somaly para garotas um pouco mais velhas. Lá elas podem fazer os cursos profi ssionalizantes da AFESIP e se educarem como estilistas ou cabeleirei-ras. Elas também podem estudar matemática e khmer, o idioma falado no Camboja.

– Quero começar o curso de cabeleireira, diz Sreypao.

No momento, um total de 151 meninas resgatadas moram nos três lares.

meninas resgatadas em três lares

– Se alguma de nós precisa de ajuda ou tem vontade de fazer alguma coisa, como um piquenique, pode-mos escrever uma carta e depositá-la na caixa secreta. Só Somaly tem a chave dela. Ela lê todas as cartas. Como Somaly passou pelas mesmas coisas que nós, ela entende como nos sentimos e o que precisamos. Eu escrevi uma carta e pedi que minha irmã mais nova pudesse morar aqui. Tenho medo que nossa mãe a venda. Somaly prometeu que ela poderá vir para cá, e estou imensamente feliz por isso.

mos ser tratadas com respei-to! Quero falar nas escolas sobre o que me aconteceu. Se os meninos tiverem a chance de ouvir minha história, tal-vez eles pensem e comecem a tratar melhor as meninas. É

A chave para os sonhos das meninas...

– Meu primeiro dia na escola foi o melhor dia da minha vida! diz Sreypao.

difícil contar aos outros sobre todas as experiências terríveis pelas quais passei, mas Somaly me ajuda a ter coragem!

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Um dia no lar para meninas resgatadas de Somaly– Bom dia, garotas! Vocês dormiram bem?Ainda está escuro lá fora quando a mãe da casa, Sochenda, acorda as meninas na bela casa de madeira construída sobre palafitas…

05:00 Ginástica da manhãAquelas que têm boa disposição de manhã tentam animar as demais. Todas tiram os pijamas e vestem roupas de ginástica, descem as escadas e se posicionam no jardim. Então é hora da dura ginástica matinal, durante pelo menos meia hora toda manhã.

05:30 BanhoDepois do exercício, todas tomam banho e esco-vam os dentes.

06:00 Café da manhãAntes do café da manhã, as meninas vão até seus armários no quarto de dormir e pegam seus próprios pratos e colheres.

– Hoje temos arroz e feijão, mas meu café da manhã preferido é peixe com legumes. A comida é uma delí-cia e nunca fico com fome, diz Srey Moch, 11 anos.

Depois do café da manhã, cada uma lava seu prato e sua colher.

06:30 Para a escolaTodas vestem o uniforme escolar.

– Sempre ajudamos umas às outras quando vamos para a escola. Principalmente nós, que somos um pouco mais velhas, cuidamos para que os uniformes das meninas mais novas estejam corre-tos e que elas não esqueçam seus livros, diz Sreypao.

07:00Aulas– Eu adoro estar na escola. Concentro-me para aprender coisas para o futuro e assim não tenho tempo para pensar sobre todas as coisas horríveis que aconteceram. Não freqüentei uma escola até os 11 anos de idade, porque era escrava em um bordel. Agora estou na quinta série, apesar de ter dezesseis anos. Se a AFESIP não tivesse pagado meu uniforme e livros, eu nunca teria tido condições de ir à escola, diz Sreypao.

11:00 AlmoçoTodas as meninas voltam para casa e almoçam.

12:00 SiestaHora de descansar. É bom poder subir para casa e dei-tar para ler ou dormir quando está tão quente lá fora.

13:00 LimpezaAs meninas se revezam na limpeza da casa e do jardim. Algumas ajudam a preparar o jantar. Quem precisa, tem aulas extras com um professor da AFESIP.

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Um dia no lar para meninas resgatadas de Somaly

18:00 Dever de casaA maioria jogam futebol, brinca de esconde-esconde e caça caranguejos no campo de arroz. Outras lavam suas roupas, tomam banho e fazem o dever de casa. Às 18:30 o gerador é ligado para a casa ter eletricidade. Assim, as meninas não precisam fazer o dever de casa no escuro, apesar de morarem na zona rural, onde geral-mente não há eletricidade.

– Nós nos ajudamos com os deveres de casa. Se tiver alguma coisa que você não entende, sempre tem alguém que sabe explicar. Quero ser médica quando crescer, portanto sei que preciso estudar muito, diz Leng, 11 anos (à esquerda), que estuda ciências junto com Sopheap, 12 anos, (à direita).

14:00 TecelagemToda tarde, as meninas aprendem a tecer e costurar na máquina.

– Quando me mudar daqui, gosta-ria de fazer o curso de corte e costura da AFESIP. Quero ser uma ótima tecelã para poder me sustentar quando for adulta, diz Chitra, 13 anos.

17:00 Jantar

20:00 Hora do Filme!Somaly acredita que é bom para as meninas assistirem TV de vez em quando, para saberem o que está acontecendo ao seu redor, no Camboja e no mundo.

– Mas prefi ro assistir fi lmes engraçados, que me fazem rir bastante! diz Sreypao.

24:00 Hora do terror…De vez em quando, alguma das meninas acorda de seus belos sonhos com alguém acariciando sua perna ou seu cabelo. Se olhar para cima nesse momento, ela fi tará um par de olhos mirando-a fi xamente e ouvirá uma gargalhada terrível…

– Às vezes, quando as outras já dormiram, eu saio, me pinto e me transformo no fantasminha da casa! Volto para o quarto silenciosamente e escolho uma boa vítima. Primeiro, eu seguro seu pé cuidadosamente... Depois, a puxo para fora do mosquiteiro com toda força, ao mesmo tempo que dou o urro mais alto que consigo. Todas acordam e correm em volta do quarto, gritando. Eu adoro me fantasiar e, se fosse possível, gostaria de participar de um grupo de teatro de verdade no futuro. Esse é o meu sonho, diz Kanha, 19 anos.

21:00 Hora de dormir sob o mais longo (?) mosquiteiro do mundoTodas pegam seus colchões de palha. Elas esticam os colchões lado a lado em duas fi leiras no chão. Depois, algumas meninas cobrem os lugares de dormir com dois enormes mosquiteiros. Os cortinados têm mais de dez metros de comprimento e protegem as garotas de pegarem malária. Pouco antes de o gerador ser desligado e da luz se apagar, a mãe da casa, Sochenda, vem dizer boa noite.

– Ela faz isso toda noite. Ela realmente se importa conosco, como uma verdadeira mãe, diz Sreypao.

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Aqui no Camboja nós, meninas, temos muito

mais deveres em casa do que os meninos. Já aos 5 anos de idade, temos que começar a lavar louça, cozinhar, costu-rar, limpar a casa, trabalhar no campo de arroz e cuidar de nossos irmãos menores, para que nossos pais possam trabalhar. Os meninos nunca precisam fazer esse tipo de coisa. Tudo o que eles fazem é brincar! Quando os pais pedem a ajuda de seus fi lhos e o menino não quer, não há problema. Ele não é obrigado. Porém, se a menina se recu-sar, eles fi cam terrivelmente bravos. Eu acho injusto e fi co com raiva só de pensar nisso. Os meninos deveriam ajudar as meninas. Se ajudássemos uns aos outros, as tarefas seriam feitas com mais rapi-dez e assim as meninas tam-bém teriam tempo livre. É claro que também gostamos de brincar!”.

O fi lho na escolaSe uma família é pobre e os pais têm que escolher entre mandar o fi lho ou a fi lha para a escola, eles quase

sempre escolhem o menino. Foi assim comigo. Fiquei decepcionada quando meu irmão entrou na escola e eu fui obrigada a fi car em casa e trabalhar. Os pais acreditam que os meninos terão condi-ções de conseguir um empre-go melhor e poderão susten-tar a família mais tarde. Já as meninas só são capazes de realizar as tarefas domés-ticas. Porém, acredito que podemos fazer as mesmas coisas que os meninos se tivermos chance. Nós tam-bém podemos trabalhar em escritórios e sermos chefes! Para termos uma vida melhor, é importante freqüentarmos a escola como os meninos. Eu adoro ir à escola!

Aqui no centro, sempre conversamos sobre como a vida é mais difícil para nós, meninas, do que para os meninos. Espero que isso mude para as meninas terem uma vida melhor no futuro. Mas acho que isso vai demo-rar, pois todas as famílias do Camboja parecem amar mais seus fi lhos do que suas fi lhas. Não entendo porquê.”

Meninos mais amados

– Fiquei super triste quando meu irmão entrou na escola, enquanto eu fui obrigada a fi car em casa e trabalhar, conta Ly, 13 anos, que mora em dos lares para meninas resgatadas de Somaly.

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Vida de risco para meninas

No Camboja, estamos expostas a mais perigos

do que os meninos. Se sair-mos do lar, podemos nos envolver em problemas mui-to sérios. Podemos ser estu-pradas, seqüestradas e ven-didas para bordéis e sermos exploradas por adultos de todas as formas possíveis.

Por isso, muitas meninas não querem, ou ousam, arrumar um emprego fora de casa. Eu me sinto exata-mente como elas, e detesto sentir isso. Deveríamos poder circular livremente, sem medo. Isso deveria ser um direito de todos!

Aqui no centro de Somaly,

cuidamos umas das outras para que nada de mal acon-teça a nenhuma de nós. Nunca saímos de casa sozi-nhas, sempre o fazemos em grupos de várias meninas. Se alguma das minhas ami-gas estiver em apuros, eu farei tudo para apoiá-la e ajudá-la”.

– Detesto ter medo só porque sou menina, diz Oudom, 15 anos, que vive em um dos lares para meninas resgatadas de Somaly.

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– Fiquei super triste quando meu irmão entrou na escola, enquanto eu fui obrigada a fi car em casa e trabalhar, conta Ly, 13 anos, que mora em dos lares para meninas resgatadas de Somaly.

Para que se usa um krama?Krama é um tecido tradicional muito comum no Camboja. Aqui, Chitra, 13 anos, mostra algumas das maneiras que se pode usar o tecido!

Para proteger a cabeça do sol…

Para manter o suor longe dos olhos…

…ou só porque é bonito!

Para comprar berinjelas…

…ou melões no mercado!

…e do vento.

Quando se vai ao templo budista…

Como cachecol…

…xale…

…e saia!

…vestido…

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Synoun

Cresci em uma vila pobre na zona rural aqui no Camboja.

Uma de nossas vizinhas cos-tumava viajar para a Tailândia para comprar e vender coisas. Ela dizia que era fácil ganhar dinheiro. Um dia, a mulher contou que ela conhecia um homem na Tailândia que podia me arrumar um emprego em uma fábrica têxtil. Minha família precisava muito do dinheiro, então eu concor-

dei. Porém, fui enganada. O homem não me levou para uma fábrica, mas sim para um bordel. Eu tinha só 16 anos, mas quando fui apri-sionada senti como se minha vida já tivesse acabado. O bordel era tão terrível que eu perdi a esperança de jamais conseguir sair de lá.

A sorte é que eu estava errada. Depois de um ano, a polícia invadiu o bordel e nós fomos libertadas e man-dadas de volta para casa.

ganhou uma nova vida– Eu fui mantida prisioneira, como escrava em um bordel na Tailândia, por mais de um ano e achava que minha vida tinha acabado. Mas Somaly e a AFESIP me deram uma nova vida. Agora tenho meu próprio salão de cabeleireira e posso cuidar de mim mesma, diz Synoun.

Família pobreQuando cheguei em casa, minha mãe disse que nunca mais me deixaria sair da vila novamente. Eu só poderia andar por perto, para que nada de mal acontecesse. Mas não era tão fácil. Minha família continuava pobre e não havia como ganhar dinheiro onde nós moráva-mos. Como poderíamos sobreviver se eu não saísse para procurar emprego? Meu pai se preocupava o tempo todo com a minha seguran-ça. Um dia, ele contou que havia ouvido falar de uma organização em Phnom Penh que ajudava meninas que haviam sido vendidas para bordéis. Talvez eles pudessem nos ajudar. Meu

pai telefonou para lá e não demorou muito para que duas pessoas da AFESIP viessem me buscar. Eles estavam preocupados com minha irmã menor, Samnang, que também poderia ter pro-blemas. Eles pediram per-missão para ela também vir conosco. Nossos pais con-cordaram e eu fi quei super feliz, pois amo minha irmã.

Belos penteadosEstávamos muito nervosas quando chegamos a Phnom Penh. Porém, Somaly nos

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abraçou e todas as outras pessoas também foram mui-to gentis. Finalmente relaxa-mos. Dias depois, chegaram algumas meninas que fi ze-ram o curso de cabeleireira da AFESIP e mostraram como fazer belos penteados e lindas unhas. Na mesma hora senti que era aquilo que eu queria fazer no futuro. Ao mesmo tempo em que iniciei o curso de cabeleirei-ra, minha irmã começou a aprender a costurar e tecer. Eu realmente adorei o curso. Eu fazia estágio com dife-rentes cabeleireiros, sempre sonhando em abrir meu pró-prio salão e ser bem sucedi-da. No entanto, eu tinha pouca autoconfi ança. Somaly e os funcionários me apoiaram e me deram muito amor. Eles diziam que eu certamente conseguiria!

O próprio salão!Após um ano, me senti pre-parada. A AFESIP me pediu para encontrar um bom local onde pudesse abrir meu salão. É claro que não podia ser na minha vila de origem, pois lá ninguém tinha condições de ir ao cabeleireiro. Todavia, na cidade que fi cava a apenas meia hora de viagem de moto-táxi da vila, eu encon-trei um bom lugar onde poderia morar e trabalhar.

Algumas pessoas da AFESIP foram até lá e, depois de aprovarem o lugar, me aju-daram a começar. Eles me deram tudo: tesouras, pen-tes, secadores de cabelo, armários, xampu... tudo! Foi incrível. Minha irmã mais nova abriu seu ateliê de costura no mesmo local. Dividimos o aluguel e faze-mos companhia uma à

No salão “Cortes Modernos de Synoun” você pode cortar o cabe-lo, fazer permanente no cabelo e nos cílios, alon-gar o cabelo, desfrutar de uma massagem facial e embelezar suas unhas com a manicure! O alongamento de cabe-lo é muito popular entre as clientes de Synoun e custa US$ 0,75.

Mora: Junto com minha irmã mais nova.Ama: Minha família.Detesta: O tráfi co de escravos.O pior que já lhe aconteceu: Ser seqüestrada e vendida como escrava na Tailândia.O melhor que já lhe aconte-ceu: Fazer curso de cabeleireira e receber ajuda para abrir meu próprio salão.Admira: Somaly.Quer ser: Uma cabeleireira bem sucedida.Sonho: Conhecer outros países.

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outra. No início, a AFESIP nos visitava com freqüência para ver como as coisas estavam indo, se estávamos conseguindo cuidar de tudo e se as pessoas da cidade nos tratavam bem. Era bom. Um dia Somaly visitou o salão e eu fi z suas unhas,

que fi caram lindas. Aquele foi um ótimo dia! Ela me pediu para telefonar sempre que eu precisasse de algo. É reconfortante saber que Somaly estará lá se precisar-mos de ajuda. Ela ou algum outro funcionário ainda vem aqui de vez em quando

para ver se está tudo bem.Se a AFESIP não tivesse

me ajudado, eu nunca teria conseguido a vida que tenho hoje. Nunca teria tido con-dições de fazer o curso de cabeleireira e nem de abrir meu próprio salão sozinha. Mesmo não sendo sempre

fácil, é fantástico ter uma educação profi ssionalizante e um trabalho de verdade. Agora me sustento sozinha e ainda posso ajudar minha família. Maravilhoso!”

Amor de irmãs– Me sinto segura por morar junto com minha irmã mais nova. Minha mãe e meu pai estão muito felizes por estar-mos tão bem agora. Eles vêm sempre aqui, e nós cos-tumamos visitá-los em casa na vila pelo menos uma vez por semana, diz Synoun.

Parte das meninas que fazem o curso de cabeleireira da AFESIP ou o curso de corte e costura têm difi culdade de conseguir emprego quando se formam. Isso se deve à alta taxa de desemprego no Camboja, mas também porque muitas das meninas não são aceitas quando voltam para a comunida-de. Às vezes elas são consideradas “sujas”, e as pessoas preferem comprar suas roupas ou cortar o cabelo em outro lugar. Para ajudar essas meninas, a AFESIP fundou, em 2003, a “Fair Fashion” – Moda Justa. As meninas fabricam roupas que são vendidas no Camboja e no exterior. Elas recebem salários com os quais podem se sustentar, e o local de trabalho é seguro. As meninas são tratadas com respeito e não são obri-gadas a fazer hora extra. Claro que o trabalho infantil é proibido na Fair Fashion. Porém, essa situação não é semelhante no Camboja, onde metade das crianças trabalha. O dinheiro que a Fair Fashion recebe com a venda das roupas é usado para salvar outras meninas da escravidão.

No momento, 30 meninas trabalham na Fair Fashion no Camboja. Em 2004, a Fair Fashion foi aberta também no Vietnã.

Moda Justa

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SynaQuando Syna tinha 13 anos, foi atraída de sua vila no Vietnã para a capital do Camboja, Phnom Penh. Lá, ela foi vendida como escrava para um bordel. Hoje ela faz aquilo que todas as garotas que foram salvas por Somaly sonham...

salva escravas

Syna mantém os olhos abertos quando passa pelos corredores escu-

ros dos bordéis. Ela sabe que atrás de cada uma das portas fechadas de metal por onde passa, pode haver meninas de até sete anos de idade, mantidas prisioneiras como escravas sexuais. Ela conhece os terríveis abusos a que essas meninas são sub-metidas e o quanto elas sofrem. Por três anos, a pró-pria Syna foi trancada e explorada por homens. Agora, ela trabalha como assistente social nos bordéis para a AFESIP.

Em um pequeno quarto no fundo do bordel, dez

meninas esperam por Syna. Elas ficam esfuziantes quan-do ela chega.

– Oi! Que bom vê-las novamente! Como estão vocês? pergunta Syna e abraça cada uma delas.

Elas se sentam em círculo no chão e começam a con-versar. No começo há mui-tas piadas e risos, mas depois a coisa fica mais séria. Muitas contam que seus ”clientes” batem nelas e que é difícil se defender.

Uma menina chega depois das outras. Ela é magra e fraca e está muito doente. Syna se preocupa com ela.

– Você deve vir à clínica da AFESIP para podermos

ajudá-la. Você promete que virá?

A garota acena com a cabeça e diz que vai tentar.

Syna lembra as meninas de que a melhor forma de se protegerem contra a AIDS é usar preservativo. Ela tam-bém explica como é impor-tante que elas se lavem bem para se manterem saudáveis. Ela distribui preservativos, creme dental, escovas de dente, e sabonetes gratuita-mente para todas.

A menina foi laçadaDepois da visita, Syna fica cansada. A escuridão, os quartos pequenos e o odor desagradável fazem com que

ela quase sempre sinta náu-seas. Todas as memórias ter-ríveis daquele quartinho retornam.

– Se eu tivesse menos de dez homens por dia, apanha-va do dono do bordel. Muitas vezes, meu castigo era ficar sem comer nada. E não dava para fugir, inde-pendente do quanto eu dese-jasse a liberdade. O bordel havia sido construído sobre palafitas no meio da água, e a única chance de chegar ou sair de lá era por uma ponte estreita e muito bem vigiada. Em volta do bordel, os donos espalharam varetas pontiagudas e pontas de fer-

Quando eu descubro algu-ma menina que foi vítima do tráfico de escravas, informo à polícia, que liberta a garota. Mesmo que este trabalho muitas vezes me faça mal devido a todas as antigas lem-branças, vale a pena. Toda vez que uma menina é sal-va da escravidão, me sinto muito feliz, diz Syna.

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As duas tarefas de Syna1. Cuidar das meninas que são obrigadas a se venderem nos bordéis para sobreviver. Principalmente salvá-las do HIV e da AIDS.2. Salvar crianças que foram raptadas e vendidas como escravas.

ro no fundo da água. Uma vez, uma menina conseguiu serrar a grade de sua janela e pular para fora. Ela foi laçada.

– Eu sonhava o tempo todo em escapar da minha prisão, e depois de um ano, achei que meu sonho se rea-lizaria. A polícia invadiu o bordel e nos levou para a delegacia. Mas não demo-rou muito até que a dona do bordel chegasse e pagasse os

policiais. Ao invés de nos salvar, eles nos levaram de volta para o bordel. Eu gri-tava que havia sido raptada e que queria voltar para o Vietnã, mas ninguém se importava, lembra Syna.

Então, um dia, três anos depois, a polícia invadiu o bordel de novo. Dessa vez foi diferente. Os policiais fi zeram a incursão junto com a AFESIP para salvar as meninas.

– Foi totalmente irreal! Eu não ousava acreditar que estava livre!

”Não são mais escravas!”– Somaly veio até mim, pois percebeu que eu estava com medo. Ela me abraçou, pas-sou a mão pelos meus cabe-los e disse: ”Como está você, minha fi lha? Não tenha medo. Tudo vai se resolver.” Eu não sentia tamanho calor humano há muito tempo.

A mãe de Syna procurou por ela durante mais de três anos. Elas se gostam muito, e aqui Syna ajuda a mãe a cozinhar.

Nunca vou me esquecer, diz Syna.

Ela foi morar no lar para meninas resgatadas de Somaly e fez o curso de corte e costura da AFESIP.

– Depois, Somaly pergun-tou se eu ainda sabia falar vietnamita, pois ela precisa-va de alguém que pudesse conversar com todas as meninas trazidas do Vietnã para o Camboja. Fiquei com medo, mas aceitei imediata-mente! Somaly havia me dado tanto carinho e amor, e até salvou minha vida. Agora eu sentia que teria a chance de devolver um pou-co ajudando outras meninas em difi culdades.

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Syna fez cursos de inglês, psicologia e terapia de gru-po. Acima de tudo, Somaly a ajudou a recuperar sua auto-estima, que estava muito abalada depois do longo período como escrava.

– Lembro que ela falou: ”Não tenha medo, Syna. Agora somos fortes. Não somos mais escravas!” Ela me explicou que eu tinha direitos, que eu deveria ser forte e corajosa. E isso aju-dou!

Salvou 14 meninas– Já faz seis anos que traba-lho como assistente social. Junto com pelo menos mais uma assistente social, eu visito cerca de três bordéis por dia e tento ajudar as meninas a se cuidarem. Grande parte do trabalho é ensiná-las a se protegerem do HIV e da AIDS. Também escuto seus problemas. Sou amiga. Se existe uma coisa de que precisamos quando

somos obrigados a traba-lhar em um bordel, é de amizade. Nada pode ser mais solitário. Elas preci-sam de intimidade e cari-nho, e eu tento lhes oferecer. Toda vez eu digo às meninas que a AFESIP está pronta para ajudá-las a conseguir uma educação e uma vida diferente. Porém, muitas vezes as meninas foram sub-metidas a tantas coisas terrí-veis que perderam totalmen-te a autoconfi ança. Elas têm vergonha e não acreditam que podem fazer outra coi-sa. Elas crêem que suas vidas já estão destruídas. Comigo era a mesma coisa. Antes de a Somaly me aju-dar, eu não acreditava nem mesmo que conseguiria olhar nos olhos de outras pessoas novamente. Como as meninas sabem que eu passei pelas mesmas experi-ências que elas, percebem que realmente é possível construir uma nova vida.

– Entretanto, minha tare-fa mais importante nos bor-déis é identifi car meninas menores de dezoito anos. Meninas que foram vítimas do tráfi co de escravas. Quando eu descubro alguém, nós informamos a polícia, que faz uma busca no bordel e liberta a garota. Então nós cuidamos dela. Eu descobri quatorze meni-nas que haviam sido vítimas do tráfi co de escravas e denunciei isso. Todas ganharam uma nova vida graças à AFESIP. Mesmo que este trabalho me faça mal muitas vezes, por causa de todas as lembranças do passado, vale à pena. Toda vez que alguém é salvo da escravidão, me sinto muito feliz! Entretanto, eu fi caria ainda mais feliz se nenhuma menina no mundo todo tivesse que passar pelas coi-sas que eu passei. Todas nós merecemos coisa melhor.

Mora: Com minha família, em Phnom Penh.Ama: A liberdade.Detesta: Quando os adultos fazem mal às crianças e violam seus direitos.O pior que já lhe aconteceu: Ser escrava e não poder fazer nada contra aquilo.O melhor que já lhe aconteceu: Somaly e a AFESIP terem me dado uma nova vida.Admira: Somaly, é claro! Ela é uma mulher incrivelmente corajosa.

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– Eu procurei por Syna todos os dias durante mais de três anos. Primeiro no Vietnã e depois no Camboja, pois me disseram que muitas meninas vietna-mitas eram raptadas e ven-didas em Phnom Penh. Eu tinha uma foto de Syna e

andava pelas vilas e cida-des batendo nas portas e perguntando se alguém tinha visto minha amada filha. Não posso descrever como fiquei aliviada quando finalmente vi a fotografia dela na delegacia e desco-bri que a AFESIP estava

cuidando dela. Eu senti que a AFESIP podia oferecer uma nova vida a Syna e por isso decidimos ficar aqui em vez de voltar para casa. Agora a família toda mora junto novamente e sou gra-ta por isso! Eu amo Syna e tenho muito orgulho daquilo

que ela faz. Tenho certeza de que sem Somaly e a AFESIP ela teria morrido, diz Ceou, a mãe de Syna.

Quando possível, a AFESIP encoraja as meni-nas a voltarem para suas famílias e terem uma vida normal novamente.

Vida em FamíliaSyna e seu irmão mais novo, Tanga, 12 anos, ajudam a mãe a preparar o jantar.

é comércio de escravosA grande maioria das meni-nas que Somaly ajuda foram vítimas do “tráfico”. Traficar é comercializar seres humanos, e torná-los escravos. Mais de 1,2 milhões de crianças no mundo são vítimas do tráfi-co, o que significa, muitas vezes, ter negado o direito de viver com seus pais, o direito à proteção contra

violência e abuso, o direito de ir à escola e o direito de brincar.

O comércio de meninas escravas ocorre em todo o Sudeste da Ásia. Milhares de meninas do Vietnã são vendidas no Camboja, e meninas do Camboja, Laos, Birmânia e da Malásia são freqüentemente levadas para a Tailândia. Garotas

tailandesas e chinesas entram clandestinamente através das fronteiras de países como o Camboja.

Somaly ajuda a todasPara Somaly, não importa de onde as meninas vêm. Nos três lares do Camboja vivem meninas cambojianas e vietnamitas. A AFESIP cuida para que as meninas

do Vietnã, Tailândia e China possam voltar para casa, quando se sentem prontas. Todavia, isso só ocorre quando se sabe que as meninas terão uma boa vida ao retornarem. A AFESIP também conta com centros no Vietnã, Tailândia e Laos.

– Amo Syna e tenho muito orgulho de seu trabalho, diz a mãe, Chou.

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é comércio de escravos

Apesar de todos os países do mundo, inclusive o

Camboja, terem leis que proí-bem a discriminação contra as meninas, muitas vezes elas são tratadas de forma inferior. Muitas meninas são expostas a abuso, tráfi co e à pior de todas as formas de trabalho infantil – a prostituição em bordéis. Mais de 2 milhões de crianças, em sua maioria meninas, são exploradas no comércio sexual.

É mais fácil manipular e tirar vantagem de crianças que não foram alfabetizadas. 65 milhões de meninas não vão à escola. Das 150 milhões de crianças que abandonam a escola antes da quinta série, 100 milhões são meninas. Dos 875 milhões de adultos no mundo que não sabem ler

e escrever, quase 600 milhões são mulheres.

Em todo o mundo, as mulheres geralmente têm salários inferiores aos dos homens, mesmo desempe-nhando as mesmas funções. Apesar de as mulheres cons-tituírem dois terços da mão-de-obra do mundo, sua renda representa apenas um décimo da renda mundial. Os homens têm mais poder na política e na economia, pois é mais comum serem chefes e líderes.

O fato de as meninas não serem tão bem tratadas quanto os meninos fere Convenção da Criança da ONU, que determina que todos têm o mesmo valor e devem ter as mesmas oportunidades na vida, independente de terem nascido meninos ou meninas.

Meninas têm tratamento pior no mundo todo

Sete assistentes sociais

100 das meninas de Somaly morreram de AIDS

As sete assistentes sociais da AFESIP em Phnom Penh trabalham em sete distritos, visitando bordéis, parques e outros lugares onde meninas obrigadas a se prostituir precisam de ajuda.

– Só no meu distrito, há 65 bordéis. Eu visito cada bordel uma vez por mês, conta Syna.

Os donos de bordéis permitem que Syna e outras assistentes sociais entrem, porque a AFESIP ajuda ”suas” garotas a se mante-rem saudáveis. Sobretudo ajudam essas meninas a se protegerem contra o HIV com a distribuição gratuita de preservativos.

A obrigadas a se venderem no Camboja, estão contaminadas com o HIV.

– Quando as meninas vêm até nós, elas podem visitar nossa clínica. Lá nós explicamos sobre o HIV e a AIDS e informamos que elas podem fazer o teste, se desejarem. Porém, nunca obrigamos ninguém. Se uma garota decide fazer o teste e o mesmo revela que ela está contaminada, fazemos de tudo para que ela possa receber os remédios e o tratamento adequados. Antes de tudo, lhe ofere-cemos apoio, porque é um sofrimento muito gran-de descobrir que se tem uma doença letal. A pes-soa precisa de muito carinho e amor nessa situa-ção. Alguém da AFESIP sempre acompanha as meninas ao hospital, para que elas não se sintam solitárias. Se as meninas forem sozinhas até lá, elas podem ser muito maltratadas. Os médicos e enfermeiros geralmente dizem que as meninas são ”ruins” e ”sujas”.

– Nós cuidamos das meninas até o fi nal. Um de nossos lares para meninas resgatadas foi batizado em homenagem à primeira de nossas meninas que morreu de AIDS. Ela se chamava Tomdy, e eu nunca vou esquecê-la. Desde então, mais de cem de nossas meninas morreram de AIDS, conta Somaly.

Ama a liberdade!– Eu amo a liberdade!

Não existe nada pior do que ser presa e explorada. É por isso que sempre costumo dizer às crianças

para não confi arem em ninguém que não conheçam. Que não se sintam tentados

a seguir alguém que diz que eles podem ter uma vida melhor em outro lugar. Isso pode terminar

muito mal. Eu sei, pois aconteceu comigo, diz Syna.

Syna com a fi lha de uma das meninas de um

bordel.

credita-se que quatro, de cada dez garotas

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