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Possibilidades da Educação Patrimonial em escolas municipais do Rio de Janeiro
ANA GABRIELA SABA DE ALVARENGA1
Resumo
A Educação Patrimonial tem se estabelecido como um campo de conflito (SCIFONI, 2017)
pela preservação e valorização do Patrimônio Cultural no Brasil. O conceito estabelecido pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN entende por “Educação
Patrimonial os processos educativos formais e não formais, construídos de forma coletiva e
dialógica, que tem como foco o patrimônio cultural” (IPHAN, 2014). As possibilidades de
ações de Educação Patrimonial mostram-se múltiplas e abrangentes, podendo ser realizadas em
diversos ambientes, mas vale ressaltar a relevância dessas atividades estarem inseridas no
ambiente escolar, que compreende o lócus da educação formal para todos os brasileiros. Este
trabalho faz parte da pesquisa doutoral em andamento e busca apresentar a possibilidade de
construções de projetos escolares por professores de história em escolas municipais na cidade
do Rio de Janeiro, que tem como temática principal o patrimônio cultural. A observação dessas
experiências (BENJAMIN, 1994) mostra que, mesmo que em alguns casos sem utilizar a
nomenclatura, o trabalho de Educação Patrimonial tem sido desenvolvido nas escolas.
Palavras-chave: Educação Patrimonial; experiência; projetos escolares
A Educação Patrimonial e a patrimonialização dos bens culturais
A concepção do patrimônio como uma herança a ser preservada, um bem particular e
hereditário, existe há muitos séculos. Entretanto, a perspectiva do patrimônio como símbolo
escolhido para representar determinada sociedade, um bem comum e público, está atrelada à
formação do Estado-nação, mais especificamente ao século XIX, tendo como marco
cronológico a formação da Comissão dos Monumentos Históricos em 1837 na França
(DODEBEI, 2015), quando começaram a ser tombados os grandes prédios históricos, o
chamado patrimônio de pedra e cal. Após esse momento ocorreu uma segunda etapa de
1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGMS/UNIRIO), sob a orientação da professora Regina Abreu, na linha de pesquisa: Memória e Patrimônio.
2
valorização do patrimônio, a criação da UNESCO na década de 1940. No final da primeira
metade do século XX o conceito de patrimônio começou a ser ampliado e os intelectuais que o
pensavam tiveram outro foco, mirando a partir de então, os bens que representassem as classes
populares, não mais o pensando como uma exclusividade das elites. Houve ainda, um terceiro
movimento em fins da década de 1980 com o reconhecimento do patrimônio de caráter
imaterial. No Brasil, a Constituição de 1988, já mencionava esta nova dimensão nos processos
de patrimonialização.
A nação pode ser compreendida como a primeira forma moderna de identidade coletiva,
de um povo culturalmente definido, como é tratada por Habermas (2002). Considerando que a
nação, além dos limites físicos estabelecidos em suas fronteiras, identifica a cultura de um povo,
os bens patrimonializados são símbolos culturais da nação. Pensar os elementos que compõe a
cultura de uma nação é uma tarefa densa e complexa, que começa pelas discussões e
ressignificações que antropólogos, historiadores, cientistas sociais, educadores têm dado ao
conceito de cultura. A antropóloga Manoela Carneiro da Cunha (2009) classifica diferenças
entre cultura e “cultura”. A primeira categoria teria um sentido mais globalizado e
homogeneizador, já a “cultura” diz respeito aos costumes das populações tradicionais. Mas
seriam essas categorias estanques e isoladas componentes de um todo? A resposta é não,
entretanto há a necessidade de reflexão sobre a relação entre essas culturas, de discriminação e
marginalização.
Como tratar com equidade a diversidade cultural, numa dimensão decolonial? Os
processos de patrimonialização têm caminhado para quebrar os padrões de exclusão, buscando
dar atenção as diferenças, particularidades das “culturas” dos variados grupos étnicos, mesmo
que minoritários, mas que compõe a sociedade brasileira. O Patrimônio Cultural deve abranger
referenciais da cultura que garantam os direitos culturais das minorias, o que segundo Habermas
(2002) garante uma inclusão com sensibilidade para as diferenças. Nesta mesma perspectiva de
abordagem sobre a importância de garantir o direito à preservação das diferenças dos grupos
minoritários, a antropóloga Regina Abreu (2015) utiliza o termo: patrimonialização das
diferenças, ao analisar os atuais processos de patrimonialização.
A reflexão sobre a garantia da diversidade cultural e seus referentes patrimônios tem
relação íntima com os processos educativos estabelecidos e em desenvolvimento. Educação e
3
cultura caminham juntas na construção da sociedade. A etimologia latina das palavras auxilia
na compreensão desta ideia. A palavra cultura tem origem no cultivo das plantas e educação
significa conduzir para fora, podendo ser ao mundo exterior ou de si mesmo. A educação só é
possível através da relação com o outro, sendo um processo formativo gerador do cultivo do
que se dá na terra que delimita uma sociedade e uma nação. Logo, sendo a educação a maneira
como uma sociedade transmite seus saberes que compõe uma cultura, com uma identidade
própria, ela é fundamental para construção da própria ideia de patrimônio.
A proposta de entendimento do Patrimônio Cultural por meio da educação não é recente,
o anteprojeto para a criação do Iphan, em 1937, já mencionava a importância do caráter
pedagógico para preservação e continuidade do patrimônio. Entretanto as práticas educativas
só começaram a ser discutidas a partir da década de 1970. O termo Educação Patrimonial
começou a ser utilizado em 1983 no Brasil, para dar nome a essas práticas. O Iphan vem
realizando atividades contínuas de discussão e aperfeiçoamento para regulamentar esse trabalho
e entende a Educação Patrimonial como:
processos educativos formais e não formais, construídos de forma coletiva e
dialógica, que têm como foco o patrimônio cultural socialmente apropriado como
recurso para a compreensão sócio histórica das referências culturais, a fim de
colaborar para seu reconhecimento, valorização e preservação. (IPHAN, 2016)
A Educação Patrimonial tem se estabelecido como um campo de conflito
(SCIFONE,2017) pela preservação e valorização do Patrimônio Cultural Brasileiro. Os
processos educativos constroem caminhos de aprendizagem em relação ao patrimônio. Pensar
a educação como um processo traz a dimensão de um trabalho contínuo na perspectiva de gerar
o encontro do cidadão com o Patrimônio Cultural. Através da Educação Patrimonial é possível
realizar leituras do patrimônio, como apontam Regina Abreu e Rodrigo Silva (2016).
Diante da latente relevância e necessidade de reflexão sobre como os patrimônios têm
sido legitimados e percebidos na diversidade cultural, a Educação Patrimonial constitui-se
como um elemento fundamental desta percepção. O tema de pesquisa da tese é a Educação
Patrimonial na cidade do Rio de Janeiro. A partir da conceituação e diretrizes das Educação
Patrimonial, estabelecidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –
IPHAN, busca-se observar algumas ações educativas realizadas em escolas públicas
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municipais. As possibilidades de ações de Educação Patrimonial mostram-se múltiplas e
abrangentes, podendo ser realizadas em diversos ambientes, mas vale ressaltar a relevância
dessas atividades estarem inseridas no ambiente escolar, que compreende o lócus da educação
formal para todos os brasileiros.
O objeto da pesquisa são projetos escolares de professores de história da rede municipal
da cidade do Rio de Janeiro, que abordem o Patrimônio Cultural brasileiro ou as referências
culturais locais na construção da memória social.
De que educação estamos falando...
As transformações sociais, políticas, os avanços tecnológicos e mudanças trazidas pela
globalização geram consequências nos processos educativos. A globalização está inserida na
proposta do neoliberalismo, que tem sido uma nova lente de percepção do mundo, uma nova
razão do mundo (DARDOT; LAVAL, 2016), que tem intervindo profundamente no campo da
educação e nas relações sociais. Nessa perspectiva, por exemplo, os indivíduos possuem
atualmente acesso em um único dia a informações, que em eras passadas demorariam uma vida
para obter. O excesso e acúmulo de informações e a inserção no mundo virtual tem tirado as
pessoas da sua realidade, gerado problemas identitários, de percepção temporal, de
pertencimento, reconhecimento e valorização da própria história e cultura. Algumas questões
só tomam a atenção reflexiva pela falta que causam, como ocorre com a identidade segundo
Zygmunt Bauman (2005). Seguindo a proposição de Bauman, o campo da Educação
Patrimonial pode servir de caminho (ABREU; SILVA, 2016) de lidar com questões latentes
para a Educação Básica. A Educação Patrimonial é aqui compreendida como um subsídio para
atender a demanda de cumprimento de políticas públicas curriculares da educação (NAJJAR;
MOCARZEL; SANTOS, 2019); levando-se em consideração que os Parâmetros Curriculares
Nacionais de História possuem como um de seus objetivos principais “conhecer e valorizar a
pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro”; e um dos temas transversais estabelecidos
para a educação é a “pluralidade cultural”. A escola é o lugar principal da educação formal,
onde são formados os brasileiros. Sendo irrefutável o valor social que a educação possui na
construção cidadã, compreendemos que a educação se dá a partir da relação do ensino-
aprendizagem entre professores e alunos. As atividades educativas em relação ao Patrimônio
5
Cultural Brasileiro, em projetos escolares, têm se mostrado um caminho profícuo para o
desenvolvimento de identidades, construções de memórias, percepções patrimoniais que levam
a valorização e preservação da cultura e história.
Qualquer pesquisa social é permeada por questões delicadas: trata da realidade da qual
somos agentes, o risco de perder a subjetividade pela objetivação e a dificuldade de apenas um
método geral para explorar uma realidade marcada pela especificidade e pela diferenciação
(MINAYO, 2002). É importante falarmos sobre as dificuldades e cuidados de lidar com a
presente pesquisa. Respeitar o lugar de fala e a subjetividade de cada indivíduo é fundamental
para a composição dessa pesquisa.
A comunidade escolar tem um lugar principal, que é a escola. No Brasil, a escola é a única
instituição formal por onde passam todos os brasileiros. O lugar da educação, onde se estabelece
a relação de ensino aprendizagem, onde se formam os cidadãos. Entretanto há que se levar em
consideração algumas marcas dessa instituição, as marcas da reprovação, da violência e em
muitos casos de legitimidade das desigualdades. Como refletiu Foucault em Vigiar e Punir,
uma das instituições de formação dos corpos dóceis. Olhar para projetos escolares
desenvolvidos por professores da própria rede municipal, é um olhar para a subjetividade de
quem escolheu ser agente de mudança dentro do seu universo de alcance, que escolheu lutar a
partir do seu conhecimento contra a realidade estabelecida, o que por si só já compreende uma
construção de memória que os coletiviza, independente das localidades das suas escolas de
origem. Paulo Freire nos ajuda a pensar sobre a humanidade da escola.
A Escola
Escola é
... o lugar que se faz amigos.
Não se trata só de prédios, salas, quadros,
Programas, horários, conceitos...
Escola é sobretudo, gente.
Gente que trabalha, que estuda
Que alegra, se conhece, se estima.
O Diretor é gente,
O coordenador é gente,
O professor é gente,
O aluno é gente,
Cada funcionário é gente.
E a escola será cada vez melhor
Na medida em que cada um se comporte
Como colega, amigo, irmão.
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Nada de “ilha cercada de gente por todos os lados”
Nada de conviver com as pessoas e depois,
Descobrir que não tem amizade a ninguém.
Nada de ser como tijolo que forma a parede, Indiferente, frio, só.
Importante na escola não é só estudar, não é só trabalhar,
É também criar laços de amizade, É criar ambiente de camaradagem,
É conviver, é se “amarrar nela”!
Ora é lógico... Numa escola assim vai ser fácil! Estudar, trabalhar, crescer,
Fazer amigos, educar-se, ser feliz.
É por aqui que podemos começar a melhorar o mundo.
Reflexões sobre Educação Patrimonial...
Atualmente presenciamos uma multiplicação dos processos de patrimonialização, uma
tentativa de reter o passado, criar os lugares de memória, como elucida Pierre Nora estamos
perdendo nossa memória, estamos tentando preservar e reter o passado, sem nada deixar para
trás, estamos procurando pelo tesouro e desconsiderando a experiência.
A Educação Patrimonial não é apenas uma forma de abordagem para reconhecimento de
um bem cultural específico, é a possibilidade de construir caminhos (Abreu, Silva, 2016),
vivenciar experiências na tessitura da história, para a leituras de patrimônios no plural. A
Educação Patrimonial é compreendida como a experiência percebida por Walter Benjamin
(1994). As experiências constroem memórias, que podem colaborar para uma ressignificação
do passado a partir da valorização e preservação da referência cultural com a qual o sujeito se
identifica.
As atividades de Educação Patrimonial dos projetos escolares serão aqui consideradas
como a construção de memórias de um coletivo. Considerando as reflexões de Halbwachs
(2004) sobre a memória coletiva, de que a construção da memória de um indivíduo resulta da
combinação das memórias dos diferentes grupos nos quais está inserido e consequentemente é
influenciado por eles, como a família, a escola, igreja, grupo de amigos ou de trabalho. O
indivíduo participa então, de dois tipos de memória, a individual e a coletiva, sendo que cada
memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva.
Paulo Freire (1994; 2011) deixou um legado de reflexões e algumas delas são muito
relevantes para se pensar a Educação Patrimonial. Como a prática de ações de Educação
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Patrimonial pode não ser simplesmente um depósito sobre o Patrimônio Cultural estabelecido?
Como construir conhecimento e não somente depositar informações enciclopédicas? Como
fazer para que as ações não assumam caráter impositivo, comparado a um ensino bancário e
depositário de informações sobre o indivíduo? O conhecimento não se detém, ele se produz e
reproduz o tempo todo, por isso ele é construído. É sobre este pilar que as ações de Educação
Patrimonial precisam ser construídas e realizadas coletivamente para que um conhecimento
possa nascer do conjunto e assim as pessoas se assumam como seres sociais e históricos, como
seres pensantes, comunicantes, transformadores, criadores, realizadores de sonhos.
Sônia Florência (2014) destaca questões valiosas para a Educação Patrimonial: pensá-la
como campo específico das políticas públicas para o Patrimônio Cultural e concebê-la em sua
dimensão política, que compreende como produtos sociais a memória e o esquecimento de uma
sociedade que, em sua maioria, não se identifica com o Patrimônio Cultural oficial da nação.
Logo a Educação Patrimonial tem o importante papel no processo de valorização e preservação
do patrimônio, a partir das construções de relações efetivas com as comunidades de origem
destes e os bens relativos a elas.
A Educação Patrimonial tem alguns preceitos importantes para a consolidação da sua
prática, como a construção coletiva do conhecimento, o diálogo permanente, a valorização da
diversidade cultural, o fortalecimento das identidades e alteridades no mundo contemporâneo e
ainda como forma de afirmação das formas de ser e estar no mundo. Para que esta afirmação
possa ser realizada as ações educativas da Educação Patrimonial assumem o sentido de ações
mediadoras, no sentido pensado por Vygotsky. (FLORÊNCIO, 2014:29)
Considerando a Educação Patrimonial no âmbito da política do patrimônio cultural, ela
está vinculada ao Estado-nação como uma política pública para a sociedade. Tendo a nação o
significado de uma comunidade política marcada por uma ascendência comum, ao menos por
uma língua, cultura e história em comum (HABERMAS, 2002: 124). Através das ações
educativas da Educação Patrimonial a cultura e história de uma nação, por vezes até mesmo a
língua, podem ser preservadas, valorizadas, criando identidades pela reconstituição de
memórias auxiliando na formação do indivíduo crítico que reconhece seu papel na sociedade
com direitos e deveres.
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O recente ato administrativo, estabelecido em forma de portaria, tem por objetivo regular
o funcionamento da Educação Patrimonial na administração pública e a conduta dos seus
agentes, remete a uma formulação de construção de uma memória coletiva. No dia 29 de abril
de 2016, o Diário Oficial publicou a portaria 137 com as diretrizes para a Educação Patrimonial
no âmbito do Iphan e das Casas do Patrimônio.
Parágrafo único. Os processos educativos deverão primar pelo diálogo permanente
entre os agentes sociais e pela participação efetiva das comunidades.
Art. 3º São diretrizes da Educação Patrimonial: I - Incentivar a participação social na formulação, implementação e execução das
ações educativas, de modo a estimular o protagonismo dos diferentes grupos sociais;
II - Integrar as práticas educativas ao cotidiano, associando os bens culturais aos
espaços de vida das pessoas;
III - valorizar o território como espaço educativo, passível de leituras e interpretações
por meio de múltiplas estratégias educacionais;
IV - Favorecer as relações de afetividade e estima inerentes à valorização e
preservação do patrimônio cultural;
V - Considerar que as práticas educativas e as políticas de preservação estão
inseridas num campo de conflito e negociação entre diferentes segmentos, setores e
grupos sociais;
VI - Considerar a intersetorialidade das ações educativas, de modo a promover articulações das políticas de preservação e valorização do patrimônio cultural com
as de cultura, turismo, meio ambiente, educação, saúde, desenvolvimento urbano e
outras áreas correlatas;
VII - incentivar a associação das políticas de patrimônio cultural às ações de
sustentabilidade local, regional e nacional;
VIII - considerar patrimônio cultural como tema transversal e interdisciplinar.
O parágrafo único, citado acima, aponta para uma para umas das questões mais complexas
para o trabalho da educação patrimonial. Em um mundo globalizado, com o acesso facilitado a
tantas informações e especializações, o trabalho coletivo tem se tornado cada vez mais difícil.
Pensar junto propostas e ações educativas não é tão simples como parece, mas é um caminho
fundamental para que o processo possa ser trilhado.
Os projetos escolares
A pesquisa dos projetos escolares está em andamento. Os projetos escolares pesquisados
estão sendo realizados em escolas da rede municipal da cidade do Rio de Janeiro, uma cidade
com estrutura organizacional bastante complexa e com um emaranhado de políticas públicas,
vulneráveis as mudanças governamentais de cada gestão de governo. Uma rede pública com
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um histórico de falta de recursos suficientes para atendimento das demandas extracurriculares.
A seguir está uma apresentação descritiva dos projetos.
Histórias do Rio
A Ilha do Governador faz parte da cidade do Rio de Janeiro, atualmente possui caminho
aterrado e plena ligação com o continente, mas a identidade insular permanece e está refletida
na população que ali reside e se cria. Uma localidade conhecida por abrigar o aeroporto
internacional da cidade – RioGaleão, um lugar de passagem. Muitos pousam no aeroporto para
conhecer o Rio de Janeiro como a cidade Maravilhosa, que possui roteiro turístico próprio e do
qual a Ilha não faz parte. Entretanto, o lugar que serve de porta de entrada para tantos, torna-se
uma ilha, no sentido de isolamento para muitos outros.
No bairro Jardim Guanabara, um dos 14 em que está dividida a ilha, está localizada a
Escola Municipal Anísio Teixeira. Nessa escola os alunos tinham uma demanda: queriam
passear, sair da Ilha e conhecer o Rio também. Como atender ao pedido dos alunos dentro da
perspectiva de que aulas pudessem ser didaticamente uma prática situada? Diante dessa questão
e como parte do corpo docente da escola, que trabalhava buscando desenvolver o protagonismo
juvenil, o professor de história Diego Knack2 elaborou o projeto escolar Histórias do Rio.
Em que consiste esse projeto? Em primeiro lugar, o projeto é um passeio no centro da
cidade do Rio de Janeiro. O professor seleciona alguns alunos para realizarem a visitação3. A
atividade ocorre no contra turno de aula dos discentes envolvidos e acontecem três edições ao
longo do ano, para que mais pessoas possam participar. Durante a visita ao centro do Rio, o
grupo para em vários locais para explicações do professor, que leva varias imagens antigas,
para aguçar a noção de tempo, construções de memórias dos lugares pelas diversas ocupações
temporais e do conhecimento histórico. Os participantes fotografam e guardam as novas
2 “Diego Knack é doutor em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS/UFRJ). Autor de "Ditadura e Corrupção", publicado em 2018 pelo Arquivo
Nacional em razão do Prêmio Memórias Reveladas. Atua como historiador, professor da educação básica e
consultor para conteúdo audiovisual educativo. Enquanto professor da educação básica, atualmente ministra aulas
de História para o ensino fundamental na rede pública de ensino da cidade do Rio de Janeiro, na Escola Municipal
Anísio Teixeira. Além disso, gerencia projetos de incentivo a leitura e comanda a Sala de Leitura Ilza Xavier de
Faria. Participou de projetos pedagógicos ligados a experiências inovadoras em educação e no ensino de História.”
Texto retirado do currículo lattes em 19/07/2019. Disponível em: http://lattes.cnpq.br/1734865727029782. 3 A seleção de apenas alguns alunos para participarem da visitação se deve a falta de recursos para transporte de
todos os alunos das turmas envolvidas.
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informações. Uma segunda etapa do projeto acontece na escola. Os alunos que fizeram a
visitação fazem uma apresentação do que aprenderam, para os colegas de turma. A escolha do
que apresentar e a imagens utilizadas fazem parte do olhar do aluno.
As fotos que os alunos tiram, posteriormente participam de uma votação para que se possa
eleger as melhores imagens. A votação é feita através das redes sociais e envolve toda a
comunidade escolar. Mas vale ressaltar que não é somente nessa etapa que a comunidade
escolar está envolvida, nas visitações alguns responsáveis dos alunos e outros profissionais da
escola acompanham as atividades.
Segundo Diego a atividade tem alguns elementos fundamentais para os alunos, de quebra
de rotina, o registro da experiência e a devolutiva para a escola com a perspectiva de
despertamento de um protagonismo juvenil. Os alunos vão se apropriando da atividade ao longo
do processo e sugerindo possíveis mudanças, o que enriquece o trabalho.
O projeto Histórias do Rio faz a atividade de visitação ao centro histórico do Rio, permite
o contato e reconhecimento com diversos patrimônios legitimados, constrói memória e
contribui para a valorização e preservação dos mesmos. E principalmente traz a partir da pratica
situada a própria construção da história deles, nossa. Vale ressaltar a importância da experiência
da atividade, através de um exemplo ocorrido; durante a apresentação, para a turma, de uma
foto do painel de grafite Etnia do Kobra, localizada na zona portuária da cidade, o professor fez
uma pergunta: “Grafite é obra de arte?” Um dos alunos respondeu: “Se o governo deixou é
sim.”
Uma questão apareceu na pesquisa: para quem o patrimônio tem sido constituído? Como
reflete o antropólogo José Reginaldo Gonçalves. Ele partiu da questão objetiva, de o que é o
patrimônio; porém percebeu a necessidade de um aprofundamento do trabalho investigativo da
própria pesquisa antropológica, do para quem, pensando no propósito de constituição
patrimonial. Essa transformação do olhar do pesquisador é fundamental por ampliar visão e
alcance da pesquisa. Não se trata de um trabalho educativo de apresentação de uma gama de
bens patrimoniais para que a sociedade o reconheça e identifique, vai além. É preciso um
trabalho educativo mais detalhado, um trabalho arqueológico de escavação das percepções e
construções de memórias a partir do conhecimento histórico. Para além de valorizar um bem
cultural, buscar as relações que o patrimônio estabelece com a sociedade e suas possíveis
11
leituras. O que contribui para os objetivos da disciplina histórica na educação básica, de
posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva nas diferentes situações sociais e
conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro4.
Rolé da Penha
A Escola Municipal Bernardo de Vasconcellos está localiza na comunidade Vila Cruzeiro
no bairro da Penha, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. A Escola há alguns anos atrás
era conhecida pelos altos índices de evasão escolar. Entretanto no início do ano de 2017, um
grupo de professores e funcionários da escola se reuniram e decidiram colocar em prática a
educação que acreditavam ser formadora de cidadãos críticos, que constrói conhecimento e
compreende a escola como lugar de múltiplas afetividades e de pertencimento, locus essencial
da relação de ensino aprendizagem. A comunidade escolar apoiou e a escola passou por uma
reforma física e estrutural, com a elaboração de um projeto pedagógico específico para a escola:
Ser e Pertencer. A partir desse projeto matriz, vários outros projetos foram elaborados nas
diferentes matérias escolares, sendo um desses o Rolé da Penha. Esse projeto tem alcançado
frutos positivos e de construção do conhecimento que vai muito além daquela comunidade
escolar específica, entrando em centros acadêmicos5 e sendo divulgado na grande mídia6, o que
para os alunos da escola tem um valor simbólico de ressignificação da própria existência em
sua comunidade, que passa a ser motivo de orgulho por ser apresentada com uma face distinta
a da violência ou policial.
4 Segundo os objetivos dos PCNs para o ensino fundamental. Acessado em: 19/07/2019. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/pcn_5a8_historia.pdf 5 O projeto Rolé da Penha já foi apresentado, por exemplo, para turmas de graduação em Pedagogia da UFRJ,
projeto de extensão da Faculdade d Arquitetura e Urbanismo da UFRJ, além de participação em outras atividades
acadêmicas. 6 Alunos da Penha contam histórias do bairro para turistas. BALANÇO GERAL RJ 11/05/2018. Acesso em:
19/07/2019. Disponível em: https://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/balanco-geral-rj/videos/alunos-da-penha-contam-historias-do-bairro-para-turistas-11052018; No SBT Rio 23/05/2018. Acesso em: 19/07/2019.
Disponível em: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=1545128572262786&id=323458497763139; No
MultiRio 18/06/2018. Acesso em: 19/07/2019. Disponível em:
https://www.facebook.com/MultiRio/videos/1917436068276607/?hc_ref=ARQ7c7pVJxpWVvE-
B1qz9QKz4Ngh4tOuowxk9NK9FuvKG3WZcf8Dho0YaZDNPw52uJI; No MultiRio, no quadro Dando Ideia de
13/11/2018. Acesso em: 19/07/2019. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=IEq6GsD4W8c&feature=youtu.be; O DIA 02/06/2019. Acesso em:
19/07/2019. Disponível em: https://odia.ig.com.br/colunas/coisas-do-rio/2019/06/5648925-viva-a-penha--viva-a-
festa-da-penha.html
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A criação do Rolé da Penha veio a partir dos desafios encontrados na prática pedagógica
em relação a comunidade escolar atendida. Diante do constrangimento pelas experiências
escolares cotidianas, o professor de história Wander Pinto de Oliveira7 decidiu experimentar o
novo e lutar pela mudança que acreditava ser possível através da educação, mas percebeu que
para isso precisava conhecer os alunos com os quais estava lidando e suas realidades.
E a partir desse novo lugar que o professor iniciara a ocupar, propôs aos alunos a
realização de uma atividade, a elaboração de um mapa onde desenhassem o caminho que
percorriam de casa até a escola. Depois de feitos os mapas, os alunos apresentaram para o
professor seus trajetos até a escola e as histórias de vida que acontecem nas proximidades. O
grupo reunido tentou identificar quais eram as referências culturais das proximidades da escola,
oito locais foram selecionados. Mas perceberam que não conheciam a maioria deles e pediram
ao professor que os levasse a conhecer, o professor disse que os levaria. Os alunos animados
com a ideia disseram que conhecendo e sabendo sobre sua localidade poderiam até ser guias
para outros que quisessem conhecer o bairro e um aluno declarou: “Vamos dar um rolé!” Neste
momento o docente teve um insight: “vamos fazer o Rolé da Penha”!
A partir de então, o professor montou um projeto, levou guias de turismo, especialistas
na história do bairro e outras pessoas dispostas a contribuir na formação do grupo, fizeram
uniforme para as atividades e iniciaram o Rolé da Penha. A proposta é que de 15 em dias 15
dias, normalmente as quartas, os alunos façam o Rolé no contra turno das aulas, o que muitas
vezes é inviabilizado em decorrência da violência do bairro, sendo primordial a segurança da
comunidade escolar. A cada ano novos monitores ingressam ao projeto, alguns saem por
completar os anos escolares e novas capacitações são realizadas e os alunos recebem certificado
pelas atividades.
Conclusão
7 “Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas na
FEBF/UERJ. Especialização em Ensino de História - Curso de Saberes e Práticas da Educação Básica -
CESPEB-UFRJ (2018). Curso de Extensão Favelas Cariocas: Ontem e Hoje - PUC-RJ (2017). Leciona História
desde 2009 para ensino fundamental e médio na rede privada de ensino. É Professor de História da Rede
Municipal do Rio de Janeiro, desde 2016.” Texto retirado do currículo lattes em 19/07/2019. Disponível em:
http://lattes.cnpq.br/470565774400115
13
A observação inicial desse projeto apontam algumas observações preliminares, como a
relevância do desenvolvimento de projetos escolares voltados para o Patrimônio Cultural para
a comunidade escolar; a apropriação dos alunos em relação ao seu bairro, cidade ou
comunidade; uma construção de memórias afetivas e recheado de significados e a
ressignificação do espaço escolar.
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