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Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências Humanas e Filosofia Curso de Graduação em Sociologia EVELYN CHRISTINE DA SILVA MATOS Praça do Skate: Ato subversivo no cenário urbano Niterói 2016

Pra ça do Ska t e: Ato sub versivo no cenári o urbano Ato...Prof. Dr. Nilton Santos ... avaliação do contexto local e da posição e disposição social de cada um são questões

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Universidade Federal Fluminense

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia

Curso de Graduação em Sociologia

EVELYN CHRISTINE DA SILVA MATOS

Praça do Skate:

Ato subversivo no cenário urbano

Niterói 2016

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Universidade Federal Fluminense

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia

Curso de Graduação em Sociologia

EVELYN CHRISTINE DA SILVA MATOS

Praça do Skate:

Ato subversivo no cenário urbano

Monografia apresentada ao Curso de Sociologia

da Universidade Federal Fluminense, como

requisito parcial para a obtenção do título de

Bacharel em Sociologia.

Orientador: Prof. Dr. Jorge La Barre

Niterói 2016

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Universidade Federal Fluminense

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia

Curso de Graduação em Sociologia

EVELYN CHRISTINE DA SILVA MATOS

Praça do Skate: Ato subversivo no cenário urbano

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Jorge de La Barre Universidade Federal Fluminense

Prof. Dr. Nilton Santos Universidade Federal Fluminense

Prof. Dr. Daniel Bitter Universidade Federal Fluminense

Apresentado em: ___________________

Conceito: _____________________

Niterói 2016

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Dedico à ela, que aturou bravamente e

até mesmo se adaptou à essa não­fase;

que foi a percursora inicial da minha

evolução crítica: Mãe.

Ao Bruno, que esteve comigo em todas

as etapas desse projeto; essencial para

meus links de memória e para entender o

que se passava comigo mesma e em meu

entorno;

À todos os colegas de Praça, à quase

todas as coisas boas e ruins que

formularam não só esse trabalho, mas

também parte de quem sou agora;

À espreita de todos os rolés presentes e

futuros, que nunca serão somente

diversão, mas sempre aprendizado.

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RESUMO

Este estudo tem como objetivo a análise comparada dos cenários urbanos da

zona metropolitana carioca a partir de um foco principal, a Praça do Skate de Nova

Iguaçu ­ Baixada Fluminense. Dá­se por meio de uma série de relatos vivenciados

ao longo de quatro a cinco anos, e que exprimem uma rede entre subculturas,

aspectos da estrutura social carioca, e formação identitária individual. Resulta na

leitura dispositiva dos espaços urbanos no tocante centro e periferia, e no retrato da

apropriação de áreas públicas e particulares para a constituição de uma cena punk

Underground. Conclui­se que os espaços subversivos e a cena Underground

carioca admitem signo revolucionário de ordem rebelde, e que, apesar das

periódicas investidas de englobamento, mantêm­se às margens do socialmente

adequado.

Palavras­chave: Praça do Skate, Nova Iguaçu, subcultura, subversão, movimento punk.

ABSTRACT

This study aims at a comparative analysis of urban settings in Rio de Janeiro’s

metropolitan area from a main focus on Praça do Skate, in the city of Nova Iguaçu

(Baixada Fluminense). It consists in a series of accounts experienced over the last

four to five years, that express a network between subcultures, aspects of Rio’s

social structure, and individual identity formation. It results in an argumentation over

urban spaces in terms of center and periphery, and the portrait of an appropriation of

public and private areas for the establishment of an Underground punk scene. We

conclude that the subversive spaces and Rio’s Underground scene allow for the

revolutionary sign of a rebel kind, and that despite the periodic onslaughts of

aggregation, these spaces remain at the fringes of the socially appropriate.

Keywords: Praça do Skate, Nova Iguaçu, subculture, subversion, punk movement.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

1 A PRAÇA DO SKATE COMO ÓTICA INICIAL 1.1 Da distância percorrida

Tomando conhecimento de outros espaços 1.2 Disposição e ordem

Diversidade e procedência Das preposições antes de efetivar­me na Praça

1.3 Do compartilhamento de experiências 1.4 Nem toda experiência é construtiva 1.5 Violência e apatia 1.6 Ritos corrosivos 1.7 Skate como elo fundamental

Sentimentos e memórias Em cima do skate Tombo direto para o futuro

1.8 Álcool e outras peripécias 1.9 Revolução musical

Fases iniciais para a descoberta do meu próprio estilo 1.10 Treta e outras instituições subversivas

O bar Subúrbio Alternativo, Brás de Pina (subúrbio do Rio de Janeiro) Comparações imediatas De volta à Praça do Skate

2 DA PRAÇA DO SKATE PARA FORA 2.1 A construção dos espaços

Bar do Garage, Rua Ceará, Centro RJ 2.2 A subcultura como motor de sentido 2.3 Algumas vias da articulação contracultural

O Movimento Roque Pense A União Headbanger

2.4 A caminho do fim CONCLUSÃO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANEXOS

Imagem 1 Foto Anexo 2 Imagem Anexo 3 PUNK ROCK DO SUBÚRBIO ­ Banda PÉ SUJUS Anexo 4: Print UH Anexo 5 Experiência do dia 31 de dezembro de 2014 Anexo 6: Disposição geográfica do Bar Subúrbio Alternativo Anexo 7: Disposição geográfica da Praça do Skate de Nova Iguaçu

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“Todas as vezes que se pretende explicar uma coisa humana (...) é preciso começar por remontar até sua forma mais simples, procurar descobrir os caráteres pelos quais ela se define nesse período de sua existência, para depois ver como se desenvolveu e se complicou [...]”. Émile Durkheim, As formas elementares da vida religiosa, 1912.

INTRODUÇÃO

Se nós pudéssemos voltar no tempo, o que seria de nós, no amplo sentido de

ser ? Em um tempo crucial onde todas as experimentações são ludicamente muito

sérias, a ponto de moldar caráter e os formatos da razão, quem se permitiria à sorte

da subversão? Subverter significa emergir e, ao mesmo tempo, destruir, destituir.

Emergir das profundidades da mansa aceitação, destruir preceitos; destituir

domínios sobre o sujeito.

Quando Hebdige (1979) evoca subcultura , ele suscita a desafiadora tarefa de

se estabelecer uma nova ordem organizativa, uma estrutura de ideias. Quando

surge uma subcultura, ela vem acompanhada de uma histeria causada pelo “medo e

a fascinação, entre o escândalo e o entretenimento.” (op. cit., p.128).

Em seguida, teremos a árdua missão de conectar os espaços através da

oposição centro/periferia. Trata­se, pois dos tipos de relações concretas ­ laborais,

de acesso à informação, cultura e lazer, bem como a qualidade dos serviços de

base –, que demandam investimento e fiscalização governamental.

Mas só essas não bastam. Nossa compreensão precisa dos aspectos

simbólicos, que até seriam abstratos se não fosse por nossa capacidade

interpretativa. A estrutura social carioca, este balão invisível de ideais que rege a

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vida de todo mundo nessa sociedade, pode ser compreendida pela ótica marxista

como uma eterna luta de classes . E as classes estão presentes na cidade de forma

marcante.

Os preceitos que movem a cidade ­ o dinheiro, o tempo e o senso do uso

objetivo das coisas e pessoas indistinguivelmente ­ somados a um organismo

sistêmico de massas esquematizado entre quem serve e quem é servido; a

avaliação do contexto local e da posição e disposição social de cada um são

questões fundamentais para o exercício que se segue.

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“(...) Encostados nos carros ou de pé. Muitos sentam­se ao longo do pequeno muro da praça e outros se agacham diante deles ao risco de serem empurrados pelas costas a qualquer momento por pura brincadeira. Quando ao sair da Senador Dantas chego à entrada do metrô, já diviso as botas e os cabelos arrepiados, uma gestuação e um movimento ostensivos.” (CAIAFA, 1985, p. 32).

1 A PRAÇA DO SKATE COMO ÓTICA INICIAL

A Praça do Skate, localizada nas proximidades do centro da cidade de Nova

Iguaçu, na Baixada Fluminense, foi escolhida para ilustrar a relação entre os

espaços urbanos através da carga de sentidos adquiridos durante a vivência. Nossa

questão se baseia nos formatos peculiares que os relatos de experiência vivida

podem transmitir, respondendo pela identidade e conjuntura sociais nas subculturas

e demais cenários da interação presentes na cidade.

Dessa maneira, os relatos de experiência, que também são confissões,

corroboram a construção de uma lógica de pensamento capaz de estruturar as

maneiras de ser que os indivíduos eventualmente atraem para si. Isto porque se

trata do que enche­lhes a vida de sentido, ou a vida na Praça.

Interessam também as relações que serão formadas com outros espaços, à

medida que interagem, que vão sendo convidados ou seduzidos para outras áreas

do espaço urbano. A descrição da maneira como essas áreas ou cenários serão

percorridos traduz características marcantes para uma evolução (e revolução)

pessoal. O que segue é um relato de juízo íntimo ou contraste ocasional com as

significações implícitas e explícitas da razão de grupo, ou para efeitos de

ordenamento ambiental e social.

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1.1 Da distância percorrida

A Praça do Skate está localizada a dez minutos de distância da Estação

Ferroviária de Nova Iguaçu (Baixada Fluminense); cinco minutos da Estação

Rodoviária; e quinze minutos de distância do Top Shopping. Isso significa que a

Praça está alocada numa área que privilegia o encontro de gente de várias partes

do município e adjacências.

Ao mesmo tempo, frequentar a Praça pode ser complicado por conta da

distância de casa e da dificuldade de conseguir um ônibus com o passar de certo

horário. Para alguns bairros do município vizinho de Belford Roxo como Heliópolis,

Areia Branca, Barro Vermelho, já acompanhei muita gente numa caminhada de

vinte minutos ­ que acabava por se tornar meia hora ou mais, por conta das

brincadeiras ou dificuldades mesmo de caminhar de cansaço ou bebedeira.

Para chegar ao bairro que eu morava naquele tempo, Parque das Palmeiras,

em Nova Iguaçu mesmo, tardava normalmente de quarenta e cinco minutos até uma

hora dentro do transporte coletivo; isso adicionado ao tempo de espera, que era de

mais de meia hora por conta de haver somente uma linha que fizesse o percurso.

Para outros bairros como Palhada, Jardim Roma, Jardim Tropical, Nova Era, que

ficavam na mesma direção, a dificuldade era parecida.

Em compensação e por outro lado, os esforços medidos para frequentar a

Praça já remetem ao significado que ela passou a ter para todos nós. Quer dizer,

sabíamos que seria difícil voltar para casa, a maioria de nós tinha pai, mãe ou avó

esperando: frequentemente ouvíamos de um e de outro que teria que ir embora

mais cedo hoje (sexta­feira em questão) porque a mãe/pai/tio havia trancado o

portão e o feito “dormir na rua” na semana anterior .

Na Praça do Skate, grande parte das pessoas se esvaem às dez horas da

noite. Isto é, pouco antes da hora em que os ônibus municipais reduzem a frota.

Assim, mesmo as pessoas que moram mais distantes na cidade chegarão por volta

das onze. Para outros, e muitas vezes para mim também, o percurso de volta para

casa era feito a pé. Então, às 21h30, tentávamos reunir o pessoal que voltaria junto,

porque todos tardávamos muito nos despedindo.

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Inclusive, esta é outra tipicidade da Praça: todo mundo sempre tinha uma

coisa muito urgente para falar, e geralmente esses assuntos só apareciam no

momento da despedida. Tinha dias que o ambiente da Praça estava sem graça ,

quer dizer, o não estava agitado, ninguém tinha muito o que acrescentar nos

grupos. E, quando acontecia, era de forma generalizada. Então, alguns amigos da

Praça brincavam dizendo que iam começar a fingir que vão embora, para que algo

acontecesse.

Eu conheci muitas pessoas de Heliópolis, bairro no limite de Belford Roxo

com Nova Iguaçu. Eles formaram previamente seu grupo de amigos, advindos antes

da Praça de Heliópolis, que também tinha uma rampa de skate. Assim como a

Praça do Skate, a Praça de Heliópolis formava um aglomerado de alternativos que

se destacava. Tratava­se de um point no centro mais urbanizado dos arredores, isto

é, onde tinham lojas e lanchonetes. Estive lá umas duas quintas­feiras e, de fato, se

assemelha um pouco ao ambiente da Praça do Skate. Algumas pessoas que

compunham esse espaço em Heliópolis combinavam de irem juntas, geralmente

caminhando, até a àquela outra Praça em Nova Iguaçu.

Na direção contrária a Heliópolis, que era para onde eu deveria ir, variava de

acordo com nossa capacidade física para andar. Porque, passado algum tempo, já

não íamos direto para casa, mas ficávamos parando para descansar de vinte em

vinte minutos. Houveram dias em que eu cheguei em casa às três da manhã por

preguiça e exaustão mental.

Em contrapartida, quem não tem limitações no horário depois da Praça se

encaminha para o Bar do Ananias, que fica de dez a quinze minutos de distância da

Praça, depois da Estação Ferroviária, onde às vezes tem shows. E se não tiver

nenhuma apresentação, a jukebox está lá à disposição dos que tiverem moedas e

paciência de esperar sua música tocar.

A jukebox do Bar do Ananias é alterada, isto é, não tem somente as músicas

básicas que já vem nas jukeboxes comuns. Nela estão catalogadas raridades, os

discos antigos e o rock e Metal mais sombrio. Discografias completas dos grandes

nomes do Underground internacional, CDs das bandas da cena carioca e paulista.

Inclusive, está salvo o disco único do grupo punk iguaçuano: Genômades.

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Tomando conhecimento de outros espaços

Também, após o horário de maior movimentação na Praça, uns grupos

manifestavam­se publicamente e de forma convidativa, que estariam dirigindo­se ou

ao Garage, na Rua Ceará (que mais a posteriori falaremos sobre), ou à Lapa, no

centro do Rio de Janeiro. Nesse tempo eu ainda não tinha ido tão longe na noite, só

conhecia esses espaços de nome, sabia que existiam.

Era também na Praça que tomávamos conhecimento de muitos eventos que

aconteceriam tanto nas redondezas como nas áreas mais afastadas: começando

pelo Studio B, no bairro da Posse, o espaço que acontecia em Mesquita (município

adjacente) aos domingos, eventos na Lira de Ouro ou Recreativo Caxiense, em

Duque de Caxias, a Planet Music em Cascadura, que trazia grandes nomes e bons

eventos para a cena Underground , a boate/bar HeavyDuty, que assim como o Bar

do Garage, se localiza na famosa Rua Ceará.

Um outro point , este mais ao interior, levava muitos bêbados à Rua do

Chuchu, em Austin. Na Praça do Skate, muitas pessoas vinham da direção dos

bairros Comendador Soares, Cacuia, Austin e Queimados, e eram principalmente

esses que se dirigiam para lá.

Todas essas opções de rumo, fui conhecendo ao longo do tempo e não de

uma só vez, como era de costume entre meus colegas. Aquela foi uma fase de

maior inconsequência que agora, mas até hoje ainda me arrisco. Estamos passíveis

dos reflexos da decisão errada e cada qual sofre à sua medida.

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1.2 Disposição e ordem

“La estructura interna de toda subcultura se caracteriza por un orden extremo: cada parte se relaciona orgánicamente con el resto y su correspondencia sirve al miembro de la subcultura para interpretar el mundo.”

(HEBDIGE, 1989, p. 138).

Metade do tempo em que eu estive na Praça existia uma figura de

“organizador”, para quem os conflitos eram levados. Era identificado com o

codinome “Aranha”, e se aproveitava da regalia de ser visto pelos adolescentes

como figura de autoridade, recebendo e se apropriando de muitos artigos,

principalmente álcool e cigarros. Algumas vezes ele brincava que era um pedágio,

porque geralmente sentava nos bancos próximos ao portão de trás da Praça, que

dava acesso à Bowl . E ele contava antes com um gigante de codinome “Soldado”, 1

que dizia ser o seu braço , mas logo se formou uma tropa que o seguia, composta

por adolescentes grandes e inseguros que se acreditavam influentes sobre outros

grupos ali presentes, e dos quais Aranha tinha pouca entrada.

Eu me recordo claramente dele, quase como uma sequência de fotos,

sentado de pernas cruzadas e meio de lado, um pouco à esquerda do centro do

banco, usando muitas correntes no pescoço e nos braços, apoiado em um cajado

com uma caveira Metalica na ponta e usando um chapéu. Com sua cara de nojo

olhava as movimentações e escutava aquele monte de gente vestida de preto. Às

vezes ao lado, às vezes nas proximidades sempre bebendo muito (a bebida dos

outros, obviamente).

Eu, já naquela época, achava aquilo tudo muito cômico. A maioria se parecia

de um esforço enorme para afigurar­se em um algo mais , inclusive eu. Todos

estávamos ali vivendo sob o vigiar algoz de todos os outros, fiscalizando a

“poseragem”. Mas esse tipo de verificação não estava a cabo do tal Aranha, era

1 Trata­se da bacia onde as manobras de skate são desenvolvidas como dentro de uma piscina ou como uma cuia gigante. Nas bordas da bowl , além da prática do skate, as pessoas se sentam. No canto dela, encostados na parede, fica uma galera que está sempre fumando maconha. Dali se twm passagem por trás das quadras para chegar ao lado oposto, ao lado da entrada. Na frente desse pessoal e atravessando a bowl existe um gramado onde tanto os skatistas se aglomeram quanto se cria uma roda gigante onde conversam e tocam violão, se cantam músicas do alternativo popular (pop rock e alternativo, do grunge e de um “pop punk”).

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algo mais das massas. Era uma forma de segregar para se autoafirmar. Porque

você é muito mais true se combate os posers . Era preferível aparentar força e 2 3

influência; era preciso que todos te conhecessem e alguns ali do meu meio se

importavam muito com sua reputação no próprio lugar.

Recentemente escutei as memórias de um amigo próximo de que eram os

punks que instauravam certas regras, ou que policiavam. O grupo exato que agia

em zelo das “normas” eu não lembro, mas eu recordo bem dos mandamentos da

Praça: não podia quebrar garrafas na bowl nem na outra área de skate ou gramado;

não podia danificar o patrimônio da Praça (árvores, postes de iluminação, grades e

mesas); não podia bater em mulher e nem se aproveitar das bêbadas; briga de gays

e travestis só poderia ser com outros gays e travestis; havia quem gestionassem

acerca dos bêbados problemáticos (aqueles que ficavam agressivos e insultando

aleatoriamente), que eram geralmente “desligados” , a não ser que tivesse algum 4

amigo que o levasse embora. E também não podia roubar, a não ser que fosse o

próprio grupo de zelo da Praça que indevidamente se apropriava de certas coisas

de pessoas específicas segundo seu julgamento. 5

Diversidade e procedência

Na Praça se reúne gente com gostos diversos, que vão interagindo com as

pessoas que já estão ali, se inserindo nos grupos por afinidade ou formando o

próprio grupo. Pessoas também chegam aos pares, um apoiando o outro. Ou então

aparecem como grupos, por exemplo, pessoas que se conheceram na escola e têm

ou não têm gostos similares na música, no esporte, em qualquer forma de lazer e

relacionamento afetuoso.

É comum que estudantes saídos da escola (tanto por burlar aula como após

horário normal da saída) se encontrem nesse espaço ao ar livre, que tem sombra e

lugar para sentar, jogar, livres para falarem alto, com poucas restrições. Inclusive

nota­se uniforme de escolas não só dos arredores como de longe, sendo eles

2 Verdadeiro, se diz do que leva como estilo de vida. 3 Se diz dos falsos, aquele que se monta somente para se inserir nos grupos, propriamente

para tirar fotos, mas que não gosta da música e nem leva o estilo para a vida. 4 Usavam um golpe chamado “mata­leão”, que consiste em interromper o fluxo de oxigênio

no cérebro , causando um desmaio. 5 Apropriações indevidas retomadas no relatório da Treta Punk.

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estudantes que vinham de ônibus e que, caso fossem da Rede Pública de Ensino,

contariam ainda com a facilidade de não pagarem passagem. Pode ser que

pratiquem algum esporte, que com o contato com a Praça (e pessoas que já

frequentam aquele local) aprendam a andar de skate, que se reúnam para jogarem

bola nas quadras, etc. E até mesmo se encontrem ali para conversar, namorar ou

discutir algum trabalho escolar.

Talvez seja assim mesmo que a Praça esteja ciclicamente alimentada. Uns

deixam de ir lá pelos vários motivos da vida adulta, das responsabilidades que às

vezes a Praça mesmo ensina ­ digo isso no sentido de comunicar­se e abrir­se aos

conselhos e colocações alheios, recorrente da ação na Praça. Assim como eles se

vão, outros se achegam. E fazem isso por ver aquela movimentação, ou então pela

introdução feita por outras pessoas. Gente que vai de dia, que se reúne com

colegas em qualquer dia da semana pode acabar conversando com quem está

sempre na Praça e serem indicadas do espaço que ocorre na sexta­feira à noite.

Das preposições antes de efetivar­me na Praça

Particularmente, notei a Praça quando tinha treze anos. Já tinha percebido

que se tratava de gente diferente e certo dia, enquanto passávamos meu pai e eu,

ele, que trabalha ali próximo, percebeu que eu olhava muito e me alertou que ali

acontecia muitos assaltos e que era muito perigoso. Mas eu não sabia do que se

tratava aquele local, não tinha ideia que se reuniam à noite nem mesmo que haviam

tantos skatistas; só percebia que era muito diferente do que eu conhecia da cidade.

No ano seguinte minha prima, que estudava na mesma escola que eu, me

chamou para ir com ela encontrar o namorado depois da aula. Andamos muito,

desde quase o outro lado da parte central da cidade, eu não aguentava mais

quando enfim chegamos. Primeira vez que eu realmente pisava naquele lugar. Não

ficamos nem meia hora, o namorado esquisito não deu bola para ela, estava

jogando baralho com um outro cara mais esquisito ainda. Era por volta de meio dia

e meia. Eu pensei o porquê de um cara daquela idade (aparentava uns 28 a 30

anos) estar no meio do dia sem fazer nada, no centro de Nova Iguaçu, de chinelo

surrado e bermuda de tactel e cara de maluco. Estranhei também que minha prima 6

6 Tipo de tecido fino, de baixa qualidade.

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tenha se referido a ele como “namorado”, ele naquela idade; não reparei nos olhos

vermelhíssimos, apesar dela ter comentado enquanto saíamos, eu não entendi

nada. Dias depois ela me falou que a mãe dele gostava dela, chamava ela de nora e

dizendo que ele tinha diminuído o uso da maconha por causa dela.

Eu não tinha entendido nada da história da relação da minha prima, mas

levanta questões sobre a forma com que eu fui apresentada à Praça. Primeiro que

era perigoso, que eu não deveria ir; segundo, que havia gente que não fazia nada,

que só ficava lá o dia inteiro; terceiro, o maconheiro. E junto com isso, todas as

indagações que ficavam na minha cabeça. Eu passei a reparar mais no local, meu

ônibus passava em frente quando voltava para casa, eu passava aqueles seis

segundos em que o ônibus descia o viaduto e fazia a curva encarando o tal lugar.

Eu passei a planejar o lado do ônibus que eu ia sentar.

Fiquei nesse “chove não molha” durante muito tempo até passar a levar

minha melhor amiga no ponto do ônibus dela, que era mais próximo à Praça do

Skate. Em diante, passamos esperar justamente no ponto de costas para a Praça.

Ela e eu reparamos que naquele horário de meio­dia e meia ficavam muitos

estudantes e adolescentes aleatórios. Então nos sentamos nos bancos para

conversar e passamos a ficar ali mesmo. E quando íamos para o Top Shopping,

passávamos por ali para dar uma conferida. Minha amiga ficou sabendo que

conhecidos da internet iam ali de vez em quando, passamos ir vez ou outra, muito

timidamente.

Atividade maior eu tive na faixa dos quinze aos dezoito anos. Meu dia era

cheio, com intervalos que permitiam vagar pela cidade. Saía de casa para a escola

às 06h. Na escola das 07h até 12h. Das 12 às 14h eu não fazia nada, às vezes

almoçava com meu pai, mas geralmente fazia um lanche. Das 14h20 às 16h30 eu

estava no curso de idiomas. Dali, até as 19h30 eu não teria o que fazer, mas

também não poderia ir para casa pois não daria tempo de chegar ao pré­vestibular à

noite. Na escola, muitas vezes saía mais cedo: mais tempo à toa no centro de Nova

Iguaçu.

Nessa época eu andei muito, fiquei muito à toa. Andava que nem uma louca.

Passei a refletir sobre a vida, as coisas, reparar nas gentes… E comecei a achar

que eu vivia na rua, passei a falar para as pessoas que eu ia para casa só para

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dormir. Nessa idade a gente não regula bem com quem fala, mas eu aprendi a

discernir e confiar na minha intuição e sensação sobre as coisas, lugares e pessoas.

E aí, quando eu cansava de andar e quando me irritava todo o barulho, a agitação e

a fumaça, eu atravessava o viaduto e sentava na Praça.

Tinha também a Casa de Cultura Sylvio Monteiro, de frente com a estação

ferroviária, onde eu passava o tempo entre exposições; se houvesse sorte assistia a

alguma mostra de filmes independentes ou ensaios teatrais. Ou voltava para a

escola, ou chegava mais cedo nos cursos; às vezes conversava com as pessoas.

Senti uma conexão com a cidade que era como se eu fosse tudo aquilo, que eu

fizesse parte e sentia como se tudo ali me pertencesse. Ao mesmo tempo, fui

ficando mais calada e observadora. Por vezes creio que eu tenha sido bastante

introspectiva, mas haviam explosões em que eu desatava em interações.

Esse era o sentimento enquanto passei a lidar com a liberdade de não

justificar o meu tempo, de quando pude chegar em casa na hora que fosse, o que

permitiu estar na Praça até a hora que ela se põe. Esse tempo eu não passava

inteiramente ali, mas fazia sondas, percebi rotinas.

Percebi os dias que tinha encontro de skatistas, às quintas­feiras à tarde.

Inclusive fui convidada para o churrasco que eles promoviam nesse dia, só pela

presença mesmo. E quando você vai em um, gente que está ali vão te chamando

para outros. As pessoas começam a conversar contigo porque você está ali, te

convidam a participar. Foram os skatistas que avisaram das noites da sexta, do

movimentado que era. Ao tomarem conhecimento das minhas preferências musicais

, reafirmaram que seria do meu gosto, que eu deveria conhecer. 7

Então, essa Praça é dos skatistas, sobretudo. Mas também da equipe de

voleibol que treinava quase todos os dias, dos vagabundos, dos estudantes, dos

adultos que se reuniam para jogar bola, e isso até então . 8

7 Relatado no item Revolução musical. 8 A Praça do Skate passou por uma revitalização que antecede minha participação naquele

lugar. A revitalização é gerada também da reocupação do espaço, amplificado por meio do Orkontro (encontro das pessoas que se conheceram pela rede social Orkut), que antes acontecia na Praça Santos Dumon, ao lado do Parque de Diversões, também em Nova Iguaçu. O tipo de sociabilidade que hoje a Praça do Skate conta já existia nessa outra há muitos anos.

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1.3 Do compartilhamento de experiências

Cada um tinha da Praça aquilo que foi ali procurar. Havia, para alguns, um

código de sigilo. Inclusive em algumas vezes escutei, e até mesmo proferi, que “o

que acontece na Praça, fica na Praça”. Penso que seria um pouco como Las Vegas,

o sentido que os filmes passam sobre Las Vegas: faríamos as besteiras que

tivermos que fazer para nos sentir vivos; nos comunicaríamos com poucas

descrições (abandonando a timidez que em qualquer outra parte da cidade

provavelmente assumiríamos) e depois, iríamos embora sem levar nada além de

histórias e umas ressacas bravas.

Mas na Praça surgiram amores, filhos e amadurecimentos; surgiram também,

para alguns, alguns tipos de libertação, como aconteciam com muitos homossexuais

ou simpatizantes que se assumiram para a sociedade e para si mesmos.

Discutíamos com frequência temas profundos, sobre a vida, o universo, as

dificuldades em casa. Então, proporcionou sim um apoio de desconhecidos que

passaram a se conhecer, e amadurecimentos que a gente passou a ter. Também a

libertação da idade, onde os velhos desembestaram a serem de novo

“malucos­beleza” , lidando com os mais jovens e aspirando deles um pouco da 9

loucura e inconsequência ao mesmo tempo que conversavam com eles e os faziam

pensar em assumir responsabilidades em casa e na própria vida, de perceberem

melhor suas escolhas.

Tínhamos algumas “tias” que faziam isso. Algumas passaram a ir a certos

rolés e voltaram aos shows e eventos comuns da sua juventude; outras disseram

que nunca deixaram de ir, mas passamos a interagir melhor com elas (e a

repará­las) nesses espaços alheios à Praça.

Algumas tias da Praça, a gente nunca esquece. A gente pode não lembrar o

nome, às vezes nem saber o nome, mas chamar de tia, outros chamar pelo nome,

chamar de amiga… Tem uma em específico que é saudosa em minha memória

agora mesmo que eu não recordo mesmo o apelido; mas ela foi fundamental para

eu me ver no futuro, um ícone, um exemplo. Na Praça, a vimos passar por divórcio,

9 Referência à música de Raul Seixas, e ele como personalidade icônica, “Maluco­beleza”.

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por câncer, por diversos problemas na família, e ela vinha e contava para a gente, e

a gente comentava e era solidário a ela. Em troca, tínhamos dela o zelo e o carinho

de amigos e filhos.

Ela aparentava ter cinquenta anos, bem jovial, mas sabíamos que ela era

mais velha que isso. Usava muitos brincos, piercings e tinha um estilo que beirava o

gótico. Tinha algumas tatuagens bem antigas e falava das bandas, curtia os shows

até tarde da noite, ia para os rolés de ônibus mesmo, junto com um monte de

gente… Era incrível. Às vezes a vejo quando passo nas proximidades da Praça, ou

em alguns lugares do centro. Nos falamos; ela não lembra meu nome e nem eu o

dela. Mas creio que ambas nos recordamos, nós nos cumprimentamos,

perguntamos umas coisas e outras, e de quando vamos aparecer de novo na Praça

e nos despedimos.

1.4 Nem toda experiência é construtiva

Como eu disse, cada um tinha da Praça aquilo que foi ali procurar. O lugar

era muito misto e certos tipos de experiências nem sempre eram das melhores.

Como quando umas conhecidas da escola me abordaram, quase felizes em me ver

quando antes pouco nos falamos, na praça, local que eu já frequentava

assiduamente e nunca as havia visto lá, para perguntar se eu sabia quem vendia

drogas (abertamente disseram da maconha, da cocaína, ecstasy e LSD). Fiquei

profundamente ofendida, dei as costas e fui embora. Outra hora, uma amiga

próxima que conheci na escola perguntou se eu sabia quem tinha maconha e se eu

sabia “apertar”. Só respondi que não. E isso tínhamos eu quinze, ela dezesseis para

dezessete anos.

Não querendo ser moralista, mas percebendo a gravidade que era tais

práticas para gente tão nova: ali muitos de nós iam mesmo para beber e para fumar

em paz. Para transgredir ao mesmo tempo longe e tão na cara dos nossos

responsáveis, para rebelar e sentir ódio.. É nisso que há quem diga “eramos todos

uns emos ”. 10

10 Emo é um estilo dentro do Rock ou do Metal, que tende para o estilo musical melódico ou screamo* . Tem um visual próprio que as vezes é tristemente confundido com o gótico e se exprime de forma que aparenta estar quase todo o tempo ansioso e depressivo. Já screamo é um estilo musical

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1.5 Violência e apatia

A Praça também foi palco de muito desentendimento. Gente que levava

problemas de outros lugares e acabava discutindo ali, gente que propriamente

marcava de “resolver”, gente que bebia e ficava esquisito, e outros, creio que nisto

há maior gravidade, que iam para lá com o intuito de arrumar a confusão.

Isso porque o que se espera de uma praça é que seja um ambiente não

propriamente harmônico, mas ao menos simpático. Ou seja, as pessoas que se

dispõem a frequentar um espaço no específico dia em que se ambienta desta

maneira afetiva, interativa, descontraída. A conduta antipática de grupos que vão ao

local buscando atrito não favorece a proposta que a Praça está envolta, podendo

inclusive acabar com as relações dali.

E de fato isso aconteceu. E aconteceu muitas vezes. Pessoas passaram a

evitar a Praça durante um tempo por conta desses grupos terroristas , por assim

dizer, já que não podiam ali ter a paz e a extroversão como de antes. Gangues ou

pessoas que produzem o ódio e a violência quebram o ciclo extrovertido que a

Praça está acostumada; interrompe toda uma sociabilidade.

1.6 Ritos corrosivos

Nos três anos que frequentei assiduamente a Praça, também passei por

momentos, eu e meu grupo, de afastamento da Praça por conta de um problema

que afetada toda a atmosfera do local. Teve uma época que a onda era mexer com

energias, com magia. O goticismo e pseudo­goticismo ganharam adeptos em peso

na Praça. Magos, bruxas, feiticeiras “surgiram”; quer dizer, muita gente interessada

começou a estudar, se filiou a algum mestre . E logo se criaram clãs e outros grupos

que se uniam e rivalizavam de acordo com um tal jogo mágico. Então era divertido,

tudo tinha muito sentido, todos eram muito sensíveis. Parecia muito real, mas

também como um jogo, uma brincadeira. Depois ficou estranho, ficou ruim; tudo era

muito pesado, percebemos que não sabíamos com o que e quem estávamos

cuja música é nervosa e forte, quase raivosa, com vocal que se altera entre melódico e berrante (gritos). Screamo também tem um visual próprio.

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lidando. Agora eu noto que era pra mim essa brincadeira, mas na época era muito

real. Daí eu me afastei e fiquei sabendo que muitos se afastaram.

A Praça era o espaço mor onde esses tipos de interação aconteciam.

Existiam os Lycans, Malkavians e um outro tipo de vampiro rebelde que não admitia

grandes clãs e se associava com quem convivesse em cada situação.

Antes desses três, haviam já os Wiccanos, mas não se fechavam em um

grupo exclusivo, diferente daqueles. Wiccas eram surgidos, segundo alguns adeptos

com quem mantive contato, do olhar naturalista e do preceito do coexistir

harmoniosamente. Destes, nunca vi um deles se dispondo a ensinar a alguém, com

a comum justificativa do “não sou capaz” ou do “não me habilito”.

Os outros eram de um espírito mais rebelde mesmo, um pouco da adrenalina

e de conquistar o poder, ser perigoso. Nessa época, essa era uma palavra bem

recorrente: poder, e administrar potências . Vejo esse período como de uma

sociabilidade esdrúxula, causada pela minha mágoa pessoal.

Esse foi um período marcante para a Praça. Surgiam brigas ao aleatório com

um tal motivo de roubo de energias e alguns boatos de morte. É do meu saber que

o grupo dos Lycans, formado majoritariamente por rapazes e liderado por homens,

subia a Serra do Vulcão de Nova Iguaçu, para prática e treinamentos rituais e de

resistência.

O outro grupo, onde estavam aliciadas muitas meninas, provavelmente

seduzidas pelo estilo e pela constante promessa de que eram especiais e que

tinham muita energia vital . Tive muitas conhecidas aliciadas por esses degenerados,

elas geralmente muito novas e eles, uns charlatões.

Na verdade, eu fiquei sabendo de somente dois mestres vampiros , talvez um

terceiro. Já os adeptos, se espalharam como epidemia pela Praça. Dos Lycan eu sei

que sua abordagem era mais conectada com o corpo, com o mundo físico. Assim,

demonstravam menos perigo em relação aos abalos psicológicos deixados pelo

outro grupo.

Isso porque na verdade, o mestre vampiro era só um outro aprendiz de

alguém. Lia e estudava muito, mas não tinha domínio sobre o que estava lidando. E,

ao que parece, eles precisavam praticar com a mente de alguém.

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1.7 Skate como elo fundamental

A Praça em si só é surgida da vontade do skate. É dizer, na década de 1970,

ali era um espaço aberto e vazio, em que a vontade de uns loucos que aprenderam

o que eram as manobras de skate nas suas viagens de estudo no exterior,

ensinaram aos amigos. Antes disso eles tinham o carrinho de rolimã. E isso através

do contato com a Zona Sul e com a Barra. Era lá onde provavelmente as

informações chegariam primeiro.

Então esses iguaçuanos planejaram uma pista de skate como as que viam

nas revistas. Fizeram todos os planos de como a Praça deveria ser, com o foco em

uma bowl que seria a maior do mundo depois de construída; sendo que no mesmo

ano que a Praça de Nova Iguaçu ficara pronta (1976), a Califórnia (EUA) inauguraria

a sua poucos meses antes. A Praça passaria ao posto de maior da América Latina 11

.

“A primeira pista de skate da América Latina mudou o comportamento de uma geração inteira de jovens, aproximou a Zona Norte e a Zona Sul da Baixada Fluminense e revelou as primeiras lendas do esporte no Brasil.” (Codinome:TITÃO, no site OSkate.com.br, no dia 08 de julho de 2014).

Esta Praça recebeu e recebe diversos campeonatos. Definitivamente, os

skatistas, quase como classe, não estão dispostos a deixar a Praça do Skate

morrer.

Para a pré­estreia do documentário, foi­nos enviado um ônibus para a Praça,

que nos levaria todos para o SESC de Nova Iguaçu. Por conta de o ônibus ter 12

tardado tanto para chegar, muitos foram de skate mesmo, porque não é tão longe.

Chegando lá, o SESC tinha disponibilizado sua quadra para skatistas de todas as

idades fazerem umas brincadeiras com manobras arriscadas, e improvisado umas

rampas móveis e uns obstáculos.

Inclusive me lembro de terem dado a todos vários adesivos dos

patrocinadores e, no meio deles, ao menos para mim veio um adesivo do Short

11 O documentário de média­metragem Praça do Skate , de Paulo China, contém valiosas informações e relatos de como foi o impactante para uma geração inteira.

12 SESC: “Serviço Social do Comércio”, lugar que funciona como um clube e fornecem diversos serviços de entretenimento, cultura, educação, esporte, etc.

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Thrash (banda de Crossover carioca) que tenho até hoje. A composição visual tinha

me agradado muito mas eu nem sabia que se tratava de uma banda. Até que um

dia me vi em um show cuja grupo musical levava um cartaz gigante atrás do

baterista que eu imediatamente associei ao adesivo que eu tinha guardado.

Nesse dia, tinha muita gente de meia idade andando de skate, ao lado de

uma família grande. Porque o documentário e a Praça em si tocam fundo na vida e

na humanidade dessas pessoas. Está cheia de emoções e memórias.

Sentimentos e memórias

Lembro­me, por exemplo, de um dos dias de semana que eu estava à toa na

Praça e surgiu uma mulher loira de uns trinta anos perguntando de um tal fulano

que eu não conhecia. Disse que ele era skatista, e na época que estava por aqui ele

praticamente morava na Praça. A mulher descreveu ele e pediu para avisar e entrar

em contato com os skatistas mais antigos da Praça para pedir para dizê­lo que a

Carla (creio que era esse o nome dela) tinha passado perguntando por ele.

Sim, foi surreal: uma mulher que eu nunca vi pedindo para dar um recado

para um cara que eu não conheço. Ela me disse que frequentava a Praça quando

tinha quinze anos, mas que tinha sido levada para morar em São Paulo e que agora

ela estava de volta. Parecia estar emocionada em estar ali. Não sei se ela me disse

que era estranho estar ali de novo e que tinha vontade de saber como ele, que fora

um grande amigo, estava ou se essa parte eu fantasiei depois que ela foi embora.

Passei um tempo encucada com isso até chegarem uns amigos. Contei para

uns skatistas que apareceram minutos depois sobre a tal mulher e se conhecia o

rapaz que ela procurava para que eu desse o recado, mas eles não pareceram se

importar e disseram que provavelmente se tratava de alguma maluca (sic).

Talvez os filmes de drama romântico tenham corrompido meu cérebro, mas

não acho que ela era só uma maluca. É possível que as pessoas queiram

reencontrar antigos amigos que marcaram sua vida, ou que a vida tenha

interrompido algo que poderia ter sido para a vida toda.

Assim como ela, hoje, eu também penso assim. Quando entro na Praça

depois de anos afastada, depois de tudo que venho passando, de ter conhecido

outros lugares, andado um pouco pelo mundo, eu me reconecto de alguma forma

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com ela. Porque me vêm à cabeça todos os aprendizados e lições boas e ruins que

eu tive naquele lugar. Não tem como não lembrar de cada um dos grupos que eu

me inseri, e de pensar que eles também foram para outros lugares e por vias

diferentes da minha.

Ter vivido a Praça foi, para mim, um divisor de águas que faz perceber o

quão adulta estou agora. Penso que talvez isso tenha acontecido com a suposta

Carla, ou seja lá qual for o nome dela.

Ver aqueles senhores grisalhos em cima de um skate no SESC faz pensar

em todos sentimentos que não teriam emergido, eles no meio daquela galera jovem,

seus filhos e netos também skatistas. No documentário, alguns expressaram essa

emoção de recordar, de rever pessoas com quem compartilharam valiosos

momentos da juventude. E nessa pré­estreia, eles também estavam presentes:

primeiro na Praça, depois a caminho do SESC.

Em cima do skate

Nesse tempo eu já tinha me visto sobre um skate. Eu já tinha adquirido o meu

próprio, muito bom, de segunda mão. Era de um playboy morador da Barra, primo

da minha amiga do curso de inglês, que me disse ter montado com as melhores

peças e que tinha tentado andar algumas vezes, mas desistiu por conta dos tombos.

E eu nessa época não tinha medo de nada. Não pensei duas vezes e pedi

dinheiro adiantado ao meu pai. Nessa época eu trabalhava com ele e ganhava

quinze reais por meio período dia de semana e trinta para trabalhar aos sábados.

Eu tinha cem reais guardados e com mais duzentos e cinquenta adiantados eu

peguei o skate na mesma semana.

Meados de 2009 e eu saía da Passarela Caracol, onde agora meu pai e eu

trabalhávamos, às seis horas da tarde nos dias de segunda, quarta e sexta (terça e

quinta eu tinha curso) para ir para a Praça, que ficava a oito minutos de distância. A

partir daí o trabalho com meu pai se tornou muito difícil, porque eu não queria mais

estar lá. Terminar de pagar o skate foi uma tortura, mas terminei e enfim estava livre

de novo.

Eu me entendia muito independente, aprendendo a descer na bacia só do

que tinha observado dos outros. Eu já havia tido um daqueles horríveis skates retos

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e quadrados, dos que se vendem nas Lojas Americanas, que chorei para ganhar de

aniversário aos doze anos. Então sabia equilibrar­me e locomover­me, fazer curvas,

descer pequenas ladeiras: as coisas mais básicas. Mas estar em uma bacia era

algo inédito e emocionante.

No meio do dia era melhor, porque a Praça estava quase vazia; se podia cair

com a tranquilidade de não ter passado vergonha. Agora às seis horas aquilo ali

estava lotado… todos os dias. Tinha muito skatista! E eu ficava era no canto, ora na

pista reta, ora na bowl , onde tivesse menos gente. Eu não queria ser questionada

de estar com o skate no canto ao invés de andar, para que não percebessem que

eu não sabia andar direito. Quando uma das pistas esvaziava, eu me levantava e

brincava de abaixar com o skate em movimento, com equilibrar­me apenas nas

rodinhas de trás, fazer ziguezague, descer a pequena rampa.

Uma dia me distrai tanto brincando que não percebi um grupo de quatro

rapazes skatistas. Foi quando comecei a ser ensinada, partindo do mais simples.

Não é que tenha passado a ser comum que acontecesse de alguém se dispôr a dar

dicas, mas vez ou outra alguma boa alma aparecia. Também é muito do se permitir,

porque a timidez atrapalha. Meus dias oscilavam entre mais extrovertida e aberta, a

mais tímida e retraída.

Tombo direto para o futuro

Dezessete anos: agora eu já pagava passagem. Eu tinha me mudado para

um bairro mais próximo ao centro de Nova Iguaçu, onde se tinha mais acesso para

os ônibus. Isso porque, primeiro o antigo lugar que eu morava era perigosíssimo,

segundo pela hora que eu provavelmente retornaria da faculdade, seria muito

complicado chegar em casa.

Nesse tempo eu já estudava na Universidade Federal Fluminense. Para

chegar na Praça. eu não poderia dar­me o luxo de pagar passagem, então eu ia de

skate. Quando eu digo que eu passei a morar mais próximo do centro, não significa

dizer “ao lado”. Desde a parte mais distante de Comendador Soares, eu

atravessava os bairros Canaã e Ouro Verde, que me davam acesso à extrema parte

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da Via Light. Nisso eram quarenta minutos “remando” no skate. Antes disso, nos 13

tempos de férias, o percurso era parecido.

Era muito do chão e muito do sol sobre minha cabeça. Hoje eu não poderia e

nem suportaria mais fazer uma coisa dessas. Esse esforço insano que eu fazia me

rendeu um bom problema no joelho direito, que geralmente me lembra que existe

quando refaço os movimentos de impulso no skate. Por outro lado, apesar de ser

sempre magérrima, me rendeu uns músculos em áreas estratégicas que me

deixavam muito orgulhosa.

Das coisas que me afetaram, além dos tombos e torções comuns que me

faziam por vezes pedir carona nos ônibus para ir embora; teve uma vez que eu mais

meu grande amigo nos dirigíamos nosso bairro em comum até o município vizinho,

Mesquita, que anualmente faz uma grande festa em comemoração ao Dia Mundial

do Rock. Nesse dia não chegamos lá porque me acidentei no bairro Caonze, no

centro de Nova Iguaçu.

Íamos até lá brincando muito. Demos uma parada na Praça do Skate, onde

também tinha festa, cumprimentamos alguns colegas e seguimos. Quinze a vinte

minutos a frente, pelo caminho que decidimos fazer, que era o que tinha menor

movimentação de carros, haviam duas ladeiras, que tinham aspecto de bacia (bowl).

No topo da primeira, pensamos duas vezes se íamos; eu fui e então ele foi.

Um sucesso! Já no topo da segunda, por conta do reflexo da descida da primeira,

cheguei nem na metade. Não medimos que essa era quase o tripo da anterior e

muito mais íngreme. Vi o skate do Bruno bambalear na minha frente, ele abaixando

e equilibrando os pés lado a lado para cortar esse efeito, me bateu o nervosismo e

senti os pés virarem pela alta velocidade. Fui vendo só o Bruno descendo de lado,

em câmara lenta. Daí eu já estava no chão.

Ele conta que olhou para trás quando parou de ouvir o barulho do meu skate.

Enquanto caia, vi de soslaia um carro passando, justo no momento que eu caía. O

motorista deve ter rido muito, porque eu caí muito feio. Diz que eu fiquei uns trinta

segundos sem responder, de olho aberto. Eu bati a cabeça muito forte no meio­fio,

me ralei toda porque saí arrastando para baixo depois de bater no chão.

13 Termo utilizado para referir­se ao ato de locomover­se no skate, impulsionado por um dos pés enquanto outro permanece na base.

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Eu tinha uns dois reais no bolso, e sinceramente não lembro como cheguei

no Hospital Geral da Posse (também Nova Iguaçu). Acredito que pedimos carona.

Muitas coisas desse dia eu me esqueci completamente, apesar de aparentar lucidez

e ter saído do local do acidente caminhando.

Meu skate estava inteiro, mas eu tinha machucado a cabeça e fraturado a

clavícula. Ficamos lá até as três da matina, e era por volta das cindo da tarde

quando chegamos. Para ir para casa, nós fomos de skate mesmo até o Top

Shopping, e de lá um motorista muito gente boa nos deu uma carona.

1.8 Álcool e outras peripécias

Esta foi a última grande aventura em cima de um skate. As outras vezes que

caí não tinham tanta emoção e nem significavam grandes coisas. Uma coisa que

convém o interesse é que enquanto remamos no skate na beira da pista, existem

algumas complicações que são: areia e pedras que se acumulam nos cantos da

pista e as pessoas dos carros que nos xingam para que saiamos da via apesar de

essa ser a única forma de nos locomovermos de skate (não se pode antar de skate

na calçada e tampouco existem ciclovias para os lados que nos dirigimos). Creio

que por maldade, há quem buzine ao nosso lado enquanto estamos a toda

velocidade, para que nos assustemos e caiamos.

Também, por andar de skate, aprendi onde arrumar água de graça na cidade.

Os mercados e postos de gasolina que disponibilizavam um bebedouro. E que é

mais fácil conseguir carona quando se está com o skate debaixo do braço. Diversas

vezes enquanto voltava do Rock que acontece em Mesquita, os ônibus das

empresas Nossa Senhora da Penha e Nilopolitana até mesmo ofereciam a porta de

trás do ônibus sem que pedíssemos, ao nos ver caminhando cansados (e bêbados).

Passei a frequentar Mesquita porque o skate me facilitava ir da Praça do

Skate para a Praça de Mesquita. Também um outro amigo passou a frequentar mais

a Praça quando arrumou um skate. Era seu meio de transporte até lá. Vários outros

skatistas da Praça o usam com mesma finalidade. Conheci outro rapaz que

trabalhava em uma loja de bicicletas ali no centro, e que ia para a Praça depois do

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trabalho e, dado certo horário, para a casa de skate mesmo. Ele me disse morar na

Posse, o que é bastante longe para um percurso que se tem de fazer todos os dias.

Do antigo bairro que eu morava, também saiam muitas pessoas em skate até

a Praça, e era longe demais! Mais de uma hora, sem dúvidas. Nas sextas­feiras, era

normal que fossemos todos caminhando, os que iam para a mesma direção, porque

se usava o dinheiro de passagem para inteirar na compra da sangria.

A sangria era a bebida usual, porque era de baixo custo, alto teor alcoólico e

vinha em cinco litros. Embebedava até quem não tinha colaborado com a compra.

Em um grupo de cinco a oito pessoas, se cada um desse um ou dois reais,

tranquilamente se comprava um galão de Cantina da Serra. Também acontecia de

pessoas aleatórias e conhecidos de Praça virem pedir qualquer valor para colaborar

na compra de qualquer tipo de álcool. E todos davam, porque, no fim, a bebida era

socializada.

Parecia uma festa: uns grupos tinham uma caixa de som portátil ou um

celular com músicas, só para pano de fundo nas conversas; outros se reuniam em

torno de um dos vários violões sendo tocados espalhados pela Praça; e havia um

rodízio constante de gente nos grupos, ampla movimentação da Praça inteira.

Sempre se deslocavam para fazer sondas a gente interessante, fofocas, assuntos

diferentes e até mesmo em busca das discussões e brigas que se formavam de

repente.

Além da sangria, também existia a mistura de baixa qualidade, muito comum

na Praça e na frente das escolas, se chama “tomba”. A tomba é a mistura de

refrigerante com Caninha da Roça, que custava de dois a três reais. Então, além de

não aparentar o conteúdo alcoólico dentro da roda de amigos que se formava,

porque colocavam a aguardente dentro do refrigerante, era muitíssimo econômico.

Com o passar do tempo, e como era de se esperar, alguns de nós

começaram a trabalhar, o que fez com que a qualidade da cachaça nos grupos

começassem a evoluir. Isso de tal modo que se formou um problema. Porque,

enquanto todos estão bebendo os mesmos tipos de bebida barata, não temos

problemas: “todos são iguais perante o álcool” . Mas logo que apareceram as 14

14 Frase de efeito dentro de um grupo que eu partilhava, de fortes tendências agnósticas e ateias.

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primeiras garrafas de bebidas mais caras, que também eram usadas com a

finalidade de agregar status , uma zona de desconforto pode ter se formado. Big

Apple, Johnny Walker, e até mesmo as Jack Daniels foram aparecendo, e fizeram o

gosto da tomba amargar ainda mais.

E atrito estava formado porque elitizava certos grupos em torno do álcool.

Eles se segregaram porque relutavam e até negavam com todas as letras e

desamizades o compartilhamento do seu drink real . Nisto, a Praça cria aspecto de

estar zoneada. Limites que antes já existiam um pouco, aí se intensificam. Existe

receio da repreensão e do embaraço dos olhares pouco amistosos.

Novas classes se formam até que almas generosas cortem o ciclo da apatia.

Precisou que se liberassem duas caixas de cervejas Heineken quentes quase

vencidas, arranjadas por um colega de grupo que trabalhava no estoque de uma

rede atacadista. Outra vez, foram dois galões de cinco litros da mesma cerveja,

pelos menos motivos. Dois galões de sangria liberados pela boa vontade de um

amigo próximo. São formas que fizeram gerar nossos ciclos de gentileza e bonança

alcoólica que reintegrariam um pouco os grupo e as gentes.

1.9 Revolução musical

Na Praça em peso, creio que a maioria de nós passamos por renovações no

comportamento, e por vezes esse comportamento está associado ao estilo musical.

Nos dez anos que se passaram desde a definição de um estilo próprio e particular,

não poderia eu, no desabrochar identitário, permanecer em conceito e em espírito

na mesma vertente.

O Rock e o Metal é um tipo de música que permite e até incentiva seus

desdobramentos, por meio da combinação, por conta de seu espírito subversivo.

Trata­se da tendência em romper com o socialmente aceito, com o adequado e com

o ordinário.

A combinação de elementos de culturas diversas, os ritmos e as percepções

geram uma inovação da musica que é delirante. E isso dentro do Rock e do Metal é

surpreendente e, definitivamente, agrega valor. De forma análoga com que Hebdige

(1979) descreve, a evolução do reggae jamaicano dentro da Grã Bretanha, e de

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como a combinação dos elementos do rock fizeram surgir os mods, o ska, até

chegar no punk.

Na Praça, os círculos musicais existiam, e qualquer um poderia sentar­se na

roda e participar da cantoria. Havia quem levasse violões e percussão e abriam para

as músicas do rock popular, criando novas batidas, colocando um pouco da sua

própria vivência; algo descontraído formava com naturalidade.

A própria banda iguaçuana que toca Punk Rock já citada, Genômades,

construiu muitas de suas músicas nessas rodas que aconteciam ali, no meio da

praça. Também espaço foi aberto para conhecer músicos de estilo semelhante, com

possibilidade de serem criados novos projetos.

“Você me diz que era um sonho, mas os sonhos são reais

Você me mata de vontade, na verdade não é mais E me traz os pensamentos que eu já nem uso mais E quase me tira o firmamento de vida eterna e de paz

O Sol também é Vazio e sem forma O som também é Vazio e sem forma”

(Banda Genômades ­ Hagliés)

De outra forma, a revolução ocorre do conhecimento, do teste de

possibilidades. A roda de música também é momento propício para novas

introduções aos estilos, artistas, às formas de entendimento e interpretação.

E toda a Praça assim se faz: da interação, da troca, das dicas. E dentro

dessas dicas, existia um outro fator que era o de parecer saber mais, de conhecer

mais as bandas, para durante a conversa poder ser o que sabe mais. Então existe

uma ânsia, uma corrida para estar a par dos estilos, das datas dos álbuns e de cada

formação de banda.

Esse estudo que é feito sobre o seu próprio estilo, o que dizia ter, acaba

desviando e abrindo para novas vertentes. Passa­se a conhecer bandas que

conversem com o antigo estilo e com o novo estilo que vai passando a gostar. A

partir daí, novos caminhos vão sendo traçados, e talvez novas sociabilidades. As

afluências do estilo mais básico, daquele que se ouvia na rádio, levam cada um de

nós a um novo patamar.

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Fases iniciais para a descoberta do meu próprio estilo

“Como cabría esperar, por lo tanto, las transgresiones de las normas consensuadas que se emplean para organizar y experimentar el mundo tienen una considerable capacidad de provocar e inquietar.” (HEBDIGE, 1979, p. 127).

Eu nasci no rock com tendências do Grunge e New Metal. Com doze para

treze anos assumi o estilo, herdado do meu pai. Aos quatorze em diante, foi meu

momento de brilhar, sustentando uma combinação de Black Death Metal. Minha

experiência pessoal passou do mais leve, apropriado e caseiro (nem tão apropriado

e caseiro assim), arriscando direto para o Metal Extremo.

Aos quinze anos (ano de 2010), tive meu primeiro contato com o Punk Rock,

isso dentro da Escola Pública, em uma aula de Sociologia. A banda era a paulista

Cólera, e a música, intitulada “Deixem a terra em paz!”, do álbum de mesmo nome

lançado em 2004. Foi usada como complemento no estudo de consciência

ambiental. Para mim, aquilo foi realmente impactante. Achei sensacional! Estava

chocada porque não esperava um som como aquele, não imaginava alguém

fazendo música para retratar os problemas sociais mais profundos e periféricos, e

tudo isso em português. Me senti contemplada por tal conjunto de letra, ritmo, fúria;

suscitou­me uma potência que eu só sabia que queria para mim.

Embrenhei­me em estudos, queria tudo a respeito e comecei a perceber que

o estilo proposto se aplicava um pouco à vida que eu levava: não em termos

estéticos mas filosóficos. Não que isso não tenha acabado por refletir­se na imagem

que eu recriei de mim, mas eu acreditei (e acredito) mesmo na anarquia.

Eu, aos quinze e dezesseis anos, me via a mais punk de todas: desimpedida,

perdida e encontrada, toda de uma subjetividade que não cabia em mim e de uma

rebeldia que só minha mãe pode contar.

Eu gostava da simplicidade que era ser, de uma liberdade tamanha que não

cabia dentro de mim. Eu brincava com os sentidos das coisas; fazia parte da

transgressão brincar com a capacidade reflexiva das pessoas. Eu gostei de ser

sozinha, eu com os meus botões, a vagar pela cidade com tudo o que eu podia

levar de mais essencial na minha mochila: kit de higiene, uma muda de roupas, um

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caderno e um livro, um pano para sentar no chão, água, cerca de vinte reais da

emergência escondidos e costurados na mochila e biscoito. Tudo isso porque eu

sempre pensava que tinha o necessário para fugir, ir para bem longe, viver de

liberdade.

Naquele tempo, minha ideia de liberdade contava com um plano de

segurança. Vinte reais era o dinheiro exato para chegar em Angra dos Reis, na casa

da tia favorita, e de fazer um lanche na pastelaria de frente com o ponto de ônibus

em Conceição de Jacareí.

Não é que eu fosse realmente, mas era por saber que se eu quisesse, eu

poderia. Agora percebo que provavelmente se tratava de uma brincadeira de testar

limites, e isso me dava muita coragem. Foi nisto que conheci a cidade inteira. e foi

com esta lógica que eu me enfiei em um ônibus que me levou até a Central do

Brasil, só por ir. Eu não precisava pagar passagem por conta da gratuidade escolar,

mas precisava desesperadamente conhecer o mundo, descobrir até onde poderia ir.

Demorei um pouco, mas posteriormente fui a Madureira, Caxias e Japeri. De novo,

só por ir.

De volta ao mundo real, as situações vão me ensinar que a vida em grupo do

punk pode ser bem ingloriosa. As desilusões aconteceriam muito depois, eu como

pesquisadora, confrontada por uma estupidez. E desgostei.

Essa vivência não me afastaria do Death Metal (e nem do Grunge), e talvez

bem pouco do Black. Nesse meio tempo, aprendi a combinar os estilos. E nem foi

difícil, porque as bandas parecem ter passado por isso também, já que me dariam

suas músicas já combinadas! Por exemplo a Napalm Death, até hoje icônica para

mim, com as letras do punk e os tons do Death; a banda Doom, que é punk com

estilo puxado para o Black; a Ratos de Porão, que fez entender que o Hard Core é

um punk com Metal.

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1.10 Treta e outras instituições subversivas

Neste item quero contrapontuar aspectos subversivos por meio da

comparação de algumas objeções da Praça do Skate em direção a outros campos

dispostos na cidade.

O bar Subúrbio Alternativo, Brás de Pina (subúrbio do Rio de Janeiro)

O Subúrbio Alternativo é um bar de rock, sede do motoclub Corja Urbana e

casa do famoso DJ Terror ­ consagrado no meio há muitos anos e DJ de destaque

no Rock in Rio. A qualidade do evento proposto move gente do Rio inteiro, de outros

estados do Brasil e, mediante trabalho árduo de determinados coletivos

(especificamente a União Headbanger), é frequentemente palco de estimados

festivais internacionais.

O lugar em si é pequeno, sendo necessário tomar metade da rua com

cadeiras e mesas, principalmente em dias de show. Não há propriamente um palco ­

um pequeno canto atapetado e uma elevação apenas para o baterista e seu

equipamento. E isso é, segundo os próprios artistas que se apresentam ali, de muita

honra, porque não há limites entre o público e a banda; são todos um só fazendo

um show e a cena acontecer.

A agenda desse local é certa de uma sexta, sábado e domingo, de um rock

particular. Se faz noites especiais de uma partição do Metal, do Rock, e mesmo do

Punk. Isso vai coincidir com os artistas convidados, que deverão compreender que

este é um tipo de espaço diferente das casas de show e de rock, já que vai interferir

diretamente no cachê da banda.

Eles são realmente convidados, sendo pagos com o dinheiro do chapéu ­ que

é uma cestinha que passa pelo público “coagido” a contribuir. Digo coagido porque é

isso mesmo… DJ Terror e os demais envolvidos “tocam o terror” antiparasita da

cena. Cobrem os custos ­ de locomoção da banda, por exemplo ­, e também parte

do dinheiro arrecadado das cervejas vendidas no bar.

Uma coisa interessante que ocorreu nesse espaço foi de um show da banda

de Punk Rock do ABC paulista, a Cólera, a mesma banda com que eu fui

apresentada ao Punk Rock. Vale a ressalva que esta é uma banda das antigas, e

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que agrada vários grupos e vertentes de estilos e ideológicas. E a palavra de um

dos organizadores do evento foi apaziguadora em meio a um risco iminente de treta ,

já que no tal evento estavam presentes várias vertentes do Punk e do Metal, a

galera de motoclub e outros não particionados.

Esta é uma típica banda que agrada vários olhos e ouvidos, porém os fãs

nem sempre se entendem. A Cólera aborda temas como preservação ambiental, o

retrato e as amarguras do subúrbio; é anárquica também, homenageia o

proletariado (e assim, atrai os comunistas...). Além do que, marcou a juventude que

saía da ditadura, que achou na sua música o protesto e rebeldia para que os serviu.

Pois bem, o grito introdutório condizia bem, ao meu ver, com o que é o

Subúrbio Alternativo, sua proposta como espaço de construção cultural. Ele, que

não me recordo se foi mesmo o DJ Terror ou outro organizador, disse algo como

que não importava a vertente que os presentes seguem e militam, mas que ali todos

iriam [voz impositiva] curtir o som da mesma maneira, e que “Abaixo os nazistas,

fascistas e seguidores de Bolsonaro!”

Comparações imediatas

Primeiro ponto da diferenciação é que no Subúrbio Alternativo as pessoas

que compõem a atividade da cena são aproximadas por gosto, exclusivamente, da

apreciação musical. Será bem difícil a pessoa frequentar esse bar se não gostar e

viver rock e Metal. Apesar de alguns dias serem dedicados ao flashback do pop rock

nacional e internacional, tanto como sede de motoclube quanto de cena do

Underground, pessoas que não compartilham vivência ou fazem parte mesmo

daquilo ali provavelmente se sentirão um “peixe fora d’água” . Ou seja, não abraça a

diversidade da mesma forma que a Praça mas é diverso sim, em termos das

vertentes Underground , que são vastas.

Depois, as pessoas passam a conhecer o Subúrbio Alternativo por meio de

eventos que são marcados no Facebook, do acompanhamento das bandas favoritas

e de onde elas estarão se apresentando. Então, durante um tempo, é para isso

mesmo que o bar se presta: a realização de eventos que são de interesse das

várias vertentes do underground . Com a frequência, se passa a conhecer as

pessoas que estão sempre ali, compondo cena.

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Assim, o Subúrbio passa de casa de eventos para espaço de sociabilidade,

interação e afetividades. Processualmente os frequentadores serão convidados ou

terão notícias de eventos que acontecem em outros lugares, nas proximidades da

casa dos colegas dali. Isso significa movimentar a cena, dar corpo e conteúdo sobre

o que as pessoas podem oferecer. Com isso podem­se formar novas bandas,

organizarem­se para eventos de maior porte de interesse comum, assim como

aconteceu com a formação da União Headbanger.

“Com a rotina de acompanhar e comparecer os eventos e manter a cena viva,

você acaba fazendo amigos, compartilhando ideias para criar um projeto,

conhecer novos pontos do estado que você antes não conhecia.” (Entrevista

com o Coelho, ativo na cena Underground RJ).

Sobre a distância percorrida em outros espaços hei de assimilar com a

construção de cena: o esforço em manter o espaço, a composição baseada no

próprio existir e atuar nele. Veja que o Subúrbio Alternativo, localizado na Zona

Norte, não se constitui somente de moradores das proximidades (Penha, Olaria,

Cascadura, Méier), mas agrega gente de diversas partes do Estado, por vezes de

outros estados do Brasil que estão em visita. Meus amigos e eu, em processo de

descoberta do espaço por meio de eventos, passamos a frequentar esses lugares.

Tanto a organização de eventos como o espaço, cujo gosto os aproxima.

Os frequentadores vêm da própria Zona Norte, mas também da Zona Oeste,

do Centro, da Baixada, de Niterói. Desde Nova Iguaçu para esse bar, são cerca de

trinta a quarenta minutos sem trânsito. Quem vem de Jacarepaguá, Campo Grande,

São Gonçalo, Centro, Japeri ou Engenheiro Pedreira, não parece desanimado em

locomover­se para prestigiar a companhia dos companheiros de cena e do show.

Outro aspecto é o que permeia diz respeito novamente às conexões entre

cenários, entre espaços coniventes com o estilo. Na madrugada, que é quando

termina o show no Subúrbio Alternativo, muitas pessoas (se não a maioria) se

dirigem ao bar do Garage, localizado na Rua Ceará, no bairro Vila Mimosa, próximo

à Praça da Bandeira (Centro do Rio) para encerrar a noite. E isso acontece tanto a

fins de divertimento como, talvez, pela dificuldade de conseguir um ônibus de

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madrugada. Acostumou­se estender o rolé até a hora que seja retomado o fluxo 15

dos transportes coletivos para as regiões mais afastadas.

Na Lapa, por exemplo, quando estamos cansados, temos que aguentar

firmes até as quatro e cinco horas da manhã. Depois de assistir algum concerto

nesta área, se tornou costume procurar um bar para prolongar o passeio. Sim, é

porque gostamos da companhia uns dos outros; mas mesmo que eu, por exemplo,

quisesse ir embora assim que o show termina, eu não poderia porque não existem

ônibus e o transporte alternativo não me serve.

De volta à Praça do Skate

Muito tempo atrás, antes mesmo de pensar em cursar sociologia, eu percebi

a Praça do Skate como um ambiente peculiar em toda a cidade, e decidi que um dia

ainda a estudaria. Nela eu vi uma infinidade do que eu acreditava ser “tipos de

gente”: haviam marginais de vários tipos ­ uns assaltantes e o pequeno fornecedor

de drogas que, com o tempo, se tornou médio traficante propriamente dito (isto

porque antes trazia pequenas quantidades somente para amigos e posteriormente

já andava armado e tinha gente trabalhando para ele ali). Em determinado horário

chegavam também os moradores de rua. Gente de vários estilos: rock, rap, reggae,

funk, hip hop; grupos de estudantes das escolas do centro que se reuniam ali para

matar aula; também os evangélicos… Depois, eu percebi as nuances: góticos,

punks, Metalheads, grunges, screamos… E também, os que deveriam ser os

principais, os skatistas e patinadores.

Muita coisa eu vi acontecer nessa mesma Praça, claro que em dias e

horários convencionados. Na sexta­feira é que ela fica mais intensa e acontece essa

algazarra onde se passa a conhecer todos os frequentadores ­ mesmo que não se

saiba exatamente qual é a relação dele com o mundo ou o papel social que ele

usualmente adota. Isso quer dizer que conversávamos e bebíamos com gente

desconhecida, que você poderia descobrir que eram vizinhos ou do mesmo bairro,

poderia encontrar gente da sua escola fazendo coisas que “até Deus duvida” ou

então identificar um cara que te assaltou e ele te pedir desculpas e se explicar ­

15 Rolé diz respeito ao passeio, geralmente a fins de encontrar um grupo, em razão de divertimento.

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todas essas coisas realmente aconteceram e aconteciam com frequência, já que ali

mesmo as pessoas exclamavam os reconhecidos.

Essa Praça é frequente palco de disputas de rap, de encontros de reggae,

hip hop e funk; recebe campeonatos de skate profissional; é escola de voleibol para

todas as idades… Enfim, é espaço para vários eventos culturais como o anual

Arraiá D’Ajuda e o Roque Pense. Mas também contrasta em violência: brigas de 16

bêbados raivosos; umas pessoas criando caso com propósito; foi também (e ainda

é) cenário de verdadeiro confronto entre gangues urbanas.

Lembro­me de uma vez em que passou a frequentar a Praça um grupo de

funkeiros que gostava mesmo de “arrumar treta”. Humilhavam as “presas fáceis”,

inventando um pretexto qualquer, como pisar do pé, esbarrar ou derrubar bebida,

incitando para que houvesse mesmo uma briga.

Uma vez, vi um conhecido sozinho no meio da quadra de futebol que era

perto mas isolado, recebendo tapas no rosto de forma seguida e de todos eles, que

beram uns doze. Eu lembro de ir alertar o pessoal que estava comigo na ocasião

que o screamo , que era como eu o chamava, estava apanhando. E a pessoa que

voltou comigo, não sei se por ingenuidade ou por prevenção, vindo ver rapidamente.

com uma garrafa de vodka na mão. Como garrafas de vidro são usuais armas nesse

tipo de briga, gerou uma confusão que meteu gente que não tinha nada a ver na

briga. O grupo veio correndo distribuindo socos e chutes, mirando sempre no rosto,

em cima de um aglomerado de pessoas que estavam atrás de nós. Não entendi

nada e saí correndo.

Esses funkeiros sumiram, como todos os outros, depois que se formou um

outro grupo para os enxotar. Os boatos eram de que um cara chegou perguntando

“quem é” e um rapaz apontar o grupo; o irmão do screamo ir ao encontro dos tais

junto com meia dúzia e dizer algumas coisas, mostrar a arma e os tais valentões

não aparecerem mais.

Envolvendo os punks acontece de forma parecida, só que com uma carga

ideológica bem mais forte. Eles brigam depois de se questionarem. Abordam quem

16 Evento patrocinado pela Prefeitura, onde a elite iguaçuana se sente muito caridosa e generosa “cumprindo com sua responsabilidade social”, e onde os maiores nomes do comércio local vão vender, divulgar e afirmar renome.

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os intrigue e questionam acerca de uma postura, de um caso relatado ou qualquer

fator estético e, de acordo com as respostas, pode ser que haja um rechaço.

Destes eu tenho o relato, que é da mesma pessoa que hoje caminha

comigo em minha pesquisa, de quando os “punks da Praça” humilharam um 17

cosplayer e praticante de parkour chamado L*, conhecido de todos ali. Isto 18 19

porque o rapaz tinha o hábito de usar bandana ou chapéu, e na ocasião usava uma

bandana com a bandeira do Brasil estampada.

Chegaram três; ao que parece eram anarkopunks. O questionaram e ele fez

como que não dava bola. Então pegaram a tal da bandeira e, numa atitude bem

infantil ao que parece, jogavam um ao outro. No início o rapaz pedia para que fosse

devolvida e, diante do que se seguiu, foi obrigado a abrir mão do objeto. No fim,

tocaram fogo.

O L* sumiu da Praça durante muito tempo. Depois eu soube que tinha se

mudado, provavelmente não por outros motivos. Com o tempo, como eu disse

anteriormente, se descobrem outras coisas dos conhecidos da Praça. Fiquei

sabendo que ele era mesmo patriota, que seu sonho era servir o exército, mas por

conta de complicações de saúde o rejeitaram.

Ao meu ver, saber disso a posteriori me faz perceber que os punks não são

tão aleatórios assim. Parece haver um olhar ou um perceber de tendência. Implicam

para saber “qual é a do cara”, se é um ingênuo e, sendo assim, caso haja interesse,

eles conversam e exibem sua lógica e ponto de vista. Ou, se houver resistência ­

quer dizer se o cara sabe bem o que está fazendo e o que significa, se é um pilantra

ou anda com pilantras ­ então é inimigo.

E digo isso não baseado nesse único relato, mas como telespectadora de

tretas ­ reais e virtuais ­, e como frequente (e intrometida) ouvinte de justificativas

para a agressão. E também pela reflexividade após o ódio, e somente por conta de

17 Chamados assim porque na época dominavam a Praça de uma forma simbólica, sem propriamente imposições a não ser no mundo punk, sob aquelas questões mencionadas sobre territorialidade

18 Chamado assim por causa do hobbie ­ levado tão a sério a ponto de se tornar estilo de vida ­ que é se caracterizar como personagem de anime (animações em série), filmes ou jogos. O cosplayer se apresenta em eventos próprios e em ocasiões aleatórias e se convenciona ao traje, como é o caso da Praça que reunia vários desses jovens.

19 Esporte radical que consiste em escalada e saltos ensaiados em apropriação e relação profunda com o espaço urbano.

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me deparar com outros casos iguais às repreensões que eu mesma sofri fortemente

no início da pesquisa ­ raramente ao longo dela.

E digo iguais, porque muitos deles acontecem da mesma forma: chegam

bravos e em grupo, no mínimo três. Encaram esperando alguma reação inicial do

outro, questionam, batem boca, diminuem a pessoa, retiram (ou tentam retirar) um

objeto pessoal que os tenha intrigado. E ainda, pode acabar de três formas: você se

interessando em aprender algo que não sabia (como vi acontecer e a pessoa passar

a se enturmar com eles); você assumindo o rechaço e indo embora com um

profundo mal estar da repressão ­ o meu caso em determinado momento); ou então

se ofendendo e revidando o desaforo (que certamente acaba em briga). Essas são

as famosas “tretas”: o carvão da locomotiva punk e skinhead; o ponto alto da noite;

a doce razão de ser.

Pode parecer loucura reduzir um modo de vida às confusões criadas na rua,

mas dependendo do ponto de vista isso pode ser entendido como luta pelo ideal,

prova de que “você é certo e conciso”, prova de que você é ativo no campo de

reafirmação no grupo, e que não dormiu no ponto. Em algumas lógicas, se punk é

atitude, combater o “pilantra” faz parte. Há de prezar pela coerência na cena, e isso

enaltece sua fidelidade aos seus próprios ideais.

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2 DA PRAÇA DO SKATE PARA FORA

Aí venho com um eventual esquecimento da rotina, dos prazos e dos

celulares; um olhar para fora da janela, atenuado pela melancolia de um fim de

tarde de domingo preguiçoso... O espairecer pode atrair percepções que um dia

comum talvez não fossem alcançadas com esse sentimento de clareza que senti, e

vos falo. Questiono quais são as percepções que estamos ambientados. Porque,

neste dia tenro e calmo, observo os grafites e as palavras, os sentidos de um

aglomerado de causas; um outro olhar que se abre para refletir o espaço da cidade.

Nesta metrópole, na qual milhares de gentes correm, existem vozes para

além do labor e das negociações. Creio que, talvez, seja por isso que o mundo

subversivo esteja tão próximo das artes: elas questionam e existem para além das

frívolas modernidades; lembram que dentro das capas dos corpos que se esbarram

existem pessoas que sentem, se emocionam, se revoltam e têm suas

singularidades.

Elas também estão em luta. Como diz Bourdieu (1989) em O poder

simbólico”, a sociedade é feita de eterna luta, onde uns se impõem sobre os outros

para serem ouvidos e terem seus anseios levados em consideração.

A subversão estará prevista no campo urbano à medida em que o ritmo

assumido tende a suprimir um tipo de expressão que faz entoar a voz do dinheiro,

das relações monetárias, da impessoalidade, objetificação, mecanização. Estas,

que têm os “direitos de imagem” da cidade e do sistema, lutam para prevalecer,

para manter a sua ordem característica. 20

“O dinheiro (...) se eleva a denominador comum de todos os valores, torna­se o mais terrível nivelador, corrói irremediavelmente o cerne das coisas, a sua peculiaridade, o seu valor específico, a sua incomparabilidade.” (SIMMEL, 1903, p. 9).

20 O termo ordem empregado deverá atingir sentido amplo: as violências acometidas, psicológicas ­ da imposição, da obrigação ao padrão; e ainda físicas, que é o que ocorre durante a repressão propriamente dita, nos casos mais extremos. Seja de forma sútil ou mais intransigente, o sujeito sente “as amarras que o prendem” visto que entende padrões de comportamento instituídos, a perceber que para receber o status e a aceitação ele tem que se submeter às regras, qualquer que seja a sociedade.

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Os eventos culturais e coletivos de contracultura se prestam reumanizar a

nossa “selva de pedra”, subjetivando­a. Fazem isso quando quebram o ciclo da

rotina, da monotonia e do monocromático, que Simmel diz ser característico da

grande cidade. Pessoas, tanto em grupo ou individualmente, às vezes fazem da rua

a sua tela: graffiti, pinturas, poesias coladas nos postes, frases reflexivas pixadas

nos muros. Assim, demonstram um pouco da sua visão, exibem um pouco de si e

da percepção que têm da cidade, gerada pelas relações que mantém com ela. “(...) As classes sociais têm propensão a ver o mundo de um modo particular. As ideias refletem seus interesses econômicos, bem como as condições sociais que circundam esses interesses. As ideias, enquanto ideologia, servem a um duplo propósito, pois, enquanto promovem uma exaltação de que as proclama, também atuam como ummanto que faz com que seus interesses adquiram uma forma idealizada, conquistando deferência.” (COLLINS, 2009, p. 64).

Em observação atenta há de notar que as ruas contam uma história. Pode

ser de muita dor, de tristeza e pobreza, mas também de riqueza de espírito e de

luta. Pode ser vista e vivida também na Lapa, Santa Tereza e Botafogo; nos vários

caminhos que levam às favelas, que são sinônimo de resistência. Nos coletivos,

prega­se e evidencia­se que na favela a cultura popular resiste. A exaltação desses

aglomerados é, para quem vê de fora, um acalorado e vivaz, festivo. Para quem vê

bem de perto, é o que tem, é que é, o que dá sentido; é sua vida.

“(...) papel do contexto sociocultural na formação da vida urbana, o que se reflete nos indicadores por eles usados na análise da cidade como experiência sociológica. Entre eles se destacam as dimensões da transformação, da mobilidade, da interdependência e da diversidade, princípios usados na sua leitura do espaço urbano como um todo dividido em áreas naturais (comunidades) em constante mudança e interação.” (O’DONNELL, 2008, p. 114 ­ sobre o interacionismo simbólico de Robert E. Park).

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2.1 A construção dos espaços

“O cenário tende a permanecer na mesma posição, geograficamente falando, de modo que aqueles que usem determinado cenário como parte de sua representação não possam começar a atuação até que se tenham colocado no local adequado e devam terminar a representação ao deixá­lo. Somente em circunstâncias excepcionais o cenário acompanha os atores. (...) Em geral, tais exceções parecem oferecer uma espécie de proteção extra aos atores que são, ou se tornaram momentaneamente, altamente sagrados.” (GOFFMAN, 1959, p. 30).

Cada espaço, durante a vivência, deixa claro pela maneira como se forma, de

quando está forte e de quando está fraco, de que a cena é mesmo construída pelas

pessoas que a compõem. Quando dizemos que Subúrbio Alternativo é cena, é

muito mais por conta da reunião de pessoas de gostos similares, da massa que se

forma quando estão juntos, curtindo o evento, do que por conta do próprio espaço

físico do bar.

O Bar do Garage, discorrido mais à frente, provavelmente não seria o mesmo

se não fosse de uma composição maior. A Rua Ceará e as condicionantes para sua

existência como espaço de sociabilidade desertora é o assoalho que arquiteta por

exemplo a cena punk, apesar dela não ser a única a partilhar e construir o espaço.

Na Praça do Skate, não é diferente. É justamente a mistura quase eclética

com um pé no socialmente obscuro que unem aquelas pessoas. Formam uma

massa (in)digna da construção de cena para algumas subculturas, como já foi o

caso dos góticos, dos punks e dos metalheads.

Fatores ambientais, como a deficiência da iluminação, são convenientes para

muitos grupos. Na Praça, a existência de múltiplos espaços médios gramados, a

área aberta, a grande quantidade de bancos, sugerem focos de aglomeração por

afinidade, e também o rodízio entre rodas de conversação. Faz parte do

entretenimento; afasta o tédio e permite encontrar e perder pessoas: é divertido.

No bar, são os eventos constantes que movem as pessoas. É cíclico:

movimento de pessoas gera fortalecimento da cena que atrai bons eventos. A

aproximação do público com os artistas gera um sentimento forte de pertencimento

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e equidade, apesar da valorização dada aos músicos. O minúsculo espaço interno,

sendo necessário ocupar grande parte da rua, faz parte da ideia do Subúrbio, do

sentimento do Underground e da sua cultura, valorizada pelos organizadores e que

acaba sendo apreendida.

Em contrapartida, temos os espaços que não deram certo. Por exemplo, há o

relato obtido por meio de entrevista de que a cena em Campo Grande tenha falido

por conta das constantes brigas e confusões sérias com nazifascistas que teriam

acabado por dominar a região. O mesmo quase aconteceu na Praça do Skate,

chegando a afastar grande parte dos frequentadores por motivos parecidos como

vimos.

Em São Gonçalo também, a cena teria se esvaído. Desta vez por conta de

um desânimo geral. Para a cena se manter viva demanda muito esforço e, primeiro

dos que habitam aquela região. A manutenção dos espaços e a organização dos

eventos e reuniões dependem não só de capacidades organizativas como também

da valorização local.

O vocalista da banda Short Thrash (Hard Core e Crossover), em entrevista,

nos alude a ideia de que apesar de ocasionais eventos no Metallica Pub localizado

próximo a Alcântara (Niterói), não existe propriamente uma cena.

“Eu vou mais pro Rio mesmo, cara. Aqui (é) desanimadão. Então a galera dos rolé vai mais pro Rio mesmo, o povo não se anima pra nada.” (Marcos, da Short Thrash. Trecho da entrevista ocorrida no dia 27/07/2016)

Bar do Garage, Rua Ceará, Centro RJ

“Tenemos, pues, que la subcultura punk significó el caos a todos los niveles, pera ello sólo pudo ser porque el estilo en sí estaba cuidadosamente estructurado. El caos tenía coherencia en cuanto totalidad dotada de significado.” (HEBDIGE, 1989, p. 157).

A Rua Ceará está localizada numa zona famosa pela prostituição e tráfico

de drogas. No entanto, competem nesta localidade boates ecléticas e vários bares,

onde um em específico, chamado Garage, promove shows e faz constituir a cena

Underground .

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A essência caótica das noites na Rua Ceará concentram muitos punks. Ali

existe pouca repressão e é de uma mistura insana; por alguns seria considerado um

antro de perdição . Se você não está ali por compartilhar do ambiente, a sensação 21

é muito ruim. Dá mesmo para comparar com algo que seria do submundo da

cidade.

Numa noite de sábado, chegamos na tal rua e ficamos em um bar qualquer

e depois de um tempo, atraídos pelo som, adentramos neste que seria o Bar do

Garage. A informação é de que ali antes é uma oficina, onde se abriu espaço para

uma bancada de tamanho médio para venda de bebidas e, ao fundo, um palco.

Haviam poucas pessoas, que pareciam ser de várias vertentes diferentes e

tocava uma banda que se disse ser cover . Já na rua, a movimentação de pessoas 22

era imensa, estavam sempre em movimento, em grupos, brincando muito e

bebendo juntos. Observamos muito LGBT, porque também, de frente com o Bar do

Garage havia uma boate GLS.

No Garage muitos já fizeram história. A Coquetel Molotov (banda punk

carioca da década de 1980), em 2015, realizou seu primeiro show depois de

décadas separados . Também desenvolvem apresentações de outras importantes 23

bandas da atual cena do Underground carioca, a exemplo Uzômi (Crossover), Short

Thrash (Crossover), etc. Eventualmente é casa para shows de bandas do nexterior

do Brasil, como a Exodus (Thrash ­ EUA).

Todas as bandas que se têm notícia da cena punk carioca já passaram por

lá: Repressão Social, Lacrau, Mundo Kaos, Sub­Atitude, etc… e também dos outros

estados.

O que faz com que esse local em específico demande tanta irreverência ou

atraia tal concentração punk? Talvez a proximidade com o centro, onde se possa

chegar caminhando e onde não se recebe tanta policiamento do Estado, ou talvez a

área não demande reclamação dos moradores…

21 Assim como vários outros locais de ócio, ruas que concentram bares ou, no caso dos aqui relatados, a Praça do Skate às sextas­feiras também já foi considerado um “antro de perdição”: são brigas, uso de entorpecentes, abuso do álcool, eventualmente a prostituição.

22 Cover é o termo utilizado para bandas que tocam músicas de outros artistas; que não é autoral.

23 Já nos relatos de Caiafa (1985), eles aparecem em concertos pelo Rio e, depois, em seu último show que planejaram para despedida da banda.

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E o que faz instituir o caos? Talvez a zona segregada por conta de uma

aceitação do comércio e prestação de serviços ilícitos. A concentração dos

marginalizados que ali encontram espaço para atuar ou se libertar longe da

represália dos olhos que julgam e que punem.

Sim, talvez esse sentimento do liberto, onde ninguém julga (ou deveria

julgar ninguém), já que todos estão ali, a princípio com os mesmos objetivos: a

diversão. Diversão livre do juízo da moralidade. Sim, isso pode justificar a presença

punk no espaço da Rua Ceará. Já, o Bar do Garage constitui cena porque é

constante na abertura de espaço para que o Underground a contracultura prevaleça.

2.2 A subcultura como motor de sentido

Pessoalmente, quando os formatos leais do sistema não me englobam, não

incluem minha singularidade no que compreendo como belo e desejável, a minha

tendência é dar às costas para ele. Na periferia, muitas vezes vemos um tipo de

tentativa dolorosa em se adequar, de caber em um tipo de padrão que não valoriza

ou não condiz com a vivência. A adequação aos padrões toma forma de hierarquia,

onde quanto mais próximo do modelo ideal, melhor serão suas relações e talvez até

mais fácil sua inserção e comoção para a sociedade. E a sociedade, como um todo,

revela suas preferências indiretamente (através da imagem vendida na grande

mídia) e diretamente (quando os indivíduos são pré­julgados por conta da sua

aparência, modo de portar e até mesmo ideologias).

Quando fragmentações autônomas apresentam potência de sentido para que

uma nova ordem seja instituída, essa nova ordem ou cultura fere diretamente o

sistema vigente. Enquanto subcultura, acontece quando o culto punk, por exemplo,

começa a atuar nos espaços, rompendo com os signos antepostos. Causa rebuliço

porque os punks não respeitam e não se submetem aos símbolos icônicos da

estrutura social dominante.

“Esta forma de poder aplica­se à vida cotidiana imediata que categoriza o indivíduo, marca­o com sua própria individualidade, liga­o à sua própria identidade, impõe­lhe uma lei de verdade, que devemos reconhecer e que os outros têm que reconhecer nele. É uma forma de poder que faz dos indivíduos sujeitos. Há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a

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alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que subjulga e torna sujeito a.” (FOUCAULT, 1992, p. 235).

Para o vigor da estrutura, é preferível que o indivíduo esteja sujeito às

modificações previstas nas modas e tendências do que quando ele gestiona a si

próprio. Se torna imprevisível e o imprevisível é perigoso. E é em razão da

autoproteção que o sistema se faz globalizante, includente ao novo estilo com a

condição de que o sujeito se submeta às suas regras de expressão.

“Como apuntó Stuart Hall (...), los medios no se limitan a registrar la resistencia, sino que «la sitúan dentro del marco dominante de significados», y los jóvenes que eligen vivir en una cultura juvenil espectacular son al mismo tiempo reintegrados, según se los representa en la televisión y en la prensa (...). Mediante este incesante proceso de recuperación se repara el orden fracturado, y la subcultura es integrada como entretenimiento dentro de la mitología dominante de la que en parte emana: como «folk devil» [«grupo maldito»], como Otro, como Enemigo. EI proceso de recuperación adopta dos formas características: (1) la conversión de signos subculturales (vestuario, música, etc.) en objetos producidos en masa (es decir, la forma mercantil); (2) el «etiquetamiento» y redefinición de la conducta desviada por parte de los grupos dominantes: la policía, los medios, el sistema judicial (es decir, la forma ideológica).” (HEBDIGE, 1979, p. 130).

A normalidade é característica daquele que compartilha e se sujeita aos

padrões sociais. Romper com essa padronização gera desconforto, causa rebuliço,

mas talvez seja natural. Gilberto Velho (2016) atenta ao fato de que

“(...) mesmo nas sociedades mais hierarquizadas há momentos, situações

ou papéis sociais que permitem a crítica, a relativização ou até o

rompimento com a hierarquia.” (op. cit., p. 73).

É possível entender que boa parte das evoluções e quase todas as

revoluções no comportamento, na música, na arte e na História tenham sido um dia

subversivas. Pode ser também que tenha havido abertura perante a estrutura para

que elas se desenvolvessem. É o caso por exemplo da constituição de um mercado.

Hebdige (1979) cita a deterioração que aconteceu na subcultura skinhead

quando houve uma “(...)sensibilização do ‘capitalismo consumista a respeito de um

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mercado disponível para um produto orientado por classes’” (op. cit., p. 84), e

comparando o que houve com o glamrock com o que estava a acontecer com os

skins. Um declive que inclusive gerou segregação dentro da subcultura, no sentido

de verificar os verdadeiros e o falsos.

“La difusión de estilos juveniles desde las subculturas hacia el mercado de la moda no es un mero «proceso cultural», sino una autêntica red o infraestructura de nuevos tipos de instituciones comerciales y económicas. Las tiendas de discos, las casas discográficas, las boutiques y las empresas de manufactura formadas por una o dos rnujeres, todas estas versiones del capitalismo artesano determinan la dialéctica de la «rnanipulación» comercial, en mayor medida que fenômenos más generalizados e indeterminados.” (op. cit, p. 132).

É o caso da problemática pertinente ao White Metal, cuja base distintiva se dá

pela desassociação com a origem fundamental do Rock e Metal. O White Metal é

entendido como falso por amenizar a rebeldia do estilo de modo ao enquadrá­lo na

religião melhor adequada socialmente, perdendo totalmente o sentido Underground.

“A experiência estética da obra dotada de sentido e de valor é um efeito de

concordância entre duas faces da mesma instituição histórica, o habbitus

culto e o campo artístico, que se fundemmutualmente: dado a obra de arte

só existe enquanto tal (...) se for apreendida por espectadores dotados de

atitude e competência estéticas tacitamente exigidas.” (BOURDIEU, 1989,

p.286)

2.3 Algumas vias da articulação contracultural

Muitos coletivos estão presentes no meio popular e urbano, em busca de

envolver os espaços com artes e espontaneidade. As Viradas Culturais por 24

exemplo, são marcadas pela intenção de popularizar vivacidade e lazer. Outros

grandes eventos, como o Movimento Roque Pense, destacam­se por abranger

diretamente as zonas periféricas do Rio de Janeiro.

Existem coletivos que assumem seu caráter politizado, sua posição frente a

uma causa e a um princípio. Nos eventos promovidos por esse tipo de coletivo, o

24 As Viradas Culturais são eventos governamentais espalhados pelas regiões metropolitanas dos estados, sendo de caráter democrático (acesso livre) e cultural.

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lazer é gerado da e junto com a reflexão crítica. Em Vianna (2006) temos que “o

movimento do indivíduo pela cidade é também o seu espírito subjetivo.” (op. cit., p.

113). O que são os coletivos de contracultura, senão maneiras de exprimir espírito

subjetivo no espaço urbano?

O Movimento Roque Pense

O primeiro contato que eu tive com o Movimento Roque Pense foi em 2011.

Aconteceu na tão frequentada Praça do Skate em Nova Iguaçu. Foram três dias e o

que mais me chama atenção se trata da proposta ali articulada. Em vários

momentos eram abertas falas feministas e de explicação do projeto, de

agradecimentos de divulgações de informações, coletivos, bandas e mídias

alternativas. Estavam presentes o documento categórico do movimento Sub , o

fanzine cujo conteúdo traz indagações, reflexões e poesia.

O Movimento Roque Pense grita contra o sexismo em todos os lugares,

principalmente das escolas; também trava com movimentos feministas e, no quesito

música ­ ímã do grande público ­, exige bandas que tenham mulheres em sua

composição. Houve também a criação de um painel antissexista que até hoje está

presente na Praça.

Depois disso, em 2013, o Movimento aconteceu na Praça de Mesquita,

também famosa por sua mistura de estilos. Em ambas, foram ótimas as

apresentações. Tempos depois, ocorreu em Duque de Caxias, numa praça de

semelhante porte e de mistura dos frequentadores. Esse recebeu a atenção da

mídia aberta, que acompanhou e divulgou a proposta, promovendo larga

visibilidade.

Pessoalmente, o Movimento alimentou minhas indagações acerca da

mulher na construção da cena Underground , estilo que mais me interessava. Nos

concertos que fui anteriormente, a se perceber a posteriori, grande parte das

garotas acompanhavam. Claro que haviam as que realmente se divertiam, estavam

ali por gosto, etc. Mesmo assim, a grande maioria que se apresentava e que assistia

e participava na cena era (e são) homens.

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Na primeira vez que estive no Roque Pense, conheci a excelente banda de

Doom feminina (raridade!) chamada Mortarium, do Rio de Janeiro (também a banda

Cartilinárias). Dali em diante, passei a acompanhar seus trabalhos e ir em alguns

shows. Também a banda Luasys, que tocava um rock anos 1980 lindão. Todas elas

compostas apenas por garotas.

Dali em diante, só a valorizar o Underground autoral feminino, a banda

Nervosa, de São Paulo, que toca Thrash Metal e faz um som técnico, marcado e

poderoso, atualmente em turnê. Busquei no punk, e adotei como ícone as batidas e

gringas Kitty e Runaways, assim como a carreira solo da icônica Joan Jett.

Acompanhei também bandas nacionais como a lendária Menstruação Anarkika, que

participa em diversos movimentos de levante feministas e em prol da causa.

Também a Gritando HC (paulista), outra poderosa e que agrada a “diversos

ouvidos”, tem um vocal feminino ultrapotente, e tem presença e extenso material.

Enfim, se tem outro ponto de ressalva, seria da importância dos Coletivos

Culturais. Porque, talvez, mesmo que houvesse uma semente de dúvida já

plantada, assim como um regador de conteúdo foi, pra mim, o Roque Pense.

Ademais, a exploração dos pontos de vista em busca de uma reflexividade bem

como ato culminante de todo um estudo ou debate que já vinha sendo construído,

com embasamento teórico pertinente às redes de mulheres e também à

comunidade acadêmica; é também o exercício e articulação de diversas esferas

culturais: a fotografia, a música, artes plásticas e cênicas, a produção cultural e

planejamento logístico do evento… Se trata de existir um conteúdo forte a ser

trabalhado, um extenso público a ser contemplado ­ principalmente nas pontas

suburbanas, periféricas e proletárias ­ a fomentar um espaço bom de trocas infinitas

e de exercício mental.

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A União Headbanger

“E o vocal da Dorsal Atlantica disse ao microfone nesse show: ‘Vamos nos unir todos, punks e Heavys’.” (Caiafa, 1985, p. 135).

A União Headbanger no Rio de Janeiro têm, mais ou menos, três anos, e 25

organiza eventos autorais por todo o Rio de Janeiro. Fazem parte dela Headbangers

independentes e bandas de Metal que compartilham do ideal, existindo em prol da

cena.

Trata da divulgação, produção e organização de materiais, informativos e

eventos. Inclui os Punk, Crust, Crossover, Thrash, Hard Core, Grind Core, Death,

Doom, Black e Heavy Metal, todos no meio Underground , sob preceito da

autogestão, do DIY (Faça você mesmo) e zelo antifascista.

Por exemplo, por meio da União, tanto se traz gente de “fora” para tocar

aqui quanto se gestiona formas em que as bandas se ajudem para saírem em tour

juntas, ou que gravem juntas, dividindo assim os custos logísticos em geral. Há de

ser entendido como uma movimentação em prol da cultura, da informação e da

realização, benefício mútuo em que pouco se distingue o público e o artista, já que o

ideal é que todos ali estejam colaborando para a construção da cena Underground .

“Alguns acreditam que os Heavys vão se aproximar desse outro som e vão virar punks, isto é, vão assumir atitudes políticas, posições punks. Roger acha isso. Ao telefone, conversamos sobre o show e os Heavys e de como essa aproximação já existe. Também ele percebe essa persistência do Heavy Metal e a efemeridade do punk. Ele me disse: "Branca, os Heavys não são como os punks, eles não acabam, é impressionante, eles estão sempre inventando alguma coisa." (op. cit, p. 135).

A Dorsal Atlântica, mencionada logo no início deste sub­ítem, faz parte da

atual União Headbanger. Isso que se diz do metal tomar proporções políticas e

similares em alguns aspectos ao punk, de fato acontece. Veja, pois, a existência do

Coletivo e a ideologia com que ele é mantido.

Ademais disso, Caiafa (1985) retrata um show em que bandas punks se

apresentavam mas eram Heavys seu público, que interagiam bem, para a surpresa

25 Existem União Headbanger em vários, que incluem portanto o sufixo RJ, SP, BH, que representa o estado da organização.

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da pesquisadora, aliás. Tal coisa condiz com a realidade atual. Esse Coletivo é um

dos que veicula esse câmbio, essa interação. Participam e articulam políticas

populares, salvo sempre da ideologia particular da vontade ou chamado indivídual.

Na última parte da fala, cabe ressaltar, que quando o sujeito que dialoga

com a pesquisadora afirma que diferente dos punks, o Heavy não acaba, se dá em

sentido de que muitas vezes o punk ­ em seu exercício mais fundamental, assíduo e

radical ­ termina por cansar­se e “sair de cena” (sumir por um tempo) e “da cena”

(numa espécie de desafiliação). O movimento punk ainda tem que lidar com essa

coisa quase que cíclica, por isso que alguns diriam se tratar de um manifesto da

juventude. É bem desgastante ser punk.

“ União Headbanger RJ , 30 de mayo ∙ O show de ontem representa tudo que queremos fazer com a União Headbanger. Contamos no dedo 238 pessoas nas calçadas e dentro do boteco. 238 !!!!! Isso a gente não vê em muitos show de grande porte. O mais interessante é ver os gringos, acostumados com estruturas monstruosas, tocarem na favela e sairem falando bem de tudo: do ambiente, das pessoas, do acolhimento, do som, da agitação. Todo mundo ficou feliz. Os punks assumiram o show dos Suécos e entraram com 1000 Reais. O Terror também patrocinou commais 500 reais. O Chapéu deu 680 reais. Todo mundo contribuiu. E as quantias depositadas no chapéu são cada vez maiores, prova que quem estava ali quer realmente ver esse tipo de evento acontecendo. Isso tudo sem contar com crentes/nazistas e todo o tipo de escória que vira e mexe tenta sujar a cena. Tinha moleque de 15 anos e velhotes de 55. Todo mundo estava lá. No final do show, rango gratuito pra todos que quisessem comer. Vamos continuar fazendo isso. E vamos fazer porque amamos. Nenhum envolvido estava pensando em dinheiro. Queríamos apenas pagar as bandas em tour. E deu tudo certo pra todo mundo. Estamos crescendo! E com a colaboração dos punks a movimentação fica muito maior. O Evento entrou pra história.

UNIÃO HEADBANGER ! Sem parasita. Sem crente. Sem nazi.” (Retirado da página no Facebook, cf. Anexo 4).

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2.4 A caminho do fim

Trazer à tona algo que já estava tão no íntimo me faz pensar no meu próprio

processo de conotação de sentidos. De todas as experimentações que eu tive

desde a primeira curiosidade com a Praça, somente enquanto discorria minhas

memórias pude notar o quão marcante foram as pessoas, as relações que eu tive

com elas e o quanto foi introdutório para uma formação pessoal.

Os gostos e a necessidade por aventura, a forma com que as experiências

ruins fizeram ter cautela ou como o afago e o apoio ensinaram a superar obstáculos.

Porque quando eu caía no meio da bowl sempre tinha um desconhecido para dar a

mão, e quando sofria injustiças o grupo se levantava em defesa, e no quesito

apreciação musical, mantive­me em uma linha lógica não somente por gosto, mas

porque fui domesticada dessa maneira.

Vagar pela cidade atinge grandes significados todos os dias. Aglomerar­se na

partilha voluntária de algo pode ser revigorante. Sentir­se vivo é, provavelmente, o

que todos almejamos enquanto vagamos por cidades, corpos e conceitos.

“Para um olhar distante, os jovens quando reunidos não estariam a fazer nada, apenas a ver o tempo passar, No entanto, para Pais, o ‘não fazer nada é uma atividade de intensa produção de sociabilidade’”. (PAIS, citado por RAPOSO, 2015, p. 443).

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CONCLUSÃO

Hoje, centro e periferia se interdependem. No sistema que somos induzidos

a respeitar, o aspecto econômico dita boa parte das relações políticas e sociais.

Mesmo nos microrganismos, como foi no caso da Praça, percebemos os desníveis

causados pela segregação classificatória da obtenção desigual de recursos.

Também são reflexo do poder aquisitivo as dificuldades e condicionantes da

locomoção. Minha ótica reflexiva foi completamente afetada pelo modo com que eu

consegui atingir meus objetivos. Caminhar enquanto voltava para casa construiu

sociabilidades, tipos de conversa e percepções muito próprias.

Quando somos pobres, aprendemos muito cedo a ordem das coisas. E

enquanto eu rompia com meus laços protetores do seio familiar eu testava o que o

mundo poderia me oferecer. Já dizia minha mãe: “a rua educa”. E educa mesmo.

Os rebeldes dentro de casa aprenderam na Praça a respeitar a figura de

autoridades autoproclamadas. E aprenderam que não poderiam dizer o que

quisessem, nem agir sem nenhuma lei. E isso na mesma Praça que se entende que

não é mau se rebelar. Romper com paradigmas faz parte da nossa evolução.

Porque naquele espaço, é comum que tenham rebeldes de todos os tipos, cada

qual com sua própria causa.

Enquanto construção de espaços, cada qual tem seu grau de

responsabilidade. Tanto o zelo, a manutenção e os conceitos criados dependem de

todos, como uma equipe. Por outro lado, uma nova percepção: da mesma forma

com que as subculturas pervertem a ordem estrutural da sociedade , elas, na

qualidade de grupos, por vezes se percebem rotos em seu próprio âmago da

estrutura simbólica.

“A vida de um pobre sujeito deu­te todos esses úteis conhecimentos. Mas, se esse pobre sujeito não fosse um malandro, não conhecerias da profissão até mesmo os birbantes.” (RIO, 2010, p. 104).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, Pierre “O poder simbólico” (1989), Rio de Janeiro; Bertrand

Russel, 2001.

CAIAFA, Janice. Movimento Punk na Cidade: A invasão dos bandos sub. Rio

de Janeiro, 1985. Zahar Editor.

COLLINS, Randall. “A tradição do Conflito” In: Quatro tradições sociológicas.

Tradução de Raquel Weiss. Petrópolis, RJ, 2009. Editora Vozes

FOUCAULT, Michel. “O sujeito e o poder”. In: RABINOW, P; DREYFUS, H.

Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da

hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Coleção

Antropologia 8. Editora Vozes. 1959; Tradução Rio de Janeiro, 1975.

HEBDIGE, Dick. Subculture : The Meaning of Style. London, 1979. Tradução

em casteliano por Carles Roche, Barcelona, 2004. Editora Paidós Ibérica.

O’DONNELL, Júlia. De olho na rua: A cidade de João do Rio. São Paulo,

2008. Editora Zahar.

RAPOSO, Otávio. Em busca de reconhecimento nas periferias urbanas.

Revista TOMO. n.27, p.430­454, Julho/Dezembro, 2015.

RIO, João do. “Pequenas Profissões” em A alma encantadora das ruas. Rio

de Janeiro, 2010. Editora Cidade Viva.

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SIMMEL, Georg. “As Grandes Cidades e a Vida do Espírito”. (1903).

Tradução de Arthur Morão, Corvilhã, 2009. Editora Lusosofia.

VELHO, Gilberto. Um antropólogo na cidade: Ensaios de antropologia urbana.

Seleção e apresentação: Hermano Vianna, Karina Kuschinir e Celso Castro. Rio de

Janeiro, 2013. Editora Zahar.

VIANNA, Hermano. “Ternura e atitude blasé na Lisboa de Pessoa e na

Metrópole de Simmel” in Antropologia Urbana: Cultura e sociedade no Brasil e em

Portugal. Org. Gilberto Velho. Rio de Janeiro, 2006. Editora Zahar.

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ANEXOS

Imagem 1 Foto

“Galera em ação”, de Luiz Pereira. Reprodução do site Adrenanews.com.br,

Festival de Skate na Praça em comemoração ao documentário “Praça do skate” de

Paulo China, publicado em 27 de agosto de 2013. Fonte:

http://www.adrenanews.com.br/skatenews/praca­do­skate­festival­/1366

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Anexo 2 Imagem

Cartaz da pré­estreia do documentário média­metragem “Praça do Skate”, de

Paulo China.

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Anexo 3 PUNK ROCK DO SUBÚRBIO ­ Banda PÉ SUJUS

Nós viemos do Subúrbio Antro da mais humilde gente Sentimos na pele o que falamos Por mais que não aparente Podemos não ter passado necessidades Mas nossos vizinhos sim Quem menos tem é quem mais ajuda quem menos ajuda quer nosso fim. Mas nossa guitarra vagabunda com uma podre distorção Embalará hinos revoltos que contra o sistema protestarão Nossa boca suja num microfone gritará palavras de baixo calão Para ofender essa p* de burguesia dos condomínios de alto padrão. Punk rock do subúrbio, grito da periferia! Porta voz do proletário Trilha sonora da Anarquia! Nós viemos do subúrbio, terra esquecida pelo governo Saco de pancada da polícia, amedrontado o dia inteiro Pela lei da bandidagem, pelo apavoro do traficante Sustentado pelo playboyzinho que quer uma paranoia delirante. Quando o sucateado trem chega na estação suburbana Saem suados e cansados após uma jornada desumana Aqueles que dão a cara a tapa para assumir um compromisso honestamente Seja um pai de família, ou um jovem cansado do serviço. Punk rock do subúrbio, grito da periferia! Porta voz do proletário, trilha sonora da Anarquia! Talvez nós não temos chances de vencer, de ser alguém Pois somos humildes, e malvistos, sem cultura e com escassez De chances e oportunidades, engolidas pelos playboyzinhos De rosto bonito e roupa de marca que riem da cara de nós, maltrapilhos.

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Anexo 4: Print UH

Anexo 5 Experiência do dia 31 de dezembro de 2014 Show do Olho Seco – banda de punk rock de SP contemporâneos ao Cólera

e ao Inocentes; atualmente formam o Agrotóxico. Aconteceu no bar Subúrbio

Alternativo localizado em Brás de Pina, no Rio de Janeiro. Por ser um bar, não se

paga entrada, mas é passado o chamado “saco preto” em determinado momento

em que o dinheiro recolhido é dividido igualmente entre as bandas que se

apresentaram.

Um fato interessante é que há alguma pressão em dar o quanto for, o mínimo

possível já sendo o suficiente, de modo que as pessoas compreendam que esta

contribuição é, diz­se, para o “fortalecimento da cena”. Aí se percebe um orgulho de

ser local, de construir (e manter) algo bom. É democrático no sentido de estar aí

para todos. Não é obrigatório pagar pela entrada, mas de certa forma é obrigatória

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ter na consciência de que este espaço construído só pode ser mantido pelos

próprios frequentadores. Mesmo cervejas são bem vindas.

Outro ponto de relevância que neste local em específico é que o ambiente

formado ali propicia o contato entre todos de modo a criar um clima de irmandade.

Ele quebra com as barreiras entre quem faz a arte e quem aprecia a arte; a banda

está sempre em contato direto com o público, interage com ele durante e após o

show, e depois de se apresentar também vira público: participa e aplaude as demais

bandas e permanece no bar bebendo e conversando normalmente, vez por outra

ganha, como mencionado logo acima, cerveja e cigarros, ao sentar para conversar

com qualquer um ali. E é irmandade porque se para qualquer um, seja conhecido ou

desconhecido, para um “papo” e existe a ajuda mútua, mesmo que for para

continuar bebendo quando sua cerveja acaba.

Sobre esse show em específico, vi uma cena mista. Quer dizer, os do meio

underground faziam­se presente independente da sua tag , ou seja, independente de

ser punk ou hardcore.

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Anexo 6: Disposição geográfica do Bar Subúrbio Alternativo Abrangência e composição enquanto cenário underground e em relação à

origem de seus frequentadores mais recorrentes. Intensidade estipulada junto com

três outros frequentadores.

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Anexo 7: Disposição geográfica da Praça do Skate de Nova

Iguaçu