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PRA QUE SERVE A HISTÓRIA? Rogério Rezende Pinto Ignorar ... o que aconteceu antes de termos nascido equivale a ser sempre criança." Cícero (106 - 43 a. C.), Do Orador, XXXIV "O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida  presente." Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987), Mãos dadas IN: Sentimento do Mundo. Imagine-se surgindo no mundo hoje. Agora, neste instante. Do jeito que você é. Da forma como você pensa. Imagine que ao surgir neste instante no mundo, você pudesse ter uma vida bem parecida com a que você já possui. Você apareceria hoje, agora, pronto do jeitinho que você é. Uma das diferenças básicas seria a de que todos os seus amigos não terem consciência de onde vinham, onde estudaram antes da atual escola, quem são os seus pais ( e irmãos e irmãs, e tios e tias, etc.). Que filmes viram na TV ou no cinema, quais as partidas de futebol mais gostaram de assistir no último campeonato. Qual a novela mais engraçada, qual o livro que mais gostou de ler, etc., etc. Ou seja, tudo o que você experimentou antes de estar aqui, agora, lendo es te texto, suas experiências pessoais de vida seriam desconsideradas. Seriam inexistentes. Afinal, você acabou de surgir neste mundo! Você não ficaria curioso para saber quem foi o seu pai e a sua mãe? E os irmãos e irmãs? Você não gostaria de saber como eles são ou como foram quando menores? É claro que isso é impossível de acontecer! Você já deve estar pensando assim. Mas, supondo que algum cientista, atendendo a um pedido seu, resolvesse cloná-lo para que, em uma situação qualquer, você pudesse estar em dois lugares ao mesmo tempo. Será que esse outro você nasceria pensando igualzinho a você? Será que esse novo ser, nascido sem nenhuma experiência de vida, sem vivência, seria realmente um "outro eu"? Biologicamente, fisicamente, talvez sim; mas no caráter e na mentalidade, muito difícil. Pois então, se no plano pessoal surgiriam essas entre outras milhares de questões, o que pensar, então, quando o assunto gira em torno de se saber sobre a origem, a formação, de uma sociedade inteira? Com certeza as questões que surgiriam seriam bem mais profundas. Bem mais difíceis de responder. Quais as curiosidades que os diversos agrupamentos humanos têm sobre si? Que necessidades têm em fixar o passado? Afinal, se uma pessoa se questionaria tanto sobre como ela é (que é o fruto direto de um processo de como ela foi) o que não será, então, de um grande número de pessoas querendo saber do seu agrupamento social. A sua história pessoal é a história das transformações vivenciadas por você. Sejam elas no plano pessoal, familiar ou social. Só quando olhamos para trás, é que percebemos como nós mudamos (sejam mudanças externas ou internas). O mesmo vale para a sociedade (a diferença é de que na sociedade tem-se vários grupos que lutam e defendem o seu ponto de vista. É óbvio que os mais conscientes e organizados acabam por impor a sua forma de pensar e de valorizar a própria sociedade). Ao observarmos algo que mudou e não nos agrada, tentamos impedir que o processo em curso continue. Se nos agrada, procuramos facilitar que o processo continue e tentamos reforçá-

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PRA QUE SERVE A HISTÓRIA?Rogério Rezende Pinto

Ignorar ... o que aconteceu antes de termos nascido equivale a ser semprecriança." Cícero (106 - 43 a. C.), Do Orador, XXXIV

"O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente." Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987), Mãos dadas IN:Sentimento do Mundo.

Imagine-se surgindo no mundo hoje. Agora, neste instante. Do jeito que você é.Da forma como você pensa. Imagine que ao surgir neste instante no mundo,você pudesse ter uma vida bem parecida com a que você já possui. Vocêapareceria hoje, agora, pronto do jeitinho que você é. Uma das diferençasbásicas seria a de que todos os seus amigos não terem consciência de ondevinham, onde estudaram antes da atual escola, quem são os seus pais (e irmãose irmãs, e tios e tias, etc.). Que filmes viram na TV ou no cinema, quais aspartidas de futebol mais gostaram de assistir no último campeonato. Qual anovela mais engraçada, qual o livro que mais gostou de ler, etc., etc. Ou seja,tudo o que você experimentou antes de estar aqui, agora, lendo este texto, suasexperiências pessoais de vida seriam desconsideradas. Seriam inexistentes.Afinal, você acabou de surgir neste mundo!Você não ficaria curioso para saber quem foi o seu pai e a sua mãe? E os irmãose irmãs? Você não gostaria de saber como eles são ou como foram quandomenores? É claro que isso é impossível de acontecer! Você já deve estar

pensando assim. Mas, supondo que algum cientista, atendendo a um pedido seu,resolvesse cloná-lo para que, em uma situação qualquer, você pudesse estar emdois lugares ao mesmo tempo. Será que esse outro você nasceria pensandoigualzinho a você? Será que esse novo ser, nascido sem nenhuma experiência devida, sem vivência, seria realmente um "outro eu"? Biologicamente, fisicamente,talvez sim; mas no caráter e na mentalidade, muito difícil.Pois então, se no plano pessoal surgiriam essas entre outras milhares dequestões, o que pensar, então, quando o assunto gira em torno de sesaber sobre a origem, a formação, de uma sociedade inteira? Comcerteza as questões que surgiriam seriam bem mais profundas. Bem

mais difíceis de responder. Quais as curiosidades que os diversosagrupamentos humanos têm sobre si? Que necessidades têm em fixar opassado? Afinal, se uma pessoa se questionaria tanto sobre como ela é (que é ofruto direto de um processo de como ela foi) o que não será, então, de umgrande número de pessoas querendo saber do seu agrupamento social.A sua história pessoal é a história das transformações vivenciadas porvocê. Sejam elas no plano pessoal, familiar ou social.Só quando olhamos para trás, é que percebemos como nós mudamos (sejammudanças externas ou internas). O mesmo vale para a sociedade (a diferença éde que na sociedade tem-se vários grupos que lutam e defendem o seu ponto de

vista. É óbvio que os mais conscientes e organizados acabam por impor a suaforma de pensar e de valorizar a própria sociedade). Ao observarmos algo quemudou e não nos agrada, tentamos impedir que o processo em curso continue.Se nos agrada, procuramos facilitar que o processo continue e tentamos reforçá-

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lo. Assim é também na(s) sociedade(s). Somente quando nos voltamos parao passado social é que se pode ter a expectativa de entendermos o quesomos e por que somos de tal forma. Só assim identificamos o que énecessário mudar e o que é preciso ser reforçado.Você já deve ter escutado, em certas situações, uma célebre frase que dizaproximadamente assim: "Isso é assim, sempre foi assim, desde que o mundo é

mundo. E vai continuar assim. Nunca vai mudar!" Pois é, entretanto, o tempohistórico é diferente do tempo cronológico do nosso dia-a-dia. Se as coisas jamais mudassem, então, estaríamos em uma fase exatamente igual ao doprimeiro dia, do primeiro homem do período pré-histórico. Nada realmente teriamudado desde então. Na verdade há mudanças no período histórico que levamanos para ocorrer, outras podem levar algumas décadas, há aquelas que podemlevar séculos para se fazerem notar. Outras podem chegar a levar mais de ummilênio para se concluírem. Essas mudanças históricas, devido a esses períodosde tempo que, para nós, são demasiados longos, para o homem comum, nemsempre são perceptíveis no cotidiano. Outras mudanças se fazem mais rápidas e

radicais (principalmente, nestes tempos em que vivemos).(1) Podem ouprovocam modificações e questionamentos quase que imediatos. A clonagem deseres vivos, o transplante de órgãos são acontecimentos que levaram as pessoasa questionarem o mundo que vivem, os seus valores e o que desejam para o seufuturo. Da mesma forma, valem os exemplos do "descobrimento" do Novo Mundo(que modificou, radicalmente, a vida das sociedades presentes em pelo menostrês continentes: o americano, o europeu e o africano) ou da Segunda GuerraMundial. Esses foram responsáveis por mudanças que atingiram a vidaquotidiana das pessoas. Transformaram a política, a economia, a cultura, ageografia, a demografia, as próprias sociedades, enfim.

Só o tempo histórico permite e oferece a possibilidade de uma análise dasociedade que se precisa estudar. Para você, para a sua vida, qualquer atividadeque demande um tempo de, por exemplo, três meses, será uma enormidade dedias. Para alguém com 50 anos, por exemplo, três meses não será tanto tempoassim. Para a História o que seriam 50 anos no universo do tempo da própriaHistória da Humanidade? Isso para não citarmos os três meses – que para vocêpode ser tanto tempo.O tempo histórico não se prende ao calendário diário ou aos ponteiros do relógio.O tempo histórico é o próprio desenvolvimento do percurso que a humanidadefez até o presente momento. Em outras palavras, o tempo histórico é o quechamamos de "processo histórico". É desse processo histórico que podemosobter esclarecimentos sobre a forma de agir e pensar de uma sociedade em ummomento histórico específico. Coloquemos isso de outra forma eexemplifiquemos. Você estudará História do Brasil. Se você quer saber sobre anossa origem, os seus estudos iniciariam-se em 22 de abril de 1500, certo? Não,responderiam alguns. Talvez, diriam outros. Em parte, responderiam maisalguns. Por quê? Porque a História, que hoje nós chamamos de Brasil, está ligadaao desenvolvimento da própria história de Portugal e Espanha, daquele contextohistórico de fins do século XV, do momento vivido pelas pessoas daquela época.O que elas queriam? Pra que precisavam de certas coisas? Como pensavam? Porque agiam ou agiram de uma ou de outra maneira? E, principalmente, quais asconseqüências do modo de viver da sociedade daquele período? Como sedesenrolou? Essas e outras perguntas possibilitam ao estudioso daquele períodohistórico a compreender o passado e as causas para a construção da futura

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sociedade e cultura brasileira. Essa situação de investigação do processohistórico, de uma determinada sociedade, em um momento específico, talvez,fique ainda mais claro para você poder compreender o que precisamostransmitir, se fizermos uma comparação simplificada. Se alguém perguntasse avocê quando começou a história da sua vida, rapidamente, você pensaria eresponderia — No dia em que nasci! ("No dia tal, do mês tal, do ano tal").

Correto!? Será mesmo?! Será que de certo modo a sua história não tem umaestreita ligação com a do seu pai e da sua mãe? A sua história pode até tercomeçado na data do seu natalício, mas não se pode ignorar, totalmente, ahistória dos seus pais. Pense nisso!Nossa! Você responderia, em relação ao exemplo anterior. E diria que assim essahistória não teria mais fim. Primeiro iria para a do pai e da mãe, depois para osavós e bisavós e, assim, sucessivamente até chegar a épocas imemoriais. É uma"linha" sem fim. E é isso mesmo. Uma "linha" que se perde em um passado,imensamente, distante e que principia em um infinito desconhecido. Porém,temos que ressaltar que a História não pode ser exatamente exemplificada

como se fosse uma linha reta, ligando um passado longínquo àatualidade. A "linha" da História está cheia de "altos e baixos", "idas evindas", "recuos e avanços", "desvios", "buracos", e até mesmo comrupturas de continuidade (que é, por exemplo, quando uma sociedadenecessitou fazer uma mudança radical em sua estrutura para continuarexistindo ou mesmo quando foi substituída por uma nova sociedade,uma nova mentalidade). Na verdade, essa "linha" da História inexiste,isto é, ela não existe. É apenas um exemplo didático para melhorcompreensão do próprio processo histórico.A função da História é a de fornecer à sociedade (às pessoas) as

explicações de suas origens. Como diz Vavy Pacheco Borges (1986, p.46), aHistória busca oferecer às pessoas uma explicação genética da sua formação econsolidação.A história das sociedades é feita pelos próprios homens que vivemnaquela sociedade e naquele tempo histórico.Você não deve e não pode confundir a história do Universo, a história daNatureza, a história da Terra, com a história social. Como você pode perceber,tudo tem uma história, um passado: um processo de transformação. Adiferença entre a história do Universo e a história do Brasil é a de que, a doBrasil quem faz são as pessoas que em sua grande maioria vivem em um espaçogeográfico denominado de Brasil. É verdade que nem sempre esses agenteshistóricos (as pessoas) estão atuando de forma consciente. Nem sempre oshomens têm a capacidade de saber o que acontecerá se agirem de uma ou deoutra maneira. Mas é certo que a reação ou não das outras pessoas ao quefizeram será a continuidade do processo histórico anterior.Ao estudar o passado, o historiador não busca na verdade encontrar umelemento síntese para explicar toda a história da humanidade. Isso ainda éconsiderado uma utopia.(2) Não existe homogeneidade na História. Cada povo,cada civilização, cada cultura, de cada tempo e épocas diversas tem sua históriaprópria. Se de dois irmãos criados pelos mesmos pais, em uma família, em umamesma casa, diz-se que não são iguais, tente imaginar sociedades diferentes emuma mesma época ou em épocas diferentes.Na verdade, um dos objetivos da História é o de se estudar o passado,buscando as explicações para se entender o tempo histórico presente. E

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até quem sabe, apontar possíveis tendências para o futuro. Isso se devepelo fato de que o historiador, além de ser fruto do seu tempo, sabe e temconsciência de que o homem, enquanto indivíduo, vive em um preciso tempohistórico, em um determinado contexto social e num dado espaço físico-geográfico. (É claro que não é só o historiador que porta essa consciência.Existem outros indivíduos que possuem esta visão e que não são

necessariamente historiadores). Em síntese, o homem tem consciência de serum ser histórico, temporal e finito. Ao historiador compete o estudo daforma de interagir desse homem com a natureza e com os outroshomens. Ao perguntar: O quê? Quando? Por quê? Como? Para quê? Onde?sobre o período histórico daquele homem (ou sociedade) abordado, o historiadorvai entendendo melhor o passado e o seu presente. E que, a partir das suasobservações e conclusões, possam apontar diretrizes, planejar melhor o futuro.São por causas dessas – e de outras perguntas ou interesses – que a História é,constantemente reescrita, reelaborada. Isso, porque cada época, cada sociedadehistórica tem uma preocupação e questionamentos que a diferem de suas

antecessoras.Ao estudar a História, você vai adquirindo consciência da existência de forçastransformadoras e dinâmicas dentro das sociedades. São forças que impedemuma sociedade de ser imutável ("Desde que o mundo é mundo, as coisas sempreforam assim e sempre serão". Lembra-se?). Você verá que tudo setransforma e tudo pode mudar. Seja no plano pessoal ou no coletivo, aspessoas estão sempre buscando a felicidade, a segurança e o bem estar.É bom você saber que a História não é algo perfeito, pronto e acabado. Elaé produto de um processo que está sempre em desenvolvimento, emconstrução. É dinâmica! Está, constantemente, sendo reelaborada.

Enfim, História é uma ciência que tem preocupação com o homem, com oseu trabalho, com a sua maneira de viver, com o seu relacionamentocom os outros homens e com a natureza. Sempre objetivandocompreender melhor o presente. É como disse Carlos Drummond de Andrade"O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vidapresente." A História é a ação transformadora dos homens em seu espaço social,em seu tempo.Ao ter consciência histórica, consciência da dinâmica social, você será mais umcapacitado a procurar entender o seu tempo, a sua época. Você terá maiscondições de entender e participar das transformações da sua sociedade. Dabusca de um mundo melhor e mais justo.

Notas:

(1) A aldeia global, a globalização, se faz muito presente e forte na atualidade. Graças àpresença da imprensa, seja ela jornal, TV ou rádio e mesmo da internet, faz com querapidamente um acontecimento que ocorra em qualquer ponto do planeta, esteja emsua casa, ao vivo, no mesmo instante em que está se desenrolando.(2) O termo utopia pode ser entendido como uma situação ideal desejada e que sebusca alcançar. É como algo que no momento se apresenta como irrealizável, mas queos objetivos visam tornar um desejo em algo concreto.

Referências:

BORGES, Vavy Pacheco. O que é História. 11.ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.

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Disponível em: http://www.ailton.pro.br/textos_pra_que_serve_historia.htm . acesso em

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