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PRESENÇA REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Set.-N° 13, Vol II, 1998. UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA - UNIR

PRESENÇA · Para uma melhor compreensão do ... independentemente de origem étnica e social", ... eximindo uma vez mais a escola da responsabilidade pelo fracasso escolar ao

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA - UNIR

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIAUNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIAUNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIAUNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

C E N T R O D O I M A G I N Á R I O S O C I A L

LABORATÓRIO DE GEOGRAFIA HUMANA E PLANEJAMENTO AMBIENTAL

PRESENÇA PRESENÇA PRESENÇA PRESENÇA ---- ISSN 1413ISSN 1413ISSN 1413ISSN 1413----6902690269026902

Ano V n° 11 – Mar. – 1998 – Publicação Trimestral

Revista de Educação, Cultura e Meio Ambiente

APROVADO PELO CONSEPE/UFRO RESOLUÇÃO N° 0122/1994

Editor:

JOSUÉ COSTA

CONSELHO EDITORIAL:

Sílvio Sanches Gamboa Nídia Nacib Pontuschka

UNICAMP USP

Miguel Nenevé Mário Alberto Cozzuol

UFRO UFRO

Clodomir Santos de Morais Arneide Badeira Cemin

UFRO UFRO

As matérias encaminhadas deverão ter entre três e quinze laudas (tamanho A4), espaço 1.0, fonte arial 12, em

disquete 3 ½ pol., formatados em “Word for Windows”. Os trabalhos deverão conter a data de elaboração e o

endereço completo do autor.

PRESENÇA, Revista de Educação, Cultura e Meio Ambiente. Porto Velho, Fundação Universidade Federal de Rondônia. V.1, 1993.

Trimestral 1. Educação - Periódico 2. Meio ambiente - Periódico CDU 37(05)

Foto: Lavagem de Louça - Beradão, Rondônia - Josué da Costa

Leiaute e Diagramação: Sheila Castro dos Santos

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SUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIO

EDITORIAL.......................................................................................................04

REFLEXÕES SOBRE O FRACASSO ESCOLAR.............................................05 LUÍS ALBERTO LOURENÇO DE MATOS

MITO E LUGAR - PARTE V.............................................................................13 JOSUÉ COSTA* COLONIZAÇÃO, TRABALHO E NATUREZA...............................................21 JANUÁRIO AMARAL* OS NARRADORES DA PRAÇA DA REPÚBLICA E DA CIDADE DAS LEIS.....................................................................................................................24 VALDEMIR MIOTELLO

DIFERENCIAÇÃO CULTURAL E CONFLITO.............................................28 CARLOS CORRÊA TEIXEIRA UMA ABORDAGEM JURÍDICA DOS PRINCÍPIOS SOCIAIS DA VIOLÊNCIA.......................................................................................................44 ANTÔNIO GUIMARÃES BRITO* REGIÃO E HISTÓRIA, UM PROBLEMA DE CONCEITO: O CASO DA COLONIZAÇÃO DO MADEIRA DURANTE O SÉCULO XIX.....................50 DANTE RIBEIRO DA FONSECA

O PROCESSO DE GLOBALIZAÇÃO E SUAS IMPLICAÇÕES NA EDUCAÇÃO........................................................................................................65 JOSÉ MARIA LEITE BOTELHO* O COMÉRCIO E AS ROTAS FLUVIAIS NA SOCIEDADE GUAPOREANA. COLONIAL.........................................................................................................78 MARCO ANTÔNIO DOMINGUES TEIXEIRA FUNÇÕES DA LINGUAGEM: UMA REAVALIAÇÃO DAS IDÉIAS DE ROMAN JAKOBSON.........................................................................................93 CELSO FERRAREZI JUNIOR

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EDITORIAL

A Revista Presença em seu 13º número reafirma o compromisso com a liberdade criativa e sua conseqüente exposição à crítica científica e o incentivo à divulgação do conhecimento pensado e produzido no seio acadêmico, advindo, especialmente, da atividade de pesquisa.

A Universidade brasileira passa por sérios problemas. Os seus professores são desvalorizados, instalações insuficientes, laboratórios sucateados, bolsas reduzidas e poucas perspectivas de fomento. Na UFRO, uma universidade nova, que busca suas características próprias, não apresenta um cenário diferente. É preciso caminhar. Buscar novos caminhos é preciso.

Este número conta com dez artigos que expressam absoluta coerência com os objetivos propostos pelo periódico desde sua concepção, uma vez que abordam temas instigantes ao pensamento social brasileiro: das relações homem - ambiente - História aos elementos teóricos que contr ibuem para perceber o ser humano em suas habil idades para expressar-se desde as relações educativas aos preceitos jurídicos , permitindo reentrâncias no ambiente desafiador da interdisciplinaridade.

A Comissão Editorial.

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REFLEXÕES SOBRE O FRACASSO REFLEXÕES SOBRE O FRACASSO REFLEXÕES SOBRE O FRACASSO REFLEXÕES SOBRE O FRACASSO ESCOLARESCOLARESCOLARESCOLAR

Luís Alberto Lourenço de MatosLuís Alberto Lourenço de MatosLuís Alberto Lourenço de MatosLuís Alberto Lourenço de Matos****

Resumo : O fracasso escolar tem sido objeto de muitos estudos há muito tempo e, apesar dos avanços na busca da compreensão do mesmo, ainda há um longo caminho a ser trilhado até que se possa efetivamente reverter a situação que assola as escolas públicas. Para uma melhor compreensão do fracasso escolar e das dificuldades de aprendizagem torna-se necessária uma revisão histórica acerca dos mesmos. O fracasso escolar tem sido definido "como uma resposta insuficiente do aluno a uma exigência ou demanda da escola" (Weiss, apud Almeida e colaboradores, 1995).

Palavras – Chave : Aprendizagem, Compreensão, Escolas, Estudos e Fracasso.

Abstract : School failure has been the object of many studies long ago and, despite advances in search of understanding, there is still a long way to be followed until they can effectively reverse the situation that raged in the public schools. For a better understanding of school failure and of the difficulties of learning becomes historical review about them. School failure "has been defined as an insufficient response to a student or school demand requirement" (Weiss, apud Almeida and collaborators, 1995).

Keyword : Learning, Understanding, Schools, Studies and failure.

INTRODUÇÃO

O fracasso escolar tem sido objeto de muitos estudos há muito tempo e, apesar dos

avanços na busca da compreensão do mesmo, ainda há um longo caminho a ser trilhado até

que se possa efetivamente reverter a situação que assola as escolas públicas.

Para uma melhor compreensão do fracasso escolar e das dificuldades de

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aprendizagem torna-se necessária uma revisão histórica acerca dos mesmos.

O fracasso escolar tem sido definido "como uma resposta insuficiente do aluno a

uma exigência ou demanda da escola" (Weiss, apud Almeida e colaboradores,

1995). A própria definição já traz em si a concepção de que o único protagonista desse

fracasso é o aluno.

A análise da repetência e da exclusão escolar verificados no Brasil demonstra a

necessidade de aprofundar os estudos e, principalmente, trazer à tona os aspectos

ideológicos subjacentes às concepções sobre o fracasso escolar e às dificuldades de

aprendizagem, além de atentarmos para as condições institucionais e pedagógicas

inerentes à prática educativa.

A partir do período republicano assiste-se a uma intensificação do ideário liberal e as

suas idéias irão se fizer presente na Educação, principalmente através do movimento da

Escola Nova. A ótica da análise do fracasso escolar está centrada nos aspectos extra-

escolares, principalmente no aluno e na família. Segundo Almeida e colaboradores (1995,

p.119), "o discurso do Estado liberal individualiza as desigualdades e diferenças

estabelecendo, assim, uma inversão: o que seria desigualdade social passa, então, a ser

desigualdade pessoal". A contrapartida científica do ideário político liberal é representada

pela psicologia das diferenças individuais (Psicologia Diferencial e Psicometria), que terá

como preocupação a mensuração dessas diferenças, uma vez que se postula que os

alunos diferem entre si quanto à capacidade para aprender, cabendo à psicologia e ao

sistema educacional separar o joio do trigo, o ruim do bom, o incapaz do capaz. Segundo

Patto (1996, p.63), a "pedagogia nova e a psicologia científica nasceram imbuídas do

espírito liberal e propuseram-se, desde o início, a identificar e promover os mais

capazes, independentemente de origem étnica e social", o que era praticamente impossível

dada a seletividade social que operava na escola.

Portanto, de acordo com essa concepção, o fracasso escolar é explicado pela

"meritocracia", ou seja, o sucesso depende única e exclusivamente do aluno, sendo o

mesmo "livre" para buscar o sucesso ou o fracasso.

Nesta mesma linha a "teoria do dom" tenta justificar as causas do fracasso escolar nas

características individuais do aluno (Souza, 1994). Cada um de nós nasceríamos com os

nossos dons e habilidades e, o fracasso decorrente da incapacidade da criança em

apresentar as c a r a c t e r í s t i c a s n e c e s s á r i a s ao bom rendimento escolar. De

acordo com Souza (1994, p. 126):

As influências dessa teoria para a prática escolar possibilitaram uma reorganização do pedagógico a t r a v é s d a d i v i s ã o d a s crianças em grupos homogêneos, a

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seleção entre os que aprendem com facilidade e o s q u e ap r esen t a m d i f i cu l d a d es , c o m o s en ca mi n h am en t o s d o s menos aptos para o atendimento psicológico e pedagógico .

Conv ivendo com as idéias l iberais e posteriormente incorporadas, as

teorias racis tas propugnavam a inferioridade racial do não-branco,

principalmente do negro e do mestiço, cabendo ao cientificismo dar um caráter de

credibilidade a estas teorias.

Nos anos 70 assiste-se a uma mudança na explicação do fracasso escolar, da

ót ica b io lógica para a cul tural , in f luenc iado pelas idé ias produzidas nos

Estados Unidos nos anos 60. A Teoria da Carência ou Privação Cultural

procurava explicar as desigualdades educacionais pelas diferenças de ambiente cultural

entre as crianças dos diversos segmentos sócio-econômicos.

Esta teoria acabou sendo dividida em duas: a teoria do déficit ou defic iência

e a teoria da diferença, sendo que a segunda acabou subjugada pela primeira. A

primeira formulação (déficit ou deficiência) desta teoria postula que a pobreza do

ambiente em que v ivem as classes baixas gera defic iênc ias no desenvolvimento

psicológico da cria n ça (motoras, perceptivas, afetivas, emoc ionais, l inguagem,

cognit ivas etc.), sendo estas causas de suas dificuldades de aprendizagem e de

adaptação à escola. A pobreza de estímulos a que estariam sujeitos em seu ambiente

desprivilegiado dificultaria o seu ingresso no sistema educacional e também a sua

manutenção. A segunda formulação (diferença) propõe que em virtude de uma

predominância de valores e padrões de classes sociais privilegiadas, em detrimento dos

valores e padrões de classes sociais privadas psicossocialmente, acabaria resultando

numa cultura diferente, que acabaria sendo marginalizada pelas instituições como

um todo e principalmente pela escola. Nesta perspectiva a escola seria inadequada e

despreparada para receber essa criança que vem de e com uma cultura diferente. Quando

se faz uma análise mais profunda destas duas formulações, percebe-se, na verdade, que

não há diferenças significativas entre ambas, uma vez que ao se falar de culturas

diferentes acaba-se falando das condições ambientais propiciadoras das deficiências

psíquicas das crianças.

As diferenças anteriormente consideradas pelas teorias racistas (físicas ou

genéticas) deram lugar às diferenças cultural e psicológica ou às deficiências cultural e

psicológica, eximindo uma vez mais a escola da responsabilidade pelo fracasso escolar ao

culpabilizar o meio sócio-cultural da família e da criança.

Segundo Almeida e colaboradores (1995, p. 117), justificar o fracasso escolar pela

deficiência, "é mais uma mística ideológica que mascara e omite, no interior da escola,

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as relações sócio-histórico-culturais da vida concreta dos indivíduos e de seu grupo

familiar".

Pela influência da teoria da carência ou privação cultural, o Estado liberal criou os

programas de educação compensatória, onde a escola passou a ocupar o lugar da

redentora, que levaria aos pobres a cura de suas deficiências psicológicas e culturais

responsáveis pelo lugar que ocupam na estrutura social (Patto, 1996). Segundo Souza

(1994), o objetivo dos Programas de Educação Compensatória era adequar as

crianças advindas de famílias pobres às demandas da escola, buscando suprir os

elementos culturais ausentes nas mesmas, desenvolvendo hábitos de pensamento,

habilidades, estilos de linguagem necessários ao sucesso na escola pública.

E importante destacar que o discurso pedagógico subjacente à adequação

da escola às crianças pobres, concentrou-se unicamente nos aspectos pedagógicos, sem

fazer referência ao sistema educacional e aos aspectos ideológicos que estariam

envolvidos.

Nos anos 70 também se fez presente no meio educacional à teoria do sistema

de ensino de Pierre Bourdieu e J.C. Passeron, que levaram às discussões sobre o

papel da escola numa sociedade de classes, sendo esta percebida como instituição

social na qual se pratica a dominação cultural, isto é, a escola veicularia

conteúdos impositivos de uma classe social dominante para a manutenção de

seus privilégios. No entanto, devido as distorções conceituais dessa concepção

crítico-reprodutivista do papel da escola na sociedade de classes a mesma acabou

ficando mais no nível teórico do que propriamente no domínio da pesquisa do fracasso

escolar.

Mais recentemente, através da Psicologia Institucional, a psicanálise adentra

a escola, passando a ser vista como uma instituição social dentro de uma sociedade

capitalista e que exerce um papel. E inegável os avanços que propiciou, sendo o

objetivo do psicólogo no campo institucional "um objetivo de psicohigiene: conseguir

a melhor organização e as condições que tendem a promover saúde e bem-estar dos

integrantes da instituição" (Eleger, 1984, p.43). No entanto, é necessário salientar

que apesar da ampliação da leitura individual para a institucional, o modelo adotado

(psicanalítico) é individual, a partir do momento que a preocupação irá centrar-se

nas ansiedades e defesas que estão dificultando a realização e o enriquecimento da

tarefa, isto é, as ansiedades e defesas que estão dificultando o sucesso escolar.

Sara Paín (1986) no livro "Diagnóstico e tratamento dos problemas de

a pren d i za g e m" a borda as pe r tu rbaç ões da a pre nd i za ge m, i s t o é , a

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patologia da aprendizagem que pode ser entendida de duas formas: num sentido

mais amplo ou num sentido mais restrito. Em sua primeira forma, a perturbação de

aprendizagem seria resultante de uma disfunção intelectual, envolvendo,

provavelmente, uma alteração do sistema nervoso central.

A segunda forma se caracterizaria por um pequeno desvio na capacidade normal de

aprender e, segundo a autora, seria algo "aceitável” e que "responde às expectativas

relativas a um sujeito que aprende" (Paia. 1985. p.27). Nesta concepção o problema de

aprendizagem pode ser considerado como um sintoma, isto é, o não-aprender pode ser visto

como uma situação temporária, ou seja, uma resposta que o indivíduo encontra internamente

e, talvez a única, para atender às demandas externas, visando-se em última instância uma

integração ao meio. Esta perturbação da aprendizagem - o não-aprender - pode estar

cumprindo uma função positiva, conforme demonstram Paín (1985) e Fernández (1990),

sendo uma decorrência da tentativa de reequilibração do indivíduo. Desta maneira, o não-

aprender e o aprender devem ser vistos como funções integradoras. De acordo com este

modelo clínico - psicanálise - a compreensão da perturbação da aprendizagem deve

englobar o seu significado latente e a sua função na dinâmica psíquica do indivíduo.

Para Paín (1985), há quatro fatores fundamentais que necessitam ser considerados

no diagnóstico de um problema de aprendizagem: fatores orgânicos, específicos,

psicógenos e ambientais.

Os trabalhos da psicopedagoga argentina - Alicia Fernández (1990, p.39)-

demonstram que,

Não existe nem uma única causa, nem situações determinantes do problema de aprendizagem. Não o encontraremos nem no orgânico, nem nos quadros psiquiátricos, nem nas etapas da evolução psicossexual, nem na estrutura da inteligência. O que tentamos encontrar é a relação particular do sujeito com o conhecimento e o significado do aprender.

Para ela, o fracasso escolar pode ser compreendido sob duas ordens de causas:

externas à estrutura familiar e individual do que fracassa em aprender e internas à estrutura

familiar e individual. No primeiro caso a autora denomina "problema de aprendizagem

reativo" e, no segundo, "problema de aprendizagem-sintoma ou inibição" (Fernández, 1990).

Segundo esta, o problema de aprendizagem reativo "afeta o aprender do sujeito em

suas manifestações, sem chegar a atrapar a inteligência: geralmente surge a partir do

choque entre o aprendente e a instituição educativa que funciona expulsivamente"

(Fernández, 1990, p.82). Desse modo, o fracasso escolar é conseqüência de uma ação

educativa inadequada por parte da instituição educativa e a intervenção do

psicopedagogo deveria ser voltada para os aspectos ideológicos, métodos de ensino,

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linguagem e vínculo professor-aluno através do estabelecimento de ações preventivas nas

escolas.

O problema de aprendizagem-sintoma ou inibição afeta "a dinâmica de articulação entre os

níveis de inteligência, o desejo, o organismo e o corpo, redundando em um aprisionamento

da inteligência e da corporeidade por parte da estrutura simbólica inconsciente" (Fernández,

1990, p.82). Portanto, será necessária uma intervenção psicopedagógica especializada

voltada para a criança e sua família, buscando-se descobrir a função do sintoma.

De acordo com a autora, o problema de aprendizagem pode-se manifestar de três

formas: sintoma, inibição cognitiva e dificuldade de aprendizagem reativa.

Um aspec to impor tante desta concepção é a relação professor-a luno

no processo de aprendizagem, pois, para que haja aprendizagem é necessária a

existência do ensinante e do aprendente, assim como o estabelecimento de um

vínculo entre ambos.

Paín e Fernández apresentam em comum a crítica ao funcionamento da escola,

cujo funcionamento estaria contribuindo para o surgimento de uma "fábrica de

neuroses". Diante desse contexto o aluno produz um sintoma que é visto e tratado

como uma queixa escolar, sendo necessário, portanto, buscar-se uma explicação

para a queixa apresentada e, geralmente, esta explicação será buscada na criança e

na dinâmica familiar. Percebe-se uma ambiguidade no discurso, ao observarmos

que há uma crítica à escola, porém, ainda se fala em adaptação e desadaptação.

Bleger, Paín e Fernández realizam a lei tura dos problemas de

aprendizagem a partir da psicanálise, principalmente através do inconsciente, onde a

escola é vista apenas como pano de fundo, não sendo levados em

consideração aspectos fundamentais do seu funcionamento, podendo-se falar

num certo reducionismo da proposta destes autores.

Ezpeleta e Rockwell (1986), preocupadas com a busca de um maior

conhecimento da escola passaram a dar ênfase à "positividade" da escola, passando a vê-

la em si mesma, aquilo que existe na escola. Partem da idéia de construção social

da escola, onde a escola é vista sempre na sua versão local e particular, ou

segundo, as autoras, "a necessidade de olhar com particular interesse o movimento

social a partir de situações e dos sujeitos que realizam anonimamente a história" (p. 11).

Utilizando a metodologia de "analisar a existência cotidiana atual da escola

como história acumulada e buscar, no presente, os elementos estatais e civis com os

quais a escola se construiu" (p. 13), partem da história não-documentada. O

referencial teórico adotado para compreender a vida cotidiana foi o trabalho de

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Agnes Heller, onde a escola é reconstruída a partir do constitutivo histórico de sua

realidade cotidiana, a partir dos sujeitos individuais que vivenciam diariamente a

instituição escolar.

Após a revisão de algumas concepções sobre o fracasso escolar, observa-se que

apesar dos avanços registrados, há muito para se fazer.

Segundo Patto (1996), ainda hoje, três afirmações podem ser

freqüentemente encontradas.

1. "As dificuldades de aprendizagem escolar da criança pobre decorrem de suas

condições de vida" (p. 121). Esta afirmação remete-nos aos anos 70, quando da circulação

no meio educacional brasileiro da teoria da carência cultural na sua versão da teoria da

deficiência. Postula-se que a pobreza material produz uma pobreza psíquica, física e

cultural, sendo estas pobrezas as responsáveis pela incapacidade de aprendizagem da

criança. Esse tipo de concepção traz cm seu bojo uma forte carga de preconceito em relação à

criança pobre.

2. "A escola pública é uma escola adequada às crianças de classe média e o professor

tende a agir em sala de aula, tendo em mente um aluno ideal" (p. 123). Uma vez mais a teoria

da carência cultural se faz presente agora na sua versão da diferença. Parte-se do ponto de

vista que a escola é concebida para um aluno de classe média e que a mesma, incluindo-se

o professor não está preparada para receber e ensinar um aluno que não atenda esse perfil,

ou seja, haveria um grande distanciamento entre a escola e a sua clientela concreta.

Assiste-se aqui um processo de culpabilização do professor por desconhecer os padrões

culturais da criança pobre. A solução a ser implantada para a resolução desse distanciamento

é a criação de escolas especiais para as crianças de classes populares e, que certamente

serão menos exigentes, uma vez que esta clientela é vista como menos capaz. Este tipo de

solução só vem a criar uma maior divisão de classes e acentuar o caráter preconceituoso para

com as crianças das classes populares.

3. "Os professores não entendem ou discriminam seus alunos de classe baixa por terem

pouca sensibilidade e grande falta de conhecimento a respeito dos padrões culturais dos alunos

pobres em função de sua condição de classe média" (p. 125). Esta afirmação faz pressupor a

existência sistematizada e científica de que há uni grande conhecimento a respeito das

crianças das classes populares, o que, na prática, mostra-se improcedente. E necessário

lembrar também que o forte preconceito existente certamente dificulta um maior

conhecimento da realidade dessas crianças, o que torna mais difícil resolver tal

desconhecimento.

Do exposto acima se torna fundamental e urgente que essas concepções

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preconceituosas a respeito do fracasso escolar sejam revistas, deslocando-se a visão para o

contexto onde as dificuldades de aprendizagem são efetivamente produzidas (fatores intra-

escolares), para a inadequação da escola em função de sua má qualidade, reflexão sobre os

processos e práticas educativas que se desenvolvem na instituição escolar, as relações

cotidianas que se estabelecem entre as pessoas nas escolas, principalmente as relações

professor-aluno as relações hierárquicas de poder, a burocratização do trabalho pedagógico

e, que, geralmente, se apresenta estanque dos outros contextos, o desconhecimento dos

padrões culturais das crianças das classes populares e a política educacional vigente. Não

se pretende, no entanto, negar os fatores externos à escola na produção do fracasso

escolar, mas questionar idéias que se cristalizaram na explicação do mesmo. Como diz

Quijano, apud Patto (1996), “as idéias são prisões duradouras, mas não precisamos

permanecer nelas para sempre”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA et al. Concepções e práticas de psicólogos escolares acerca das dificuldades de aprendizagem. Psicologia: Teoria e Pesquisa. Brasília, v. 11, n.2, maio - ago, p.117-134, 1995. BLEGER, J. Psicohigiene e psicologia institucional. Trad. Emília de Oliveira Diehl. Porto Alegre, Artes Médicas, 1984. EZPELETA, J. & ROCKWELL, E. Pesquisa participante. Trad. Francisco Salatiel de Alencar Barbosa. São Paulo, Cortez, Autores Associados, 1986. FERNÁNDEZ, A. A inteligência aprisionada: abordagem psicopedagógica clínica da criança e sua família. Trad. Iara Rodrigues, Porto Alegre, Artes Médicas, 1990. PAIN, S. Diagnóstico e tratamento dos problemas de aprendizagem. Trad. Ana Maria Neto Machado. Porto Alegre, Artes Médicas, 1986. PATTO, M. H. S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo, T. A. Queiroz, 1996. SOUZA, M. P. R. et al. A questão do rendimento escolar: mitos e preconceitos. In: CONCEIÇÃO, J. A. N. Saúde escolar: a criança, a vida e a escola. Sarvier, 1994.

*Luís Alberto Lourenço de Matos *Professor do Depto de Psicologia / UNIR, mestrando em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo/USP.

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MITO E LUGAR MITO E LUGAR MITO E LUGAR MITO E LUGAR ---- PARTE V PARTE V PARTE V PARTE V

Josué Costa *Josué Costa *Josué Costa *Josué Costa *

Resumo: As manifestações do universo da mata que são representadas através do curupira, mãe da seringueira, tincuã o pássaro invisível, os macacos prego e barrigudo, os cipós titica e ambé e outras. Como exemplo da riqueza deste processo de codif icação, demonstraremos algumas das representações simbólicas colhidas em campo. Uma das mais interessantes é a do curupira, caboclinho da mata, indivíduo pequeno com cabelos de fogo, pés virados para trás e montado em um porco selvagem. Esse personagem é o protetor das caças, não admite desperdícios e agressões aos animais, ensina ao homem alguns dos segredos da mata. Palavras – Chave: Animais, Universo, Mata, Selvagem, Simbólicas, Riqueza.

Abstract : There are also manifestations of the universe of woods that are represented by curupira, mother of rubber tappers, tincuã invisible bird, the monkeys and potbellied, tactic and ambé vines and others. As an example of the wealth of this encoding process, we'll demonstrate some symbolic representations of harvested in field. One of the most interesting is the curupira, caboclinho da mata, little guy with hair, feet facing backwards and mounted on a wild pig. This character is the protector of the fighters, you can't afford to waste and damage to animals, teaches man to some of the secrets of the forest.

Keyword: Animals, Universe, Forest, wilderness, symbolic Wealth.

A Ma t a

Há, ainda, as manifestações do universo da mata que são representadas

através do curupira, mãe da seringueira, tincuã o pássaro invisível, os macacos prego

e barrigudo, os cipós titica e ambé e outras. Como exemplo da riqueza deste processo de

codif icação, demonstraremos algumas das representações simbólicas colhidas

em campo. Uma das mais interessantes é a do curupira, caboclinho da mata,

indivíduo pequeno com cabelos de fogo, pés virados para trás e montado em um

porco selvagem. Esse personagem é o protetor das caças, não admite desperdícios e

agressões aos animais, ensina ao homem alguns dos segredos da mata.

Relata um ex-seringueiro que certo dia foi caçar para ter o alimento da semana,

para ele e a esposa. Então, saindo para caçar avistou no alto de uma árvore dois

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macacos grandes. Somente um era o suficiente para a alimentação da família. Atirou e

acertou o primeiro, preparou a arma e derrubou o segundo macaco, colocou os dois

animais no jamaxim, cesto tecido com cipó, e quando quis voltar, não encontrou mais o

caminho. Andou por algumas horas e vendo que realmente estava perdido, retornou ao

local onde havia abatido os animais e colocou um no tronco da árvore em que se

encontravam. Voltou a caminhar e só saiu da mata dois dias depois porque sua esposa

pediu para um amigo procurá-lo e o encontrou muito próximo das estradas de seringa

onde sempre trabalhava. Indagado como havia se perdido em um local em que nasceu e

sempre viveu, o ex-seringueiro respondeu que o curupira o havia deixado "doido", e que

a partir de então nunca mais teve sorte para a caça, a pesca e a seringa. O curupira o

havia castigado e ele era vítima da panema.

A transgressão de um código simples que é não matar além do que se precisa,

evitando o desperdício para não acabarem as espécies, provocou um conflito interno

no indivíduo anulando todos os referenciais que o mesmo tinha sobre a mata, que é o

seu espaço conhecido. Esse é um dos aspectos da atuação do curupira. Entretanto, há o

depoimento de um agricultor que quando chegou ao Cuniã, procurou fazer urna roça

de mandioca. Para isso, preparou as manivas (caule da mandioca pelo qual é feito o

plantio), fez as covas, e começou a enterrar as manivas em uma posição. Quando

terminou, as manivas encontravam-se todas em outra posição. Ele voltava e colocava

novamente as manivas na posição que queria, e o resultado era o mesmo. O agricultor

atribuiu esse fato às "marmotas do curupira". Perguntado sobre o que ele fez, disse

que deixou como o curupira queria, e o resultado da produção foi melhor. Passou

então a fazer o plantio da maniva de outra maneira. À maneira do curupira.

O relato de um agricultor, que ao sair para caçar matou um macaco. Mudou o

cartucho da espingarda e apontou-a para outro. Ficou apontando e pensando se atirava ou

não, sabia que não precisava de mais. Resolveu não atirar. Quando baixou a espingarda,

estava de frente com a onça. Atirou no rumo, mas não acertou o animal. O informante afirma

que estava convicto de que atirasse no segundo macaco, não escaparia da onça e que ela

era o curupira disfarçado. O curupira não só castiga, mas ensina o homem a trabalhar, traz

consigo as regras de uso dos recursos da mata obedecendo as características locais. As

manifestações míticas são os meios pelos quais esta população se comunica. O

conhecimento adquirido nas atividades cotidianas cria uma lógica que resolve os seus

problemas imediatos, tendo como resultado ações que as maneiras exteriores àquele meio

têm dificuldades de compreender.

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É o exemplo registrado no depoimento de um agricultor de Araçá que dizia que seu

terreno tinha muitas formigas que cortavam toda a plantação. Ele resolveu o problema

fazendo um “acordo” com as formigas. Nesse acordo, ele se comprometia em fazer um

plantio só para as formigas e elas não cortariam sua plantação. Nas diversas caminhadas

feitas na Mata enumerei as diversas denominações de madeira que fomos encontrando. A

denominação dada pelos moradores incluía o uso que fazia de cada madeira:

Madeira Utilidade Madeira Utilidade

01 cedro Nobre, const. casa, móveis 16 muiratinga Mad. branca, leve, caixarias p/ frutas

02 muiracatiara Nobre, const. casa, móveis 17 itaúba amarela Nobre, canoas, barcos, esteios, dormentes

03 bandarra Laminado, tábuas, caibros, peças

18 itaúba preta Nobre, canoas, barcos, esteios, dormentes

04 cupiúba Nobre, tábuas, móveis madeirame em geral

05 cuiarana Tábuas, peças 19 ipê Mourões, esteios, tabuados, tacos

06 cedrorana Tábuas, peças

07 Angelim Nobre de 2ª, móveis, madeirame

20 roxinho Madeirame em geral

08 Angelim-fava Nobre de 2ª, móveis, madeirame

21 pau d’arco Mourões, esteios

09 faveiro Madeira de 2ª, peças, estacas, vigas, caibros

22 coração de negro Estacas

10 feveiro-ferro Madeira de 2ª 23 cucupira preta Tacos p/ piso, longarina de caminhão

11 copaíba Óleo, móveis, madeirame em geral

25 louro Móveis madeirame

12 copaibarana Madeirame

13 jitó Madeirame 26 jacareúba Madeirame

14 sacaca Madeirame 27 louro pimenta Móveis, madeirame

15 murapiranga Madeirame 28 louro amarelo Móveis, madeirame

29 louro caju Móveis, madeirame 42 acariúba Esteios, postes de luz, estacas p/ pontes

30 caju-açu Madeirame 43 biorana Estacas p/ cerca

31 castanharana Madeirame

32 jacaré Madeirame 44 cedro-mara Móveis, madeirame

33 preciosa Chá, esteios, mourões, estacas

45 pequi Longarina, estacas p/ pontes, frutos

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34 mututi Madeirame 46 pequirana madeirame

35 virola Laminados, madeirame 47 pequiá Estacas p/ ponte, longarina, frutos

36 samaúma Laminado, madeirame 48 pajurá Estacas

37 garapeira Estacas p/ pontes 49 angelim-copaíba Óleo, móveis, madeirame

38 churu Madeirame 50 ingarana Madeirame de 2ª

39 jequitibá-rosa Móveis madeirame 51 ponã Tabuados, madeirame

40 pau-rosa Óleo 52 mulateiro Forro, tábuas, madeirame

41 quariquara Esteios, postes de luz, estacas p/ pontes

53 peroba Móveis e madeirame

54 sucuba madeirame

Os elementos míticos contêm uma ordem de classificação das espécies e os códigos

sociais estabelecidos. Essa classificação contém a lógica que as criou e com isso,

determinados elementos podem pertencer ao reino animal vegetal simultaneamente, como

por exemplo, o “cipó titica” (figura 2) e o “cipó ambé”, utilizados para a confecção de

inúmeros artefatos manipulados cotidianamente. Porém, esses cipós têm sua origem no

reino animal, sendo que o primeiro nasce com a morte de uma formiga preta chamada

“tucandeira” e o segundo, da aranha “caranguejeira”.

Para os moradores, o cipó é do reino animal e os animais que os originam são vegetais

em potencial.

Outro exemplo da simultaneidade dos universos, é quando a vegetação de capim

canarana invade as águas para isolar o acesso dos homens às áreas onde corre a

reprodução de várias espécies de peixes. O capim torna-se um manto espesso e impede a

passagem de canoas e voadeiras.

Esse isolamento é obedecido pelos moradores como maneira de assegurar a

alimentação futura. É então o universo da mata agindo diretamente sobre as águas.

As árvores como as águas possuem protetores, a seringueira possui uma mãe que se

apresenta como uma velhinha de cabelos brancos e rosto enrugado (cheio de barrocas), é

ela quem permite que o seringueiro tire leite ou não:

P: e a mãe da seringueira? F: a mãe da seringueira é uma velhinha cheia de barroca. P: o que é barroca? F: a cara engilhada, o rosto engilhado tem dia que ela sai batendo as canecas na frente e o cara nesse dia não tira leite não, eu cansei de cortar e ouvir o caboco batendo assim, tau, tau, tau... era ela. P: mas por que ela não quer que tire leite? F: ela não quer, ela é a dona da seringueira e depois de ela não ir com a cara do freguês, é besteira. Vai um tira oito litro, ou nove, ou dez, ou quinze e se eu ir e

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cortar a mesma estrada que o cara cortou, se eu tirar cinco litro, ou seis, tou tirando muito. Ela não foi com a minha cara não, é que o bicho é feio mesmo. Não dá, não tem uni pé de árvore que dé leite, só sôva já tirei muita sova, mas nunca cheguei a tirar lema lata de leite na soveira pode ser na grossura que seja. (trecho de uma conversa com um morador, ex-seringueiro, 1992).

As referências à mãe das seringueiras são sempre remetidas ao tempo dos

antigos, tempo dos primeiros seringueiros, tempo em que se usava uma

machadinha para realizar o corte no caule da seringueira. Esses cortes geralmente

atingiam o caule e deixavam as árvores estéreis. A mãe da seringueira ensina o

homem a realizar o corte correto. É o tempo de amansamento, de aprendizagem e de

aproximação com a seringueira, ou com a mãe da seringueira. É o tempo para o

homem estabelecer contatos, de realizar o ritual de aproximação. A zanga da mãe da

seringueira irá afastá-lo e negar-lhe os conhecimentos e o caminho da fartura, dos

segredos do látex. Esse contato e essa aprendizagem estão registrados nas

narrações míticas.

Seja por "ajuda do curupira", seja por acordos feitos, esse modo de vida demonstra

que tem uni ritmo de atividade que conhece os ciclos da natureza. Há uma procura de

equilíbrio entre as espécies e o Homem. Há um equilíbrio necessário entre o tirar e o

repor. O curupira, a mãe da seringueira, a mãe d'água surgem quando há ameaças de se

instaurar o desequilíbrio. E encontra no mito a linguagem adequada para "lembrar" aos

homens o perigo eminente e relatar suas experiências e os resultados obtidos.

Dessa maneira, esses elementos agem conjuntamente com o universo das águas, a

separação aqui demonstrada é apenas didática. Na medida em que a população atribui

valores, renova e reinterpreta as representações simbólicas, es tão agregando e

codif icando os seus conhecimentos acumulados historicamente e transmitindo-os às

novas gerações, que irão fazer os mesmos processos de reinterpretação.

Tais representações míticas são relevantes para a compreensão da cultura do

homem ribeirinho e da sua organização espacial. A criação do conjunto das representações

míticas está vinculada ao conhecimento espacial que a comunidade possui.

Esse espaço está carregado de significado e marcado pelas r e p re s e n t aç õ e s . As s i m,

o e s p a ç o p a s s a a i nc o r p o ra r a s p e r c e pç õ e s q u e o s moradores vão

adquirindo, vindo a ter um sentido de proximidade. E é a formação do lugar.

Essa categoria espacial é o ponto de referência da existência da

comunidade embutindo em si os seus códigos de localização, classificação,

formulações de regras sociais etc. Em muitos casos, o fato de infringir tais códigos

provoca nos indivíduos uma descodificação que pode ser temporária ou não. A

organização dada ao lugar incorpora essas codificações e o mito as transmite.

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As reflexões contidas neste trabalho estão voltadas a uma abordagem

interdisciplinar, pois a Geografia isoladamente não daria conta dos aspectos

cognitivos, (formas de classificação, e as representações simbólicas da terra), dos

aspectos sociais e políticos que o tema exige. Desta maneira, nos utilizamos para

compreensão dos estudos, das diversas contribuições dadas pela Antropologia na

análise das representações simból icas e cognit ivas, as contr ibuições da

Sociologia, na compreensão dos micros grupos sociais e das relações desses

grupos com a sociedade dominante. Entendemos que para a compreensão desse

estudo todas as ciências sociais são necessárias, não há como fragmentar a

realidade analisada. Para que a Geografia possa compreender como o espaço foi

construído, é imprescindível uma visão de conjunto, nos utilizamos dos

instrumentos de trabalho das outras ciências.

O conflito v ivenciado pelos moradores expôs suas estratégias de

sobrev ivência. Foram buscar das mais diferentes formas, os argumentos

necessários à sua permanência em Cuniã. Construiu-se um discurso de

preservação do meio ambiente. Discurso criado em seu cotidiano. A cultura

indígena é resgatada e ajuda a provar sua temporalidade. Assemelham seu modo de

vida ao dos índios. Procuram demonstrar que todas suas ações desenvolvidas

em defesa do meio ambiente são mais efetivas do que os planejamentos

governamentais.

O tempo de vivência desses moradores com o meio ambiente vai

transformar o espaço, incorporando às suas experiências os experimentos, suas

emoções ficam gravadas na terra, nas árvores, nas águas. Esse espaço deixa de ser

uma mera localização, passa a constituir-se de elementos sagrados. É onde se

encontram com seus antepassados e suas marcas.

O espaço vai sendo construído e transforma-se em algo que oferece o

aconchego, a segurança, a fartura, a bondade. É o lar, é o seu lugar. Repleto de

significados e quando dizem: "aqui é o meu lugar", falam com a intensidade que inclui

todos esses fatores. Com isso, transformam a natureza, humanizando-a.

O pensamento apaziguador é criado, o ritual de convivência é executado e os

acordos com o boto, o curupira, a mãe da seringueira, a mãe d'água são

estabelecidos. Sair desse lugar é abandonar todas essas construções. O SEMA, o

IBAMA, jamais compreenderia que os moradores travaram uma luta, não apenas pela

posse da terra, mas pela manutenção e preservação de seus códigos.

Não estamos falando de uma comunidade harmônica, perfeita e que trava relações

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exemplares com o seu meio ambiente. Como toda comunidade humana, há desavenças em

seu meio. A disputa pela hegemonia política é acirrada como em qualquer outro lugar. O

que se ressalta é que apesar de suas diferenças, esse grupo apresenta o seu modo de vida

e seu projeto de defesa do meio ambiente. Não que esse modo de vida e proposta ambiental

sirva como regra geral, é o modo de vida dessa comunidade, para o seu meio ambiente.

Aprendemos com o exemplo da riqueza cultural que apresentam, da defesa de seus

valores e da organização de seu espaço a partir do imaginário e das histórias de vida, que

em conjunto, vão alicerçar a luta de resistência local.

As narrativas míticas exigem uma lógica interna e uma racionalidade que acrescenta,

adiciona ao conhecimento científico, não o exclui.

Através da derrubada da capela da padroeira eles denunciaram que houve surtos

de doenças que não existiam no local. A lógica desses moradores não é a de que apenas

a reza afasta a doença, mas a profanação de um lugar santo rompeu sua ligação com as

divindades. Com a presença de elementos estranhos ao lugar, quebrou-se o

equilíbrio que eles mantinham. A sacralização do lugar foi profanada. O lugar corre

perigo e seus corpos reagem, adoecem. O tratamento de suas doenças não é feito

somente pelos curadores. Se forem acometidos pela malária ou hepatite, eles procuram o

curador e o hospital na cidade. Eles rezam e tomam o remédio do médico. Um

tratamento não elimina o outro, pelo contrário, se complementam. Na visão desses

moradores, não há incoerência em sua ação, seu pensamento não dicotomiza e nem elimina

o que é diferente.

O mítico denuncia a violência e o padecimento do grupo. Nesse caso, ocorre a

desacralização do lugar onde a padroeira o representava simbolicamente.

Nas modificações das histórias, são utilizados elementos semelhantes. Se forem

estranhos, as histór ias perdem a coerência, os indivíduos não se identificam

com as mesmas. E imprescindível nas histórias ou narrativas a permanência do

senso comum. Esse senso comum é o conhecimento tácito, é o saber que "se fizer de tal

forma" dá certo. Os elementos estranhos incorporados às histórias as fazem perder a

coerência, as pessoas não se identificam com a narrativa. É como se o boto

deixasse de lado sua roupa branca, seu chapéu de folha de embaúba e chegasse com

uma roupa de seda multicolorida e convidasse a donzela para ir assistir a ultima novidade

hollywoodiana no cinema ou a um teatro. Nenhum ribeirinho se reconheceria nessa

história. A presença de elementos estranhos nas narrativas provoca a ruptura. As

histórias de encantamentos aqui relatadas possuem todos os elementos que as tornam

vividas e acreditadas pela população. O que vem reforçar esta condição é o fato de

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que a população irá contar e recontar esse episódio. Alguns irão contá-los com

julgamento de valores, onde está presente na coragem e no heroísmo de uma mãe, a

falta de fé de outra, o reconhecimento da culpa daquele por ter caçado além dos

limites estabelecidos e o conseqüente castigo: a perda dos pontos de referência, o

ficar doido, e o panema.

O sistema de classificação usado por esta cultura não tem o mesmo referencial de

categorias do pensamento científico: a formiga e/ou a aranha vão dar origem a um cipó que

tem um uso fundamental em seu dia-a-dia; o boto pode metamorfosear-se e resolver

problemas de relacionamento familiar ou aliviar os sofrimentos de um paciente, "se todos os

bichinhos têm mãe, por que a água também não teria?"

Ao manter-se a situação do despejo ou não dos moradores eles ficam aguardando o

resultado final para fazerem suas plantações, a reforma de suas casas, ao cuidarem do

quintal, o queimar da capoeira. Esperam que suas vidas possam seguir o seu curso normal,

como as águas do rio.

_______________________

"Mito e Lugar" é o trabalho que apresentamos para a obtenção do título de Mestre em Ciências pela Universidade de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. José William Vesentini, defendido em 1994. As primeiras partes foram publicadas da Revista Presença nos números 09, 10, 11 e 12 Professor Ms. do Depto., De Geografia/UFRO, Pesquisador Associado do Laboratório de Geografia Humana e Planejamento Ambiental, Doutorando em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo.

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COLONIZAÇÃO, TRABALHO COLONIZAÇÃO, TRABALHO COLONIZAÇÃO, TRABALHO COLONIZAÇÃO, TRABALHO E NATUREZAE NATUREZAE NATUREZAE NATUREZA

Januário Amaral *Januário Amaral *Januário Amaral *Januário Amaral *

Resumo: A imposição, nas décadas anteriores, dos órgãos governamentais de induzir os colonos a destruírem a floresta sob o pretexto de transformar Rondônia em um novo cenário de modernização agrícola no estilo do Centro-Sul do País, também deveria ser o principal alicerce de uma sociedade rural próspera. Hoje, acima de tudo, esta natureza é vista como degradada por práticas inadequadas ao ambiente amazônico. E o melhor exemplo dessa trajetória é a mata. Palavras – Chave: Ambiente, Colonos, Sociedade rural, Natureza e mata. Abstract: The imposition, in previous decades, Governments to induce the settlers destroy the forest under the pretext to transform Rondônia in a new agricultural modernization scenario in the style of the Center-South of Brazil, also should be the main foundation for a prosperous rural society. Today, above all, this nature is seen as degraded by inappropriate practices to Amazonian environment. And the best example of this trajectory is the kills.

Keyword : Environment, Settlers, rural Society, Nature and kills.

A imposição, nas décadas anteriores, dos órgãos governamentais de induzir os

colonos a destruírem a floresta sob o pretexto de transformar Rondônia em um novo cenário

de modernização agrícola no estilo do Centro-Sul do País, também deveria ser o principal

alicerce de uma sociedade rural próspera. Hoje, acima de tudo, esta natureza é vista como

degradada por práticas inadequadas ao ambiente amazônico. E o melhor exemplo dessa

trajetória é a mata. De um total de 24.305.926 ha, no Estado de Rondônia, segundo Mapa

de Ação Antrópica - PLANAFORO foram desmatados 4.824.790 ha de floresta, ou seja,

20,4% do território estadual até 1986.

Apontamos três motivos principais para explicar a situação de degradação

em que se encontram as áreas agricultáveis, que antes eram repletas de enormes

castanheiras, seringueiras, e muitas outras espécies extremamente variadas.

Primeiramente, um de procedência econômica (uma relativa "valorização" da terra)

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e, outro, de caráter tecnológico (tecnologia inadequada à disposição dos colonos). E por

último, o de caráter simbólico, mediante o qual o colono se tornaria proprietário de um lote

de terra com a derrubada da floresta (Amaral, 1994).

A modernização da agricultura de Rondônia constitui fator determinante para que se

tenha a melhoria das condições de vida, de trabalho e renda do homem do campo. Pensa-se

numa modernização que parta de uma redistribuição de terras e manutenção das pequenas

propriedades, e que tenha impacto sobre a produção e também sobre a distribuição de renda. TAB.01 - PRODUÇÃO AGRÍCOLA DE RONDÔNIA 1991/1995

Área Produção (t) Área Produção (t) Produto

1991 1995

arroz (casca) 86.651 104.300 148.545 262.436

milho 127.649 218.431 198.785 370.179

feijão 139.254 77.436 123.682 81.007

mandioca 30.097 496.784 41.755 708.605

banana (1.000 19.204 18.085 30.963 25.889

cachos) 43.343 22.781 34.591 15.871

cacau 135.709 149.309 137.739 171.233

café (coco) 2.400 5.000 - -

soja 15.500 24.800 19.091 27.059

algodão FONTE: GCE/IBGE/SEAGRI/EMATER

Logo, a retomada de seu dinamismo e o efetivo início de um processo de

modern ização do se to r agr íco la cons ti tu i o fa to r essenc ia l pa ra o

desenvolvimento sustentado da agricultura. E essa modernização passa pela

recuperação das áreas que hoje não são mais utilizadas, como por exemplo, as

capoeiras.

No PA Vista Alegre, um colono disse: "já ouv i falar numa tal de assistência

técnica, mas nunca fui apresentado para ela. eu acho que isso é invenção de

americano ou de político. não deve ser coisa tento boa, e se não é boa, ainda vai

chegar aqui, não é verdade." Diante desse quadro como é possível recuperar áreas

degradadas, se o suporte técnico do Estado é incompetente para tal atividade? Existe

projeto de assentamento que tem terras produtivas, contudo não tem estradas

v ic inais , ou v ice-versa, e outros , nem estradas nem terras produtivas.

Segundo Amara l e Cos ta S i lva 11991 a ass is tênc ia técn ica é

p ro b l e ma n os p ro j e t os de assen ta me n tos , t oand o c ruc i a l o seu

desenvolvimentos. O uso desse serviço poderia implicar em três elementos fundamentais

para os assentados: o uso r a c i o n a l do solo, buscando uma relação compatível

com o suporte da terra; a produtiv idade do solo e a qualidade da produção.

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Combinando esses elementos , entende-se que haverá melhora nas condições

gerais dos projetos de assentamento. Os colonos trabalham a terra da maneira mais

simples possível; usam apenas enxadas e facões, e, associado a estes

instrumentos, u t i l i z a m a t é c n i c a d a s q u e i m a d a s .

Segundo c o me n t av a um informante da região de Vilhena, “'uma realidade

dos projetos novos do INCRA é que o assentamento de famílias é feito em

terras não produtivas. No projeto Nova Conquista, por exemplo, mais de 60% de

suas terras são arenosas e só produzem abacax i ; essa questão deve ter alguma

importância e deveria ser revista pelo INCRA, antes de assentar os colonos. Afinal

nem só de abacaxi vive o homem”.

Consideramos fundamental o saber que os colonos já possuem; um saber

transmitido de geração em geração de pai para filho. Contudo esse saber precisaria

ser auxiliado pela ciência e pela técnica. Todos poderiam se envolver, por exemplo,

n o " d e s e nv o l v i m e n t o s u s t e n t a d o ” p a r a a r e g i ã o , c o m o e x p l o r a r

racionalmente o lote de terra, discutindo alternativas para o desmatamento, as

queimadas, a erosão. Assim como poderiam aumentar a renda, levando-se em

consideração o princípio da sustentabilidade.

Bibliografia

AMARAL, J. de O., Terra virgem terra prostituta: O processo de colonização em Rondônia. São Paulo, FFLCH/USP. 1994 AMARAL, J. J. O & COSTA SILVA, R. G. Relatório de Campo. UNIR, 1997

*Januário Amaral. Professor do Departamento de Geografia UFRO, Pesquisador-Associado do LABOGEOH-PA, doutorando em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo-USP.

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OS NARRADORES DA PRAÇA DA OS NARRADORES DA PRAÇA DA OS NARRADORES DA PRAÇA DA OS NARRADORES DA PRAÇA DA REPÚBLICA E DA CIDADE DASREPÚBLICA E DA CIDADE DASREPÚBLICA E DA CIDADE DASREPÚBLICA E DA CIDADE DAS LEISLEISLEISLEIS

Valdemir Miotello*Valdemir Miotello*Valdemir Miotello*Valdemir Miotello*

Resumo: Ao tratar de analisar narrativas orais deve-se levar em conta que ela é primitiva, no sentido de que vem junto com a história humana há séculos, tendo sido o gênero que não só acompanhou o homem, como foi a marca da primeira onda civilizatória, quando o gênero humano, ao descobrir os princípios da agricultura, se sedentarizou, formou os pequenos ajuntamentos humanos, organizou normas, leis, fez cultura, memorizou fatos, guardou a história do grupo, e foi constituindo um baú de tradições, lendas, crenças, fatos, rezas, cantos, nomes, lugares, datas, conhecimentos, que fixaram o desenvolvimento humano. Palavras – Chave: Agricultura, Conhecimentos, Narrativas, Tradições e Desenvolvimento. Abstract: Efforts to analyze oral narratives should take into account that it is primitive, in the sense that comes along with human history for centuries, having been the genre that not only accompanied the man, as was the mark of the first wave civilizatória, when the human race, to discover the principles of agriculture, if sedentarizou, formed small gatherings organized human standards, laws, culture, memorized facts, saved the history of the group, and was a treasure chest of traditions, legends, beliefs, facts, prayers, songs, names, places, dates, knowledge, that fixed the human development. Keyword: Agriculture, Knowledge, Narratives, Traditions and Development.

Ao tratar de analisar narrativas orais deve-se levar em conta que ela é primitiva, no

sentido de que vem junto com a história humana há séculos, tendo sido o gênero que não só

acompanhou o homem, como foi a marca da primeira onda civilizatória, quando o gênero

humano, ao descobrir os princípios da agricultura, se sedentarizou, formou os

pequenos ajuntamentos humanos, organizou normas, leis, fez cultura, memorizou

fatos, guardou a história do grupo, e foi constituindo um baú de tradições, lendas,

crenças, fatos, rezas, cantos, nomes, lugares, datas, conhecimentos, que fixaram o

desenvolvimento humano.

Quando a escrita foi inventada e divulgada, ela serviu para recuperar e cristalizar as

narrativas que, manuseadas pela aristocracia justificava seu poder e seu modo de vida,

percorriam as bocas populares e legitimavam o dito e o feito dos dominantes. O caráter

ideológico do mito, das lendas, dos causos, das histórias, das narrativas é fantástico, já

que ele tanto garante a divulgação e a permanência entre as classes populares, que os

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repetem e perpetuam, das idéias que fundamentam o poder dos dominadores, justificando-o,

quanto mantém e arrastam pelos tempos a fora os conteúdos libertadores dos excluídos.

Platão, em A República, discute as condições de transmissão do mito e atribui ao

Estado a legitima aplicação de um dispositivo de vigilância, uma vez que a cidade está

infestada de “fabricantes de narrativas", a começar pelas mães e amas, seguidas pelos

velhos e velhas, tagarelas inesgotáveis, que se debruçam sobre os recém-nascidos, e

reunindo crianças de pouca idade ao seu redor e "derramando em seus ouvidos discursos

sedutores", apresentando ficções faladas, e que "transformam-se em caráter e em

natureza, através do corpo, da voz e do pensamento (Platão, A República, Ill, 377-395).

Ainda segundo ele, cabe aos filósofos modelar os tipos de narrativas que interessam ao

Estado, em conformidade com as leis, para formarem "cidadãos de ouro". Os narradores

ambulantes e os mitólogos vadios não poderiam freqüentar as praças d'A República.

O envelhecido Platão, no entanto, em Leis destrói sua praça inútil e o espaço social

da vigilância do Estado, e convoca o povo para dirigir o rumor, organizar seu curso e fazê-lo

circular por milhares de canais,

"conservando todos os belos discursos que enunciamos e sempre enunciaremos, mas insistindo no essencial: afirmaremos que, aos olhos dos deuses, a vida mais agradável é também a melhor, e assim todos juntos diremos a verdade pura, e melhor do que qualquer outra forma de exprimi-la, persuadiremos aqueles a quem queremos persuadir" (Platão, Leis,Il).

Era a convocação para que o bom rumor irrigasse em profundidade todos os membros

do corpo social e os convencesse com a verdade. E ele reservou aos velhos o papel de

administrar a memória comum e a eles está reservado o lugar social de contador de histórias,

e direcionadas diretamente às crianças. São eles, afinal, que alcançam o tempo mais longe e

estão alheios à vida política, podendo, dessa forma, educar os "incompletos" com narrativas

sedutoras (paramúthia) e com palavras de encantamento (epoidaí), transformando tudo em

divertimento (paidiá), voltadas para a melhor educação (paideía) (Platão. Leis-11. 659).

Marcel Detienne, em seu livro A Invenção da Mitologia, usa do testemunho de Platão

para afirmar que na Grécia há recusa de recorrer à escrita entre os homens que têm mais

poder na cidade. Péricles teria sido o primeiro, num tempo de grandes oradores, a ler um

discurso em público. A escrita, na cidade, era mais para ser vista nos decretos pregados nos

muros que para ser lida. Aos poucos seu uso vai ocupando vários campos de atividade e

se transformando em "memória escrita" que convive com a "memória social", cuja

transmissão continua a se fazer de forma oral e auditiva.

Ao se colocar o problema da manutenção da tradição e da modificação que se

processa na história transmitida oralmente. Detienne reconhece um "equilíbrio dinâmico entre

mudanças e sobrevivência, onde a triagem entre as informações novas e antigas, se

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efetivamente realizada pela memória de cada um, se faz em função e sob o controle da vida

social" (Detienne, 1992:76). Ele relembra o etnólogo Marcel Maus repetindo a seus alunos:

"novo procurem o texto original, porque ele não existe" e afirma que "é no ensaio que ela

(literatura oral) se fabrica, tomando forma a partir do que chamamos as variantes da narrativa

ou as diferentes versões de uma mesma história" (ld.:77), e é no ensaio que a variante

aparece, pois a repetição proporciona a possibilidade da variação, e só é percebida mais

profundamente a partir do fixismo da narrativa ou na escrita ou na gravação.

Ao afirmar que a narrativa tem que sair da boca e ir diretamente ao ouvido, caso

contrário ela estará condenada ao silêncio e ao desaparecimento imediato, Detienne afirma:

"Para poder penetrar e tomar seu lugar na tradição aural, uma narrativa, uma história ou

qualquer obra falada deve ser entendida, isto é, deve ser aceita pela comunidade ou pelo

auditório a que se destina" (Id.:82)

Angel Rama, crítico uruguaio, ao escrever A Cidade das Letras, apresenta esta

diferença pondo de um lado a "cidade real" que abarca a sociedade como um todo, e de outro

lado a "cidade letrada" que contempla seu elenco intelectual, sua classe dirigente.

“Enquanto a cidade letrada atua preferencialmente no campo das significações e inclusive as autonomiza em um sistema, a cidade real trabalha mais comodamente no campo dos significantes e inclusive os afasta dos encadeamentos lógico-gramaticais" (Rama, 1985:52). Ainda apresenta a cidade física que "o visitante percorre até perder-se" e a cidade simbólica "que a ordena e a interpreta, ainda que somente para aqueles espíritos afins, capazes de ler como significações o que não são nada mais que significantes sensíveis para os demais, e, graças a essa leitura, reconstruir a ordem" (Id: 53).

Essas diferentes leituras de uma mesma realidade dada devolviam diferentes

exercícios de poder aos usuários, e não só realizam leituras diferentes, mas necessitavam

delas para manter do mesmo jeito as outras leituras. Era o exercício de velar os olhos e

vendar, ocultar uma forma de ver o real de outro lugar social. Rama também defende que "a

escritura dos letrados é uma sepultura onde é imobilizada, fixada e detida para sempre a

produção oral" (Id: 90), ao mesmo tempo em que ela tem poder para estabelecer a

submissão da multidão.

Lévi-Strauss, já no final de seu Mithologiques IV- L'home nu introduz em sua obra o

conceito de "mitismo" e sugere uma distinção entre os níveis estruturados e estáveis do

mito e os níveis de probabilidade que poderão manifestar uma extrema variabilidade

em função da personalidade dos sucessivos narradores: "As obras individuais são todas

mitos em potencial, mas é sua adoção coletiva que atualiza, se for o caso, seu mitismo"

(Lévi-Strauss, 1971:560). A escuta partilhada é o lugar da fundamentação das

palavras transmitidas e das narrativas conhecidas, que passam pela prova da

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escuta, não importando como distribuam os ditos da tradição.

Quanto à objetivação da obra, na literatura oral ela não é independente do recitante,

pois que ela se apresenta como um potencial de normas e tradições que o narrador deve

atualizar. O dado não é sua obra, mas apenas um corpus literário, um mote criativo, um baú

de tradições recolhidas pelo tempo sobre o qual ele vai trabalhar na sua fala. O narrador não

só é o transportador do passado para o presente deste baú de tradições, mas também o leitor

das realidades novas e atuais que ele pode inserir neste baú, além de selecionar e

organizar todos estes elementos que serão usados nesta sua presente ação e por causa

destes ouvintes.

Paul Zumthor, em A Letra e A Voz, ao se referir aos "intérpretes" medievais os

coloca como letrados, mesmo que nem sempre lessem os textos, recitando-os de forma

decorada:

"tinha antes aprendido de cor o numero dos capítulos que compunham a obra, as grandes l inhas da ação, os nomes dos lugares e dos personagens; depois, recitando-os, acrescentava, condensava, suprimia, sem tocar no essencial da história e empregando a 'linguagem dos livros" (Zumthor, 1987:62).

Independente de sua origem, situação econômica ou sexo, os intérpretes medievais "não

foram, naquele mundo, marginais", mesmo que se vestissem com roupas chamativas ou

excêntricas e se tratassem a si próprios de loucos. Sua presença se dá em todo o espaço

social, da mendicância à corte, da existência errante à propriedade de um feudo, da

recitação de jograis em festas às viagens diplomáticas (Id.:63-67). "Pela garganta de todos

esses homens (...) pronunciava-se tema palavra necessária à manutenção do laço

social, sustentando e nutrindo o imaginário, divulgando e confirmando os mitos" (Id.:67).

Finalmente, o poder real pode estar na palavra, esta "palavra fundadora" de que fala

Zumthor, mas que é continuamente recriada pela voz que vai ocupando seu lugar

social na corte, no quarto das damas, na praça da cidade, na borda dos poços, no pátio das

igrejas, nas casas de família.

Bibliografia:

DETTIENNE, Marcel. A invenção da mitologia. Rio de Janeiro, José Olympio. Brasília, UnB, 1992. LEVI-STRAUSS, Claude. Mithologiques IV: L'homme nu- Paris, Plon. 1971 MIOTELLO, Valdemir. Um mito amazônico em narrativas de roda - repetição e mudança nos processos enunciativos. Dissertação de mestrado, Campinas, UNICAMMP. 1996. PLATAO. Obras completas. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1963. RAMA, Angel. A cidade das letras. São Paulo. Brasiliense. 1985. ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz - a "literatura" medieval. SP, Companhia das Letras. 1993.

*Valdemir Miotello. Professor do Departamento de Filosofia, Antropologia e Sociologia da UFRO.

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DIFERENCIAÇÃO CULTURAL E CONFLITO:DIFERENCIAÇÃO CULTURAL E CONFLITO:DIFERENCIAÇÃO CULTURAL E CONFLITO:DIFERENCIAÇÃO CULTURAL E CONFLITO: A colonização em Rondônia

Carlos Corrêa Teixeira*Carlos Corrêa Teixeira*Carlos Corrêa Teixeira*Carlos Corrêa Teixeira*

Resumo: Retomando os argumentos de outras comunicações, ressalto mais uma vez que a região que corresponde a Amazônia brasileira tem experimentado nestas duas últimas décadas aquilo que pode ser considerado sua transformação mais radical, ou seja, a substituição de urna base econômica fundamentalmente extrativa por outra em que prevalecem novos empreendimentos agrícolas e industriais. Poder-se-ia mesmo dizer que ocorre ali a passagem de uma ordem em que o homem vivia em maior harmonia com a natureza- uma espécie de "economia excedente" - para outra em que domina a lógica da acumulação capitalista. Palavras – Chave: Comunicações, Base Econômica, Radical e Lógica. Abstract: Resuming the arguments of other communications, bounce again that region that corresponds to the Brazilian Amazon has experienced these last two decades what can be considered his most radical transformation, i.e. replacing urna fundamentally economic base extraction by another prevail new agricultural and industrial enterprises. One could even say that occurs there passing an order where the man lived in greater harmony with nature – a sort of "surplus"-economy to another in which dominates the logic of capitalist accumulation. Keyword: Communications, economic base, Radical and logic.

Retomando os argumentos de outras comunicações, ressalto mais uma vez que a

região que corresponde a Amazônia brasileira tem experimentado nestas duas últimas

décadas aquilo que pode ser considerado sua transformação mais radical, ou seja, a

substituição de urna base econômica fundamentalmente extrativa por outra em que

prevalecem novos empreendimentos agrícolas e industriais. Poder-se-ia mesmo dizer que

ocorre ali a passagem de uma ordem em que o homem v ivia em maior harmonia com a

natureza- uma espécie de "economia excedente" - para outra em que domina a lógica

da acumulação capitalista. Num certo sentido essa transformação implica em que o rio e a

floresta vêem enfraquecida a força de sua representação, enquanto a terra como um bem

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produtivo passa a ocupar na mente dos homens um lugar de realizações

incomparáveis. Os efeitos dessa transformação valem dizer, se estendem a todos os campos

da vida social, incluindo a economia, a demografia, a política, a cultura etc.

Contato e conflito

Ao analisar a colonização em Rondônia no início dos anos setenta um autor

observa cone otimismo que estaria ocorrendo ali certa troca de experiências criadas

através do contato entre populações de origens diversas que ocupavam o mesmo espaço no

interior da floresta - os naturais da Amazônia e os colonos vindos do Sul do país. "Junto

aos imigrantes do Sul (o seringueiro) aprende a fazer urna derrubada, tocar uma

lavoura, cozinhar uma carne... (enquanto) o colono do Sul também aprende junto ao

amazonense: vê como aproveitar as árvores e as plantas da floresta, ou como tirar o

leite das seringueiras." Tais considerações, vale salientar, constam da pesquisa que

esse autor faz na região da BR-364 entre 1972 e 1975. Desgraçadamente não demorou

muito para que essa situação se modificasse para pior pois em 1985 quando me dirigi pela

primeira vez a essa mesma área o que vi foi um, quadro desolador de devastação ao lado

de uma situação de conflito generalizado. Em 1989 e início de 1990 estive durante três

meses nessa mesma área - a região de Ariquemes - e constatei que essa situação ainda

prevalece agora agravada pela retomada da exploração dos garimpos.

Ariquemes

A escolha que fiz da região de Ariquemes para a realização de minha pesquisa se deu por

ser ali um lugar privilegiado em que duas situações, a do seringueiro e a do colono,

mostravam-se de forma bastante exemplar. Na verdade eu pude encontrar núcleos de

populações antigas em outras áreas da BR-364, mas Ariquemes era a única que possuía

em seu território um contingente dessa população bem caracterizado, que

sobreviveu à ocupação dos projetos de colonização. Trata-se dos habitantes da Vila

Velha - Antigo Ariquemes - que está situada à margem direita do Rio Jamari.

Comentava-se, aliás, que com o surgimento de novas cidades ao longo da BR-364

não existia mais populações antigas habitando os velhos núcleos originários do

extrativismo. Tais populações teriam desaparecido por completo? Se isso fosse verdade

onde e como estariam vivendo? Eu estava seguro de que encontraria por ali ao menos

alguns seringueiros que pudessem me contar o que havia acontecido. Pois em Vila

Velha, quando lá estive em 1985, encontrei trezentas famílias que de um modo ou de

outro estavam ligadas ao extrativismo da borracha. Este lugar estava, pois ali, bem ao lado

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do novo Ariquemes, este todo habitado por migrante vindo do Sul e Sudeste.

Vila velha

Nas duas viagens recentes que fiz à região - ago out. 89 e jan/fev/90 - pude ver

que o antigo povoado se expandiu, embora a antiga vila ainda se conservasse, com

suas casas feitas de madeira e cobertas com zinco ou palha. A SUCAM - órgão federal de

combate à malária - calcula que em torno da antiga vila existam 533 casas com 2.398

moradores - 500/o a mais que em 1985. Mas se a área da vila for ampliada incluindo-se

nela todo o bairro Marechal Rondon tem-se mais... 277 casas com 1.246 moradores,

perfazendo assim um total de 3.644 moradores.

Pouca coisa mudou na vila desde a época em que estive lá pela primeira vez. O

lugar dispõe agora de uma extensão da rede elétrica de Ariquemes, embora ainda não

tenham sido iniciados os serviços de iluminação pública e apenas alguns moradores

tenham feito ligações para o inter ior de suas residências. O abastecimento de

água ainda é feito de modo artesanal - os moradores retiram-na diretamente do rio,

transportando-a até suas casas em latas de cinco galões ou em panelas que acomodam em

suas cabeças.

Durante o tempo em que permaneci em Ariquemes deslocava-me com frequência à

tardinha para organizar minhas anotações e dormir. Procedia desse modo porque queria

aproximar-me mais de seus moradores e tanto quanto possível registrar novos

acontecimentos; mas nada acontecia de novo. As pessoas e a rotina do lugar eram

as mesmas. Todos os dias mulheres e crianças eram atendidos no posto de saúde.

Outras mulheres carregavam trouxas de roupa à cabeça, após terem sido lavadas no rio,

lá mesmo onde tomavam banho. Crianças brincavam em pequenos grupos com carrinhos de

madeira e bonecas de aspecto encardido, enquanto velhos conversavam ou realizavam

dentro de suas casas pequenos serviços. Um ou outro morador chegava de uma

pescaria trazendo alguns peixes - pacu, jatuarana - enquanto outro vendia palmas de

banana numa espécie de quitanda improvisada num canto da casa. Cães vadios circulavam

pelo descampado que limita o quadrilátero em torno do qual se erguem as casas. Lá adiante

eu via passar Eleutério, o único índio sobrevivente que alguém me dizia ser descendente

dos Ariquemes. A vila parecia mesmo ter parado no tempo tal a lentidão que eu sentia

naquelas tardes úmidas e quentes.

Mas eu pude observar que há por parte dos moradores um forte sentimento que os

prende ao lugar. Aliás, eu havia posto isso em dúvida logo que cheguei, pois nesses

quatro anos em que me ausentara pareceu-me que a vila havia sido transformada em

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mais um bairro do novo Ariquemes. Não era assim. Pois aqueles moradores com quem

conversei só fizeram reafirmar esse sentimento de identificação com o lugar, sempre

lembrando que tiveram que lutar para defendê-lo contra as investidas da prefeitura que

insistia em destruí-lo usando até meios violentos, por isso o lugar parecia ser mesmo uma

espécie de refúgio daquela população que ali se juntava numa tentativa quase

desesperada de preservar seu passado. "ali me disse um velho morador - estão fundadas

nossas raízes. O nosso amor (está) dedicado todo naquele bairro; porque foram nossas

coincidências primeiras, de nossos primeiros passos quando chegamos do nordeste".

Vila Velha alinha-se assim a saga do seringueiro; simboliza a tradição; juntamente ali onde o

tempo está, por assim dizer, distendido no seio da nova ordem que dilacera os sentimentos

e espolia a memória.

Aspectos metodológicos

Convém notar desde logo que não estou interessado em, analisar aqui o quadro mais

amplo em que se dá o processo de colonização em Rondônia, nele incluída sua dimensão

econômica. De modo que as ocorrências observadas nesse nível possuem neste trabalho

apenas o valor relativo, pois se destinam a elucidar fenômenos de outra ordem. Assim,

quando recorro, por exemplo, à tentativa de quantificar a produção de borracha do

colono da região do MassanganaAriquemes, torna-se menos relevante o índice que

caracteriza tal produção do que a significação que essa, prática adquire para alguém,

como o colono do Sul, oriundo de urna cultura estranha à essa experiência. O mesmo

pode-se admitir com relação ao seringueiro - que embora mantenha sua atividade

tradicional - dedica-se hoje à produção de leite ou requeijão, além de naturalmente ter que

lidar com a criação de bois e vacas.

De sorte que meu interesse aqui se volta para o esforço de tentar compreender

a dinâmica do contato entre diferentes segmentos da sociedade nacional subordinada a um

enfoque de natureza mais ideológica. O contato entre essas populações estabelecidas

em "áreas de fronteira" compreenderá naturalmente as relações sociais que se dão

entre os diferentes grupos, mas a análise que devo realizar recairá especialmente na

dimensão ideológica dessas relações, ou seja, nas representações e na simbologia que

as acompanham (Cardoso de Oliveira, 1976:14).

A noção de fronteira que pretendo aqui recuperar ajuda-me a compreender, por

outro lado, a natureza do movimento populacional no âmbito da sociedade brasileira e, por

consequência, a própria dinâmica do contato a que me referi. Para tanto a fronteira será

concebida como um lugar essencialmente simbólico para onde se dirigem os homens a

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fim de realizar seus projetos. Portanto, mais do que um mero espaço geográfico. a fronteira

seria por excelência o lugar privilegiado das novas construções sociais quando não se

converte em palco de conflagrações e tragédias. Como assinala Pierre Bourdier a fronteira

não é apenas produto de um ato jurídico de delimitação, mas ela "produz a diferença cultural

do mesmo modo que é produto desta" (1989:115). Ele diz ainda que fenômenos como a

"desertificação" - e conviria lembrar tantos outros semelhantes - estariam assim

submetidas à contribuição de fatores sociais, ao invés de constituirem meras "paisagens",

tão a gosto dos naturalistas (ibidem, pág. 115). Menos ainda, como ocorre em nosso País,

existiram os chamados vazios demográficos, recorrentes no discurso oficial que a pretexto

de realizar projetos destinados a acomodar populações ou a garantir nossa soberania, ao

contrário têm resultado no extermínio ou abandono de populações que de fato os ocupam.

O estudo de contato envolvendo diferentes culturas parece exigir assim emprego de

procedimentos bastante complexos, sobretudo se pretende considerar o sistema cultural

como um todo. "A focalização da cultura como objeto substantivo da investigação - diz

Cardoso de Oliveira - resulta na impossibilidade de estudar o "sistema intercultural" como

urna unidade com um grau relativo de autonomia, pois seria sempre difícil identificar no

exercício da pesquisa um sistema cultural "sincrético" porquanto originário da integração das

duas (ou mais) culturas em conjunção" (1978:84).

A meu ver este problema se agrava quando não ocorre de não estar lidando diretamente

com as chamadas culturas primitivas em contato com os segmentos da sociedade nacional.

Se nesse caso, como assinala o autor, corre-se o risco de fracionar a sociedade nacional

envolvente e a estudar as diferentes comunidades não-indígenas como se estivesse

estudando culturas singulares, mais difíceis se torna estabelecer uma metodologia que dê

conta de explicitar o contato entre segmentos pertencentes à mesma nacionalidade. Afinal,

no caso que temos em vista caberia indagar: o quê de fato constituiria o assim chamado

segmento "migrante" vis a vis os seringueiros? Estaríamos diante de evidências étnicas que

pudessem melhor caracterizá-los? Ora. os assim chamados "colonos do Sul", em sua maioria

descendente de alemães e italianos, como é sabido, provêm de diferentes áreas

geográficas e, culturalmente. são herdeiros de tradições que vieram da Europa no século

XIX, enquanto outros - também numerosos - a exemplo dos mineiros e capixabas, encontram-

se mais arraigados ao universo da assim chamada cultura brasileira. Portanto já nesse ponto

caberia esclarecer de quê colonos está se falando. Mas isso não se torna a meu ver

relevante. Vale dizer que temos que proceder a uma elaboração detalhada de culturas

particulares, o que mais me interessa aqui é observar o impacto que a colonização tem

produzido no âmbito das culturas locais, nelas incluída a do seringueiro. Nesse caso a

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hipótese que tenho em vista apoia-se no pressuposto de que os seringueiros constituem

um segmento relativamente autônomo que através de gerações sucessivas vêm

desenvolvendo no interior da floresta uma experiência mais ou menos comum.

Assim constatamos a mesma dificuldade - já apontada por Cardoso Oliveira - de

tratar essas diferentes culturas como conjuntos globais ou "sistemas sincréticos". Mesmo

assim considero que a contribuição desse autor muito me ajuda a compreender essa

situação particular de diferenciação cultural. "Do mesmo modo - diz ele que, por exemplo,

a sociedade nacional é um sistema social suscetível de ser analisada através de sua

estrutura de classe, a situação de contato (...) pode ser analisada mediante o que denominei

fricção interétnica - o que seria o equivalente lógico do que os sociólogos chamam de luta de

classes." (1978:85). O pressuposto é que via de regra, as relações presentes nessas

situações são acompanhadas de conflitos decorrentes da exploração econômica e do

domínio político que um grupo exerce sobre o outro, ainda que tal processo não se coadune

com o parâmetro das relações de classe. Assim, embora não se trate em nosso caso de

verificar o envolvimento de sociedades indígenas frente a segmentos da sociedade nacional

- situação para a qual aquele autor dirige sua reflexão - sabe-se que a presença maciça de

populações migrantes nas chamadas áreas de fronteira tem criado tantas e tão graves

situações de conflito envolvendo grupos nacionais locais, que em muitos aspectos se

assemelham àquelas em que comunidades indígenas são atingidas. De sorte que,

mesmo reconhecendo-se serem os seringueiros um segmento nacional, o fato de terem

sido encontrados no interior da floresta onde justamente foram instalados os projetos de

colonização, trouxe-lhes tão sérias dificuldades quanto as tiveram as populações

indígenas - ainda mais se consideramos que a antiga estrutura fundiária regional não lhes

reserva quaisquer garantias, expondo-os assim aos interesses da empresa colonizadora.

Como veremos em outro lugar, há por parte dos migrantes um reconhecimento de que o

seringueiro constitui um obstáculo aos seus objetivos, fato este que transparece tanto

ao nível econômico em que, por exemplo, pretende-se privá-lo da posse da terra, como ao

nível ideológico em que certos estereótipos o comparam negativamente ao índio ou o

têm como um ser inferior.

"Esse povo que vem do Sul é querido aqui no Jaru. Agora quem vive aqui, que é filho natural daqui eles desprezam. Faz de conta que não existe. O que vêm de Minas, do Paraná, do Espírito Santo, é querido; têm tudo. E se tiver dinheiro então, aí é que eles (autoridades) gostam mesmo. Agora os daqui, como não têm dinheiro eles desprezam; faz de conta que é bicho do mato, onça, veado, macaco. O que eles fazem é isso. "(E36,18).

Aliás, como tem sido afirmada, a estigmatizarão sempre surge nessas ocasiões como

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um instrumento eficaz no sentido de remover as minorias dos caminhos da competição.

Desta maneira a ocupação que os seringueiros têm feito de um determinado

território há mais de um século acabou assim expondo-os de maneira ostensiva aos olhos

do colono, nas circunstâncias em que se deu o processo de ocupação. Isso talvez já se

constitua numa razão para justificar a necessidade de se estudar o contato que envolve

essas populações nacionais. Esta me parece ser, aliás, uma tarefa teórica que se impõe

para se entender a própria dinâmica da sociedade nacional. Em termos práticos

naturalmente para efeito de análise, eu incluiria num "sistema", de um lado os

seringueiros e do outro os colonos, apesar das diferenciações que possam existir no

interior dessas categorias sociais. Torna-se assim secundário, por exemplo, se as

técnicas produzidas no cultivo do solo foram introduzidas por colonos paranaenses ou

gaúchos, pois o que desejo investigar é em que medida a agricultura como um modo de vida

tem afetado aqueles padrões locais em que se mesclam elementos da tradição sertaneja

nordestina com os que foram adquiridos no convívio com a natureza mais primitiva da

Amazônia.

Em busca dos seringueiros

Depois de esperar alguns dias em Ariquemes consegui enfim transporte e fui até à

linha C-40 do Projeto Marechal Dutra. Para isso utilizei-me na viagem - 40 km de Ariquemes

- de um pequeno veículo adaptado de uma pick-up acionada por um motor da marca

Tobatta, de um cilindro de 11 lota de força. Por andar vagarosamente - cerca de 12 km por

hora - e ser utilizado na roça o pessoal quase como um ser vivo, chamando-o de "jerico" ou

"Jerico-agrico". O seringueiro em cuja casa permaneci alguns dias afirmou que "aquela

invenção" já teria vindo prontinha de Santa Catarina! E apesar de demonstrar certo desdém

por essa inovação ele não deixa de reconhecer sua grande utilidade. Diz assim que quando

o te m par ado e m c asa ta l peça fa z fu nc ionar u m ger ador capa z d e

fo rnecer lu z ou captar água do poço. Observou então que o comprou com o dinheiro

de 10 alqueires de terra que vendeu do seu lote de 42 alqueires. Eu notei assim que tal

"Jerico" se inclui na nova estratégia de sobrevivência que o seringueiro traçara para si

próprio em decorrência da colonização.

Devo designar o seringueiro de quem estou falando. Ele se chama Valdemar

Andrade de Almeida. Tem 42 anos e nasceu ali mesmo na região do antigo seringal São

Sebastião, onde mora até hoje numa casinha de madeira com sua mulher e três filhos.

A gleba de terra na qual possui hoje um lote de 100 ha fazia parte dos antigos

seringais Guarani e São Sebastião e, com a instalação do projeto implantado pelo

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INCRA, sua antiga casa ficou incluída nos limites de outro lote. Esses fatos como verão mais

adiante, só lhe trouxe prejuízos e aborrecimentos, além, de expressar bem as dificuldades

que os seringueiros enfrentam. Hoje Valdemar procura conciliar o trabalho da seringa com o

da agricultura e com sua colaboração, procurei fazer um levantamento das atividades

que desenvolve nessas duas áreas.

Projeto Marechal Dutra - C-40 Gleba no. 34 - Lote nº 33 Valdemar Andrade de

Almeida Produção de Janeiro a Outubro de 1989

Agricultura

PRODUTO PLANTIO PRODUÇÃO Feijão - 80 Kg

Arroz 15 Litros 15 sacos de 60 Kg

Milho 16 Litros 16 sacos de 60 Kg Mandioca 5.000 Covas 160 sacos de 60 Kg

Amendoim 6 Litros 6 sacos de 60 Kg

Café 1.000 pés -

Cana-de-açúcar 100 Covas -

Cacau 50 pés -

Banana 1.000 Covas 600 Cortes

Nota: Vendeu-se uma parte maior da produção de farinha e de banana.

Antes de relacionar a produção de borracha podemos de fato notar que suas

atividades se estendem a outros gêneros, incluindo a criação de aves e animais, bem

como uma produção doméstica de frutas. Indiquemos estas primeiramente e em

seguida os animais e as aves.

FRUTAS QUANT. DE PÉS

Laranja 30

Tangerina 25 Goiaba 10

Beribá 10

Abacate 08

Jaca 08

Cupuaçu 05 Limão 05

Azeitona 03

Pupunha 02 Coco 06 Ingá 03 TOTAL 115

Vale notar que algumas dessas frutas, como o cupuaçu, a pupunha e a Ingá são nativas da

região, mas que o seringueiro planta em seu novo sítio por apreciá-las em seu consumo já

tradicional.

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ANIMAIS QTD. DE CABEÇAS Gado Touros 01 Vacas 03 Novilhos 03 TOTAL 07

Obs.: As vacas produzem em média oito (08) litros de leite por dia. Parte desse leite - como me informou - é empregada para fazer requeijão, cuja técnica diz ter aprendido com seus vizinhos mineiros.

OUTROS ANIMAIS E AVES QUANTIDADE

Porcos 07 Galináceos 13 Cães (caçadores) 06

Obs.: Possuía na verdade 100 galinhas, mas a maior parte havia sido atingida por doença.

Vejam-se os nomes dos cães caçadores: Jaime, Campeiro, Campino, Tupã, Bicó

e Pretinha. Eles aparecem sempre com destaque nas ocasiões em que contam

casos de caçadas perigosas ou aventuras praticadas no interior da mata. Além disso,

esses animais reforçam os aspectos de intimidade que se faz notar em torno do ambiente

da casa do seringueiro, tal é o envolvimento que se tem com eles.

Borracha - (Lugares onde excede a atividade lucrativa

LOCAL Nº DE ÁRVORES

Lote nº 33 (Próprio) 30

Lote do Sr. Vitório Amaral 80

Lote do Paulo “Alemão” 90

Total de Árvores 200

Deve-se notar que Valdemar corta seringa três ou quatro dias por semana e produz

em média 70 Kg de borracha por mês no período de abril a novembro/ Acrescente-se ainda

que o quilo da borracha em outubro de 1989 estava cotado em Ncr$ 4,50. Seu preço em

maio de 1990 era Cr$ 55,00.

Numa ocasião tive a oportunidade de observar o desenvolvimento do seu trabalho. Assim,

mostrando-me uma árvore de seringa, ele explicou-me que para extrair o látex precisa fazer

quatro incisões ("traços") na árvore, utilizando-se de uma faca apropriada - tipo sabong

- consumindo nesta tarefa de um a dois minutos. Explicou-me ainda que haja

alguns anos atrás ele fazia apenas uma incisão em cada árvore e hoje procede dessa

forma porque o látex tomou-se mais fraco devido ao esgotamento das árvores. Por isso

ele afirma que com, quatro traços - que na árvore forma um desenho parecido com

uma espinha de peixe, nome dado a este tipo de corte - a seringueira acaba sendo

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maltratada. Como ele mesmo diz "a seringa hoje vive esbagaçada (pois) não tem

regulamento", lembrando assim as exigências feitas nos seringais antigos. De modo que

a única forma que encontra para contornar esse problema é explorar durante algum tempo

só um lado da árvore, deixando o outro, como ele diz. "descansando", até que se recupere

cinco ou seis anos. Essa situação, aliás, é comum nessa área, como pude ver mais à

frente na Colocação Coelho, onde o Sr. João Lolô precisa utilizar-se de uma escada para

cortar a parte mais alta das árvores, devido à mesma causa relacionada com seu

esgotamento.

É fácil notar que a atividade que Valdemar exerce como seringueiro foi substancialmente

reduzida. Pois as 200 árvores que ele hoje consegue explorar no seu próprio lote e em lotes

vizinhos corresponde a pouco mais de uma estrada de seringa. De modo que se ele fosse

se ocupar apenas em cortar seringa precisaria dispor de pelo menos 450 árvores, que

corresponderiam a três estradas que exploraria alternadamente durante a semana. Se

fôssemos assim proceder ao cálculo dessa produção certamente concluiríamos que a

borracha hoje constitui para ele uma atividade apenas acessória - embora sua colocação no

mercado seja mais fácil propiciando-lhe assim dispor de algum dinheiro. Seu preço,

pelo menos quando lá estive - possuía maior garantia do que os produtos agrícolas. Esse

fato, aliás, vinha estimulando a que colonos se dedicassem cada vez mais a cortar seringa.

Cabe observar, porém, que malgrado essa atividade tenha deteriorado nesses

últimos anos, Valdemar continua a identificar-se como seringueiro. Assim durante a semana

ele sai de casa quase todos os dias muito cedo, com sua roupa característica de

seringueiro, toda respingada de látex coagulado, formando manchas escuras, poronga à

cabeça, a faca de um lado e a espingarda do outro, em direção às estradas onde vai repetir

sua faina costumeira.

Os colonos vizinhos

Numa das ocasiões em que estive conversando com Valdemar,

acompanhava-nos dois jovens irmãos mineiros, seus vizinhos, sempre muito afáveis

e, ao mesmo tempo, interessados nos assuntos que desenvolvíamos. Assim, num certo

momento da conversa em que Valdemar discorr ia sobre o desmatamento que

atinge aquela área, um deles pôs-se a interpretar o que o seringueiro dizia com

tristeza: "Eu acharia bom se tivesse um lugar aqui que eu só mexesse coro seringa. Um

lugar assim que não fosse desmatado, onde tivesse muito peixe, muita caça e muita

seringa pra eu+cortar". E o colono logo observou dirigindo-se a mim: "Eu acho qu'eles

num acha bom por causa desses cara mais chegado que vêm de fora; que vai

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derrubando tudo, a seringueira, a castanheira, (e) aí vai ficando ruim pra eles e pra

nóis também". Demonstrava assim solidário para com o vizinho seringueiro ao mesmo

tempo em que revelava dedicar-se ele mesmo ao trabalho de cortar seringa. Por isso

ousei lhe indagar se não desejaria tornar-se seringueiro de uma vez. "Pode até virar,

né?", ponderou. E logo observou: "(Se) já tão cortando seringa, já são seringueiro.

Agora, só cortar seringa num tem jeito, porque já tão ficando pouca seringa".

Pode-se ver assim que há por parte do colono um claro reconhecimento do novo

trabalho que executa além de manifestar inequívoca simpatia pelo seringueiro.

Evidentemente este fato é um sinal de que melhoram a cada dia as relações entre

eles; talvez por viver ali um destino comum tão próximo da pobreza e do sofrimento

que os igualam. Naquelas circunstâncias, aliás, o colono parece até enfrentar um

sofrimento maior devido a sua desadaptação ao meio ambiente que o torna presa fácil de

doenças. Mas as coisas nem sempre foram assim. Valdemar não esquece a história de

uma colocação de seringa que possuía na beira do rio, com sua casinha bem construída, o

pomar em volta, os animais no terreiro, e que a perdeu quando o INCRA chegou ali

fazendo demarcações. "Eu tinha uma casinha lá de oito metros de comprimento por cinco

de largura, coberta de palha, mas uma cobertura bem feitinha assoalha bem feita, toda

cercada de paxiúba e açaí... Então quando "Seo" Zé (irmão Gentil) comprou o lote, aí nós

fomos bater a lateral e ficou prá eles". Ele lamenta também ter perdido o pomar e outras

benfeitorias que lhe exigiram tanto trabalho e sacrifício. Ouvindo-o, tem-se a impressão de

que foi ele arrancado do lugar em que vivia há tantos anos. Para ele a causa de tudo prende-

se ao fato de que "naquele tempo num tinha projeto de linha aqui; de cada qual ter o seu

lote. " E continua sua narrativa, lembrando o esforço que ele e seu irmão (João), também

seringueiro, fizeram em vão para permanecerem próximos em lotes vizinhos.

Na verdade a colonização não só produziu situações absurdas como essa,

desorganizando o espaço em que vivia o homem local, mas chegou mesmo a subverter o

significado que dava a sua relação com as coisas que o rodeavam: a terra, os rios, as

plantas, os animais etc. Tratava-se de uma significação que desenvolveu com seus pais e

que foi sendo elaborada passo a passo, ao longo dos anos, desde o tempo em que foram

deslocados do Nordeste para a Amazônia para produzir a borracha. Havia os patrões e o

barracão, é verdade, mas isso não impedia que fossem construindo nos espaços

intersticiais das relações, uma experiência de liberdade e de uso pelo da natureza_ Assim.,

somente através dessa compreensão, será possível o entendimento da reflexão que o

seringueiro desenvolve:

"Nóis nunca pensava em ser dono de terra. Aonde a gente cortava seringa, agente falava assim: por onde

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tinha aquelas estradas de seringa tudo era da gente” (V. A.).

Essa é enfim a memória sofrida - e ainda muito recente - que se desenrola em torno do

que vem ocorrendo ali. Em alguns momentos o seu lado mais doloroso é substituído

cedendo lugar à amizade e à cooperação; em outros o inconformismo torna-se indisfarçável:

"... a gente tem aquela confiança de mexer com a seringa... acha que tá liberado ainda pra gente; (mas) aí os cabra vão e carrega a borracha da gente. Já aconteceu de eu ir juntar minha borrachinha e chegar lá nem as lata num tava.”' (V. A.)

Pouco depois de ouvir denúncia tão contundente - quando então os dois rapazes já

haviam se retirado - chega alguém procurando Valdemar. Era uma filha do seu vizinho Gentil,

pais dos jovens, que lhe trazia um pedaço de carne de paca. Só então soube que eles

costumam trocar alimentos desse gênero, sobretudo naquelas condições de desmatamento

em que cada dia se torna mais difícil obtê-los em caçadas. Assim, eu pus-me a especular

que urna coisa é a história mais larga que continua a lhes preparar armadilhas perigosas, e

outra é esse dia-a-dia que em certas ocasiões lhes impõe o exercício de reciprocidade.

Embora se saiba que unia fração dos colonos explore borracha em seus sítios, torna-se

difícil avaliara situação em que se desenvolve essa atividade entre eles. Mesmo assim,

através de contatos com compradores de borracha de Ariquemes, pude considerar

que essa produção é pequena, não devendo ultrapassar a faixa de 10% do que os

seringueiros produzem. Baseado nas informações que colhi vejamos a produção global

de uma área do município de Ariquemes.

MUNICÍPIO DE ARIQUEMES - 1989 PRODUÇÃO (PARCIAL) DE BORRACHA

ÁREA No. DE SERINGUEIROS PROD. MENS.-

Machadinho 300 24.000 Campo Novo 80 6.400 Massangana e Candeias 100 8.000

Fonte: dados de campo. Ariquemes, out./1.989

Observações: 1) A produtividade varia naturalmente de uma para outra área,

salientando-se que cada seringueiro produz em média 80 kg de borracha por mês, de abril a

novembro; 2) Meus informantes observam ainda que cada colono deve produzir de 10 a 20

kg de borracha por mês, embora não saibam dizer quantos se dedicam a essa atividade

no período correspondente ao fábrico; 3) Embora precários, julgamos que esses dados

nos dão uma idéia desse novo campo de trabalho para o qual se contam pessoas que até

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bem pouco tempo ignoravam e não o incluíam em suas estratégias de sobrevivência; ao

mesmo tempo em que aponta para a transformação operada pelo colono em seu contato

com o novo meio.

Aliás, é interessante observar como vem se dando entre colonos -

especialmente entre os mais jovens - o aprendizado da seringa. Disse-me assim este

rapaz de 20 anos:

"Nóis pensava que eles cortava seringa na mata era com facão ou faca de cozinha; mas depois que nóis cheguemo o filho do Valdemar chamou nóis pra cortar uma seringueira ali. Aí nóis foi aprender com ele." (On.).

Deve-se ressaltar que esse aprendizado não se restringe apenas ao corte da

seringa. Pois na verdade se realiza juntamente com outras atividades que fazem parte

da prática tradicional do seringueiro, como por exemplo; caça e pesca:

"Aprender a pescar sóis aprendeu foi com eles também. Nóis ia no rio e num pegava peixe; agora se nóis foi; nóis já pega! Aprendemo a caçar e fachiar. "(On.).

O seringueiro como se vê, vai pouco a pouco introduzindo o recém chegado naquele novo meio, ensinando-lhe o manuseio de instrumentos e o domínio de técnicas com os quais deve retirar da natureza os recursos que necessita. Mas não é só. O seringueiro ensina-lhe também a linguagem local, ou, em outros termos, insere-o na cultura em que ele mesmo foi criado. Assim no instante em que o colono se referia ao modo de caçar à noite com fachiadeira, ele logo se apressou em explicar:

"Fachiar é caçar de noite sem cachorro; só com a lanterna e a espingarda. A palavra fachiar nóis conhecia do jeito como poronga... A poronga que a gente fala é uma lamparina, dentro de uma latinha, com um espelho fazendo sombra pra clarear só na frente... Então a gente andava assim com aquilo na cabeça e a espingarda na mão... Hora que a gente visse qualquer bicho, a gente já via os olhos dele brilhar no reflexo da luz. Aí a gente ia devagarinho até chegar na posição de dar o tiro!" (VA.)

Conclusão

Avaliando-se o resultado geral desse trabalho é possível verificar que a

atividade em Rondônia persiste, apesar de todas as dificuldades decorrentes da

colonização que se instalou ali nesses últimos vinte anos.

Aliás, segundo dados da SUDHEVEA, a produção de borracha em Rondônia

cresceu nesses últimos anos, passando de 5.042 t em 1978 para 10.612 t em 1985;

sendo que tal produção corresponde ao período em que triplicou o número de

migrantes, indicando desse modo sua res istência face aos investimentos

agrícolas mais consentâneos com os objetivos da colonização (1980=49.205

migrantes/ 1986=165.899 migrantes. Fonte: SEPLAN - Governo do Estado de

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Rondônia).

Essa permanência, contudo, vem se dando aos atropelos, devido

principalmente aos transtornos da desorganização espacial e o grau de violência que

acompanham a instalação dos projetos de colonização.

Ressalva-se ainda que algumas dificuldades tem se interposto a essa

continuidade, pois, como pude observar, a manutenção da atividade extrativista se

sustenta, grosso modo, no esforço de seringueiros mais velhos - 35 a 45 anos.

Percebe-se desse modo que a geração mais jovem que constitui os descendentes

desses atuais seringueiros reluta em seguir o aprendizado de seus pais,

inclinando-se a procurar novas ocupações nas cidades que hoje são ali atingidas mais

facilmente.

A situação que relatei envolvendo o Projeto Marechal Dutra em Ariquemes

mostra, por outro lado, as possibilidades e os limites do extrativismo em Rondônia. Pois,

como vimos, os seringueiros tratam de estabelecer estratégias habilidosas de

sobrevivência, buscando o convívio com os que vêem de fora. Assim, em

circunstâncias em que se vêem praticamente encurralados, decide-se a não opor

qualquer resistência, utilizando-se de mecanismos que favoreça a aproximação com os

colonos.

Paralelamente, ao lado de motivações que se encaminham nessa direção, pode-se ver

ali entre seringueiros e colonos oriundos de diversas procedências a manifestação de uma

clara diferenciação cultural; E isto torna possível discernir com segurança a

particularidade dos campos simbólicos em que se movem os agentes sociais.

Destarte, as representações que elabore, acercado mundo em que vivem guardam,

entre si, discrepâncias essenciais. Assim, se tomarmos como referência, por exemplo,

a linguagem observou que a que mais se identifica com a do colono penetra com maior

densidade no espaço da comunicação, algumas vezes competindo com a linguagem local,

outras sufocando-a ou até mesmo suprimindo-a. Um exemplo curioso dessa disputa pode

ser dado através da utilização do termo Quiçaça, introduzido pelos colonos e que hoje

os seringueiros empregam-no corretamente substituindo a costumeira expressão Capoeira,

embora a palavra "quiçaça" não pareça ter para eles o mesmo sentido que os colonos

lhe atribuem. Pois enquanto parecem empregá-la mais como um signo relacionado com as

condições físicas do lugar, os seringueiros manipulam-na como um símbolo ligado à

violência que se abate sobre os homens e sobre a natureza. Como diz Bourdier: “As lutas

a respeito da identidade étnica ou regional (...) são um caso particular da luta das

classificações, lutas pelo monopólio de fazer ver e crer, de dar a conhecer e de fazer

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conhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, por meio, de fazer

e desfazer os grupos" (1989:113). De qualquer modo, a palavra Quiçaça pode ser utilizada

como categoria linguística de transição, capaz de tornar compreensível o processo de

transformação que ali se desenrola.

Outro exemplo, ainda referindo à linguagem, refere-se à denominação Luís

Caxeiro, que a mim mesmo causou embaraço. Eu havia chegado numa segunda viagem à

casa do seringueiro Valdemar (de quem muito tenho falado neste trabalho) e, não o

encontrando nem a sua mulher, acabei sendo recebido por seu filho menor de oito anos, que

muito loquaz logo começou a me ressaltar sobre a morte de um tal Luís Caxeiro. Assim,

enquanto eu me barbeava assustado num canto da casa, ele ia explicando ter sido tal

"indivíduo" morto a golpes de facão, tendo o matador lhe cortado a cabeça e lançando-a

ao mato! Eu não podia imaginar cena mais violenta. Indaguei-lhe então se sabia dos

motivos que levaram o "assassino" a agir daquela forma, desejando desse modo inteirar-

me melhor dos acontecimentos. De sorte que depois de alguma insistência - pois ele não

entendia o que eu lhe perguntava - obtive do menino uma resposta titubeante. "É - disse-me o

menino - eu acho que ele queria comer e foi comido". Acreditei assim que a tragédia fora

mesmo consumada. Um pouco mais tarde, quando então seus pais já haviam chegado da

roça, eu lhe perguntei sobre o que realmente acontecera com o tal Luís Caxeiro, deixando-

os surpresos com a revelação que lhes fazia. Tão logo, porém, pronunciei esse

nome, percebi o alívio e a descontração que lhes acompanhava o sorriso. Pois só então

vim, a saber, que Luís Caxeiro é o termo que se emprega hoje ali para aquilo que antes

conhecia como Porco-espinho!

Em outra ocasião vimos como os colonos utilizam termos locais como "fachiar", com

o qual descreviam as caçadas que realizam durante a noite, mostrando assim a

emergência de uma linguagem nativa que ao mesmo tempo assinala um intercâmbio de

relações. Mas a linguagem para o seringueiro parece denunciar o limite de suas

resistências. “Veja-se, por exemplo, o que nos diz Valdemar acerca de uma planta

nativa conhecida tradicionalmente como açaí, cujas amêndoas produzem um delicioso

vinho e que o colono a abate para extrair-lhe o caule para ser usado em outro tipo de

alimentação.”... quando eles chegaram aqui tinha um negócio de chamar palmito! Palmito!

Mas nóis num sabia o que era palmito!... O palmito que eles fala é o açaí que nóis falava...

E uma comida boa para eles o palmito... eles derrubam, tiram a cabeça e comem no lugar

da carne; é uma mistura."

De sorte o que há ali entre os colonos e seringueiros não é uma simples adequação

de palavras, ou como diria Wittgeinstein. "jogos de linguagem" (1984: 15), mas as

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palavras como as coisas indicariam claramente o sentido da continuidade ou da

mudança.

Bibliografia

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UMA ABORDAGEM JURÍDICA DOS UMA ABORDAGEM JURÍDICA DOS UMA ABORDAGEM JURÍDICA DOS UMA ABORDAGEM JURÍDICA DOS PRINCÍPIOS SOCIAIS DAPRINCÍPIOS SOCIAIS DAPRINCÍPIOS SOCIAIS DAPRINCÍPIOS SOCIAIS DA VIOLÊNCIAVIOLÊNCIAVIOLÊNCIAVIOLÊNCIA

Antônio Guimarães Brito *Antônio Guimarães Brito *Antônio Guimarães Brito *Antônio Guimarães Brito *

Resumo: O homem é um ser de relação, condição básica de sobrevivência para uma espécie frágil, sob o ponto de vista natural. Em um mundo de transformações e constantes ameaças, o ser humano garantiu sua sobrevivência na força social de seu grupo primitivo. Assim não podemos discutir o homem sem considerarmos a sociedade, pois é inevitável a inteiração profunda de um e outro. A violência é um problema social e sob esse ponto de vista é que deve ser abordada, ou seja, a violência deve ser estudada a partir da condição social do ser humano.

Palavras – Chave: Sobrevivência, Transformações, Primitivo, Violência e Humano.

Abstract: The man is a relationship, basic survival condition for a fragile species, as far as natural. In a world of transformations and constant threats, the human being ensured their survival in the strength of its primitive social group. So we cannot discuss the man without considering the society, it is inevitable to inteiração deep one and another. Violence is a social problem and in this respect is that must be addressed, i.e. the violence must be studied from the social condition of the human being.

Keyword: Survival, Transformations, Primitive, Violence and human.

O homem é um ser de relação, condição básica de sobrevivência para uma espécie

frágil, sob o ponto de vista natural. Em um mundo de transformações e constantes ameaças,

o ser humano garantiu sua sobrevivência na força social de seu grupo primitivo. Assim não

podemos discutir o homem sem considerarmos a sociedade, pois é inevitável a inteiração

profunda de um e outro.

A violência é um problema social e sob esse ponto de vista é que deve ser abordada,

ou seja, a violência deve ser estudada a partir da condição social do ser humano.

Na sociedade há um jogo de forças (pressões, tensões e rupturas) e, nessa realidade

da mobilização social é que vamos encontrar as raízes da violência. O princípio social da

violência, como fator na sociedade, se faz na percepção do homem como agente social

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de manifestação social. O princípio social da violência interage no movimento das

forças sociais, permitindo estendermos a violência, sem sombra de dúvidas, como fato

social.

A conduta violenta é resultado de determinada pressão exterior sobre o agente. A

motivação é essencial para o desencadeamento da violência. A violência é uma

questão de relação entre o indivíduo com o mundo. O indivíduo contrariado em sua

relação com o mundo, e sentindo-se pressionado por circunstância indesejada,

desencadeia determinada descarga abrupta, mediante, sempre motivação exterior. Há, na

violência, um desejo de resolução, mesmo de libertação.

Quando a violência como fato social desencadeia a ruptura da coesão social, a

sociedade se sente ameaçada

A violência social nasce das diferenças sociais. As diferenças, quando agudas,

ameaçam a coesão do grupo, motivando na própria sociedade o desencadeamento da

violência como resposta a essa ruptura indesejada. A violência social é a descarga

desse descontentamento, quando a sociedade sente-se ameaçada em sua coesão pela

presença das desigualdades. Então, se a violência é fato social, sua origem está na

desigualdade social.

Uma sociedade se autodestrói quando perde a coesão social de seu grupo. Essa

coesão é medida por valores, inteirações e mobilidades. O homem está seguro em uma

sociedade coesa, recordando que, sem a sociedade, o homem está ameaçado em sua

condição transformadora.

Quando as forças soc iais em mov imento não encontram um relacionamento capaz

de interagir os discursos entre si, a mobilidade social se dissolve em direção ao caos. Isso

acontece quando as diferenças entre os agentes sociais assumem a forma de barreira

intransponível, quebrando a corrente de relacionamento social.

A desigualdade pode assumir várias faces, como a racial, a econômica, religiosa,

entre outras. Algumas diferenças, incorporadas nas relações sociais, dependendo do grupo,

são digeridas, fazendo com que se auto-regule, dentro do contexto social. Por exemplo: Há

determinados grupos cujas desigualdades religiosas não ameaçam a sua coesão social,

pois convivem harmoniosamente entre si, tolerando-se mutuamente. Outros, porém,

são incompatíveis, como palestinos e judeus, hindus e muçulmanos.

Quanto menor a desigualdade, maior a coesão social e mais pacífica as relações

entre os seus agentes; sendo o inverso verdadeiro; a maior densidade de desigualdade,

mais violenta a sociedade.

A formação da sociedade brasileira, levando em consideração seu processo

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formativo, está sustentada em duas colunas muito bem plantadas na construção histórica: o

latifúndio e a mão-de-obra escrava.

Os 400 anos de escravismo e os primórdios das capitanias hereditárias e sesmarias

criaram um retrato mais ou menos definido, refletindo nas estruturas de formação social.

O trabalho escravo, a apropriação sobre o esforço alheio, o servilismo e o favoritismo

estão estreitamente vinculados aos traços colonialistas de uma sociedade sustentada

quatro séculos sobre o escravismo. A história, mesmo aberta às transformações, é

redundante em suas manifestações sociológicas.

A multiracialização da sociedade brasileira adaptou-se desveladamente no

comportamento do brasileiro, encontrando suas próprias condições de sobrevivência social.

As desigualdades raciais não ameaçam a coesão social brasileira, graças a uma relação

aceita no entrosamento mesmo, sexual, entre seus agentes. A mulata brasileira,

exportada como símbolo sexual da sociedade brasileira, é um alto significado

sociológico do resultado dessa adaptação multiracial.

Se a violência é fato social e a origem da violência social está nas desigualdades

agudas entre seus agentes, a violência na sociedade brasileira tem como responsável as

desigualdades econômicas, ranço histórico de conotação escravocrata.

Nos extremos mundos da desigualdade econômica brasileira se encontra a origem da

violência social generalizada. Insustentável é a sociedade que vive pressionada por

extremos sociais. A desigualdade econômica, quando chega a medidas terminais, ameaça a

própria coesão social. O Brasil está dividido em Estados antagônicos e esta relação oposta

em sua lógica de reprodução vai transformando o meio social em acirrado campo de

confronto entre as entidades dispersas da sociedade.

A diferenciação econômica é inevitável em uma sociedade de classe, sustentada em um

modelo capitalista de produção, porém, a desigualdade econômica, quando se projeta em

uma distância larga de penetração, põe em risco a perpetuidade dos laços sociais. A miséria

de milhões é insuportável violência social. O organismo social não resiste a pressões tão

intensas.

Todas as camadas sociais se tornam vulneráveis quando a sociedade se encontra

em estado convulsivo e a violência social está como um sinalizador desse estado

doentio.

O primeiro sinal perceptível da dissolvição da coesão social é a desproteção

da família, levando as famílias às ruas e estas àquelas.

A família, guardiã das identidades e reprodutora dos valores, é invadida pelo calor

desassossegado das ruas, desagregando a peça essencial de formação social. A violência

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se estende das ruas aos lares porque a realidade de ambas se aproxima, tornando-se uma,

continuidade da outra.

De que forma o Direito, organizador formal da sociedade e regulador dos diálogos

sociais, deverá se manifestar diante da disseminação da violência na sociedade? Como

punir a violência e quais as políticas preventivas a serem adotadas em nosso sistema

jurídico?

Em tempos de violência pensamos em justiça. Nesse diálogo entre violência

social e a prestação jurisdicional do Estado, é preciso evocar o juízo de justiça, para que

não se perca esforços e nem se alimente mais violência na sociedade.

Meramente punir, castigar e reprimir tornou-se insuficiente em uma prática de

justiça. O Direito pós-moderno está muito mais preocupado em uma teoria de riscos do que

de culpa, em uma maior prática preventiva do que punitiva. É nessa perspectiva de Direito

Societário que discutimos a violência.

Justiça é incompatível com miséria. Enquanto houver desigualdades extremas,

qualquer pretensão de justiça é o livre exercício da injustiça. Considerando as

insuportáveis condições de sobrevivência, de uma multidão de miseráveis, o braço da justiça

se transforma num gesto único de maldade de uns sobre outros. A sociedade vive em

mundos distantes e as regras de sobrevivência não obedecem aos mesmos padrões.

Nesse panorama de desigualdades existenciais, como aplicar a justiça em condições

injustas?

Justiça é condição de vida decente para todos. O Direito, corno principal articulador

das relações sociais, deve participar decisivamente nesse processo de pacificação social.

O Direito está para a violência como a medicina para a doença e, nesse sentido, é

redobrada a função pacificadora do Direito. A violência social é campo de operação do

Direito, pois a precípua missão da ciência jurídica é tornar a convivência social possível, em

suas relações.

Injusto punir o delinqüente e silenciar quanto as raízes da delinqüência. O bom

Direito ensina que em tempos de violência as regras jurídicas devem intervir nos

processos geradores da violência. Precisamos do cumprimento de regras jurídicas

mitigadoras das tensões sociais.

É essencial aos operadores do Direito a visão social da violência, pois somente nesta

perspectiva é que encontraremos uma prática justa do Direito, criando condições favoráveis

ao combate da violência.

Políticas geradoras de emprego, combate ao analfabetismo, melhora das condições

de saúde, são preocupações ativas do Direito. O Direito, em uma acepção de justiça

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social, deve intervir nas diversas políticas sociais, tendo como finalidade resguardar a paz na

sociedade.

A ciência jurídica, em sua prática de justiça, precisa ir além da tarefa punitiva,

reformulando as próprias direções políticas em um sentido de bem comum. Conceitos

jurídicos, se antes definidos, não asseguram as condições esperadas de pacificação social.

As mudanças na sociedade exigem princípios publicistas, na órbita de um Direito

societário. A sociedade para sobreviver precisa ser tratada como um todo,

revogando noções util i taristas e individualistas.

A violência atinge todas as camadas sociais, considerando que as

possibilidades econômicas já não conseguem apartar uns dos outros. Poderíamos

acrescentar que a violência, como um fato social, trata-se de um mecanismo de

autodestruição da sociedade, quando as condições de sobrevivência tornaram-se escassas

para uma quantidade significativa de seus agentes sociais.

A mais nefasta injustiça para o bom Direito é a justiça para alguns. Justiça é para

todos. Quanto mais injustas as relações sociais, maiores a violência entre seus agregados,

pois como já afirmamos, a violência encontra suas origens nas desigualdades extremas de

seus agentes. Naturalmente, as diferenças sociais existem em si, decorrentes de uma

tradição histórica desigual. Essas diferenciações não são necessariamente injustas

quando respeitadas as condições de decência. Tornam-se, porém, injustas quando

assumem desigualdades extremas, rompendo qualquer possibilidade de diálogo social.

Bem esclarece Pegoraro (1995: 107):

"Cabe ao princípio de justiça social administrar as desigualdades históricas. Mas, in lime, a justiça Pião admite que as desigualdades sejam injustas. Injustiça social consiste: a) Em negar a alguém a oportunidade progredir em sua vida; b) Em criar estruturas de exclusão; c) Em evitar a criação de estruturas de promoção das pessoas. Numa palavra, é suma injustiça reprimir os talentos das pessoas"

Quando discutimos jus tiça, em prática do Direito, fazemos considerações

éticas. A relação social, como necessidade humana, está posta à maneira de um contrato,

entre direitos e deveres sociais.

Os deveres existem dentro da sociedade com a finalidade de garantir direitos, pois o

objetivo da relação social em si é satisfazer o destino humano. A ordem social justa é

aquela que distribui eqüitativamente a relação de direitos e deveres. Somente nesse sentido

o Contrato Social se cumpre e a prática de justiça acontece. A violência social, nesse aspecto

contratualista, é a conseqüência do descumprimento do Contrato Social, na política injusta

de exclusão de direitos.

Leite Tavares opus Kant define (1996: 75):

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A verdadeira relação jurídica consiste na relação entre homens com direitos e deveres. Quando alguns homens só possuem deveres, tornam-se sem personalidade, como servos e escravos. Disso deflui que a relação jurídica constitui uma reciprocidade entre o dever como cumprimento da lei e o direito como faculdade de obrigar ao cumprimento.

A violência enfraquece os laços sociais, ameaçando a sobrevivência da sociedade.

Considerando o fato incontestável de que o homem vive em sociedade, sempre

viveu e só nela pode viver em sociedade e que a própria existência da sociedade é um

fato primitivo e humano, a dissolvição da relação social agride o homem em suas

estruturas mais profundas, daí a gravidade da violência, em sua ameaça de destruição.

Importante a lição de Duguit (1996:25):

"O homem vive em sociedade e só pode assim viver A sociedade mantém-se apenas pela solidariedade que une seus indivíduos. Assim puna regra de conduta impõe-se ao homem social, pelas próprias contingências contextuais, e esta regra pode formular-se do seguinte modo: não praticar irada que possa atentar contra a solidariedade social sob qualquer das suas, formas."

A soc iedade somente estará salva da v iolência quando suas

desigualdades diminuírem, a prática da justiça se cumprir e a relação de direitos e deveres

forem distribuídas eqüitativamente. Enquanto prevalecer a miséria, políticas de exclusão,

práticas injustas na defesa de interesses, todos os indivíduos da sociedade estarão

incessantemente ameaçados e a tensão social atingirá forças incontroláveis. Para sermos

salvos é necessário que todos atinjam condições mínimas de decência. Aí está o desafio

jurídico do novo milênio: humanizar o próprio homem.

Bibliografia:

ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito, SP. Ed. Saraiva, 1996 ARISTOTELES. Obra Jurídica, SP. Ed. Ícone, 1997 CARVALHO, Amilton Bueno. Magistratura e Direito Alternativo, 4ª edição, RJ, Ed. Luam, 1997 DILTHEY, Wilhem. Sistema da Ética, SP, Ed. Ícone, 1994 DUGUIT, León. Fundamentos do Direito, SP, Ed. Ícone, 1996 HEGEL. Princípios da Filosofia do Direito, SP, Ed. Ícone, 1997 LEITE, Flamarion Tavares. O Conceito de Direito em Kant, SP, Ed. Ícone, 1996 NETO. A. L. Machado. Sociologia Jurídica, SP. Ed. Saraiva 6ª edição, 1987 PEGORARO, Olinto. Ética é Justiça. RJ, Ed. Vozes, 1995 *Antõnio Guimarães Brito. Bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Cientifica PIBIC/ CNPq/UNIR, aluno do Curso de Direito.

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REGIÃO E HISTÓRIA, UM PROBLEMA DE REGIÃO E HISTÓRIA, UM PROBLEMA DE REGIÃO E HISTÓRIA, UM PROBLEMA DE REGIÃO E HISTÓRIA, UM PROBLEMA DE CONCEITO:CONCEITO:CONCEITO:CONCEITO:O O O O caso da colonização do caso da colonização do caso da colonização do caso da colonização do

madeira durante o século XIX.madeira durante o século XIX.madeira durante o século XIX.madeira durante o século XIX.

DanteDanteDanteDante Ribeiro da Fonseca * Ribeiro da Fonseca * Ribeiro da Fonseca * Ribeiro da Fonseca *

Resumo : As pesquisas recentes sobre a história de Rondônia têm revelado fenômenos até a pouco desconhecida, pouco conhecidos ou mesmo desprezados que se apresentam hoje como importantes no sentido de colocar em discussão determinados pressupostos da história regional. Entre eles o próprio conceito de região, que tem sido tratado de forma intuitiva, adotando-se esquematicamente a divisão político-administrativa tal como se apresenta hoje, ou mesmo apropriando-se de determinados conceitos da geografia. Tais esquemas têm se revelado, face às pesquisas recentes, teórica e metodologicamente problemáticos induzindo a algumas conclusões de todo questionáveis, pois não dão conta da mobilidade histórica do próprio objeto do conceito.

Palavras – Chave : Fenômenos, desconhecida, Metodologicamente e Histórica. Abstract : The recent research on the history of Rondônia have revealed unknown phenomena even little, little known or even despised that arise today as important to put under discussion certain assumptions of regional history. Among them the very concept of a region that has been handled intuitively, schematically the political-administrative division as it stands today, or even appropriating certain concepts of geography. Such schemes have proven to be the face of the recent research, theoretical and methodologically problematical inducing some conclusions of questionable, because not all realize historical mobility concept object itself. Keyword : Unknown Phenomena, methodologically and Historic.

As pesquisas recentes sobre a história de Rondônia têm revelado fenômenos

até a pouco desconhecida, pouco conhecidos ou mesmo desprezados que se apresentam

hoje como importantes no sentido de colocar em discussão determinados pressupostos da

história regional. Entre eles o próprio conceito de região, que tem sido tratado de forma

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intuitiva, adotando-se esquematicamente a divisão político-administrativa tal como se

apresenta hoje, ou mesmo apropriando-se de determinados conceitos da geografia. Tais

esquemas têm se revelado, face às pesquisas recentes, teórica e metodologicamente

problemáticos induzindo a algumas conclusões de todo questionáveis, pois não dão conta

da mobilidade histórica do próprio objeto do conceito. Dessa forma, uma das tarefas que se

apresentam aos historiadores é colocar em discussão o tema, contribuindo para enriquecer

a própria visão de história regional. Ë possível mesmo que venha a colocar em dúvida

apreensões comumente aceitas a longo tempo e levantar novas questões sobre um

passado que se revela tão rico naquilo que poderíamos chamar, provisoriamente, de

intercâmbios populacionais, culturais e econômicos, de tal forma que a própria idéia

de intercâmbio poderá se diluir em uma forma mais abrangente de eventos interelacionados.

Se assim o for, pode-se supor que futuramente consideremos parte de uma única

história àqueles fenômenos que hoje consideramos como participantes de histórias

distintas.

Uma incipiente proposição nos leva a crer que o conceito de região em história deve

necessariamente, que tomar como base fenômenos próprios ao trabalho do historiador

para que se possa aceitá-lo como dotado de conteúdo lógico. Deve-se, porém

esclarecer que esta proposição não descarta a possibilidade de sua variação de

acordo com ou período ou fenômeno que se queira pesquisar e ainda a utilização e/ou

transformação crítica dos conceitos similares já elaborados por outras ciências. A título de

ilustração da proposição anterior colocamos em te la uma série de pressupostos

encontrados na historiografia brasileira e da América Hispânica, relativos ao primeiro ciclo

da borracha, para demonstrar que a falta de clareza no conceito de região orientou esses

trabalhos inclusive no sentido de selecionar inadequadamente seu material empírico

tornando possível hoje questioná-las. Primeiramente a idéia de fragmentação do

espaço amazônico', parte do princípio de que a Amazônia, na época do ciclo da borracha

constituía-se em uma série de espaços vinculados aos grandes centros de comércio

internacional, porém isolados entre si. Além de uma idéia obscura de região que a hipótese

comporta, um aspecto deve, mesmo que de passagem, ser destacado aqui, um substrato de

atemporalidade que trazem essas análises. Particularmente no ciclo da borracha não se leva

em conta os seus períodos iniciais o que conduz à utilização do sistema de aviamento e

barracão como instrumento de análise das relações sociais de produção na região desde o

princípio do século XIX até a segunda metade do século XX. Da mesma forma trata-se a

questão do desabastecimento regional, intimamente ligada à forma de apropriação do

excedente dos trabalhadores regionais.

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Por outro lado, a impressão que se tem é que a região somente é percebida como área

de fronteira quando se estudam as questões comerciais e de limites. Novamente aqui o

conceito dever ser dotado de maior sofisticação e complexidade para que a análise

possa adquirir significados reais. Sem dúvida se limites e fronteiras interferem de certa forma

nos fenômenos regionais, tornando-os distintos em determinados aspectos, particularmente

naqueles relativos às estruturas jurídicas e políticas, porém são dotados de historicidade

justamente porque são móveis. As fronteiras internas do país mudaram de lugar várias vezes

restando portanto questionar se os fenômenos ocorridos em algumas áreas que são hoje

objetos da história regional possuíram uma dimensão supranacional. Particularmente na

Amazônia, onde até o início do presente século as fronteiras eram incertas, determinados

eventos necessariamente terão que ser apreendidos pelo historiador a partir dessa

dinamicidade, que resultava não somente da incerteza quanto às lindes, mas também quanto

à pluralidade do próprio cotidiano do viver fronteiriço.

Por outro lado a população indígena que habitava a Amazônia, que a rigor possuía

seu próprio território interpenetrado e diferente daqueles supostos pelo colonizador, ficou

sujeita a um tratamento ambíguo, tratada como população colonial para fins de constatação

do uti-possidetis. O nome do rio Madeira ilustra bem essa idéia difusa de território Caiari

pertence ao tronco lingüístico Pano, Caribe ou Arawak; Cuyari é originário do quechúa;

Caricari de origem Pacahuara; Irury em referência aos índios Irury que habitavam suas

margens. A questão que se coloca quanto ao problema indígena é: como tratar a história de

uma população que possuía idéias singulares de território em relação ao europeu, a partir de

conceitos diversos de sua cultura?'

O presente trabalho pretende esboçar essas questões à luz de pesquisas empíricas

que nos conduziram a esses questionamentos, tomando como base para essa finalidade a

região do rio Madeira no século XIX. O leitor deverá encará-lo muito mais como um

instrumento de instigação ao debate e ao aprofundamento da pesquisa que propriamente um

resultado acabado, se é que qualquer pesquisa acadêmica possa ser assim considerada.

Sobre o Guaporé, também uma região cuja história é rica em sugestões quando se trata

desse tema, é indicada particularmente a leitura dos estudos de Luíza Volpato. Marcos

Teixeira e Denise Meireles que dão interessantes informações sobre a interpenetração dos

espaços sociais na fronteira guaporeana durante os séculos XVIII e XIX iii.

Primeiramente, quanto às fronteiras, a questão central é dar conta da interpenetração

de fenômenos que embora ocorridos em espaços nacionais diferentes exerçam sua

influência sobre uma área comum. A resposta a essa questão apontaria para uma

reformulação da delimitação regional com vistas à pesquisa histórica. Apesar do

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secular processo de conquista européia na região e dos vários tratados entre os

antigos senhores coloniais restava ainda, no século XIX, uma t remenda

indef in ição de f ronteiras entre os países recém independentes da América do Sul,

que resultava, entre outras coisas, da presunção da posse que, contudo, não

estava baseada no conhec imento do territórioiv. Tal situação resultou no

dinamismo dessas fronteiras, como bem o demonstrou a questão do Acre e o

processo de ocupação do Madeira, onde as lindes entre Brasil e Bolívia foram

modificadas por duas vezes, em 1867 e em 1903.

Até 1867 a fronteira, ao entrar rio Madeira, seguia ao seu ponto médio,

aproximadamente onde hoje é a cidade de Humaitá (Amazonas) de onde

continuava através de linha geodésica às nascentes do Javarí, a margem esquerda

pertencia à Bolívia e a direita ao Brasil. O Tratado de Ayacucho, firmado entre os dois

países naquele ano fez recuar este limite até a nascente do Madeira donde, da mesma

maneira, seguiria para a nascente do Javarí. Independentemente desses tratados

havia a dificuldade em estabelecerem-se os marcos, pois até 1901 não era conhecida

a nascente daquele rio. Essa indefinição permitiu certa liberdade que se traduzia na

transferência e no estabelec imento de grupamentos significativos em ambos os

lados da desconhecida fronteira. Esse processo ocorreu em duas regiões da

Amazônia Ocidental, na região do Acre que foi objeto da ocupação brasileirav a partir

dos anos de 1860 e na região do alto Madeira objeto da colonização bolivianavi, na

mesma épocavi i. Em ambos os casos a migração partiu de dois pontos

simultaneamente, da foz do rio Amazonas e das faldas dos Andes, nas províncias

adjacentes na fronteira com o Brasil, constituindo no Acre uma população

predominantemente brasileira em território boliviano e no alto Madeira uma população

predominantemente boliviana em território brasileiro.

Embora o impulso colonizador definitivo seja do século XIX desde o século XVIII

havia essa bipolaridade no que se refere à ocupação colonial do Madeiraviii. No Brasil,

por volta dos anos de 1860 as áreas iniciais de produção de borracha encontravam-se

esgotadas pela exploração predatória. Intensificou-se então a migração em busca

dos seringais nativos do Madeira, porém, essa ocupação não passou, com

sucesso, até o último quartel do século, do ponto médio daquele rioix. A colonização

mais volumosa provinda da foz do Amazonas dirigiu-se ao Purus e seus afluentes

(região acreana). O impulso colonizador no alto Madeira provinha do Território de

Colôniasx, composto atualmente pelos departamentos bolivianos do Beni e Pando, de

onde uma onda migratória ocupou aquela parte do rio e abriu seringais, estendendo

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influência por todo aquele curso de água. A impor tânc ia do empreendimento

bol iv iano no Madeira se estendeu até o início do presente século, quando além dos

seringais dominava no comércio a moeda e na comunicação o idioma boliv iano

representado pelo espanhol e línguas dos nativos benianos para ali transplantados como

mão de obraxii. Enquanto que naquele rio bolivianos já exploravam a seringa, a quina

explorada na Província de Santa Cruz era através dele escoada a produção vinda da

província de Caupolicán através de Reyes e Santa Cruz de Yacuma em batelões

impulsionados por indígenas bolivianos até Santo Antônio do Madeira, xiii. Eram também os

seringais desse rio abastecidos de gêneros e mão de obra provinda do interior da Bolíviaxiv.

Ressalte-se também que seringais pertencentes a bolivianos estendiam-se até as enseadas

próximas da foz do Madeira, como era o caso das propriedades Vitória, São Carlos e

Itapiremaxv. Nessa época, a maior e mais próspera povoação boliviana do Madeira era

Jumas, um aldeamento localizado entre Crato e Humaitá que possuía aproximadamente

180 homens e 90 mulheres que falavam dialeto que não era nem o português nem o

espanhol, provavelmente algum dialeto dos indígenas mojenhosxvi

Com a queda do preço da quina a seringa tornou-se um substituto imediato para o

setor extrativista crucenho, sendo encontrada em vários rios, inclusive no próprio Beni, na

região do delta do Madeira que passou a pertencer ao Brasil pelo tratado de 1867xvii. O

sistema de aviamento, ou habilito como é chamado na Bolívia, foi o arranjo que permitiu o

acesso ao capital inicial com que os seringalistas pioneiros naquele rio iniciaram o corte da

hévea. A partir dessa descoberta alguns seringalistas bolivianos retornaram ao Beni e ali

continuaram sua atividade extrativistaxviii. Apesar desse processo, é interessante

observar que ainda no final do século XIX seringalistas bolivianos continuavam a se

estabelecer no Madeiraxix, mas possivelmente seja esse o período do declínio da

hegemonia boliviana naquele rio. A expulsão dos extratores bolivianos do Madeira, a

que se referem vários historiadores daquele país, poderia ser o resultado de uma ação

política do governo brasileiro, da descoberta da hévea no Benixx e em alguns casos, do

endividamento junto às casas aviadorasxxi de Belém e Manaus. Ao final do século

influência boliviana declinou no Madeira, as povoações mais movimentadas daquele

rio eram aquelas fundadas pelos portugueses ou brasileiros: Borba, do século XVIII,

Manicoré e Humaitáxxii, ambas fundadas nos anos 60 do século XIX. Humaitá era o grande

entreposto daquele rio com significativa produção de borracha e abastecedor de lenha para

os vaporesxxiii. Esse retorno dos seringalistas ao território boliviano durou alguns anos

deixando como marca do pioneirismo, em território brasileiro, o nome de várias localidades

do rio Madeiraxxiv.

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No final do século XIX já se tem notícias de povoamento brasileiro rio acima, além das

cachoeiras dos Madeira. Jose Coimbra, que passou pelo Mamoré e Madeira nos anos 90

daquele século se refere ao povoado de Vila Murtinho situado no rio Mamoré quase em

sua junção com o Beni, em frente ao povoado boliviano de Villa Bella, que contava com a

população de 800 habitantes, muito significativa para a época. A então nascente povoação

abastecia-se na Bolívia e, segundo o mesmo autor, apesar de existirem estradas de goma

naquela localidade por essa época os habitantes dedicavam-se mais à caça e à pesca.

Mesmo em Vila Murtinho existia uma propriedade de boliviano chamada Gran Cruz,

pertencente a D. Perez de Velasco, que viria a se o primeiro vice-presidente da Bolívia

durante o conflito no Acre. Em 1881 a firma Suárez fundou a povoação de Cachuela

Esperanzaxxv, matriz de seus negócios no Beni. A partir desse ano Suárez

Hermanos vai se constituirá na mais poderosa empresa de capital regional a operar no

ramo do extrativismo do látex, dominando, ao longo do tempo, 16 milhões de acre de

seringaisxxvi, estendendo suas filiais até as praças de Belém, Manaus e Londres, controlando

o circuito da importação dos aviamentos para sua área de influência e, mais espantoso,

conseguindo burlar o monopólio das companhias européias e norte-americanas,

exportando diretamente para aqueles paísesxxvii.

Por volta de 1896, não existia o povoado brasileiro de Guajará Mirim, no rio Mamoré,

cercanias da cachoeira de mesmo nome, embora já houvesse seringais pertencentes

aos brasileiros naquele local. Contudo, na margem oposta existia a povoação boliviana de

Guayaramerím habitada pelos seringalistas bolivianos D. Manuel e Memesio Jordán e

Leonor de Castroxxviii. Na povoação propriamente dita a população estimada, em 1903, era

de 20 habitantes ocupados nas atividades de transporte de mercadorias entre

Trinidad, Villa Bella e Riberaltaxxix.

A ocupação do Madeira exigiu desde o princípio a implacável perseguição do

indígena. Para se obter o ouro negro era necessário antes submeter o ouro vermelho. Assim

o processo de apresamento que já vinha sendo praticado a séculos continuou abastecendo

os seringais em toda a Amazônia. Nativos do Madeira e de outras regiões amazônicas como

o Território de Colônias foram a grande fonte de mão de obra para esses seringais, em uma

região onde os Estado Nacionais não possuíam nenhum controlexxx. Uma das explicações

da opção dos seringalistas boliv ianos do Madeira em recrutar mão de obra de

indígenas mojenhos é de ordem cultural. Essas populações estavam, desde o período pré-

colombiano, habituadas a produzir excedentesxxxi e a pagar tributo sobre a terra

comunitária, tinham, portanto uma história muito diferente dos grupos sobreviventes

de indígenas da Amazônia Brasileira, cujos povos que possuíam estruturas sociais mais

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complexas foram destruídos ainda no século XVIIxxxii. É, portanto principalmente o indígena

"domesticado", e seus descendentes, que compõem a larga base da pirâmide social na

Amazônia do século XIX, é ele que compõe a maioria esmagadora da população para a qual

o governo imperial e republicano reclama de seus vizinhos o uti possidetis.

O apresamento e o recrutamento dos indígenas por parte do colonizador não respeitava as

fronteiras móveis e mal definidas, manipulando o indígena e impondo-lhe novos sentidos de

identidade à luz do interesse do dominadorxxxiii. Do Madeira avançavam os seringalistas,

brasileiros ou não para além dos limites nacionais. Esse era um fenômeno comum a

toda a Amazônia em todo o século XIX. Em 1866 Tavares Bastos denuncia a ação de

brasileiros na captura dos indígenas miranhas que viviam nos rios Japurá e Içá, no

território de Nova Granada. Dentro de nosso território o aparelho estatal, contribuía ainda

como nos tempos coloniais para a exploração do indígena, através da Diretoria dos Índios,

compostas por corruptos agentes do Estado. Com sua nomeação para Diretor dos

Índios, o funcionário solicitava ao negociante o adiantamento de mercadorias

necessárias ao início das atividades do extrativismo da borracha, salsa e castanha.

Colocando o indígena sob sua responsabilidade para trabalhar remunerava-os com

mercadorias em troca dos produtos extraídos da florestaxxxiv. Na virada do século XIX

para o século XX, informava o Barão de Marajó que no Madeira já se encontravam alguns

confortos e segurança, os índios ou haviam recuado para pontos distantes dos

núcleos de colonização ou estavam amansados inseridos ao mundo do colono xx xv .

Além do indígena brasileiro o ciclo da borracha consumiu no Madeira, grande

quantidade de indígenas bolivianos. Conforme a análise de Heráclito Bonilha a

exploração da mão de obra indígena resultou da ação de motores distantes da

região gomífera onde havia o agravante do pequeno controle dos Estadosxxxvi

nacionais. A intensificação do processo de exploração da mão de obra indígena

boliviana, como no Brasil, ocorreu nesse momento pari passu com a ocupação de seus

territórios. Contudo, a história do processo de ocupação das terras e exploração do

trabalho indígena na Bolívia no século XIX contém, em relação ao Brasil, algumas

peculiaridades. Durante o período colonial todos os indígenas do sexo masculino com

idade entre 18 e 50 anos eram obrigados a pagar um tributo, esses tributos chegavam

a participar em 25% da renda da coroa. Durante o processo de independência da

Bolívia, Simon Bolívar promulgou entre 1824 e 1825 decretos que aboliam o

recolhimento de tributos sobre os indígenas. A assembléia nacional da Bolívia ratificou

esses decretos, mas, imediatamente após percebeu que a aceitação dessa nova

norma colocaria em dificuldades a fazenda nacional restabelecendo de pronto o tributo

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que passou a representar 60% do recolhimento fiscal na Bolívia. Apesar de representar um

pesado fardo a carga tributária contribuiu para a conservação da terra em posse do

indígena contra a ameaça dos brancos e cholos. A decadente atividade mineradora não

satisfazia às necessidades de ingressos fiscais e assim, também contrariando os

decretos de Bolívar que colocavam em dúvida o direito do indígena sobre sua terra

ancestral, a assembléia nacional ratificou como legítimo o governo comunal dos

indígenas e seus títulos de propriedade da terra. Tratava-se portanto de garantir a atividade

agropastoril importante fonte de ingressos fiscais para a manutenção do governo

boliviano naquele momentoxxxv ii. Em 1831, durante o governo de Andrés de Santa

Cruz foram restabelecidos os direitos às terras comunais dos indígenas bolivianos,

contudo esses direitos não valiam para as terras de Mojos, Yucararés e Chiquitos, abertas

à colonização de todo aquele que desejasse estabelecer fazendas ou explorar a

indústria extrativista. No entendimento do governo aquelas terras não possuíam

proprietários e, portanto pertenciam ao governo o direito de dispor delas,

desconhecia assim o direito às terras pelos grupos indígenas do noroeste

bolivianoxxxvii.

Em 1851 foi abolida a obrigação de todo indígena estar submisso a um patrãoxxxix, essa

instituição remanescente dos direitos dos adelantados, primevos colonizadores brancos

na América Espanhola, chamada na época colonial de encomienda subordinava o

trabalho indígena ao colonizador em troca de sua "educação" e "proteção". A partir dos

anos 60 do século XIX, com o aumento da produção mineral na região andina e o

conseqüente crescimento dos mercados urbanos decresceu a importância dos tributos

indígenas como fonte de ingressos governamentais. Com a ascensão ao poder do

gal. Mariano Melgarejo em 1864 a elite mineradora andina tomou o poder no país

estabelecendo o domínio das políticas livre cambistas. O decreto de 1866

novamente colocou em risco a propriedade comunal das terras intensif icando-se

então a ocupação da propriedade indígena por grupos de imigrantes brancos

(karayanas) que se dirigiram ao Beni para desenvolver a agricultura comercialxl.

Estima-se que já em 1858 somente no Alto Madeira havia uma população de cinco

mil pessoas, essa população, como se viu anteriormente, cresceu muito após os anos

60. Certamente o contribuiu para o crescimento dessa população o elemento indígena

boliviano. Além dos indígenas de Moxos, a mão-de-obra de indígenas bolivianos era

também recrutada nas províncias de Santa Cruz, Yungas. Keller, que participou de

uma expedição no Madeira em 1882 calculava que entre 1862 a 1872 foram

recrutados em média 1.000 indígenas por ano e migrados do departamento do Beni

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para o Madeiraxl i. Seringalistas como D. “Pas tor Oyo la x l i i e D. Angel Chaves x l i i i

quando necess i tavam de mais trabalhadores dirigiam-se ao Beni para recrutá-los,

já os empresários de maior porte contratavam a empreitada de recrutadores que

entregavam o indígena no local de trabalho estabelecido no contratoxliv.

E s s e m o v i m e n t o p o p u l a c i o n a l t ã o i n t e n s o t o r n o u - s e m o t i v o d e

preocupações. Denúncias contra o abuso do transporte indiscriminado de

indígenas para os seringais do Madeira foram levadas ao público pela imprensa,

causando certa comoção. O governo de La Paz, ciente do problema, preocupou-se,

não com as crueldades cometidas, mas com o despovoamento da região, emitindo,

em 1882, uma ordem de governo enviada ao prefeito do Beni mandando impedir

o tráfico sob o risco de ser despovoada aquela região, já então a menos povoada da

Bolívia.

Esse processo de recrutamento despertou mesmo o interesse brasileiro, tratava-se de

uma forma de abastecimento de mão de obra barata para os trabalhos necessários ao

fomento da produção gomífera do oeste amazônico. Na Bolívia havia um mercado

fornecedor braços indígenas cujo potencial era avaliado, por volta de 1866 em

750.000 pessoas. Somente nos departamentos bolivianos de Santa Cruz,

Cochabamba e Beni, aos quais interessava de perto o comércio como o Madeira, havia

uma população estimada em 622.000 pessoas, excluído desse número os grupos do

Beni compostos por aproximadamente 30.000 indígenas amansados e domesticados

para o trabalho, sem contar os grupos errantesxlv Essas províncias possuíam o dobro

da população das províncias do Amazonas e Pará, que desenvolviam uma forte atividade

agrícola e pecuária sem paralelo no AmazonasxIvi. Tendo já iniciado o processo de

recrutamento desses indígenas para trabalhar na região do Madeira como seringueiros, ou

remeiros que nos intervalos das viagens trabalhavam nas obras públicas de Manaus, a

possibilidade de sua utilização para a construção do canal ou estrada que contornaria o

trecho encachoeirado do Madeira foi logo posta em questão. Os administradores

públicos do Beni tinham autoridade para recrutar esses indígenas e enviá-los ao Madeira, a

remuneração era irrisória, um pequeno salário ou o pagamento em tecidos, roupas e armas.

Apesar de a Bolívia exportar a maior parte de sua produção pelo oceano Pacífico, a

via do Madeira era de fundamental importância para o comércio do noroeste boliviano, pois

o Atlântico estava mais próximo. Adicione-se que o acesso fluvial pelos grandes rios do

Beni é mais fácil para esse rio do que para outros, aumentando ainda sua preferência pelas

condições de navegabilidadexlvii. O porto mais próximo onde se encontrava linha regular de

vapor era o de Serpa (Itacoatiara), na foz do Madeira. Além da quina produzida em

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Caupolícan, descia pelo Madeira a produção extrativa e agropecuária do Beni. Os

batelões de transporte retornavam do Madeira com produtos industrializados, vergalhões,

ferramentas, armas e munições, bebidas, atavios. Serpa era a ponta de lança desse

comércio, os produtos ali desembarcados eram enviados para Borba e Crato de onde

partiam rumo à Bolívia. O comércio do Madeira cresceu com as exportações e importações

necessárias ao fomento da indústria extrativa e da agropecuária do noroeste boliviano de tal

maneira que já em 1862 o porto de Borba respondia por 30,70% do valor das exportações

da província do Alto Amazonas. O movimento de importação e exportação, até essa

época apresentava até um pequeno desequilíbrio favorável, entre 1864 e 1865 o porto de

Serpa importou 44,20% e exportou 55,80% do montante em dinheiro de suas operações,

revelador da importância desse porto no abastecimento dos produtos necessários à industria

extrativa.

Ainda em 1866 a navegação a remo era o recurso para o escoamento da produção e

do abastecimento de produtos industrializados para os nos do oeste da Amazônia, inclusive

do Beni. De Borba ou Crato era necessário remar contra a correnteza do rio em

embarcações com tripulação variando de 13 a 20 remeiros e carregamento de 3000 até

5000 quilos de mercadorias, até Santo Antônio do Madeira. Nesse ponto iniciava a parte

mais difícil da viagem, nas cachoeiras, por algumas centenas de quilômetros era necessário,

a cada acidente, descarregar a embarcação e atravessar por terra as mercadorias e a

embarcação até superar o obstáculo natural, daí a canoa era novamente colocada no

rio e carregada, reiniciando o trabalho de remarxlvii i. A passagem por esse trecho

acidentado poderia durar 18 diasxlix ou seis meses, dependendo de condições diversas, por

exemplo, a morte por doenças epidêmicas ou ataques de indígenas e a fuga dos

remadores'.

A questão do abastecimento nos seringais da Amazônia merece um estudo mais

aprofundado que permita esclarecer algumas questões. Não se trata aqui de uma minúcia

de um preciosismo de historiador factualmente detalhista pois essa questão está

intimamente ligada ao processo de exploração da mão de obra nos seringais. Há

evidências de que o fenômeno do desabastecimento durante o ciclo da borracha foi a

culminância do crescimento, ao longo de décadas, do aumento da demanda de matéria

prima, fenômeno típico das regiões monocultoras e de extrativismo intensivo.

A dialética do fenômeno pode ser simplificada da seguinte forma: um motor externo à

região, o aumento da demanda de matéria prima, faz cone que o seringalista exija que o

seringueiro dedique cada vez mais seu tempo na extração; o seringueiro gradualmente vai

abandonando a lavoura de subsistência e passa a adquirir cada vez mais produtos no

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barracão do seringalista; a produção aumenta e o seringalista, face a crescente

dependência do seringueiro em abastecer-se no barracão majora os preços provocando o

endividamento pois, face à majoração a produção do seringueiro nunca é suficiente para

liquidar as dívidas, a resultante final é que o produtor direto fica preso ao seringalista

pela dívida, prisão evidentemente garantida não pela honra ao compromisso mas por

mecanismos de coerção física.

Dois pressupostos necessários ao esquema da borracha estão satisfeitos, aumentou-

se a produção e garantiu-se a continuidade do processo de extração. Urna terceira

conseqüência, não menos importante é que se garantiu também pelo mesmo processo o

aumento do excedente apropriado pelo seringalista. Contudo a dinâmica desse

processo ainda não foi devidamente estudada, permitindo-se então alguns

questionamentos: Como ele se desenvolveu? Quando atingiu sua maturidade? Foi igual ao

longo do tempo em toda a Amazônia? Foi o mesmo nas várias áreas extrativ is tas da

região? Provocou de fato o desabastecimento regional? No caso do Madeira, essa

última questão poderá ser respondida de várias maneiras, dependendo a resposta do

conceito de região adotado.

Uma abordagem inicial do tema torna possível a hipótese que a Amazônia apesar

de ter sido uma região de economia extrativista, predominante até o século XX, os

estabelecimentos rurais produziram durante determinado período alguns gêneros

necessários ao próprio consumo. Estabelecimentos dedicados à colheita do cacau no

Madeira, na primeira metade do século XIX, possuíam lavouras de milho, arroz e mandiocali

além de produtos basicamente destinados à comercialização. Indígenas amansados

plantavam lavouras para subsistência e comercialização. Ainda no último quartel do século

XIX os estabelecimentos do Madeira, embora dedicados à produção da goma elástica,

continuavam produzindo alimentos como: milho, arroz, mandioca, bananas, ou seja, parte do

tempo de trabalho do seringueiro era dedicada à agriculturalii. Não eram exceções esses

seringais, o Gal. Severiano da Fonseca, em sua viagem de 1878, refere-se a inúmeros

seringais ou colocações pertencentes ao um mesmo seringalista do Alto Madeira que

produziam gêneros alimentícios, cereais, tubérculos e mesmo cana de açúcarliii, o

mesmo acontecia nas povoações do Madeira, inclusive Juma.

Contudo, em 1866 Tavares Bastos afirmava que as áreas extrativistas pouco

produziam para a alimentação, vindo tudo do exterior pelo porto do Pará ou eram vendidas

nessas regiões interiores produtos da lavoura Paraense como a farinha. A literatura

consultada revela que as estratégias de abastecimento das regiões produtoras da

borracha vinculavam-se a diversos fatores econômicos e geográficos e ainda, que o

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abastecimento, ao contrário do conhecimento comum, não provinha todo do exterior, mas

havia um mercado interno de produção de alimentos. Primeiramente, é possível que

nas regiões do alto dos rios o abastecimento externo, de produtos do Pará e do

exterior, fosse mais precário entre 1866 e 1880, por causa das distâncias e particularmente

no Alto Madeira em função do seu trecho acidentado. O fenômeno do desabastecimento

observado por Tavares Bastos seria então localizado nas áreas de produção mais próximas

de Manaus.

Como se viu anteriormente as áreas iniciais de extrativismo da borracha, mais

próximas de Belém, estavam já esgotadas em meados do século XIX pelo extrativ ismo

predatório o que fez com que os estabelecimentos rurais direcionassem sua

atividade para a produção de alimentos. O depoimento de um proprietário de fazenda no

Pará não se refere ao látex, mas à produção de farinha de mandioca e cana de

açúcar l iv. Essa produção interna de alimentos provavelmente destinava-se às novas

regiões extrativistas. O problema, contudo reside em conhecer a dimensão dessa produção e

seu peso no abastecimento intra-regional.

Nas regiões mais afastadas, no alto dos rios, procurava-se a região produtora

de alimentos mais próxima, não necessariamente dentro do país. Assim é que, o

abastecimento do trecho encachoeirado, e talvez de boa parte do alto e Médio Madeira, por

volta de 1868, era feito com gêneros produzidos nos Departamentos bolivianos de Pando e

Beni, produtos da agricultura e pecuária: queijos, couros, aguardente, gado daquela regiãolv,

pobre em hévea mas rica em planícies, eram comprados ou até mesmo trocados por

indígenas escravizados pelos brasileiros que atravessavam a fronteira para esse fimlvi.

Por volta de 1895 a situação havia mudado, o Barão de Marajó naquela época

informava que no Madeira a alimentação provinha quase toda, exceto peixe fresco e

salgado (pirarucu) e tartarugas, de Manaus e do Pará carne seca, bacalhau, bolacha, pão

torrado, conservas, feijões, farinha e bebidas diversaslvii. O consumo de alimentos e

bebidas importados é tratado na literatura como parte de um processo de ostentação e

desperdício da elite econômica do extrativismo, contudo no auge do ciclo da borracha não

somente essa elite consumia gêneros importados, também a população em geral. O

comércio com a Europa e Estados Unidos era mais próximo do que com o sul do Brasil, os

navios vinham buscar a borracha e traziam com eles produtos, estabelecendo assim uma

prática de intercâmbio desigual que, de certo modo, reproduz a lógica do desabastecimento

e do barracãolviii.

Com base nas questões inicialmente colocadas, poderíamos sugerir que no

século XIX certas regiões, especialmente aquelas situadas mais próximas a fronteira

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da Amazônia, não estavam fragmentadas como supõe a literatura, mas integravam-se em

um grande mercado produtor e consumidor de gênero, matérias primas, capitais e

força de trabalho, dessa forma podemos apreendê-las como um todo. Parece ser esse

o caso das regiões do Madeira e do Beni. Se a problemática fronteiriça é necessária

ao entendimento dessa hipótese torna-se, tomada isoladamente, insuficiente para o

entendimento do processo, pois a complementaridade de uma multiplicidade de

interesses intra-regionais resistiu e sobreviveu à definição demarcatória. É essa mesma

complementaridade que nos permite questionar a visão do desabastecimento regional ao

focalizar a região do Madeira/Beni e o estudo desse processo sincrético, pois

resultante da ação de povos que tanto sob o aspecto cultural quanto aos processos de

desenvolvimento político comportam suas singularidades, determinou o processo

histórico em uma única região durante uni período secular.

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NOTAS

xxxvii Herbert Klein, História de Bolívia. La Paz, Editorial Juventud, 1994, pp. 119-20. XXXViii Maria del Pilar Gamarra, obra citada, p. 28. xxxix Aureliano Tavares Bastos, obra citada, p. 274. xl Herbert Klein, obra citada, pp. 149-53. xli Franz Keller, The Amazon and Madeira River. Citado por Antonio Carvalho Urey, obra citada, p.55. xlii Nevile Craig, obra citada, p. 222. xliii João Severiano da Fonseca, obra citada, p. 305. xliv Maria del Pilar Gamarra, obra citada, p. 73, nota 30. xlv Aureliano Tavares Bastos, obra citada, pp. 274-5. xlvi Beni, Santa Cruz e Cochabamba: "... os três departamentos citados que contem o duplo de população das duas províncias brazileiras ribeirinhas (...) a agricultura vai-se desenvolviendo nos mesmos departamentos, e é industria mais exercida ali que no Alto-Amazonas." Aureliano Tavares Bastos, obra citada, p. 276-7. xlvii Lobato Filho, obra citada, p. 27. xlviii Aureliano Tavares Bastos, obra citada, pp. 222-3, 274-5, 270-1, 316-7

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xlix Juan B. Coimbra, obra citada, p. 137. l João Severiano da Fonseca, obra citada, pp. 275-99. li Leonardi, p. 70. lii Nevile Craig, obra citada, p. 230. liii João Severiano da Fonseca, obra citada, p. 299. liv Aureliano Tavares Bastos, obra citada, pp. 358 e 370. lv Emanuel Pontes Pinto, obra citada, p. 88. Ivi João Severiano da Fonseca, obra citada, p. 235. lvii Marajó (Barão de), obra citada, p. 132. lviii Anthony Smith, Os conquistadores do Amazonas: quatro séculos de exploração e aventura no maior rio do mundo. São Paulo, Editora Best Seller, s/d, p. 357.

*Dante ribeiro da Fonseca. Prof. Ms. do Departamento de História da UFRO

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O PROCESSO DE GLOBALIZAÇÃO O PROCESSO DE GLOBALIZAÇÃO O PROCESSO DE GLOBALIZAÇÃO O PROCESSO DE GLOBALIZAÇÃO E SUAS E SUAS E SUAS E SUAS IMPLICAÇÕES NAEDUCAÇÃOIMPLICAÇÕES NAEDUCAÇÃOIMPLICAÇÕES NAEDUCAÇÃOIMPLICAÇÕES NAEDUCAÇÃO

José Maria Leite Botelho*José Maria Leite Botelho*José Maria Leite Botelho*José Maria Leite Botelho*

Resumo : Este trabalho busca lançar bases para novas discussões a respeito do neoliberalismo e suas implicações no setor educacional ao mesmo tempo em que, procura discutir o atual processo educacional dentro das políticas públicas.O trabalho está divido em três partes: a primeira, "O Processo de G l ob a l i za ção d a E cono m i a " de s env o l v e e m to rno da s q ue s t ões h i s t ó r i c as e sociais desse processo; a segunda “a globalização e suas implicações no processo educativo” se desenvolve a partir de questões educacionais relacionadas ao tema. A terceira e última parte, "O Processo de Globalização na Educação Brasileira" desenvolvida em torno das questões históricas e atuais da educação brasileira. Palavras – Chave : Educacional, Implicações, Neoliberalismo e educação Brasileira. Abstract : This work seeks to lay foundations for new discussions about neoliberalism and their implications for educational sector while, current demand discuss the educational process within the public policy work is divided into three parts: the first, "the process of economic globalisation" develops around the historical and social issues of this process; the second "globalization and its implications in the educational process" develops from educational issues related to the theme. The third and last part, "the process of Globalisation in Brazilian education" developed around the historical and current issues of Brazilian education. Keyword : Educational Implications, Neoliberalism and Brazilian education.

O contexto mundial vem sofrendo nas últimas décadas, profundas e rápidas

mudanças no campo econômico, cujas conseqüências se fazem sentir em todos os

setores da vida social. A década de 1980 assistiu estupefata às transformações

econômicas, ideológicas, estratégicas, culturais e sociais que redesenharam

geopoliticamente o panorama do mundo atual.

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O fim do regime socialista fez o mundo curvar-se diante da supremacia capitalista

frente às novas formas estratégicas, idealizadas para a perpetuação do grande capital

na tentativa de preencher "todos" os espaços das áreas anteriormente ocupadas

pelo regime socialista e, como forma de estender os seus domínios nesses territórios.

A reorganização econômica iniciada nos limites transitórios entre o

liberalismo e o neoliberalismo, transformou-se em processo globalizador da economia

mundial, transnacional, nacional, local, transportando-se em "velocidade

eletrônica" para todos os setores da vida nacional, transnacional, local e f inalmente,

global. As exigências bás icas como flex ibil idade, participação, trabalho de

equipe, produtividade e competência fazem parte dos novos requisitos para a

manutenção das organizações produtivas e para a formação do cidadão, cuja competência e

responsabilidades na produção desses novos padrões são destinadas à Educação.

Este trabalho busca lançar bases para novas discussões a respeito do

neoliberalismo e suas implicações no setor educacional ao mesmo tempo em que,

procura discutir o atual processo educacional dentro das políticas públicas.

O trabalho está divido em três partes: a primeira, "O Processo de G l ob a l i zaçã o da

Ec ono mi a " d esenv o lv e e m t o r no das q ues tões h is tó r icas e sociais desse

processo; a segunda “a globalização e suas implicações no processo educativo” se

desenvolve a partir de questões educacionais relacionadas ao tema. A terceira e última

parte, "O Processo de Globalização na Educação Brasileira" desenvolvida em torno das

questões históricas e atuais da educação brasileira.

O fim da "guerra fria" não significou apenas o desaparecimento do bloco socialista liderado

pela ex-URSS, significou, sobretudo, o surgimento de uma nova ordem econômica

mundial, liderada pela supremacia dos EUA como potência "consolidada" no

panorama mundial nos campos econômico, militar e cultural. O fim do socialismo como

sistema político e econômico, desencadeia o fim da bipolarização obrigando o mundo a

passar para uma forma tripolarizada: o pólo europeu, o pólo asiático e o pólo

americano. Essa tripolaridade econômica pode, grosso modo, ser comparada a uma

hipotética balança provida de três pratos. Se em cada prato da balança fosse colocado

cada um desses pólos, ver-se- ia a supremacia americana, solidificada pelos poderes

políticos, econômicos e do conhecimento.

Faundez (1978) relata que com o objetivo de impor a globalização, os EUA e seus

aliados criaram organismos econômicos tais como o FMI e o Banco Mundial ou utilizaram-

se de outros já existentes, entre eles a UNESCO e a UNICEF com o sentido de

reorientar seus objetivos iniciais ou manipulá-los segundo os interesses dessa

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globalização. O processo de globalização da economia põe em choque as economias

dos países pobres, sua bagagem cultural e a "soberania" nacional corroendo pelas bases

a legitimidade e a eficácia dos Estados Nacionais. É um processo de reorganização

política, econômica e cultural liderado pelos EUA e seus aliados, como supremacia de um

capitalismo que parece ter alcançado em definitivo as dimensões de um mercado mundial. A

Racionalização da economia mundial desencadeia conseqüências gravíssimas em todos

os setores sociais, inclusive, no setor educacional e cultural dos países per i fér icos . Es tes

no afã de igualar -se aos países promotores do "desenvolvimento" buscam a custa

de certos "atropelos" educacionais e culturais, impor a seus povos a cultura e a educação

que interessa aos países centrais.

Verificam-se nas últimas décadas, mudanças expressivas no contexto de todos os

países periféricos, e principalmente, no contexto latino americano, no modo de vestir, na

alimentação, e na cultura, e que se traduzem em verdadeiro processo de aculturação em

pleno alvorecer do século XXI. As mudanças pretendidas pelo processo de

globalização são, em sua maioria, mudanças simples e apenas ligeiramente

perceptíveis, mas, que trazem em seu bojo, verdadeiras fórmulas capazes de operar

rápidas e radicais transformações em todo o sistema econômico e sócio-cultural a nível

mundial, como forma de fincar de vez os tentáculos do capitalismo e dominar, cultural,

científica e tecnológica os países periféricos.

No Plano Educacional, o processo de globalização da economia avança de forma

certeira e voraz sobre os sistemas de ensino público dos países "alinhados". Oferecer

aos governos subsídios, que de per si, se encarregam do enfraquecimento do ensino público

e do fortalecimento do ensino oferecido pelo setor privado, é apenas, uma das metas

implementadas pelo poder globalizador.

Para o capitalismo, não é suficiente uma mudança que aconteça apenas no campo

econômico, é necessário uma mudança completa, radical, o que só poderá acontecer se

for atacada a pedra angular do foco de resistência: só poderá acontecer se o sistema

educacional for modificado para atender as necessidades do modelo emergente, e isso,

vem sendo promovido pelos milhões de dólares gastos em marketing, propagandas e

publicidades que "gratuitamente" invadem diariamente os lares, via televisão. As grandes

redes de televisão despejam diuturnamente dezenas de dezenas de comerciais com os mais

variados produtos destinados ao consumo, principalmente, do público infantil, clientela

vulnerável a todos os tipos de transformações.

As recomendações do Banco Mundial para os governos de que é mais rentável e

econômico o treinamento em serviço do que o que é gasto com a formação inicial,

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fornecem subsídios para implementar novas discussões sobre o atual papel da

educação em todos os níveis de ensino. É necessário, pois, abrir novos espaços de

luta no campo do conhecimento e da educação, de modo a impedir a capitulação do

setor educativo frente às novas propostas oriundas dos organismos encarregados de

"socorrer" a educação e os serviços sociais oferecidos pelos governos dos países

periféricos.

O Processo de Globalização na Economia

O sistema capitalista vem marcando com os seus ciclos a história de toda a

sociedade mundial. Baseado no sistema da livre iniciativa, na lei da procura e da oferta, o

modo capitalista de produção cria obrigatoriamente, a falsa ilusão de que em seu bojo o

crescimento econômico é permitido a todos fomentando uma luta, que a cada dia supera-

se a si mesmo. Dessa forma, verificam-se através dos tempos, constantes modificações na

vida econômica e social.

Da primeira Revolução Industrial e posteriormente em todas as outras que a

sucederam o sistema capitalista vem criando novas formas de superação e perpetuação

por meio de estratégias variadas e eficazes. Da universalização do comérc io

internacional, da instalação de multinacionais, em países em "desenvolvimento",

de filiais de grandes empresas industriais e de serviços, até o atual processo de

globalização, a economia mundial foi gradativamente sendo modificada, culminando no

processo de racionalização da economia atual.

As empresas multinacionais além de dominar os mercados nacionais e internacionais

bloqueiam o crescimento econômico e científico dos países onde se ins ta lam. Tanto

através das mult inac ionais quanto das "zonas de l iv re comércio" implantadas

em pontos geoestrategicamente corretos, o capital impõe formas, cria estratégias de

dominação e sujeição dos povos dos países periféricos.

Nos países desenvolvidos o acirramento da luta pela supremacia dos

mercados vem promovendo a criação de associações para comandar o comércio

internacional. O nascimento do Mercado Comum Europeu, do BENELUX, do NAFTA,

da atual União Européia, do Bloco Asiático, do MERCOSUL, são apenas recentes

formas de preparação para a expansão do capitalismo em escala mundial como forma

de superação do liberalismo e do aparecimento do neoliberalismo.

O neoliberalismo, termo usado para designar uma nova maneira de

organização do capital mundial, em oposição à política intervencionista e de bem-

estar social empreendida pelo Estado Liberal, traduz-se numa primeira forma de limitar o

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poder do Estado sobre a economia.

A onda neoliberal iniciada e levada a termo pelos países ricos com Margareth

Thatcher, na Inglaterra, Ronald Reagan, nos EUA, Brian Mulrony no Canadá e se

expandido poster iormente para os chamados países em "desenvolvimento" tais

como o México, a Argentina, o Chile e o Brasil, opera como uma faca de dupla serventia.

Nos países ricos, detentores do poder, o que se tem presenciado são políticas protecionistas

e o nacionalismo exacerbado pelos seus interesses, num "bem educado" fechamento do

mercado à entrada de produtos dos países periféricos. Contrariamente, os países pobres

ou "em desenvolvimento", abrem sob pressão econômica, as suas portas para a entrada de

capitais e tecnologias estrangeiras, tendo-se a falsa ilusão de estar participando

massivamente do comércio internacional. O aprofundamento da onda neoliberal carrega

consigo prejuízos econômicos que se refletem diretamente no setor social exemplificados

pela recessão, pelo desemprego, pela fome, pela miséria, e pela falta de investimentos

em infra-estrutura, na falta e na deterioração dos serviços essenciais prestados à

população, nos preços, no crescimento da economia informal, e na diminuição nos

padrões da qualidade de vida.

Segundo Fiori (1996), o projeto de globalização pode ser definido como:

"a intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distancia e vice-versa ou um processo dialético onde a transformação local é tanto uma parte da globalização quanto a extensão lateral das conexões sociais através do tempo e espaço”.

Para Fiori (1996i), os anos 90 emergiram como a era liderada pelo complexo

eletrônico, envolvendo profundas mudanças no modo de produção, nas formas de gestão, de

concorrência e de relacionamento entre o capital e o trabalho. Entretanto, o

relacionamento entre o capital e o trabalho, vem sobrecarregado de uma forte onda de

desestruturação da economia, seja ela, mundial, nacional, local, social, familiar, cujas

conseqüências intensificam o processo de aumento da pobreza mundial.

Misse (1996) caracteriza o processo de globalização como o:

"aprofundamento radical da internalização de empresas (...) baseada nos serviços lógicos, pelo aumento da competitividade, pela aceleração da produção em grande escala e pelo enfraquecimento das barreiras protecionistas nacionais"

dos países pobres e pelo fortalecimento das mesmas barreiras nos países centrais. O

enfraquecimento das barreiras nacionais para a entrada de bens estrangeiros favorece a

desestruturação econômica e industrial dos países periféricos ao mesmo tempo em que

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estabelece a explicitação dos objetivos do projeto neoliberal.

O acirramento pela competitividade no mercado trará impactos negativos

sobre o sistema de empregos, na estrutura ocupacional, nas redes de sociabilidade, e,

sobretudo, contribuirá para diminuir ainda mais a injusta distribuição de renda e a

estrutura política dos Estados atingidos.

O crescimento do setor da economia informal indica o destino dos cidadãos afetados

pelo desemprego, vítimas da globalização, e indica, sobretudo, uma nova reacomodação

dos novos fatores sociais frente à expansão competitiva e excludente do mercado. Cria-se,

por outro lado, instituições para fomentar o incremento da instalação das chamadas

micro-empresas, como forma de desestimular o sistema de empregos e, criar a

pretensa ilusão de que todo o cidadão é capaz de sobreviver como pequeno

proprietário num mundo econômico onde a cada dia, se agigantam as grandes empresas

em detrimento dos micros. No setor de fomento a instalação das micro-empresas o

SEBRAE vem contribuindo de forma decisiva e se firmando no mercado terciário

como prestador de serviços especializados.

O Brasil experimenta os efeitos negativos da globalização. A onda de privatizações e

o crescimento do desemprego iniciada no governo Collor e levada a cabo pelo governo

de Fernando Henrique Cardoso têm sentido como bons exemplos para se discutir

os problemas soc iais causados pelo processo globalizador.

O Brasil, país de muitas facetas e onde se misturam o moderno,

industrializado, rico, de classe média, com trabalhadores de carteira assinada, o

agrário moderno; mescla-se com o pobre de classe social indo de "média a baixa", sem

carteira assinada, o agrário paupérrimo, o trabalhador de economia informal, entre

outros, o miserável, há muito excluído da possibilidade de ascender em escala social.

Em todas essas faces, explicita-se um Brasil que não conseguiu, no amanhecer do século

XXI, resolver seus problemas sociais mais contundentes, de dar à população melhor

qualidade de vida, melhorar a distribuição de renda, erradicar a pobreza, a fome, o

analfabetismo, empreender uma reforma agrária justa, em fim, se estruturar dentro

do modelo anterior, que condições terá de enfrentar esses e os novos problemas

surgidos nesse período reorganizador do mercado?

No processo de inserção da globalização da economia do mercado

brasileiro no processo global verifica-se, o crescente intervencionismo

estrangeiro a que o país vem sendo submetido. A onda de privatizações que vem

ocorrendo -até com as estatais tidas corno as mais rentáveis- não encontra

precedentes na história. Alardear aos quatro cantos do país que as empresas

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estatais são perdulárias e inadimplentes pode ser apenas um meio de burlar a

confiança da população do país, ao mesmo tempo em que tais propagandas põe a

descoberto a que se presta o neoliberalismo econômico. Enquanto são vendidas as

estatais, por serem "prejudiciais" ao bom andamento do setor econômico, essas empresas,

ao passarem para a iniciativa privada recebem bônus fiscais que lhes permitem operar

no mercado. Por outro lado, são mandados para a reserva de trabalho milhares de

operários, ao mesmo tempo em que se deteriora o padrão de vida nacional.

A situação atual coloca o Brasil como um país do futuro? De qual futuro? O processo de

"modernização" pelo qual o país vem passando, tem sido processado à custa da

importação de tecnologia e de equipamentos que além de impedir o crescimento da

produção nacional, compete com qualidade superior e preço baixo dentro do próprio

mercado brasi leiro contr ibuindo, para a desqualificação e para o rebaixamento dos

produtos nacionais ao mesmo tempo em que, obriga dezenas de empresas a deixar o

mercado fomentando dessa forma. O crescimento do desemprego. A configuração e o

comportamento neoliberal do setor terciário apontam para o crescimento e para a

diversificação de uma economia competitiva formal, que manda milhares de trabalhadores

para a economia informal como única saída para fugir ao desemprego, à fome e à

miséria, não pode ser considerado como fator modernizador para a economia

nacional.

Deluiz (1994), ao analisar a questão da modernização, enfatizando o

crescimento dos serviços de automação no setor terciário brasileiro, aponta a busca

de maior produtiv idade como fator que levou bancos a aprofundar a especialização

do trabalho dos caixas, levando funcionários da retaguarda a uma atividade mais

autônoma, tais como a dedicação à parte comercial dos bancos. Com essa situação,

o setor bancário introduz os fatores básicos exigidos no processo de especialização

dentro da atual economia globalizada: flexibilidade, abstração, versatilidade, liderança,

comunicação, habilidade de discernimento, equilíbrio físico-emocional e capacidade de

decisão. Essas mudanças, essenciais no início no processo neoliberal, tomam-se

drásticas após a implantação desses serviços, não apenas no setor bancário, mas,

em todos os setores da vida econômica, pois causam desemprego e desemprego

causa fome, desnutrição, favorece a delinqüência, a prostituição e a desestruturação

familiar.

Influência da Globalização na Educação

A era da modernidade - entendida como a era das grandes transformações

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tecnológicas- produzidas nos grandes centros hegemônicos se remete à periferia como

um conjunto de bondosas cr iações c ientíf icas, acompanhadas de determinações

ideológicas sobre a modernização, capazes de remodelar toda a sociedade política e

cultural dos países periféricos. Assim, são modernos apenas os padrões econômicos,

sociais e culturais surgidos e desenvolvidos nos centros do poder. A transferência

dessa modernidade para a periferia em forma de transferência de tecnologia e

ideologia vem com um único objetivo: sustentar a hegemonia dos centros do poder,

garantindo através da ideologia a perpetuação desses centros, de forma que a

modernidade possa ser algo apenas almejado pelos países periféricos.

A história tem mostrando que só os países desenvolvidos transitam pelo mundo

moderno do poder, subjugando sob os domínios econômicos e políticos os países

periféricos, tendo estes, jamais adentrado como parte integrante do cobiçado

círculo dos países dominadores.

O sistema taylorista que separou em nome do aumento e do controle de produção, o

trabalhador operário do trabalhador intelectual, separou também a concepção do

todo. Numa forma de juntar novamente as partes no todo, o processo de

globalização propõe uma nova forma de concepção desse todo, porém, carregada de

uma enorme seletividade profissional, fato que de per si, é suficiente para despachar para

o mercado de reserva milhões de trabalhadores. Dessa forma, o mercado mundial

globalizado ensaia uma nova fórmula taylorista, observadas nas segmentações cada

vez mais nítidas das classes sociais dentro do atual modelo.

O avanço de tecnologias sofisticadas exige do trabalhador maior aprimoramento na busca

da perfeita harmonia com o processo produtivo. Concomitantemente, a inserção de novas

tecnologias no mercado de trabalho, manda para a reserva um exército de trabalhadores

cuja mão-de-obra tornou-se desnecessária frente aos processos de modernização e

automação implantados nos setores de produção, numa clara visão de que:

"a qualificação para o trabalho diante das inovações tecnológicas adquire um caráter dinâmico, no sentido de que a competência especializada para dado conjunto tecnológico pode to

rnar-se obsoleto e inadequado para outro aparato tecnológico. A própria lógica qualifica e

desqualifica o trabalho"(Kawamura, 1990:14)

Assim, a modernização implica num tipo de reorganização administrativa de

mecanismos que garantem o controle social e político, correspondentes aos pressupostos da

modernização. Nesse contexto, a educação é pensada numa determinada visão de

sociedade, para e a partir dessa visão estabelecer os valores, as normas, os conteúdos, as

pautas de conduta, as técnicas e os métodos de ensino, com os quais irá direcionar a

sociedade para atender as perspectivas dessa sociedade que a idealiza. Dessa forma, a

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educação parece estar a serviço, apenas da formação de mão-de-obra para atender as

demandas do grande capital. De outra forma, o capitalismo globalizado impõe à educação a

produção de um profissional altamente qualificado, dinâmico e com capacidade de decisão

para ocupar os lugares criados pela nova ideologia do capital.

O enfraquecimento dos Estados Nacionais de forma rápida e eficaz pelo

neoliberalismo, busca no componente educação a sua principal via de acesso. O

financiamento da educação pelos organismos internacionais traz consigo um conjunto de

regras e estratégias que põe a descoberto o foco de resistência centrado no setor

educacional. A utilização dos meios de comunicação de massa não são apenas postos ao

comando do capital, servem antes, para a promoção do controle das massas dentro de um

objetivo que visa atingir o dia-a-dia da escola, a fim de utilizá-la como centro divulgador das

idéias neoliberais.

Aceitar que os subsídios oferecidos à educação determinem as regras para a

educação, é, concordar com o jogo dos países centrais, fato que vem ocorrendo nas

últimas décadas onde os governos dos países periféricos, sobretudo, os da América

Latiria têm contribuído para a vitória de algumas batalhas nesse jogo de cartas marcadas

pelas idéias capitalistas.

A parceria entre o Brasil os Estados Unidos na formulação da Lei n. 5.692/71 é um

exemplo claro da visão educacional pretendida para a educação brasileira. Ao implantar

oficialmente a reforma do ensino de 1° e 20 graus o governo brasileiro assinou a

deterioração da qualidade do ensino. Pretender naquele momento que, no ensino de 2°

grau, a educação profissional não fosse trabalhada em maior intensidade que à educação

geral era, sem dúvida, a maior expressão de hipocrisia. Quem no momento dessa reforma,

se não a pequena parcela da população abastada estaria interessada em educação geral?

Por outro lado, não podemos negar que numa época de profundas mudanças, aquela não

tenha sido organizada com a "melhor" das intenções. Entretanto, se por um lado o crescimento

econômico necessitava de urgente mão-de-obra "especializada", o setor educacional

necessitava manter um padrão mínimo de qualidade nesse ensino, fato que, com raras

exceções foi possível verificar. No momento em que todos os recursos foram direcionados

para a educação técnico-profissional, o sistema educacional brasileiro permitiu a queda

brusca na qualidade da educação. A falta de investimentos determinou a deficiência na

qualidade da educação oferecida pelo sistema público, passando a existir, dessa forma,

uma relação inversa: enquanto cresce a cada ano o número de crianças em idade

escolar decrescem gradualmente os investimentos no setor educacional. Dados da década

de 80 mostram que a redução dos gastos com a educação caiu de 24,4% para 18,1% em

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toda a América Latina, enquanto cresciam as cifras com o pagamento dos juros da dívida

externa, em detrimento da alocação de recursos para os setores sociais contribuindo ainda

mais para a queda na qualidade do ensino público.

Tratar da qualidade da educação requer compromissos por parte de toda a sociedade e

não apenas, por parte dos educadores. Proporcionar ao ser humano condições de

preparação para a vida cotidiana requer além da valorização das condições implícitas no

indivíduo, condições materiais externas que possam permitir o patrocínio do crescimento

das habilidades, indispensáveis a uma boa formação.

Os constantes ataques dirigidos pelo sistema capitalista à educação pública

buscam confundir o papel social da educação com o fito de substituir seus fins sociais em

objetivos empresariais. Entre os mais freqüentes ataques, estão os que dizem ser a

educação mal administrada e por isso perdulária: que os principais responsáveis pelo

fracasso da educação são os professores e que a educação não se ajusta ao mercado,

visam unicamente inserir na população o descrédito na educação pública, promovendo em

contra partida a ideologia de que o sistema privado de ensino é sempre superior a aquele.

Gastar mal, pode não ser a causa determinante e nem regra geral para o problema da crise

educacional, que, aliás, seria crise educacional ou seria crise ideológica do capital? O

cerne do problema enfrentado atualmente pela educação pode estar diretamente

vinculado aos baixos salários pago aos professores da rede oficial de ensino (em todos

os níveis de governo), à falta de investimentos no setor podem ser visto como estratégias do

capital para o enfraquecimento no setor educacional público. O baixo salário pago aos

professores transforma-os em verdadeiros maratonistas escolares, fato que impede, em

nome da própria sobrevivência na maioria dos casos, um verdadeiro comprometimento com

a educação. Culpar os professores e educadores pelo distanciamento cada vez mais

acentuado entre o ensino e sua qualidade, é apenas uma forma capitalista de tentar tomar

as rédeas do poder no setor educacional, não com o objetivo de melhorá-la, mas, no

sentido de torná-la privada, empresarial, lucrativa para o mercado e totalmente vinculada

aos ditames dos governos neoliberais. Dessa forma, a adequação da educação ao

mercado viria de certa forma, muito mais rápida. A automação globalizada transformaria

mais rapidamente homens em máquinas, enquanto se deterioraria a capacidade de se

pensar socialmente o futuro da humanidade.

Influência da Globalização na Educação Brasileira

A introdução desenvolvimentista da educação no Brasil remonta as teorias da

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modernização, surgidas sob a influência da Escola Nova e que se fez representar por

nomes como os de Fernando Azevedo e Anísio Teixeira (partidários do

Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova-1932) cuja compreensão, era de que a

escola deveria se constituir no centro modernizador da Educação através do conhecimento

científico. O pensamento escolanovista vai se enfraquecendo nos vinte anos posteriores,

cedendo lugar ao pensamento de que a ducação deveria ser transformada em educação

profissional.

Na década de 1960, se articulam no Brasil novas condições de adequação do

sistema de ensino à modernização econômica que paulatinamente é implantada

no país. Essas condições favorecem o surgimento de cursos técnico-profissionais de

nível médio (secundário) que for talecem a ocupação economicista da educação

ao mesmo tempo em que, em 1964 se iniciam os fortes mecanismos repressivos dos

"aparelhos ideológicos de Estado" (Althusser, 1970), para assegurar os interesses

capitalistas representados pela ordem constituída dos governos militares sob a tutela

dos governos dos países centrais.

No Brasil, é preparado um aparato de Estado para atuar como elemento

regulador e ao mesmo tempo impulsionador do processo de desenvolvimento

empreendido (pelo governo JK) como forma de implementação da modernização da

"sociedade política" a fim de possibilitar a internalização do capital.

Com o novo regime implantado, a educação brasileira passa a ser apenas, um

componente destinado a produção de mão-de-obra, fundamental para o

suprimento das necessidades criadas pelo capital, cuja finalidade seria a

"integração do país" ao capitalismo internacional.

A política adotada pelo governo pós-68 avança flagrantemente sobre o sistema

educacional do país. A Lei n° 5.692/71 reformula todo o sistema de ensino, deitando

clara a tônica que iria reger os novos rumos da educação no Brasil: formar recursos

humanos técnicos e científicos, de nível médio e especialista de nível superior,

para atuar na expansão educacional capitalista brasileira. A Lei n° 5.692/71 decreta

compulsoriamente a supremacia do ensino técnico nas escolas oficiais, proliferando

em todo o país as escolas técnicas federais.

Embora, nesse período o país tenha conseguido uma industrialização plausível, esta

não foi suficientemente forte para elevar o país à categoria de moderno e

desenvolvido, como pretendiam os governantes. Ao contrário, acelerou-se a

dependência externa. No âmbito educacional, a política de desenvolvimento

implementada pelos sucessivos governos, dão conta de que a qualidade ria

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educação vem despencando vertiginosamente, ao mesmo tempo em que aumenta o número

de analfabetos no país. Se a atual política desenvolvimentista persistir a educação corre o

risco de se transformar em mera forma de atender as demandas do capital no sentido de

que "reduzir a qualidade do ensino ao paradigma tecnológico é retroceder no tempo, atrelar a escola ao setor produtivo e renunciar sua missão fundamental que é a formação integral do homem"(Costa/Silva. apud Saviani. 1996).

Enquanto o projeto neoliberal condena toda e qualquer participação do Estado na

economia, as multinacionais se implantam nos países periféricos, obtêm isenção fiscal e

outros subsídios estatais. E importante atentar para a dupla subserviência a que servem

nossos governantes. Enquanto permitem ataque ao poder econômico nacional,

transformam as multinacionais em vitrine para as suas compras. Para essas empresas,

vencer as concorrências se torna presa fácil: abrem caminhos para o diálogo entre o

governo e matriz da empresa sediada longe dos limites geográficos do país, ao

mesmo tempo em que impedem o crescimento das empresas nacionais.

Outros freqüentes ataques disparados pelo projeto neoliberal, contra o governo e,

conseqüentemente contra o sistema educativo (brasileiro) são enfocados pelos

meios de comunicação de massa (TV, Jornais, rádio) responsabilizando o sistema

governamental pela corrupção ineficiência administrativa, desperdício, mau uso do erário

público, entre outras. Desnudam o sistema anterior, agora suplantada pela mais nova forma

de reorganização econômica-política mundial. Esses ataques buscam enaltecer a iniciativa

privada em detrimento do setor público.

A produção das famosas "apostilas," usadas em quase todos os cursos, elaboradas

em sua grande maioria sem qualquer procedimento didático-metodológico, se

transformam em guias práticos a direcionar as atividades dos docentes e dos discentes,

numa forma clara, de tomada da posição dianteira pelo setor privado sobre o sistema público

de educação. Além de nada proporcionarem de inovação em matéria de ensino, as apostilas

arranjam um jeitinho de tornar seu uso obrigatório em detrimento dos livros didático

considerados em maior profundidade de conteúdos, e da própria criatividade do professor,

passando este a mero cumpridor de tarefas escolares.

A Lei n°' 9.131 /95, que criou o exame nacional de cursos, sistematizada pela Portaria

249/96, são formas claras e definidas da imposição neoliberal, no sentido de adequar todo

sistema educacional brasileiro às regras do capital. A preferência inicial pela verificação do

ensino superior (cursos técnico-liberais) apontam para a aproximação gradual e rápida sobre

os cursos de formação de professores. Daí, chagar até as dimensões do ensino médio

demandará apenas ligeiros ajustes no projeto e no objetivo central.

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Os novos estudos que foram e estão sendo gestados desde o início da década de 90,

apontam para novos ajustes da educação frente às necessidades do capital. Adequar os

currículos escolares para o oferecimento de habilidades cognitivas mínimas,

escamoteando habilidades básicas próprias do crescimento integral do indivíduo, será a

tônica que regerá a educação dentro do sistema neoliberal.

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*Jose Maria Leite Botelho. Professor do DEGEO/UFRO, Mestre em Educação pela

UFRJ.

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O O O O COMÉRCIO COMÉRCIO COMÉRCIO COMÉRCIO E E E E AS ROTAS FLUVIAIS NA AS ROTAS FLUVIAIS NA AS ROTAS FLUVIAIS NA AS ROTAS FLUVIAIS NA SOCIEDADEGUAPOREANA COLONIALSOCIEDADEGUAPOREANA COLONIALSOCIEDADEGUAPOREANA COLONIALSOCIEDADEGUAPOREANA COLONIAL

Marco Marco Marco Marco Antonio Domingues Teixeira.Antonio Domingues Teixeira.Antonio Domingues Teixeira.Antonio Domingues Teixeira.

Resumo: O comércio constituiu-se como principal fonte de abastecimento para o vale do Guaporé no período colonial. Internamente a produção agrícola de subsistência abastecia a região de gêneros de necessidade imediata como o milho, a mandioca, feijão e hortaliças. No entanto os demais produtos vinham de fora, através de rotas estabelecidas entre São Paulo-Cuiabá-Vila Bela, Bahia-Vila Boa de Goiás-Cuiabá-Vila Bela e finalmente Belém do Pará-Vila Bela, através do roteiro fluvial do Amazonas-Madeira-Mamoré e Guaporé. Entre os produtos trazidos por terra, através das rotas sertanistas, ou pelos rios, através das rotas monçoeiras estavam: escravos, tecidos, utensílios domésticos, armas e munições, gêneros alimentícios como sal, açúcar, vinhos, queijos e carnes, papel, materiais para construção, objetos para culto e celebrações religiosas, objetos para mineração e muitos outros. Palavras – Chave: Produção agrícola, Sertanistas, Gêneros Alimentícios e Mineração. Abstract: Trade is the main source of supply for the Valley of the Guaporé in the colonial period. Internally the subsistence agricultural production supplied the region of immediate necessities such as maize, cassava, beans and vegetables. However the rest came from outside, through routes established between São Paulo-Cuiabá-Vila Bela, Bahia-Vila Boa de Goiás-Cuiabá-Vila Bela and finally Belém do Pará-Vila Bela River through the roadmap of Amazonas-Madeira-Mamoré and Guaporé. Among the products brought by land, through the routes sertanistas, or by rivers, through the routes monçoeiras were: slaves, fabrics, household items, weapons and ammunition, groceries as salt, sugar, wine, cheeses and meats, paper, construction materials, objects for worship and religious celebrations, objects for mining and many others. Keyword: Agricultural production, Sertanistas, groceries and mining.

O comércio constituiu-se como principal fonte de abastecimento para o vale do

Guaporé no período colonial. Internamente a produção agrícola de subsistência abastecia a

região de gêneros de necessidade imediata como o milho, a mandioca, feijão e hortaliças.

No entanto os demais produtos vinham de fora, através de rotas estabelecidas entre São

Paulo-Cuiabá-Vila Bela, Bahia-Vila Boa de Goiás-Cuiabá-Vila Bela e finalmente Belém do

Pará-Vila Bela, através do roteiro fluvial do Amazonas-Madeira-Mamoré e Guaporé. Entre

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os produtos trazidos por terra, através das rotas sertanistas, ou pelos rios, através das rotas

monçoeiras estavam: escravos, tecidos, utensílios domésticos, armas e munições, gêneros

alimentícios como sal, açúcar, vinhos, queijos e carnes, papel, materiais para construção,

objetos para culto e celebrações religiosas, objetos para mineração e muitos outros. A

característica maior desse comércio foi sempre a interdependência com a produção de ouro.

As rotas comerciais foram tanto mais ativas quanto maior foi a produção de ouro, e decaíram

na medida em que o ouro se tornou escasso. No entanto outro fator determinante para o

abastecimento local através do comércio monçoeiro e sertanista foi a questão da

política fronteiriça, que requisitava a franquia de um roteiro fluvial suficientemente

estruturado para garantir o abastecimento bélico, de gêneros alimentícios, medicinais

e recursos humanos para os trabalhos e defesa local. Assim ao se estruturarem os roteiros

comerciais do vale do Guaporé com o restante da colônia teve-se em mente a importância

da manutenção da produção aurífera como elemento indispensável para garantir o

abastecimento local que garantiria por sua vez a guarda eficiente das fronteiras.

Nos primeiros anos após a descoberta das minas do Mato Grosso o comércio se

realizava sempre pelas rotas que ligavam a região guaporeana a Cuiabá e esta a São

Paulo e Rio de Janeiro. A primeira constatação que se faz neste caso é a precariedade do

abastecimento. A falta de gêneros, mesmo os de primeira necessidade era uma

possibilidade muito real. Aos curtos períodos de euforia correspondentes à chegada de uma

monção ou de uma tropa sertanista sucediam-se longos períodos de crise e

desabastecimento, com catástrofes como a fome e o conseqüente aumento das epidemias.

A inconstância do abastecimento era motivada por fatores diversos como ataques indígenas,

naufrágios, excesso de chuvas, secas, epidemias, crise na produção aurífera ou mesmo

práticas de especulação. Assim o cronista Barbosa de Sá registra que devido a um ataque

dos índios Paiaguás: "naó chegou neste ano fazenda alguma de povoado que a que escapou

do gentio em outras Canoas que vieraó atras chegou podre pello que houve falta de tudo; e

chegouse a dar por um frasco de sal meya libra * de ouro e por falta delle senaó

admenistrava o Baptismo. “O Barão de Melgaço refere-se a 1732 como outro período de

desabastecimento que foi provocado pela” visível decadência (das minas de Cuiabá) segundo

uma extensa petição dirigida ao provedor pelo capitão-mor Luís Vilares e outros. A dita

petição foi feita em conseqüência dos estragos que havia feito o gentio e pela notória falta de

ouro nas faisqueiras, carência de gêneros de consumo e de víveres. Dizem que chegara a se

vender o prato de sal por 10 oitavas, camisas de linho por 12 e a libra de pólvora também por

12 oitavas e nos anos anteriores o milho foi vendido a razão de 12 oitavas e o feijão 24 a

30.lx O desabastecimento de gêneros como o sal implicavam na falta de outros ainda

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mais importantes como a carne. uma vez que o único modo para sua conservação e

distribuição para os destacamentos militares fronteiriços era através de seu salgamento. A

falta constante de todo tipo de gêneros também é constatada pelo governo e Rolim de Moura

escreveu que faltavam "as coisas mais precisas para o comum contento, além das doenças a

que se vive sujeito... Por falta de vinho estamos quase a ficar sem missa nem sacramentoIxi.

Justificando-se a partir do elevado custo de todo tipo de gêneros, o governador Rolim

de Moura passou a pleitear a abertura da rota tal Guaporé-Mamoré-Madeira e Amazonas,

que ligaria Vila Bela da Santíssima Trindade a Belém do Pará, em carta dirigida a Diogo

Mendonça Corte Real em 28 de maio de 1752 o governador afirma:

“Não haver outro meio para o aumento desta terra mais do que buscar modo, por que se elimina a grande carestia dela. O ú n i c o q u e m e o c o r r e é franquear Sua Majestade o comércio com o Pará, pois só por esta via podem vir às fazendas por preços que façam conta aos seus moradores... A experiência o mostrou já, por que na ocasião em que aqui chegaram as primeiras canoas do Pará se venderam os gêneros todos por preços inferiores, que os de Cuiabá...”

lxii

A seguir apresentamos uma relação de objetos e gêneros e seus preços praticados

em Cuiabá e no vale do Guaporé (Vila Bela). Esta relação elaborada pelo próprio Rolim de

Moura foi um dos instrumentos por ele utilizados para solicitar a D. José I a abertura da rota

do Madeira, que até então tinha sua navegação interditada por motivos de estratégia

política, militar e econômica.

TABELA N°01 lxiii

2- CUSTOS DE GÊNEROS, OBJETOS E MERCADORIAS EM CUIABÁ E VILA BELA

Objeto Custo em Cuiabá Custo em Vila Bela Alavanca 2 Oitavas 6 Oitavas

Libra de Aço ½ Pataca de ouro 12 Vinténs*1 e meia oitava Libra de Pólvora 1 ½ oitava 2 ½ a 3 oitavas 1 alqueire de sal 9 a 10 oitavas 24 oitavas

Baetas*2 1 Cruzado *3 de ouro ¾ 1 oitava e ¼

Ao pretenderem a ligação comercial com o Pará através da rota fluvial do Guaporé-

Madeira e Amazonas, as autoridades coloniais e metropolitanas tinham em mente não só

aliv iar o auto custo de manutenção do abastecimento praticado até então através

de Cuiabá, mas, sobretudo facilitar o escoamento do ouro por um roteiro mais seguro,

reduzindo as possibilidades de seu contrabando pelas rotas terrestres para São

Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, Mesmo enquanto esteve legalmente proibida, a

prática clandestina desse roteiro era de conhecimento e anuência das autoridades

coloniais. O próprio governador Rolim de Moura não obstruía monções de alguns que

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pediam para vir buscar gêneros na capital paraense:

“Esta consideração foi causa de que eu não negasse a licença a alguns que a

pediram para ir buscar fazendas àquele porto, e que ainda me atrevesse escrever ao

Governador daquela Capitania para que me permita a alguns, ou destes ou dos que lá

estão já tornarem com as suas carregaçõeslxiv.”

Além do que procurava manter contatos com o governador do Pará, O Capitão-

General Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do Marquês de Pombal. Em

seus contatos com o governador do Pará Rolim de Moura apresenta as vantagens

tanto para Mato Grosso quanto para Belém da abertura da rota fluvial do Madeira,

ressaltando ainda a maior rapidez das comunicações com a Metrópole através dessa

via.

A abertura da rota das monções do norte foi fruto da permanente insistência

das autoridades coloniais do Pará e, sobretudo de Mato Grosso. Assim, pela Provisão de

14 de novembro de 1752, conhecida em Mato Grosso somente em 1754 ficava

permitida e franqueada a navegação pelos vales do Guaporé, Madeira e Amazonas,

estabelecendo-se ligação comercial entre Vila Bela e Belém do Pará, proibindo-se a

comunicação entre as duas capitanias por qualquer outro caminho fluvial que não fosse

a rota do Madeira (conforme evidencia o Barão de Melgaço, essa interdição perdurou

até 27/04/1791 quando se abriu a navegação pelo Xingu e Tocantins)lxv. A rota do

Madeira até então interditada por temor de uma expansão castelhana por territórios

coloniais portugueses era agora franqueada entre outros motivos para que se

inviabilizassem tentativas de contrabando de ouro de Mato Grosso com a colônia

castelhana, bem como suas ações expansionistas e o comércio clandestino

realizados entre os colonos de Mato Grosso e as Missões da margem esquerda do

Guaporé. A abertura da rota fluvial do Madeira deveria ser consolidada com a fundação de

arraiais ao longo de alguns pontos estratégicos que garantiriam apoio aos comboieiros

bem como a fiscalização de suas cargas. As medidas de prevenção ao contrabando e

proteção das f ronteiras e rotas f luv ia is seriam completadas com a cr iação de

destacamentos militares e fortificações. Baseando-se nestas premissas surgiram os

arraiais de Santo Antônio das Cachoeiras do Rio Madeira, a partir de uma missão

jesuítica; o povoado de Nossa Senhora da Boa Viagem do Salto Grande, fundado pelo

Juiz de Fora Teotônio Gusmão, na cachoeira que hoje leva o seu nome e o arraial do

Balsemão, localizado na cachoeira do Giraulxvi.

O estabelecimento da rota do Madeira levantou protestos por parte da Alfândega do

Rio de Janeiro que alegava que sofreria graves prejuízos sobre os direitos de entrada dos

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produtos, mercadorias e escravos para São Paulo e daí para o Mato Grosso. Entretanto a

Capitania do Mato Grosso obteve a permissão régia e passou a ser um atraente mercado

consumidor para os comerciantes de Belém do Pará. Após ser franqueada a navegação pelo

Madeira o governo estabeleceu permanentemente sua presença, incluindo em todos os

comboios embarcações da Coroa.

A empreitada das monções eram penosas e marcadas sempre por grandes riscos.

Além das enormes distâncias a serem vencidas os comboios enfrentavam ainda obstáculos

naturais como as 20 cachoeiras do Madeira e Mamoré ataques de nações indígenas hostis

como os Mura e os Mundurucu, que lutavam contra a invasão de suas terras pelos

navegadores, a escassez de alimentos e a fome. Em terra os perigos não eram

menores: cobras, pragas de insetos, animais peçonhentos, formigas, onças e plantas

de espinhos venenosos. Nos banhos de asseio corria-se o risco de ataques de piranhas,

jaús, jacarés, piraíbas, candirus, sucuris e arraias com ferrões venenosos. Na água além do

perigo das cachoeiras havia os gigantescos troncos de árvores (que deram nome ao no

Madeira), cujo choque com as embarcações provocava danos, naufrágios e mortes. Por fim

salientamos ainda o perigo das doenças tropicais típicas da região como a malária, o

tifo, a febre-amarela e a lestimaniose. Além de todos esses perigos reais o desconhecido

povoava de fantasias e seres fantásticos o imaginário dos viajantes reforçando superstições,

mitos e crendices, contribuindo para aumentar o grau de tensão das viagens. Em seu diário

de navegação pelo rio Madeira, Francisco de Mello Palheta retrata a viagem da bandeira por

ele comandada em 1722. Dela retiramos alguns trechos que são particularmente

esclarecedores sobre o alto grau de dificuldades pelos quais passavam os comboieiros:

"... à cachoeira dos Iguarites, aonde chegamos vésperas de São João e nela vimos sem encarecimento uma figura do inferno (...), pois nenhuma (cachoeira) se iguala, nem tem paridade a esta do rio Madeira, na sua grandeza e despenhadeiros tão altos que nos pareceu impossível a passagem (...) foi necessário fazer caminho por terra (...) mais de meia légua. Daqui continuamos nossa derrota passando por cachoeiras, umas atrás das outras... a que chamam Mamiu, que gastamos três dias para passar (...) e com tal perseguição de pragas de piuns *-(...) esta cachoeira(...) é tão terrível, monstruosa e horrível, que mesmo aos naturais de cachoeira mete horror e faz desanimar. Depois das frutas do mato acabadas, comíamos que ate carne de lagartos, camaleões e capivaras... Neste lugar deu parte o principal Joseph Aranha ao cabo haver visto uma mui grande aboiada *

2, que

afirmam teria parco menos de 40 passos*3

de comprimento e de grossura julgaram ter quinze a dezessete pés*

4 , grandes monstruosidades tem esse rio... ”

l x v i i

Esse conjunto de fatores de tensão tanto real quanto imaginários mantinha

as tripulações sobressaltadas e inquietas (Levava-se um ano e meio a dois anos e

meio para se realizar uma viagem de ida e volta entre Vila Bela e Belém do Pará). O

trecho encachoeirado requeria o trabalho de 100 a 120 homens para sirgar as

embarcações ou mesmo arras tá-las por terra, o que provocava estragos nos

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cascos e retardamento na viagem interrompida para consertos e reparos. Na maior

parte das vezes as embarcações deveriam ser esvaziadas e sua carga levada pelos

participantes, por picadas e trilhas nas margens dos rios. Das vinte cachoeiras,

somente umas poucas eram atravessadas a remo. As embarcações utilizadas eram

chamadas igarités e tinham capacidade para o transporte 1000 (de mil) a 2000 (duas

mil) arrobas de cargas, além de possuírem velame. Para se defender dos perigos,

eram dotadas peças de artilharia na popa e na proa. Rolim de Moura ainda adaptou-lhes

bacamartes, foices e chuços de ferro, para protegê-las das abordagens de indígenas,

quilombolas, castelhanos ou salteadores. l xv i i i A despeito de todas essas

dif iculdades observadas, o comérc io que se estabeleceu entre Vila Bela e Belém do

Pará foi enormemente rentável. No período áureo das lavras mato-grossenses, entre

1760 e 1780, registraram-se a chegada de duas monções por ano em Vila Bela. Esse

comércio foi intensificado com a criação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão que

integrou o vale do Guaporé e as minas de Mato Grosso ao mercantilismo colonial. O

comércio organizou-se com base no sistema crédito/dívida e forneceu à região

escravos, tecidos, louças, gêneros alimentícios, munições, materiais de garimpo

e agropecuários. lxi x Na composição dos preços entrava a possibil idade de

insolvência dos devedores, as dificuldades de transporte, os riscos de perda parcial

ou total da carga, a deterioração dos produtos perecíveis, a imobilização do capital e a

instabilidade de extração do ouro nas minas de Mato Grosso. As lavras, a edificação

da vila e as lavouras garantiam um mercado promissor, sempre ansioso por mais

braços cativos. Dessa maneira, formou-se, através da Companhia de Comércio do

Grão Pará e Maranhão, uma rota fluvial constante, que abastecia o vale do Guaporé

de negros e gêneros comercializados em Belém do Pará. Abaixo relacionamos alguns

itens constantes nos carregamentos das Companhias com destino à Praça de Mato

Grosso e seus respectivos valores obtidos de uma Memória dos Preços que no

Mato Grosso São Vendidos os Gêneros Secos e Molhados (1772)lxx.

TABELA N°02

3 - PRODUTOS E PREÇOS PRATICADOS PELA COMPANHIA DE COMÉRCIO DO GRÃO-PARÁ E MARANHÃO EM MATO GROSSO

PRODUTOS CUSTO EM MATO GROSSO

CUSTO EM LISBOA (L) OU NO PARA (P)

Escravo negro "bom 200 oitavas ou 300.000 réis 80.000 réis (P) Escravo negro "inferior" 160 a 180 oitavas 60.000 réis (P Escravas negras 2 arráteis de ouro ou 384.000

Réis 70.000 réis (P)

Sal 15 a 30.000 réis / alqueire 81 réis (L) Quilo flamengo 3.000 réis / unidade -- Vinho tinto 3.000 réis / frasco -- Vinagre 3.000 réis / frasco 6.000 réis i pipa (L) Azeite 3.000 réis / frasco 2.000 réis / barril (L) Aguardente 3.000 réis / frasco 44.443 / pipa (L)

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Farinha de trigo 3.000 réis p/ cada 3 arrobas -- Paio 900 réis cada -- Chá 6.000 réis / arrátel 300 réis (L) Café 750 réis / arrátel -- Manteiga 750 réis / arrátel -- Baeta encarnada, azul 15 tostões*' / côvado*= -- Pano encarnado, azul ou Pardo

4.500 réis / côvado --

Chapéus finos 10.500 réis/unidade -- Chapéus grosseiros 4.500 réis' unidade -- Meias de seda 7.500 réis / par -- Meias linha 1.500 / unidade -- Panos de linho para 1.500 réis / vara*' -- Lençóis Panos de linho para camisas

2.260 réis / vara --

Panos de bertanha 9.000 réis / vara 3.000 réis (P) Panos de cambraia lisa 7.500 réis / vara -- Abotoaduras de metal 9.000 réis / par -- Veludo encarnado, azul e preto

7.500 réis / côvado --

Tafetá 1.500 réis côvado -- Seda lisa 4.500 réis / côvado -- Facas Flamengas 400 réis / unidade 84 réis (L) Tesouras 750 réis / unidade -- Espelhos pequenos 400 réis / unidade -- Pentes de marfim 400 réis / unidade -- Pentes de tartaruga 1.500 réis / unidade -- Machados 3.000 réis / unidade -- Foices 1.500 réis / unidade -- Anzóis 3.000 réis / dez. -- Fechaduras 2.250 réis' unidade --

O lucro obtido pelos mercadores que compravam mercadorias no Pará para

revendê-las em Mato Grosso sofria limitações como as que foram ordenadas pelo

Marquês de Pombal aos governadores do Pará e Mato Grosso a fim de que se

controlassem o lucro entre 10 e 12% sobre o preço das mercadorias no Pará,

considerando-se ainda o custo de costeamento de suas canoas.

Fretes e despesas diversas.............................................18% Riscos e avarias...............................................................10% Lucro permitido.................................................................12% Preço permitido para venda..............................................40%

Pratos 750 réis / unidade 10 réis (L) Louça (da Índia?) 45.000 réis / aparelho de chá -- Pratos (de louça da Índia?)

2.250 réis / unidade --

Copos de vidro 750 réis / unidade -- Frascos de vidro 1.200 réis / unidade -- Ferro em barra (da Suécia?)

400 réis / arrátel --

Aço 750 réis / arrátel -- Cobre ou caldeirão 1.500 réis / arrátel -- Pólvora 4.500 réis / arrátel -- Estanho 1.500 réis / arrátel -- Cera Branca 1.500 réis / unid. de vela, '/z

Arrátel --

Alfazema 400 réis / arrátel -- Sabão 750 réis arrátel --

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Criada pelo Alvará Régio de junho 1775, a Companhia de Comércio do Grão-Pará e

Maranhão deveria atender às necessidades de desenvolvimento geral da parte norte

da colônia através da atividade comercial e sua integridade territorial. A Companhia

detinha a exclusividade do comércio com as capitanias e monopolizava o abastecimento de

escravos no norte, através dos portos de Belém e São Luís conforme o artigo 30 do

Alvará citado acima. O lucro de suas ativ idades seria verdadeiramente elevado,

como podemos observar pelo "Memorial dos Preços de Mato Grosso" que

infelizmente não menciona os preços de custo do local de origem. No entanto, é

necessário observar que ao organizar sua estratégia de penetração continental pelas

capitanias do Pará, São José do Rio Negro e Mato Grosso a Companhia promovia mais

do que o mero abastecimento, a canalização de toda a produção de drogas do sertão e

principalmente do ouro retirado das minas do Mato Grosso, pois por ordem da

Secretaria de Estado em Lisboa toda a produção das lavras seria escoada pela rota

do Madeira lxxi i. Dessa forma fortalecia-se a presença do Estado Colonia l na

região fronteir iça, estimulava-se o povoamento e a exploração do ouro através do

abastecimento mais barato e mais regular efetuado pela Companhia e

proporcionar-se-ia maiores lucros à Praça de Belém e à Alfândega Real. Estes itens

são evidenciados na correspondência entre Mendonça Furtado e Corte Real:

"O comércio pelo rio Madeira, com o qual aumentaram as minas, o comércio e o rendimento desta Alfândega. Seguraremos a navegação do Madeira e do Guaporé e ficaremos fa

rtes naqueles limites nos

quais não tínhamos força alguma com que repelir violência dos vizinhoslxxiii

.”

A consolidação da rota do Madeira provocou uma intensa ligação entre Vila Bela e

Belém, levando a um declínio acentuado o comércio realizado pelas monções do sul

através do Rio de janeiro e São Paulo.

O abastecimento, embora mais barato e regular do que o anteriormente feito pelas

rotas de São Paulo e Rio de Janeiro, sempre foi considerado insuficiente, quer pela

população, quer pelas autoridades de Mato Grosso. Esse fato se agravava sobremaneira

no tocante ao abastecimento de mão-de-obra escrava. Nas correspondências de D.

Antônio Rolim de Moura, encontramos uma longa exposição de motivos pelos quais

padeciam os habitantes do vale do Guaporé do desabastecimento e da carestia:

"Não tem nenhum outro obstáculo que por hora para fazer eleger com preferência os das outras Praças. Mais do que a maior facilidade que tem de alcançarem fianças ou fazendas, e o maior número de pretos que acham para seus transportes: cuja carestia e mais que toda grande esterilidade que encontram nessa cidade os faz: desanimar para prosseguirem um comércio que não podem sustentar sem estes socorros. Por isso exorto vossa mercê que participando aos Deputados da Mesa este objeto. Lhe hajam de representar que nas maiores remessas de escravos

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consistia a maior parte do aumento e felicidade não só destas minas mas tão bem deste estado.”lxxiv

A demanda comercial era sustentada, principalmente, pelos mineiros e pelos

governos. Ambos os segmentos não conseguiam assegurar seus pagamentos,

premidos por dívidas provenientes de gastos públicos imprescindíveis (no caso do

governo) ou, no caso dos mineiros, esmagados pelo alto custo dos escravos, sua baixa

produtividade e rápida invalidez e instabilidade das lavras, dessa forma, as dívidas

cresciam e rolavam como mostram os balanços das Companhias do Grão-Pará e

Maranhão. Esse endividamento aumentava a dependência do comércio monçoeiro e

limitava as oportunidades de acúmulos internos, o que, em última análise, impedia o

crescimento da capitania e a diversificação das atividades produtivas.

Com a extinção da Companhia do Grão-Pará e Maranhão em 1778, o fornecimento

de artigos e escravos sofreu uma brusca e repentina redução, obrigando os

comerciantes a rearticularem seus roteiros e elevando ainda mais os já elevadíssimos

preços praticados. Nas primeiras décadas do século XIX, a rota comercial do Madeira já se

encontrava em profunda decadência terminando por extinguir-se em meados desse mesmo

século. O abastecimento cada vez mais precário e esporádico passava a ser feito

novamente através das rotas do Rio de Janeiro e São Paulo e por intermédio de Cuiabá.

O contrabando, no entanto, impulsionou parcialmente a economia regional, tornando-

se uma estratégia possível numa região fronteiriça onde as severas leis coloniais

inviabilizavam o intercâmbio regular e legalizando entre as duas colônias, conforme

evidencia Luísa Volpatolxvv. Foi justamente através dessa prática e a conseqüente obtenção

da prata que se conseguiu garantir alguma condição de barganha entre a capitania e os

grandes centros de poder colonial, o que não foi suficiente para criar condições de

superação da crise provocada pela decadência da mineração. Esse quadro sombrio

agravou-se sobremaneira ao longo das primeiras décadas do século XIX. A região passou

então por um intenso processo de despovoamento, que se ampliou na medida em que os

focos da tensão fronteiriça deslocaram-se progressivamente para o vale do Paraguai. Aos

poucos, mas ininterruptamente a decadência foi se instalando, até que com a transferência

da capital para Cuiabá o vale do Guaporé passou a ser uma região notoriamente esquecida,

povoada somente pelos negros, descendentes de escravos que ali permaneceram.

A questão da decadência da navegação pela rota do Madeira liga-se primordialmente

ao fato da decadência das próprias minas do Mato Grosso, principalmente as do vale do

Guaporé, o que provocou um crescente endividamento da Capitania, junto à

Companhia de Comércio do Grão-Pará. Em 1769 a Capitania devia 55:885$715 réis;

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em 1770 essa dívida subiu para 280.000$000 réis, em sua maior parte oriunda do

comércio monçoeiro.lxxvi A desativação da Companhia é também a causa fundamental da

decadência da rota cio Madeira, como ressalta Dom Francisco de Souza Coutinho.lxxvii A rota

do Madeira atendeu primordialmente aos interesses da política do Marquês de Pombal,

constituindo-se com as idéias de solidificação do fisco do ouro e do aparelhamento

estratégico-militar para a defesa de fronteiras num dos elementos que garantiu à empresa

mercantilista portuguesa a plena exploração das riquezas produzidas nas capitanias da

Amazônia. A decadência da produção aurífera que gerou urna ampla crise econômica e

financeira na região e a mudança das políticas diplomáticas e fronteiriças sob o reinado

de D. Maria I e D. João VI tiveram, portanto efeitos decisivos sobre o quadro de crise geral

que se instaurava rio vale do Guaporé e em todo o Mato Grosso o que combinado com a

desativação da Companhia terminou por inviabilizar a manutenção da rota comercial

Amazonas-Madeira-Guaporé.

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Producciones Gráficas Visión, 1991, p. 26; Vítor Hugo, Desbravadores. Rio de Janeiro. Cia. Brasileira de Artes

Gráficas, 1991, p. 21. iii Luiza Rios Ricci Volpato. Mato Grosso: ouro e miséria no antemural da colônia 17511819. Dissertação

de Mestrado. FFLCH. São Paulo, 1980.

Marco Antonio Domingues Teixeira, Dos campos d'ouro a cidade das ruínas apogeu e decadência do

colonialismo português no vale do Guaporé: séculos XVIII e XIX. Dissertação de Mestrado, UFPe.

Recife, 1997.

Denise Maldi Meireles. Guardiães da fronteira rio Guaporé século XVIII. Petrópolis. Vozes 1978. iv Vide

Arthur Cézar Ferreira Reis, Limites e demarcações na Amazônia brasileira. 2 vol., Belém, SEJUP, 1993 e

Leandro Tocantins, Formação histórica do Acre. 3 vols., Rio de Janeiro, Ed. Conquista, 1961. v Interessante comentário sobre o "imperialismo Brasileiro" e a questão de fronteiras em Victor Leonardi,

Entre árvores e esquecimentos: história social nos sertões do Brasil, Brasília, Ed. Paralelo/UNB, 1996,

p. 272. Vi Vide Said Zeitum Lopez, obra citada e Jose Aguirre Acha, De los Andes ai Amazonas: recuerdos de Ia

campanha dei Acre. La Paz, Imprenta Superei, 1980. vii Álvaro Maia, Gente dos seringais. Rio de Janeiro, s/ed., 1956, p.104. vi i i Estas incursiones Jesuitas que provenían tanto de ias misiones de los Moxos Audiencia de

Charcas como dei Marañón y Gran Pará Brasil..." Said Zeitum Lopez, obra citada, p. 29. vix Álvaro Maia, obra citada, p.120. x Juan B. Coimbra. Siringa: Memorias de un colonizador dei Beni. La Paz, Libreria Editorial Juventud,

1989. p. 100. xi Emanuel Pontes Pinto, obra citada, obra citada, p. 88 e Antonio Carvalho Urey, Sintesis Monografica dei

Beni. Trinidad, Talleres dela Universidad Gral. Jose Ballivian, 1975 xi i Nevil le B. Craig, Estrada de ferro Madeira-Mamoré: história trágica de uma expedição. Rio de

Janeiro, Cia. Ed. Nacional, 1947, p. 349. xiii Antonio Carvalho Urey, obra citada, p. 55. xiv Said Zeitum Lopez, obra citada, p. 29. xv Álvaro Maia, obra citada, p. 118. XVI Nevile Craig, obra citada, p. 127. xvii Antonio Carvalho Urey, obra citada, p. 58. xviii Juan B. Coimbra, obra citada, p.88. xix Álvaro Maia, obra citada, p.131. xx Juan B. Coimbra, obra citada, p.71. XXI Álvaro Maia, obra citada, p.131. xxii Lobato Filho Avançai para o Jamari: a comissão Rondon nas selvas do Alto Madeira. Rio de Janeiro,

s/ed., 1957, p. 28.

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XXIII Eduardo Barros Prado, Eu vi o Amazonas. Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, 1952,

p. 195. xxiv Manoel Rodrigues Ferreira, A Ferrovia do Diabo: história de uma estrada de ferro na Amazônia. São Paulo,

Ed. Melhoramentos, p. 77. XXV Antonio Carvalho Urey, p. 64; Juan B. Coimbra, p. 171; Jose Aguirre Acha, p. 187-9, obras citadas. xxvi Richard Colher, The river that God forgot: the dramatic story of the rise and fail of the despotic Amazon

rubber barons. New York, E. P. Dutton & Co., 1968, p. 57. xxvi i

, María dei Pilar María dei Pilar Gamarra, obra citada, La participación estatal en la industria de la

goma eslástica. In: DATA, Revista dei Instituto de Estudios Andinos y Amazónicos. 4, La Paz, 1993, p. 41. xxviii Juan B. Coimbra, obra citada, p.p. 94-5. xxix Jose Aguirre Acha, obra citada, p. 180. xxx Heráclito Bonilla, Estructura y eslabonamientos de la explotación cauchera en Colombia, Perú,

Bolivia y Brasil. In: DATA: Revista dei Instituto de Estudios Andinos Amazónicos. La Paz, 1993, p. 9. XXXI ".,,existió una intensa comunicación e intercambio de productos entre la savana

mojeña ubicada en la cuenca amazónica y los pueblos andinos vía región boscosa circunscrita entre los

rio Beni e Madre de Dios por los caminos y terraplenes levantados que surcan el espacio norte pampeano, lo

que tenían ai parecer su epicentro en el Lago Roruaguado; caminos que en el sector norte tienen la dirección

inequívoca dei río Beni en ruta hacia un destino que no podia tener fin sinó en el Cuzco incaico." Said Zeitum

Lopez, obra citada, p. 137. xxxii Vide PORRO, Antônio. O povo das águas: ensaios de etno-história amazônica. Rio de Janeiro. Vozes,

1995. XXXIII Carlos de Araújo Carlos de Araújo Moreira Neto, obra citada, Índios da Amazônia: de maioria à minoria

(1750-1850). Petrópolis, Ed. Vozes, 1988, p. 81. xxxiv Aureliano Tavares Bastos, O vale do Amazonas. Rio de Janeiro, Cia. Ed. Nacional, 1937, pp. 358-66. xxxv Marajó (Barão de), obra citada, p. 137. xxxvi Heráclito Bonilla, obra citada, p. 9. XXXVII Herbert Klein, ,Historia de Bolívia. La Paz, Editorial Juventud, 1994, pp. 119-20. xxxviii Maria del Pilar Gamarra, obra citada, p. 28. xxxix Aureliano Tavares Bastos, obra citada, p. 274. xl Herbert Klein, obra citada, pp. 149-53. xliFranz Keller, The Amazon and Madeira River. Citado por Antonio Carvalho Urey, obra citada, p.55. xlii Nevile Craig, obra citada. p. 222. xliii João Severiano da Fonseca, obra citada, p. 305. xliv Maria dei Pilar Gamarra, obra citada, p.73, nota 30. xlv Aureliano Tavares Bastos, obra citada, pp. 274-5. xlvi Beni, Santa Cruz e Cochabamba: "... os três departamentos citados que contem o duplo de população

das duas províncias brazileiras ribeirinhas (...) a agricultura vai-se desenvolviendo nos mesmos departamentos,

e é indústria mais exercida ali que no Alto-Amazonas." Aureliano Tavares Bastos, obra citada, p. 276-7. xlvii Lobato Filho, obra citada, p. 27. xlviii Aureliano Tavares Bastos, obra citada, pp. 222-3,274-5, 270-1, 316-7 xlix Juan B. Coimbra, obra citada, p.137. l João Severiano da Fonseca, obra citada, pp. 275-99. li Leonardi, p. 70.

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lii Nevile Craig, obra citada, p. 230. liii João Severiano da Fonseca, obra citada, p. 299 liv Aureliano Tavares Bastos, obra citada, pp. 358 e 370. lv Emanuel Pontes Pinto, obra citada, p. 88. lvi João Severiano da Fonseca, obra citada, p. 235. lvii Marajó (Barão de), obra citada, p. 132. lviii Anthony Smith, Os conquistadores do Amazonas: quatro séculos de exploração e aventura no maior rio do

mundo. São Paulo, Editora Best Seller, s/d, p. 357. lixlix* 1 libra ou 1 arrátel equivaleria a 459 gramas. lix Joseph Barbosa de Sá, Relaçáo das povoaçóens do Cuyabá e Mato Grosso de seos princípios thé os

presentes tempos. Cuiabá, UFMT, 1976, p. 18. Ix Augusto Leverger (Barão de Melgaço), Apontamento cronológicos da Província de Mato

Grosso. RIHGB 205 208-385, outubro/dezembro 1949. p.

252. lxi Antônio Rolim de Moura (Dom), Correspondências. Apud Maria de Lurdes Bandeira, Território negro

em espaço branco. São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 100. lxii Rolim de Moura, Op. cit. p. 79. lxiii Idem. lxiv Ibidem, p. 81. lxv Melgaço, Barão de. Op. cit. p. 291. lxvi A Povoação do salto Grande foi iniciada em 21/02/179 pelo juiz Teotônio da Silva Gusmão num lugar

descrito por José Gonçalves da Fonsêca como marcado pela presença “... de uma muralha

desmantelada, por cujas ruínas precipitando-se a água do rio com furiosa violência resulta um

espantoso estrondo, que a haver nas margens povoação seria provável padecerem seus habitantes

a surdez.". Melgaço, Barão de. op. cit. In Manoel Rodrigues Ferreira, A ferrovia do diabo, São Paulo,

Ed. Melhoramentos, 1987, p. 36. Atacada pelos Muras a povoação foi abandonada em 1761. Em 1769 Luís

Pinto Sousa Coutinho remeteu um novo projeto de ocupação da região à Secretaria de Estado em Lisboa.

O Povoado do Balsemão foi iniciado por ordem do Capitão-General Luís Pinto de Sousa Coutinho que

navegou pelo Madeira com destino a Vila Bela em 1768. O próprio governador traçou a planta do

povoado, definindo suas ruas, disposição dos prédios residenciais e oficiais e ainda estabeleceu no

local 151 pessoas para ali residirem. Vide João Severiano da Fonseca, Viagem ao redor do Brasil (1875-

1878), Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército Editora, 1986, pp. 67 e seguintes.

Quanto a santo Antônio do Madeira é importante explicar que não se localizava às margens da 1" cachoeira

(Santo Antônio), mas há 4 dias de viagem rio abaixo. Vide Manoel Rodrigues Ferreira, op. cit., p. 34. lxvii Diário da bandeira de Francisco de Mello Palheta ao rio Madeira em 1722. In Capistrano de Abreu,

Caminhos antigos e povoamento de Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia, 1989, p. 119 e seguintes.

*1Piuns = mosquito: que atacam em nuvens nas proximidades dos rios, principalmente nos

períodos de baixas das águas entre maio e setembro. Causam febre e profundo transtorno, tomando certas

regiões absolutamente inevitáveis.

*2 Aboiada = serpente aquática do gênero Anacondas. Também chamada Sucuri ou Sucuriju ou ainda

Boiúna. É a maior serpente das Américas, atingindo mais de 10 metros. Povoa o imaginário dos

caboclos e índios da Amazônia, que lhe atribuem poderes sobrenaturais.

*3 Passos = medida antiga, equivale a 0,82 m.

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*4 Pés = medida inglesa que equivale a 0,3060 m. lxviii Cf. João Severiano da Fonseca Op. cit. p. 67 e seguintes, também João Vasco Manoel Braum, Roteiro

corographico da viagem que se costuma fazer da Cidade de Belém do Pará a Villa Bella de Matto Grosso.

RIHGB. vol. 23, 1960, p.p. 439 e seguintes, ainda: Melgaço (Barão de), Breve Memória Relativa à Chorografia

da Província de Mato Grosso. RIHGB. t. XXVIII, 1965, p.p. 124 e seguintes. lxix Sobre monções, ver: Maria de Lurdes Bandeira, op. cit., p.p. 107 e seguintes; José Roberto do Amaral

Lapa. Economia Colonial. São Paulo, Perspectiva, 1973, p.p. 23 e seguintes; Emanuel Pontes Pinto,

Rondônia Evolução Histórica. Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1993, p.p. 40 e seguintes; Manuel

Nunes Dias, Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. São Paulo, Col. da Revista de História,

1971, p.p. 330 e seguintes; Antônio Carreira, As Companhias Pombalinas do Grão-Pará e

Maranhão / Pernambuco e Paraíba. Lisboa, Editorial Presença, 1982, p.p. 35 e seguintes. lxx Fonte: Memória dos preços que no Estado do Mato Grosso são vendidos os gêneros molhados e

secos. A. H. U. C.P. n°33 -1772. In Manuel Nunes Dias, op. cit., p.p.419-420.

*'Tostão = moeda de prata equivalente a 100 réis.

*2 Côvado = medida de comprimento igual a 66 cm.

*3 Vara = medida antiga igual a 110 cm. lxxi CF. Melgaço, Barão de. op. cit. p. 274 e José Roberto do Amaral Lapa, op. cit., p. 97. lxxii Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Diogo de Mendonça Corte Real datada de

26/02/1753. In Correspondência dos Governadores com a Metrópole. Códice Manuscrito n°695

(1752-1757), p. 39-40. A.P.P. In Manuel Nunes Dias, op. cit., p. 417. lxxiii Idem, p. 418. lxxiv Carta aos Administradores da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, 08/01/1760.

In Antônio Rolim de Moura (Dom), op. cit., p. 81. lxxv A obtenção da prata feita por agentes da Capitania concorria para um relativo e precário equilíbrio nas

trocas entre a Capitania e o litoral. No entanto, o caráter i legal dessa prática não permitia a

regularidade do comércio com a colônia castelhana, além de constituir riscos para os que atuavam

no processo (perda de carga, confisco de bens, prisões, processos). A parte mais vantajosa dos lucros

não permanecia na região, uma vez que a prata contrabandeada era repassada a praças marítimas

como parte do pagamento dos artigos importados por esses agentes para o comércio das minas. Outro

fator que limitava o afluxo de prata via contrabando, eram as constantes tensões f ronteiriças que

faziam refluir a penetração do metal e reduziam as possibilidades do contrabando. Deve-se

esclarecer que o contrabando era de conhecimento das autoridades tanto do lado português quanto do lado

castelhano. O comércio clandestino, como escreveu Melgaço (Barão de), op. cit., p. 275, se

realizava sob a velada diligência e os f ingidos protestos das autori dades. Mesmo na Metrópole

a si tuação era estimulada e em suas Instruções Luís de Albuquerque trazia ordens para "animar e

desenvolver o dito comércio... com tal disfarce que não pareça que Vossa Senhoria o promove e

menos que tem ordem para assim o fazer Instruções que Levou Luís de Albuquerque. Apud Gilberto

Freyre, Contribuição para uma sociologia da biografia: o exemplo de Luiz de Albuquerque, Governador

do Mato Grosso no fim do século XVIII. Cuiabá, FCMT, 1978.

A maior parte dos lucros era drenada pela Metrópole. É também verdadeiro o fato oposto. Os

castelhanos empenhavam-se em drenar o ouro das minas do Mato Grosso para os cofres de

Madri , permi tindo veladamente e incenti vando disfarçadamente a vinda de gêneros (gado,

alimentos, etc.) para os colonos da margem portuguesa. Assim sangravam do Guaporé Português

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recursos em ouro, escravos e manufaturados, enquanto drenava-se para Vila Bela prata, carne

bovina, montarias (cavalos, mulas). Assim o padre Belchior Roiz propunha ao boticário Domingos

Joseph do Forte Príncipe da Beira a troca de 25 (sic) de prata lavrada por ouro, a 4 oitavas o marco

(APEMT, cx. 1780a), enquanto o Alferes Manoel Joseph da Rocha trouxe dos domínios espanhóis trinta

cavalos e vendeu um moleque (sic) pago em prata (APEMT, cx. 1780a).

O interesse pela prata, explica Volpato, deve-se ao fato de ela ser usada como principal elemento de

troca no mercado internacional. Luíza Rios Rici Volpato, Mato Grosso; Ouro e Miséria no Antemural da

Colônia (1751-1819). Dissertação de Mestrado. São Paulo. F.F.L.C.H.-USP, 1980, p.p. 48,97 e seguintes.. lxxvi José Roberto do Amaral, op. cit., p. 99. lxxvii Francisco de Souza Coutinho, Informações sobre o modo porque se efetua a navegação do

Pará para Mato Grosso e o que se pode estabelecer para maior vantagem do comércio e do Estado. In

RIHGB. Tomo II. Rio de Janeiro, 1840, p. 298.

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FUNÇÕES DA LINGUAGEM. UMA REAVALIAÇÃO DAS IDÉIAS DE

ROMAN JAKOBSON1

Dr. Celso Ferrarezi Júnior.

Resumo: Dos teóricos que influenciaram as idéias gerais sobre o processo de comunicação lingüística e contribuíram na formulação de unia teoria da comunicação, sem dúvida alguma, o que mais influenciou a academia brasileira foi Roman Jakobson. As idéias contidas no clássico "Lingüística e Comunicação' tomaram-se uma baliza quase obrigatória para todos os estudantes brasileiros que venham a abordar esse assunto. Não porque a obra de Jakobson seja tão conhecida. Na verdade, a maioria dos alunos secundaristas desconhece a existência do próprio Jakobson. Palavras – Chave: Comunicação, Existência, Formulação, Lingüística e Secundaristas. Abstract : Theorists who have influenced the General ideas about the linguistic communication process and helped in formulating unia communication theory, without a doubt, what influenced Brazilian Academy was Roman Jakobson. The ideas embodied in the classic "Linguistics and Communication ' took a goal almost obligatory for all Brazilian students that will address this issue. Not because the work of Jakobson is so known. In fact, most high school students unaware of own Jakobson. Keyword : Communication, Existence, formulation, Linguistics and Secondary.

Introdução

Dos teóricos que influenciaram as idéias gerais sobre o processo de

comunicação lingüística e contribuíram na formulação de unia teoria da comunicação, sem

dúvida alguma, o que mais influenciou a academia brasileira foi Roman Jakobson. As

idéias contidas no clássico "Lingüística e Comunicação' tomaram-se uma baliza quase

obrigatória para todos os estudantes brasileiros que venham a abordar esse assunto. Não

porque a obra de Jakobson seja tão conhecida. Na verdade, a maioria dos alunos

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secundaristas desconhece a existência do próprio Jakobson. O maior responsável pela

disseminação das idéias do lingüista do Círculo de Praga é um pequeno livro da Profª

Samira Chalhub, denominado "Funções da Linguagem"3, que já se tomou um clássico

nas universidades e escolas de segundo grau. Trata-se de uma reprodução fiel das idéias

de Jakobson sobre a teoria da comunicação e sobre as funções da linguagem. A

influência dessa obra pode ser medida pelo fato de que praticamente todos os

livros didáticos de Língua Portuguesa utilizados nas escolas brasileiras em nível de

segundo grau reproduzem fielmente as mesmas idéias sobre as funções da linguagem.

O fato é que o avanço dos estudos lingüísticos depois de publicada a obra de

Jakobson não permite mais que se aceite passivamente a proposição de teoria da

comunicação feita há várias décadas. A teoria de funções da linguagem proposta por

Jakobson com base em sua teoria da comunicação não se sustenta hoje diante das novas

concepções de comunicação desenvolvidas. Da mesma forma, como a idéia de função de

linguagem depende de uma teoria da comunicação, não podemos mais aceitar sem

ressalvas as proposições defendidas no livro de Chalhub. Este artigo destina-se a mostrar

como os avanços na pesquisa lingüística obrigam a uma modificação na concepção de

funções da linguagem. Ou, em outras palavras, obrigam a uma revisão das idéias de

Roman Jakobson e seus seguidores.

1. A teoria da comunicação

A proposta de teoria da comunicação defendida por Chalhub, com

base em Jakobson, é a seguinte:

"O funcionamento da mensagem ocorre tendo em vista a finalidade de transmitir - uma vez que participam do processo comunicacional: um emissor que envia a mensagem a um receptor, usando um código para efetuá-la; esta, por sua vez, refere-se a um contexto. A passagem da emissão para a recepção faz-se através de um suporte físico que é o canal. Aí estão, portanto, os fatores que sustentam o modelo de comunicação: emissor, receptor, canal, código, referente, mensagem." (Chalhub, 1990, p. 5)'

Esta proposta precisa ser revista item a item, em função das muitas impropriedades

já vastamente apresentadas pela Lingüística contemporânea. Primeiramente, é

necessário notar que a proposta de Jakobson parece enfocar apenas a comunicação

lingüística, isto é, aquela feita entre seres humanos através do uso da língua. Nesse

sentido, deveriam definir-se apenas as funções da língua e, não, as funções da

linguagem. Mas, como Chalhub mesma observa,

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"Nem só de mensagens verbais vive o ser humano. A l inguagem participa de aspectos mais amplos que apenas o verbo. O corpo fala, a fotografia flagra, a arquitetura recorta espaços, a pintura imprime, o teatro encena o verbal, o visual, o sonoro, a poesia - forma especialmente inédita de linguagem - surpreende, a música irradia sons, a escultura tateia o cinema movimenta, etc." (Chalhub, 1990, p. 6)

5

Infelizmente, no seu livro, Chalhub só abrange o lingüístico ao abordar o código6,

embora tenha reconhecido, na passagem acima, que a linguagem -mesmo se consideramos

apenas a humana - é muito mais ampla do que apenas a utilização de uma língua. Assim é

que uma teoria que se poderia prestar à explicação da linguagem como um fenômeno

amplo, acaba se tomando uma teoria fragmentária que explica apenas parcialmente o

fenômeno linguagem.

Sabe-se, há muito, que a comunicação não é privilégio dos seres humanos, mas uma

peculiaridade de todos os seres vivos. Plantas, animais inferiores, mesmo os

unicelulares possuem processos muito especializados de comunicação. Obviamente,

só pudemos comprovar a consciência comunicativa no ser humano, e esse seria o principal

diferencial entre nós e os demais seres vivos, no que se refere à linguagem:

comunicamos sabendo que estamos comunicando e tendo consciência do processo.

Sabemos que os animais e a plantas comunicam-se intencionalmente. Uma galinha tem

a intenção explícita de proteger seus pintainhos quando faz soar seu "alarme" e é

prontamente atendida pelos filhotes; uma orquídea tem a intenção explícita de atrair certos

tipos de insetos ao produzir odores chamativos que são, claramente, fatores

promotores de comunicação entre a planta e o inseto, comunicação sem a qual a planta

não se poliniza. O que não pudemos constatar, ainda, é que a planta e a galinha, assim

como os demais seres vivos "inferiores" têm consciência do que estão fazendo. A

intenção, portanto, não é necessariamente coincidente com a consciência do processo.

E, isto em vista poderia dizer que a linguagem da galinha e da orquídea é

desprovida de função? Obviamente que não! Tanto a galinha quanto a orquídea

imprimem uma função à sua linguagem, mesmo que não saibam como fazer para

imprimir novas funções à mesma mensagem, como o homem faz. Assim, urna teoria

das funções da linguagem que despreze a comunicação não lingüística será sempre uma

teoria defasada.

Poderíamos dizer então, que a comunicação é um fator componente da infra-

estrutura dos seres v ivos. Mais elaboradamente, poderíamos dizer que

comunicação é a transmissão de uma mensagem ou conteúdo entre, no mínimo, dois

seres vivos. Dessa forma, deveremos perceber que em qualquer espécie de

comunicação caracteriza-se uma função. Temos, então, no seu sentido mais amplo,

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as funções da linguagem.

Neste artigo, porém, como analiso as proposições de Jakobson repet idas

por Chalhub, serei obr igado c ircunstanc ia lmente a enfocar mais

detalhadamente a comunicação lingüística. Procurarei, porém, sempre que possível,

dar maior abrangência à teoria. Vejamos, portanto, as impropriedades às quais me

referi anteriormente.

2.1. Emissor e receptor

A proposta de Jakobson pressupunha a existência de uma parte ativa e de

uma parte passiva no ato de comunicação: um elemento que emitia, (mais ou menos

nos moldes de uma emissora de rádio, por exemplo) e um elemento que recebia a

mensagem e a decodificava (mais ou menos nos moldes de um rádio receptor). Sabe-

se, hoje, que no processo de comunicação não há parte passiva. Ambos os

interlocutores em uma comunicação estão atuando o tempo todo. Enquanto um se esforça

para produzir urna mensagem coerente com o contexto discursivo, o outro analisa,

verifica todos os elementos contextuais, "adianta" os passos comunicativos do seu

interlocutor, emite mensagens concomitantemente, verbais e não verbais (através de

gestos e feições, por exemplo, dando provas de seu entendimento ou não, prazer ou

desprazer, enfim, de sua interação com o outro). O processo de comunicação não

pode ser entendido, portanto, como uma via de mão única do tipo emissor/ receptor,

mas deve ser compreendido como uma interação do tipo interlocutor/ interlocutor, em

que os interlocutores assumem ora o turno de interlocutor-codificador (ou emissor) da

mensagem lingüística, ora o turno de interlocutor-decodificador (ou receptor). E digo isto

da mensagem lingüística, porque as mensagens concomitantes não verbais7 são

permanentemente produzidas por ambos os interlocutores.

Fica claro, portanto, que em um ato de comunicação lingüística três fenômenos

relacionados aos interlocutores ocorrem:

A. a ativa participação de ambos os interlocutores;

B. a intenção permanente dos interlocutores em concretizar o ato comunicativo;

C. a coexistência de mensagens formalmente codificadas com mensagens

transmitidas de maneira informal.

Logo, a idéia de Jakobson de que era possível um enfoque da mensagem no receptor

(que caracterizaria a função conativa), ou um enfoque no emissor (que caracterizaria a

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função emotiva), ou um enfoque no código (que caracterizaria a função metalingüística),

ou ainda um enfoque na mensagem (que caracterizaria a função poética) não tem

sustentação factual. Vejamos:

A. sempre que uma mensagem é produzida, é claro o fato que haverá enfoque no

interlocutor-decodificador por parte do interlocutor-codificador. Quando um ser vivo produz

uma mensagem qualquer, é claro que essa mensagem é produzida tendo-se a intenção de

adequá-la ao entendimento do interlocutor, adequação sem a qual a comunicação não se

concretizará. Falaríamos de urna permanente função conativa da mensagem, portanto?

Parece óbvio que não;

B. da mesma forma, sempre que do is seres v ivos se interlocucionam, em

ambos haverá permanente enfoque no código e na mensagem. Sem esse enfoque no

código, que permite a sua inteligibilidade', e sem o enfoque no conteúdo expresso, sobre o

qual haverá primordial atenção da parte de ambos os interlocutores (procurando entender a

mensagem em função do código escolhido - "por que ele disse isso dessa forma?" ; do

contexto discursivo - "por que ele disso isso justamente agora?"; dos próprios interlocutores -

"por que foi ele quem disse isso e não outro?", etc.), não se concretizará a comunicação.

Ora, falaríamos então de uma permanente função metalingüística e de uma

permanente função poética? Também parece improvável;

C. finalmente, percebemos que a transmissão da mensagem lingüística não

depende somente do que é dito ou escrito. O contexto discursivo e a concomitância de

mensagens codificadas informalmente (desde a aparência dos interlocutores até a

complexidade gestual que executam) atuam no entendimento final do que se expressou de

forma realmente decisiva. Deve-se verificar que toda essa verdadeira parafernália

comunicativa atua no sentido de cumprir o objetivo do ato de comunicação, que é definido

pelo interlocutor que assume o turno de codificador, objetivo esse que contará, para sua

consecução, com a cooperação, ou não, do outro interlocutor. Isso em vista, ou seja, o fato

de que não se pode isolar no ato comunicativo um fator de outro, ou seja, sabendo-se que

não se pode atribuir um enfoque em um ou outro fator, como se pode sustentar a idéia de

Jakobson de que é o enfoque nos fatores que define a função da linguagem?

Creio que realmente se trate de uma concepção teórica insustentável.

Continuemos nossa incursão pelo livro de Chalhub.

2.2. Canal

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Como vimos Chalhub9 define o canal como sendo "o suporte fisico10 de transmissão

da mensagem. Segundo ela "Se a mensagem centrar-se no contato, no suporte físico, no

canal, a função será fática." (Chalhub, 1990, p.28)

Assim, em uma conversa, as expressões do tipo "À? Não é? Sim? Então... Entende?",

etc., seriam definidas como em uso fático, porque seriam formas de confirmação do canal de

comunicação.

Como sabemos o suporte físico para a propagação do som é o ar. Quando conversamos

frente a frente com alguém, usamos o ar como suporte físico para a propagação de nossa

fala. Então, o que Chalhub propõe, com base em Jakobson, é que quando usamos as

expressões "À? Não é? Sim? Então... Entende?" em uma conversa, estamos enfocando o

ar? Estamos verificando se o ar está dando conta de transmitir nossa fala? É isso mesmo o

que Jakobson sugere, mas, parece, trata-se de uma postura teórica equivocada.

É óbvio que, quando usamos tais expressões, não estamos tentando testar o suporte

físico de nossa interlocução, ou canal - para usar a terminologia tradicional. Estamos,

sim, confirmando se nosso interlocutor está entendendo aquilo que estamos tentando

comunicar-lhe; ainda, podemos estar querendo verificar se a atitude cooperativa por parte de

nosso interlocutor permanece.

Poderíamos dizer que, em uma conversa telefônica, quando dizemos "Alô! Você

está me ouvindo?", estamos testando o suporte físico da conversação. Estaríamos

verificando se o aparelho telefônico está funcionando, se a linha não "caiu", etc. Mas, como

justificar o fato de que, mesmo tendo certeza de que tudo está funcionando em nossa

conversa telefônica, continuamos a usar essas expressões? Parece claro que não é porque

queiramos testar se o telefone está funcionando a cada trinta segundos, mas, sim, porque

queremos ter certeza de que nosso interlocutor está realmente entendendo o que estamos

falando, principalmente porque, em uma conversa telefônica, grande parte dos recursos

informais que atuariam na conversação, justamente pelo fato de que os interlocutores não se

estão visualizando, fica prejudicada.

Assim, verificamos que não ocorre normalmente em uma interlocução o

pretendido "teste de canal" sugerido por Jakobson. Não poderíamos, portanto, falar em

uma função fática? Claro que sim, mas em outros moldes teóricos. Decididamente não é a

intenção de verificar a eficácia do canal o que define tal função.

2.3. Código

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Como disse anteriormente, podemos crer que Jakobson estava preocupado apenas com

a descrição dos fatos lingüísticos ao elaborar sua teoria da comunicação. Entretanto, como

também vimos a linguagem não subsiste unicamente do código formalmente estruturado que

chamamos língua. A própria interpretação de uma enunciação lingüística dependerá de um

sem-número de fatores discursivos que não podem, simplesmente, ser desconhecidos em

uma teoria dessa natureza.

Assim é que quando uma moça veste-se insinuantemente, maquia-se em tonalidades

sensuais e gesticula de forma flertiva em um primeiro encontro com um rapaz pretendente,

ela "codifica", mesmo que informalmente, um conjunto significativo de informações que

serão extremamente úteis na interpretação, por parte do seu interlocutor, de cada

enunciação por ela produzida.

O código lingüístico, portanto, tem um funcionamento muito mais complexo do que

simplesmente o conjunto de regras que determinam o correto funcionamento

gramatical do sistema. A determinação do significado de cada enunciado passa,

obrigatoriamente, por uma grande quantidade de matrizes interpretativas de ordem cultural

que não são definitivamente previstas no sistema lingüístico.

Este fato obriga a que, muitas vezes, o falante tenha que utilizar a língua para explicitar

a mensagem codificada. Ao fazer isso, ou seja, ao repetir a mensagem de outra forma,

com outras palavras, outra entonação ou ritmo de fala, outros gestos, etc., o falante não leva

seu interlocutor a uma mera reflexão sobre o código, mas o leva a uma nova interpretação

da enunciação anterior, agora com base na segunda enunciação. Não podemos dizer,

então, que estamos falando de metalinguagem. Estamos, sim, falando de recodificação.

Entendemos a recodificação como a reestruturação de uma primeira enunciação, de forma a

clarificar para o interlocutor o conteúdo dessa mesma enunciação. A tradução nada mais é

do que recodificação. As diversas e diferenciadas vezes que um professor explica um

mesmo assunto em classe, para que todos os alunos possam compreendê-lo, também é

recodificação.

A metalinguagem é um processo diferente e não é um mero enfoque ou uma simples

reflexão sobre o código, como sugerem Jakobson e Chalhub11. A metalinguagem, como o

nome sugere, é a utilização da linguagem para explicitar o funcionamento da própria

linguagem. Isso não implica que preciso utilizar um mesmo código. Quando escrevo uma

gramática do português, por exemplo, faço metalinguagem, porque uso a linguagem para

explicitar o funcionamento da própria linguagem, e o faço com o mesmo código. Mas,

quando uso o português para escrever urna gramática latina, por exemplo, faço

metalinguagem usando códigos diferentes. Da mesma forma, posso explicar

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lingüisticamente o funcionamento da linguagem das abelhas, e isso não deixa de ser

metalinguagem. O que parece interessante é o fato de que não é provável a existência de

metalinguagem sem que o uso da linguagem seja referencial. Isso porque, se tomamos a

linguagem como objeto de reflexão, a linguagem utilizada na reflexão sobre esse objeto

estará sendo usada referencialmente, porque descritora de um referente. Assim, o uso

metalingüístico é meramente uma das modalidades do uso referencial. Quando usamos a

linguagem referencialmente sobre um referente qualquer, dizemos haver somente

linguagem referencial; quando esse referente é a própria linguagem, dizemos que o uso é

metalingüístico.

2.4. Referente

O referente, segundo Frege12, de quem Jakobson - e os demais lingüistas - emprestam o

termo, é o objeto factual presente no mundo material ou nos mundos sugeridos, o "ser",

enfim, representado pela linguagem. O referente independe da linguagem, e a linguagem

independe do referente, mesmo porque a linguagem é instrumento eficaz para criar

referentes. Por exemplo, certos tipos determinados de composição com palavras, em

estruturas específicas, criam um referente chamado "poesia", que só possui existência se

produzido lingüisticamente.

A linguagem, entretanto, é um instrumento adequado para a representação de

referentes. Aliás, pode-se crer que a linguagem é um instrumento especificamente criado

com essa finalidade, embora, posteriormente, possa ter assumido outras funções. Essa

vinculação natural da linguagem a representar referentes faz com que ela se tome

eminentemente referencial. Dizemos, porém, que certas construções representam referentes

de forma diferenciada. Assim é que, quando digo pé13 refiro-me a algo, que pode ser um

pé humano. Crê-se que o signif icado "pé humano" seja o significado original da

palavra pé, e por isso chamamos o uso dessa palavra com esse significado de denotativo,

ou não-figurado. Originalmente em sua teoria, Jakobson chamou esse uso da linguagem

de uso referencial. Mas, veja-se que quando uso a mesma palavra pé em pé de mesa, pé de

laranja, pé-d'água, etc., continuo usando a palavra para fazer referência a algo. Ou seja, a

linguagem figurada não é destituída de referencialidade, como a terminologia jakobsiana

insinua. Todos os termos acima citados (pé de mesa, pé de laranja, pé-d'água) têm

referentes os quais representam. Trata-se, portanto, de um uso referencial da linguagem. O

fato que se observa, apenas, é que há usos que não são o "original", o denotativo. Esses

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usos podem ser chamados de conotativos, ou seja, usos em que o referente atribuído ao

signo não é aquele que se acredita ser o original. Esse fato parece significativo: há usos da

linguagem que promovem uma alteração na composição original dos signos. E isso não tem

nada a ver com falta de referencialidade. Poderíamos dizer, com mais propriedade,

simplesmente que a linguagem está em uso denotativo ou em uso conotativo, sendo que

ambos pertencem a um uso que é referencial, obviamente. E, é claro, sempre lembrando

que referencialidade não implica materialidade do referente. Palavras como amor e

esperança têm referentes, embora não sejamos capazes de identificá-los materialmente.

Assim, não podemos dizer que é o enfoque sobre o referente que faz da enunciação

um exemplo de linguagem referencial, mesmo porque dificilmente haverá linguagem que

não se refira a referente algum, ou em cujo bojo não se insira a preocupação do

falante com a referencialidade da enunciação. Na verdade, não consigo elaborar um só

exemplo desse tipo de uso sem referentes. Como vimos há pouco, a metalinguagem é

definida como tal por que o referente da enunciação é, de certa forma, especial. Mas,

também podemos concluir que tal diferenciação é inócua quanto à estrutura da

linguagem e de uma teoria da comunicação. Em outras palavras: dificilmente poderíamos

caracterizar uma função da linguagem como referencial por qualquer tipo de característica

que se relacione ao referente. Tanto isso é verdade, que Chalhub teve que recorrer à

diferenciação "didática" entre conotação e denotação para tentar explicitar o que seria o

uso referencial da linguagem14 e chegar à conclusão de que aquilo que Jakobson

chamou de linguagem referencial é exatamente o que, com mais propriedade. podemos

chamar de uso denotativo da linguagem. Entretanto, como o uso conotativo também é

referencial, desisti de manter o termo "referencial" neste artigo, preferindo mesmo os

termos "uso denotativo" e "uso conotativo".

2.5. Mensagem

Finalmente, chegamos ao "enfoque na mensagem". Realmente é difícil crer em uma

enunciação que não tenha enfoque na mensagem! Ora, parece claro que em toda

enunciação os interlocutores estão preocupados com, enfocando a, atentando para a

mensagem. A mensagem (ou conteúdo da enunciação, no sentido que Jakobson atribui ao

termo) é por si só, o cerne do processo de comunicação. O que Jakobson parece querer

enfocar é que a linguagem é construída, certas vezes, de maneira a chamar a atenção

para si, não no sentido metalingüístico, mas no sentido de despertar beleza através de

seus meios peculiares.

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Nesse caso, o uso que se faz da linguagem é mais do que um mero uso que pretende

a comunicação do conteúdo referencial, mas também um uso que seja capaz de despertar a

sensação de beleza no interlocutor. Quando se constrói uma poesia, uma prosa poética ou

até uma simples frase de efeito, mais do que chamar a atenção para o conteúdo, o enunciador

pretende despertar o senso de beleza no seu interlocutor. E o que é beleza? Uma resposta

singela, porém correta, diria que "beleza" é aquilo que a cultura estabeleceu como sendo

"beleza". A Antropologia tem provado largamente que a beleza não se estabelece

universalmente de uma mesma forma; da mesma maneira como muda a linguagem de

cultura para cultura, a beleza muda de cultura para cultura, e de época para época, em uma

mesma cultura. Para os fins desse artigo, poderíamos simplesmente dizer que certos usos

da linguagem (lingüística, musical, corporal, pictórica, etc.) são capazes de despertar

eficazmente a sensação de beleza nos integrantes de uma cultura. Alguns usos, até,

conseguem transcender sua cultura original e despertar beleza em várias culturas

distintas.

Não se trata, portanto, de um enfoque na mensagem o que faz do uso da linguagem um

uso poético, mas a intenção deliberada do enunciador de despertar, no interlocutor, a

sensação de beleza através do uso que faz da linguagem.

2. Funções da Linguagem

Como vimos até aqui, uma concepção equivocada de teoria da comunicação levou

Jakobson e seus seguidores a uma concepção equivocada de funções da linguagem. Diante

do que vimos até aqui, podemos afirmar que:

A. não existe mensagem nas funções da linguagem. A mensagem está na

linguagem, que é linguagem sempre, independentemente do uso que dela se faça;

B. não são enfoques específicos nos fatores integrantes da comunicação que

caracterizam as funções. Diferentemente, a função é determinada pelo uso que os

interlocutores fazem da linguagem;

C. ora, se a função é determinada pelo uso que os falantes fazem da linguagem (e

veja-se claramente: determinada pelo uso, somente; a função não é o uso em si), o que

determina o uso?

Podemos verificar que o uso é determinado, como bem define Chalhub, dessa forma:

“O funcionamento da linguagem ocorre tendo em vista a finalidade de transmitir. Op. cit. p. 6 Jakobson enfoca o perfil da mensagem conforme a meta ou orientação dessa mesma mensagem. Idem p. 7

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As atribuições de sentido... que se possam deduzir e observar na mensagem estão localizadas primeiramente na própria direção intencional do fator da comunicação. Ibidem p. 7 A p r o p a g a n d a , p o r e x e m p l o , m a rc a - s e fundamentalmente pela persuasão - isto é, pela intenção de seduzir o receptor. Ibidem p. 7”

Veja-se que tanto Chalhub quanto Jakobson percebem que é a intenção dos

interlocutores no uso da linguagem que define sua construção, logo, suas

características. Talvez por isso mesmo fossem tentados a cometer o equívoco de

acreditar que essa construção definiria a função da linguagem. E justamente o

contrário: a função em que se escolhe usar a linguagem é que define a estrutura

que será montada, a compleição que se dará à enunciação. Isso merece explicação.

Vamos a ela.

Lembremos que a linguagem é um instrumento. A partir dessa idéia simples,

tomemos outro instrumento qualquer como ilustração. Uma chave de fenda serve. Uma

chave de fenda é um instrumento, assim como a linguagem também o é. Trata-se de um

instrumento muito anais simples do que a linguagem é claro, mas se presta

perfeitamente à ilustração que pretendo. Digamos que uma chave de fenda foi

concebida para rosquear parafusos que utilizam o sistema de fenda. Esse seria seu

uso original. Entretanto, posso utilizar essa mesma chave de fenda como um abridor

de latas. Usar o instrumento na função de abridor de latas, embora ele continue sendo

uma chave de fenda. Posso, também, usar a chave de fenda como perfurador de

parede ou de papel, como um formão, para retirar um prego, para matar alguém.

Claro que, independentemente da função que eu atribua à chave de fenda, ela

continuará sendo sempre uma chave de fenda e, obviamente, continuará com as

mesmas carac terís ticas de sempre, porque a maleabilidade de urna chave de

fenda não permite as adaptações que a maleabilidade da linguagem permite.

Com a linguagem ocorre "mutatis mutandis" a mesma coisa. Podemos

fazer usos distintos da linguagem, de acordo com nossos objetivos:

simplesmente fazer referência a algo, fazer referência à própria linguagem, despertar

a sensação de beleza, convencer alguém, ou quaisquer que sejam eles. Esses

objetivos determinarão que tipo de estrutura enunciativa vamos construir para

permitir a consecução da comunicação. Assim, é o objetivo do enunciador que

determina que recursos sejam usados e de que forma serão usados, e não o

contrário, como concebeu Jakobson.

O que é a função da linguagem, então? A função da linguagem é uma relação

estabelecida entre o uso que se faz e a estrutura que se constrói. O que determina a

estrutura é o objetivo: o que determina a função é o uso que se faz. Pode-se dizer,

então, que a função da linguagem é unia característica que a linguagem assume

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quando em uso, característica essa definida pelos objetivos do enunciador e que

resulta em adaptações na construção da enunciação.

Como se definem então as seis funções apresentadas por Jakobson e repetidas por

Chalhub? Creio que uma forma coerente é a que apresento no quadro abaixo:

Objetivo Função Representar um referente qualquer utilizando a Denotativa configuração "original" dos signos de um código

qualquer. Representar um referente qualquer utilizando Conotativa

variações da configuração "original" dos signos de um código qualquer.

Despertar no interlocutor a sensação de beleza Poética através do uso da linguagem.

Convencer o interlocutor, persuadi-lo de algo. Conativa Explicitar o funcionamento da própria linguagem. Metalinguística

Confirmar o entendimento da mensagem pelo Fática interlocutor ou, ainda, confirmar a manutenção de uma postura cooperativa na interlocução por parte

do interlocutor. Expressar sentimentos, emoções. Emotiva

Observa-se que os objetivos de um enunciador podem ser híbridos. Por exemplo,

alguém pode querer convencer alguém de algo através da expressão poética de seus

sentimentos. Parece claro que a estrutura desejada deverá apresentar uma

configuração que se permita a tal uso complexo. Um uso que se definiria pela aplicação da

linguagem, ao mesmo tempo, em função emotiva, conativa e poética, além de se construir

essa enunciação ou conotativa ou denotativamente - porque nem toda poesia é conotativa.

3. Conclusão

A idéia de função da linguagem depende da teoria da comunicação que se concebe.

A crítica que faço nesse artigo é mais à teoria da comunicação de Jakobson do que à

conseqüente construção de uma descrição das funções da linguagem. O problema maior é

que as funções da linguagem recebem uma atenção acadêmica muito maior do que a

própria teoria da comunicação que as fundamenta. Podemos, então, depois do que

apresentei, concluir que:

A. o que determina a função da linguagem é o uso que efetivamente os

interlocutores fazem da linguagem;

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esse uso é determinado pelos objetivos dos interlocutores. Tais objetivos influenciam a

estruturação.que os falantes darão à enunciação;

B . a função da linguagem, portanto, não existe na linguagem, por causa de

enfoques em certos fatores da comunicação ou, ainda, corno peculiaridade imanente da

enunciação: diferentemente, a função da linguagem é resultante da relação entre o objetivo

do falante e as peculiaridades que ele mesmo imprime na enunciação em função do uso que

pretende fazer desse instrumento;

C. embora Jakobson defina somente seis funções possíveis de linguagem, parece

claro que os objetivos dos falantes podem ser muitos mais, sendo que, conseqüentemente,

haverá muitas funções mais.

NOTAS

1 Este texto faz parte do acervo numerado e registrado do autor. A reprodução total ou parcial do conteúdo deste texto para qualquer fim é expressamente proibida sem prévia autorização ao autor. Críticas e comentários são bem-vindos: Av. 12 de julho, Casa 08, Quadra 67, Caetano, Guajará-Mirim, RO, 78957-000. 2 Roman JAKOB SON. (1969) Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix. 3 Samira CHALHUB (1990) Funções da Linguagem. São Paulo: Ática, (Série Princípios). 40p. Cit. 5 Idem. 6 Cf. Ibidem, capítulo 7. 7 Cf. Martha STEINBERG (1988). Os Elementos Não- Verbais da Conversação. São Paulo: Atual. 8 Note-se que falo da inteligibilidade do código, não do conteúdo , Entender o código não garante a concretização

da transmissão inequívoca da mensagem. 9 Op. Cit. 10 Cf. Idem pp. 5; 28-31. 11 Cf. CHALHUB, Op.cit., p. 48 e ss. 12 Cf. Gott lob FREGE (1978) Lógica e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Cultr ix. (Trata-se da versão

brasileira. A obra original data do final do século passado.) 13 Para manter o mesmo exemplo dado por CHALHUB, op. Cit. P. 9. 14 Cf. CHALHUB, op.cit.p. 9 e ss.