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PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA DE EDUCADORAS CEARENSES: HISTÓRIA ORAL E MAGISTÉRIO SCARLETT O’HARA COSTA CARVALHO* 1 LIA MACHADO FIUZA FIALHO* 2 INTRODUÇÃO O presente estudo teve como escopo compreender a contribuição educativa da educadora Célia Maria Goiana Falcão na história do Curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Ceará (UECE), bem como analisar as representações acerca do ensino superior e formação docente, desde a percepção relatada pelas narrativas oralizadas, provenientes da memória da entrevistada. Célia Goiana é uma professora que participou ativamente do processo educativo empreendido no Curso de Pedagogia da UECE ao longo de 37 anos e atualmente, aos 65 anos de idade, ainda assumiu a Vice Coordenação do referido Curso, com vistas a continuar colaborando com a educação cearense, tempo que lhe rendeu memórias ricas e de fundamental importância para compreender a história do Curso na instituição acima mencionada. As memórias de Célia foram produto de um trabalho de ressignificação tecida pela amálgama entre presente e passado, que veio à tona, à medida que foi fabricada, sem necessidade de linearidade (LE GOFF, 2008). Tal elaboração requereu tratamento teórico e metodológico por parte daqueles que se dedicam a coleta das lembranças. De acordo com Delgado: O passado espelhado no presente reproduz, através de narrativas, a dinâmica da vida pessoal em conexão com processos coletivos. A reconstituição dessa dinâmica, pelo processo de recordação, que inclui, ênfases, lapsos, esquecimentos, omissões, contribui para a reconstituição do que passou segundo o olhar de cada depoente. (2010, p. 16) Nesse sentido, vale destacar que a vida de toda pessoa, seja ela anônima ou popular, possui um valor autônomo para a história, e a trajetória de Célia Goiana, produto de individualidades únicas e irredutíveis, contribuem para compreensão da história da educação. Ensejar luz as narrativas de mulheres, muitas vezes obscurecidas pelo discurso da * Universidade Estadual do Ceará (UECE), Mestranda em Educação (PPGE UECE) * Universidade Estadual do Ceará (UECE), Professora Adjunta do Centro de Educação (CED UECE)

PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA DE EDUCADORAS … · casa e os filhos enquanto ao homem ... que quando veio para Fortaleza por volta dos cinco anos de idade, ficou ... Célia recorda com

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PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA DE EDUCADORAS CEARENSES: HISTÓRIA

ORAL E MAGISTÉRIO

SCARLETT O’HARA COSTA CARVALHO*1

LIA MACHADO FIUZA FIALHO*2

INTRODUÇÃO

O presente estudo teve como escopo compreender a contribuição educativa da

educadora Célia Maria Goiana Falcão na história do Curso de Pedagogia da Universidade

Estadual do Ceará (UECE), bem como analisar as representações acerca do ensino superior e

formação docente, desde a percepção relatada pelas narrativas oralizadas, provenientes da

memória da entrevistada.

Célia Goiana é uma professora que participou ativamente do processo educativo

empreendido no Curso de Pedagogia da UECE ao longo de 37 anos e atualmente, aos 65 anos

de idade, ainda assumiu a Vice Coordenação do referido Curso, com vistas a continuar

colaborando com a educação cearense, tempo que lhe rendeu memórias ricas e de

fundamental importância para compreender a história do Curso na instituição acima

mencionada.

As memórias de Célia foram produto de um trabalho de ressignificação tecida pela

amálgama entre presente e passado, que veio à tona, à medida que foi fabricada, sem

necessidade de linearidade (LE GOFF, 2008). Tal elaboração requereu tratamento teórico e

metodológico por parte daqueles que se dedicam a coleta das lembranças. De acordo com

Delgado:

O passado espelhado no presente reproduz, através de narrativas, a dinâmica da vida

pessoal em conexão com processos coletivos. A reconstituição dessa dinâmica, pelo

processo de recordação, que inclui, ênfases, lapsos, esquecimentos, omissões,

contribui para a reconstituição do que passou segundo o olhar de cada depoente.

(2010, p. 16)

Nesse sentido, vale destacar que a vida de toda pessoa, seja ela anônima ou popular,

possui um valor autônomo para a história, e a trajetória de Célia Goiana, produto de

individualidades únicas e irredutíveis, contribuem para compreensão da história da educação.

Ensejar luz as narrativas de mulheres, muitas vezes obscurecidas pelo discurso da

*Universidade Estadual do Ceará (UECE), Mestranda em Educação (PPGE – UECE) * Universidade Estadual do Ceará (UECE), Professora Adjunta do Centro de Educação (CED – UECE)

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historiografia oficial, permite não apenas questionar paradigmas socioculturais no que

concerne ao lugar que foi ocupado pela figura feminina, mas revelar e preservar histórias e

memórias de mulheres, também protagonistas.

Desse modo, conceber a elaboração de “outra história” a partir da história oral de

mulheres se faz oportuno ao considerar os séculos de silenciamento e sujeição a uma

sociedade essencialmente machista, que impunha a mulher à vida privada e o cuidado com a

casa e os filhos enquanto ao homem eram destinados os espaços públicos e o provimento da

família. Resgatar memórias e registrar oralidades femininas importa para a história, pois as

mulheres são capazes de elucidar, com maior minúcia, as singularidades experimentadas.

Afinal, é consensual valorizar a narrativa do sujeito que vivenciou o acontecimento ou fato

histórico por sua capacidade de elaborar uma narrativa mais fidedigna e viva. Vale ressaltar

que a história oral não impossibilita a utilização de outras fontes documentais: fotografias,

atas, livros, diários, jornais, revistas, etc. Ao contrário, tais documentos, na interface com a

história oral podem e devem ser considerados.

Possibilitar maior visibilidade à voz do indivíduo que vivenciou determinada situação,

fato ou conjuntura histórica, que durante muito tempo ficou expurgado das versões da

historiografia oficial, ocupando espaços mínimos e marginalizado, embora tenha participado

ativamente do processo histórico, torna-se imprescindível (FIALHO, 2012). Escalonar

pessoas em grau de importância histórica não foi o que se pretendeu nesse trabalho, ao

contrário, o foco é justamente demonstrar que um sujeito, aparentemente invisibilizado, pode

possuir uma história significante para compreensão de um determinado contexto, e esta não

deve ser desprezada.

Ressaltar as contribuições e dificuldades do fazer pedagógico, considerando o cenário

econômico, social e educacional do Ceará, configura-se relevante por possibilitar o trabalho

com memórias e narrativas de pessoas que vivenciaram acontecimentos importantes na

história da educação cearense e por permitir outro olhar acerca dos fatos narrados pela história

oficial (FERREIRA, AMADO, 2006) ao confrontar percepções e até ressignificar padrões

naturalizados no imaginário social.

METODOLOGIA

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A presente pesquisa utilizou a metodologia da história oral, pois esta é uma

metodologia capaz de fomentar importantes narrativas e interpretações históricas, em

especial, no campo da história da educação do Ceará. Cabe inferir que a fonte oral é não

apenas importante, mas necessária para compreensão historiográfica, principalmente, em um

estado que não preserva as fontes documentais, nem tampouco arquivos imagéticos no âmbito

educacional. Nesse sentido, a história oral permite o registro de testemunhos e o acesso a

“histórias dentro da história” e, dessa forma, amplia as possibilidades de interpretação do

passado (ALBERTI, 2005, p.15). Assim, cabe ao pesquisador, em face das fontes oficiais de

que dispõe elaborar novas perguntas sobre o passado, ou seja, reler alguns tipos de

documentos oficiais considerando outras perspectivas e produzir novas fontes e

interpretações. Começar a ler as entrelinhas, julgando necessário não apenas colocar ordem no

material pesquisado, mas também buscar caminhos para a organização da escrita dessa

história vista de outro prisma (BURKE, 1992).

A história oral traz à lembrança de um fato antigo, que por sua vez, não vem à tona

com a mesma imagem com que foi experimentado em um passado. Na maior parte das vezes,

“lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as

experiências do passado” (BOSI, 1994, p. 55). A história é constituída de fatos, imagens e

experiências ressignificados segundo determinadas percepções, logo, contá-la requer um

compromisso constante de revisitação, novas analogias e amadurecimento de compreensões,

pois a história é dinâmica e se transforma a cada dia, ensejando um contínuo ciclo de novas

interpretações.

Oferecer a audição e se posicionar disposto a conversar, são atos simples, mas os

caminhos percorridos pela entrevista podem apresentar emoção, momentos alegres e tristes.

No ato da entrevista o interesse do pesquisador não é o de somente registrar uma entrevista,

um depoimento, ou uma história de vida, vai, além disso, captar algo que ultrapassa o caráter

individual do que é transmitido e se insere na interpretação que terá para a coletividade, já que

a vida que emerge na biografia de um grupo que tem história, e a história é construída e

constituída pela interação dos indivíduos.

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Caracterizada por ser produzida desde um estímulo, pois costumeiramente o

pesquisador procura o entrevistado e lhe faz perguntas ou o instiga à rememorização com

outros subterfúgios, a história oral é coletada geralmente depois de consumado o fato ou a

conjuntura que se quer investigar (DELORE-MOMBERGER, 2008). No que concerne à

memória, Delgado nos diz que:

A memória, principal fonte dos depoimentos orais, é um cabedal infinito, onde

múltiplas variáveis – temporal, topográficas, individuais, coletivas – dialogam entre

si, muitas vezes revelando lembranças, algumas vezes, de forma explícita, outras

vezes de forma velada, chegando em alguns casos a ocultá-las pela camada protetora

que o próprio ser humano cria ao supor, inconscientemente, que assim está se

protegendo das dores, dos traumas e das emoções que marcaram sua vida.”

(DELGADO, 2010, p. 16)

A história oral, ao trabalhar com lembranças e esquecimentos, subjetividades,

abordando um universo de significados, significações, ressignificações, representações

psíquica e social, simbolizações, simbolismos, percepções, pontos de vista, perspectivas,

experiências de vida e analogias (TURATO, 2003) não objetiva uma verdade histórica, mas

sim ampliar a compreensão. Ela se define pelo “resultado de experiências que vinculam umas

pessoas às outras, segundo pressupostos articuladores de construções de identidades

decorrentes de memórias expressadas em termos comunitários” (MEIHY, HOLANDA, 2007,

p.27).

Salienta-se, dessa maneira, que a relevância das entrevistas em história oral está

relacionada aos informantes selecionados, bem como as condições de sua realização - a

organização da coleta de dados, a negociação com o colaborador, a gravação, a transcrição, a

transcriação e a validação. Uma pesquisa que utiliza a referida metodologia precisa considerar

e valorizar os silêncios, os esquecimentos, a gesticulação, o semblante do entrevistado e tudo

o que acompanha sua narrativa, pois as subjetivações intrínsecas ao informante também são

aspectos importantes de análises (FIALHO, 2012).

Ante a explicitação da metodologia adotada, importa salientar que nessa pesquisa, o

sujeito biografado foi a educadora Célia Goiana, que atua como docente do Curso de

Pedagogia do Centro de Educação da Universidade Estadual (UECE) do Ceará há 37 anos.

Tempo que lhe rendeu memórias ricas e de fundamental importância para compreender a

história do Curso de Pedagogia da UECE.

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Na condição de uma das mais antigas professoras do curso, ainda no exercício das

atividades acadêmicas, Célia se mostrou não apenas disponível a colaborar com o estudo, mas

transpareceu alegria em saber que poderia ajudar na elaboração da história do Curso de

Pedagogia e à sua voz seria ensejada maior visibilidade. Era uma oportunidade de ter,

também, sua história, enquanto educadora, registrada para a posteridade.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Foi realizada, dessa maneira, uma biografia de Célia Goiana, que exprimiu a sua história

de vida, por meio de lembranças narradas desde a época da sua infância, perpassando por suas

vivências de formação, educação e experiências de trabalho. No entanto, vale ressaltar, que o

foco para esta pesquisa foi a formação docente de Célia, bem como sua contribuição no Curso

de Pedagogia da UECE.

Célia Maria Goiana Falcão nasceu em 06 de maio de 1951. É filha de Terezinha de

Castro Goiana Falcão e José Maria Goiana Falcão. Possui dois irmãos, mas ainda assim,

sempre foi tratada como se fosse filha única por ser a única menina da casa. Sua família

valorizava a educação e o estudo, por isso Célia procurava sempre ser boa aluna, e alegava

obter ótimos resultados.

Célia morava no interior, mas já na infância tinha acompanhamento escolar. Ela recorda

que quando veio para Fortaleza por volta dos cinco anos de idade, ficou com uma pessoa indo

diariamente em sua casa para acompanhar seus estudos, como narra:

Quando eu cheguei aqui a titia (Filomena) me matriculou na escola que era em

frente a casa onde eu morava, Justiniano de Serpa, era uma série antes da

alfabetização, acho que eu tinha uns 5 anos de idade. Ao mesmo tempo eu estudava

com a Dona Rita que era uma professora particular, aí depois quem substituiu a

Dona Rita foi um menino chamado Francisco de Assis. Ele me ensinava matemática,

eu tinha muita dificuldade em matemática, mesmo quando estudava no Colégio

Cearense (ensino médio).

Em relação à profissão docente, ela comenta que sua primeira experiência no

magistério foi como substituta, sua tia iria precisar se ausentar por motivo de saúde e ela ficou

no seu lugar lecionando para adultos, com conteúdos compatíveis com os da série de

alfabetização. Ela conta que a escola era na periferia e tinha uma clientela muito pobre e

recorda de um episódio onde ela recebeu o conselho de outra professora que disse: “A senhora

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venha bem simples”. Quando ia para essa escola, Célia escondia seu carro atrás de uma igreja

para ninguém ver que ela tinha “posses”, mas não era por medo de assalto e sim por receio de

que as pessoas achassem que ela era rica, diferente, e, assim, não fossem espontâneos como

eram normalmente.

Ainda sobre essa experiência, Célia recorda com detalhes de um fato que marcou sua

vida e condicionou sua opção pela carreira no magistério:

Um dia eu fui conhecer as casas (dos alunos da escola), eram muito simples, eram

casas pequenas, as redes eram enroladas no teto, no canto, tinha tijolos brancos

fazendo fogo, tinha uma panela velha toda machucada e eles faziam doces de lata,

doce de goiaba, doce de banana, que hoje em dia vem naqueles plásticos. Faca não

vi, colher não vi, então como uma criança dessas podia ter uma unha limpa, um

cabelo cortado? Então, levei uma amiga minha para fazer um tratamento nos

meninos, fiquei muito triste e foi quando eu compreendi que uns nascem para ser

feliz e outros nascem sem ter nada, minha vó me disse: “o mundo é imperfeito para

que as pessoas se tornem perfeitas, Deus fez o mundo perfeito, mas o homem com

sua ambição tornou o mundo imperfeito”. Então, eu vi que existia diferença entre as

pessoas, e para mim foi bom, foi muito rico.

Foi desde essa vivência que Célia começou a perceber com outra perspectiva a realidade

e passou a compreender que a vida para a maioria das pessoas era bem diferente da que ela

desfrutava, confirmando o pensamento de sua avó. Tal acontecimento impulsionou sua

escolha profissional pelo magistério, o que contrariava o sonho de seu pai de ter uma filha

médica.

Célia ficou sabendo sobre o vestibular para a Universidade de Fortaleza – UNIFOR,

única instituição privada de ensino à época que atendia uma clientela de classe alta, e resolveu

“criar coragem” para enfrentar seu pai e falar sobre o que tinha escolhido para sua vida

profissional:

Eu disse para ele que tinha muita vontade de fazer Pedagogia e ele ficou com raiva,

disse que eu queria ser como a minha tia Maria das Dores, que iria passar fome,

porque professora não ganhava dinheiro. Chorei muito. Mas disse a ele que iria ser a

melhor e questionei: O melhor num ganha bem? Então vou ser a melhor e vou

ganhar bem.

Em 1973 Célia fez o vestibular para Pedagogia e se lembra desse momento com

emoção – seu sorriso despontava e seus olham brilhavam - e enfatiza que “iria ser a melhor

que pudesse, mesmo que começando de baixo”. Ao seu pai, restou aceitar a decisão da filha,

ainda que não fosse seu desejo, soube respeitar a escolha de Célia e não apenas permitiu, mas

também pagou sua licenciatura em Pedagogia na UNIFOR.

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Terminou o curso superior em dezembro de 1977. Quando foi em setembro de 1978,

Célia foi substituir Solange, sua colega de trabalho, pois esta estava doente e pediu que Célia

a substituísse na UECE. Mas afirma que o pagamento atrasava muito e que dava mais

importância ao emprego no Colégio Cearense. Na UECE demorava até 6 meses para sair o

dinheiro, dependia do Governo. Por diversas vezes, na assinatura do contrato do semestre

seguinte é que recebia o atrasado. Logo, essa era uma renda que Célia não poderia contar

sempre, considerava “um bico”.

Em relação a essa substituição, Solange entregou seus planos de aulas, para ser

utilizado tanto na turma da manhã quanto na turma da noite, para que Célia os seguisse.

Entretanto, Célia tinha convicção de que não poderia dar a mesma aula nas duas turmas, isso

porque ela tinha conhecimento das dificuldades do público noturno, que era composto por

alunos mais cansados, que trabalhavam o dia todo. Dessa maneira Célia realizou os ajustes e

conseguiu exercer um bom trabalho. Inclusive acrescenta que essa cultura de adaptar as aulas

para o público noturno da UECE perdura até os dias atuais.

No período de 1978 a 1983, Célia assumiu as disciplinas de Política e Programas e

Planejamento Educacional. No entanto, seu vínculo era como sendo professora colaboradora,

que era aquela que entrava em março e saía em junho, não tinha férias, nem décimo terceiro,

era prestadora de serviços. Mas, imprime importância a essa experiência quando comenta que

assim foi ganhando seu espaço.

O emprego de Célia, regularizado oficialmente, foi de professora, ministrava aula

numa escola localizada na Avenida Dom Luís, essa instituição foi vendida para a escola

General Osório e foi onde Célia atuou como professora alfabetizadora. No que concerne à

profissão, Célia teve grandes experiências e em colégios renomados da Cidade. Foi

Coordenadora do Colégio São João, foi Supervisora do Colégio Imaculada Conceição e Vice-

diretora no Colégio Cearense.

A rotina de Célia era muito intensa de atividades, e sobre isso Célia nos conta um

incidente que aconteceu com riqueza de detalhes, momento que segundo ela, nunca

esquecerá:

Teve uma vez que cheguei atrasada em uma reunião (no Colégio Cearense), e ele (o

Irmão) foi me receber no elevador e ele falou: Célia, você gosta de pessoas diretas?

E eu disse que sim. E ele me perguntou por que eu estava chegando naquela hora.

Eu respondi: Porque eu dormi Irmão, não consegui acordar. Eu estou num ritmo

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muito grande de trabalho e o sono me pegou. Sinto muito, desculpe. E fique à

vontade para fazer o que o senhor quiser comigo. Ele mandou eu ir para sala. Não

havia ninguém presente, mas depois todo mundo ficou sabendo, não sei como essas

coisas acontecem. E ficavam dizendo que eu era a protegida. Quando a Solange

falou que ia embora, que ia fazer mestrado. Ele disse que aceitava a decisão da

professora Solange, logo todos queriam saber se ele já tinha uma substituta. E ele

respondeu que tinha logo todos quiseram saber e ele respondeu: A professora Célia

Goiana. Quando ouvi, fiquei sem chão. Se eu procurei, eu não achei. Fiquei surpresa

porque até então ele não me havia comunicado nada.

Para Célia, no momento as coisas não fizeram sentido, mas depois foram clarificando.

Ela começou a observar o tipo de profissional que ela era: gostava das coisas corretas,

organizadas, era responsável e sempre ajudava quando podia. E comenta: “Tenho a

impressão, que foi nesse momento que ele viu meu lado administrativo. Eles não se enganam

à toa”. Célia afirma que o Colégio Cearense foi o seu laboratório, pois era uma escola

particular, famosa e exigente, onde aprendeu muito. Inclusive, recebeu homenagem de

reconhecimento pelo desempenho de seu trabalho. Sobre a valorização de sua profissão ela

leciona:

O prêmio de quem é organizada e competente é mais trabalho. Após isso fui dar aula

de Gestão Escolar. Estudei bastante sobre gestão e isso foi uma grande porta para eu

assumir a Vice Direção do Colégio Cearense. Na UECE meus alunos também me

valorizavam bastante, era muito querida por eles, a falta de valorização era no

âmbito político. A minha valorização veio através de mim e dos meus alunos. Eu até

fui eleita na UECE para ser coordenadora sem ao menos ser inscrita. Todos eles

votaram em mim, foi de grande satisfação pra mim, fiquei muito feliz. Quem me

sustentou foi o Colégio Cearense, minhas filhas estudaram lá desde o maternal até o

3º ano e eu nunca paguei nada. Valeu a pena ser professora, por amor, pelo meu

estudo e pelos meus alunos. [...]. Se fosse para escolher entre Medicina e Pedagogia

escolheria Pedagogia novamente.

Em 1987, logo após o nascimento de sua primeira filha, abriu um concurso para

professor na UNIFOR, e Célia foi aprovada. Ela narra:

Tinha uns 50 candidatos para uma vaga. Eu passei. Só que eram duas disciplinas aí a

pessoa que tirou 2º lugar era “peixão”. Quando eu soube, eu já fui falar com o

coordenador, levei uma proposta, porque eu vi que dá duas disciplinas era pesado.

Aí eu disse: “olha, esse semestre eu divido pela entrada do concurso, mas no

próximo eu quero a carga horária completa” aí deu tudo certo, fizemos um

documento, registrando tudo, todo mundo ficou feliz.

Após dois anos atuando como professora, como não considerava o salário da UNIFOR

bom e sua residência era muito distante, fui conversar com a coordenadora para dizer que ia

sair da UNIFOR. Ela falou: “Você é doida trocar uma instituição como a UNIFOR pela

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UECE”. Mas Célia estava decida e não voltou atrás, pediu demissão para continuar só na

UECE porque tinha que se aposentar.

Imediatamente após sua saída da UNIFOR, foi eleita Vice-diretora do Colégio

Cearense, e exprime suas dificuldades: “Aí o sufoco foi grande, eu fiquei na UECE a noite, de

segunda a sexta. Eu tinha 20h, depois faltou professor virou 40h. E ainda tinha que estar

manhã e tarde no Colégio Cearense”.

Por volta de 1983 começou uma mobilização por melhorias na UECE, nessa época não

tinha greve, falava-se direto com o governador. O governo da época era Virgílio Távora e

Célia comenta que concomitante à suas atividades ela participava das mobilizações e era

professora de artesãos, financiada pela mulher do Virgílio Távora. A culminância dessa

mobilização foi a realização de um concurso para professor efetivo da UECE, no qual Célia

participou visando sua efetivação.

Célia obteve aprovação no concurso e ressalta que ainda nesse período o Curso de

Pedagogia funcionava na Rua 25 de Março e somente em 1985 foi transferido para o bairro do

Itaperi, logo, foi naquele lócus que exercia suas atividades profissionais no ensino superior.

Sobre a formação continuada Célia relata:

Aí depois eu fiz minha especialização na UNIFOR, em educação infantil, porque eu

me sentia defasada com relação a esse conteúdo e eu trabalhava muito com essa

clientela pequena. Então fiz só a especialização e não me interessei em fazer

mestrado. Ainda me inscrevi uma vez na Federal e descobri que lá tinha, na época,

uma história de frequentar um curso, quem não frequentasse o curso não passava. Aí

fiz para cá (UECE) duas vezes. Na primeira, eu não passei. E na segunda vez, eu

tive uma crise de hipertensão, eu sai daqui, sem dizer nada a ninguém, peguei meu

carro e não sei como cheguei em casa. Aí eu cheguei em casa e comecei a pensar:

“Estou precisando disso pra quê?” Para ganhar mais dinheiro não é! Para trabalhar

mais que eu trabalho? Não! Porque quando eu me dedico, eu me dedico. Aí ia fazer

de conta, só para ter mestrado!

Não muito a posteriori desse acontecimento, o setor de recursos humanos da UECE

solicitou os documentos de Célia e considerou equivalente ao nível de mestrado um curso de

120 horas que ela havia realizado como relata:

Foi quando mandaram pedir todos os meus documentos, aí eu tinha 120 horas de um

curso que eu tinha feito, de especialização, a nível superior. Eu fiz na Paraíba,

durante 1 mês, pelo Marista, tinha certificado e tudo. Aí me ligaram daqui. A partir

daí eu passei a ser Assistente, com mesmo nível de mestrado. Então é como,

financeiramente, eu tivesse mestrado. Aceitaram essa minha titulação.

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Questionada sobre quais suas maiores contribuições no campo educacional e em relação

às atividades, por ela, desenvolvidas, enfatiza o que considera mais importante:

Tenho convicção de que foi não olhar o aluno como multidão, e principalmente, não

ditar regras no sentido de que, pegar e dizer bom foi Piaget, bom foi fulano, todos

deram suas contribuições. Deem valor as historias dos outros. Não tem quem foi

mais certo mais errado. Conheça as escolas, os pensadores, pra você ter a sua

opinião. Estude e escolha.

Profissionalmente, outro acontecimento marca sua trajetória docente, Célia aproximou-

se de Lia Matos, coordenadora do Curso de Pedagogia da UECE, e acabou assumindo a

coordenação do referido Curso no lugar de Lia, mesmo não querendo ser Coordenadora,

aceitou a função porque o irmão de Lia adoeceu e ela se ausentou. Célia comenta: “Foi outro

desafio, aprender tudo que eu não sabia. [...] Aí eu descobri o Câncer, mas como já estava no

final da minha carga horária, me acostumei a ficar aqui de manhã, tarde e noite”.

Fato importante, mais atual, que marcou a vida de Célia e demonstra seu amor pela

profissão, foi ela ter sido diagnosticada com Câncer de mama. Tal agravo na saúde permite,

com amparo legal, a aposentadoria, e no caso dela, com remuneração integração sem dedução

de imposto de renda. Ao contrário de sessar suas atividades profissionais, optou por continuar

exercendo as atividades docente. Ela explica:

Não atrapalhou em nada. Quando eu estava na coordenação, eu tinha disciplinas. Era

Gestão escolar. Tinha duas cadeiras de estágio. Quando descobri o câncer. Já estava

quase no final da minha carga horária, faltavam umas duas aulas. De um mês para o

outro teve uma diferença milimétrica, mas a doutora se preocupou. Ela o queria

solto. Ele não tinha raiz, não estava agregado a nada, mas era maligno. Aí em

outubro, falei com a Lia que eu ia avisar aos alunos que ia me operar. Fui à sala,

comuniquei a turma, e eles me confortaram tanto! Sabiam que eu ia voltar, mas que

iria demorar. Eu operei, e nesse período teve uma greve. Quando eu voltei, a

coordenação já estava com a Margarete Sampaio. Aí não fui mais lotada em sala de

aula, fiquei dando suporte na coordenação.

Mesmo com a nova gestão aconselhando que ela fizesse repouso ao longo do

tratamento contra o câncer ou até pedisse aposentadoria, Célia insistia em ir trabalhar. Entre

as sessões de quimioterapia e radioterapia, sempre que melhorava dos efeitos colaterais, se

fazia presente na UECE disposta a colaborar. Essa ocupação, pela qual nutre um amor

enorme, já não era apenas uma atividade profissional ou uma fonte de renda, mas uma

necessidade para que ela pudesse ultrapassar as barreiras físicas e emocionais que a doença

lhe impunha.

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A surpresa final, é que não tão distante de um convite para aposentadoria, Célia

conclui o tratamento e é convidada para assumir a Vice Coordenação do Curso de Pedagogia.

Mesmo com a saúde ainda debilitada e as limitações impostas pelo avançar da idade. Aos 65

anos, ainda se dispôs a colaborar com o Curso de Pedagogia da UECE e experimenta a

possibilidade de abarcar tamanha carga de trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As memórias de Célia Goiana foram produto de um trabalho de ressignificação tecida

pela amálgama entre presente e passado, que veio à tona, à medida que foi fabricada, sem

necessidade de linearidade (LE GOFF, 2008). Tal elaboração requereu tratamento teórico e

metodológico por parte daqueles que se dedicam a coleta das lembranças. A história oral,

enquanto metodologia de investigação científica foi considerada, no âmbito da pesquisa

qualitativa, poderoso instrumento para a descoberta, a exploração e a avaliação de como Célia

Goiânia compreende seu passado, vincula sua experiência individual a seu contexto social,

interpreta-a e dá-lhe significados, a partir do momento presente (MINAYO, 2006).

Consideramos que a vida de toda pessoa, seja ela anônima ou popular, possui um valor

autônomo para a história, e a trajetória de Célia Goiana, produto de individualidades únicas e

irredutíveis, contribuem para compreensão da história da educação. A elaboração de

biografias sobre os (as) educadores (as) possibilita questionar e preservar a história e memória

da educação no Ceará. Loriga (2011, p.112), ao estudar Meyer e Droysen, leciona: “O

passado não é um patrimônio perdido que deve ser recuperado, mas uma herança viva, uma

força, uma energia geradora de sentido”.

Não podemos negar que as contribuições de Célia Goiana à educação foram de grande

valia e seu exemplo de vida como educadora, merece atenção, especialmente, daqueles

inseridos no âmbito educacional. Enquanto mulher que se dedicou com afinco a profissão

docente, Célia se fez sujeito da história de educadores que contribuíram no cenário

educacional cearense. Sua história de vida se imbrica com a de inúmeros outros profissionais

e possibilita, a partir da (auto) biografia, identificações e rupturas que vão gerar novas

reflexões e narrativas históricas.

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As discussões não se esgotam aqui, ao contrário, se propõe a estimular novos estudos,

pois como afirma Xavier (2014, p. 230) “o incentivo fica pautado para que muitas outras

pesquisas, de cunho biográfico, venham à tona fazendo emergir os até então anônimos

ofuscados, esquecidos ou menosprezados pela história vista de cima”.

Nesse sentido, os resultados demonstraram que Célia Goiana foi uma educadora à frente

de seu tempo, pois rompeu paradigmas sociais ao se dedicar à educação e contrariar os

anseios de seus pais, que pretendiam formar uma filha médica, principalmente quando atuou

nas classes menos favorecidas, mesmo possuindo uma formação educativa elitizada. Ela se

dedicou com afinco à profissão docente e consagrou-se personagem de referência para a

história do Curso de Pedagogia da UECE, assim, suas memórias imortalizam não apenas a

história do curso, mas da própria instituição, que não possuía o cuidado de arquivar

documentos.

Desse modo, é possível, por meio da análise das vivências e práticas pedagógicas,

fomentar o debate educacional e compreender melhor a postura didática no fazer pedagógico

da atualidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBERTI, Verena. História dentro da história. In: PINSKY, C. B. (Org.). Fontes históricas.

2 ed. São Paulo: Contexto, 2006.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. 2ª ed. São Paulo: EDUSP, 1987.

BURKE, Peter. (Org.) A escrita da história. Tradução por Magda Lopes. São Paulo: UNESP,

1992.

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