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ensaio 8e. pesquisa Preservar não é tombes; renovar não é pôr tudo abaixo Texto Cartos Nelson F. dos Santos Este artigo foi encomendado (e pago...) para publica- ção na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Na- cional. Quando ficou pronto, foi vetado pelo editor, sob o pre- texto de que ofendia os brios da arquitetura nacional. Procedimento dos mais estranhos, em se tratando de trabalho assinado, escrito e desenhado no capricho, após insistentes convites. Não sei, não... deve ter ido muito direto ao alvo. Paciência. Carrego a honra de ter sido censurado pela Nova República bem antes de Go- dard (Rio, 1984). Toda cidade resulta da agregação de trabalho humano a um suporte natural. Isto quer dizer que, uma vez fun- dadas, as cidades vivem se refazendo, jamais estão prontas. Talvez esse enfrentamento do espaço e do tem- po através de ações sociais se pudesse chamar com mais propriedade de história - de história urbana pelo menos. De todas as formas, estou quase convencido de duas coisas: 1. A história do homem acaba sendo enquadrada pe- los espaços que inventou para que neles acontecesse a sua história. Não há maneira de pensar espaço signi- ficativo desacompanhado de história que o explique (quando se trata dos chamados "povos sem história" substitua-se história por mito ...). Da mesma forma, é im- possível imaginar história ou mito não referenciados a espaços reais ou imaginários. 2. Desde que, há uns 10 000 anos, a cidade surge na história, coroando a revolução do neolítico, passa a ser o lugar preferencial para realização (e percepção ...) da própria história. Há cidades que param. Deixam de se transformar atra- vés dos diálogos, nem sempre mansos, entre espaço e tempo. A rigor, não deveriam mais ser chamadas de cidades. No dizer de Oriol Bohigas, viram museus, ce- mitérios, cenários de turismo, o que se quiser ... Não me- recem mais ser consideradas centros urbanos reais. Ele entende bem do que está falando: além de eminente arquiteto urbanista, é cidadão de Barcelona. Justo a Es- panha foi um dos países onde, nas últimas décadas, houve mais controvérsias sobre o muito que preservar e o muito que destruir, face a novas imposições da so- ciedade e de suas atividades econômicas. Seções inteiras das cidades não estariam de pé se não fossem usadas no cotidiano, "a retalho': Os conceitos de cidade e mercado são daqueles imbri- cados desde a origem. Não estou me referindo ao mer- cado das trocas materiais e da razão prática, caracte- rístico do capitalismo. Este só tomou de assalto os meios urbanos e os submeteu às suas lógicas em meados do século XIX. A partir daí, tudo vira mercadoria negociá- vel por quem mais possa pagar. Não escapam a terra e, numa esfera muito mais abstrata, as diversas locali- zações intra-urbanas, valorizadas de forma diferente no tempo pelos vários grupos que vivem nas cidades. Meu mercado aqur é mais amplo. Para começo de história, sua meta principal é promover, através do estabeleci- mento de uma cadeia de obrigações de reciprocidade, o máximo de equilíbrio na estrutura social. Quer redis- tribuir, não acumular. Em vez da mesquinha óptica da produtividade, permite as múltiplas ordens da criativi- dade. Por suposto, sempre foi mais idealizado que rea- lizado, mas, através da história, com a cidade e na ci- dade, foi se concretizando através das práticas possí- veis. Até que, por força dos individualismos da cultura desagregadora do Ocidente moderno, teve seu papel apequenado, foi reduzido. Ficou tudo mais fácil de usar e mais eficiente, é bem verdade. O preço. pago, porém, foi a esquizofrenia de que, hoje em dia, o mundo intei- ro parece atacado. A cultura burguesa praticou o feito inédito: submeteu as outras que lhe eram contemporâneas. Na maioria dos casos, destruiu-as por completo. Apropriou-se de tu- do, simplificando significados complexos. O que inte- ressava era aplainar caminhos para a existência e ope- ração de empresas e do Estado nacional... Entidades totalizadoras que se esforçam por "descomplicar" o que podem, para melhor controlar ou melhor mandar. As ci- dades, indispensáveis à difusão e implantação dessas novas ordens desde o renascimento europeu, foram suas grandes vítimas. A cidade/mercado do capitalismo está longe, porém, de 15 existir como um absoluto. Além da principal razão de ~ ser - produtividade de mercadorias e disciplinas -, con- ~ tinua abrigando muitas outras vocações. Técnicos, es- i> pecialistas e o status quo de um modo geral costumam .g classificar essa persistência como anacrônica e desvian- ~ te. São desordens frente à ordem que sonham existirá ~ um dia, perfeita e imutável. Não percebem que são os espaços fora das convenções, as atividades econômi- cas fora de controle e as relações sociais fora dos mo- delos aceitos oficialmente que permitem e viabilizam seus ideais de ordem. Em síntese, só pode haver um positivo à custa de muitos negativos. Aqui no Brasil en- tão, país de poucos recursos e inúmeros problemas no cenário urbano, que deu um salto espetacular em no- venta anos, só algumas áreas chegam mais perto do ideal. Fazem-no, entretanto, à custa de outras que es- poliam. A regra é que nos bairros cêntricos se promo- va a concentração de benesses urbanísticas para uso cada vez mais exclusivo dos mais ricos e das ativida- des mais nobres. O resto, a maioria das pessoas e de suas ações, vai se distribuindo como pode em espa- ços tanto mais pobres e desprovidos quanto mais dife- renciados dos núcleos cheios de privilégios. Usei a expressão diferenciados em lugar de distantes porque o contraste se deve a fatores que podem incluir ou não descontinuidade física. Estar longe das áreas centrais é condição suficiente mas não necessária ou única de separação e segregação. Há favelas em mui- tas cidades brasileiras que, do ponto de vista da locali- zação, ocupam posições invejáveis. Periferias e subúr- bios parecem o "habitat natural" para as camadas de menor renda e para os negócios de menor prestígio. Em muitos casos, porém, basta virar uma esquina da ave- nida de maior movimento para encontrar casarões ve- lhos transformados em cabeças-de-porco, hospedarias, oficinas ... No quintal de edifícios com ótima aparência podem existir barracos e construções precárias. Isto sem falar nos bairros chamados decadentes, que costumam cercar a área mais central das maiores cidades. Exten- sões contínuas de casario antigo, ruas, praças ... que o governo costuma ver como resíduos, como enclaves que já não servem para nada. Daí, passa a considerá- Ias como reservas que, assim que for possível, será pre- ciso pôr abaixo e reconstruir nos padrões desejáveis. Nas cidades o espaço fala. Cheios e vazios, edificações e logradouros, público e privado formam UIJI código. 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Preservar não é tombar, renovar não é por tudo abaixo

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ensaio 8e.pesquisa

Preservar não é tombes;renovar não é pôr tudo abaixo

Texto Cartos Nelson F. dos Santos

Este artigo foi encomendado (e pago ...) para publica-ção na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Na-cional.

Quando ficou pronto, foi vetado pelo editor, sob o pre-texto de que ofendia os brios da arquitetura nacional.Procedimento dos mais estranhos, em se tratando detrabalho assinado, escrito e desenhado no capricho,após insistentes convites. Não sei, não... deve ter idomuito direto ao alvo. Paciência. Carrego a honra de tersido censurado pela Nova República bem antes de Go-dard (Rio, 1984).

Toda cidade resulta da agregação de trabalho humanoa um suporte natural. Isto quer dizer que, uma vez fun-dadas, as cidades vivem se refazendo, jamais estãoprontas. Talvez esse enfrentamento do espaço e do tem-po através de ações sociais se pudesse chamar commais propriedade de história - de história urbana pelomenos. De todas as formas, estou quase convencidode duas coisas:

1. A história do homem acaba sendo enquadrada pe-los espaços que inventou para que neles acontecesse

a sua história. Não há maneira de pensar espaço signi-ficativo desacompanhado de história que o explique(quando se trata dos chamados "povos sem história"substitua-se história por mito ...). Da mesma forma, é im-possível imaginar história ou mito não referenciados aespaços reais ou imaginários.

2. Desde que, há uns 10 000 anos, a cidade surge nahistória, coroando a revolução do neolítico, passa a sero lugar preferencial para realização (e percepção ...) daprópria história.

Há cidades que param. Deixam de se transformar atra-vés dos diálogos, nem sempre mansos, entre espaçoe tempo. A rigor, não deveriam mais ser chamadas decidades. No dizer de Oriol Bohigas, viram museus, ce-mitérios, cenários de turismo, o que se quiser ... Não me-recem mais ser consideradas centros urbanos reais. Eleentende bem do que está falando: além de eminentearquiteto urbanista, é cidadão de Barcelona. Justo a Es-panha foi um dos países onde, nas últimas décadas,houve mais controvérsias sobre o muito que preservare o muito que destruir, face a novas imposições da so-ciedade e de suas atividades econômicas.

Seções inteiras das cidadesnão estariam de pé se nãofossem usadas nocotidiano, "a retalho':

Os conceitos de cidade e mercado são daqueles imbri-cados desde a origem. Não estou me referindo ao mer-cado das trocas materiais e da razão prática, caracte-rístico do capitalismo. Este só tomou de assalto os meiosurbanos e os submeteu às suas lógicas em meados doséculo XIX. A partir daí, tudo vira mercadoria negociá-vel por quem mais possa pagar. Não escapam a terrae, numa esfera muito mais abstrata, as diversas locali-zações intra-urbanas, valorizadas de forma diferente notempo pelos vários grupos que vivem nas cidades. Meumercado aqur é mais amplo. Para começo de história,sua meta principal é promover, através do estabeleci-mento de uma cadeia de obrigações de reciprocidade,o máximo de equilíbrio na estrutura social. Quer redis-tribuir, não acumular. Em vez da mesquinha óptica daprodutividade, permite as múltiplas ordens da criativi-dade. Por suposto, sempre foi mais idealizado que rea-lizado, mas, através da história, com a cidade e na ci-dade, foi se concretizando através das práticas possí-veis. Até que, por força dos individualismos da culturadesagregadora do Ocidente moderno, teve seu papelapequenado, foi reduzido. Ficou tudo mais fácil de usare mais eficiente, é bem verdade. O preço. pago, porém,foi a esquizofrenia de que, hoje em dia, o mundo intei-ro parece atacado.

A cultura burguesa praticou o feito inédito: submeteuas outras que lhe eram contemporâneas. Na maioria doscasos, destruiu-as por completo. Apropriou-se de tu-do, simplificando significados complexos. O que inte-ressava era aplainar caminhos para a existência e ope-ração de empresas e do Estado nacional... Entidadestotalizadoras que se esforçam por "descomplicar" o quepodem, para melhor controlar ou melhor mandar. As ci-dades, indispensáveis à difusão e implantação dessasnovas ordens desde o renascimento europeu, foramsuas grandes vítimas.

A cidade/mercado do capitalismo está longe, porém, de15 existir como um absoluto. Além da principal razão de~ ser - produtividade de mercadorias e disciplinas -, con-~ tinua abrigando muitas outras vocações. Técnicos, es-i> pecialistas e o status quo de um modo geral costumam.g classificar essa persistência como anacrônica e desvian-~ te. São desordens frente à ordem que sonham existirá~ um dia, perfeita e imutável. Não percebem que são os

espaços fora das convenções, as atividades econômi-cas fora de controle e as relações sociais fora dos mo-delos aceitos oficialmente que permitem e viabilizamseus ideais de ordem. Em síntese, só pode haver umpositivo à custa de muitos negativos. Aqui no Brasil en-tão, país de poucos recursos e inúmeros problemas nocenário urbano, que deu um salto espetacular em no-venta anos, só algumas áreas chegam mais perto doideal. Fazem-no, entretanto, à custa de outras que es-poliam. A regra é que nos bairros cêntricos se promo-va a concentração de benesses urbanísticas para usocada vez mais exclusivo dos mais ricos e das ativida-des mais nobres. O resto, a maioria das pessoas e desuas ações, vai se distribuindo como pode em espa-ços tanto mais pobres e desprovidos quanto mais dife-renciados dos núcleos cheios de privilégios.

Usei a expressão diferenciados em lugar de distantesporque o contraste se deve a fatores que podem incluirou não descontinuidade física. Estar longe das áreascentrais é condição suficiente mas não necessária ouúnica de separação e segregação. Há favelas em mui-tas cidades brasileiras que, do ponto de vista da locali-zação, ocupam posições invejáveis. Periferias e subúr-bios parecem o "habitat natural" para as camadas demenor renda e para os negócios de menor prestígio. Emmuitos casos, porém, basta virar uma esquina da ave-nida de maior movimento para encontrar casarões ve-lhos transformados em cabeças-de-porco, hospedarias,oficinas ... No quintal de edifícios com ótima aparênciapodem existir barracos e construções precárias. Isto semfalar nos bairros chamados decadentes, que costumamcercar a área mais central das maiores cidades. Exten-sões contínuas de casario antigo, ruas, praças ... que ogoverno costuma ver como resíduos, como enclavesque já não servem para nada. Daí, passa a considerá-Ias como reservas que, assim que for possível, será pre-ciso pôr abaixo e reconstruir nos padrões desejáveis.

Nas cidades o espaço fala. Cheios e vazios, edificaçõese logradouros, público e privado formam UIJI código. As

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A excepcionalidade, asacralidade mesma domomento.

A avenida PresidenteVargas ainda está cheia deterrenos desocupados.

muitas articulações possíveis dos diversos elementosem cada sítio constituem uma linguagem peculiar. Daperspectiva analítica, o fenômeno não é muito fácil deregistrar e entender. Os produtos arquitetônicos e ur-banísticos por si mesmos permitem poucas precisões,são ambíguos; talvez excessivamente poéticos. Mas éaí que reside sua maior força - nessa resistência à frag-mentação. Os conjuntos urbanos costumam ter gran-de poder expressivo. São sínteses fortes. Mesmo paraquem conhece pouco uma determinada cidade é fácilfazer demarcações a partir de balizamentos sumários.Habituar-se a um território desconhecido implica clas-sificar lugares: onde há confusão; onde há calma; on-de se trabalha; onde há segurança; onde vão os ricos;onde se adquirem bens úteis ou supérfluos ... e assimpor diante.

A síntese espacial urbana tira das relações metafóricassua maior eficiência. Os lugares, por serem como são,dizem de uma só vez uma porção de coisas para ummonte de gente. Apresentam conformações cumulati-vas. Estão no presente, mas podem demonstrar comojá foi e como, talvez, será. Assim, não só com-formam.Também in-formam. Disse, um pouquinho antes, quena cidade o espaço fala. Fala de quê? De uma organi-zação econômica, sem dúvida. Esta, por sua vez, se re-fere a uma estruturação social que se realiza atravésde um modo de vida característico. A última expressãopode, sem favor, ser substituída por cultura. A cultur~é constituída por esses milhares de obviedades que todomundo tem de saber, se deseja sobreviver, se não qui-ser ser um Kaspar Hauser,*_ incapaz de dizer de ondeveio e a que veio no ambiente em que deveria se sentià vontade. Pois é, participar de uma cultura é "estar em.casa" dentro dela. Isto corresponde a dominar uma certaquantidade de códigos classificatórios que, quanto maisgerais e abrangentes sejam, mais básicos são. Entre osconhecimentos básicos que permitem a convivência demilhares de pessoas e interesses, nos espaços tão re-duzidos das cidades modernas, está a atribuicão de ummínimo de significados coincidentes a uma coleção de

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lugares ordenados segundo convenções que, para osmembros daquele grupo, são referências estruturais.

Muito bem. Se, nos espaços urbanos, as formas físi-cas falam das formas econômicas e das sociais, nãohaverá dificuldades de tradução? Termos irredutíveis,tempos e objetivos diversos, divergentes até? Há sim.A melodia não é harmônica, nem cantam todos no mes-mo diapasão. De um campo para outro existem super-posições, é verdade, mas são abundantes os desencon-tros e as autonomias. Creio mesmo que nessas faltasde precisão contraditórias se estabeleçam os domíniosde um quarto código, indispensável para que nas cida-des coexistam, com o mínimo de desgaste, os outrostrês. As falhas, as brechas, os brancos são o territóriodos entendimentos políticos. Nosso modelo urbano Ja polis ocidental dos cidadãos e de suas assembléiasrepresentativas e equalizadoras - exige que existam. Elesservem para explicar o ininteligível, conciliam a intole-rância das ópticas exclusivas, tornam a ambigüidage útil.Mais do que isso: fazem dela um instrumento de acer-tos. Quando o coro de mil vozes consegue o encontroda assembléia, tenta se afinar, se ajeita para dar chan-ce aos timbres mais fracos, respeitando as limitaçõese racionalidades da maioria e permitindo os solos nahora certa. Há outras possibilidades também: criar umafalsa e fácil disciplina da exclusão; fazer com que qua-se todos se calem e conceder o privilégio da expres-são a um grupo que pode tudo. Quando esse excessode autoritarismo acontece, é raro que os resultados se-jam bons para as cidades, não importando abeleza ouo alcance das vozes. Já diziam os homens da Idade Mé-dia que o ar urbano era bom porque nele se respiravaliberdade. Percebiam bem duas coisas naqueles tempos:1. que a meíhõr maneira de viver consistia em reafir-mar as semelhanças e compreender as diferenças emconjunto (o que equivalia a trocar experiências); 2. quea liberdade estava embutida nas ações de todos os diase que nelas se revigorava.

Pensar na cidade e no que expressa li partir de suasformas e lugares é ser morto-lógico. Um entendimento

i6 (um conhecer ...) tão bom como outro qualquer, com a~ vantagem de ser muitíssimo acessível. Os espaços ur-~ banos são livros abertos, que a cada instante dizem aos~ que estão neles não só onde estão, mas quem são e:§ quem são os outros. Uma jornada comum, que implica~ deslocamentos, passagens por ambientes dos mais pri-~ vados aos mais públicos, ida a lugares onde se produz,

se consome, se circula, se descansa, equivale a umacarga informativa das mais completas. A diversidadecomplementar de atividades é a matéria-prima da idéiade cidade. Faz com que se modelem determinadas ex-pressões físicas enquanto se estampa, se expõe e étransformada através delas.

Eis por que, quanto maior a diferenciação de lugarese de edificações no meio urbano, melhor. Mais do queisso: tudo o que facilite intercâmbio, mistura e reformu-lação é bem-vindo. Graças a Deus, começam a ser su-perados os tempos em que pensadores e executivosconsideravam que o melhor a fazer era separar, organi-zar e deixar transparente. O lé-com-Ié e o cré-com-crédas tentativas de zoneamento das cidades brasileirasao longo do século XX só produziu empobrecimentose rupturas. Com os pretextos da renovação, do progres-so, da higiene, das razões do mercado, da circulaçãoete., foram quebradas continuidades, sob todos os pon-tos de vista (exceto o do arbítrio de minorias) expressi-vas e desejáveis. Urbànístas e arquitetos chegam ao fi-nal de quase noventa anos de "revoluções" goradas bas-tante desencantados. Já perceberam que foram coni-ventes. Com as técnicas e ideologias "inovadoras" quetouxeram para cá ajudaram a destruir o irrecuperável.

Entre as muitas novidades urbanísticas de que fomosapóstolos no início do século está a idéia da preserva-ção de sítios e monumentos urbanos. De repente, ar-quitetos e outros intelectuais notáveis (e sonhadores ...)descobriram que até já tínhamos alguma história e queela se exibia, sem proveito, através de edificações des-prezadas, caindo aos pedaços ou (pensavam ...) conser-vadas 'por milagre. É tempo de estranhos surtos nacio-nalistas carregados de internacionalismo, tudo bem en-caixado no grande sonho do país jovem, empenhadoem realizar seu grande futuro e em fixar alguma identi-dade que lhe irradiasse um passado pouco ealorizado,Da descoberta à prática bastou um passo. Os pionei-ros partiram para a cruzada, bem-sucedida, aliás, co-mo quase tudo em que se meteram. Era um campo deidéias articuladas que visavam e lograram uma viradade cabeças na elite e depois no conjunto da sociedadebrasileira: arte moderna, arquitetura e' urbanismo racio-nalistas, nova música, nova literatura e... nova interpre-tação de velharias.

As novidades fizeram boa carreira dos anos 30 para cá.Hoje já existe alguma consciêracia sobre o assunto.Quando se pensa em preservar, alguém logo aparecefalando em patrimônios e tombamentos. Também seconsagrou a crença de que cabia ao governo resguar-dar o que valia a pena. Como? Através de especialistasque teriam o direito (o poder-saber) de analisar edifí-cios e pronunciar veredictos. Esses técnicos praticariamuma espécie de ação sacerdotal. Atribuíam caráter dis-tintivo a um determinado edifício e logo tratavam desacralizá-lo frente aos respectivos contextos profanos.Como ninguém é seguro o suficiente para inventar ri-tuais a partir do nada, trataram de seguir o caminho maisfácil: impuseram as suas mãos sobre o que, por outrasrazões, já estava consagrado. Não foi muito difícil de-clarar dignos de preservação COnventos, mosteiros, igre-jas, palácios, fortalezas, sedes de fazenda ... De raro emraro uma pequena construção antiga justificada como"curiosa": capelinhas. casas rurais, hesitantes exceçõesconfirmadoras da regra cômoda. Os símbolos do po-der não eram, por natureza, distintos? Não foram pro-postos como contrapontos desde o começo? Não ex-plicitavam quem mandava? Para não comprometer a no-breza das boas intenções com estes aspectos menosexcelsos, .decidiu-se esfriá-Ios com a antiguidade. Quan-to mais perto dos séculos XVII ou XVI melhor, porqueassim as relações entre a forma e aqueles outros códi-gos ficavam mais amenizadas. Não é por outra razãoque, ainda há bem pouco tempo, era difícil provar o va-lor de edificações do século XIX. No nosso prój)rio sé-culo, então, só o que já nascesse sob o signo da eter-nidade, isto é, como expressão definitiva e irrecorrívelda transcendência do poder.j-' '.

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essas considerações não entravam dúvidas sobre o ~que moradores e usuários valorizavam nos espaços que .~constituíam seu dia-a-dia. Não interessavam os meca- ~nismos criadores 'de significado em sentido amplo, obri- :..gatoriamente sociais. Também não causava maiores ~preocupações a escalada crescente de uniformizações 2físicas e funcionais de seções inteiras dos territórios ur- ,fbanos. Os especialistas deviam achar que tamanhas vul-garidades não estavam no seu alvo nem eram de suaalçada. Não perceberam, talvez pelas condições do mo-mento e por estarem absorvidos pelas importantes ta-refas que praticavam, que aí residiam os mais insidio-sos fatores: os que levavam as cidades a se descarac-terizar e geravam decadência.

As cidades brasileiras no século XX cumprem a fun-ção de diques. Têm de absorver e dar destino às vagasde migrantes. São escolhidas como as sedes favoritasdas aventuras do capital e dos programas de governo.São maltratadas à exaustão e o mau exemplo vem decima. Sofrem grandes reviravoltas. As provas de desa-mor, observáveis em todas as partes, não devem es-pantar ninguém. São fáceis as explicações para quemnão for. hipócrita. A ausência de surpresa não deve, po- ~rém, implicar desinteresse: a falta de afetividade peloslugares e pelo que representam é um caminho reto pa-ra a pobreza cultural. As pessoas ficam desorientadasquando não conseguem mais entender a linguagem es-pacial que vivem no cotidiano e que Ihes diz que, nestepresente particular, há passados respeitáveis e futurosesperançosos. Ficam perigosamente desorientadas; per-dem um dos mais importantes parâmetros morais.

A versão mais pragmática da afetividade pelo espaço- a demanda por condições mínimas de habitabilidade- aj)arece bem clara em várias cidades do Brasil. Em quepese a notoriedade presente, o assunto não é novida-de. Já no início do século XX, no Rio de Janeiro, porexemplo, havia muitas sociedades de amigos de bair-ros pobres pressionando o governo por melhorias. Nopassado próximo, algumas lutas de favelados e de as-sociações de vizinhos se fizeram notórias. Mais aindaporque aconteceram em épocas nada propícias. Tais mo-vimentos já mereceram vários estudos. Relativa novi-dade são as organizações de moradores de classe mé-dia e alta. Estão, junto com as organizações dos de me-nos recursos, se alastrando por todo o país. Sugerema politização geral dos habitantes das cidades a partirda temática dos respectivos cotidianos. O caminho

pontado se apóia em dois extremos: de um lado háma retomada de individualidades - os grupos sociais

se reconhecem através da identificação de um espaçoque Ihes serve de base comum; do outro há uma ten-dência, bastante embrionária, à conquista coletiva dedireitos universais de cidadania.

Frente a tais mobilizações, aragem renovadora nas can-sativas articulações políticas que parecem eternas, ca-bem alguns questionamentos às idéias assentadas. Naverdade, já não é tão prioritário tombar edifícios monu-mentais. Ninguém sabe o que fazer com eles e come-ça a ficar difícil inventar e conservar tantos museus. Mui-to mais urgente é manter as cidades vivas, oxigenar asua água, em vez de trocá-Ia de vez, deixando apenasos peixes e alguns enfeites fixos no aquário. Os urba-nistas começam a duvidar de ações revolucionárias queviram tudo de pernas para o ar, mas que deixam into-cada a sua capacidade de designar, de decretar sim ounãa Começam a entender o que Gaudi queria dizer com"ser original é voltar às origens".

Do jeito que vem sendo praticada, a preservação é umestatuto que consegue desagradar a todos: o governofica responsável por bens que não pode ou não querconservar; os proprietários se irritam contra as proibi-ções, nos seus termos injustas, de uso pleno de um di-reito; o público porque, com enorme bom senso, nãoconsegue entender a manutenção de alguns pardieiros,enquanto assiste.à demolição inexorável e pouco inte-ligente de conjuntos inteiros de ambientes significati-vos. Sem que peçam suas opiniões, acabam com osmeios de transporte convencionais e que ainda servembastante, para substituí-Ios por outros "modernos" e"eficientes" logo superados, incapazes de cumprir o pro-metido. Ou deixam que sistemas ótimos se deteriorema ponto de parecer lógica sua erradicação. É bem o queaconteceu com as redes de bondes no início dos 60.

O exemplo dos transportes é só uma tentativa de ilus-tração. Como o bonde, podem sumir a estátua que fun-cionou durante décadas como referência, as árvores,a praça inteira. Em seu lugar (nem há mais curiosidadeou esperanças ...) vem sempre coisa pior ou mais feia.Assim, vão-se embora o bar favorito, o cinema que ali-nhavava pessoas e grupos diferentes, a calçada ondese realizavam as intermediações rituais casa/rua, os edi-fícios onde se podia trabalhar e morar ao mesmo tem-po. São substituídos por uma geografia de fantasmase nostalgias. A violência é tão explícita que, mesmo con-tra todas as chances e nos momentos menos propícios,houve gente que não se conformou. Partiu para a brigacontra as fantasias mentirosas de renovação urbana,enfrentou as onipotentes razões do mercado e os arbí-trios políticos, travestidos de argumentos técnicos ir-respondíveis. Em alguns casos registraram-se ganhosheróicos, tamanha a desproporção entre os contendo-res. Talvez por esse filão se possa encontrar novos ar-gumentos e novas maneiras de preservar.

De preservar ou de renovar. Os americanos dizem ur-ban renewal means negro removal. Aqui a mesma fra-se poderia ser usada, desde que se trocasse negro porpobre. Os planos de "renovação urbana" não deslocamapenas os condenados pelo "crime" de estarem ocu-pando lugares tornados bons demais para eles. Carre-gam junto uma quantidade enorme de hábitos cultu-rais e de atividades econômicas, julgados tão despre-zíveis que nem são levados em conta. A conseqüênciasão destruições em muitos planos. Nas áreas transfor-madas, os antigos moradores não encontram mais on-de ficar. Pior: não têm mais chance de localização equi-

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Enquanto isso, a RioBranco se renovava semparar.

Vai-se embora o cinemaque alinhavava pessoas e

grupos diferentes.

valente. O bairro ou setor urbano onde foi realizada arenovação fica privado de serviços, pequenos negócios,oferta de trabalhadores, segurança. Tudo isto correspon-de a uma perda econômica real. Não vejo argumentode maior peso, capaz de sensibilizar mais os que tomamdecisões. No entanto, nada. Talvez porque só se perce-be e avalia o que aconteceu depois de totalmente acon-tecido, quando já não há mais volta.

Espaços centenários ou bicentenários são substituídossem parar nas cidades brasileiras. Suportavam bem to-do tipo de uso. Os novos são inferiores, mesmo no ca-so excepcional de serem bem desenhados. A razão ésimples: excluem a mistura, especializam, isolam e tor-nam as variações difíceis. Há situações mais graves,quando, onde antes havia quarteirões e bairros carre-gados de vitalidade, são criados apenas vazios e esta-cionamentos.

As áreas imediatamente periféricas aos centros das ci-dades grandes foram as maiores vítimas. Teorias de ur-banismo, pouco testadas, ajudaram a implantar uma po-lítica de terras arrasadas. Imaginava-se que, abrindo cla-ros, a pujança e a valorização de núcleos hiperconges-.tionados iriam se alastrar. Crença ingênua, pois as leisdo crescimento urbano não correspondem à dos vege-tais no trópico. Apenas surgiram estoques de baldios,favoráveis a complicadas obras no sistema viário, queatraíram maior número de veículos para o centro. Osvazios, provocados através de demolições e alteraçõescompletas dos tecidos urbanos, favoreceriam a expan-são imobiliária com os conseqüentes acréscimos nasdensidades e as mudanças do uso do solo.

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As lógicas que presidem o crescimento das cidades são ~outras. O Brasil viu uma coleção de fracassos urbanos tfa partir de expectativas que não se cumpriram. A vio-lência das intervenções criou valores concentrados mui-to altos. A solvabilidade é lenta. O capital especializa-do não se motivou. Preferiu investir em lugares ondeexternalidades já existentes e demanda social efetivagarantiam lucros mais rápidos. Resultado: centroscheios de "zonas cinza" e "brancos", perigosos e con-taminadores, ótimos exportadores de decadência paratudo o que estiver em volta.

O Rio de Janeiro, desde o início do século, se constituiem um triste exemplo. Sofreu tantas experiências e pa-rece que ninguém se dispôs a aprender com elas! A ave-nida Presidente Vargas, aberta nos anos 30, ainda estácheia de terrenos desocupados. No mesmo período, ali,bem juntinho, a Rio Branco se "renovava" sem parar.Como e por que o contraste e o paradoxo? Antes quealguém buscasse respostas, foram desenhados e exe-cutados projetos ameaçadores para os bairros circun-vizinhos: Lapa, Catumbi, Estácio, Cidade Nova, Man-gue, Zona Portuária ... Alguns desses IU:;Jaresdeixaramde existir, foram apagados não só do mapa, mas tam-bém da vida afetiva, social e econômica de milhares decariocas. A justificativa não deixa de ser terrível: nãoprestavam mais; compensava eliminá-Ias. Lá havia ri-quezas arquitetônicas, simbólicas e materiais (pareceque estas pelo menos deviam ser mais comoventes nanossa cultura ...). Foram declaradas desimportantes. Noseu lugar existem agora hectares e hectares de esta-cionamentos e arremedos de auto-estradas. Para nãoficar de rodeios, é pouco. É nada, se comparado como que havia antes.

Vinte anos de observação profissional das mais notá-veis cidades brasileiras enchem-me de melancolia. O Rio,Belo Horizonte, Salvador, São Paulo... só podia ter sidoassim? Deve ser a pergunta que todos os meus com-patriotas, especialistas ou não, devem fazer, desde quegostem de cidades. Passados os delírios do desenvol-vimento, da construção do futuro a qualquer preço, jápodemos fazer o balanço dos preços que pagamos deverdade. Um dos mais altos foi a alienação e a indife-rença em relação aos ambientes onde se passa a vidada maioria. Já somos 70% de brasileiros urbanizados.Destes, dois terços têm de usar juntos uns poucos cen-tros e aglomerações (não mais do que cinqüenta). Apos-to que, em quase todos, houve retrocessos: o espaçoestá pior, a habitação mais precária, os transportes maisdeficientes, os serviços mais elitizados ...

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Considero os núcleos, as áreas de maior concentraçãoe movimento das grandes cidades, os casos mais dra-máticos. Verticalizados em alguns pontos, cheios de re-mendos desfiguradores do tecido urbano, transforma-dos em desnorteantes colchas de retalhos ... e envolvi-dos por escombros, vazios e bairros antigos cuja deca-dência é provocada. O pior mesmo são os vazios, ruinsem todos os sentidos. Até porque excitam os governan-tes, sempre ansiosos por preenchê-Ios com as obrasfaraônicas que tanto nos deliciam. Não sou um conser-vacionista rançoso e reacionário. Isto contraditaria mi-nhas opiniões sobre o que mantém as cidades vivas,sobre a mistura, a complementaridade e o mercado detodos os intercâmbios possíveis. Cidades, com as hu-mildes necessidades do dia-a-dia, com as negociaçõesmilimétricas que têm de sustentar, podem e devem serconstituídas por contra pontos e descontinuidades. En-tendo a excepcionalidade, a sacralidade mesma do mo-numento. Ele, porém, só cumprirá bem a sua função seresultar de um diálogo entre os que estão no poder ea massa dos cidadãos. Tal harmonia já existiu em de-terminados níveis da representatividade urbana brasi-leira.

Nos centros coloniais, carregados de religiosidade, igre-jas de ordens, capelas, oratórios faziam as vezes de mar-cos que. continuando o casario homogêneo, quebravam-lhe o ritmo. Preenchiam os vazios, conferiam dramati-

Basta virar a esquina emavenidas de maiormovimento para encontrarcasarões em uso.

Teorias de urbanismo.pouco testadas. ajudaram aimplantar uma política deterras arrasadas.

cidade a espaços. Sobrepunham-se a fundos que se es-truturavam para e a partir de sua diferença. Explicavam

~e aliviavam as monotonias da igualdade. Perdeu-se talciência. Ela anda ausente das modernas realizações do'urbanismo brasileiro, cheias de evocações individualis-tas e desagregadoras. Soluções egoístas, que apostamno divórcio e que não querem saber de nada de dife-rente por perto de cada edificação, tornada um mundoisolado, uma mensagem magnífica por si mesma. Bra-sília ou a avenida Chile no Rio são assim.

Renovação urbana só é aceitável se feita em ritmo paulatino. Se respeitar o timing da simbiose espaço/população/atividades compatíveis. O mesmo poderia dizera respeito de preservação. Para falar a verdade, com orespeito devido às nossas Ouros Pretos e Paratis, prefi-ro ver as cidades fora do boião de formol, correndo osriscos que, mais cedo ou mais tarde, teremos de enten-der como nossos riscos. Conheço alguns casos ondese realizaram, sem estardalhaço, os melhores sonhosdos técnicos do Patrimônio Histórico. Como, por exempio, em um restinho de rua que sobrou da demoliçãodo bairro do Catumbi, no Rio, e que chamávamos da rua azul. Aí, em duas quadras fronteiriças, havia correres de casas que foram sendo reconstruídas durantmais de 150 anos. Edifícios térreos que foram ganhando acréscimos, águas-furtadas, segundos e terceiros adares. Em alguns pontos as fachadas foram modifica

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das: frontões acrescentados, ornamentos art-nouveau,geometrismos art-déco, perqulados modernos. Não eraincomum que nas partes superiores aparecessem esti-los ao gosto dos anos 50 e 60. O que era extraordiná-rio é que os ritmos se preservaram. Onde havia arcosde portadas de granito embaixo, se fazia uma varandacom arcos de alvenaria por cima. Onde corriam mol-duras e platibandas, elas eram repetidas em versõesatualizadas. Os cheios e vazios eram renovados ou re-produzidos, mantidas as proporções de antes. Sendoas paredes mais velhas revestidas de azulejos azuis ebrancos, o padrão foi perpetuado através do tempo.Quem teve menos recursos pintou nessas cores. Quempôde mais usou azulejos mesmos, incluindo prosaicosazulejos de banheiro e cozinha. O resultado é bonito,comovente. Os moradores conseguiram manter o "es-pírito" de sua rua, sem deixar nunca de lhe dar contri-buições. Como o fizeram? Vivendo nela e gostando doque possuíam. Eram todos descendentes de açorianos,alguns há cinco ou seis gerações no Brasil. Faziam asua festa do Divino durante quarenta dias, todos osanos. Memória, festa, casa, rua, família, vida armavamum campo único de significados.

É pena que, em geral, quando se pensa em "preservar"uma área urbana qualquer, tudo o que se invente logoimplique tirar aquela gente pobre que está lá, encardindo,incomodando. Ninguém pensa que seções inteiras denossas cidades não estariam aí, em pé, se não fossemusadas por hoteizinhos, oficinas, lojinhas, prostitutas,bares, depósitos, manufaturas, clubes e associações,cabeças-de-porco ... Pardieiros sim, mas vivos, funcio-nando. Se alguém quiser saber a diferença, deixe umacasa nova em folha vazia, sem uso nenhum por uns cin-co anos. Virará uma ruína. Temos de agradecer, portanto,às camadas mais pobres. Há quase duzentos anos sãoos maiores guardiães do nosso patrimônio. Já é tempo

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Corredor Cultural

Projeto de Revitalização deQuarteirão (autor: arquitetoAugusto Ivan FreitasPinheiro).

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de tentar retribuir-Ihes o favor, dignificando os espaçosem que vivem e trabalham, sem espoliá-los,

As soluções possíveis são muitas. No Brasil quase to-das são apenas hipóteses. Um bom caminho seria o usodo estatuto da preservação ambiental. Este instrumentoseria um desafio para os urbanistas que deveriam bus-car propostas físicas, jurídicas e fiscais que harmoni-zassem sítios e edificações preexistentes com novasobras. Usando a preservação ambiental, teriam de le-var em consideração os laços entre os espaços e as ati-vidades econômicas e sociais que já suportam, antesde pensar no que se deseja para o futuro. Teriam, por-tanto, de observar com cuidado como é a vida onde que-rem intervir e entrar no seu fluxo. Isto significa enormecontato com moradores e usuários, esclarecendo-os, le-vando-os a descobrir e cultivar os valores do lugar, per-mitindo que participem das decisões.

Uma última observação: todos sabem que nossos pro-blemas habitacionais são sérios. As tentativas oficiaisde resolver a moradia dos mais pobres e mesmo da clas-se média levaram a um impasse. As cidades estão cheiasde bairros velhos que constituem um excelente esto-que, na maioria dos casos em uso. Destruí-Io equivalea destruir riqueza, prática absurda em um país onde nemsequer são produzidas casas suficientes para atenderao acréscimo da demanda. Arquitetos e engenheiros po-dem encontrar nesse campo terreno fértil para experi-mentações. Palacetes e mansões podem ser desmem-brados internamente como edifícios de apartamentos.Casinhas mínimas podem ser intercomunicadas, segun-do padrões não convencionais, resultando unidadesmaiores. Vilas e avenidas particulares podem ser rea-bilitadas. Os pátios internos podem ser desimpedidos,virando praças públicas ou semipúblicas, integradas aodesenho do bairro, servindo a atividades de trabalho e

de lazer. Naturalmente juristas e financistas terão tam-bém de contribuir para resolver os problemas de pro-priedade, de empréstimos, de relações entre senhoriose inquilinos ... E os governos municipais e estaduais te-rão de estar muito dispostos. Existem experiências exi-tosas no estrangeiro que podem servir de exemplo, Aquimesmo já foram tentadas algumas.

O gue disse a respeito de habitação também sé aplicaa outros fins. Há usos institucionais que cabem muitobem em edifícios ou quarteirões recuperados. Secreta-rias, institutos, universidades ...Ah, se, em lugar dos iso-lados e inviáveis centros administrativos e cidades uni-versitárias de que nossas capitais estão cheias, tivés-semos as unidades soltas, entremeadas com outrasconstruções em bairros velhos que valesse a pena con-servar! Desde que haja cuidado em não criar guetos,é ótimo conjugar muitos usos (trabalho, lazer, residên-cia) em uma única área. O que é de todo indesejávelé que as soluções urbanísticas sempre gerem conflito,agridam a paisagem e a arquitetura remanescente deoutras épocas e prejudiquem a população. Que sejam,em suma, violências, produtos bem ou mal-intenciona-dos de insensibilidade cultural. •

Nota - Agradeço as idéias e sugestões do arquiteto Augusto lvan deFreitas Pinheiro. cujo excelente trabalho no Corredor Cultural no Riode Janeiro é um exemplo do que deveria ser feito no centro das gran-des cidades.

Carlos Nelson F. dos Santos formou-se pela Universidade do Brasil. em1966. É mestre em antropoloqia social e doutor em planejamento ur-bano.. Atualmente é chefe do Centro de Pesquisas Urbanas do Institu-to Brasileiro de Administração Municipal e professor.da UniversidadeFederal Fluminense.

"Célebre personagem que surge na sociedade alemã do século XIX,já adulto, sem ter sido devidamente socializado. A procedência desco-nhecida e a falta de domínio dos códigos de comportamento criam emtorno -dele um clima insuperável de desconfiança e mal-estar.

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