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NASCER SEM DOENÇAS Já é aplicada em Portugal a técnica que permitiu o nascimento, na semana passada, de uma criança britânica livre de cancro da mama. A história feliz das famílias portuguesas que recorreram ao mesmo método. Mas até onde pode e deve ir a Ciência?

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NASCERSEM DOENÇASJá é aplicada em Portugal a técnica

que permitiu o nascimento, na semana

passada, de uma criança britânica

livre de cancro da mama.A história feliz das famílias portuguesas

que recorreram ao mesmo método.

Mas até onde pode e deve ir a Ciência?

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Concebidossem doençaQuebrar a corrente de transmissão da hemofilia

ou de cancros hereditários está ao alcance da Ciência.Em Portugal, mais de 50 famílias já recorreram à genética,

antes da gravidez, para salvar os fil hos de patologias mortaisPOR SARA SA

Pedro

c Alexandre pulam,riem, enrolam-se um nooutro por cima dos sofásda sala. A cumplicidade en-tre os irmãos esbate os seteanos que os separam. Pedro,

o mais velho, salta, mas à revelia das reco-mendações dos pais e das instruções do seucódigo genético. Com uma energia inesgo-tável, típica dos seus 9 anos, apaga a memó-ria das dores, dos internamentos, das pica-das, das hemorragias. Desde o nascimento

que sofre de hemofilia, uma doença here-ditária, causadora de deficiências a nível da

coagulação do sangue. Esta alteração levaa que a mais pequena pancada se transfor-me numa hemorragia prolongada e numainflamação severa e dolorosa, afectando as

articulações. Associada ao cromossoma X,a doença atinge apenas os homens, sendo amãe a transmissora do gene alterado. Susa-na Reino, 36 anos, funcionária do Institutode Meteorologia, e Humberto Barreto, 38anos, director financeiro, os pais de Pedro,foram surpreendidos pelo diagnóstico,quando o menino tinha dois meses. A partirdaí, o Serviço de Imunoterapia do Hospitalde Santa Maria, em Lisboa, transformou-senuma segunda casa.

«Os primeiros dois anos devida do Pedroforam muito complicados», conta Susana,que ignorava ser portadora do gene altera-do. «Custa muito ver um filho sofrer.» Parao casal tornou-se claro que não voltariam aentrar na roleta-russa dos genes, arriscan-do uma probabilidade de 25% de virem ater um rapaz doente e de 25% de terem umarapariga portadora. «O Pedro queria muitoter um irmão, mas eu sabia que não iria pôrmais um filho no mundo com esta doença»,assume Susana.

Foi então que se viraram para o admirávelmundo novo da genética. No início da déca-

da de 90, surgiu uma técnica talhada paracasos como o deles: o diagnóstico genéti-co pré-implantatório (DGPI). Medianteum ciclo de fertilização in vitro, seguido deanálise genética, seleccionam-se embriõessaudáveis para implantação no útero. Sãocandidatos a este procedimento casais comsuspeita de distúrbios cromossómicos,como trissomia 21, ou história familiar de

doenças genéticas, como a fibrose quísticaou a distrofia muscular. Há ainda casais querecorrem ao processo para terem um bebécompatível, a nível da medula, com um ir-mão, ou outro familiar, doente.

STOP AO CANCRO DA MAMANo fim-de-semana passado, milhares de

pessoas, no Reino Unido, encheram-se de

esperança com o anúncio do nascimento deuma menina, livre de uma forma hereditá-ria de cancro da mama que atingiu três ge-rações da família paterna. Os portadores do

gene BRCAi alterado apresentam uma pro-babilidade de 80% de virem a desenvolveruma forma de cancro da mama responsávelpor 5% a 10% dos casos totais. Teria aindauma probabilidade de 60% de vir a ter can-cro do ovário. «Esta rapariga não enfrenta-rá a perspectiva de vir a sofrer desta formagenética de cancro da mama e dos ovários,na vida adulta», afirmou o médico da unida-de de procriação medicamente assistida do

Hospital University College, em Londres,Paul Serhal, onde o caso foi acompanhado.Além disso, os portadores desta mutaçãotêm 50% de hipóteses de a passarem aosseus descendentes. Com a aplicação doDGPI quebrou-se a corrente da transmis-são. «Mostrámos que esta técnica pode seraplicada para parar o ciclo devastador dadoença», afirma o médico inglês. A mãe da

menina, que assistiu ao desenrolar da doen-

ça em todas as mulheres da família do ma-

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rido, admitiu ao jornal Daily Telegraph quenão seria capaz de olhar a filha de frente,caso não tivesse tentado a DGPI.

Apesar do entusiasmo britânico, esta não

é uma estreia. No jornal Prenatal Diagnosis,

publicado cm Abril do ano passado, rela-ta-se o caso de um rapaz que nasceu apósa aplicação de DGPI, para escapar preci-samente à mutação do BRCAi. Também o

Reproductive Genetics Institute, de Chi-

cago, uma autêntica fábrica de fertilizaçãoin vitro, apresenta, na sua extensa lista de

doenças testadas, a pesquisa do BRCAi e

do BRCA2, outro gene implicado numa for-ma hereditária de cancro da mama e dosovários.

E o serviço de genética da Faculdade de

Medicina da Universidade do Porto, quedesenvolveu o protocolo de aplicação de

DGPI em 1999, prepara-se, igualmente,para tentar seleccionar um embrião sema mutação do BRCA2, recorrendo à cola-

boração com um centro em Bruxelas paraanálise genética. A unidade portuguesajá fez mais de 200 ciclos de fertilização in

vitro com vista à aplicação de DGPI, sen-do que «os testes mais requisitados são os

de triagem da Polineuropatia Amiloidó-tica Familiar (PAF) [conhecida por doen-

ça dos pezinhos] ou a da doença de Hun-tington», relata Filipa Carvalho, 39 anos,especialista da Universidade do Porto.Susana e Humberto começaram por rumarao Porto, quando Pedro tinha 4 anos. Naaltura, para os casos de hemofilia, o pro-cesso baseava-se em selecção de sexo. Ou

seja, eram escolhidos os embriões femini-nos, uma vez que, na pior das hipóteses, se

trataria de um bebé portador da doença.

AO 3.» DIANesta fase, testam-se quais os embriões

que carregam o gene defeituoso

«Fizemos duas tentativas, mas só nos sa-íam rapazes», conta Susana. «Criávamosuma grande expectativa, mas depois sen-tíamos uma enorme desilusão.» Foi então

que decidiram procurar o Instituto Valen-ciano de Infertilidade, com uma lista deduas dezenas de doenças tríadas, e que,para a hemofilia, se baseava na detecção do

gene mutado. Todo o tratamento ficou em€10 500, inteiramente pagos pela ADSE.Quando Alexandre nasceu, Pedro sentiu

que a família estava completa: «Finalmen-te, somos quatro!»

UNS PAGAM, OUTROS NÃO

Portugal é pioneiro na aplicação da DGPIà muito portuguesa doença dos pezinhos.A equipa do Centro de Estudos de Inferti-lidade e Esterilidade do Porto, coordenada

por Vasco Almeida, 51 anos, foi a primeiraa conseguir uma gravidez e o nascimentode duas meninas, gémeas, livres da doença.Recordando o caso com quatro anos, Vasco

Almeida conta que o casal tinha decididonão ter filhos por via natural, preferindonão arriscar uma probabilidade de 50% de o

pai passar a doença aos filhos.

As famílias que lidam de perto com o pro-blema, que na ausência de um transplantede fígado acabaporser fatal, ficam marcadas

pela evolução dos sintomas: dores, fraquezamuscular e falência dos rins e do coração.Mesmoassim, ainda háquemarrisque,quem

ALBERTO BARROS. GENETICISTA'A biópsia do embrião, necessáriaà análise genética, pode interferircom a sua dinâmica'

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não conheça as opções que a ciência oferece

ou quem não tenha os mil euros necessários

para a estimulação hormonal exigida num

processo de fertilização in vitro.«Nos casos em que a mulher é a portadora

da doença e já apresenta sintomas, o casalnão tem qualquer tipo de custos com a es-

timulação hormonal; quando é o homem o

portador, o casal tem de pagar a medicação,pois, neste caso, a mulher não goza de isen-

ção», denuncia o enfermeiro Carlos Figuei-ras, 56 anos, da Associação Portuguesa de

Paramiloidose. As taxas de sucesso de umprocedimento desta natureza são à volta de

25%, o que implica que, «em média, os casais

tenham de sujeitar-se a quatro ciclos de fer-

tilização para conseguirem uma gravidez»,conta Natália Oliveira, 34 anos, assistentesocial da Associação. «É comum o embriãodoente ter maior vitalidade do que o saudá-vel. Além disso,aprópriabiópsiadoembrião,necessária à análise genética, pode interferircom a sua dinâmica», explica Alberto Bar-

ros, 51 anos, director do Serviço de Genéticada Faculdade de Medicina do Porto.

Jorge Neto, 40 anos, viu a mãe morrer de

paramiloidose e, desde os 18 anos, que sabe

ser portador da doença. Nesta altura, deci-diu que nunca teria filhos. Num congresso,ouviu falar da possibilidade de fazer umaDGPT e, com a mulher, decidiu candidatar-

-se. «Tivemos uma sorte extraordinária.

Conseguimos uma gravidez à primeira ten-tativa e agora temos duas filhas lindas, de

3 anos», conta Jorge, que já se sujeitou, com

sucesso, a um transplante hepático. «De-

pois de ter passado pelo processo, orienteimais de 20 casais para o DGPI.»

Ana (nome fictício), 33 anos, advogada,não teve a mesma sorte. Só descobriu queera portadora da doença quando se mani-

festaram, na mãe, os primeiros sintomas.

Nesta altura, já tinha tido um filho. «Na mi-nha família, falava-se de tudo, de sexo, de

drogas, excepto da PAF.»

Mesmo assim, Ana tentou aproximar-sedo seu sonho de ter cinco filhos e subme-teu-se a um DGPI. «Era um caso perfei-to, diziam os médicos, porque soujoveme fértil», conta. Mas não teve sorte. A im-plantação dos dois embriões resultou numaborto, difícil de superar. Por agora, virou-se para a adopção. «Conheço muitos doen-tes com PAK e alguns optam por ser pais deforma natural. As pessoas não vão deixarde ter filhos por causa desta doença.»

Aliás, a aplicação da técnica não é con-sensual e, de cada vez que se anuncia mais

um caso de sucesso, há sempre quem façaressuscitar o fantasma da eugenia. Paí-ses como a Itália ou a Alemanha proíbemqualquer forma de aplicação de DGPI.«É por isso que a unidade belga com a qualtemos colaboração se tornou num centrode referência. Está no meio da Europa e

recebe casais de todos os lados, incluindoitalianos e alemães», diz Alberto Barros.

Para o médico, é importante que a so-ciedade saiba exactamente o que está emcausa. «Há muita desinformação, mas as

pessoas devem confiar na comunidadecientífica.» Susana e Humberto confiaram.E jamais se arrependerão. EJ

0 que diz a lei

Deacordo com o diploma da

procriação medicamenteassistida, o diagnóstico genético

pré-implantatório destina-se a pessoasprovenientes de famílias com alteraçõesque causam a morte precoce ou doençagrave. Por definir, no entanto, está a noçãode «doença grave», remetida para as boas

práticas médicas e as recomendaçõesinternacionais. «Esta parte da lei aindadeveria ser regulamentada», admite a

presidente do Conselho Nacional de Ética

para as Ciências da Vida, Paula Martinoda Silva, 49 anos. Mas é «impossívelprever todos os casos e a própria noçãode gravidade também se vai alterando»,explica a jurista.

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