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OBSERVATÓRIO ASTRONÓMICO DE LISBOA; O GUARDIÃO DA HORA LEGAL texto Filomena Naves "Bem-vindos ao século XIX" Rui Agostinho, diretordo O AL, ri-se. Todos rimos. Parece coisa defilme.

Press Review page - ulisboa.pt · Parece coisa de filme. É como se de repente tivéssemos recuado 150 anos, a 1870. Acabado de estrear nesse ano, ... que estão resguardados e protegidos

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OBSERVATÓRIO

ASTRONÓMICO

DE LISBOA;

O GUARDIÃO

DA HORA LEGAL

texto Filomena Naves

"Bem-vindosao século XIX"Rui Agostinho,diretordoOAL, ri-se.Todos rimos.Parece coisadefilme.

Entrar neste edifício que começou a serconstruído em 1961 é como fazer umaviagem ao passado. Está tudo como eraentão: os telescópios, os relógios,a chave morse, o primeiro telefone.

Um

salto repentino no tempo -pelo silêncio e a penumbra, ailusão é quase perfeita.Transpõe-se a porta discreta naparte lateral do edifício e, semaviso, mergulhamos na salaredonda, imensa, com o teto emabóbada, decorado com baixos-

-relevos, colunas revestidas a mármores,soalho antigo. Aqui e ali, relógios einstrumentos saídos do passado."Bem- vindos ao séculos XIX." RuiAgostinho, o diretor do ObservatórioAstronómico de Lisboa (OAL), ri-se.Todos rimos. Parece coisa de filme.É como se de repente tivéssemos recuado150 anos, a 1870.

Acabado de estrear nesse ano, com osseus telescópios, que eram então o "últimogrito" da tecnologia europeia, o Real Obser-vatório Astronómico de Lisboa nasceu logocom uma incumbência que era uma novi-dade em Portugal: zelar pela hora no país.Apurá-la, mantê-la, passar palavra. Isso in-cluía realizar todas as noites medições me-ticulosas, usando a posição das estrelas, fa-zer contas complexas com um rigor de mi-lissegundo, acertar diariamente os relógiosda casa e depois, à hora certa, finda a ma-nhã, difundir a informação para o resto do

país. O regulamento da instituição estabe-lecia esse dever dahora certa, logo no se-

gundo ponto.Arotina dos ilustres astrónomos do reino

adivinha-se nos objetos da sala, dispostoshoje como na época: os relógios de pêndu-lo (assim mesmo) caixas de madeira ele-

gantes e cheias de relojoaria que era entãotopo de gama, "com meio segundo, ou me-nos, de desvio diário, o que é notável",como diz Rui Agostinho; as mesas de traba-lho dos astrónomos, com os seus candeei-

ros de época; o primeiro equipamento dechaves Morse ali instalado, para a trans-missão da hora para o exterior; o primeirotelefone, que serviu depois o mesmo fim,e que ainda foi inaugurado pelo rei D. Luís,com honras de marcha real tocada ali mes-mo, na hora, a cornetim. Fica-se a imaginaro efeito do som estridente naquela sala re-donda, de teto a1t0...

E depois, muito mais tarde, jána segun-da metade do século XX, o primeiro relógiode quartzo, um enorme caixote metálicocom os seus mostradores modernos, deuma precisão sem mácula. E, mais tardeainda, os relógios atómicos, com o sua pre-cisão futurista, que estão resguardados e

protegidos num outro edifício do comple-xo. A sucessão das tecnologias a sustentar acerteza do tempo.A hora das sete estrelasAntes, quando não havia ainda observatório- ele foi criado em 1861, fez as primeiras ob-servações em 1963 e começou a funcionarem pleno em 1970 -, a hora era uma noçãomais fluida, acertada pelo pico do meio-diaem cada localidade e adaptada a um quoti-diano sem pressas. O Sol mandava. Em Lis-

boa, no Porto, em Coimbra, em todo o lado,por todo o território. Cada sítio a seu ritmo,com desfasamentos de minutos, sem queisso fosse problema.

"Era tradição cada cidade manter a sua

própria hora solar e em cada uma delas ha-via uma instituição que assegurava isso, emgeral as instituições religiosas", conta RuiAgostinho. No Convento de Mafra, porexemplo, lá está o relógio de sol, pelo qualse acertavam os serviços religiosos e ávidalocal. E o mesmo noutras igrejas e conven-tos, por todo o território.

Com a criação do observatório, a horasolar de cada região tornou-se pela primei-

ra vez secundária, e o país todo passou a tera mesma hora oficial - a de Lisboa -, medi-da diariamente no Alto da Ajuda, a partir daposição das estrelas.

Espreitando através dos seus telescópioscalibrados para aquela exata localizaçãogeográfica, os astrónomos do observatórioreal assinalavam todas as noites a posiçãode sete estrelas em pontos precisos do céu -nesse tempo, Lisboa terminava muito an-tes da Tapada daAjuda, anoite era ali de

uma escuridão profunda, favorável às ob-servações dos astros.

"A astronomia consegue medir com umagrande exatidão o período de rotação daTerra, tomando por referência a posiçãodas estrelas fixas no céu. Isso dá o períodode tempo que a Terra leva a dar uma voltasobre si própria, que corresponde a umdia", explicaßui Agostinho. "Todas as estre-las têm uma coordenada de longitude. Eles

esperavam que essas sete estrelas de refe-rência passassem à frente do telescópio, efaziam as medições".

Porquê sete estrelas? Muito prosaica-mente, "por razões estatísticas", diz o dire-tor do OAL. A partir dessas sete estrelas, es-colhidas de um catálogo de 50 que entãoeram conhecidas como referência- dife-rentes noites, diferentes estrelas - os astró-nomos retiravam um valor médio, já depu-rado de eventuais erros de observação,causados por exemplo pelos tempos de

reação de cada um dos observadores.Esse era o trabalho noturno da equipa,

realizado nas salas dos telescópios - haviamais do que um instrumento para fazerestas medições. Amanhã era passada naimensa sala circular, em contas para elimi-nar erros e desfasamentos, equações paratransformar a hora das estrelas na hora ci-vil, e a acertar os relógios do observatório.

"Era preciso converter a hora sideral [dasestrelas] paraahora solar, queéoque inte-ressa à hora civil, e para isso havia aqui, eainda cá estão, dois tipos de relógios: os da

hora sideral e os da hora solar. Era esta últi-ma que era transmitida à sociedade." Aomeio-dia em ponto, com uma precisão demilésimo de segundo, o observatório realtransmitia a sua informação diária.

"Era impressionante. No fim do século XIX,com recurso a sete estrelas e a equações,

eles comunicavam e publicavam depoisnos seus almanaques anuais valores ao mi-lissegundo. Na época, eram os mais preci-sos da Europa e o próprio Observatório de

Munique chegou a pedir aos astrónomos

daqui que revissem os seus valores", lem-bra Rui Agostinho.

No seu zelo da hora, o observatório che-

gou, nesse final de século, a ter competên-cias de inspeção externa, para verificar os

relógios públicos. Nas (poucas) estações decaminho-de-ferro, por exemplo, tinha dehaver sempre dois relógios: um no interiore outro no exterior, e este último tinha deestar cinco minutos adiantado: os atrasa-dos ainda tinham tempo para uma últimacorrida.

Foi uma época áurea para o observatórioastronómico português, para astronomiasideral e para as badaladas da hora certa

que dali emanavam. Depois o mundo

complicou-se, ávida apressou-se, a tecno-logia evoluiu e os hábitos mudaram, mas ahora legal ficou sempre ali sediada. Aindahoje assim é.

Hora legal e hora de verãoEm 1884, uma convenção assinada emWashington por uma vintena de países deuum novo passo nesta história e estabeleceua figura dos fusos horários, para pôr ordemnos transportes e nas comunicações entreregiões distantes - a cada 1 5o de longitudepassava a corresponder uma mesma hora.Mas Portugal não aderiu logo na altura. Isso

só viria a acontecer já em 1912, com aßepú-blica.Apartir de ldejaneiro desse ano, ahora portuguesa deixava de ser local e pas-sava a reger-se pela do meridiano deGreenwich, em Londres: o fuso das zero ho-ras. Resultado, a hora legal do país foi adian-tada 36 minutos e 44 segundos em relação àhora local. Ainda hoje assim é, com a altera-ção, a partir de certa altura da hora de verão,

que ao longo do século XX sofreu variaçõesconsoante as decisões políticas. Antes do 25de Abril, por exemplo, houve um período dede cinco anos sucessivos sem hora de verão,

que teve sobretudo o mérito de mostrar assuas vantagens. Desde então, ela tem sido

cumprida com a regularidade de um reló-gio, apesar do debate que ressurge, de tem-pos a tempos. Rui Agostinho, que por ser di-

retor do OAL é também o guardião da hora,já fez as contas todas e o seu parecer é co-nhecido: é favorável à hora de verão.

Mas voltemos um pouco atrás, a 1915.Nesse ano, a 30 de março, foi instaladonuma esquina do Cais do Sodré um relógiopúblico. Ainda lá está. A sua função? Mos-trar a cada a momento a hora certa portu-guesa: a hora legal, como dizia o seu letrei-ro. Uma instalação elétricanum dos reló-

gios do observatório fazia diariamente oacerto direto daquele relógio de Lisboa, eisso durou até à década de 1940, quando o

serviço terminou. No entanto, ideia gene-ralizada de que o relógio era a referência

para a hora legal do país perdurou muitopara lá disso, até à década de 1980, quandoo letreiro "Hora legal" foi tirado do 10ca1...

com 40 anos de atraso.

Relógios atómicos de césioCom as sucessivas mudanças tecnológicas,o crescimento da cidade e a iluminação elé-trica generalizada, a observação das estre-las para determinação da hora sideral dei-xou a certa altura de ser possível. O golpe demisericórdia foi a construção da ponte so-bre Tejo na década de 1960. A quantidade deluz noturna era simplesmente excessiva.Por essa altura, o observatório adquiriu um

relógio de quartzo ultrassofisticado - a pre-cisão, mais uma vez, era a do milissegundo.Mas a partir daí, as coisas aceleraram, aoritmo das revoluções tecnológicas.

Nos anos de 1980, o observatório adqui-riu o primeiro relógio atómico - mesmoassim, com 30 anos de atraso em relação aoutros centros europeus. E em 2001 novarenovação dos relógios atómicos, a coinci-dir com a entrada de Rui Agostinho paradireção do OAL, que desde a década de1990 pertence àUniversidade de Lisboa.

A precisão dos relógios atómicos? O mi-lissegundo. Mas agora não já não há con-tas para fazer nem relógios para acertar, e ainformação é transmitida automatica-mente pela internet. No mecanismo ató-mico do relógio, o segundo é definido combase na transição entre dois estados doátomo de césio, não há atrasos nem avan-ços. É aquilo que aqui está

(http://oal.ul.pt/hora-legal/o-que-e--isto/). Ao milissegundo. O próximo pas-so, com a velocidade que ávida leva, será ade um relógio atómico capaz de discrimi-nar o microssegundo, o que significa umaprecisão mil vezes maior em relação àatual. Mas essa é outra história, que há de

seguir-se.