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Na página da direita: fac-símiledo planisfériode KunstmannIV, por Otto Progel (1843), comuma decoração exuberante,representação incompletadas Américase ausênciade qualquer informação noPacífico.Na página da esquerda: àesquerda, as "Antilhas deCastela" (o mar das Caraíbas),em cima, e o "Mar Visto pelosCastelhanos", a sul do actualistmo do Panamá, onde VascoNúnez de Balboa viu pelaprimeira vez o Pacífico, em1513; e à direita o arquipélagodas Molucas no planisfério deKunstmann IV, com a legenda"ilhas de maluqua domde vemho cravo"
O mapa de
Fernão deMaga ilhaes
Série (XXI)Joaquim Alves Gaspar
Em
1517, Fernão deMagalhães chegou aSevilha, com uma irre-cusável proposta para orei Carlos I de Espanha,futuro Imperador CarlosV do Sacro ImpérioRomano-Germânico:demonstrar que as co-
biçadas ilhas de Maluco(as actuais Molucas), fonte do valioso
cravo, se encontravam do lado espa-nhol do mundo, de acordo com ostermos do Tratado de Tordesilhas,e que poderiam ser alcançadas na-vegando para ocidente.
Aquele tratado, firmado entre por-tugueses e espanhóis em 1494, esti-
pulava que o mundo seria divididoentre duas áreas de influência: uma
portuguesa, a oriente de uma linhanorte-sul que passava 370 léguas a
oeste de Cabo Verde, e uma espanho-la, a ocidente dessa linha. Contudo,ninguém imaginou então que a linhadivisória se prolongava para o outrolado da Terra e que a sua localizaçãoexacta na Insulíndia se tornaria fontede conflito entre os dois países. Saber
se ela passava a leste (favorável aos
portugueses) ou a oeste das Molucas
(favorável aos espanhóis) tornou-seum problema de Estado.
Tendo os navegadores portugue-ses chegado à região no início do sé-
culo XVI e começado a tirar partidodo comércio das especiarias, viramesta sua actividade contestada pelosespanhóis, que alegavam que as ilhasde Maluco se situavam no seu hemis-fério. Hoje sabemos, sem margempara dúvidas, que as Molucas se situ-
avam no lado português. O que nãoacontecia na época, quando os méto-dos de navegação e posicionamentonão eram suficientemente rigorosospara se estabelecer com exactidão a
longitude do arquipélago.Mostrar que Espanha tinha razão
nessa disputa e encontrar uma rotaalternativa para as ilhas das especia-rias, a qual evitasse o hemisfério por-tuguês, foi a proposta apresentadapor Fernão de Magalhães a CarlosI. Assim, tendo conseguido o apoiopolítico e financeiro de importantesindividualidades próximas da coroa,um acordo com o rei foi estabelecidoem 1518.
A lO de Agosto de 1519 partiu deSevilha uma armada formada porcinco navios e cerca de 240 homensde várias nacionalidades, que haveriade dar a volta ao mundo navegandopara ocidente. Tendo conseguidodobrar a América do Sul perto do
seu extremo meridional, atraves-sando o estreito que hoje tem o seu
nome, Magalhães conduziu a arma-da através do imenso oceano Pacífi-co durante mais de três meses, atéchegar ao arquipélago das Marianas.Tratou-se de um feito extraordináriodo ponto de vista técnico e científi-co. Como bem viria a escrever PedroNunes cerca de 15 anos mais tarde, os
feitos dos navegadores portuguesesnão tinham sido conseguidos "indoa acertar, mas partiam os nossos ma-reantes mui ensinados e providos deinstrumentos e regras de astrologiae geometria".
Um planeamento cuidadoDe facto, as missões eram cuidadosa-mente planeadas e executadas, e os
pilotos eram instruídos nas técnicasde navegação, que incluíam os méto-dos astronómicos de posicionamen-to e a utilização das cartas náuticas.Mas a viagem não correu bem parao próprio Magalhães, morto nas Fi-
lipinas por um nativo, em Abril de1521. Seria completada por um úni-co navio, sob o comando de JuanSebastian de Elcano, que regressoua Sevilha em 6 de Setembro de 1522,
acompanhado de apenas 18 homens.Curiosamente, a decisão de regres-sar a Espanha continuando a navegarpara ocidente, completando assim
a circum-navegação da Terra, nãoestava prevista nos planos originaisde Magalhães.
Quanto ao planeamento da mis-são, sabemos que Fernão de Maga-lhães se fez rodear dos melhores es-
pecialistas portugueses em ciêncianáutica. Nomes bem conhecidos são
os cosmógrafos Rui e Francisco Fa-
leiro, e os cartógrafos Jorge Reinei e
Diogo Ribeiro. Numa carta endere-
çada em 1519 pelo feitor portuguêsem Sevilha, Sebastião Alves, ao reiD. Manuel, é relatado que "a terrade maluco eu vi assentada na poma[isto é, no globo] e carta que cá fez ofilho de Reinei, a qual não era acaba-da quando cá seu pai veio por ele, e
seu pai acabou tudo e pôs estas ter-ras de Maluco, e por este padrão se
fazem todas as cartas".Trata-se esta carta, muito prova-
velmente, do planisfério anónimoconhecido por Kunstmann IV, de
cerca de 1519, cuja caligrafia e estilosão típicos do cartógrafo portuguêsJorge Reinei (filho de Pedro Reinei),e que alguns historiadores conside-ram ter sido apresentado por Fernãode Magalhães a Carlos I de Espanha,quando procurou o seu apoio paraa missão. Deste planisfério apenassobrevivem reproduções fotográficase um fac-símile a cores, desenhadono século XIX. O original ter-se-áperdido na II Guerra Mundial, du-rante os bombardeamentos aliadosa Munique.
O planisfério de Kunstmann IV éum mapa com uma enorme impor-tância histórica, que haveria de cons-tituir o modelo da cartografia náuti-ca espanhola. Nele é representadoo mundo até então conhecido peloseuropeus, desde a costa oriental da
China, a oriente, até às ilhas Molu-cas, a ocidente. Um dos aspectos quenele mais impressionam é o grandevazio do oceano Pacífico e o facto de
grande parte do Novo Mundo, ain-da por explorar, não ser represen-tado. Numa legenda colocada a suldo actual Panamá, aquele oceano éclassificado como o "Mar Visto pelosCastelhanos", numa alusão à missãode Vasco Núnez de Balboa, na qual oistmo separando o Golfo do México e
o Pacífico foi atravessado, em 1513.
Com a ajuda do Google MapsPela primeira vez em cartogra-fia náutica, a totalidade dacircunferência equatorialda Terra é representada,incluindo o oceano Pacífi-
co. Também pela primeiravez, o equador encontra-se subdividido em interva-los de um grau de longitude:183 graus para este do meridiano deTordesilhas e 184 graus para oeste.Poderíamos pensar que esta inova-
ção estaria ligada ao intuito de re-presentar as longitudes dos lugaresou a um qualquer desenvolvimentodos métodos de navegação, mas nãoé esse o caso. A razão mais plausívelterá sido a de ilustrar que o arqui-pélago das Molucas se encontravaa menos de 180 graus para oeste dalinha de Tordesilhas - isto é, na áreade influência dos espanhóis. Se me-dirmos cuidadosamente a distância
longitudinal, sobre o equador, entre
o meridiano de Tordesilhas (onde es-
tá a escala de latitudes) e as Molucas,verificamos ser cerca de 175 graus,colocando-as dentro do hemisfério
espanhol. Muito embora Pedro e Jor-
ge Reinei conhecessem certamentea posição da coroa portuguesa nestamatéria, não será difícil entender as
suas razões, já que a carta tinha sidoencomendada pelos espanhóis e eles
completaram-na em Sevilha.Mas quem teria razão nesta polé-
mica? Com a ajuda do Google Mapse de algumas medições rápidas, facil-
mente se verifica que a exten-são longitudinal do oceano
Pacífico se encontra forte-mente subavaliada no pla-nisfério de Kunstmann IV,fazendo com que a posi-
ção das Molucas esteja des-
locada para oriente em maisde 1500 quilómetros! Seria esta
distorção inocente? É claro que não!De facto, ela servia dois propósitos: ode colocar as Molucas do lado orien-tal do antemeridiano de Tordesilhase o de tornar mais curta a distância a
percorrer pelos navios espanhóis quese dirigiam às Molucas, assim forta-lecendo a proposta de Magalhães.É interessante verificar como umamanipulação semelhante teria já sido
utilizada por Cristóvão Colombo em1492, quando considerou um modeloda Terra demasiado pequeno, a fimde convencer os Reis Católicos de
que o trajecto para a índia era maiscurto navegando para ocidente.
Admitindo que o planisfério deKunstmann IV é, de facto, o que foielaborado por Jorge e Pedro Reinei,qual seria o verdadeiro propósitodeste mapa? A exuberância da de-
coração, a forma simplificada dodesenho das costas, a profusão de
legendas em latim e a ausência deuma escala de distâncias mostramnão se tratar de uma carta para serutilizada a bordo, mas sim de ummapa destinado a encher o olho deum rei. Todos estes indícios apontampara a possibilidade de o planisfériode Kunstmann IV ter sido realmentedesenhado a pedido de Fernão de
Magalhães, para ser apresentado aCarlos I de Espanha.
Historiador de ciência
Este é o penúltimo artigodesta série a cargo do ProjectoMedea-Chart do CentroInteruniversitário de Históriadas Ciências e Tecnologiada Faculdade de Ciências daUniversidade de Lisboa, queé financiado pelo ConselhoEuropeu de Investigação