Pretinha, Eu, 2nd Ed. (Braz;2004)

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    Este livro dedicado a Nego do Sambae a toda a turma boa do Olodum.

    Viver em qualquer parte do mundo hojee ser contra a igualdade por motivo de raa ou cor

    como viver no Alasca e ser contra a neve.William Faulkner

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    PREFCIO

    Eu s descobri que era negro aos vinte e poucos anos. Parece brincadeira,mas no . Tambm no exagero.

    At ento, ainda que no desconhecendo que branco definitivamente euno era, mesmo porque minha escolha pelo curso de Histria na faculdadetinha tudo que ver com o meu inconformismo com relao ao papel destinadoao negro nos livros de Histria de minha infncia e adolescncia, eu noaceitava nem a palavra nem a minha prpria negritude. Soava estranho. Soavaforte. Eu vivia confortavelmente instalado dentro de palavras falsamentecarinhosas do tipo

    certido de nascimento. Meus sentimentos em relao a minha cor ou a minhaetnia eram simplesmente embranquecidos. Alis, o embranquecimento algoconsensual na maioria das vezes e inconsciente noutras tantas.

    Descobrir-me negro j outra histria. No foi nem bom nem mau paramim. Nenhuma panacia. At porque, como grande parte do povo brasileiro,no sou um negro com razes imaculadas vindas unicamente da frica. Tenhoo sangue da diversidade que fez do Brasil esse gigante cheio de complexos e

    de complexados. Os meus ps esto firmemente apoiados em vrios territriose culturas. Gosto disso. Por outro lado, tambm me agrada e muito fazer partedessa etnia que, apesar de ainda estar relegada a um segundo plano nasociedade, teve e tem, nela, um papel preponderante a desempenhar, inclusiveresgatando-lhe o prazer, a satisfao e principalmente a alegria de, alm de sernegro, ser gente. Gente que contribuiu com a lngua, com os costumes, com amaneira de ser generosa, alegre e trabalhadora desse povo brasileiro. H muitoa ser contado sobre ns no passado, no presente e no futuro , e comoescritor e como negro, em meus livros, gosto de fazer isso.

    Pretinha, eu?, antes de ser um livro ou uma pergunta, traz em suas pginasmuitas das dvidas, dos temores e dos falsos conceitos que nortearam minha

    prpria existncia at os vinte anos. No autobiogrfico, mas em algumaspartes, podem acreditar, tem a minha cara. Nele eu sou a Vnia e tambm aBel, a determinao soldadesca de uma e a inquietao de outra me

    pertenceram durante bastante tempo e, pior, devem pertencer a muitas outras

    pessoas. Jlio Emlio Braz

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    ALVOROO

    Nossa!Foi um grande alvoroo, uma confuso, um zunzunzum pra l e pra

    c que s vendo!Todo mundo foi pego de surpresa. Houve gente que no acreditou

    nem depois que viu. Olhava e se entreolhava, o queixo cado, os olhosarregalados, como se sentindo enganada ou vtima de algumabrincadeira sem graa dos prprios olhos, ou como se estivesse vendoalma do outro mundo.

    No era pra menos. Aquilo jamais havia acontecido no Colgio

    Harmonia.Nunca.Nunquinha, nunquinha.Foi ela aparecer no porto, com o uniforme do colgio, pra comear

    o olha-pra-ela, olha-pros-lados. Bom, na verdade, no era pra elapropriamente. Era pra pele dela.

    Ningum entendeu. Ningum engoliu.Aquilo no podia estar acontecendo no Colgio Harmonia.Por qu?Porque, em cem anos de tradio, jamais algum como Vnia

    entrara l. Pelo menos, no como aluna.Por qu?Porque ela era... era... era... era preta, pretinha, pretinha, pretinha de

    parecer azul.O impacto foi to grande que a primeira reao das pessoas

    alunos, pais e alguns professores foi de espanto. E dos grandes. Eraalgo surpreendente.

    Em seguida vieram os risinhos debochados. As brincadeiras semgraa. A implicncia.

    Olha, o Ciep* mais l pra baixo, queridinha mexeu umadas meninas, logo depois que ela entrou.

    Vnia nem olhou pra ela.

    * Ciep - sigla para Centro de integrao da escola pblica. Tipo deorganizao escolar introduzida no Rio de Janeiro pelo Governo de LeonelBrizola.

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    Puxa...Vnia parecia saber muito bem o que queria e era durona. Estava na

    cara dela. At quando a brincadeira comeou a passar dos limites,continuou andando, olhando pra frente, como se nem fosse com ela.

    Vnia parecia saber exatamente o que a esperava quando ps os ps noColgio Harmonia.

    Senti uma inveja danada de toda aquela coragem. No sei bem porqu. Quando vi, j estava sentindo aquilo. Na hora, achei muitoesquisito.

    , ela parecia preparada pra enfrentar qualquer coisa.Tinha cara de teimosa.

    Era bem pretinha, mas to pretinha que do lado dela eu me sentiamais branca do que a Carmita, com sua cara cheia de sardas e os longoscabelos vermelhos. Vnia tinha o cabelo duro preso num monte detrancinhas como aqueles cantores de reggae que a gente v na televiso.Os lbios eram grossos e vermelhos. Nariz de batata. Os olhos, grandese brancos. Os dentes iluminavam um sorriso enorme e brilhante como osol.

    Mesmo depois da surpresa e apesar de mostrar que era uma alunasuperinteligente acho que era por causa disso , volta e meia tinhaalgum implicando, mexendo com ela...

    Pretinha, pretinha repetiam as meninas.Pior do que aquela implicncia, s o jeito de pr defeito em tudo,

    principalmente nas pessoas de quem no gostava. E Carmita tinha umtalento todo especial para encontrar um defeito novo nas pessoas,principalmente quando se tratava da Vnia.

    Eram os sapatos mais pobrezinhos da Vnia. Era o jeito metido daVnia, que no falava com ningum e vivia agarrada professora, que,por sua vez, no parava de elogi-la.

    Uma puxando o saco da outra! resmungava.Era o fato de Vnia ir e voltar de nibus para casa.

    Nooossa, Vnia, que carro!... T morrendo de inveja...Era principalmente o fato de Vnia ser pretinha, pretinha, como

    repetia naquelas horas em que ficava com muita raiva de Vnia, as boasnotas de Vnia, seus belos trabalhos, seu interesse sincero por tudo e

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    qualquer coisa que os professores falavam ou tentavam ensinar. Tudoisso servia para deixar a Carmita morrendo de raiva.

    Algumas vezes, eu at concordava com ela.A Vnia no era real...

    Por que ela tinha de ser daquele jeito? Por que tanto interesse? Porque tanta vontade de aprender? Por que tinha de ser sempre to boa emtudo!...

    Ningum consegue ser bom em tudo o tempo todo a no ser queesteja fingindo... e fingindo muito bem!

    Sabamos que muito daquilo que Carmita fazia era somente inveja.Medo, talvez. Antes deVnia chegar, Carmita era o centro das atenes

    da sala. Todos tentavam se vestir to bem como ela. Todos precisavamir a uma das festas na casa dela ou ser seu amigo. A concorrnciatomara Carmita invejosa e aborrecida. Acabvamos contaminadas poraquela contrariedade e inveja. Muitas vezes, sem notar, repetamos suaspalavras, engrossando o coro de pequenas maldades que Vnia ouvia ousentia quase todo dia, sem dar um pio, sem reclamar ou xingar. Nodizia nada. Ia e vinha sem dizer nada. Nem olhava pra gente.

    Bem, quase.Ela olhava pra mim.Querendo mostrar que no era to durona assim?Cheia de raiva?Querendo chorar?Na verdade, acho que ela se sentia confusa diante de mim. Eu, mais

    do que qualquer outro, a deixava muito confusa.Claro, Carmita tinha os cabelos vermelhos, os olhos azuis e a pele

    branca, o que tomava suas muitas sardas ainda mais visveis. Brbaraera loura de olhos verdes. Os cabelos de Vivi eram negros, mas a peledela tambm era branca. Tatiana ganhou o apelido de Gringa por seuscabelos cor de palha e a pele avermelhada, as bochechas ela eragordinha vermelhas, vermelhas. Herana dos avs holandeses, dosquais se orgulhava muito.

    Mas eu... eu...Eu era morena. No to preta quanto a Vnia, ou com o cabelo

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    Os cabelos curtos, tambm pretos, tambm menos lisos do que gostariaque fossem, mas bem melhores do que os dela.

    Sei l, Vnia me assustava. Eu nem sequer gostava de ficar muitoperto dela. Era medo de que notassem a semelhana h tanto tempo

    ignorada ou simplesmente despercebida. Talvez fosse por causa dessemedo que eu mexia com ela como as outras meninas gostavam demexer. Era assustador admitir que ns duas possuamos alguma coisaem comum. Apesar de Vnia ser mais pretinha do que eu.

    Pretinha, eu?No, eu no.Eu era morena.

    Era o que mame dizia e papai repetia.Pretinha... pretinha... pretinha... pretinha era a Vnia com seus

    cabelos em tranas e seus sapatos pobres. Pretinha era a Vnia, de quemtodos zombavam e sobre quem contavam piadas na maioria das vezesbastante maldosas.

    Pretinha era a Vnia, que se calava quando algum a chamava de

    um jeito ou de outro. Ou fingindo que no se importava.No, ningum podia ser to durona assim...

    A HISTRIA DE VNIA

    Vnia j no andava sozinha. Fizera amigos. Poucos, bemverdade, e a maioria interessada apenas em ter algum inteligente dequem colar nas provas. Mas eram amigos.

    Havia a Sumiko, que todo mundo vivia perturbando e chamando dee, apesar do nome, era lourinho e

    dono dos olhos azuis mais bonitos da escola. Contei mais alguns quenem eu nem a minha turma Brbara, Carmita, Vivi e Tatiana

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    conhecamos direito. De qualquer forma, Vnia no estava maisandando sozinha pela escola.

    O fato de Vnia estar comeando a ser aceita aborreceu Carmitaainda mais. As piadinhas aumentaram muito e tomaram-se to variadas

    algumas realmente bem malvadas que numa ou noutra ocasioacabei sentindo pena da Vnia. De vez em quando, at mesmo aCarmita sentia que estava indo alm da conta, exagerando na dose, eficava meio sem jeito. Mas como que ela ia parar? E isso queacontece quando a gente coloca uma mscara por muito tempo. A gentesimplesmente no consegue mais tir-la.

    Carmita sempre fora implicante, mandona e cheia de vontades, mas

    ultimamente estava demais. Eu e Vivi chegamos a falar com ela.Pedimos para dar um tempo. Ela se aborreceu ainda mais e a sobroupara ns, principalmente para mim...

    Por que voc est se doendo tanto por ela, Bel? Descobriu algode novo nela ou foi em voc mesma?

    Sei no, mas notei que Carmita estava querendo insinuar alguma

    a partir daquele dia.No que j no tivesse visto antes (mas que bobagem!), no isso.

    Acontece que antes parecia no ter a menor importncia. Antes nodava para se fazer facilmente uma comparao. Antes eu era a amigaque ela carregava pra tudo que era lado. A filha do advogado Eduardode Souza Campos (o que tambm pesou e muito quando fui aceita noColgio Harmonia). Pagava isso, pagava aquilo, pagava tudo.

    Medo. Fiquei com medo.Medo de qu?No sei. Apenas medo, muito medo.Perder a amizade da Carmita e das outras?

    Ser pretinha?Medo. Muito medo.Fiquei com raiva. Tambm no sei por qu, mas fiquei com raiva da

    Vnia.Se ela no estivesse ali, aquilo com certeza no estaria acontecendo.

    Eu no estaria com medo.

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    Passei a implicar com ela tanto ou mais do que Carmita. Queria serdiferente. Ningum ia me confundir, ningum ia achar que a gente eraigual.

    Igual?

    No, a gente no era igual. No era mesmo.Todo mundo tinha de saber isso.Volta e meia, eu estava mexendo com a Vnia. Dizia coisas ruins,

    zombava de sua aparncia, imitava seu jeito de falar e de andar.Gaguejava como ela gaguejava quando era obrigada a falar depressa.Imitava seu beio vermelho e trmulo quando a gente conseguia abrirum buraco em sua armadura e quando ela lutava pra no chorar diante

    de nossas provocaes. Um dia, ela no agentou e me xingou, do jeitode quem no est acostumada ou tem medo de fazer isso.

    Ah, pra qu?!Daquele dia em diante, sempre que ela estava com raiva bastante

    para nos xingar ou doida para nos estrangular, gritvamos:Vagabunda!

    Igualzinho a ela.Eu ria muito dela.Bastava que Carmita aparecesse com uma nova maneira de

    perturbar a vida de Vnia, que l ia eu atrs dela, repetindo o que dizia,o que fazia e at mesmo como agia. Mesmo assim, volta e meia, a gentese surpreendia com a capacidade dela de encontrar novas maneiras deperseguir a Vnia.

    Eu descobri, gente, eu descobri! Ela parecia uma louca, osolhos enormes e brilhantes de ansiedade, quando entrou na sala de aulaum ms depois da Vnia aparecer na escola.

    Ficou uma olhando pra outra, sem entender bulhufas,principalmente o motivo de tamanha alegria.

    Descobriu o qu? perguntou Vivi.Como a pretinha entrou aqui. , Carmita raramente se referia

    a Vnia pelo nome, mas gostava muito de provoc-la com aquelapalavra...

    Pretinha...Cercamos Carmita, cheias de interesse.

    ?...

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    !E como?

    Vocs no vo acreditar... Carmita se esforava pra no rir.Ela ganhou uma bolsa de estudos!

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    Estranhei. Ela disse aquilo como que aliviada, como se ainformao a tranqilizasse e a fizesse, de alguma forma, se sentirsuperior a Vnia. Era como se no pudesse admitir que uma pessoacomo Vnia tivesse dinheiro suficiente para pagar uma escola como o

    Harmonia. Nossa, como a Carmita se sentiu feliz ao saber que Vniaera bolsista.

    Mais uma vez, sobrou pra Vnia, pois daquele dia em dianteaparecera uma nova palavra com a qual Carmita a incomodava. Eraterrvel. Ela no parava. Repetia, repetia, repetia. Repetia de umamaneira que enlouqueceria qualquer pessoa. Repetia com a nicainteno de humilhar, odiando de verdade. Uma loucura. Quanto mais

    Vnia fingia no ouvir ou deixava pra l, mais Carmita se invocava e aperseguia.

    sussurrando, usando a palavra com desprezo, para diminuir Vnia. Noescolhia lugar. Era na sala de aula, nos corredores, na rua em frente aocolgio. Qualquer lugar servia.

    Vnia no se importava. Quando quiseram saber por que ela nobrigava com Carmita, ela exagerou num gesto de pouco caso econtraps:

    E por que eu ia brigar com ela? verdade, sou bolsista...Ela podia enganar os outros. Alguns alunos e professores mais dia

    menos dia iam transform-la em santa. Pra mim, era tudo fingimento.Se ela no dependesse daquela bolsa, se no gostasse de estar numlugar chique como o Harmonia, se os pais no esperassem muito dela(pais so sempre pais e esto sempre esperando ou cobrando tudo dagente), ela j teria metido a mo na cara da Carmita. Pode crer.

    O pai de Vnia trabalhava na casa dos donos do colgio. Como elesgostavam muito dela, deram a bolsa. Muita gente vivia dizendo queVnia era muito inteligente e eles queriam ter certeza de que teria umbom estudo numa boa escola.

    Essa, sim, uma garota de futuro, de muito futuro disse ovelho Epaminondas Cerqueira, o dono do colgio, durante uma dasvisitas que passou a fazer a nossa turma.

    Ah, pra qu!

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    Foi um tal de gente arremedando o professor Epaminondasprincipalmente a Carmita, claro , repetindo as poses e caretas, at amaneira como ele arrastava a perna direita e andava se balanando deum lado para o outro, que a professora teve de chamar a ateno de

    muita gente pra no acabar a turma inteira suspensa.E quem disse que a Carmita ligou?Que nada!Ela provocou ainda mais. Improvisando um monculo com o papel

    brilhante de um bombom, ficou girando em torno da Vnia, querendoprovoc-la, recitando elogios e bobagens que fizeram todo mundogargalhar at no poder mais.

    Um dia desses, Vnia encarou Carmita e ficou olhando para ela umtempo, os olhos brilhando de uma maneira...

    Foi a primeira vez que vi os olhos de Vnia brilharem daquele jeito.Ficamos olhando, ansiosas, acreditando que Carmita finalmente

    conseguira irritar Vnia de verdade. Teve quem pensasse que as duasacabariam brigando ali dentro da sala de aula, sem se importarem commais nada.

    Engano geral. No teve briga nenhuma. No porque Carmita noquisesse. Ela queria e queria muito. Foi somente porque Vnia, maisuma vez, preferiu ignorar, com um simples sorriso, tanto Carmitaquanto suas provocaes.

    Sorriu e virou as costas.Foi isso a!Carmita acabou toda sem graa. Deu no que deu... a turma inteira

    aproveitou e riu dela!Nossa, os olhos da Carmita no pararam de brilhar, cheios de raiva,

    pelo resto da aula.

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    MAME

    Uma pretinha, voc disse?Foi o apelido que a Carmita e as outras resolveram dar pra ela,

    me.E ela ? o qu?Pretinha, ora... ?.Muito?Muito, muito mesmo.

    Mame parou e fez uma careta de aborrecimento.O que deu nessa gente? Ela...Ela uma boa aluna, me. Das melhores. Melhor do que eu.Quem disse?Ah, todo mundo!...

    Mame pareceu confusa. Ficou me olhando como se no fossepossvel existir no mundo algum mais inteligente do que a filha.

    Coisa de me.E onde que ela arranjou dinheiro pra pagar o colgio? O

    Harmonia caro, muito caro...Ela ganhou uma bolsa.Verdade? E como?

    Contei toda a histria de Vnia. Falei tambm das implicncias daCarmita e, principalmente, do que eu estava sentindo. Por fim, comuma dvida muito forte em minha cabea, perguntei:

    Eu tambm sou pretinha, me?Hem? Acho que minha me se assustou quando perguntei.Pre...Mas claro que no! De onde voc tirou essa idia, menina?

    Fiquei olhando para mame. Seus cabelos dourados caram no meurosto quando se inclinou na minha direo.

    Voc moreninha... moreninha...Uma resposta que eu conhecia e aceitava. Pelo menos at o

    aparecimento de Vnia.

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    Olhei e fiquei assim, no tirei mais os olhos do seu sorrisocarinhoso. Ela realmente acreditava no que dizia. Devia ser fcil, comseus cabelos louros e os olhos verdes como os de Tatiana!

    Minha me...

    Naquele momento, quis ter a pele to clara quanto a dela. Noprecisaria ficar enchendo a cabea com dvidas daquele tipo nemficaria repetindo o que ela dizia, como que procurando me convencer deque tinha razo.

    MO-RE-NI-NHA!No adiantou nada.As dvidas continuaram ali, na minha cabea; e, entre elas, o rosto

    de Vnia, pretinho, pretinho, sorrindo pra mim.Mame notou. At papai, invariavelmente distrado, sempre to

    preocupado com seu escritrio, envolvido com o trabalho de advogado,notou. E, ele tambm notou. Deu pra ver o olhar de censura que dirigiua mame.

    Ficou observando de longe e com certa contrariedade. Depoischegou mais perto e, certo de que meu silncio escondia alguma coisa,perguntou:

    T tudo bem, filhinha?Olhamos um para o outro.Ele tambm era moreno, no to moreno quanto eu, mas, mesmo

    referir-se a si mesmo como mulato e, volta e meia, ainda acrescentava

    discutia esse tipo de coisa com a gente. Era como se no tivesseimportncia.

    Antes, quando no tinha o escritrio e tantos clientes e no ia tantoa festas de gente importante nem aparecia nas colunas sociais, ele atcostumava conversar sobre isso. Falava dos pais e do esforo quehaviam feito para mand-lo para a universidade. Falava de seusprprios esforos e dificuldades e contou uma ou outra histria em quesempre havia gente como Carmita, implicando muito com sua cor.Naquela poca, ser negro no o incomodava. Ele chegou a dizer umavez que todos deveriam se orgulhar de ser o que eram. De uns tempospra c, papai mudou. Foi se preocupando mais em ganhar dinheiro e

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    ganhou, ganhou muito. A gente mudou de casa. Trocou de amigos.Esqueceu o que era. Quando insisto nisso, ele fala como minha me.Que eu sou moreninha...

    Quem a Vnia? quis saber meu pai.

    Repeti a histria toda.Foi ela quem disse que voc era pretinha? interessou-se,

    preocupado.Fiquei cismada. No entendi a preocupao.

    A Vnia no disse nada, pai...No? Papai fez cara de desconfiado.No... tomei a responder.

    Duvido que tenha acreditado.Nem meu pai e muito menos minha me. Eu s via os dois pelos

    cantos, conversando, um fazendo perguntas para o outro, os dois, voltae meia, espichando os olhos na minha direo.

    Deve ser aquela pretinha que anda pondo essas idias na cabeadela reclamou mame certa noite. Parei na porta da cozinha e fiqueiouvindo: Como mesmo o nome dela?

    Vnia...Mame queria ir no colgio pra reclamar, mas papai no deixou.

    E voc ia dizer o qu? quis saber. Que a menina anda

    Mas ela ...Pretinha? Clar...Morena! Minha me encerrou a discusso com voz firme.? Dava para sentir pelo seu tom de voz que papai estava

    aborrecido.Francamente, Eduardo. Eu estou falando srio. Essa menina...Essa menina j deve ter problemas demais no colgio para ns

    dois ficarmos pensando em criar outros.Mas ela...Acho que vou para o escritrio.

    o que voc faz, sempre que tem um problema aqui em casa...Depois disso, os dois resolveram brigar e fui embora.

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    MALDADE

    Hoje, fizemos uma maldade das grandes com Vnia. Quer dizer,Brbara inventou, Carmita adorou e ns todas concordamos em

    participar.Nos ltimos dias, a sala inteira tinha reparado que, mesmo com o

    calor que estava fazendo, Vnia ia sempre de casaco.Estranho, n? disse Brbara, certo dia.

    Vai ver que ela friorenta assim mesmo opinou Vivi.No... tem alguma coisa a que...O qu? Ficamos interessadas.

    No sei... mas vou descobrir!E tanto fuou, que acabou descobrindo:

    Sabe a R? Todas ns sacudimos a cabea afirmativamente.Pois , ela disse que a Vnia no tira o casaco porque t com dois

    buraces na camisa, debaixo dos braos. mesmo?Foi o que a R disse...E como ela sabe?A R viu quando ela tirou o casaco pra entrar no nibus.

    Estavam bem l... foi s ela agarrar nos ferros da porta pra subir e lestavam os dois, maiores que duas crateras lunares!

    Rimos alto. Ficamos rindo uma pra outra, todas cheias de msintenes na cabea. Mas, como eu disse, a idia foi da Brbara.

    E se a gente escondesse o casaco?Risinhos, risinhos.

    E, eu bem que queria ver a cara dela... disse. No entendi,mas me vi toda sem jeito quando falei isso. No me senti legal.

    E como a gente vai fazer isso? Ela no tira aquele casaco!Passamos um tempo pensando.

    A aula de educao fsica! quase gritou a Tatiana. Sorriu e,olhando pra gente, explicou: Ela vai ter de tirar o casaco pra fazerginstica, no vai?

    , ia sim.

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    A aula de educao fsica era no dia seguinte e, como a gente jsabia, Vnia seria a ltima a sair pra aula. Ela s trocava de roupaquando todo mundo j tinha sado do vestirio.

    E pra ningum ver os buraces explicou Brbara, com um

    risinho debochado.Tudo combinado, escondi-me entre os armrios e esperei que ela,

    depois de acreditar que todas tinham sado, se trocasse e fosse para aquadra. Vi os buraces. No me sentia legal. Pior. Sentia-me confusa.

    Se no estava gostando, por que estava fazendo aquilo?No sabia. No queria pensar. Fugi rapidamente daquelas perguntas

    que apareciam a toda hora na minha cabea; corri e peguei o casaco.

    Escondi-o dentro da minha mochila.Fizemos a aula, uma olhando pra outra, rindo, esperando pelo

    momento em que Vnia no encontrasse o casaco. Carmita tava que nose agentava e, de vez em quando, caa na risada.

    Que bicho te mordeu, Carmita? perguntou a professora.Nada, no, professora Sofia. Nada, no... Carmita olhava pra

    Vnia e acrescentava: Bobagem... s bobagem...Brigamos duas ou trs vezes com Carmita, mas no adiantou nada.

    Ela continuou rindo. Risinho pra l, risinho pra c.Quando a aula acabou, a gente eu, Brbara, Carmita, Vivi e

    Tatiana ficou pra trs. Como Vnia tambm no entrou, esperandoque fssemos primeiro, resolvemos ir na frente e impedir que elaficasse ainda mais desconfiada.

    Vnia no era boba e tambm tinha reparado os risinhos da Carmita.Algo dentro dela parecia lhe dizer que, de uma forma ou de outra,aquela inesperada alegria tinha alguma coisa que ver com ela.

    Tomamos banho e nos trocamos bem depressa.Eu s quero ver a cara dela quando no encontrar... gargalhou

    Vivi, ansiosa.

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    Quando ela entrou, ns samos. Carmita soltou outro risinho e deupra ver a desconfiana crescer na cara de Vnia. Ela sabia que a genteestava preparando outra de nossas maldadezinhas contra ela.

    Voltamos pra sala. Tinha prova de geografia. Mas quem foi que

    disse que estvamos pensando em prova? Quem tinha cabea paraistmos e montanhas, capitais e pases do mundo? Nenhuma de nstirava os olhos da porta, esperando que Vnia aparecesse. Esperandopra ver como Vnia ia aparecer...

    Ela demorou. Demorou tanto que a gente comeou a olhar uma praoutra, com cara de boba.

    Ser que ela foi embora? perguntou Tatiana.

    No deu nem pra responder.A porta abriu e Vnia entrou.Todo mundo olhou pra ela. A professora sorriu amistosamente.

    Vnia sorriu de volta, mas dava pra ver o medo no rosto dela.Voc est atrasada, Vnia disse a professora. melhor ir

    logo pra sua mesa que eu vou dar a prova.Vnia no disse nada. Encolhida, preocupada, apertou os braos

    bem junto do corpo.Olha, olha pediu Carmita, apontando pra Vnia. T

    escondendo os buracos debaixo do brao.E agora? perguntei.

    Agora voc vai ver s. Dizendo isso, Carmita se levantou,ficando bem na frente da Vnia. Tinha um caderno na mo. Sorrindocom carinho, entregou-o para Vnia, as palavras se derramando de suaboca com fingida amizade: Esse caderno seu, Vnia?

    Vnia, pega de surpresa, estendeu a mo para apanh-lo. O enormeburaco debaixo do brao direito apareceu para que todo mundo visse.Quem no viu na hora, acabou vendo quando Carmita, morrendo detanto rir, apontou-o, gritando:

    Noooossa, Vnia, que buraco!Gargalhou, mas gargalhou de se dobrar!A turma inteira riu. Mais de Carmita, que no parava de rir, que de

    Vnia, que ficou parada no meio da sala, envergonhada, os olhosbrilhando, cheios de lgrimas.

    Maldade.

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    Venha comigo, Carmita! gritou a professora, pegando-a pelo

    brao, os olhos voltados preocupadamente para Vnia, penalizada. Epare com essa gargalhada idiota! Pare!

    Quem disse que Carmita parou?Nada.Ela continuou rindo mesmo depois que a professora a puxou para

    fora da sala. Riu at sem vontade de rir, s pra deixar Vnia ainda maissem jeito, mais morta de vergonha.

    CONFISSO

    Estou me sentindo muito estranha. Penso em Vnia a toda hora.Depois da zombaria, ela no voltou mais pra sala e ficou uns dois outrs dias sem aparecer.

    Nenhuma de ns est feliz. Estamos todas pra l de sem graa. Noconversamos muito sobre o assunto. Nem sequer tocamos no nome deVnia. At a Carmita, que no comeo andava pra l e pra c, toda cheia

    de si, j anda pelos cantos, com cara de culpada. Ela no to duronaquanto pensava. Bastou a primeira censura silenciosa no olhar do restoda turma e dos professores para que ela desabasse. At chorar,garantem alguns, ela chorou.

    Foi apenas brincadeira... repetia pra quem quisesse ouvir,cheia de remorso. Ser que ningum entende? Foi apenas umabrincadeirinha -toa, gente...

    Ningum entendeu e andam dando um gelo daqueles nela. Naverdade, em todas ns. Por isso, at preferimos no ficar perto daCarmita nos ltimos dias. Covardia ou no, nenhuma de ns quer ser

    consegue se livrar dela.

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    Vivi diz que est se sentindo culpada de alguma coisa, embora nosaiba exatamente do qu.

    Tatiana levou uma bronca da me quando apareceu com umaadvertncia bem explicadinha na agenda.

    Mame e papai no disseram nada, mas notei que ele ficou olhandopra mim de uma maneira to esquisita...

    Dava pra ver que ele no gostou nem um pouco do que fizemos.

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    Pior que eu tambm no gostei. Depois que Vnia comeou achorar, tudo perdeu a graa bem depressa e eu fiquei me sentindo mal,muito mal. Na verdade, envergonhada. Foi maldade o que fizemos.

    Continuo com Vnia na cabea. Tem Vnia de tudo que jeito e

    maneira.Vnia sorrindo.Vnia se mostrando inteligente.Vnia interessada. Vnia irritantemente interessada. Sempre

    interessada.Vnia mexendo com a cabea da gente.Vnia de tudo que jeito, mas tambm Vnia chorando, sofrendo,

    correndo pra fora da sala com vergonha dos buraces na camisa.Carrego Vnia na cabea e ela no sai do meu pensamento.Estou morrendo de vergonha. Toda vez que olho pra mesa dela,

    vazia, sinto mais vergonha ainda. Se o cho se abrisse e me engolisse,eu nem ia reclamar.

    INDIFERENA

    A indiferena doeu. Doeu demais em todas ns. Vinda de todos oslados, a censura dos olhares silenciosos e da frieza de gestos, cada umade ns sentiu, a seu modo, a solido no vaivm de todos no ptio, nahora do recreio. Mas ningum sentiu mais do que Carmita.

    Estranho. Nenhuma de ns esperaria que ela, justamente Carmita, apessoa mais cheia de si que conhecamos, aquela que parecia ter todasas respostas e as solues para todos os problemas e dificuldades naponta da lngua, sentisse tanto aquela diferena. Mas sentiu...

    Sentiu de verdade...A antiga rainha da sala, a orgulhosa e superindependente Carmita, a

    mais amadurecida de todas as meninas da 5a srie, desabou diante dens. Ela tornou-se silenciosa. Nem esperava mais por ns. Quando ocarro parava na porta do colgio, tratava de entrar nem fazia maisquesto de que o motorista abrisse a porta pra ela, o que tambm odeixou muito surpreso e ia embora. Falava pouco na sala, at mesmocom a gente.

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    Ser que os pais dela falaram alguma coisa? perguntei para asoutras.

    S pode ser... disse Vivi.E ela tem pai? espantou-se Tatiana.

    Mas claro que tem! Acha que ela filha de chocadeira, ?Sei l! Eu nunca vi pai algum procurando por ela aqui na escola.

    A minha me diz que at nas reunies de pais quem vem aempregada.

    Sei l, dava pena ver a Carmita sozinha no ptio, indo e vindo semque ningum se interessasse em falar com ela, sorrir pra ela, ligar praela.

    S. Carmita estava s. Muito s.Arrependida?Um pouco. No muito, mas um pouco. Ela no precisava dizer.

    Dava para sentir. Alis, todas ns estvamos.O que parecia que ela, que sempre fora o centro das atenes em

    todo e qualquer lugar, sentira-se diminuda com a chegada da Vnia.Quisera recuperar sua antiga posio. Conseguira, finalmente, mas achoque ela como nenhuma de ns no contava que Vnia, em topouco tempo, tivesse feito tantos amigos. Acabamos transformadas embandidas num filme em que no queramos tal papel.

    Carmita precisava da ateno de todo mundo e agora no podiasequer contar com a das poucas amigas que ainda tinha.

    , se arrependimento matasse...

    LBUM DE FAMLIAOntem eu estava folheando o lbum de retratos de nossa famlia. Vi

    muita gente loura como mame. V Herman e V Olga, que aindamoram em Pomerode. Primo Vlter. Tia Leda. Prima Danusa. TiasGerusa e Eliane. Tinha at uma do velho tio-av Fritz, de quem amame fala muito, mas que no cheguei a conhecer.

    Tem tambm minhas tias Laura e Geralda, irms do papai, meuprimo Dua Eduardo como meu pai est sorrindo. H umadedicatria num dos cantos da foto, dizendo que ele est em Paris e quea torre atrs dele mesmo a Torre Eiffel. Tio Lucas est na Marinha.

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    Primo Zeca se veste como um daqueles caras de gangues de rua queaparecem nos filmes americanos. Ele tem at trancinhas nos cabelos.

    Contei menos fotos dos parentes do papai. A foto de V Eleutriano boa. V Jernimo bem grande e os lbios

    dele so to grossos quanto os de Vnia.Alis, ele pretinho, pretinho. Igual aVnia.

    Vi mais fotos da famlia da mame queda famlia do papai.

    Perguntei a minha me por que h maisfotos da famlia dela no nosso lbum.

    No sei, filhinha. Acho que os parentes do seu pai no gostammuito de tirar retrato.

    Ser?

    A VOLTA DE VNIA

    Vnia!

    O grito de surpresa e at a alegria de um sorriso to inesperadoquanto aliviado foi de Carmita. A surpresa foi to grande que, por unssegundos, chegamos a acreditar que Carmita fosse correr ao encontrode Vnia e abra-la com toda fora de uma saudade enorme.

    Ela se controlou. Deu pra ver que Carmita se controlou muito pararetomar ao seu velho jeitinho malicioso e dar aquele risinho debochado,quando finalmente disse:

    E no que voc teve coragem de voltar?Ningum ligou e ficamos desconfiando de toda aquela hostilidade eironia que ela apressou-se em colocar nos gestos e no olhar. Mais umtempinho de descuido e, muito provavelmente, at chegasse a pedirdesculpas...

    Vnia voltou olhando diferente pra ns. D pra sentir que no vaimais chorar quando a gente fizer outra daquelas brincadeiras sem graa.

    No vai mesmo.Acho que, s pra atazanar de vez, ela voltou melhor do que antes.Agora no resta a menor dvida de que a melhor aluna da sala. D praver sua satisfao sempre que um professor lhe d um novo dez emqualquer matria. Nessas horas, ela fica bem parecida com Carmita e

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    parece esfregar aquele dez em nossas caras, com seus risinhos e longosolhares cheios de significados. Deve ser sua maneira de se vingar de

    Carmita tambm continua a mesma. Passado o susto e os dias de

    solido e gelo, a presena de Vnia comeou a incomod-la novamentee ela no perde uma oportunidade de provoc-la. Por enquanto, Vniase finge de boba e ignora. Ultimamente, anda mais ocupada com osamigos que faz na turma. Todo mundo fala com ela, todo mundo gostade ouvi-la. Est cada vez mais difcil encontrar quem no simpatizecom Vnia.

    Brbara no se cansa de dizer, com um pouco de inveja, claro, que

    ela a queridinha dos professores, que todos na escola parecem ternascido para paparic-la.

    O que ela tem que ns no temos? pergunta, de tempos emtempos, e ns ficamos nos olhando, atrs de uma boa resposta.

    Tambm sinto inveja, por que negar?Queria ser como ela.Inveja.Simpatia.Carinho.Ainda sinto um pouco de vergonha pelo que fiz com ela. Fico at

    vermel...No, no fico vermelha, no.No d.Estranho, no pensava nisso antes de Vnia chegar ao colgio.Puxa, eu gostaria de ser amiga da Vnia. Falei com Carmita e ela

    quase teve um troo.Eu no vou ser amiga de pretinha nenhuma! gritou, muito

    brava e o mais alto que pde, pra que todomundo ouvisse. Ouviram e ficaramolhando pra ela.

    Carmita tambm muito estranha!Todo mundo acha. At eu, Brbara,

    Vivi e Tatiana.Todo mundo.Ficou ainda pior depois que Vnia apareceu em nossa sala.

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    CARMITA

    Carmita disse que a me dela falou, e que o pai concorda, que gentepreta no muito inteligente, no. Que gente preta preguiosa e s

    vive criando confuso.Falou tambm que a me garante que preto, quando no est na

    cozinha ou jogando futebol, ladro. Parece ser uma grandeconhecedora de gente preta.

    Sentamos e ficamos ouvindo. Carmita fica repetindo e a gente,achando a maior graa. Ela parece acreditar naquilo e, como somossuas amigas, ficamos ouvindo.

    Carmita fala muito no pai e na me. Quem ouve pensa at que elesvivem grudados nela como chiclete. Fala tambm nos empregados dacasa e garante que alguns at so uns pretos de muita confiana e bemlegais.

    Pretos de alma branca repete a frase mais conhecida da me.De vez em quando, fico pensando se alma tem cor. Perguntei, masCarmita tambm no sabe. S sabe o que a me diz e no procura sabermais.

    A professora Renata ouviu Carmita dizendo aquelas coisas na auladela e deu uma bronca em todas ns. Todos os outros alunos rirammuito, mas Carmita no disse nada. S olhou pra Vnia. Olhou e ficoucom raiva.

    Eu, hem?Se voc deixasse de se preocupar tanto com a vida dos outros

    disse a professora Renata , talvez suas notas melhorassem um pouco,voc no acha, Carmita?

    A bronca deixou Carmita branquinha, branquinha.Aquela pretinha me paga! repetiu duas ou trs vezes, olhos

    fixos em Vnia.Mas, afinal de contas, o que Vnia tinha feito?Por que ser que Carmita tinha sempre de encontrar uma maneira de

    colocar a culpa de tudo o que acontece na Vnia?Carmita mete medo na gente. Principalmente em mim. Ainda mais

    depois daquele dia e da bronca da professora Renata. Sei l! E se, derepente, ela notar que eu sou moreninha e a... a no sei!

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    Mas fico com medo dela. Do que fala e da maneira como pensa.A professora Renata garante que no culpa dela.E de quem seria ento?

    BRIGA

    Oi!Vnia levou um susto quando falei com ela, mas sorriu rapidinho e

    respondeu:Oi!

    Carmita vinha logo atrs, com Vivi e Tatiana, e no gostou.

    O que voc t fazendo?Tambm levei um susto e, muito pouco vontade, respondi:

    Eu diss, eu vi.Todas ns vimos acrescentou Tatiana, emburrada.

    As trs estavam aborrecidas comigo.

    Ns no gostamos da Vnia lembrou Vivi. Pensei quevoc tambm no gostasse.

    Eu no gostQuer ser amiguinha dela tambm, ? perguntou Carmita, cheia

    de maldade na voz.No, eu...Acho que ela quer sim disse Vivi, zombeteira.No quero, no!Quer, sim!No quero, no!Vai ver, quer ficar at pretinha como ela!No!Quer, sim!

    Fiquei com medo.Vergonha.Meu rosto pegou fogo. Estava to quente, que eu s podia pensar

    que estava pegando fogo.

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    Quando Carmita riu, debochando de mim, o medo cresceu aindamais e, assustada, eu a empurrei. Ela me xingou e me empurrou devolta. Empurra pra l, empurra prac. Empurrei mais forte e Carmita

    caiu sentada.Todo mundo viu. Muita gente riu.

    Ela me olhou, cheia de raiva.Assustei-me e estendi a mo paraajud-la a se levantar. Carmita deuum tapa na minha mo e resmungou:

    Voc no mais minha

    amiga!Mas Carmita...

    Fui empurrada para o lado. Olhei pra Vivi e Tatiana, mas as duasnem falaram comigo. Viraram as costas e foram embora com Carmita.

    Acabei sozinha.

    SOZINHA

    Vou e volto sozinha pra escola. Carmita e as outras mudaram delugar s pra no ficar perto de mim. Apenas a Brbara ainda falacomigo e, mesmo assim, de vez em quando. Ela prometeu que vaiconvencer Carmita de me perdoar.

    No entendi.Perdoar por qu? Eu no fiz nada errado.Contei pra minha me.

    Voc brigou com sua melhor amiga por causa daquela...daquela...

    tentando... acabou no dizendo.De qualquer forma, no gostou. Nem me deixou explicar por que

    Carmita brigou comigo. Bastou mencionar o nome da Vnia pra minhame achar que conhecia toda a histria.

    No falei nada. Fiquei ouvindo.

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    Vai pedir desculpas a ela, filhinha. Vocs so amigas h muitotempo. Amigas no devem brigar desse jeito, ainda mais por causa deum motivo to bobo como... como... como este!

    Foi pior do que levar um tapa de Carmita.

    Preferi no dizer nada. Fui embora. No ia pedir desculpas aningum, muito menos a Carmita. No ia mesmo!

    Era melhor ficar sozinha.No adiantou. Mame convidou Carmita pra ir em nossa casa e,

    como eu no sa do quarto, pediu desculpas por mim.AAAAAAAHHHHHHHH!Que raiva!

    Pior do que minha me se desculpando por uma coisa que eu notinha feito, s o risinho debochado de Carmita quando a gente seencontrou no dia seguinte.

    T desculpada! disse, rindo pra mim, de mim, e para as outrasgarotas que viviam sua volta.

    Puxa, que raiva!O dia inteiro ela andou de um lado para o outro com aquele sorriso

    de deboche e vitria pendurado na cara, se divertindo s minhas custas.Nem cheguei perto. Continuei sozinha.

    DVIDAS

    Tem horas que eu paro e penso...Puxa, como a minha me, de vez em quando, parecida com a me

    da Carmita!... Assusta um pouco. Ser que a minha me no percebe oque est dizendo? Ser que ela sabe o que est dizendo ou diz por dizer,quase sem perceber, quase sem querer?

    O mais engraado que, ao contrrio da me da Carmita, que casada com um homem branco, a minha me casada com o meu pai,que negro. Ele pode ficar dizendo que mulato e a minha me podepresente-

    Ser que minha me j notou isso?E, se notou, por que fica dizendo aquelas coisas, escondendo as

    fotos dos parentes do meu pai do lbum da famlia?

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    Sempre que eu ouo minha me falando, imagino a me de Carmita.

    Nessas horas, eu quase sempre penso nas razes que levaram minhame a se casar com meu pai. Fico triste nessas horas, pois penso um

    monte de coisas ruins.Penso que meu pai tinha dinheiro e minha me, no. Que o pai de

    minha me estava sem um tosto e nem pde pagar meu pai paradefend-lo num julgamento de sei-l-o-qu...

    No, no nada disso. Ela enfrentou muita gente para se casar comele e muita coisa ruim depois que casou. Brigou at com alguns irmos.No, no foi por dinheiro, no. Isso histria de novela das seis... e das

    mais sem graa.Acho que ela diz aquelas coisas apenas por dizer, por ter ouvido

    muitas e muitas vezes, ditas por muitas e muitas pessoas. Pra ela deveser at normal e duvido que imagine que ofenda a mim ou a meu pai, jque, pra ela, ns tambm no somos negros.

    Engraado isso, no?

    PERGUNTAS EMBARAOSAS

    pai, por que tem to poucos retratos da sua famlia no nossolbum?

    Papai parou de ler o jornal e, sem jeito, desviou o olhar por unsinstantes para mame, que via televiso. S depois de algum tempotomou a me encarar.

    Sei l, filha... tem mesmo?Tem...Sabe que eu nunca tinha reparado? Virou-se para minha me e

    perguntou: E voc, Maria Helena?Vi preocupao no rosto dela.

    No, nunca notei isso. Mas ns j conversamos sobre isso, no ,minha filha?

    ...

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    Se te deixar mais feliz, posso pedir a quem voc quiser algumasfotografias pra colocar no nosso lbum de famlia, est bem assim, Bel?

    Papai sorriu, mas parecia um sorriso sem vontade, um sorrisoforado.

    T... concordei.Papai continuou olhando pra mim, meio embaraado, como quando

    a gente apanhado fazendo algo que no devia e sente um pouco deculpa.

    Quem falta no lbum? insistiu.Lembrei-me do tio Quirino e da tia Lenita. Dos primos Cludio,

    Germano e Fernando, filhos da tia Lenita. No me esqueci do meu tio-

    av Dagoberto, o que tinha ido morar com os filhos em Nova York eagora dirigia um txi amarelinho.

    Tio Pedro estava na Marinha. Primo Samuel vendia livros em umaeditora em So Paulo. Prima Simone era engenheira e estavaconstruindo uma estrada no Peru. Tia Cristina vendia apartamentos emuma imobiliria em Santa Catarina. Primo Luciano jogava futebol naHolanda. V Eullia morava numa casa bonitinha em Bertioga. PrimoVanderlei tocava numa banda de reggae em So Lus. Primo Henriquevivia ilegalmente na Flrida, e tinha at o tio Danilo, que estava presonuma cadeia na Alemanha.

    Tinha pretinho, moreninho,mulatinho e at uns bem pretinhos.A famlia do meu pai.

    Enquanto eu falava, notei comominha me olhava para o meu pai.Senti que no estava gostando nemum pouco daquela conversa. Meupai tambm parecia chateado.

    Esquisito.

    A FESTA

    Logo que comeou o ms de junho, ningum no colgio falava emoutra coisa alm da festa junina. Cada turma formou sua quadrilha para

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    competir no concurso que todos os anos o professor Epaminondasrealizava no Harmonia.

    Um grande ti-ti-ti.Na primeira semana, o colgio foi todo enfeitado com bandeirinhas

    de papel. Na entrada, o pessoal da 8 srie colocou um enorme baloverde-amarelo. Na quadra, todo mundo contribuiu um pouquinho para a

    -Saia, o nosso arraial.A animao era enorme em todas as turmas. Escolher os melhores

    danarinos no era fcil e, na nossa sala, foi ainda mais difcil, poisdesde o incio Carmita e Brbara implicaram com a presena de Vnia.

    Ah, no, ela no insistiu Carmita, aborrecida.

    E por que no? perguntei.Ora, porque... porque...Porque ela nova na sala! inventou Brbara.

    A turma se dividiu. Houve muita discusso. O grupo que apoiavaCarmita era pequeno, mas muito barulhento. Perdemos mais de umasemana naquele participa - no participa. A birra da Carmita acabouno colando e a Vnia ficou na quadrilha. O pior ainda estava por vir,pois a professora Renata props o nome dela pra noiva e todosconcordaram.

    Pra variar, Carmita no perdeu tempo e na mesma hora alfinetou:A noiva do King Kong! repetia de vez em quando,

    principalmente quando a gente estava ensaiando na quadra.Elas e as outras riam de rolar pelo cho sempre que Vnia passava

    de braos dados com Humberto, o noivo da nossa quadrilha. Nada davamais motivos para as implicncias do grupinho de Carmita do que verVnia de braos dados com o menino, muito clarinho e de grandesolhos azuis.

    De vez em quando, ela ia de um lado para o outro, resmungando:Nossa, no sei como o Humberto aceita uma coisa dessas!...

    Ningum lhe dava importncia. Sem que percebesse, Carmita estavase tomando uma garota simplesmente insuportvel para o resto daturma. Pouca gente alm, claro, de Brbara, Vivi e Tatianafalava com ela. At a professora Renata estava sem pacincia com ela.Bastava a Carmita soltar um risinho muitas vezes sem ter nada quever com Vnia pra ser repreendida.

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    Carmita corria o risco de acabar sozinha se continuasse mexendocom Vnia e fazendo pouco caso de tudo e de todos.

    Ela andava sempre com raiva.Raiva da ateno que Vnia recebia.

    Raiva pelas broncas que passou a receber.Raiva por Vnia danar direitinho e formar um bonito par de noivos

    com o Humberto, que fora seu noivo na festa do ano passado.S por isso, nem quis fazer parte da quadrilha.

    Se no for pra ser a noiva, no quero! resmungou, teimosa.Mas j estava na hora de escolher outra noiva, voc no acha?

    tentou argumentar a professora Renata.

    A cara de Carmita ficou ainda mais amarrada. No disse nada. Bemque queria. Imaginei que, se no fosse a professora Renata, ela muitoprovavelmente diria alguma coisa.

    Dessa vez, no entanto, ela apenas reclamou:Perder o meu lugar, tudo bem... mas pra noiva do King Kong!

    Carmita estava mal-acostumada. Todo ano, por este ou aquele motivo,com uma ou outra argumentao, sempre conseguia convencer osoutros participantes da quadrilha a escolherem o Humberto e ela paranoivos. Definitivamente, no estava preparada para enfrentar aconcorrncia inesperada de Vnia.

    Eles me pagam! prometeu, muito chateada.Mesmo no fazendo parte da quadrilha, no perdia um ensaio. Ia s

    pra ficar sentada na beira da quadra, fazendo caretas e sacudindo acabea desaprovadoramente para o que quer que Vnia fizesseenquanto danava.

    Tudo errado dizia, vez por outra.Mas que noiva mais sem graa... provocava.Se fosse eu, faria melhor! garantia.

    Em vrias ocasies, ela e as outras falavam tanto e arrumavamtamanha confuso que a professora Renata parava o ensaio pra darbronca. Chegou at a expulsar as trs da quadra. Noutra oportunidade,ainda acrescentou:

    Vocs esto mesmo com inveja!...Depois daquilo, elas no largaram mais do p das outras meninas da

    quadrilha. Falavam um monte de bobagens. Diziam que a professora

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    Renata paparicava Vnia. Que Vnia s queria se mostrar. Tudo paratentar fazer com que a gente desistisse de participar. Carmita atlembrou que ramos amigas.

    Todo mundo ouvia e ria muito da maneira como Carmita se

    esforava pra atrapalhar. A gente ouvia, ria, mas continuava ensaiando.A turma inteira queria ganhar da quadrilha da 8 srie, que era a melhordo colgio. Inventaram at passos especiais pra noiva e pro noivo, queVnia e Humberto ensaiavam s escondidas na casa da professoraRenata. Ningum sequer imaginava o que a nossa quadrilha estavaaprontando.

    Nem eles contavam.

    Segredo, segredo repetia Humberto, com um risinhomisterioso.

    Nessas horas, Carmita sempre encontrava uma maneira de passarpor perto e, cheia de despeito, resmungar:

    Puxa, mas vocs so bobos mesmo, n?Ou o preferido dela:

    Quanta perda de tempo!Estava de tal modo torcendo contra que pensei que ela e as outras

    no apareceriam no dia da festa. Mas apareceram. Carmita e, em volta,Vivi, Brbara e Tatiana. As quatro andando pelos cantos, cochichando esoltando risinhos zombeteiros pra l e pra c, num ar misterioso, quedeixou a professora Renata curiosa e preocupada.

    Aquelas quatro esto preparando alguma disse, ajeitando osculos; era meio gordinha e tinha sardas no rosto. Dentro de um vestidode chita todo florido e com os dois dentes da frente pintados de preto,estava realmente muito engraada.

    O qu? perguntei.Era o que eu queria saber. Mas se conheo Carmita, boa coisa

    no !A gente imaginava que devia ter alguma coisa que ver com Vnia.Ela estava muito bonita com o vestido de noiva e a professora

    Renata dizia que Humberto, por sua vez, era o noivo mais bonito entretodos os noivos presentes na festa. Preocupada, no saa de perto dosdois e no tirava os olhos de Carmita, onde quer que fosse. Quando oprofessor Epaminondas, que era o padre da festa do colgio, vestido

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    com um velho hbito religioso que conseguira sabe-se l onde,anunciou a entrada da quadrilha da nossa sala, as pessoas comearam aaplaudir. A professora Renata teve de deixar Vnia e Humbertosozinhos, para nos organizar. Foi exatamente nesse momento que

    Carmita se aproximou deles, com um grande sorriso nos lbios e umcachorro-quente transbordante de molhos vermelhssimos e douradasmontanhas de mostarda e maionese, ainda maiores, na mo.

    Parabns, Vnia, voc est lind... dizia, quando tropeou ederrubou o cachorro-quente bem no peito de Vnia.

    O vestido, branquinho, branquinho, ficou todo sujo com o vermelhodo ketchup e o amarelo da mostarda. O molho de cebola e tomate

    escorreu at a cintura. O cheiro do cachorro-quente ficou em todo ovestido. O espanto foi ainda maior quando, com os olhos maisparecendo duas bolas de fogo, Vnia deu um soco em Carmita.

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    No restava a menor dvida de que Carmita tinha feito de propsito.Nem era preciso notar a satisfao nos rostos dela e das outras, mesmoquando pediam desculpas e lamentavam o que tinha acontecido. Estavana cara que fora uma vinganazinha de Carmita. Mas aquele soco

    pegou muita gente principalmente os que sonhavam transformarVnia numa santa de surpresa. Ficou todo mundo de queixo cado.

    E agora? perguntou Humberto.Comeou a tocar a msica e foi um tal de olha-pra-l-olha-pra-c,

    gente segurando Carmita (que queria briga), gente afastando a Vnia(que queria se pendurar no pescoo dela. Nossa, eu nunca tinha vistoa Vnia com tanta raiva!), todo mundo procurando a professora Renata,

    tentando saber se entrvamos ou se simplesmente desistamos. Coube aVnia decidir.

    Agora a gente vai danar!Puxou Humberto pela mo e foi pra frente da quadrilha. Mesmo

    com o vestido todo lambuzado, puxou a dana e foi danando,danando, danando...

    Ficamos parados durante certo tempo, desorientados, at que aprofessora Renata passou a agitar as mos e a fazer sinais para quefssemos entrando, atrs dos dois.

    No se esqueam dos passos que ensaiamos! pediu,preocupada.

    Entramos.Danamos. Agitando os braos. Cantando. Danando e cantando

    sem parar um s minuto. Olhando pra Vnia, vendo-a danar mais emelhor do que qualquer um de ns. Danando, mas danando muito,danando como se nada tivesse acontecido, como se o vestido noestivesse todo lambuzado de ketchup, mostarda e maionese. Danandocom muita alegria.

    A 8 srie ganhou. Chegamos em segundo lugar, mas a professoraRenata no parou de repetir pra quem quisesse ouvir que ns tnhamosvencido, ganho de verdade.

    Volta e meia ainda me lembro dela abraando-se a Vnia com forae carinho.

    , ns ganhamos mesmo!

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    AMIGAS

    Fiquei meio sem jeito de tomar a iniciativa. Afinal de contas, depois

    Quer dizer, falou sim, mas ali, aqui, nada de muito, nada deinteressante, nada como se fssemos amigas.

    Bem que eu queria. De vez em quando, puxava papo, mas aapareciam Carmita e a Bel, o que voc est

    Beldesistindo. Esquecia.

    Mesmo depois que briguei com Carmita, ficamos cada uma de um

    lado e s nos encontrvamos quando entrvamos na sala de aula ousaamos dela. Chegava a ser estranho.

    Durante os ensaios da quadrilha, chegamos a nos falar e, depois doque aconteceu, falvamos quase todo dia. Passei a ir de nibus com ela.Minha me se chateou, dizendo que no ficava bem, que a gente tinhaum carro com motorista pra me levar e me buscar. Bati p. Resmungueimuito. Fiz at birra. Ela acabou aceitando. Quer dizer, concordou, masmesmo assim ficou um tempo reclamando, apelando pra eu tomarcuidado.

    Puxa, quem visse a mame, certamente pensaria que eu estava indopra guerra.

    Me me, n?Sabe, andando de nibus com Vnia, descobri que realmente no a

    conhecia.Claro, tinha a Vnia da minha sala, que era esperta e inteligente,

    que s recebia elogios e irritava meio mundo com seu jeito de CDF.Havia a Vnia santinha, que no cometia um s erro e que era

    paparicada por professores e colegas. Havia a Vnia que escondiaseus sentimentos por trs de sorrisos e de gestos de indiferena. Haviatambm a Vnia calada, mas teimosa, que danou na quadrilha.

    No entanto, encontrei mais uma Vnia, que eu no conhecia direito,uma menina que era obrigada a no ser menina, que falava com muitoorgulho dos pais que tinha, mas que muitas vezes se sentia sufocada poreles e por seus sonhos.

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    Aquela que vivia fazendo planos para muitos e muitos futuros.Uma outra que se equilibrava sobre a corda bamba de sonhos

    sempre grandiosos, que dizia que queria ser advogada, mas apenasporque os pais desejavam. Na realidade, ela ainda no pensara em nada

    daquilo. Queria era viver bem sua vida., aquela Vnia eu no conhecia.Tinha tambm outra Vnia, que estufou o peito cheia de satisfao

    quando contou que ainda ajudava a me, que era lavadeira.Uma outra Vnia tinha os olhos sempre brilhantes de entusiasmo

    quando falava do pouco que tinha como se fosse um tesouro grandioso.Ah, ... e tinha, claro, a Vnia que reunia todas as outras numa s.

    Foi a essa que um dia eu acabei chamando de amiga.Eu no sabia que ela era assim.No quarto dela no tem lugar pra mais nada a no ser livros. Livros.

    Livros. Livros. bem verdade que nem todos ela leu...

    Meu pai diz que a gente tem de ler livros, que pobre e preto temde ser inteligente e no dar bandeira se quiser vencer na vida, mas eugosto mesmo de ler os gibis daMnicae do Tio Patinhas. Tem algunslivros que j li e gostei pra caramba. Outros so muito grossos e difceisde entender. Mas se eu no aceitar os livros ou disser que no gosto damaioria deles, acho que ia chatear o meu pai. Por isso, aceito tudo.Qualquer hora dessas, talvez at leia todos eles ou, pelo menos, a maiorparte.

    No quis dizer nada, mas a Vnia j tinha lido mais livros do quequalquer uma de ns na sala... e sem ser obrigada.

    Digam o que disserem, ela realmente uma fera. S que no gostadisso.

    chato voc ter de passar o tempo todo fazendo papel deboazinha, no se metendo em confuso, no reagindo s provocaes degente como a Carmita, apenas porque o pai da gente diz que pessoascomo ns no devem se comportar mal, que feio brigar e que vofalar mal da gente se brigarmos, xingarmos ou no concordarmos com oque nos dizem. Eu j no estava mais agentando ter de engolir tudo oque Carmita dizia ou de ser sempre a sabe-tudo da sala. Eu queroapenas ser igual a todo mundo.

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    J disse isso pro seu pai?J...E ele?Morre de medo de eu perder a bolsa de estudos no colgio. Mas

    eu j disse pra ele que se no for no Colgio Harmonia, pode ser emqualquer outra escola. Uma escola pblica como a que eu estava. L euno era tratada como animal raro, l eu era gente e...

    Ah, esquece isso, Vnia, agora tudo vai ser diferente.Vai?Quer saber a verdade?Quero!

    A gente que vai fazer ficar diferente.Ela me emprestou um de seus livros. Um dos que ela j tinha lido.A

    cor da ternura. Depois que devolvi, peguei mais dois. A histria deuma folha. As viagens de Gulliver. Passei a levar pra ela os queencontrava l em casa. Ah, , e os gibis...

    Somos amigas de verdade. claro que Carmita no gostou nem um pouco e voltou a implicar

    com Vnia e ainda mais comigo.Ela no muda.Pe defeito em tudo. Arremeda a gente, o meu jeito e o jeito de

    ma e puxa conversa, mexe mais um pouco. Quando no respondo, meempurra. Diz bobagem...

    Carmita continua com raiva. Ela ainda no conseguiu tirar a grandemscara de bruxa m que colocou na cara.

    No liga, no, Bel pediu Vnia, segurando meu brao. Ela boba assim mesmo!

    Ah, a Carmita no agentou e soltou uma gargalhada que fez todomundo, inclusive o professor Gensio, virar e olhar pra ela.

    Pode contar a piada pra ns tambm, Carmita? perguntou oprofessor. Pelo visto, deve ser muito boa, no?

    Ahhh, no nada, no, professor... bobagem, s bobagem...Carmita, muito sem jeito, no deu mais nem um pio o resto da aula.

    No tinha acabado.

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    Dava pra ver pela cara feia que Carmita fez pra gente.No recreio, veio atrs de ns. Ela, Tatiana e Brbara. Quando Vnia

    viu que Carmita tinha um copo de iogurte na mo, disse:Se ela vier me sujar com aquele iogurte, vai levar um banho de

    guaran!Exibiu o copo cheinho que tinha na mo, arma poderosa contra as

    intenes das trs, fossem l quais fossem.Mas Carmita s queria falar e implicar. E, como pensvamos, falou

    e implicou. A gente no deu a menor bola. Ficou olhando e ouvindo.Esperando que se cansasse.

    Voc to boba, Carmita disse Vnia, depois de ouvir

    tudinho com a maior calma do mundo.Fomos saindo.Virei pra trs e ri muito.Brbara olhou pra Tatiana, Tatiana olhou pra Brbara e as duas

    olharam pra Carmita. Parecia ensaiado.E agora? perguntou Tatiana.E eu sei l! respondeu Brbara. Virando-se para Carmita, quis

    saber: E ento, Carmita? A gente...Continuamos andando como se no fosse conosco, mas deu pra

    ouvir, e ouvir bem, quando Carmita comeou a gritar com as duas. ,se deu!...

    Algum tinha de pagar o pato, no tinha?

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    COLANDO FIGURINHA

    Eu me assustei quando meu pai entrou no quarto e atirou umpunhado de fotografias e o nosso lbum de famlia sobre a cama.

    O que foi, pai? perguntei.Ele sorriu e sentou-se ao meu lado.

    Nada respondeu. Eu s achei que voc gostaria de meajudar a colar algumas figurinhas no lbum.

    Olhei de novo e todos estavam l. A famlia de meu pai. Pretinhos,pretinhos. Aquele primo, aquela tia, meus avs. Muita gente. Sorri parameu pai e entendi tudo.

    Eu acho que andei me preocupando com muitas coisasimportantes e esquecendo outras tantas. Apontou para as fotografiase acrescentou: Como a minha famlia.

    A mame...A sua me no gosta de alguns dos meus parentes, como eu

    tambm no vou com a cara de muitos dos dela. Papai beijou minhatesta com carinho e tomou a sorrir: A gente se entende.

    mesmo? De verdade?Verdade verdadeira. E ento? Voc vai ou no vai me ajudar a

    colar as figurinhas?E claro que ajudei.Finalmente a minha famlia estava completa.

    UMA AULA DIFERENTE

    O professor de histria foi o primeiro a entrar. Depois veio aprofessora de portugus. A de matemtica sorria muito, enquanto oprofessor de biologia conversava animadamente com o de ingls.

    T faltando um professor negro... observou Vnia.Ultimamente ela andava se soltando de verdade. J se fora o tempo

    em que entrava muda e saa calada, que aceitava tudo docilmente.Questionava os professores a todo instante. Discutia quando tinha dediscutir. Finalmente estava sendo a verdadeira Vnia. At uma notaruim ela andou tirando, pra espanto de todos. A sua ltima implicncia

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    era com o fato de o Colgio Harmonia jamais ter tido um professornegro.

    Aqui nunca teve um... lembrei.T vendo.

    Ser que o professor Epaminondas racista?Sei l!. Pode ser que, com a fama do Harmonia, colgio de elite

    e coisa e tal, nenhum professor negro tenha tido a coragem de dar ascaras por aqui com um currculo. De qualquer forma, est faltando umprofessor negro...

    Psst! disse algum atrs de ns.O diretor do colgio foi o ltimo a entrar. Parecia conselho de

    classe.Todos perfilaram-se nossa frente.Entreolhamo-nos, preocupadas. A preocupao aumentou a palidez

    no rosto de Carmita. Brbara e as outras tinham apreenso e medo nosolhos arregalados, em grande mas silenciosa expectativa.

    L vem coisa... disse algum atrs de mim. Pude notar que notiravam os olhos de Carmita.

    Silncio.Nem o sorriso amistoso do diretor e dos professores serviu pra

    tranqilizar a turma.Olha a suspenso a, gente!...

    Ficamos esperando. Depois de uns instantes, o diretor adiantou-se eficou nos observando em silncio por mais algum tempo. Sorriu.

    Iiii... A voz com preocupao mais uma vez soou em meusouvidos.

    Outro sorriso e finalmente ele disse:Ns temos um problema.

    Um instante de silncio e tenso, os olhares indo pra l e pra c,interminavelmente.

    Ele fez um gesto tranqilizador.No, no. Quando digo que temos um problema, no estou

    dizendo que no podemos resolv-lo... isto , se quisermos. Estoudizendo apenas que podemos resolv-lo se decidirmos tom-lo nosso.No, no o problema deste ou daquele. um problema nosso e,lamento dizer, um problema muito antigo, que comeou com outras

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    pessoas e que eu e pessoas como eu preferimos eternizar olhou praCarmita e depois pra Vnia, e mais uma vez pra Carmita. Precisouque algum nos acordasse para ele.

    Sorri pra Vnia. Ela sorriu de volta.

    Lamentavelmente, no um problema to pequeno quepossamos resolver e eliminar aqui. No, ele no existe apenas aqui.Existe em muitos lugares e de muitas formas diferentes. Existe at emquem, muitas vezes, se acha imune a ele.

    Ns apontou para os professores andamos conversando.Conversamos, discutimos, brigamos. Sabe, seria fcil deixar que ascoisas se resolvessem por si s, que ficasse o dito pelo no dito a que

    costumeiramente gostamos de relegar nossas dificuldades. fcil.Fecham-se os olhos e pronto! No existe o problema. E se ele existeque beleza! , ns no o vemos. Podamos ter feito isso. No era coma gente. No nos dizia respeito. Quem tivesse o problema, que cuidassedele. No assim que costumamos fazer?

    Silncio.Bom, mas no assim que se resolvem os problemas. Talvez

    seja assim que os escondamos, mas no assim que os resolvemos. Porisso, decidimos tom-lo nosso. Meu. Dos professores. Dos alunos. Detodo o Colgio Harmonia.

    Silncio.Subitamente, um dos alunos no fundo da sala perguntou:

    Que problema esse, diretor?O diretor voltou-se para os professores e apontou-os para todos ns,

    informando:A aula de hoje ser exatamente sobre isso e todos ns vamos falar

    sobre esse problema... sobre discriminao... inesperadamente, virou-se para Vnia e perguntou: Por que voc no comea, querida?

    TEMPO AO TEMPO

    As aulas sobre preconceito e discriminao racial entre outrastantas duraram uns quatro ou cinco dias. Todos os professoresfalaram sobre o assunto. Os alunos ouviram com maior ateno

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    muitos, claro, cheios de fingimento, com aquela cara de no--comigo comum a quase todo mundo.

    A maioria parou com a implicncia e resolveu dar um descanso praVnia.

    A maioria, no, todos. Carmita no se emenda mesmo. Pensa queela tem medo de suspenso ou advertncia na agenda?

    Que nada.Ela acha graa!

    Se eu for suspensa sacode os ombros, despreocupadamente ,vou pra praia. E l em casa no tem ningum pra ler a agenda...

    Melhor deixar pra l, o que Vnia diz. Eu tento. Lembro que deve

    ser chato no ter ningum por perto nem pra dar uma bronca na gente,como o caso da Carmita. Tento fuar e encontrar alguma coisa boanela. Mas tem horas, ah, tem horas que difcil engolir as implicncias.

    Quer ver?Ontem, eu e Vnia estvamos saindo do colgio quando Carmita

    apareceu atrs de ns com sua turma.Olha, l vai a pretinha! disse.

    A, Brbara, sempre maldosa e de combinao com a Carmita,perguntou:

    Qual delas? isso a. Agora a maior novidade entre elas me chamar de

    venha a gostar ou deixar de me incomodar. No vou fingir.Mas quer saber de uma coisa, quer? No faz nem bem nem mal a

    Acontece que eu no tenho a pacincia da Vnia nem sei mecontrolar to bem quanto ela. No, no vou dar um soco na Carmita.Mas eu tenho l os meus truquezinhos e, quando ela ainda estava rindo,virei e soltei o primeiro:

    Branca azeda!Preconceito, n?Apesar de tudo o que ouvimos naquela semana, o preconceito no

    acaba com belas palavras ou com boas intenes. Ele acaba

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    verdadeiramente quando comeamos a respeitar um ao outro em nossasdiferenas.

    Branca azeda!Algumas vezes essas duas palavras funcionam. Noutras, no. Um

    chato um chato e nada que a gente faa consegue mud-lo. Carmita ,definitivamente, uma chata.

    Apelido pra l, apelido pra c, e volta e meia a professora Renataest dando bronca na gente, dizendo que estamos sendo preconceituosasumas com as outras e que o preconceito uma coisa danada detraioeira quando a gente menos espera, est sendo preconceituosa.

    O que ela queria dizer?

    mesma que chama as colegas dedisse ela. Qual a diferena? Nenhuma. As duas esto sendo

    preconceituosas.Falou e disse!Muitas vezes, acho que, no fundo, no fundo, a gente at se diverte

    com toda aquela implicncia de parte a parte e que a sala de aula ficariameio sem graa se fosse diferente, com todo mundo se tratando por

    fosse bem pior com todo mundo fingindo uma aceitao que no existeou escondendo seus verdadeiros sentimentos.

    Abaixo o politicamente correto!O mais engraado que, noutras ocasies, parece que tudo vai

    acabar e vamos comear a nos entender sem raiva boba e implicnciassem sentido. Sabe, tem semanas que a Carmita at esquece de ns; jhouve dia em que ela e as outras chegaram mesmo a puxar conversacom a gente.

    Eu e Vnia fizemos doce, s de farra.Qualquer hora falamos com elas disse Vnia, achando a

    maior graa das caras de boba que faziam.Tatiana acabou dando o brao a torcer. Resolveu falar com a gente.

    A verdade que comeou por puro interesse ela precisava de umacola pra prova de matemtica e s encontrou as respostas com Vnia, mas viramos amigas umas das outras.

    Sabe o que penso?

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    No fundo, no fundo, no vale a pena brigar por isso ou por aquilocom socos e palavres. Tem modos bem mais inteligentes.

    No, no so fceis. So mais inteligentes.Tem o silncio quando no h espao para as palavras e a boa

    educao.Tem o tempo quando se est com a razo e lutamos por aquilo em

    que acreditamos.Tem a boa vontade para explicarmos a quem no nos compreende e

    para compreendermos mesmo aqueles que esto errados.Tem at um sorriso...Um sorriso na hora certa abre portas e coraes. Pode mudar tudo e

    qualquer coisa.Acho mesmo que o problema deixa de ser problema quando

    comeamos a gostar de ns, como Vnia gosta de si mesma antes degostar dos outros. Ele deixa de existir quando a gente se sente bemsendo nica e to-somente o que .

    Pretinha, eu?No t nem a!

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    JLIO EMLIO BRAZ

    Nasci em 16 de abril de1959, na cidadezinha de

    Manhu-mirim, Minas Gerais,mas aos cinco anos vim para oRio de Janeiro com minhafamlia. Considero-me carioca,at porque penso que sercarioca no apenas umaquesto de naturalidade, mas,

    antes de tudo, de afinidade comesta cidade simplesmentemaravilhosa.

    Sou autodidata aprendi aler aos seis anos com gibis e aos

    quatorze escrevia meu primeiro texto e ganhava por ele.Profissionalmente, comecei aos vinte e um anos, por acaso, quandofiquei desempregado e fui escrever roteiros de histrias em quadrinhosde terror para a Editora Vecchi. Posteriormente, escrevi para outraseditoras brasileiras, como Globo, D'Arte e Nova Sampa, s para citaralgumas, e ainda escrevo para pequenas editoras norte-americanas.Tenho histrias em quadrinhos publicadas na Blgica, na Frana, emPortugal, na Holanda, na Alemanha, em Cuba e nos Estados Unidos.Posteriormente, escrevi livros de bolso do gnero western para vriaseditoras no Brasil e tenho at hoje 412 deles publicados, sob 39pseudnimos diferentes. Escrevi esquetes para o programa OsTrapalhes, da TV Globo, e roteiros para mininovelas para a televisoparaguaia. Atualmente, tenho livros publicados em mais de dez editorasbrasileiras e estrangeiras, num total de 73 publicados num universo de98 escritos e contratados.

    Se algum me perguntar como cheguei a me tornar escritor, eu nosaberia explicar. Escrever para mim , antes de qualquer coisa, umgesto de absoluta necessidade. Sou de famlia pobre, mas crescirodeado de livros e revistas graas a uma tia que, empregadadomstica na casa de uma famlia rica no Graja, bairro do Rio de

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    Janeiro, reunia elevava para mim todos os livros e revistas que ascrianas da casa no queriam mais. Eles foram os meus mestres e,reunidos, transformaram-se na faculdade formadora deste escritor quesou hoje. Aprendi com cada um deles e continuo aprendendo. Resolvi

    me dedicar quase inteiramente s crianas e aos adolescentes aoperceber que, poca que comecei a escrever para eles, a grandemaioria dos autores simplesmente negligenciava os temas da atualidadeque direta ou indiretamente diziam respeito a esse pblico. Sempregostei da polmica e do debate e encontrei na temtica social da maioriados meus livros um espao adequado para exerc-los, ao mesmo tempoque estimularia os jovens a fazer a melhor coisa da vida de qualquer ser

    humano e aquilo que o tornou verdadeiramente grandioso: pensar,refletir e, acima de tudo, questionar. Assim, fao uma literatura que,antes de tudo, se impe como questionadora.

    OUTRAS OBRAS D O AUTOR

    A coragem de mudar, juvenil, FTD, So Paulo, 1994.A histria azul. infantil, Paulinas, So Paulo, 1996.A histria de Lalo. Ao Livro Tcnico, Rio de Janeiro, 1993.A rua do ferrar juvenil, Atual, So Paulo, 1995.Abre-te, Ssamo! juvenil, FTD, So Paulo, 1993.Algum lugar, lugar nenhum, juvenil, Ao Livro Tcnico, Rio de Janeiro,

    1992.Anjos no aqurio, juvenil, Atual, So Paulo, 1992.Asimove os perseguidores da lua. juvenil, FTD, So Paulo, 1994.Avio, juvenil, FTD, So Paulo, 1995.Bilhetinhos. juvenil, Ao Livro Tcnico, Rio de Janeiro, 1993.Biografia de Santo Antnio. quadrinhos, Vozes, Petrpolis, 1990.Cu vermelho. juvenil, Ao Livro Tcnico, Rio de Janeiro, 1995.Coisas da vida. juvenil, Ao Livro Tcnico, Rio de Janeiro, 1996.Crianas na escurido, juvenil, Moderna, So Paulo, 1991.Figli dei buio. Mondadori, Verona (Itlia), 1996.In la oscuridad. Fondo de Cultura Econmica, Mxico, 1994.Kinder im Dunkeln. Verlag Nagel & Kimche/SaintGabriel,

    Zurique(Sua)/Viena (ustria). (Ttulo premiado)

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    Depois que papai se foi... juvenil, FTD, So Paulo, 1993.Desprezados Futebol Clube, juvenil, Moderna, So Paulo, 1997.Enquanto houver vida, viverei, juvenil, FTD, So Paulo, 1992.Fala comigo, pai! juvenil, Moderna, So Paulo, 1995.

    Famlia, juvenil, Ao Livro Tcnico, Rio de Janeiro, 1996.Felicidade no tem cor. juvenil, Moderna, So Paulo, 1994.Histria de Nossa Senhora Aparecida, quadrinhos, Vozes, Petrpolis,

    1991.Luiz Gama: de escravo a libertador. juvenil, FTD, So Paulo, 1991.Maria, religioso, Vozes, Petrpolis, 1995.Megalpolis. juvenil, Ao Livro Tcnico, Rio de Janeiro, 1995.

    Meninos e meninas. (Coleo Pr- Escolar), Arco-ris, Curitiba, 1994.Meu Crio de Nazar, juvenil, FTD, So Paulo, 1994.Meu pai, meu heri & seus heris. juvenil, Editora do Brasil, So

    Paulo, 1995.Na selva do asfalto, juvenil, Moderna, So Paulo, 1994.Numa vspera de Natal, juvenil, Moderna, So Paulo, 1994.O legado de Aranda. juvenil, Saraiva, So Paulo, 1996.O mistrio do homem amarelo. juvenil, L, Belo Horizonte, 1997.O mexicano, (adaptao) juvenil, Scipione, So Paulo, 1996.Ora pro nobis. juvenil, Ao Livro Tcnico, Rio de Janeiro, 1996.Os bebs da Babilnia, juvenil, Atual, So Paulo, 1993.Os bons de bola. juvenil, FTD, So Paulo, 1994.Os liberteiros. juvenil, FTD, So Paulo, 1992.Papai Noel de monto, infantil, Ao Livro Tcnico, Rio de Janeiro,

    1994.Pivete, juvenil, Editora do Brasil, So Paulo, 1989.Rua 46. juvenil, Saraiva, So Paulo, 1995.Saguairu. juvenil, Atual, So Paulo, 1988.Sete faces da fico cientfica, juvenil, Moderna, So Paulo, 1992.Sete faces da primeira vez. juvenil, Moderna, So Paulo, 1993.Sete faces do amor. juvenil, Moderna, So Paulo, 1992.Sete faces do crime, juvenil, Moderna, So Paulo, 1992.Sete faces do destino, juvenil, Moderna, So Paulo, 1993.Sete faces do heri, juvenil, Moderna, So Paulo, 1993.Sete faces do humor, juvenil, Moderna, So Paulo, 1993.

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    Sete faces do terror, juvenil, Moderna, So Paulo, 1992.Sete faces dos contos de fadas. juvenil, Moderna, So Paulo, 1993.S entre ns. juvenil. Ao Livro T c- nico, Rio de Janeiro, 1993.Sol ardente, juvenil, Atual, So Paulo, 1997.

    Sujo! juvenil, FTD, So Paulo, 1995.Tantos natais, juvenil, Paulinas, So Paulo, 1997.Um certo Kobayashi Maru. juvenil, FTD, So Paulo, 1994.Um conto de fim de mundo, juvenil, FTD, So Paulo, 1995.Um sonho dentro de mim. juvenil, Moderna, So Paulo, 1994.Uma pequena histria de natal. juvenil, Atual, So Paulo, 1990.Zumbi, juvenil, Memrias Futuras, Rio de Janeiro, 1995.

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    editora scipionewww.scipione.com.br

    Edio - Samira Youssef CampedelliAssistncia editorial - Edgar CastroPreparao - Maysa Mono GabrielliReviso - Egl Fontes Guimares e Lia Fontes GuimaresCoordenao de arte - Maria do Cu Pires PassuelloProjeto de capa - Didier D. C. Dias de MoraesEditorao eletrnica de capa - Wladimir Senise e Mansa Iniesta MartinIlustraes - Renato Alarco

    Diagramao - Jean Cludio da S. Aranha e Andr Marsiarelli

    2004ISBN 85-262-421 5-6-ALISBN 85-262-4216-4-PR

    2 EDIO

    (7 impresso)Impresso e AcabamentoGrfica Bandeirantes

    Dados internacional da Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Braz, Jlio Emlio, 1959-Pretinha, eu? / Jlio Emlio Braz. - So Paulo:Scipione, 1997. - (Srie Dilogo)

    1. Literatura infanto-juvenil. I. Titulo. II. Srie.