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Teologia d a Convergênci a ênfase nas religiões afro-brasileiras ARQUEOFILIA NO CANDOMBLÉ UM OLHAR ATRAVÉS DA OBRA DE MÃE STELLA MÍSTICA E RELIGIÃO NAS RELIGIÕES DE TRADIÇÃO ORAL JUREMA REPRESENTAÇÕES URBANAS E DRAMA SOCIAL AFRO-INDÍGENA A no I I - Nº2 - março de 2011

Teologoa da Convergência 2nd Ed

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Segunda edição da revista Teologoa da Convergência

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Page 1: Teologoa da Convergência 2nd Ed

Teologia da Convergênciaênfase nas religiões afro-brasileiras

ARQUEOFILIA NO CANDOMBLÉUM OLHAR ATRAVÉS DA OBRA DE MÃE STELLA

MÍSTICA E RELIGIÃONAS RELIGIÕES DE TRADIÇÃO ORAL

JUREMA REPRESENTAÇÕES URBANAS

E DRAMA SOCIAL AFRO-INDÍGENA

Ano I I - Nº2 - março de 2011

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Teologia da Convergência é uma publicação da Faculdade de Teologia Umbandista (FTU)

Diretor Geral da FTUF. Rivas Neto (Pai Rivas)

Vice-Diretora Geral da FTUMaria Elise Rivas

(Sacerdotisa Yamaracyê)

Coordenação do Curso e Editor-Chefe

Cassiano Terra Rodrigues

Jornalista responsável e diagramaçãoRodrigo Mariano

Webdesigner e responsável técnicoGerson Albuquerque

Alexandra Abdala

FotosAcervo fotográfico da FTU

Expediente

FACULDADE DE TEOLOGIA UMBANDISTA

Avenida Santa Catarina, 400 – Vila Alexandria04635-001 – São Paulo – SPTelefone 55 11 5031-8852

www.ftu.edu.br - [email protected]

ênfase nas religiões afro-brasileirasAno II - Nº 2 - março de 2011

Teologia e FTU Faculdade de Teologia Umbandista

pág. 5

A contribuição da FTU para o estudo sistematizado da Teologia com ênfase em

Religiões Afro-brasileiraspág. 3

Jurema: Representações urbanas e drama social afro-indígena

pág. 8

Mística e Religião: vestígios da experiência mística nas religiões de

tradição oral – o caso do Candomblépág. 15

Uma aldeia de todas as corespág. 23

Arqueofilia no Candomblé:um olhar através da obra de Mãe Stella

pág. 28

Entrevista - Rumpi de Xangôpág. 37

Teologia da Convergência

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Editorial

A contribuição da FTU para o estudo sistematizado da Teologia com ênfase em Religiões Afro-brasileiras

Foi com imensa alegria e uma certa apreensão construtiva que recebi e aceitei o convite de assinar o editorial desta se-gunda edição. Alegria por encontrarmos em mais uma iniciativa da FTU (Faculdade de Teologia Umbandista) a busca constan-te pela difusão da Teologia com ênfase em Religiões Afro-brasileiras assumindo sua perspectiva policêntrica, multirreferencial e, porque não, polissistemática. Daí a jus-tificativa da minha apreensão. Por ser algo inédito na Academia se faz necessário um grande investimento de tempo e pesquisa na construção de suas bases de discussão, principalmente quando se propõe a seme-lhança da Ciência não colocar uma última resposta, promovendo sempre um ciclo de revisão crítica contínua.

Atualmente no meio acadêmico ob-servamos um discurso recorrente, às vezes muito próximo do ideológico, sobre inter-disciplinaridade. De maneira quase para-doxal as Humanidades hoje são espaços de excelência para a verificação de como este pensamento é evocado constantemente, porém pouco exercitado. A seleção dos arti-gos desta edição bem como as matérias que complementam o seu conteúdo apresenta um esforço concreto da FTU para, além de evocar, vivenciar esta interdisciplinaridade.

Os pressupostos deste campo inter-disciplinar podem ser bem compreendidos no texto do prof. F. Rivas Neto (Pai Rivas) quando apresenta o status quaestionis da Teologia e o modo como a FTU o trabalha, estabelecendo diálogos profícuos e profun-dos com todas as áreas da Ciência por um lado e respeitando todas as manifestações religiosas, calcadas na crença, por outro.

O prof. José Flávio Pessoa de Bar-ros, Antropólogo da Religião e Sacerdote das Religiões Afro-brasileiras, apresenta o artigo “Jurema: Representações urbanas e drama social afro-indígena” onde exercita a reflexão sobre a Jurema e suas múltiplas possibilidades de atuação em um sistema onde negros, índios e colonizadores euro-peus se imbricam construindo uma nova ideia de imaginário, ou melhor, uma identi-dade genuinamente brasileira.

Na sequência o prof. Volney J. Berkenbrock, Cientista da Religião e Frei Católico, insere no nosso presente diálogo o artigo intitulado “Mística e Religião: vestí-gios da experiência mística nas religiões de tradição oral – o caso do Candomblé”. As-sim como o primeiro artigo, o prof. Volney toca em assunto amplamente discutido nas dependências da FTU. A experiência místi-

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Editora convidada: Maria Elise Rivas, teóloga e sacerdotisa.

No campo acadêmico atua como vice-coordenadora e

professora da FTU

ca é um fenômeno religioso que pode ser constatada em muitas religiões. Na tradição do Livro, a Academia faz uso da exegese ou mesmo da hermenêutica dos textos escritos pelos próprios místicos. Como identificar a mística na Tradição Oral? Este artigo busca contribuir para a discussão utilizando como exemplo o assentamento do Orixá no Can-domblé.

No sentido de transitar entre Ciência e Religião, apresentamos uma matéria so-bre o Toque de Caboclo. Um rito realizado nas dependências da FTU no mês de fe-vereiro que possibilitou o encontro de vários sacerdotes e sacerdotisas das Religiões Afro-brasileiras. Foram mais de cinquenta ter-reiros de diversos lugares do Brasil que se confraternizaram tendo o Caboclo, o Orixá Brasileiro, como ponto de convergência.

O último artigo é da profa. Dilaine, Historiadora e Cientista da Religião. Ela dis-cute a “Arqueofilia no Candomblé: um olhar através da obra de Mãe Stella”. Interessante a abordagem da profa. Dilaine, pois trabalha a expressão da tradição Oral na tradição Es-crita quando lança mão de um livro de Mãe Stella, sacerdotisa, para discorrer sobre o assunto.

Como não poderia ser diferente, valori-zando o sacerdócio nas Religiões Afro-brasilei-ras, apresentamos uma entrevista com o Pai Wellington de Xangô que possui seu terreiro na cidade de Caldas Novas – Goiás.

Dentro desta Unidade que se expressa na Diversidade, convidamos os leitores para penetrar no estudo sistematizado da Teolo-gia com ênfase nas Religiões Afro-brasilei-ras. Sê bem-vindo!

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TEOLOGIA E FTU FACULDADE DE TEOLOGIA UMBANDISTA1

pág.5

_________________________________________________1 Queremos reiterar após a leitura atenta do texto, o porquê do conteúdo curricular preconizado pela FTU. Nele es-tão inclusos, pelos motivos aludidos, várias disciplinas tais quais: Sociologia, Psicologia, Filosofia, Botânica, Biologia Humana, Meio ambiente e Espiritualidade, Música, Medicina Integrativa, Teologia das religiões ocidentais e orientais, Filosofia do direito, Hermenêutica, entre outras. É um estudo imparcial e promove o diálogo com os vários setores do conhecimento humano.Esta abordagem que não desdenha das “crenças religiosas” promove o Conhecimento Religioso que é imparcial tal qual o Conhecimento Científico. Eis o porquê da Faculdade de Teologia Umbandista, que procura interfacear o Conheci-mento Religioso com o Conhecimento Científico.

Apesar dos avanços inquestionáveis da ciência e da grande sofisticação tecnológica, os problemas milenares da humanidade con-tinuam os mesmos. As religiões por sua vez mais interes-sadas no marketing religioso (há honrosas exceções) e muitas delas, de há muito, por posicionarem-se de forma fundamentalista deflagraram ignominiosas guerras fratricidas. Por isso, encontram-se alheias aos avanços e descobertas das ciências. Acreditamos que cabe à Teologia (Conheci-mento Religioso), pois sendo uma disciplina acadêmi-ca, pautada no senso crítico fazer a interface do diálogo entre ciência e religião. É com este escopo que surgiu a FTU – Faculdade de Teo-logia Umbandista com ênfase nas religiões afro-brasileiras, justamente para facilitar e promover esse diálogo à exaustão.

Palavras-chave: Ciência, FTU, Medicina Inte-grativa, Religião, Teologia

Resumo

Abstract

F. Rivas Neto

Despite the unquestionable science advances and great technological sophistica-tion, the age-old problems of humanity re-main the same. Religions more interested in religious marketing (there are honorable exceptions) and many of them, for a long time now, by positioning themselves as fundamentalist, deflagrates shameful fratricidal wars. Ber-cause of this, they are unrelated to the ad-vances and discoveries of science. We believe that it is for Theology (Re-

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ligious Knowledge), because being an aca-demic discipline, based on critical thinking to make the dialogue interface between science and religion. It is with this scope that came the FTU - School of UmbandaTheology, with an emphasis on afro-brazilian religions, pre-cisely to facilitate and promote such dialogue to exhaustion.

Keywords: Science, FTU, Integrative Medi-cine, Religion, Theology.

TEOLOGIA Apesar dos avanços inquestionáveis da ciência e da grande sofisticação tecnológica, os problemas milenares da humanidade con-tinuam os mesmos. As religiões por sua vez mais interes-sadas no marketing religioso (há honrosas exceções) e muitas delas, de há muito, por posicionarem-se de forma fundamentalista deflagraram ignominiosas guerras fratricidas. Por isso, encontram-se alheias aos avanços e descobertas das ciências. Como simples exemplo, citamos que no estudo da Bíblia podem-se constatar as afirmações de que a Terra teria sua origem há mais ou menos seis mil anos, e que cada forma de vida teria sido construída, uma a uma pelo Criador. Não queremos discutir a fé, as crenças, todavia como negar que o planeta tem no mínimo 4,3 bilhões de anos? Que a evolução das espécies propugnada por Charles Darwin é uma realidade inconteste, e que ninguém de bom senso pode negar? Como querer ou aceitar o criacionismo, fixismo das espécies, ao invés do transformismo, pois evolução é mudança, adaptação? Esses e outros conflitos, entre ciên-cia e religião tem sido uma constante, im-pedindo o salutar diálogo, que sem dúvidas pode e deve favorecer a qualidade de vida de nossa sociedade planetária. O diálogo de-veria ser do Conhecimento Científico com o Conhecimento Religioso e não com crenças religiosas. O Conhecimento Religioso tal qual o Conhecimento Científico é imparcial, o que não ocorre com as “crenças religiosas” Acreditamos que cabe à Teologia (Conhe-cimento Religioso), pois sendo uma disciplina acadêmica, pautada no senso crítico deve fazer a interface do diálogo entre ciência e religião. É com este escopo que surgiu a FTU – Faculdade de Teologia Umbandista com ênfase nas religiões afro-brasileiras, justa-mente para facilitar e promover esse diálogo à exaustão.

Colocado o fato, os obstáculos que vi-mos impedem o diálogo ciência e religião, mas que podem ser resolvidos pela Teologia, interfaceando religião e ciência. Do que expusemos melhor se en-tenderá nossas discussões entre ciência e re-ligião ao demonstrar a viabilidade de concilia-ção entre ciência e religião por intermédio da Teologia – Conhecimento Religioso.

FTU - PRIMEIRA INSTITUIÇÃO DE ENSINO SUPERIOR EM TEOLOGIA AFRO-BRASILEIRA Há alguns anos os cursos de Teologia Livre que se enquadravam nos padrões do Ministério da Educação (MEC) foram autoriza-dos e credenciados, portanto legalizados e le-gitimados a promoverem o ensino superior da Teologia. É importante que se saliente que an-tes de credenciamento e autorização pelo MEC todas as Teologias eram livres. Na atualidade há mais de uma centena de Faculdades de Teologia, com status de curso superior, portanto, com ensino de qualidade e conteúdos universitários. Não se pode ensinar Teologia só pelo que se sabe da Religião, que embora tenha nobilitante atividade, se dirige à crença, à fé e não ao estudo do fenômeno, seja ele sócio-cultural, antropológico ou de outras áreas do saber acadêmico, ou seja, do senso crítico. Senso crítico na religião é Teologia; por sua vez as crenças religiosas confessionais e às vezes passionais (não isentas) são rela-tivas à religião, que respeitamos e achamos indispensáveis na vida do cidadão planetário interessado na manutenção homeostática do planeta e de sua sociedade. Pelos simples motivos de nossa alusão e não precisa mais do que isso, pois o con-ceito é muito simples, chegamos à conclusão que Teologia não é religião, nem ciência, mas sim a própria interface entre ambas. Sim, a Teologia em suas duas vertentes permite aproximá-las, e mais, o diálogo prolífico en-tre elas. Após esta ligeira explicação pode-se questionar como se dá o fenômeno. Diremos que o processo é muito sim-ples, principalmente na FTU – Faculdade de Teologia Umbandista – Teologia com ênfase em Religiões afro-brasileiras, a primeira insti-tuição de ensino superior autorizada e creden-ciada pelo MEC. O processo deve-se ao fato de a Teologia ter uma vertente na academia, no denominado saber religioso; a outra ver-tente na religião, nas crenças religiosas. Com posição privilegiada, pois se en-contra na ciência e na religião, a Teologia pro-

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move, e isto é deveras importante, a decodi-ficação e a tradução da ciência para a religião e vice-versa. Com isso torna-se o instrumen-to, o processo e ferramenta que promove a interface entre ambas, ou seja, o diálogo, a reconciliação entre elas. Defendemos, segundo nossos pressu-postos, que a Teologia é a própria interface, a ponte construída, permitindo o trânsito bidi-recional. Esta é a intenção da FTU, de sua Te-ologia, promover o diálogo que dirima defini-tivamente o conflito entre ambas, na certeza dessa conciliação histórica e redentora, resul-tando em ganhos inestimáveis para a socie-dade planetária nos níveis sociais, culturais, políticos, econômicos e, principalmente, es-pirituais, que mudarão os paradigmas que atravancam o surgimento de novos padrões civilizatórios, reunindo o homem e proporcio-nando a paz individual que se concretizará na tão almejada Paz Mundial. Nas linhas anteriores apontamos que credenciadas pelo MEC temos mais de uma centena de Faculdades de Teologia, sendo a FTU a única com ênfase em religiões afro-brasileiras, que representa um avanço inques-tionável para a consolidação da democracia e pelos aspectos isonômicos. Credenciar e re-conhecer a FTU é uma sinalização efetiva na erradicação de preconceitos de séculos, como também permite a inclusão total, paradigma das Tradições afro-brasileiras. Alvissareiros são os tempos presentes que descortinam auspicioso destino a todos os brasileiros, a todos cidadãos planetários.

Bem, após nossas considerações so-bre a FTU e sua Teologia da Convergência (Religião e Ciência), não podemos olvidar as Teologias múltiplas, mas não há de se negar as Teologias: Sistemática, da Libertação, da Prosperidade e da Convergência, esta última preconizada pela FTU. Sabendo-se dos reais motivos da Te-ologia propugnada pela FTU, precisamos demonstrar alguns temas nevrálgicos, de muito conflito entre ciência e religião que é a criação do universo e do homem, visto que a ciência tem uma visão diversa da grande maioria das crenças religiosas. Afinal, quem está com a razão, a ciên-cia ou a religião? As duas, segundo seus pres-supostos estão cobertas de razão e certezas.Poderíamos questionar que muitas religiões são criacionistas, fixistas, misóginas, ho-mofóbicas, portanto em total desalinho com os tempos pós-modernos. Achamos justo que cada religião defenda seus conceitos que por nós são respeitadíssimos. Por nossa vez, ire-mos demonstrar, na medida do possível, que não há conflito entre as crenças das religiões afro-brasileiras e as ciências várias, mas para isto ser plausível é necessário decodificarmos e traduzirmos nossa linguagem (semiótica), epistemologia (conhecimento) e aspectos inerentes ao Ser (ontologia) para a lingua-gem das ciências. Felizmente temos como decodificar e traduzir sem danos ou embar-gos para ambas.

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Jurema: Representações urbanas e drama social afro-indígena

José Flávio Pessoa de Barros

Professor Doutor (USP), pesquisador da UERJ e consultor ad-hoc da FAPERJ

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O presente trabalho é uma reflexão sobre a Jurema e suas múltiplas acepções, e de como elas se inserem nas diferentes representações contidas no sistema de crenças, onde negros, índios e colonizadores euro-peus se mesclaram e foram partícipes desse imaginário, cada um deles contribuindo de ma-neira efetiva para as diferentes concepções formadoras da nacionalidade e da identidade brasileira. O que chamamos aqui de Com-plexo da Jurema está relacionado às trocas entre estes elementos formadores da socie-dade nacional desde o início da história do Brasil. Estas diferentes etnias construíram um imaginário em que participaram, ora como opositores, ora como aliados, formando uma cultura extremamente complexa e refinada. A maior proximidade deu-se entre índios e negros que, desde o início da colonização, estavam juntos, algumas vezes nos quilom-bos como subjugados, outras em situação de conflito, acompanhando os interesses do col-onizador, e ainda como grupos independentes que conviviam e trocavam influências entre si. Trata-se, portanto, de uma longa jornada que vai da escravidão e se estende até os dias atuais.

Não pretendemos refazer essa história e sim falar do entrelaçamento dessas represen-tações enquanto grupos subalternos e coloca-dos à margem da cultura dominante. Os sa-beres originais possibilitaram um diálogo onde plantas, mitos, deuses e ancestrais foram os amálgamas de uma nova forma de relação, construção identitária e resistência cultural, tanto em nível ideológico, quanto econômico, possibilitando novos arranjos sociais e forne-cendo elementos significativos e respostas ao processo político imposto pelo poder das elites econômicas. O texto contido na música sagrada das religiões de matrizes africanas, especial-mente na Umbanda, será um dos fios condu-tores das análises por nós realizadas, sem-pre procurando mostrar as conexões, entre outras representações religiosas onde a Jurema ocupa um lugar privilegiado. Nossa maior pre-ocupação está contida justamente no papel que Umbanda teve e continua tendo na dis-seminação destes conteúdos simbólicos. O uso do meio-ambiente possibilitou a utilização recíproca de símbolos e a construção de uma cosmogonia. O mundo vegetal desem-

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penhou um papel significativo na sobrevivên-cia, tanto físico-biológica, quanto material, e, em especial, nas concepções ideológico-simbólicas, tornando-as plenas de significado cultural e expressas em um novo contexto sócio-histórico. A vida vegetal é um dos segmen-tos mais óbvios de qualquer tipo de cultura, seja ela primitiva ou desenvolvida, antiga ou moderna (FORSBERG, 1960). Quatro grupos sociais serão particularmente destacados na tentativa de elucidação deste complexo cul-tural: um grupo indígena – os Kariri-xocó de Alagoas – e os integrantes religiosos de três diferentes expressões das chamadas re-ligiões afro-brasileiras, inseridas dentro de um contexto urbano: a Umbanda, o Catimbó e o Candomblé.

Trabalho de campo

A metodologia utilizada procurou iden-tificar os vegetais utilizados nas cerimônias religiosas pelos grupos em questão, uma descrição sucinta dos rituais onde se desen-rolaram as cerimônias religiosas, bem como uma análise simbólica dos textos utilizados como cânticos nos rituais de Umbanda e nos Candomblés de caboclo de origem Bantu situados na periferia de Alagoas e Rio de Ja-neiro. Alguns dados preliminares utilizados em pesquisa anterior e já publicados (PES-SOA DE BARROS e MOTA, 2002) também serão anexados e farão parte das análises já realizadas no final da década de 90, assim como novas questões surgidas a partir da análise dos textos das canções empregadas nas cerimônias onde as diferentes represen-tações sobre a Jurema aparecem. Existem, portanto, vários níveis de análise, sendo seu principal enfoque o inter-disciplinar, pois, à simbologia privilegiada pela visão antropológica, unem-se as taxonomias biológicas e populares, como também o es-tudo farmacológico dos princípios ativos en-contrados nas espécies em questão. Também serão considerados alguns aspectos ligados a etnomusicologia e a etnobotânica, procuran-do, reconciliar o saber empírico das comuni-dades em contato íntimo com a natureza e o saber acadêmico, conforme preconizado por Pelt (1983).

A Jurema é conhecida como a “droga do sertão” e o seu nome vem do tupi, yu-r-ema. Existem cerca de sete espécies de arvores ou arbustos conhecidas sob o nome genérico de Jurema. São classificações popu-lares: Jurema-mansa, Jurema-branca, Jure-ma-de-caboclo, Jurema-de-espinho, Jurema-preta e Jureminha. Maria Thereza Lemos de Arruda Ca-margo (1988), considerando as confusões a respeito das classificações cientificas da Ju-rema, sugere que se continue a aceitar as di-visões propostas por Pio Corrêa (1926):

As plantas

1. Jurema-preta: Mimosa hostilis Benth e Acacia hostilis Benth. Sinonímia popular: espinheiro.

2. Jurema-branca: Acacia piauhyen-sis Benth, sinonímia popular: espinheiro-bravo; Pithecolobium acacioides Ducke, sinonímia popular: Arapiraca (Pará), es-ponjeira; Phitecolobium dumosum Benth, sinonímia popular: rompe-ibao, acatrapa; Phitecolobium diversifolium Benth, sinon-ímia popular: arabita (Piauí), brinquedo-de-macaco (Bahia); Mimosa verrucosa Benth, sinonímia popular: Jurema-das-matas, Jurema-de-espinho ou Jurema-das-oieiras.

3. Jurema: Phitecolobium tortum Mart; Acacia vicentis Griseb e Acacia vi-centis Benth. Sinonímia popular: angico-branco, jacaré, vinhático-de-espinho.

4. Jureminha: Vitex agnus-castus Verbenaceae; Eupatorium inulaefolium HBK; Lippia chamissois Die verbenaceae. Sinonímia popular: Jurema-branca

Esta última classificação, Mota (1987) nos informa que é usada entre os Kariri-xocó e chamada de Jurema-branca. No Rio de Ja-neiro, também é conhecida com Jureminha e utilizada em vários rituais de Umbanda e Candomblé (Angola), especialmente durante o período de iniciação. Esta planta é usada desde a Idade Média, na Europa, como um inibidor da libido. As espécies vegetais acima identifica-das fazem parte das cerimônias e rituais dos grupos anteriormente citados, especialmente sob a forma de infusão, recebendo, generi-camente o nome de “Vinho da Jurema”. Mais adiante examinaremos os diferentes contex-tos onde esta bebida é ritualmente ingerida.

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Já em 1782, existe a menção à uti-lização de uma planta chamada de Jurema, que é descrita minuciosamente, embora o texto não apresente a classificação científica. Presume-se, no entanto, que se trata da Ju-rema-de-espinho. O autor, Francisco Antônio de Sampaio (1969), aponta, no livro História dos Reinos Vegetal, Animal e Mineral do Bra-sil, pertencente à Medicina as propriedades adstringentes e utilização na medicina popu-lar como um poderoso agente contra o vene-no da mandioca-brava. Nesta publicação, en-contram-se, também, alguns desenhos onde se reconhece os espinhos que fazem parte da chamada Jurema-de-espinhos ou ainda Ju-rema-preta. O uso popular desta espécie a descreve como aquela que “endoida” e proporciona “visões e sonhos” aos que a utilizam em seus contextos religiosos. Estas espécies são em-pregadas na preparação do chamado “Vinho da Jurema”, e alguns deles possuem efeitos reconhecidamente alucinogênicos, pois con-tém em sua composição dimetiltropitamina, substância relacionada com a bufotorina e a serotonina, capazes de atuar sobre os cen-tros nervosos. Porém, conforme Schultes, os efeitos só existem na presença de um inibidor da monoamina oxidase, visto que as triptami-nas, segundo este autor, não produzem aluci-nações se tomadas oralmente, o que nos traz a seguinte questão: para que a ingestão atin-ja o efeito desejado nos rituais (alucinatórios, premonitórios etc.) é necessário que haja a inclusão de um elemento que potencialize o alcalóide. E hoje já está comprovado que os compostos triptamínicos podem ser ati-vos oralmente. No entanto, o vinho utilizado nas comunidades indígenas dos Kariri-xocó, segundo eles, não é mais o da espécie que produz alucinações; foi substituída pela Ju-rema-mansa. Entretanto, os “encantados ou espíritos da floresta”, continuam presentes na Cerimônia do Toré, orientando e aconse -lhando os que buscam a relação com as ro-tinas extraordinárias dos ancestrais. O mesmo acontece em relação à bebida que também é chamada vinho, nos Candom-blés Bantu do Rio de Janeiro (Candomblés Angola) e em alguns estados nordestinos, onde ocorrem as cerimônias dos Catimbós, especialmente no interior. No caso flumi-nense, a espécie utilizada, Vitex agnus-cas-tus, não possui propriedades alucinógenas e a sua ingestão diminui simplesmente a libido. A espécie utilizada nos Catimbós, do mesmo

História modo, não apresenta efeitos alucinogênicos, o que não permite a afirmação de que o transe é provocado por agentes físico-químicos. Não existe, entretanto, uma bibliografia que asse-gure que somente plantas não-alucinogêni-cas sejam utilizadas atualmente nos dife-rentes contextos religiosos do Complexo da Jurema. Andrew Weil (1972) usa o conceito de placebo cultural para explicar a presença e a expressão das expectativas sociais que poderiam estar relacionadas à presença do alcalóide, mesmo na ausência dos princípios ativos. Trata-se, portanto, segundo esse au-tor de uma indução cultural, embora a res-posta fisiológica não possa ser ignorada, o que significa dizer que a bebida sagrada, e socialmente compartilhada, é simbolicamente produzida. Entre os Kariri-xocó, a Jurema não é só uma planta, é a divindade formadora do grupo. Na Umbanda, esta divindade pode por vezes também ocupar esta posição como chefe da falange das caboclas, situando-se dessa forma também como mito de origem. O vinho que algumas vezes acompanha o culto aos espíritos dos índios, considerando seus aspectos químicos, não é um indutor ao transe, mas uma celebração à maneira de pensar e vivenciar a representação do indí-gena brasileiro. Nos Candomblés Angola, a planta ocu-pa novamente uma posição central, porém, a espécie utilizada não induz a nenhum es-tado alterado de consciência. O segredo da utilização desse símbolo tão abrangente está relacionado aos saberes próprios de cada um desses grupos culturais. A composição do vinho, algumas vezes secreta, está sempre envolta na magia que estas representações são capazes de evocar. O uso do “Vinho da Jurema” foi proibi-do em muitos momentos da história brasilei-ra e os seus seguidores eram chamados de “adjuntos da Jurema”. Relatos mostram que já em 1758 havia uma forte a repressão ao uso desta bebida, descrevendo inclusive a morte de um índio da aldeia Mepibu, onde todos os participantes daquele ritual foram presos. Câmara Cascudo lembra também o viajante Henry Coster relata que as maracas utilizadas nos rituais indígenas eram por es-tes consideradas como sagradas, e tratando os cachimbos da mesma maneira. Entre os Kariri-xocó, até hoje cachimbos e maracás são também objeto de cuidados especiais e considerados sagrados da mesma forma.

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A Umbanda guarda, nos cantos dedica-dos à cabocla Jurema, muitas palavras e ima-gens relacionadas, tanto aos ritos do Catim-bó, quanto aos grupos indígenas nordestinos. Uma de suas canções lembra “a cor da cabo-cla Jurema”, verde como a cor de todas as folhas que são utilizadas nos diversos rituais, e informa que ela nasceu no Juremá (lugar onde é realizado o Culto do Toré) e chama, a todos aqueles que cultuam os espíritos de caboclos, de juremeiros, palavra que também se refere àqueles que consomem o vinho. A propriedade de cura também é res-saltada quando o verso poético das canções lembram o poder da cura, tanto física, quan-to espiritual que a infusão é capaz de trazer. Uma das Juremas decantadas nos cultos um-bandistas é a “Jurema-das-matas”, que faz alusão ao espírito assim denominado, clas-sificando como um tipo de Cabocla Jurema, como a das matas. Entretanto, este nome também está relacionado, em outro contexto social (índios), a uma das espécies que pro-duz alcalóide. Outra questão importante é que a par-ticipação conjunta de índios e negros nos quilombos foi capaz de produzir mais do que apenas representações simbólicas comuns, mais tarde estendidas às comunidades de Umbanda. Estas habitavam o entorno, tanto dos grupos indígenas nordestinos, como das chamadas terras quilombolas ou terras de quilombo atuais. Desse entrelaçamento sur-giu também um novo personagem, conhe-cido como Ogum-Kariri. Este nome, que fala em Ogum, ancestral africano iorubá, somado ao segundo elemento da palavra, que se rel-aciona diretamente ao nome do grupo indí-gena, numa fusão, onde a homenagem alude aos tempos onde negros e índios conviveram como subjugados e subalternos. Os imigran-tes nordestinos saíram em busca de trabalho e de nova vida, promovendo a disseminação destas representações pelo país. Muitos religiosos, adeptos do Catimbó ou do Candomblé Bantu, também viajaram para várias partes do Brasil em busca de liberdade religiosa e trabalho. O Rio de Ja-neiro em especial foi um destes destinos em que os símbolos ganharam novos significados quando expressos nas criações musicais que louvavam os mitos e os locais de origem. A música tornou-se, portanto, como um lugar privilegiado de reflexão e prazer, onde se ex-altava a cor e o gosto agridoce de seu vinho. O discurso sobre a saúde ressaltou a utiliza-ção das diversas espécies destinadas à cura

física e espiritual, como também falou so-bre o lugar onde era possível aos imigrantes encontrar acolhimento e lenitivo para seus males.

Análise contextual: a Jurema decantada A Cabocla Jurema é classificada na Umbanda sob as seguintes denominações: a Jurema da Mata, a Jurema Caçadora, a Ju-rema da Praia, a Jurema da Cachoeira e a Jureminha. Os nomes Jurema da Mata e Jureminha fazem referência também às espécies vegetais como as descritas anteriormente. A primeira apresenta uma sinonímia científica e popu-lar chamada de Jurema-das-matas, Jurema-de-espinho ou Jurema-das-oieiras (Mimosa verrucosa Benth). A Jureminha (Vitex agnus-castus) é uma planta usada nos Candomblés de Angola, e mais raramente na Umbanda, não possuindo princípios ativos alucinógenos. Este nome também alude à Cabocla cultuada na Umbanda em sua forma infantil:

Ela é JureminhaMuito levada na Mata

Uma cobra coralQuase que lhe mata

Nesta segunda canção, o termo “mata” ocupa o lugar central que determina a fonte de seu poder ritual, falando o último verso da sua relação com o Kariri de Alagoas, que pode ser o grupo indígena ou o sertão, tam-bém chamado de Cariri:

A folha que a Jurema tem,Mata e cura também

As águas lá da cachoeiraNão matam a sede que a Jurema tem

Minha senhora lá das matasMe diga quem manda aiVenha pra perto pra verDona Jurema é do Kariri

A Cabocla Jurema também é dita das Cachoeiras e ao mesmo tempo ressalta a du-biedade das folhas utilizadas que podem cu-rar e matar, reforçando ainda mais os aspec-tos mágicos que envolvem a utilização das plantas:

Este cântico é do Catimbó, embora ra-ramente possa ser executado na Umbanda. A palavra Caboclinho fala de um ancestral do Catimbó que ocupava um dos postos centrais

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em seu culto e por isso era chamado de mes-tre. O seu grande saber é explicado na canção como tendo uma origem divina e que foi a ele concedido pela iniciação na fonte do Juremá, isto é, o local onde está plantada a árvore da Jurema sagrada. Os mestres do Catimbó são considerados como grandes curadores e o seu poder pode estar expresso tanto na mesa (altar onde são cultuadas as divindades do Catimbó) escura, isto é, da magia, como na mesa real, onde vivem os encantados e os santos católicos.

Caboclinho é bom mestreAprendeu sem se ensinar

Três dias passou dormindoNa fonte do Juremá

E quando se levantou Estava pronto para curarTriunfa na mesa escuraTriunfa na mesa real

Quem tiver seus malefíciosQue jogue pros lados do mar

As plantas sagradas e que curam são decantadas como fontes de poder, a canção diz que elas são da Umbanda e que aí tam-bém tem múltiplas funções. A palavra gongá, que significa altar, reforça o lugar sagrado onde elas são cultuadas. O Juremê ou Ju-remá é o espaço onde as divindades chama-das encantados são invocadas nos rituais do Toré, próximo à Jurema (árvore). É interes-sante notar a presença no canto também dos santos católicos, considerados igualmente poderosos e invocados para proteção.

O Juremê, O JuremáSuas folhas caem serenas, ó Jurema

Dentro deste GongáSalve o sol e salve a lua

Salve São SebastiãoSalve São Jorge GuerreiroQue nos deu a proteção

Ó Jurema

O canto abaixo se refere à Cabocla Iracema, que é considerada como perten-cente à falange, isto é, ao grupo da Cabocla Jurema. No livro Iracema, de José de Alen-car, a protagonista era a responsável pela manutenção dos objetos sagrados e do culto à Jurema. Seu padecimento teve muito mais a ver com o abandono de suas práticas reli-giosas do que com o amor dedicado ao es-trangeiro:

Iracema, IracemaMensageira de oxalá,

Vem das matas distantes,Desbravar os caminhos pra seus filhos ajudar,

Salve a cabocla IracemaEla é rainha é a guerreira Que mora na cachoeira

E vem na Umbanda (nesta banda) trabalhar (nos ajudar)

Salve a Cabocla Iracema!

Ela também, como Jurema, é a cabocla de penas, que assume todas as característi-cas dos indígenas descritos pela fase român-tica da literatura de José de Alencar, onde os cantos a descrevem com flechas douradas, capacetes de pena e filha de caciques, em muitas canções chamados de Tupinambá. A mesma relação de poder ou de chefe das falanges das caboclas é ressaltada nos versos de:

Brilhou um clarão no céuAi, ai, ai meu Deus, o que será?

Onde estarão as caboclas da Jurema Que até agora não apareceram

Chegou a JuremaEla veio das matas virgens

Ela é caçadoraChegou das matas virgens

Ela é caçadoraChegou das matas virgens

A Jurema Caçadora, a última das classifi-cações populares, reforça o mito da mulher livre, poderosa e provedora e senhora das matas:

O canto acima faz referência também à Ju-rema das Matas, onde ela reina enquanto ca-çadora e protetora das de animais e plantas e que vem agora para a cidade para proteger os umbandistas, também ditos filhos de fé:

Defuma com as ervas da Jurema,Defuma com arruda e guiné,alecrim, benjoim e alfazema, eu vou defumar filhos de fé.

A canção acima, também chamada de ponto na Umbanda, solicita proteção para as plantas através dos defumadores, considera-dos como purificadores de ambientes e pes-soas. Muitos dos vegetais utilizados nos ritos de purificação ou “banhos de folha”, quando empregados com a intenção de curar, são chamados de “Ervas da Jurema”. A defuma-ção também pode estar presente através dos cachimbos, no momento em que as baforadas

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de fumaça são lançadas sobre aqueles que se pretende purificar. Ao fumo dos cachimbos, quase sempre são adicionadas outras ervas conhecidas também como “da Jurema”. A de-fumação é comum em todos os contextos, sendo que na Umbanda o cachimbo é sub-stituído pelo charuto, largamente empregado pelos caboclos. Já os versos abaixo, falam do sertão nordestino, local onde são realizados os rituais da Jurema, algumas vezes também chama-dos de Cariri, indicando o lugar onde estaria o filho, de santo – como nos Candomblés de Angola – ou de fé – como na Umbanda – ou ainda um juremê – filho do Catimbó ou de um índio:

Ô, Juremê, ô, JuremáOlha teu filho onde estáÉ no sertão da JuremaOlha teu filho onde estáÉ no sertão do Juremá

Venha cabocla JuremaSua banda está toda em florCabocla de pena vai chegarTupinambá já lhe ordenou

Ela vem, e vem beirando o Mar,Iluminada com a Estrela GuiaE a benção da Rainha do Mar

A Jurema veio trabalharA Jurema veio saraváCom ordem de Oxalá

Ela agora, ela vai caminhar

E, finalmente, a Jurema da Praia, muitas vezes considerada como a filha da Rainha do Mar, Iemanjá:

E é muitas vezes com pesar que os adeptos se despedem da Jurema, uma das caboclas mais queridas por todos, sejam eles índios, um-bandistas, catimbozeiros ou participantes dos Candomblés por todo o território nacional.

O último verso, “e agora ela vai caminhar”, indica o momento de sua partida, depois de curar, consolar e abraçar seus filhos em um interminável ciclo de renovação da vida.

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Mística e Religião: vestígios da ex-periência mística nas religiões de tradição oral – o caso do Candomblé

Prof. Dr. Volney J. BerkenbrockPrograma de pós-graduação em Ciência da Religião

Universidade Federal de Juiz de Fora, MG

Resumo

A experiência mística é um fenômeno presente em muitas religiões. Nas religiões de tradição escrita, como o Cristianismo ou o Islã, textos deixados pelos místicos teste-munham estas experiências e através destes textos se pode ter um acesso que permite a interpretação da experiência. Onde en-contrar, porém vestígios da experiência mística nas religiões de tradição oral? To-mando como exemplo o Candomblé e sua experiência mística no transe, o autor pro-cura demonstrar que o assentamento do Orixá pode ser interpretado como teste-munha da experiência mística nesta religião.

Abstract

The phenomenon of mystic experi-ence can be found in many religions. Those based on written traditions, as Christianity or Islamism, have texts by mystics that testify such experience, and these texts allow us an access to interpretation of the experience. But, in the case of religions based on oral traditions, where could we find traces of such mystic experience? Taking Candomblé and its mystic experience in trance as an example, the author tries to demonstrate that the seat of the Orixá can be interpreted as a witness for mystic experience in this religion.

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A palavra “mística” é geralmente uti-lizada em ligação com o cristianismo. É de sua tradição que conhecemos nomes como São João da Cruz, Santa Tereza de Ávila, Santa Terezinha ou São Bernardo de Clara-val. Destes e de muitos outros temos muitos textos tanto em forma de prosa como ver-so considerados “textos místicos”. Também se tem usado a palavra mística para o con-texto muçulmano, sobretudo para qualificar o movimento “sufi”, que nos legou textos fan-tásticos de pessoas como Râbi’a, al-Hallaj ou o grande mestre Rûmî. Destes que podem ser chamados com razão os grandes místicos da tradição cristã ou muçulmana, tem-se para o estudo de sua mística justamente os textos que nos legaram. Assim, tornou-se usual li-gar o estudo da mística a textos. A questão que me leva a escrever estas linhas é a pergunta pela necessidade desta ligação. Só é possível falar em mística a partir da tradição escrita? Ou mais concretamente o que me interessa refletir: é possível falar igualmente em mística para as religiões de tradição oral? Parece obvio que se responda positivamente a esta pergunta. Mas se a res-posta for positiva, a ela segue outra pergunta forçosamente necessária: se em princípio é possível falar em mística para as religiões de tradição oral, onde estariam os pontos de apoio nestas religiões que permitiriam fa-lar em mística, dado que tradicionalmente o “objeto da demonstração” da mística são os textos. Há – mutatis mutandis – “objetos de demonstração” ou pelo menos indícios que sirvam de ponto de apoio para se falar em mística nas religiões de tradição oral? E para não ficar numa reflexão meramente hipoté-tica, usarei como base para a demonstração reflexiva a religião afro-brasileira do Can-domblé. Ou seja, as questões em torno das quais as reflexões irão girar são: é possível falar em mística no Candomblé? Quais seriam os pontos de apoio para se responder positi-vamente a esta questão? Para fazer esta reflexão, é preciso ini-cialmente “limpar” um pouco o terreno, no sentido de deixar claro a partir de qual ponto de vista se está refletindo. Para isto se faz necessário colocar algumas “premissas nega-tivas”, ou seja, o que não se quer refletir e depois deixar expresso minimamente o que

se entende por conceitos-chaves que serão usados na reflexão. Vamos às premissas negativas, enu-meradas sem ordem de importância: 1º Não se deseja aqui fazer uma exposição qualita-tiva, no sentido de querer afirmar ou negar que na religião do Candomblé há mística tão importante quanto na tradição cristã ou muçulmana. 2º Igualmente não é desejo fazer qualquer juízo de valor sobre esta ou aquela mística no sentido de dizer ser uma mais im-portante ou significativa que a outra. 3º Nesta mesma linha, não se pretende também igualar ou nivelar, sendo uma “tanto quanto” outra. Não, cada uma deve ser considerada em si mesma e se se lança mão de “comparação”, trata-se apenas de um recurso de argumen-tação, na tentativa de deixar claro o que se está querendo expor e não o de afirmar que “é a mesma coisa”. É necessário igualmente esclarecer minimamente o que se entende por alguns conceitos-chave que aqui serão utilizados. Em primeiro lugar o próprio conceito de mística. É claro que se trata de um conceito sobre o qual já existem centenas de páginas escritas e não há a pretensão aqui de querer contrapor-se a estes estudos. Quero minimamente dizer a linha na qual irei utilizar este conceito, sem desconhecer que há muitas outras pos-sibilidades de entender este termo. O termo mística será usado neste texto no sentido experiencial. O Dicionário Enciclopédico das Religiões inicia a explanação sobre o verbete mística afirmando: “Experiência ocorrendo no íntimo do espírito, de união beatificante com o princípio supra-empírico de todo o real”1. Sem discutir a complexidade desta afirma-ção e suas implicâncias, destaco dela as pa-lavras “experiência” de “união” com o “su-pra-empírico” e irei utilizar a palavra mística no sentido de se tratar de uma experiência de unidade com o que é experienciado como uma realidade para além da empírica. A pa-lavra será usada para dizer da experiência na qual o místico sente-se, experimenta-se em unidade com o transcendente, com seu foco de busca religiosa. É a experiência do momento, por mais fugaz que seja, de uni-dade, seja esta descrita como ser um com o transcendente ou ser por ele tomado (ou ainda arrebatado) ou então descrita como experiência de totalidade. Mas o que quero focar é a experiência da unidade, do “sentir-

_________________________________________________1 H. Schlesinger e H. Porto, Dicionário Enciclopédico das Religiões, p. 1783.

1. Mística e tradição oral

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se em”. Os chamados “textos místicos” são, de alguma forma, tentativas de colocar por escrito estes momentos experienciais. Se o conseguem fazer com maior ou menor clare-za e adequação, isto se deve ao texto e seus limites e alcances, e não à experiência em si. Dito de uma forma bastante simplificada, os textos místicos seriam os “vestígios” que nos legaram aqueles que tentaram exprimir em verso ou em prosa o seu sentimento da ex-periência mística. Eles são um lugar concreto legado que permite que este lugar possa ser em algum grau revisitado. Outro conceito a ser aqui esclarecido é o de tradição oral. Para o objeto a respeito do qual queremos aqui refletir – a mística – tanto na tradição cristã como na muçul-mana, onde os estudos a seu respeito são mais conhecidos, eles têm como ponto de partida textos, nos quais os autores de ex-periências místicas tentaram consignar o que experienciaram. Como pensar isto, porém, nas religiões de tradição oral? Onde podería-mos pensar nos “vestígios” desta experiên-cia? O que caracteriza, porém, uma tradição, cultura ou religião oral? Queremos enfocar aqui mais a questão da religião de tradição oral, caso do Candomblé que estaremos to-mando como exemplo concreto de reflexão. Primeiramente, o que parece um tanto óbvio, é o fato de esta religião não ter nenhum livro sagrado ou qualquer texto que seja reconhe-cido na tradição como de autoridade religiosa ou texto a ser respeitado ou seguido pela re-ligião. Mas esta diferença entre tradição oral e tradição escrita não se limita ao “fato físico” de haver ou não um livro (ou um texto), por mais importante que esta diferença possa ser. O antropólogo Jack Goody demonstrou em seus estudos que há diferenças bastante pro-fundas no modo de pensar, de compreender o mundo e de agir entre culturas de tradições escritas e culturas de tradições orais2. Uma diferença significativa para nós é o impor-tante papel da memória. Nas tradições orais, as memórias individuais são fatores decisivos na preservação e transmissão cultural. Esta pode, sim, ser “ajudada” por pontos de refer-ência como acontecimentos naturais, climáticos ou referências cruzadas entre fatos. Mas tudo isto só funciona se a memória individual “guardar” estas referências. A memória é a guardiã da tradição e da religião e esta é

a memória do indivíduo. Na tradição oral, a transmissão do conhecimento se dá no um a um. O transmitir a religião é um ato que pas-sa pela memória de cada indivíduo, mesmo que possa haver diversos indivíduos envolvi-dos no processo. Mas o conteúdo a ser trans-mitido depende do que cada indivíduo trans-mite de sua memória. Diferentemente disto, nas tradições escritas, os conteúdos não es-tão totalmente em dependência do indivíduo. E o mesmo J. Goody afirma que “a escrita parece se converter facilmente em sistemas de ensino, onde quer que você esteja, seja na China, na Índia, ou num país islâmico”3. Esta diferença é extremamente significativa no que tange às religiões do livro e as religiões orais. Nas religiões do livro, as experiências individuais são medidas e interpretadas a partir dos escritos. Há um padrão: o que está escrito. Claro que se pode dizer que o escrito é sem-pre interpretado a cada tempo. Isto é fato, mas por haver um escrito “fixo”, sempre se pode “retornar” a ele, saltando por cima da interpretação construída historicamente. Isto faz com que nestas religiões haja a primazia do texto sobre o crente, gerando uma certa inflexibilidade histórica. “Também fiquei um tanto chocado ao perceber o quão inflexível pode ser o cristianismo (assim como outras religiões), e os fundamentalismos evidenci-am isso. Do meu ponto de vista as pessoas se voltam para uma palavra escrita que já não tem grande importância. Ela é impor-tante para elas, então elas tentam torná-la relevante para todos. Logicamente, o mito deveria mudar, acompanhando as mudanças da sociedade. Mas nesse caso ele não muda, ele permanece estático. Não quero dizer que não esteja sendo interpretado de forma dife-rente; está sim. Mas, por outro lado, sem-pre existe a possibilidade de que chegue al-guém, como na época da Reforma, e diga que estão fazendo tudo errado. Tem sempre esse retorno à palavra escrita. Alguém no Texas poderá pensar que Jerusalém pertence aos cristãos ou algo assim, só porque um livro escrito há muito tempo atrás diz isso”4. Independente de pensar se isto traz al-guma vantagem ou desvantagem para a ma-nutenção da tradição religiosa, fato é que a pa-lavra escrita cria “marcos”, espécie de pontos fixos para os quais se pode “retornar”, mas que funcionam também como vestígios para

_________________________________________________2 Obras de Jack Goody sobre esta questão: “The Interface between the Written and the Oral” e “The Logic of Writing and the Organization of Society” ambas pela Cambridge University Press, 1987.3 J. Goody, Entrevista, Revista Horizontes Antropológicos, volume 10, número 22 (dezembro de 2004). 4 J. Goody, Entrevista, Revista Horizontes Antropológicos, volume 10, número 22 (dezembro de 2004).

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que gerações posteriores possam de algu-ma forma ter acesso a experiências religio-sas passadas. Os textos são, portanto, não apenas textos; eles são também testemunhas. Para a análise e o estudo da mística isto é sem dúvida uma vantagem: através destes textos, gerações posteriores podem – mesmo com to-das as limitações – de certa forma revisitar estes lugares da experiência. Nas tradições orais há uma flexibilidade histórica inerente às mudanças que ocorrem com os indivíduos, onde não temos estes vestígios como teste-munhas. Há, no entanto, nas culturas orais, mecanismos que funcionam como memórias coletivas de experiências de gerações pas-sadas. O mais comum é apontar os mitos como narrativas que guardam esta memória do que ocorreu in illo tempore. Contados de indivíduo para indivíduo, estas narrativas se-riam testemunhas de experiências passadas. J. Goody constatou em seus estudos, no en-tanto, que a idéia da perenidade na narra-tiva do mito é bastante frágil, ainda quando o próprio grupo cultural esteja convencido de que o mito é o mesmo. Tendo observado mi-tos narrados por uma etnia em Gana, num in-tervalo de 20 anos, J. Goody demonstrou que as pessoas “acreditam que o mito continua o mesmo. Eles vão falar que o mito é sempre o mesmo, único. Entretanto, as diferenças são enormes, com exceção das partes em que os ritos são descritos, que não sofreram grandes alterações. Mas todas as outras partes muda-ram muito. É possível que algumas pessoas transmitam essas narrativas perfeitas, esses mitos perfeitos, de uma geração para outra, mas eu nunca encontrei um exemplo sequer disso. Mesmo dentro de uma única aldeia, e até com os mesmos narradores, é possível encontrar diferenças, em períodos curtos de tempo”5. É inerente, pois, à cultura oral, uma grande mutabilidade. Um detalhe des-ta descrição do antropólogo, feita em outro contexto, faz uma afirmação assaz interes-sante para a nossa questão: onde encontrar nas tradições orais vestígios de experiências místicas que pudesse servir de testemunhas. Ele afirma que os ritos têm uma estrutura tal que permanecem através dos tempos sem grandes modificações. Seriam ritos lugares concretos nas religiões de tradição oral a

_________________________________________________5 J. Goody, Entrevista, Revista Horizontes Antropológicos, volume 10, número 22 (dezembro de 2004). 6 Algumas destas variações podem ser encontradas em: J. Elbein dos Santos, Os Nagô e a Morte, p. 55-56; R. Prandi, Mitologia dos Orixás, p. 514; M. Sodré, O Terreiro e a Cidade, p. 89; V. J. Berkenbrock, A Experiência dos Orixás, p. 273-274.

serem visitados, podendo exercer o papel de “testemunha” para a experiência mística?

2. A busca da unidade na tradição religiosa do CandombléUma contraposição é de extrema importân-cia no sistema religioso do Candomblé: uni-dade e divisão. Há uma compreensão que perpassa todo o sistema religioso, segundo a qual a existência é una, mas está dividida. A unidade é sua condição de essência, mas a divisão é a sua realidade histórica e é a busca da unidade, da superação da situação de di-visão que move o drama histórico e a lida religiosa. Esta situação aparece claramente tantos nos rituais como em diversos mitos re-colhidos por pesquisadores que, tendo cada qual sua variação, contam desta compreen-são de mundo relativamente comum6. Alguns pontos importantes desta compreensão: 1º As duas maneiras de existência. 2º A unidade inicial. 3º A quebra da unidade: o drama da existência. 4º O sentido da religião: a busca da unidade. 5º A experiência do transe: sau-dade do futuro. 1º As duas maneiras de existência. Tudo o que existe, subsiste à maneira palpável ou não palpável. Na linguagem do Candomblé, à maneira Aiyê ou à maneira Orum. Aiyê e Orum não são dois lugares, mas duas formas de existir. Aiyê é a maneira de tudo o que é palpáv-el, perceptível pelos sete sentidos, limitado, que tem forma e delimitação, finito, temporal. Aiyê é a forma do corpóreo, do material, do concreto. As plantas, os automóveis, o corpo humano existem à maneira Aiyê: limitados, finitos, palpáveis. Orum é a maneira imate-rial, não palpável, ilimitada, infinita, atem-poral. A maneira de existir Orum não é uma maneira que se possa limitar numa forma, que se possa apreender com algum dos sete sentidos. A energia, os Orixás, a inteligência, os antepassados subsistem à maneira Orum: sem contornos, sem delimitações de fron-teiras, não sujeitos à caducidade do tempo, não palpáveis pelo tato humano, nem visíveis por seus olhos ou qualquer outro dos senti-dos. Estas duas maneiras de existência não são contrapostas, nem paralelas. São ape-nas duas maneiras de existir e por trás de-

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sta idéia há uma compreensão inclusiva de toda a realidade: nada do que há está fora de uma destas maneiras. Tudo está incluído nesta maneira de percepção da realidade. Nada está desclassificado, tudo está dentro do sistema, apenas de maneiras distintas. E há em muitas existências Orum e Aiyê: as-sim tem o ser humano um corpo (palpável, sujeito ao tempo), mas tem nele a presença dos antepassados (impalpável, não sujeito ao tempo); assim tem um rio a água (palpável, delimitável), mas há nele a força que o im-pulsiona constantemente em direção ao mar (impalpável, informe). 2º A unidade inicial. A distinção inicial entre as duas maneiras de existir era apenas quanto à forma, mas não na convivência. No início não havia fronteiras, distâncias, sepa-ração entre Orum e Aiyê. Havia sim uma or-dem: Orum tem a primazia apriorística sobre o Aiyê, dado que é ilimitado. Mas por outro lado, a própria existência a duas maneiras é uma prova de que Orum e Aiyê compõem juntos a existência. Há no Candomblé a com-preensão de uma memória inicial, onde não há a divisão entre as duas formas, onde a maneira Orum e a maneira Aiyê transitam e convivem sem distância. 3º A quebra da unidade: o drama da existência. A situação inicial entendida como de unidade, de transitabilidade, de não fron-teiras entre a maneira Orum e a maneira Aiyê de ser, não é, porém, a situação atual. Houve uma quebra desta unidade inicial. Orum e Aiyê estão separados, divididos. Melhor di-zendo, o Aiyê está cortado do Orum, perdeu a transitabilidade para ele. Com isso, tudo o que existe à maneira Aiyê está confinado na limitação, na finitude, no temporal, na cadu-cidade. E este é de certa maneira do drama da existência de tudo o que é palpável, de tudo o que tem forma, de tudo o que tem fronteiras: não poder romper seu confinamento a for-mas, não poder transcender os limites. Esta quebra da unidade é descrita em mitos de diversas maneiras, seja originada na quebra de um acordo por parte do Aiyê em relação ao Orum, seja originada em uma disputa pelo poder entre as duas maneiras de existir, que-rendo o Aiyê sobrepor-se ao Orum e tendo na perda da disputa que aceitar então sua limi-tação. O desejo de sobrepor-se à limitação, à finitude, de superar a caducidade é certamente

o grande drama da existência humana. 4º O sentido da religião: a busca da unidade. Na linguagem religiosa do Candom-blé, esta é a busca religiosa mais importante: a busca pela recomposição da unidade inicial e o que ela significa, a não limitação. As ações rituais da religião do Candomblé têm no fundo todas elas este desejo: superar, pelo menos ritualmente, a limitação e buscar a unidade do Aiyê – a maneira limitada em que vivem os fiéis – com o Orum. A razão de ser da ação religiosa é recompor a unidade relatada como inicial. E esta acontece tanto como tarefa da comunidade, como o caminho individual. A comunidade do Candomblé é chamada de Ilê Axé, literalmente “a casa da energia”. Axé, no caso é energia, força religiosa/espiritual. Ali acontece, no próprio nome, a unidade en-tre os dois modos de existir. E esta unidade é vista mitologicamente como a realidade da origem. “A origem serve como critério para aquilo que deve ser buscado. A unidade en-tre Orum e Aiyê deve ser recomposta, pois os dois níveis formam uma totalidade única. Uma representação comum no Candomblé da totalidade mostra claramente o que foi dito: o universo é representado como uma cabaça cortada ao meio. As duas partes da cabaça estão divididas, mas continuam sendo uma totalidade e somente juntas podem as duas ser esta totalidade. Da mesma forma, so-mente juntos podem os dois níveis da ex-istência formar a totalidade”7. A unidade inicial é um símbolo, uma imagem permanente para toda a realidade no sistema religioso do Candom-blé. “A divisão é a realidade atual; mas esta não é a última realidade possível, não é a perfeição. A vida não se limita a esta situa-ção imperfeita de divisão. [...] A totalidade permanece, no entanto, sendo uma realidade acima da divisão e da limitação. Orum e Aiyê não existem de forma independente. Um é sempre referência para o outro. O símbolo da cabaça cortada ao meio diz isto claramente: cada uma das partes é apenas uma parte e só é todo com a outra parte. Os dois níveis da existência só formam a totalidade juntos. Eles coexistem e se interpenetram e somente através desta reciprocidade se permitem”8. Assim, a existência experimentada como situ-ação de divisão entre Orum e Aiyê é uma “re-alidade provisória”, pois a “realidade perene” é – do ponto de vista do sistema religioso – a

_________________________________________________7 V.J. Berkenbrock, A Experiência dos Orixás, p. 275-276.8 V. J. Berkenbrock, A Experiência dos Orixás, p. 276.

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unidade da existência. 5º A experiência do transe: saudade do futuro. Este desejo permanente de uni-dade que alimenta a busca religiosa no Can-domblé não é um “voltar-se para o passado”, mas justamente um futuro a ser buscado, numa situação onde a realidade contada mi-ticamente como inicial é na verdade a reali-dade ideal. A busca da unidade é uma espécie de saudade do futuro. Saudade pelo fato de o sistema religioso contar a memória de um tempo original de unidade; de um futuro, no entanto, pelo fato de ser sempre algo a ser buscado, desejado. E todo o sistema religioso está a serviço desta busca. Há um momento, no Candomblé, que representa a meu modo de ver, da forma mais perfeita possível a re-alização desta busca: o momento do transe. O transe é um momento – geralmente no âm-bito ritual – onde o fiel (Aiyê) e o seu Orixá (Orum) formam uma unidade. Naquele in-stante se faz um salto, que pode ser entendi-do como para o passado, recompondo a reali-dade primordial, ou pode ser entendido para o futuro, no sentido de ver realizado o que se busca. Na verdade trata-se de um salto para fora da realidade “provisória” em que ocorre a existência, para uma situação em que o fiel “sente-se em” uma realidade definitiva. A experiência do transe pode ser vista, pois, como uma experiência de unidade. Esta concepção de unidade em seus diversos momentos é no Candomblé uma grande construção simbólica que se ancora na prática em mitos, em ritos, em transmissão da religião, etc. Este conceito de unidade guarda consigo toda uma concepção tanto de pessoa humana, quanto de sociedade e de mundo. Este mundo simbólico da busca da unidade acolhe em si tanto as dificuldades, as limita-ções sentidas pelos indivíduos em suas tra-jetórias pessoais, como as limitações e prob-lemas da sociedade e do mundo como um todo. O drama da existência é ali resignificado como uma situação que encontra seu espaço na concepção de totalidade, mas ao mesmo tempo ele é realocado, ou seja, este drama não é o fim da existência. Ele é provisório. Há a realidade da unidade, que é narrada como unidade inicial, mas sempre novamente atu-alizada no rito como realidade a ser buscada, pois definitiva. Se os mitos descrevem esta realidade de unidade como passado/futuro absoluto, os ritos a atualizam. Pela experiên-cia ritual a realidade narrada como absoluta, escapa ao mecanismo do tempo cronológico da narração e entra no mecanismo do tempo

kairológico, o tempo sem caducidade, o tem-po da plenitude. A experiência do transe reli-gioso no Candomblé é uma espécie de salto.

3. O transe religioso como experiência mística: o caso do CandombléVoltemos à nossa questão posta para a re-flexão: como falar em mística a partir das re-ligiões de tradição oral, utilizando o Candom-blé como referência? Recordemos o que foi assinalado acima na definição de mística a ser usada neste texto: “experiência” de “união” com o “supra-empírico”. Esta definição apli-ca-se, a meu modo de ver, de forma bastante adequada, para analisar o transe no Can-domblé em seu sentido religioso. Digo aqui em seu sentido religioso, pois o transe pode perfeitamente também ser analisado do pon-to de vista ritual, sociológico, antropológico, psicológico, cultural, etc. Análises todas estas também perfeitamente legítimas, mas que não podem ser entendidas como análises que esgotam o tema. No momento do transe ocorre, sem dúvida, o que tínhamos proposto para a com-preensão de mística a ser usada nesta re-flexão. Trata-se de uma “experiência” que se dá – como no caso de todos místicos – na in-dividualidade. O momento do transe, mesmo que este ocorra – como é comum – no âmbito do ritual, é um momento da experiência do indivíduo com o seu Orixá. Experiência que o envolve em seu todo: sua corporeidade, suas expressões, seu modo de ser e sentir. A palavra experiência é etimologicamente interessante: ex = para fora; peri = limite, fronteira; encia = conhecimento, ou seja, ex-periência tem a ver com o conhecimento de ultrapassar o limite, de romper a fronteira. O momento do transe é um momento jus-tamente de ultrapassar a fronteira da indi-vidualidade (inclusive corporal) e conhecer o que está além-fronteira. Este além-fronteira conhecido pelo fiel no momento do transe é o seu Orixá, a força espiritual que rege a sua existência individual. Sua individualidade (seu corpo, seus sentidos, suas expressões, sua sensibilidade, sua consciência) é tomada pelo Orixá e a ele o fiel empresta a possi-bilidade de corporeidade, de sentimentos, de expressões, de consciência. Trata-se clara-mente de um momento de “união”. Os dois níveis da existência (Orum e Aiyê) estão nesse momento justificados: não há mais desníveis, eles estão justos, pois ocorreu a unidade. O

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fiel faz a experiência de unir-se com a outra metade da cabaça da existência, o Orum: o ilimitado, o atemporal, o supra-empírico. A experiência do transe não cria uma outra re-alidade: ela atualiza (torna atual, presente) a realidade simbólica da unidade primordial. A realidade do drama da existência é naquele momento suspensa pela realidade não lim-itada. É o salto do qual falávamos antes.

4. O assento do Orixá: testemunha da ex-periência mística Penso que não há como negar que a experiência do transe no Candomblé pode ser classificada como uma experiência mística, bem na tradição da compreensão desta pa-lavra. A questão que nos instiga a refletir é, no entanto, onde podemos ver vestígios, “te-stemunhas” desta experiência mística? Se na tradição cristã e muçulmana, os místicos nos deixaram textos nos quais tentaram expres-sar esta experiência de união com a divin-dade, de suspensão, há algo no Candomblé que poderíamos entender como vestígios de-sta experiência, de tal forma que possa ser revisitada? A experiência mística como momento vivido não pode ser retida. Isto é muito claro. Trata-se – como no caso dos textos místicos – de buscar por vestígios, por testemunhas. Uma experiência mística fundante para o fiel do Candomblé é a sua iniciação. Na maioria dos casos, os fiéis antes de serem iniciados já tiveram experiência de transe com o seu Orixá. Isto – é óbvio – para aqueles que têm do dom de entrar em transe, dom este en-tendido no Candomblé como uma gratuidade nata e não objeto de aprendizado. Mesmo tendo tido já a experiência do transe, o ritual de iniciação marca o momento em que a ex-periência de unidade passa a ser um “pacto de unidade” entre o fiel e seu Orixá. E o vestígio que testemunha este pacto é o assentamen-to. O assento do Orixá de cada fiel é sempre individual e é uma construção simbólico-rit-ual. Ou seja, a partir de um momento cen-tral dos rituais de iniciação, um momento de “unidade” entre fiel e seu Orixá, constrói-se o assentamento. Fisicamente ele é composto geralmente por pedras, colocadas dentro de um recipiente de barro, onde também per-manecem outros “objetos-testemunhais” do momento do pacto, que aqui não precisam ser descritos.

O assento do Orixá, guardado cui-dadosamente no Pegi e revisitado sempre novamente pelo fiel, diante do qual são de-positadas oferendas e mantida a quartinha sempre com água, é, a meu modo de ver, nes-ta tradição religiosa oral, um vestígio através do qual se pode ter acesso (interpretativo) à experiência mística. O assento do Orixá pode ser entendido para a religião oral como o tex-to para a religião de tradição escrita no que diz respeito à experiência mística: um vestí-gio, um sinal. Como no texto, o místico tenta deixar consignada sua experiência, mesmo com toda a limitação da linguagem em trans-mitir uma experiência, no Candomblé o as-sento do Orixá é, numa outra linguagem que não a escrita, uma consignação da experiên-cia mística vivida pelo fiel, consignação esta também limitada em seu modo de aparec-er. Ambas as consignações (o texto e o as-sento), porém, podem ser entendidas como “vestígios” ou “testemunhas” da experiência mística. Através delas há uma possibilidade hermenêutica de acesso à sua origem, a ex-periência, sendo para isto necessário que se maneje minimamente a linguagem simbólica de cada sistema religioso. Aquele momento ocorrido no instante da experiência da iniciação, do qual o as-sentamento é testemunha, é fugaz do ponto de vista cronológico, mas de certa maneira perene do ponto de vista simbólico. Revisitar o Pegi, colocar oferendas diante do assenta-mento, possibilita a re-vivência destes dois aspectos, de fugacidade e de permanência, um ir e vir entre unidade e separação, en-

_________________________________________________9 E.Stein apud W. Herbstrith in F. König (org.), Léxico das Religiões, p. 352.

Teu corpo misteriosamente impregna o meu,e tua alma se une à minha:não sou mais o que era outrora.Tu vens e vais,mas permanece a semeadura que tu semeaste,glória vindoura, oculta no corpo de pó9.

O transe do fiel com o seu Orixá ocorre geralmente diversas vezes antes da iniciação. No momento da iniciação, no qual o Orixá é assentado, ocorre, no entanto, simbólica e ritualmente um pacto duradouro, inclusive com uma materialização deste pacto nos objetos do assento. O experimentado não é pertença do fiel, mas a experiência lhe deixa marcado como algo permanente. Uma vez experienciado, o seu Orixá não mais deixa de

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estar com ele. O assento é testemunha disto. Palavras de Rûmî:

Teu amor chegou a meu coração e partiu feliz.Depois retornou e se envolveu com o hábito do amor,mas retirou-se novamente.Timidamente, eu lhe disse: “Permanece dois ou três dias!”Então veio, assentou-se junto a mim e esqueceu-se de partir10.

A experiência do transe é uma ex-periência de um salto, um salto para dentro da unidade como realidade perene. O as-sento do Orixá testemunha este salto, onde o fiel “sente-se em”. Nesta experiência o fiel é como que arremessado para dentro da re-alidade original: realidade de não limitação, atemporal. O revisitar o assento do Orixá provoca esta dupla presença simbólica: a lembrança do salto no qual se sentiu dentro da realidade perene, mas ao mesmo tempo a percepção do assento como algo externo, que ali está agora como testemunha do drama da existência limitada. Se a experiência mística é um salto, a realidade limitada é como uma queda, vista a partir do salto. O assento do Orixá pode ser simbolicamente visto, pois, também em seu reverso: como um cair no-vamente para dentro da realidade de caduci-dade. Palavras de São João da Cruz:

Após amoroso lancee não de esperança faltovoei tão alto, tão altoque tive a caça ao alcance.

Para que eu alcance dessea este lance divino,alto voei, peregrino,que da vista me perdesse;e contudo neste transeno voo quedei-me falto,mas o amor foi tão altoque tive a caça ao alcance.

Quanto mais alto subiadeslumbrava-se-me a vista,e esta mais forte conquistana escuridão se fazia;mas por ser de amor o lancedei um cego e escuro salto,e fui tão alto, tão alto,que tive a caça ao alcance.

Quanto mais alto chegavaneste lance tão subido,tanto mais baixo e vencidotão abatido me achava;disse: não há quem alcance!E abati-me, tanto, tanto,que fui tão alto, tão alto,que tive a caça ao alcance.

Por uma estranha mudançamil voos num passei eu,pois esperança de céuquem espera mais alcança;esperei só este lance,e em esperar eu não fui falto,que tive a caça ao alcance11.

_________________________________________________10 Rûmî apud F. Teixeira e V. Berkenbrock (orgs.), Sede de Deus, p. 26.11 São João da Cruz apud F. Teixeira e V. Berkenbrock (orgs.), Sede de Deus, p. 224-225.

Berkenbrock, V. J., A Experiência dos Orixás. Petrópolis: Vozes 1999.

Elbein dos Santos, J., Os Nagô e a Morte. Petrópolis: Vozes 1988.

Goody J., Entrevista, Revista Horizon-tes Antropológicos, volume 10, número 22 (dezembro de 2004).

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Bibliografia

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Uma aldeia de todas as cores

Na tarde do dia 19 de fevereiro, a Avenida Santa Catarina era o Brasil. Vári-os sotaques cruzaram os portais da FTU e se misturaram no pátio, sem fronteiras ou limites. Pais e mães espirituais trouxeram de todos os cantos do país seus filhos, suas tradições, seus saberes e sua ances-tralidade e, no pátio lotado da Faculdade de Teologia Umbandista, eram diferentes e eram iguais, em um constante movi-mento que mesclava a todos no típico e tranquilo respeito dos que se sabem iguais e diferentes, similares que são no respeito

à diversidade. Em um pátio lotado, todas as túnicas eram do mesmo branco, mas contrastavam com as cores dos fios de conta, das saias coloridas, dos mantos, dos apetrechos do santo e do coração. Dentro do terreiro, aos pés das luzes e símbolos do conga da Ordem Iniciática do Cruzeiro Divino, as folhas de Ossaim forravam um tapete com o verde das ma-tas salpicado com as cores das frutas, ali-mento do corpo e da alma. Recepciona-dos, um a um, com o respeito profundo à bagagem que carregam, os 51 agrupa-mentos presentes entraram no templo e, pisando no solo sagrado, o fizeram sagra-do. Certamente, na Aruanda, pontos de

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Como diz o ponto “No cocá deste Caboclo, não tem pena branca só...”

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luz se acendiam. Começava por lá tam-bém a celebração.

Pai Rivas, que havia recebido os pais e mães de santo pessoalmente, entrou no terreiro com mais uma obra que há anos une a tradição escrita com a tradição oral das regiões afro-brasileiras, desvelando mistérios e apresentando de forma clara os caminhos que levam à Coroa da Encru-zilhada: uma nova edição – a quarta – de “Exu – O Grande Arcano”. Ali, novos textos foram entregues à comunidade planetária com um presente especial na contracapa, um CD capaz de levar o ouvinte a uma viagem profunda às diversas raízes das várias Escolas da senhora das mil faces. Entre um oriki e outro, entremeando os pontos cantados, pequenos trechos das gravações de Exu ..., autor da obra, tor-nam ainda mais forte e poderosa a nova edição.

Congá em perspectiva que mostra a união entre Umbanda Esoté-rica e Umbanda Popular

Pai Rivas e Papete celebrando o reencontro

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Terminadas as prédicas, os tambores começaram a tocar. Era hora do Orixá do Brasil. Em uma torrente de crescen-te energia, as sintonias dos Candomblés de Caboclo, da Jurema, da Pajelança, do Toré e as tantas vertentes da mesma um-banda se afinaram. No centro do terreiro, Seu Urubatão da Guia chega e abre os portais de Aruanda. O terreiro se ilumina com a chegada dos vários caboclos que trazem uma tradição comum a todas as línguas, credos e crenças: a paz. O axé, a força, a vibração que ema-nou e contagiou a todos os presentes naquela noite não poderia ser descrita em palavras. É coisa que só quem vive presencialmente a umbanda manifesta pode entender. Mais uma vez, como tan-tas outras no passado e tantas vezes ai-nda por vir, a FTU abrigou por algumas horas uma aldeia plural, global, de todos os cantos, de todas as cores.

A força do Caboclo manifesta na Sacerdotisa

Médiuns de vários templos do Brasil momen-tos antes de entrar no templo

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A comunidade local amplamente presente para receber o Axé do Caboclo. Abaixo, a confraternização dos sacerdotes

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O poder simbólico do Caboclo

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Arqueofilia no Candomblé: um olhar através da obra de Mãe Stella1

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Dilaine Soares Sampaio de França DCR-UFPB

_________________________________________________1 Gostaria de deixar registrado os meus agradecimentos ao Prof. Dr. Fabrício Possebon, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da UFPB, que se dedicou à leitura crítica deste artigo, contribuindo com valiosas sugestões. Também gostaria de agradecer ao Prof. Dr. Marcos Ferreira Santos, da Faculdade de Edu-cação da USP que, por ocasião dos “Seminários avançados de Educação & Religiosidade”, ocorridos no ano de 2010, através de uma parceria entre USP, UFPB e outras instituições, proferiu uma palestra extremamente interessante e produtiva em nossa instituição, a qual foi fonte de inspiração para este trabalho. O texto relativo à referida palestra pode ser encontrado no livro Educação & Religiosidade: imaginários da diferença, organizado pelo referido professor juntamente com a Profª Dra. Eunice Simões Lins Gomes (orgs.), Vice-coordenadora do PPGCR-UFPB. Ver referências completas ao final do artigo.2 Professora e Vice-coordenadora do Curso de Graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Historiadora, Mestre e Doutorando em Ciência da Religião pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião (PPCIR) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

O objetivo deste artigo é fazer uma análise da arqueofilia enquanto um valor que pode ser tomado como uma característica marcante do candomblé. E, além disso, pretende-se com-preender como a arqueofilia conduz a uma combinação frutífera entre oralidade e uso da palavra escrita na “religião dos orixás”. Final-mente, mostrarei como a arqueofilia se co-necta com uma das questões chave de nossa “(pós) modernidade”: a preservação da na-tureza e do meio ambiente. Essa análise será feita através de uma da obras recentes de Mãe Stella, intitulada Epé Laiyé terra viva, dedicada ao público infanto-juvenil. Palavras-chave: arqueofilia; candomblé; Mãe Stella

The aim of this article is to make an analysis of the archeophilia, considering it a significant value of candomblé. And besides, we intent to understand how the archeophilia leads to a fruitful combination between oral and written practice of the word in “the religion of the ori-shas”. Finally, we will show how the archeo-philia connects with one of the key issues of our “(post) modernity”: the preservation of the nature and the environment. This analy-sis will be made through one of Mother Stel-la’s recent works, called Epé Laiyé live earth, dedicated to children and young people.

Keywords: archeophilia; candomblé; Mother Stella

Resumo Abstract

“Às vezes o vento leva o que se diz, havendo a necessidade de registros”(SANTOS, 2010, p.140)

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1 - Introdução

Ao receber o convite para escrever este artigo, ainda em dezembro de 2010, por ocasião de minha visita a FTU, estava envolvida com as entrevistas que executava naquele mês para o meu trabalho de dou-toramento, ainda em curso. Havia entrevis-tado Mãe Stella (Iya Odé Kayodê) há poucos dias, e além de ser presenteada com sua sa-bedoria numa conversa bastante agradável e proveitosa, pude adquirir naquela oportuni-dade praticamente todos os seus livros, aos quais dediquei imediata atenção, pelo menos àqueles que ainda não havia lido. As palavras de Mãe Stella, tanto as verbalizadas na ent-revista quanto as escritas em seus livros es-tavam sempre ecoando em minha mente, tra-zendo inspiração e muita vontade de colocar logo no papel todas as questões suscitadas. Além disso, o Ilê Axé Opô Afonjá, um dos ter-reiros mais tradicionais de Salvador, comple-tou cem anos de existência no ano passado, então considerei bastante oportuno escrever sobre a Iyalorixá que está a sua frente desde 19 de março de 1976 (CAMPOS, 2003, p.33), mesclando assim minha vontade de escrever com a oportunidade de reflexão trazida pelo centenário do Afonjá. A obra de Mãe Stella como um todo se apresenta de modo marcante no universo do candomblé por um conjunto de fatores que poderiam ser elencados. Contudo, desta-co dois deles: o pioneirismo e a diversidade inerente ao conjunto da obra. No que tange ao primeiro motivo, vale frisar que Stella de Oxóssi foi uma das primeiras mães-de-santo do candomblé que recorreu à escrita como mais um modo de preservar a tradição. Auto-ra de mais de cinco livros, teve sua sabedoria reconhecida academicamente por duas uni-versidades, a UFBA e posteriormente a UNEB, das quais recebeu o título de doutora honoris causa. Foi a primeira mulher a receber o título no caso da UNEB (WEBTV, 2009) e a primeira Ialorixá a ter a honraria concedida pela UFBA (BOCHICHIO, 2005). E, no que se refere à diversidade, essa característica por si só já faz o conjunto de sua obra extremamente rico. Somente num sobrevoo rápido, destaco

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principalmente Meu tempo é agora, publicado nos anos 90 e reeditado em 2010, onde se pode ler sobre a história do Opô Afonjá, além de ensinamentos sobre o modo como se es-tabelecem as relações dentro do candomblé; registros de mitos (ìtan) de seu orixá Oxóssi: Òsósi: O Caçador de Alegrias (2006); uma coletânea de provérbios, Òwe (2007) e inclu-sive uma produção destinada ao público in-fantil, Epé Laiyê terra viva (2009). Muito já escreveu sobre Mãe Stella em jornais, artigos acadêmicos e livros. No en-tanto, pouco se escreveu sobre sua produção literária, pelo menos não há muitas análises mais detidas sobre os seus livros. Evidente que não seria possível, em um único artigo, fazer uma análise de toda sua obra, pois se conseguiria, no máximo, um conjunto de resumos superficiais que seriam completa-mente insuficientes no sentido de trazer al-guma reflexão mais aprofundada sobre o seu trabalho. Cada um de seus livros suscita vári-os questionamentos, que precisam ir sendo destrinchados aos poucos. Assim, optei neste trabalho em falar sobre a questão da arqueo-filia, que é bastante convidativa a meu ver. E, para tratar disso, escolhi a sua obra mais recente e uma das mais ricas e instigantes: Epé Laiyê terra viva. Na verdade, vou me dedicar à análise de Epé Laiyê como uma porta de entrada para discutir a arqueofilia enquanto um valor que pode ser tomado como uma caracter-ística marcante do candomblé. Buscarei ai-nda compreender como a arqueofilia conduz, nesta obra, a uma combinação frutífera entre oralidade, uso da palavra escrita e imagens. Finalmente, mostrarei como a arqueofilia se conecta com uma das questões chave de nossa “(pós) modernidade”3: a preservação da natureza e do meio ambiente.

_________________________________________________3 Pelo menos desde o artigo de Pierre Sanchis, escrito ainda no início dos anos 90, que não se pode utilizar esses ter-mos sem relativizá-los, pois, como bem colocou, não existe a modernidade em si, ela se encontra na relação. Vários autores tanto no campo da História quanto no da Antropologia já discutiram exaustivamente essa questão, como Perry Anderson, Anthony Giddens, Zygmunt Bauman, dentre vários outros. A partir disso, preferi utilizar o termo modernidade e pós-modernidade conjuntamente e entre aspas “(pós)modernidade”, buscando indicar sua flexibili-dade, num sentido não estático e o mais plástico possível, sem querer definir se estamos vivendo na modernidade ou na pós-modernidade, pois dependendo do olhar podemos estar em uma ou em outra ou ainda, em nenhuma das duas!

2. Epé Laiyê terra vivaEpé Laiyê possui 51 páginas onde belas ima-gens são colocadas como pano de fundo para a narrativa que é contada. Nenhuma imagem é fortuita, há uma bela interação entre aquilo que está escrito em cada página e as ilustra-ções cuidadosamente escolhidas. O livro é

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aberto com uma pequena citação: “Epé Laiyé é uma estória que nós devemos ver!” e uma ilustração, ambas feitas por dois meninos de 10 anos, moradores do Opô Afonjá. Em seguida, temos uma poesia dedicada a Mãe Stella, escrita por Nizan Guanaes4 (SANTOS, 2009, p.4) e um texto de Jorge Portugal5 (SANTOS, 2009, p.5), que completam o pre-fácio da obra.

_________________________________________________4 Nizan Guanaes, nascido em Salvador, formado em administração de empresas pela UFBA, é um dos maiores nomes da propaganda mundial. Criou o portal IG, a agência África, dentre outras várias realizações (GUANAES, 2011). Entre campanhas famosas que fez estão as presidenciais de Fernando Henrique Cardoso e de José Serra (SEU SUCESSO, 2003, p.12-16). É um dos vários filhos de santo de Mãe Stella (FOLHA ON LINE, 2007).5 Jorge Portugal é professor, consultor, escritor, apresentador de televisão, compositor e palestrante. É ref-erencia nacional nos temas redação e língua portuguesa, tendo ensinado em vários colégios e cursos pré-vestibulares de Salvador. Já proferiu palestras e ministrou cursos em várias empresas, tais como: Petro-brás, Copene, Rede Bahia, Irdeb. Já teve suas composições cantadas por grandes nomes da música brasileira como Maria Betânia, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, dentre outros (PORTUGAL, 2011). 6 Como fugiria aos objetivos deste artigo discutir a imagem forjada de Exu em nossa sociedade indico, dentre várias outras existentes, duas leituras que discutem a questão. O livro de Reginaldo Prandi, Segredos Guardados: Orixás na alma brasileira, especialmente o capítulo 3 e o livro de Fábio Lima, antropólogo e filho-de-santo do Opô Afonjá, intitulado As quartas-feiras de Xangô: ritual e cotidiano, no qual o último capítulo do livro, com nome bastante sug-estivo “Que Diabo é Exu?”, é dedicado à questão (ver referências completas ao final do artigo).

O livro conta a história de um ga-roto chamado Nando, na verdade Fernando, que se mostrava muito preocupado com os di-versos problemas do mundo e sentia-se an-gustiado e desejoso de fazer alguma coisa que pudesse, se não resolver, ao menos amenizar os muitos problemas existentes (SANTOS, 2009, p.6-9). Embora todos dissessem a ele que não era possível fazer nada, a voz de seu coração dizia que sim, que ele podia contri-buir para diminuir os males do mundo (SAN-TOS, 2009, p.10-15). Assim, decidiu plantar uma árvore, um Epé Laiyê, que em yorubá significa Terra Viva (SANTOS, 2009, p. 16-18). A árvore terminou herdando as mes-mas preocupações do menino que a plantou, porém tinha dificuldade de agir devido à fal-ta de locomoção (SANTOS, 2009, p.18-19). Com a ajuda dos deuses, ganhou esse pod-er, o que dá início a sua trajetória em busca de um mundo melhor, onde a natureza e o meio ambiente fossem respeitados (SANTOS, 2009, p.20-21). No seu percurso, conta com o auxílio dos deuses, ou melhor, dos orixás, dos quais um tem participação bastante es-pecial: Exu, o “senhor do movimento e da ação” (SANTOS, 2009, p.23). Não vou entrar nos detalhes da narra-tiva, pois isso levaria a outro trabalho, tendo em vista que a pequena obra, idealizada para

crianças, traz várias questões que merecem ser analisadas, especialmente sob o aspec-to mitológico. Para os objetivos deste artigo basta apenas uma síntese do livro. No en-tanto, vale mencionar algumas questões que suscitam como a importância da natureza e a relação dela com os orixás, a significado das oferendas, o mito do herói, dentre out-ras, das quais destaco o modo como apre-senta o orixá Exu. Com sutileza, Mãe Stella vai mostrando ao longo do livro característi-cas reais do referido orixá, condizentes com suas raízes africanas em oposição à imagem negativa que Exu adquiriu em nossa socie-dade, o que se deve no passado, ao olhar et-nocêntrico e preconceituoso dos cristãos eu-ropeus e na atualidade, ao crescimento das vertentes pentecostais, que tem contribuído para a agudização de um estereótipo nega-tivo de Exu. Como já era de se esperar, a obra teve excelente repercussão, o que pode ser con-firmado ao digitar o título da obra seguido da palavra “livro” no Google, um dos mais con-hecidos sites de buscas virtuais. Aparecerão inúmeras referências, entre as quais é possív-el encontrar diversos comentários em vários sites de jornais, de revistas, de escolas, sites vinculados de alguma maneira ao universo das religiões afro-brasileiras, outros ligados ao movimento negro e ainda em sites gov-ernamentais, como o da Secretaria da Edu-cação do Estado da Bahia. Juntamente com Owé, Epé Layé foi adotado pelo Ministério da Educação (FIEDI, 2010) bem como pelas re-des municipal e estadual de ensino na cidade de Salvador. Vale ainda dizer que a Secretar-ia da Educação do Estado da Bahia adquiriu cinco mil exemplares para serem utilizados nas escolas públicas do Estado e que já é uti-lizado na Escola Eugênia Anna dos Santos, que funciona há mais de 30 anos dentro do Terreiro Ilê Axé Opó Afonjá. A escola foi mu-nicipalizada em 1998 e já se constitui uma

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referência nacional na implementação de leis e diretrizes que tratam da Educação para as relações étnico-raciais (ASCOM, 2010).

_________________________________________________7 Como coloca em nota Ferreira Santos, o termo empregado faz referência a Autopoiésis, ou seja, processo de auto-criação, de criar-se a si mesmo, ao modo como trazem os estudos de Edgar Morin e dos chilenos Maturana & Varella, no âmbito da epistemologia e da biologia de ponta (FERREIRA-SANTOS, 2010, p.53, nota 22). Assim podemos en-tender “processos mitopoiéticos” como processos em que o mito cria-se a si mesmo, processos de autocriação do mito.

Pretendo demonstrar nas linhas abaixo como se constrói em Epé Laiyé, de uma ma-neira muito sutil e ao mesmo tempo bela, a tríade “arqueofilia-escrita-imagem” enquanto uma tríade de elementos que possuem como principal fim alertar para uma questão ex-tremamente crucial em nossos dias: a preser-vação da natureza e do meio ambiente.De acordo com Ferreira-Santos, a palavra ar-queofilia (arché + filia) pode ser definida como a “paixão por aquilo que é ancestral, prime-vo, arquetipal e se revela, gradativamente, na proporção da profundização da busca” (FERREIRA-SANTOS, 2006, p.127). Em outro texto, afirma: “paixão pelo que é primevo, ancestral, mítico; amor pela memória em seus processos mitopoiéticos” (FERREIRA-SANTOS, 2010, p.53). Etimologicamente de-rivados do grego, arché significa ancestral e philía significa paixão, amizade e/ou desejo. O referido autor nos ilumina ainda mais quando trabalha a noção de ancestrali-dade em um texto anterior aos já menciona-dos (FERREIRA-SANTOS, 2005), onde discute a questão da ancestralidade e da convivência no processo identitário, tomando como refer-ência a cosmovisão afro-ameríndia em con-traste com a cosmovisão branco-ocidental. O objetivo de seu texto é principalmente refletir sobre os paradoxos que envolvem a imple-mentação da lei 10.639/2003, que diz respei-to à obrigatoriedade do ensino da “História e Cultura Afro-Brasileira” (FERREIRA-SANTOS, 2005, p.205-206; 221). Ferreira-Santos nos convida a pensar assim a ancestralidade como um traço con-stitutivo do processo identitário do indivíduo que por sua vez é herdado e vai além da própria existência (2005, p.213). Essa per-spectiva explica, por exemplo, a demora das cortesias africanas, pois se saúdam os pre-sentes, os idos, os chegados para que nun-ca haja ausentes (COUTO, 2003, p.26 Apud FERREIRA-SANTOS, 2005, p.213). A idéia de que a herança ancestral é muito maior e mais durável do que a própria existência é outra

3. Arqueofilia no candomblé a partir do Epé Layé: uma análise

face da mesma noção de ancestralidade. Ou seja, a “herança coletiva pertence ao grupo comunitário a que pertenço e me ultrapassa” (FERREIRA-SANTOS, 2005, p.213). A ancestralidade possui ainda outra característica segundo o arte-educador. “Em situações-limite (Jaspers), nas quais temos nossa própria sobrevivência em risco, a an-cestralidade nos abre e nos apresenta pos-sibilidades de religação com nosso tecido so-cial originário”, de modo que podemos nos religar aos nossos e, através dessa religação, temos a possibilidade de enxergar o próprio mundo e a nós mesmos de outro modo (FER-REIRA-SANTOS, 2005, p.213), fazendo uma releitura (relegere) das coisas, modificando o nosso olhar e as nossas atitudes bem como as nossas relações. “Essas duas possibilidades religantes: re-ligare e re-legere, abrem a di-mensão religiosa (...) de nosso contato com a ancestralidade”. Recuperando novamente Couto, Ferreira-Santos nos mostra que “o importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora”, de modo que “quando a terra se converte num altar, a vida se transforma numa reza” (COUTO, 2003, p. 53 apud FERREIRA-SANTOS, 2005, p.214). Optei em desenvolver melhor essa per-spectiva de ancestralidade, para que ficasse ainda mais clara a definição de arqueofilia. A partir dessa valiosa inspiração buscada em Ferreira-Santos, podemos afirmar que a ar-queofilia é uma característica que está nas raízes da “religião dos orixás”, como se refere Mãe Stella algumas vezes, posto que encon-tramos todos esses aspectos constitutivos da ancestralidade, explicitados pelo autor, muito presentes na religião, especialmente quando conversamos com os pais, mães e filhos-de-santo. É comum ouvir como justificativa pela busca de uma determinada casa de candom-blé, muitas vezes numa cidade diferente da que reside o indivíduo, que tal escolha se faz necessária: “eu tenho uma ancestralidade aqui”. No candomblé, a ancestralidade per-mite a religação das pessoas com suas ori-gens possibilitando uma nova leitura do mun-do a partir da experiência religiosa. Em Epé Layé, a articulação bem suce-dida da tríade “arqueofilia-escrita-imagem” deseja fortemente atentar para a preserva-ção da natureza e do meio ambiente, porque

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o candomblé precisa manter o seu “altar”, que é a própria terra. É bastante recorrente entre pais e mães-de-santo, bem como entre os seus filhos, a afirmação de que “não há candomblé sem folha” ou “se não há folha não há candomblé” ou ainda “kosi ewe, Kossi Orixá, sem folha não tem vida, sem folha não tem Orixá” (LIMA, 2010, p.32). Como bem colocou Mãe Stella “a natureza conversa con-osco a todo momento, basta entendê-la, ou até quem sabe, dar mais um pouco de aten-ção a ela. Tudo o que a nossa religião profes-sa advém da natureza” (ÒSÓSI, 2006, p.11). Esse aspecto é bastante discutido tanto na literatura nativa quanto na acadêmica. O que se mostra interessante é percebermos como o amor pela religião passa pelo amor a na-tureza, como uma decorrência da própria ar-queofilia e ainda como essa mesma arqueo-filia conduziu a iyalorixá Stella a fazer o uso da escrita juntamente com a imagem, ao pro-duzir o Epé Laiyé, como mais uma forma de preservar a própria tradição. Tanto em Meu tempo é agora como em Òsósi: O Caçador de Alegrias, Mãe Stella afirma que “a tradição oral é primordial, pois só através dela o àșę (axé) é transmitido” (ÒSÓSI, 2006, p.9). No entanto, reconhece o valor que a escrita pode assumir:

Nunca é demais lembrar que lei-tura dá conhecimento técnico, mas nunca Àșę. O Àșę dado pela Mãe ao seu Filho-de-Santo é imprescindível no processo iniciático. Com isto não quero dizer que os livros sobre Candomblé não sejam im-portantes, senão não teria escrito este. Não é mais possível a prática da crença nos Oríșa sem reflexão, estudos e entro-samentos. A tradição somente oral é difícil nos tempos atuais. Até mesmo porque a aquisição da escrita pela humanidade é um ganho, e não uma perda (...). Sa-bemos que para evoluir precisamos de reformas (e estas sempre causam rev-olução), onde o religioso e o social nunca deixem de estar compatibilizados (grifos do autor) (SANTOS, 2010, p.31).

Sem abrir mão da oralidade, o que seria im-possível, pois nela está a fonte única e in-substituível de transmissão do axé, conseg-ue adentrar com muita beleza e ao mesmo tempo com propósitos firmes para o universo da palavra escrita, sendo pioneira nesse as-pecto, pelo menos no âmbito do candomblé e enquanto mãe-de-santo. Contudo, essa aber-tura para o texto como um caminho, ora para “registrar” a tradição, ora para orientar seus

filhos ou ainda para penetrar no universo in-fantil se dá pela arqueofilia. Assim, pelo amor àquilo que é primordial, pelo desejo de pas-sar às gerações vindouras aquilo que herdou da ancestralidade, é que podemos acessar ao conjunto da obra de Mãe Stella, tão insti-gante, tão inspirador e bastante revelador do que o amor pela ancestralidade pode fazer. Mais uma vez recorro a Ferreira-Santos, que em um de seus textos nos lembra o signifi-cado etimológico de amor (a-mors – “nega-ção da morte”). Assim, para que o “vento não leve” os ensinamentos da religião é melhor proceder com algumas “reformas”, recon-hecer a dificuldade de se manter “a tradição somente oral” e utilizar a palavra escrita para não deixar morrer aquilo que é tão valioso para o candomblé, de um modo geral, e para a memória do Opô Afonjá, em específico. Stella de Oxóssi inicia sua trajetória enquanto escritora que dedica sua atenção ao público adulto. Posteriormente, com a perspicácia que lhe é característica e por ter a credibilidade na juventude como um valor, como afirmou por ocasião da entrevista que realizei em dezembro de 2010: “Eu tenho certeza que vocês jovens são minha esper-ança. (...) Eu acredito muito na juventude”, a iyalorixá faz então a sua aposta no público infanto-juvenil, o que torna sua produção literária ainda mais significativa. Embora eu vá me aventurar um pouco, neste momento, haja vista que não sou críti-ca literária e menos ainda especializada em literatura infanto-juvenil, recorri aos estu-dos especializados para que pudesse desen-volver um pouco mais o segundo elemento da tríade, a “escrita”. Além disso, considerei que seria interessante trazer alguma reflexão no que tange a importância desse segmento da literatura, com o intuito de percebermos com maior propriedade o que pode represen-tar Epé Layé no contexto das várias crianças e jovens que já tiveram e ainda terão acesso ao livro de Mãe Stella. Ao recorrer a esses estudos, terminei, como já suspeitava, retor-nando a questões mais familiares para mim, como as que concernem à Teoria Geral do Imaginário, de Gilbert Durand. Sem querer fazer uma análise do gêne-ro literário em questão, o que já se constituiria em novo artigo, é preciso lembrar o quanto é recente, pelo menos sob o aspecto histo-riográfico, a produção de livros destinados ao público infanto-juvenil. De acordo com Peres, temos as primeiras produções no século XVII no caso da Europa, e no Brasil, somente em

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fins do século XIX, época da abolição da es-cravatura e do nascimento da República. Até esse período prevaleciam traduções para o português de contos de fada e obras ped-agógicas européias (PERES, 2007, p.4-5). Apesar de recente, a literatura infanto-juvenil no Brasil percorreu caminhos diferen-tes, embutindo “arquétipos” (DURAND, 1989, p.31-36) distintos, sendo construída sob “mi-tos diretivos” (DURAND, 1988) e contextos históricos e sócio-culturais por sua vez tam-bém diferenciados, como se pode ver no es-tudo de Lajolo e Zilberman (LAJOLO; ZILBER-MAN, 2007). Todavia, pode-se dizer, ainda que tenha havido distintas fases da literatura infantil e muitas outras poderão vir, e certa-mente virão, é inegável entre os especialistas que o contato com a literatura possibilita que crianças e jovens desenvolvam a criatividade, a autonomia, a percepção de formas diferen-ciadas de se resolver problemas, o espírito crítico, a expressão de idéias e até mesmo a expressão corporal, que são elementos fun-damentais para a formação pessoal e social do ser humano. Segundo Lélia Duarte, o texto literário, em especial aquele que almeja des-tinar-se ao público infanto-juvenil, é capaz de refletir “a complexidade das relações so-ciais e afetivas, em suas várias instâncias de relação com o Outro” (DUARTE, 2007, p.18). Desse modo, poderá sempre constituir-se, de acordo com Duarte: Apesar de recente, a literatura infanto-juvenil no Brasil percorreu caminhos diferen-tes, embutindo “arquétipos” (DURAND, 1989, p.31-36) distintos, sendo construída sob “mi-tos diretivos” (DURAND, 1988) e contextos históricos e sócio-culturais por sua vez tam-bém diferenciados, como se pode ver no es-tudo de Lajolo e Zilberman (LAJOLO; ZILBER-MAN, 2007). Todavia, pode-se dizer, ainda que tenha havido distintas fases da literatura infantil e muitas outras poderão vir, e certa-mente virão, é inegável entre os especialistas que o contato com a literatura possibilita que crianças e jovens desenvolvam a criatividade, a autonomia, a percepção de formas diferen-ciadas de se resolver problemas, o espírito crítico, a expressão de idéias e até mesmo a expressão corporal, que são elementos fun-damentais para a formação pessoal e social do ser humano. Segundo Lélia Duarte, o texto literário, em especial aquele que almeja des-tinar-se ao público infanto-juvenil, é capaz

de refletir “a complexidade das relações so-ciais e afetivas, em suas várias instâncias de relação com o Outro” (DUARTE, 2007, p.18). Desse modo, poderá sempre constituir-se, de acordo com Duarte:

“oportunidade para apresentação da ex-istência humana em sua complexidade e no seu processo subjetivo inevitavel-mente contraditório, em que a verdade será múltipla e mutante, exatamente porque apresentada por um discurso subjetivo, a partir de um olhar que mul-tiplicará com a participação do Outro – o leitor” (DUARTE, 2007, p.18).

Embora na atualidade a literatura tenha con-correntes de maior peso do que possuiu no passado, pois segundo Marisa Lajolo “a lit-eratura sempre concorreu com outras formas de lazer”, ela “continua sendo uma poderosa linguagem que formata a fantasia e o imag-inário das pessoas. Ela cria desejos e cria ne-cessidades. Por isso ela é tão frequentemente objeto de censura. Ela “faz a cabeça” (LA-JOLO [MENEZES], 2001). Se tomarmos essa afirmação de Lajolo e focarmos no público infanto-juvenil, ao qual a referida escritora dedicou vários livros, sobressai a questão da “fantasia” e do “imaginário”, que devem funcionar como principais veículos para que as crianças e pré-adolescentes possam com-preender o mundo a sua volta. Como se pode notar, o brevíssimo per-curso feito sobre alguns aspectos principais da literatura infanto-juvenil nos trouxe para a questão do imaginário, como já se pode-ria prever. Como falar em criação, em des-pertar para o “simbólico”, em um mundo de infinitas possibilidades, aberto pela literatura à criança, sem mencionar a questão do imag-inário? E, como dizer sobre o imaginário sem remeter Gilbert Durand? Ao menos para mim não é possível, desde que nos últimos anos por caminhos inesperados me vi envolvida, primeiro com e, depois, pela Teoria Geral do Imaginário, e atualmente, venho desenvol-vendo trabalhos na área de religião e imag-inário, através do GEPAI8 (Grupo de Estudos e Pesquisa em Antropologia do Imaginário) , criado pela Prof. Dra. Eunice Simões Lins Gomes, amiga e colega de Departamento a quem muito devo as minhas incursões nesse campo de estudos. Embora a palavra “imaginário” tenha obtido contornos modistas, nos últimos tem-

_________________________________________________8 Esse grupo de estudos está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da UFPB, do qual participo na condição de professora pesquisadora. Pode ser visitado através do site http://gepai.yolasite.com/.

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pos, ela é extremamente polissêmica, a de-pender de qual base teórica se toma como referência. Danielle Pitta em Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand, livro funda-mental para quem deseja, aos poucos, aden-trar no universo da obra durandiana, recolhe algumas das várias definições de imaginário dadas pelo antropólogo francês ao longo de sua obra:

O imaginário – isto é – o conjunto de imagens e de relações de imagens que constitui o capital pensado do “homo sa-piens” – nos aparece como o grande de-nominador fundamental onde vêm se ar-rumar (ranger) todos os procedimentos do espírito humano. (...) o imaginário constitui a es-sência do espírito, isto é, o esforço do ser para erguer uma esperança viva diante do mundo objetivo da morte.

Pensado dessa forma, como “essência do es-pírito”, como o “capital pensado do homo sa-piens” e tomando a fantasia sob um aspecto positivo, não num sentido pejorativo como muitas vezes já foi colocada, juntamente com a própria categoria imaginação, que durante séculos foi considerada sinônimo de engodo, “fantasia”, “suspeita de ser ‘a amante do erro e da falsidade” (DURAND, 2010, p.10) pela tradição aristotélica, e posteriormente pelo empirismo e positivismo (DURAND, 2010, p.9-16), é possível compreendermos melhor a dimensão da influência da literatura infan-to-juvenil, sintetizada na afirmação de Lajolo, quando fala sobre o poder da literatura en-quanto uma linguagem capaz de formatar a fantasia e o imaginário das pessoas (LAJOLO [MENEZES], 2001). A partir dessas considerações, é pos-sível retornar ao livro de Mãe Stella e perce-ber que, a partir do imaginário presente na tradição cultural e religiosa, em especial a religiosa, Epé Layé pode despertar em seus jovens leitores diversos sentimentos, afi-nal, pela subjetividade da literatura, a cada leitor se tem um novo olhar da obra, con-tudo, destaca-se a valorização da natureza, que deve ser vista como parte integrante do indivíduo, pois sem ela não há vida. Se pen-sarmos agora no terceiro elemento da tríade explicitada anteriormente: “arqueofilia-escri-ta-imagem”, o conjunto de imagens presente no livro reflete o imaginário que o conduz, se tomarmos como referência Mafesoli: “não é a imagem que produz o imaginário, mas o con-

trário. A existência de um imaginário deter-mina a existência de conjuntos de imagens. A imagem não é o suporte, mas o resultado”. Das 45 páginas de narrativa, se con-tarmos a partir da página seis, onde de fato se inicia a história, 21 delas estão impreg-nadas pela cor verde, mostrando diferentes árvores, folhagens, florestas e plantas. Nas outras páginas em que a cor verde não toma conta, podemos degustar belas imagens do colorido presente na natureza, que envolve a presença do mar, da lua, das cachoeiras, do arco-íris, além de imagens focadas de folha-gens e flores de cores diversas como o ama-relo, o vermelho, o roxo, o lilás, etc. Enfim, é possível encontrar os 4 elementos: água, terra, ar e o fogo, tão bem trabalhados por Gaston Bachelard em sua vasta obra9. Assim, é possível perceber no conjunto de imagens escolhidas o resultado da principal mensa-gem do livro, que remete para a preserva-ção da natureza e do meio ambiente, como uma das principais formas de se preservar a religião, a herança ancestral, afinal, as-sim como os filhos-de-santo de hoje podem herdar o conhecimento e uma “terra viva”, é preciso fazer com que essa herança ancestral chegue aos próximos que virão, sob pena de essa herança se perder e ainda, de esse pla-neta, que ainda sobrevive, não ter condições, no futuro, de fornecer “as folhas”, a água, a terra, o vento, enfim, os elementos naturais que possibilitam a vida e a prática do can-domblé, como uma religião da natureza.

_________________________________________________9 Bachelard dedicou cinco consagradas obras aos 4 elementos: A água e os sonhos:ensaio sobre a imaginação da ma-téria, A psicanálise do fogo, A terra e o devaneio da vontade, A terra e o devaneio do repouso e O ar e os sonhos.

4. Considerações finais Espero ter conseguido demonstrar como a arqueofilia pode ser tomada enquan-to um valor que se encontra nas raízes do candomblé. E, como essa mesma arqueofilia funcionou como um fio condutor que levou Mãe Stella a utilizar a escrita como mais um caminho de preservação da própria orali-dade. A escrita não pode transmitir o axé, mas pode transmitir o amor à ancestralidade, àquilo que é primordial (presente no conjunto da obra de Stella de Oxóssi), os mitos (ítan), como fez em Òsósi: O Caçador de Alegrias, os òwe (provérbios), como se pode ver no livreto de mesmo nome e pode ainda regis-trar a história do Opô Afonjá, pode orientar, explicar, mostrar como funcionam ou como devem funcionar as coisas no âmbito da re-ligião, como em Meu tempo é agora.

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Através da arqueofilia, motivada tam-bém por sua credibilidade na juventude, Mãe Stella se dirige então a sua “fonte de espe-rança”, com Epé Laiyé, que é bastante rico em vários aspectos, como já mencionei e ex-plicitei, mas que em última instância oferece algo que Campbell já anunciava como funda-mental para o futuro das próximas gerações, há mais de vinte anos atrás. No já clássico O poder do mito, ao ser questionado por Bill Moyers sobre “que espécie de novo mito você acha que precisamos?”, com a sabedoria que era característica do mitólogo, respondeu: “Precisamos de mitos que identifiquem o in-divíduo, não com seu grupo regional, mas com o planeta” (CAMPBELL, 1990, p.26). En-contramos no personagem de Nando e da ar-vorezinha (Epé Laiyé) a simbolização de indi-víduos – sim porque quando Epé Laiyé recebe de Ossãe (Osanyin) (“o orixá feiticeiro, con-hecedor dos poderes das folhas”), o poder de locomoção, ocorre a personificação da árvore – que se mostravam preocupados com a co-letividade, com a vida no e do planeta (pre-sente inclusive imageticamente na capa e no interior do livro). Nessa mesma obra já citada, Campbell demonstrava a sua preocupação com a des-mitologização da juventude, posto que a nos-sa sociedade ocidental ou banalizou os ritos de passagem (o autor exemplifica discutindo o casamento) ou os suprimiu, de modo que a nossa juventude passou a fabricar seus próprios rituais, suas próprias iniciações bem como sua própria moralidade, haja vista que não são mais iniciados em nossa sociedade (CAMPBELL, 1990, p. 8-9). Para o autor, esse era o motivo pelo qual suas conferências em faculdades ficavam repletas de jovens “muito interessados em mitologia, porque os mitos lhes trazem uma mensagem” (CAMPBELL, 1990, p.9). A partir de Campbell, pode-se afirmar que Epé Laiyé, impregnada de mitos, traz ao jovem leitor algumas importantes mensa-gens: preocupação com a coletividade, a ne-cessidade de harmonização com a natureza, a idéia de que sempre podemos contribuir para a constituição de um mundo melhor, mesmo quando nos dizem que não podemos fazer nada, assim como disseram a Nando (SANTOS, 2009, p.10). Contudo, o seu cora-ção lhe fornecia outra resposta: “Você pode! Você pode muito! Um muito que pode parecer pouco, mas é um pouco que é muito!” (SAN-TOS, 2009, p.11). Cabe ainda frisar que Mãe Stella recu-

pera em Epé Laiyé a mitologia afro-brasileira para discutir, numa linguagem acessível aos jovens leitores, questões cruciais de nos-sa “(pós) modernidade”, como a ecológica. Aliás, a preservação da natureza e do meio ambiente não é uma nova questão para o candomblé, haja vista que a religião preci-sa da natureza para acontecer, pois é lá que “moram os deuses” (SANTOS, 2009, p.24). É da natureza que se retiram as folhas, é lá que se depositam as oferendas, na cachoeira para Oxum, no mar para Iemanjá, na mata para Oxóssi, “o caçador” (ÒSÓSI, 2006), “deus protetor dos animais e das florestas”. Desse modo, há muito já atentou para a questão ecológica, em função de sua “consciência ecocosmológica”, como bem recuperou Gil-mar Rocha a partir de Howell e Arhem (RO-CHA, 2009, p.59-61). Gostaria de concluir recuperando Otávio Velho, e deixar para reflexão a seguinte idé-ia: Será que não podemos nos deixar “afetar” pela bela lição de arqueofilia do candomblé? Afinal, se “a religião pode fazer algo pelas Ciências Sociais”, também pode, acredito, re-conectar o sujeito (pós) moderno ao seu hab-itat, ao planeta como desejava Campbell.

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VELHO, Otávio. O que a religião pode fazer pelas Ciências Sociais? In: TEIXEIRA, Faustino (org.). A(s) ciência(s) da religião no Brasil. Afirmação de uma área acadêmica. São Paulo: Paulinas, 2001, p.233-248.

WEBTV.UNEB. Título Doutor Honoris Causa – Mãe Stella de Oxóssi, 11 dez. 2009. Disponível em: < http://www.webtv.uneb.br/?p=341 >. Acesso em 02 dez. 2010.

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Entrevista Rumpi de Xangô

Pai Wellington Gomes Pinto, ou Rumpi de Xangô, é sacerdote há uma década e dirige o Centro Espírita Amor em Ação – Terreiro de Umbanda Quedas D’água de Oxum em Caldas Novas, Goiás. Com um trabalho respeitado pela postura honesta e responsável, o templo de pai Wellington ainda enfrenta o preconceito típico daqueles que consideram as re-ligiões afro-brasileiras como inimigas.

Quais são as atividades desenvolvi-das no templo? Nós temos o desenvolvimento mediúnico, trabalhos aberto ao público nas segundas-feiras, rito de exu sempre nas últimas sextas-feiras de todos os me-ses e toques para os Orixás.

Como estão configuradas as religiões Afro-brasileiras em Goiás e na Região Centro-Oeste como um todo? Em Caldas Novas somos muito res-peitados devido à honestidade e respon-sabilidade que temos com os nossos ri-tos e a obra social que o terreiro realiza. Nosso terreiro sofreu, nesses dez anos de trabalhos realizados, algumas ofensas. Mas até hoje, nada chegou a atrapalhar os nossos ritos e trabalhos. Comentários de irmãos de outras religiões dizem que nossa casa é do demônio, mas no geral, a religião na região centro-oeste em si é muito respeitada.

As religiões afro-brasileiras sofrem processos de intolerância religiosa? Sim. Essa intolerância parte dos irmãos protestantes e, para grande es-panto, dos irmãos kardecistas. Porém, os novos sacerdotes vêm mudando o rumo da historia da nossa tão querida Um-banda, trazendo novos ritos que não su-jam tanto a imagem da nossa Umbanda, como os antigos sacerdotes o fizeram para mostrar o “poder” que tinham. O meu Terreiro tem só tem dez anos e essa transformação é estampada no público que nos segue. São jovens que vem em busca de desenvolver a sua mediunidade,

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porque demonstramos que a Umbanda é do povo, é livre.

O senhor faz alguma atividade social? Sim. Temos o projeto Cosme e Damião que engloba a preparação e distri-buição de sopas, agasalhos, brinquedos, cestas básicas e, com futuros investimen-tos, ofereceremos para as crianças aulas de maculelê, informática, artesanato, etc.

Como está sendo a parceria com a FTU para o senhor? Infelizmente, ainda não possuí-mos parecerias com a FTU, mas pre-tendemos estreitar nossos laços. Estive na FTU e gostei muito do tratamento que nos foi dispensado no evento do rito de Exu. Voltaremos nesse ano a esse grande rito. Atualmente, a nossa ligação com a FTU se dá através do nos-so amigo João Luiz, que não dispensa esforços para nos deixar atualizados de tudo o que acontece na faculdade.

Como o senhor tem encarado o con-ceito de Escolas propugnado pelas linhas de pesquisa da FTU? Vejo um grande crescimento in-telectual, teológico e cultural para a nos-sa Umbanda. Nossos Sacerdotes têm que manter a essência de cada terreiro, con-forme a sua entidade espiritual conduz, mas não podem deixar de evoluir cultural-mente. Todo conhecimento é valido e tudo que é realizado para a propagação, des-mistificação e crescimento da Umbanda é recebido por mim de bom agradado.

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