197
CENTRO UNIVERSITÁRIO UNA INSTITUTO DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, PESQUISA E EXTENSÃO MESTRADO EM GESTÃO SOCIAL, EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO LOCAL MICHELLE ALEXANDRA GOMES ALVES PREVENÇÃO DA TENTATIVA DE SUICÍDIO E PROMOÇÃO DA SAÚDE MENTAL ENTRE CRIANÇAS E ADOLESCENTES DO MUNICÍPIO DE MATOZINHOS Belo Horizonte 2014

Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

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Page 1: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

CENTRO UNIVERSITÁRIO UNA

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, PESQUISA E EXTENSÃO

MESTRADO EM GESTÃO SOCIAL, EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO

LOCAL

MICHELLE ALEXANDRA GOMES ALVES

PREVENÇÃO DA TENTATIVA DE SUICÍDIO E PROMOÇÃO

DA SAÚDE MENTAL ENTRE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

DO MUNICÍPIO DE MATOZINHOS

Belo Horizonte

2014

Page 2: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

MICHELLE ALEXANDRA GOMES ALVES

PREVENÇÃO DA TENTATIVA DE SUICÍDIO E PROMOÇÃO

DA SAÚDE MENTAL ENTRE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

DO MUNICÍPIO DE MATOZINHOS

Dissertação apresentada ao Mestrado em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local do Centro Universitário UNA, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Inovações Sociais, Educação e Desenvolvimento Local. Linha de pesquisa: Processos político-sociais: articulações interinstitucionais e desenvolvimento local. Orientadora: Drª. Matilde Meire Miranda Cadete.

Coorientadora: Drª. Maria Lúcia Miranda Afonso.

Belo Horizonte

2014

Page 3: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

Ficha catalográfica desenvolvida pela Biblioteca UNA campus Guajajaras

A474p Alves, Michelle Alexandra Gomes

Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental entre

crianças e adolescentes do município de Matozinhos. / Michelle Alexandra

Gomes Alves. – 2014.

197f.: il.

Orientador: Profa. Dra. Matilde Meire Miranda Cadete.

Dissertação (Mestrado) – Centro Universitário UNA, 2014. Curso do Mestrado

em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local.

Bibliografia f. 172-178.

1. Jovens – comportamento suicida. 2. Suicídio – prevenção. 3. Promoção da

saúde. 4. Saúde mental. I. Cadete, Matilde Meire Miranda. II. Centro

Universitário UNA. III. Título.

CDU: 658.114.8

Page 4: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental
Page 5: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

Aos meus pais,

que contribuíram imensamente

para minha formação humana e profissional

e possibilitaram a concretização do meu sonho.

E também a minha querida e amada avó,

que infelizmente não está mais presente neste mundo.

Page 6: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

AGRADECIMENTOS

A Deus, pela vida, pela oportunidade de estar neste mundo e tentar fazer da

ciência um instrumento democrático e transformador baseado na solidariedade e

no amor ao próximo.

À minha orientadora, Profa. Matilde Meire Miranda Cadete, e coorientadora, Drª.

Maria Lúcia Miranda Afonso, que acompanharam todos os meus passos e

colaboraram não só para este trabalho, mas para meu crescimento pessoal e

profissional.

A minha família, pelo apoio e compreensão nos momentos tensos deste processo

de aprendizagem.

Aos meus amigos que participaram direta e indiretamente da minha pesquisa.

Aos gestores do município de Matozinhos, por possibilitarem a realização deste

trabalho.

Às crianças e adolescentes que aceitaram participar dos encontros e falar dos

seus sofrimentos.

Ao padre Carlos pela cessão do espaço paroquial para realização dos encontros

com as crianças e os adolescentes.

À Fundação de Amparo á Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e ao

Centro Universitário UNA por oferecerem a bolsa de pós-graduação e

possibilitarem a minha formação e qualificação.

E, por fim, aos meus colegas de curso, pelos insights coletivos.

A todos, muito obrigada!

Page 7: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

“O corpo fala

O resfriado escorre quando o corpo não chora.

A dor de garganta entope quando não é possível comunicar as aflições.

O estômago arde quando as raivas não conseguem sair.

O diabetes invade quando a solidão dói.

O corpo engorda quando a insatisfação aperta.

A dor de cabeça deprime quando as dúvidas aumentam.

O coração desiste quando o sentido da vida parece terminar.

A alergia aparece quando o perfeccionismo fica intolerável.

As unhas quebram quando as defesas ficam ameaçadas.

O peito aperta quando o orgulho escraviza.

O coração enfarta quando chega a ingratidão.

A pressão sobe quando o medo aprisiona.

As neuroses paralisam quando a criança interna tiraniza.

A febre esquenta quando as defesas detonam as fronteiras da imunidade”.

Autor desconhecido.

E quando o sintoma não resolve,

Passa-se ao ato!

Page 8: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

RESUMO O suicídio é uma violência considerada um problema de saúde pública multifatorial que preocupa as esferas nacionais e internacionais devido às suas causas e efeitos. Os dados epidemiológicos, no Brasil, não apresentam números elevados, pois se sabe da dificuldade nos registros de casos. Quando se trata de tentativa de suicídio, a subnotificação torna-se mais evidente, principalmente no público infanto-juvenil. Diante desse contexto, esta pesquisa aborda a tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes, de três a 18 anos, residentes no município de Matozinhos, região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. O objetivo principal foi analisar a tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes de Matozinhos nos últimos cinco anos, na visão desses sujeitos. Para tanto, este estudo de abordagem quantiqualitativo dividiu-se em duas etapas distintas, mas complementares: primeira, buscou-se o conhecimento do quantitativo e da forma de tentativas de suicídio entre crianças e adolescentes, com coleta dos dados no setor de epidemiologia do município, e também nos prontuários do Pronto-Atendimento (PA) e nas fichas do Ambulatório Infanto-juvenil; estes dados foram analisados no Statistical Package for Social Sciences (SPSS), versão 19.0; na segunda etapa, procedeu-se à escuta dos sujeitos para assimilação dos motivos que levam as crianças e adolescentes a tentarem suicídio, usando-se a técnica de grupo focal com os adolescentes e do método criativo sensível com as crianças. Estes dados foram analisados com base nos referenciais de conteúdo de Bardin e na articulação dos seguintes conceitos: violência, saúde, tentativa de suicídio, qualidade de vida, prevenção, promoção da saúde, desenvolvimento local e gestão social. Os principais resultados encontrados foram a confirmação da subnotificação dos casos de tentativa de suicídio infanto-juvenil e a não implicação dos profissionais de saúde diante dos casos recebidos, além da média de dois casos de tentativa de suicídio por mês. Quanto aos dados qualitativos, constatou-se que as relações e os vínculos sociais frágeis estabelecidos pelas crianças e adolescentes são fatores de risco para a tentativa de suicídio. A inovação deste trabalho reside na desmitificação, por dados quantitativos e também qualitativos, de que a criança não tenta suicídio. Diante da escuta desses sujeitos foi possível construir propostas de intervenção visando à qualidade de vida a partir da prevenção, proteção e promoção da saúde mental das crianças e adolescentes do município de Matozinhos. Ou seja, a construção de um projeto de intervenção intersetorial: Fórum Municipal da Rede de Apoio Infanto-juvenil de Matozinhos e de um espaço de apoio, sugerido pelos próprios adolescentes. Palavras-chave: Tentativa de suicídio. Criança. Adolescente. Prevenção. Desenvolvimento local. Gestão social.

Page 9: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

ABSTRACT

Suicide is a type of violence that is considered a multifactorial public health problem that concerns the national and international spheres due to its causes and effects. Epidemiological data, in Brazil, do not have high levels because of the difficulties to record the cases. When it comes to attempted suicide, underreporting becomes more evident, especially in children and adolescents. Given this context, this research approaches the attempted suicide among children and adolescents, from 3 to 18 years that live in the city of Matozinhos metropolitan area of Belo Horizonte, Minas Gerais. The primary objective was to analyze the attempted suicide among children and adolescents of Matozinhos for the past five years, from the view of these subjects. Therefore, this quantitative approach study was divided into two distinct but complementary stages: First was to research the knowledge of quantitative and way of attempted suicide among children and adolescents, with data collected from the epidemiology section of the city in the records of the Emergency Department (PA) and the records of the Clinic of Children and Adolescents; this data was analyzed in StatisticalPackage for Social Sciences (SPSS) version 19.0; in the second stage, was proceeded the listening of the subjects to assimilate the reasons why children and teenagers to attempt suicide, using the technique of group focus with teens and of the sensitive creative method with children group. These data were analyzed based on the reference content of Bardin and the articulation of the following concepts: violence, health, suicide attempt, quality of life, prevention, health promotion, local development and social management. The main results found were the confirmation of underreporting of cases of attempted suicide and the abstention of health professionals with the cases received and an average of two cases of attempted suicide per month.Regarding the qualitative data, it was found that the relationships and fragile social bonds established by children and adolescents are risk factors to suicide attempts. The innovation of this work lies in demystification, for quantitative and qualitative data, that the child does not attempt suicid. Through the listening of these subjects was possible to construct proposals for intervention, aiming at the quality of life through prevention, protection and promotion of mental health of children and adolescents in Matozinhos through the construction of a project of intersectoral intervention: "Fórum Municipal da Rede de Apoio Infanto-juvenil de Matozinhos" and an area of support, suggested by the adolescents themselves.

Keywords: Attempted suicide. Child. Adolescent. Prevention. Local development. Social Management

Page 10: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figuras

FIGURA 1 - Morbidade hospitalar do SUS por causas externas – Minas

Gerais, jan/2008-ago/2012.....................................................................

27

FIGURA 2 - Queixas iniciais recebidas pelo Ambulatório Infanto-juvenil

de Matozinhos no período de junho/2009 a abril/2012..........................

29

FIGURA 3 - Tipos e naturezas das principais violências que atingem

crianças e adolescentes.........................................................................

36

FIGURA 4 - Contínuo da autodestruição..................................................... 45

FIGURA 5 - Processo de suicídio................................................................ 48

FIGURA 6 - Mapa das ocorrências de casos de tentativa de suicídio do

município de Matozinhos – 2008 a 2012...............................................

102

FIGURA 7 - Desenho da criança B2 respondendo a questão sobre morar

em Matozinhos, 2013.............................................................................

129

FIGURA 8 - Desenho da criança B1 respondendo a questão sobre morar

em Matozinhos, 2013.............................................................................

130

FIGURA 9 - Desenho da criança B3 respondendo a questão sobre morar

em Matozinhos, 2013.............................................................................

131

FIGURA 10 - Desenho da criança B1 sobre a tentativa de suicídio,

Matozinhos, 2013...................................................................................

135

FIGURA 11 - Desenho da criança B3 sobre a tentativa de suicídio,

Matozinhos, 2013...................................................................................

137

FIGURA 12 - Desenho da criança B2 sobre a tentativa de suicídio,

Matozinhos, 2013..................................................................................

138

Gráficos

GRÁFICO 1 - Total de casos de tentativa de suicídio infanto-juvenil no

município de Matozinhos no período entre 2008-2012..........................

97

GRÁFICO 2 - Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos

registrados no ano de 2008...................................................................

98

GRÁFICO 3 - Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos

registrados no ano de 2009...................................................................

99

Page 11: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

GRÁFICO 4 - Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos

registrados no ano de 2010...................................................................

100

GRÁFICO 5 - Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos

registrados no ano de 2011...................................................................

100

GRÁFICO 6 - Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos

registrados no ano de 2012...................................................................

101

Quadros

QUADRO 1 - Fatores de risco para o suicídio............................................ 49

QUADRO 2 - Fatores de risco para o suicídio apresentados pelas

crianças e pelos adolescentes de Matozinhos, 2008-2012...................

113

QUADRO 3 – Processo de suicídio dos adolescentes de Matozinhos

baseado no esquema de Boronat (2013)...............................................

121

Page 12: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

LISTA DE TABELAS

TABELA 1 - Fontes dos dados.................................................................... 80

TABELA 2 - Faixa etária de crianças e adolescentes de Matozinhos que

tentaram suicídio entre 2008 e 2012......................................................

81

TABELA 3 - Idade e sexo de crianças e adolescentes de Matozinhos que

tentaram suicídio entre 2008 e 2012......................................................

81

TABELA 4 - Tipo de tentativa de suicídio (agregado), Matozinhos, 2008-

2012.......................................................................................................

82

TABELA 5 - Tipo de tentativa de suicídio (desagregado), Matozinhos,

2008-2012..............................................................................................

84

TABELA 6 - Tipo de tentativa de suicídio, por faixa etária, Matozinhos,

2008-2012..............................................................................................

85

TABELA 7 - Classificação dos casos de tentativa de suicídio,

Matozinhos, 2008-2012..........................................................................

86

TABELA 8 - Classificação dos casos de tentativa de suicídio por faixa

etária, Matozinhos, 2008-2012...............................................................

90

TABELA 9 - Classificação dos casos por tipo de tentativa, Matozinhos,

2008-2012..............................................................................................

91

TABELA 10 - Encaminhamentos das tentativas de suicídio, Matozinhos,

2008-2012..............................................................................................

96

TABELA 11 - Procedimentos realizados nas tentativas de suicídio,

Matozinhos, 2008-2012..........................................................................

96

TABELA 12 - Tipos de tentativas de suicídio nos bairros de Matozinhos,

2008-2012..............................................................................................

104

TABELA 13 - Distribuição por faixa etária das tentativas de suicídio nos

bairros de Matozinhos, 2008-2012.........................................................

105

Page 13: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CAPS Centro de Atenção Psicossocial

CEP Comitê de Ética em Pesquisa

CID Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à

Saúde

CRAS Centro de Referência de Assistência Social

CREAS Centro de Referência Especializado de Assistência Social

DANT Doenças e agravos não transmissíveis

ECA Estatuto da Criança e do Adolescente

EUA Estados Unidos da América

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

NASF Núcleos de Apoio à Saúde da Família

OMS Organização Mundial da Saúde

PA Pronto-atendimento

PSE Programa Saúde na Escola

PSF Programa Saúde da Família

SIH Sistema de Informações Hospitalares

SINAN Sistema de Informação de Agravos de Notificação

SPSS Statistical Package for Social Sciences

SUS Sistema Único de Saúde

TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

WHO World Health Organization

WHOQOL World Health Organization Quality of Life

Page 14: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

SUMÁRIO1

1 INTRODUÇÃO............................................................................................ 16

1.1 Políticas públicas de saúde mental infanto-juvenil................................... 17

1.2 Relações de poder na saúde................................................................... 24

1.3 Matozinhos: contextualizando o problema............................................... 25

2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA........................................................................ 32

2.1 Saúde e violência..................................................................................... 33

2.2 Tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes................................ 39

2.3 Visão sociológica do suicídio................................................................... 41

2.4 Visão psicossocial do suicídio.................................................................. 45

2.5 Visão da saúde quanto ao suicídio.......................................................... 51

2.6 Qualidade de vida: prevenção da tentativa de suicídio e promoção da

saúde..............................................................................................................

53

2.7 Gestão social e desenvolvimento local.................................................... 60

2.8 Considerações......................................................................................... 64

3 OBJETIVOS................................................................................................ 66

3.1 Objetivo geral........................................................................................... 66

3.2 Objetivos específicos............................................................................... 66

4 METODOLOGIA.......................................................................................... 67

4.1 Coleta de dados....................................................................................... 69

4.1.1 Primeira etapa: mapeando o problema no município............................ 69

4.1.2 Segunda etapa: ouvindo os sujeitos..................................................... 72

4.2 Aspectos éticos........................................................................................ 77

1 Este trabalho foi revisado de acordo com as novas regras ortográficas aprovadas pelo Acordo

Ortográfico assinado entre os países que integram a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), em vigor no Brasil desde 2009. E foi formatado de acordo com a ABNT NBR 14724 de 17.04.2011.

Page 15: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

5 RESULTADOS E ANÁLISE DOS DADOS.................................................. 78

5.1 Pesquisa quantitativa............................................................................... 78

5.2 Pesquisa qualitativa................................................................................. 106

6 CONTRIBUIÇÕES TÉCNICAS................................................................... 140

6.1 Projeto de intervenção intersetorial: Fórum Municipal da Rede de

Apoio Infanto-juvenil de Matozinhos..............................................................

140

6.2 Espaço de apoio..................................................................................... 145

7 ARTIGO - TENTATIVA DE SUICÍDIO INFANTO-JUVENIL: LESÃO DA

PARTE OU DO TODO? - SUICIDE ATTEMPTS IN CHILDREN AND

ADOLESCENTS: INJURY OF THE PART OR OF THE ENTIRE?................

147

8 CONCLUSÃO.............................................................................................. 169

REFERÊNCIAS.............................................................................................. 172

APÊNDICES E ANEXO.................................................................................. 179

Page 16: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

16

1 INTRODUÇÃO

Nós devemos às nossas crianças - os cidadãos mais vulneráveis em qualquer sociedade - uma vida livre de violência e medo. A fim de assegurar isto, devemos manter-nos incansáveis em nossos esforços não apenas para alcançar a paz, a justiça e a prosperidade para os países, mas também para as comunidades e membros da mesma família. Devemos dirigir nossa atenção para as raízes da violência. Somente assim transformaremos o legado do século passado de um fardo opressor em um aviso de alerta.

Nelson Mandela.

A pesquisa realizada para o mestrado em Gestão Social, Educação e

Desenvolvimento Local abordou a questão da tentativa de suicídio infanto-juvenil

no município de Matozinhos, baseada nos conceitos de violência, saúde, tentativa

de suicídio, qualidade de vida, prevenção, promoção da saúde, desenvolvimento

local e gestão social. A ideia foi colocar essas concepções para conversarem

sobre um problema complexo, multifacetado, intersetorial e multidisciplinar, na

expectativa de construção de intervenções locais que prevenissem o fato e

reduzissem os danos, possibilitando um atendimento “integral” dos sujeitos

acolhidos.

Seu objetivo principal foi analisar a tentativa de suicídio entre crianças e

adolescentes do município de Matozinhos nos últimos cinco anos, na visão

desses sujeitos. E para alcançar esse propósito a investigação foi construída em

três momentos:

a) Conhecer o quantitativo e a forma de tentativas de suicídio entre crianças e

adolescentes do município de Matozinhos.

b) Identificar os motivos que levaram as crianças e adolescentes, do

município de Matozinhos, a tentar suicídio.

c) Propor uma intervenção psicossocial visando à qualidade de vida a partir

da prevenção, proteção e promoção da saúde mental das crianças e

adolescentes do município de Matozinhos.

Page 17: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

17

Os dois primeiros momentos referem-se à coleta de dados. Com enfoque

quantitativo, primeiro foi realizado o levantamento dos casos de crianças e

adolescentes, de três a 18 anos, que tentaram suicídio nos últimos cinco anos.

Posteriormente, privilegiando a escuta e os métodos qualitativos, a pesquisadora

formou grupos com os adolescentes e as crianças, verificadas no momento

anterior, para conversarem sobre o ato cometido de violência autoinfligida.

Na tentativa de legitimar a abordagem de tal temática e apresentar e justificar a

problemática tratada neste trabalho, optou-se por uma subdivisão entre: políticas

públicas de saúde mental infanto-juvenil; relações de poder na saúde; e

Matozinhos: contextualizando o problema.

1.1 Políticas públicas de saúde mental infanto-juvenil

A temática “políticas públicas” abarca vasta gama de definições, é complexa e se

insere no campo multidisciplinar. Neste texto, para trabalhar o conceito de política

pública, parte-se do seu surgimento nos Estados Unidos da América (EUA), como

área do conhecimento no contexto acadêmico, como produto da Guerra Fria e

enfoque nos estudos das ações governamentais como ferramenta para as suas

decisões (SOUZA, 2006).

No geral, essas correntes que conceituam as políticas públicas abrangem

aspectos comuns, tais como: visão globalizante em detrimento da soma das

partes e que, apesar dos conflitos existentes, é necessária a participação dos

envolvidos considerando-se suas inter-relações, interesses e ideologias em

proporções variadas (SOUZA, 2006).

Quanto aos protagonistas desse processo, Lima (2012) apresenta duas

abordagens: estatista e multicêntrica. A primeira deve originar-se do Estado para

que seja considerada política “pública”; já a segunda questiona se o infortúnio é

de ordem “pública”, portanto, não foca o autor da política. Sendo assim, se o

problema for de origem “pública”, então tem-se uma “política pública”.

Page 18: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

18

A heterogeneidade desse campo assemelha-se a outra história em construção,

que é o rompimento com o paradigma hospitalocêntrico e a concepção da reforma

psiquiátrica que, com todo o seu esforço multiprofissional, idealizou uma saúde

mental transdisciplinar.

Santos e Bastos (2011) enfatizam que para entender o funcionamento desse

nosso sistema de saúde atual é necessário resgatar nossa história e as

influências do cenário político-social e econômico vivenciadas no Brasil.

Vários são os desafios que envolvem a incorporação dessa nova concepção de

cuidado nos serviços de saúde mental brasileiros. Bezerra Júnior (2007)

menciona alguns e separa-os em planos: assistencial, jurídico, político e

sociocultural. No entanto, é imprescindível salientar que eles se intercruzam e não

são estanques, estão inter-relacionados e dependem da articulação entre eles

para produção de uma verdadeira promoção de saúde.

No âmbito assistencial, o desafio reside na construção de modelos de cuidado e

intervenção diferenciados que abordem a concepção de clínica ampliada.

Ressalta as limitações da clínica tradicional focada no indivíduo como dispositivos

que possibilitem a formação de redes. Para tanto, reforça a necessidade de

formação de recursos humanos críticos, prudentes e autorreflexivos capazes de

reinventar sua prática cotidiana na busca de concretização do ideário reformista.

No entanto, estudo recente, realizado no Distrito Federal, ressalta o adoecimento

do profissional de saúde mental e as dificuldades enfrentadas quanto às

exigências da reforma psiquiátrica no que se refere à inovação, criatividade e

atitude do trabalhador frente aos desafios do serviço, gerando sentimento de

impotência e frustração (ZGIET, 2013). Além disso, Fiorati e Saeki (2013)

denunciam a precarização das relações de trabalho e realização de ações

centralizadas, principalmente nas figuras médicas, em detrimento do

compartilhamento coletivo e construções intersetoriais.

Nos planos jurídico e político, o grande obstáculo a ser ultrapassado reside no

fato de garantir e promover a inclusão civil e social, além de ampliar a autonomia

dos sujeitos. Ou seja, “[...] o debate ultrapassa os limites da argumentação

Page 19: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

19

médica e se insere progressivamente no debate político acerca da inserção no

campo da cidadania” (BEZERRA JÚNIOR, 2007, p. 246).

Este é um desafio atual e preocupante, pois ao analisar o discurso da Política

Nacional de Promoção da Saúde, mais especificamente no item que versa acerca

dos agravos e fatores de risco, o suicídio é visto como violência, constatando-se

“[...] um predomínio de uma perspectiva da promoção da saúde com ancoragem

nas abordagens comportamental e/ou biomética [...]” (RADDATZ et al., 2011,

p. 197, grifo nosso).

O Ministério da Saúde elaborou os “Manuais de Prevenção do Suicídio” para

orientar os profissionais de saúde. Apesar de abordarem os aspectos

sociodemográficos como fatores de risco para o suicídio, os documentos

ressaltam como principais: a história de tentativa de suicídio e os transtornos

mentais (BRASIL, 2006a; 2009). Esse enfoque sugere uma visão biopsíquica,

com foco claro nos aspectos psiquiátricos e psicológicos, tratando as questões

sociais como causas secundárias ou mesmo insignificantes.

Os fatores de risco considerados transtornos mentais ressaltam que estão “[...]

em participação decrescente nos casos de suicídio” (BRASIL, 2006a, p. 15).

Destarte, registra-se a contradição posta no material produzido para orientação

dos profissionais ao se constatar a seguinte afirmação: “[...] estudos em diferentes

regiões do mundo têm demonstrado que, na quase totalidade dos suicídios, os

indivíduos estavam padecendo de um transtorno mental” (BRASIL, 2006a, p. 19).

Já no material produzido para os profissionais da atenção básica também se

encontra a seguinte frase: “A compilação de vários estudos, realizada pela

Organização Mundial de Saúde (OMS), mostrou que em mais de 90% dos

suicídios pode ser feito um diagnóstico de transtorno mental” (BRASIL, 2009, p.

07).

Com esta análise pode-se inferir que a contradição existente no discurso estatal

tende a destacar os transtornos mentais e psicológicos como principais fatores de

risco para o suicídio. Seria esta uma reprodução do discurso médico e uma forma

Page 20: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

20

sutil de mascarar a visão higienista dos serviços de saúde mental atuais? Afinal, o

modelo psiquiátrico continua imperando de forma autoritária e perversa com a

anuência do Estado que não mais aprisiona “corpos”, mas sim “subjetividades”.

Resta questionar qual a compreensão de saúde mental que orienta a construção

de políticas públicas, pois além delas possibilitarem mudanças, têm, também,

como função a reprodução da ideologia estatal.

Obviamente que a iniciativa de construção de um material norteador é louvável e

não se questiona a abordagem que trata o suicídio como um problema de saúde

pública; a crítica, porém, reside no fato de desconsiderar ou dar secundária

importância aos fatores sociais. Silva e Abasse (2010), pesquisadores integrantes

do documento Análise da Situação da Saúde em Minas Gerais, que abordou as

doenças e agravos não transmissíveis (DANT)2, consideram fundamental análises

que reflitam a realidade local com todas as suas peculiaridades, além dos fatores

socioculturais, ambientais, tecnológicos e, acrescentando aos dizeres dos

autores: aspectos políticos.

Afirmam, ainda, que as DANTs encontram-se desprivilegiadas diante das

prioridades dos gestores públicos, mesmo apresentando que as “causas

externas” são a terceira causa de morte no estado de Minas Gerais...

Em Matozinhos, a realidade não destoa das prerrogativas estaduais. Não há uma

política pública de saúde mental infanto-juvenil institucionalizada; o que existe é

um serviço público de saúde mental infanto-juvenil incipiente e sem estrutura

básica suficiente para acolhimento da demanda existente.

Por ser a tentativa de suicídio um problema público, a política pública de saúde

mental infanto-juvenil é aqui entendida e baseada na perspectiva da abordagem

multicêntrica (LIMA, 2012) quando incluída toda a sociedade nesse processo de

construção. Ou seja, um instrumento orientador que direciona e unifica conceitos

e ações para viabilizar a prática da prevenção e promoção de saúde mental, com

2 O grupo de doenças e agravos não transmissíveis (DANT) pode ser dividido em dois subgrupos:

doenças não transmissíveis (DNT) e das causas externas. E, por sua vez, dentro de causa externas, encontramos: acidentes de transporte, suicídio, homicídio, quedas e afogamentos acidentais e eventos cuja intenção é indeterminada.

Page 21: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

21

descrição de objetivos e metas claras e diretrizes para nortear as atuações dos

profissionais envolvidos com o público em questão e, assim, propor possíveis

saídas para resolução deste problema de saúde pública.

O fato de não existir uma política pública precisa ser avaliado e contextualizado,

pois refere-se a um posicionamento do Estado e da própria sociedade. A

invisibilidade dessas crianças e adolescentes é reforçada e mascara algo que

deve ser investigado.

Apesar de se ter ciência do poder do Estado na transmissão de suas ideologias

por meio dos discursos políticos ancorados nos saberes científicos “tradutores da

verdade”, convoca-se também a sociedade para o palco, pois não pode ser isenta

de sua responsabilidade e coparticipação nesse processo cíclico que se

retroalimenta a todo instante. Romper com esse movimento perverso é um

desafio!

É importante demarcar que há um esforço nesse sentido, visto que o Ambulatório

Infanto-juvenil de Saúde Mental foi implantado em Matozinhos, mas as

reivindicações são sempre para suprir e atender a demandas emergenciais e não

para construção de ações e práticas de médio e longo prazo com foco na

prevenção e promoção de saúde. Visam apenas ao “tratamento” imediato

(ALVES; CADETE, 2012).

Nardi e Ramminger (2012) defendem uma política pública cidadã e ética que

tenha a democracia como base fundante e considere a igualdade de direitos e

deveres nas relações cotidianas, assim como a singularidade. Reconhecer a

criança e o adolescente como sujeitos e cidadãos nas suas potencialidades e

sofrimentos e trazê-los à cena é imprescindível para a construção de qualquer

ação efetiva que envolva esse público. Mas, se eles não existem, não é preciso

realizar uma política pública de saúde mental infanto-juvenil.

Por fim, o campo sociocultural apresenta como missão a mobilização e a

sensibilização dos diversos atores sociais para um debate público, que vislumbre

a loucura e o sofrimento psíquico como algo humano. É a tentativa de uma

Page 22: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

22

desconstrução social de estigmas substituída pela solidariedade, respeito e

compreensão sobre a diversidade, aliada à implicação e responsabilização de

todos aqueles pertencentes à sociedade (BEZERRA JÚNIOR, 2007).

É importante situar que com a proposta de municipalização da saúde, os

municípios passaram a ser foco central, responsáveis pela execução das políticas

e serviços de saúde e assistência social e nem todos estavam preparados para tal

empreitada. Além de executores, também são gestores! Diante desse novo

cenário, não se pode negar que algumas atividades isoladas, incipientes e

inovadoras foram realizadas por profissionais de saúde mental, apesar das suas

limitações, de acordo com a necessidade, demanda e possibilidades dos

municípios. No entanto, Resende (2007) ressalta essa negligência do poder

público e discute a inexistência de uma política macro para a saúde mental.

Com efeito, a se entender por política, no senso restrito aqui aplicável, uma equação a dois braços, representada de um lado por um conjunto de intencionalidades e de outro por práticas concretas, conjunto este que mostre uma certa continuidade no tempo e significação geográfica que ultrapasse os limites das experiências microrregionais [...] (RESENDE, 2007, p. 16).

O objetivo do autor foi justamente chamar a atenção para a necessidade de

construção de políticas eficazes e eficientes em âmbito macro ou mesmo

nacional. No entanto, ao destacar as atividades locais realizadas pelos serviços

de saúde mental, pode-se analisar por outro viés e explorar as construções

significativas deste trabalho. Isso não elimina as falhas e precariedades dessas

ações, mas possibilita aos sujeitos um novo uso desses espaços, dando-lhes

novos sentidos, imprimindo marcas e subjetividades. Desta forma, torna-se

interessante associar as “microrregionais” aos “lugares”. Trata-se de lugar de

referência para os usuários do serviço, no qual se reconhecem, se identificam,

socializam e constroem relações com o mundo, modificando seu modo de ser e

estar.

Na visão de Carlos (1996), o lugar permite que o sujeito pense e reelabore o seu

viver, o seu trabalho, o seu lazer e seu fazer, produzindo a sua existência social.

Sendo as microrregionais “lugares” onde se produz a vida, a subjetividade dos

Page 23: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

23

sujeitos, tornam-se relevantes as atividades desempenhadas, pois retratam o

verdadeiro objetivo de construção de uma política para o serviço de saúde mental:

promoção da saúde e cuidado! São essas inovações locais que transformam os

lugares e as pessoas.

É nesse panorama ainda nebuloso e cheio de obstáculos que se têm construído

as políticas públicas de saúde mental. Quando se pensa na saúde mental infanto-

juvenil, fica evidente que o caminho será um pouco mais árduo, pois o

reconhecimento desses indivíduos, como sujeitos, deu-se recentemente, ou seja,

teoricamente pode-se demarcar esse momento após a promulgação da

Constituição Federal de 88.

O Ministério da Saúde, na tentativa da construção de uma política pública de

saúde mental infanto-juvenil, enumerou os seguintes princípios: criança e

adolescente vistos como sujeitos; acolhimento universal; encaminhamento

implicado; construção permanente de rede; noção de território; intersetorialidade

na ação do cuidado. E como diretrizes destacou o reconhecimento do sujeito e

seu sofrimento psíquico, a responsabilização pelo agenciamento do cuidado,

considerando: a sua dimensão subjetiva e social; a implicação dos responsáveis

(familiares e agentes institucionais) no processo de atenção ao sujeito; a ação do

cuidado fundamentada nos recursos teórico-técnicos e de saber disponíveis aos

profissionais e operar com a lógica de rede ampliada de atenção (BRASIL, 2005).

O Ministério da Saúde objetivou normatizar e institucionalizar um saber e prática

que visam romper com o paradigma hospitalocêntrico e construir “caminhos” que

levem a uma saúde mental humana, ética, solidária e igualitária. No entanto, é

possível perceber alguns equívocos e distorções discursivas. Esse é o momento

crucial, citado por Bezerra Júnior (2007, p. 250), no qual o paradigma reformista

encontra-se: “[...] ou aprofunda seu movimento [...] ou corre o risco de deixar-se

atrair pela força quase irresistível da burocracia e da institucionalização

conservadora”.

A política pública de saúde mental infanto-juvenil é aqui entendida como um

dispositivo em construção que auxilia na gestão e resolução de problemas,

Page 24: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

24

determina características de acesso aos serviços, qualidade da atenção e

processo de trabalho, viabilizando a prática focada na prevenção, promoção e

tratamento da saúde mental. Diante dessa visão, é basilar considerar que a

prática é anterior à sua construção e legitimar esse saber tácito (o que funciona e

o que não funciona) torna-se uma estratégia relevante. Afinal, após a formulação

de políticas públicas, o que se espera é sua implementação e que as ações

transformem e possibilitem a resolução ou minimização dos impactos dos

incômodos vivenciados pela sociedade, fazendo uma gestão social efetiva e

consolidando o desenvolvimento local, ou seja, “mudança”, “ruptura”, “construção

coletiva”, “participação social”, “cidadania”!

1.2 Relações de poder na saúde

É ingênuo negar os conflitos de interesses existentes na construção e execução

de uma política pública e sabe-se que para virar “agenda pública” um problema

deve ser legitimado por determinados poderes. Neste trabalho o objetivo não é

discutir as formas e os tipos de poderes presentes nesse processo, mas alertar

para sua existência e influência diante das decisões a serem tomadas. E lembrar

que essa dinâmica sempre ocorre nas relações estabelecidas “para” e “com” os

sujeitos.

Além disso, conforme expressam Jardim et al. (2009), essas tensões e conflitos

provocados têm repercussões que se refletem por meio das contradições

existentes na própria política de saúde mental e sua execução pelos profissionais

que lidam diariamente com esse antagonismo. Não só os princípios e as diretrizes

para construção de uma política de saúde mental infanto-juvenil são exemplos

dessa reverberação, mas também os manuais escritos para direcionar as ações

dos profissionais de saúde diante de possíveis casos de riscos de suicídio.

Em pesquisa sobre o modelo brasileiro de assistência a pessoas com transtornos

mentais, relacionou-se como categoria central “as relações de poder na forma de

tratamento”, visto que, na política de saúde mental, a desinstitucionalização

representa a desconstrução de saberes psiquiátricos e mudança de foco da

Page 25: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

25

doença para o sofrimento dos sujeitos nas suas relações e essa tentativa de

ruptura de paradigma de tratamento para acolhimento pode também ter como

objetivo a redução de custos operacionais para o Estado (LIMA; NOGUEIRA,

2013).

Diante dessas considerações, a pesquisadora considera os riscos de suicídio

como alvo de observações. As provocações aqui abordadas têm como intuito a

reflexão e o posicionamento do leitor diante deste problema de “todos”: política

pública de saúde mental infanto-juvenil.

1.3 Matozinhos: contextualizando o problema

Os elevados índices de tentativas de suicídio e de suicídio caracterizam este tema

como um importante problema de saúde pública. O suicídio é um acontecimento

complexo, universal, abrange todas as classes sociais e possui etiologia

multivariada, abarcando desde elementos biológicos, genéticos, sociais,

psicológicos, até culturais e ambientais relacionados à vida pessoal e coletiva

(WERLANG; BORGES; FENSTERSEIFER, 2005).

A experiência vivida pela pesquisadora no atendimento a crianças e adolescentes

que buscaram interromper o próprio processo de viver, na cidade de Matozinhos,

resultou nesta pesquisa sobre a tentativa de suicídio, compreendida como o ato

humano intencional de autoagressão que não resultou em morte, como foco de

estudo e análise.

Matozinhos é uma cidade da região metropolitana de Belo Horizonte que se

localiza a 47 km da capital mineira e, de acordo com o último Censo Demográfico

realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010,

possui 33.955 residentes e apenas 19.272 são naturais do município. Vivem em

área urbana 90,9% da população total e 9,1% na zona rural. Sua população é

predominantemente jovem (somando-se 41,5% das pessoas de zero a 24 anos

de idade, 48,9% de 25 a 59 anos e 9,7% acima de 60 anos) e a organização

familiar é majoritariamente nuclear (total de 9.871 unidades domésticas, 6.843

Page 26: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

26

são do tipo nuclear), sendo 65% casal com filho(s), 16,5% casal sem filho, 15,7%

mulher com filho(s) e 2,3% homem com filho(s). Quanto ao rendimento mensal

domiciliar per capita, o valor médio total é de R$536,00 (INSTITUTO

BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE, 2010).

Essa população jovem, eminentemente urbana e, na maioria das vezes,

integrante de família nuclear, sempre que necessário é atendida no Ambulatório

Infanto-juvenil de Saúde Mental. Este foi implantado em 2009 e, desde então,

atende crianças e adolescentes de três a 17 anos, com sofrimento psíquico

considerado de “média complexidade”. Isto é, casos em que a pessoa apresenta

transtorno mental ou sofrimento psíquico de forma moderada, entre eles “[...]

todas as ocorrências de tentativas de autoextermínio apontam para uma condição

de gravidade. Devem ser acolhidas e avaliadas pelas equipes de saúde mental

em qualquer nível de estruturação [...]” (MINAS GERAIS, 2006, p. 202).

As ocorrências de tentativas de suicídio são condições de gravidade e essa

situação tem apresentado significativo crescimento entre as crianças e

adolescentes de nosso país. Segundo o Ministério da Saúde, o comportamento

suicida vem diversificando em relação à faixa etária e, entre os jovens de 15 a 35

anos, destaca-se como a terceira maior causa de morte. No entanto, “os registros

de tentativas de suicídio são mais escassos e menos confiáveis, mas estima-se

que seja pelo menos 10 vezes maior do que o número de suicídios” (BRASIL,

2009, p. 6).

No período de jan./2008 a ago./2012 foram registradas 6.883 internações no

estado de Minas Gerais por lesões autoprovocadas voluntariamente. Destas,

1.052 foram de crianças e adolescentes menores de um a 19 anos, o que

equivale a 15,3% do total de casos (BRASIL, 2012a). À primeira vista, o

percentual de casos pode não parecer tão significativo, contudo, é imperativo

considerar que os dados sobre as tentativas de suicídio não são comumente

declarados. Há subnotificação, o que permite afirmar que esse dado não expressa

fielmente a nossa realidade. Como dito anteriormente, estima-se que esse valor

seja muito maior do que o declarado, conforme ilustrado na FIG. 1.

Page 27: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

27

FIGURA 1 – Morbidade hospitalar do SUS por causas externas – Minas Gerais,

jan/2008-ago/2012

33

146

80

208

585

0

100

200

300

400

500

600

700

Menor 1 ano 1 a 4 anos 5 a 9 anos 10 a 14 anos 15 a 19 anos

Faixa etária

Qu

anti

dad

e d

e in

tern

açõ

es

Fonte: Brasil (2012a).

A leitura dessa figura remete ao filósofo Heidegger, que em sua obra principal

abordou temas sobre existência, cuidado, angústia, finitude existencial, entre

outros. Heidegger (1998) especifica que o homem é essencialmente ser-para-a-

morte, o que o privilegia em relação aos demais entes, especialmente na

assimilação mais própria e originária do seu findar.

Esse caráter do ser-para-a-morte não quer dizer, em absoluto, que a existência

humana deva ser tomada em um aspecto de negatividade. Ao contrário, esse

findar conduz o homem para o sentimento da angústia que é desencadeado pela

própria compreensão da finitude. A angústia se apresenta de forma totalizadora,

monopolizando todo o pensar e agir do homem. Tudo fica carente de sentido e a

angústia torna-se o passado e o presente, envolve toda a existência humana.

Continuando, Heidegger (1998) explicita que a angústia é um fenômeno que

difere do medo no sentido de que este tem sempre algo determinado. A angústia

não tem esse “que” determinado, pois o que a ameaça não é identificável. O que

acontece é que diante dela a totalidade de remissões, a totalidade de tudo perde

a importância, tudo se desmancha. É como se o nó que amarrava os sujeitos na

relação uns com os outros se desfizesse e, dessa forma, caíssem no nada.

Page 28: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

28

Essas concepções heiddegerianas invocam uma angústia: crianças, em vez de

brincarem, terem o lúdico como norte de suas existências, vivenciam já o vazio

existencial? E os adolescentes veem a vida se desmanchar diante de seus olhos,

sem perspectivas no futuro? Nas relações intersubjetivas, percebem-nas sem

agarras e caindo no nada? Ou não as construíram? Questões dolorosas afloradas

após conhecimento das causas externas de Minas Gerais e, principalmente, pelas

descobertas em Matozinhos.

Retornando, portanto, à cidade de Matozinhos, muitas crianças e adolescentes

chegavam ao ambulatório com a queixa inicial de tentativa de suicídio. Esse fato

era recorrente e aparentemente comum no município, o que gerou grande

estranhamento na profissional de saúde que trabalhava no atendimento clínico

psicológico desses sujeitos. Atender crianças de cinco ou seis anos que tentaram

se enforcar no quintal de casa é assustador! Quanto aos adolescentes, essa

prática era ainda mais comum, com atendimento quase mensal e a grande

maioria utilizava como instrumento para o autoextermínio medicamentos ou

mesmo o “chumbinho”.

Assim, foi realizada uma pesquisa exploratória, não publicada, para dimensionar

tal fato, durante a atuação desta autora como psicóloga do Ambulatório Infanto-

juvenil de Saúde Mental, o que gerou este trabalho de mestrado. No período de

jun./2009 a abr./2012 foram acolhidas 376 crianças e adolescentes no

ambulatório, sendo que cerca de 10% apresentavam queixas de tentativa de

suicídio. Destas, grande parte era encaminhada pelos serviços de saúde (50%),

seguido pelo Conselho Tutelar (29%), educação (17%), outros (4%) (ALVES,

2012).

Para realização de todos os acolhimentos do Ambulatório Infanto-juvenil, um

Boletim de Encaminhamento Geral é preenchido, preferencialmente, por um

profissional de nível superior. Nesse boletim há um item referente à queixa inicial,

que foi aqui categorizada em: escolar, familiar, social/ pessoal, outras.

Page 29: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

29

FIGURA 2 - Queixas iniciais recebidas pelo Ambulatório Infanto-juvenil de

Matozinhos no período de junho/2009 a abril/2012

0

5

10

15

20

25

30

35

40

Queixas iniciais

Qu

an

tid

ad

e (

%)

sociais / pessoais

escolares

familiares

outras

A queixa inicial escolar refere-se ao comportamento da criança ou adolescente na

escola e sua aprendizagem, tais como: confunde as letras com números, não se

interessa pelas atividades, dislexia, quadro de rebeldia na escola, agressividade e

agitação com colegas, baixo desempenho cognitivo, hiperatividade, indisciplina

escolar, dificuldade de aprendizagem, entre outros (ALVES, 2012).

Quanto à categoria familiar, as queixas iniciais retratam, prioritariamente, as

relações familiares conturbadas, elucidados como discussão com padrasto, raiva

da mãe, não aceitação do casamento do pai, só fala no pai que morreu,

agressividade com familiares, desobediência e outros (ALVES, 2012).

Na categoria social/ pessoal incluem-se as queixas referentes às relações sociais

que vão além da escola, da família e trazem algo do sujeito de forma um pouco

mais explícita. Neste caso, são narrados alguns comportamentos, como:

dificuldade de acatar ordens e leis, comportamento antissocial, evitação social,

dificuldade de se relacionar, choro descontrolado, agressividade exacerbada,

apatia, depressão constante, complexo de inferioridade, tentativa de suicídio, não

quer comer, dificuldade com cuidados pessoais, não querer falar, não conseguir

dormir, ver sombras, abusos sexuais, outras (ALVES, 2012).

Page 30: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

30

Incluem-se na categoria outras as queixas sem especificações, as solicitações

feitas via judicial, doenças e cárceres.

Cabe, contudo, ressaltar que essa padronização constitui-se como uma forma

didática de apresentar os dados, tendo em vista que as queixas categorizadas

não são estanques e muitas queixas transitam e se imiscuem em vários grupos.

Nestes casos, privilegiou-se apenas uma categoria para sistematizar as

informações, elegendo-se aquela mais enfatizada pelo responsável, pela criança

ou adolescente.

Após a coleta e a sistematização dos dados verificou-se que metade da demanda

de atendimento era feita pelo serviço de saúde e que grande parte das queixas

sociais/ pessoais referia-se à tentativa de suicídio e ao abuso sexual. Os casos

que não apresentavam essa queixa traziam traços considerados como fatores de

riscos pelo Manual de Prevenção ao Suicídio dirigido aos profissionais de saúde

tanto na atenção básica como na saúde mental propriamente dita.

Para o Ministério da Saúde, os fatores de risco para o suicídio são divididos em:

transtornos mentais, sociodemográficos, psicológicos e condições clínicas

incapacitantes. Em transtornos mentais são descritos diversos distúrbios de

humor, ansiedade, personalidade e associação com substâncias psicoativas

(BRASIL, 2006a, p. 15). Os aspectos sociodemográficos acenam para a

predominância do sexo masculino, faixa etária jovem e idosa, residentes em

áreas urbanas, isolamento social, etc. Os fatores psicológicos relacionam-se às

perdas, à dinâmica familiar conturbada, às datas importantes e aos traços de

personalidade. Como condições clínicas incapacitantes eles descrevem algumas

doenças, lesões e traumas (BRASIL, 2006a).

Nos casos analisados, as queixas iniciais trazem diversos fatores de risco, tais

como: isolamento social, agressividade, depressão, complexo de inferioridade e

ver sombras (que é um dos indícios de possível transtorno mental). Desta forma,

pode-se inferir que boa parte desses casos apresenta relatos que vão ao encontro

das orientações de cuidado e alerta preconizadas pelo Estado para os

profissionais de saúde. Ou seja, tem-se considerável número de crianças e

Page 31: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

31

adolescentes com “potenciais suicidas”. No entanto, essa constatação não é

confirmada pelos dados oriundos da Prefeitura de Matozinhos.

Diante do exposto, cabe anunciar que se torna visível, na dimensão do existir

humano, que as existências produzem, dialeticamente, o que se traduz como não

existência. E que a sociedade de Matozinhos, juntamente com seus gestores e

profissionais de saúde, não direciona seu olhar para as crianças e adolescentes

que tentaram suicídio. São sujeitos marcados, nesse processo, por silêncio e

invisibilidade.

O município não possui dados sistematizados do quantitativo de tentativas e de

suicídios entre jovens e adultos e o Sistema de Informações Hospitalares do

Sistema Único de Saúde (SIH/SUS), entre jan./2008 e ago./2012, não apresentou

qualquer registro de casos de internações por causas externas, do grupo X60-X84

(lesões autoprovocadas voluntariamente). Fato incoerente com a observação

realizada na prática do Ambulatório Infanto-juvenil no período de jun./2009 a

abr./2012, visto que eram atendidas diversas crianças e adolescentes “vítimas” da

tentativa de autoextermínio, que após serem internadas e socorridas no pronto-

atendimento do município eram encaminhadas ao serviço de saúde mental para

acompanhamento psicológico. Pode-se inferir que tal subnotificação mascara um

problema de saúde pública muito sério e que não se sabe exatamente a

dimensão e consequência dessas tentativas de suicídios (BRASIL, 2012a).

Diante desse contexto de invisibilidade do fato e dos sujeitos, a angústia gerada

na pesquisadora possibilitou a construção de um projeto de pesquisa de mestrado

quantiqualitativa que teve como objetivo geral analisar a tentativa de suicídio entre

crianças e adolescentes do município de Matozinhos nos últimos cinco anos, na

visão desses sujeitos.

Page 32: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

32

2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

O referencial teórico desta pesquisa é denso, pois aborda conceitos e temáticas

diferenciados, mas complementares, exemplificando claramente a proposta

interdisciplinar do Mestrado Profissional em Gestão Social, Educação e

Desenvolvimento Local. Diante disso, optou-se por dividir o texto em quatro temas

que são pilares deste trabalho: saúde e violência; tentativa de suicídio entre

crianças e adolescentes; qualidade de vida: prevenção da tentativa de suicídio e

promoção da saúde; e, por último, mas não menos importante: gestão social e

desenvolvimento local.

No item saúde e violência, foi considerada a relação existente entre esses dois

temas e como têm sido tratados nos últimos tempos. O texto alerta para os vários

tipos de violência e seus reflexos no contexto da saúde pública, ressaltando a

tentativa de suicídio como um tipo de violência.

O conceito de tentativa de suicídio apresenta-se de forma complexa e, para

trabalhá-lo nesta pesquisa, foram utilizados preceitos e conceitos das visões

sociológica, psicossocial e da saúde. Na visão sociológica, mostrou-se a

discussão sobre o suicídio e sua tentativa ao longo da história, como fruto do

contexto social. Na perspectiva psicossocial, foram abordados os processos que

culminam no suicídio e o papel dos vínculos nesse contexto. Na área da saúde,

percebe-se o fenômeno como um problema de saúde pública e, para abordá-lo,

baseou-se na Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados

à Saúde (CID) para possibilitar a unificação e categorização dos casos

analisados, propondo ações de intervenção para prevenção e promoção.

A qualidade de vida é entendida como um processo multidimensional que

envolve aspectos objetivos e subjetivos. Aborda-se também a importância da

prevenção da tentativa de suicídio como estratégia de promoção de saúde e de

possibilidade de qualidade de vida para as crianças e adolescentes residentes no

município de Matozinhos.

Page 33: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

33

Os conceitos de gestão social e desenvolvimento local são trazidos como

peças-chave para se entender o processo de implicação social dos gestores e da

sociedade nos atos de tentativa de suicídio e também como concepção basilar

para a construção de propostas vislumbradas para sua prevenção e promoção da

saúde mental infanto-juvenil.

2.1 Saúde e violência

A violência é um fenômeno complexo e multicausal que tem afetado a

humanidade há séculos. As discussões em torno dessa temática evidenciam esse

evento como uma “denúncia” das relações sociais e interpessoais estabelecidas

pela sociedade. Não se trata de esvaziar a importância do conflito nas relações

como propulsor de mudanças e ressignificações, mas de ampliar esse olhar e

entendê-lo nas suas peculiaridades. Desta forma, a violência é mais um

componente de toda e qualquer sociedade, “[...] é parte intrínseca da vida social e

resultante das relações, da comunicação e dos conflitos de poder”, mas deve e

pode ser prevenida (MINAYO, 2006, p. 15).

Krug et al. (2002, p. 3) também discordam dessa visão fatalista e enfatizam que,

“apesar de a violência sempre ter estado presente, o mundo não tem de aceitá-la

como parte inevitável da condição humana”, portanto, é responsabilidade de

todos construir saídas possíveis para o enfrentamento desse problema mundial.

Apesar do imaginário brasileiro de passividade, não é possível negar que a sua

constituição, desde o “descobrimento”, foi pautada em violência e esta permanece

tornando-nos um povo violento em todas as épocas históricas em que vivemos,

modificando apenas a sua forma e tipologia. Nesse aspecto, salienta-se que não

há uma violência, mas várias e articuladas que se destacam conforme interesses

políticos e sociais de cada momento, pois se apresentam de forma incômoda,

exigindo mudanças (MINAYO, 2006).

Jacques e Olinda (2012) afirmam que a violência está presente em todos os

campos da nossa vida e apresenta-se ora explícita, ora implicitamente nas

Page 34: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

34

economias, nas políticas, nas ideologias, nas religiões, nas famílias, nos ensinos,

nas culturas, nas forças armadas e em diversos outros setores onde transitamos.

Mas como definir a violência?

O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação (WORLD HEALTH ORGANIZATION, WHO, 2013).

Melo (2010, p. 13) esclarece o conceito da Organização Mundial da Saúde

(OMS), pontuando que a violência é qualquer situação que use do poder, da força

ou da coerção para que o ator social deixe sua condição de sujeito para ser

transformado em mero objeto; seria, então, uma “[...] colonização do mundo da

vida [...]” que gera e replica a violência na nossa sociedade.

É interessante ressaltar que esse conceito amplia o olhar sobre a violência, ou

melhor, sobre as “violências” existentes. Destitui o predomínio das marcas

objetivas e abre espaço para que a subjetividade lesada seja vista e ouvida, pois

a fictícia ideia de “invisibilidade” do dano psíquico pode ser um dificultador nas

ações de prevenção e promoção de saúde. Desta forma, não se pode limitar a

percepção da violência apenas aos aspectos que ressaltam as lesões e mortes,

uma vez que isso inviabiliza que o seu efeito total sobre as pessoas seja

percebido, prevenido e tratado.

As violências existentes podem ser classificadas conforme sua tipologia. Krug et

al. (2002) sugerem três categorias, separadas de acordo com as particularidades

dos sujeitos que as cometem: a) violência dirigida a si mesmo (autoinfligida); b)

violência interpessoal; c) violência coletiva. Segundo esses autores, a violência

autoinfligida divide-se em suicídio (ideações suicidas e tentativas) e autoabuso

(automutilação). É sobre o primeiro caso, mais especificamente sobre a tentativa

de suicídio, que esta pesquisa discorre.

A violência interpessoal também apresenta subcategorias: violência da família e

de parceiro(a) íntimo(a), ou seja, “[...] ocorre entre membros da família e parceiros

Page 35: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

35

íntimos [...]”. Como exemplos podem-se citar o abuso cometido contra crianças,

idosos e mulheres; e a violência comunitária que ocorre entre pessoas “[...] sem

laços de parentesco [...]”, como violência juvenil tão preocupante na nossa

contemporaneidade (KRUG et al., 2002, p. 6, grifo nosso).

As violências coletivas são entendidas como “[...] atos violentos que acontecem

nos âmbitos macrossociais, políticos e econômicos e caracterizam a dominação

de grupos e do Estado” (MINAYO, 2006, p. 81). Portanto, é dividida em violência

social, política e econômica.

Minayo (2006, p. 81) acrescenta a essa classificação do relatório mundial sobre

violência e saúde de Krug et al. (2002) a violência estrutural. Afirma que os

outros tipos de violência têm sua base na estrutural, pois ela é silenciosa e se

naturaliza no cotidiano da nossa sociedade, sendo “[...] responsável por privilégios

e formas de dominação” que reproduzem as misérias e desigualdades, mantendo,

inclusive, “[...] o domínio adultocêntrico sobre crianças e adolescentes”.

Para melhor compreensão da violência, Krug et al. (2002) também classificam a

natureza dos atos violentos ou abusos em quatro modalidades: física, sexual,

psicológica e privação ou negligência.

O abuso físico “[...] significa o uso da força para produzir injúrias, feridas, dor ou

incapacidade em outrem”. O abuso sexual é o ato ou jogo sexual com intuito de

“[...] estimular a vítima ou utilizá-la para obter excitação sexual e práticas eróticas,

pornográficas e sexuais impostas por meio de aliciamento, violência física ou

ameaças”. O psicológico caracteriza-se por “[...] agressões verbais ou gestuais

com o objetivo de aterrorizar, rejeitar, humilhar a vítima, restringir a liberdade ou

ainda, isolá-la do convívio social”. Por fim, a privação de cuidados, abandono

ou negligência refere-se à “[...] ausência, à recusa ou à deserção de cuidados

necessários a alguém que deveria receber atenção e cuidados” (MINAYO, 2006,

p. 82).

Essa tipologia e natureza da violência podem ser visualizadas na estrutura

apresentada na FIG. 3. Ressalta-se que esse modelo não é universalmente aceito

Page 36: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

36

e existem diversas visões e teorias acerca desta temática complexa e

controversa. Esse quadro serve de base para conhecer-se a multiplicidade de

fatores, causas e nuanças que cercam o fato e, também, as suas possibilidades

de intervenções.

FIGURA 3 – Tipos e naturezas das principais violências que atingem crianças e

adolescentes

Fonte: Krug et al. (2002, p. 07, com modificações).

É importante salientar que há vínculos entre os tipos de violência aqui

apresentados. Na revisão integrativa de literatura realizada com as produções

científicas brasileiras sobre a prevenção da tentativa de suicídio infanto-juvenil

nas últimas décadas (1994-2013)3 foi possível perceber que alguns autores (que

compõem a revisão da literatura feita para este trabalho) vincularam a violência

autoinflingida, no caso a tentativa de suicídio, à violência interpessoal (a partir dos

históricos familiares) e a violência coletiva (inclusão de variáveis tais como:

raça/cor; escolaridade; ocupação e renda ou classe social) ao caracterizarem o

perfil do grupo de risco.

3 Trabalho apresentado no V Congreso Latinoamericano de Estrategias de Prevención del

Suicidio, realizado na cidade de Campeche, no México, nos dias 5, 6 e 7 de setembro de 2013.

Page 37: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

37

Mas qual a relação existente entre a saúde e seus serviços e a violência existente

em nossa sociedade?

A violência está inserida no nosso cotidiano, violando direitos dos cidadãos, e é

um problema de saúde pública que influencia a qualidade de vida das pessoas e

as taxas de morbidade e mortalidade. De acordo com Silva e Maeta (2010, p. 81),

isso “[...] repercute na diminuição da expectativa de vida de adolescentes e

jovens, além de produzir altos custos sociais, econômicos, familiares e pessoais”,

seja de forma direta, a partir das suas consequências objetivas e subjetivas, ou

indireta, por exemplo, com base no absenteísmo e produtividade perdida.

É fato que a saúde é seriamente comprometida, com altos índices de violência,

pois esse campo é um dos espaços privilegiados, no qual todas essas demandas

aparecem e apresentam-se de formas latentes. Os profissionais de saúde

recebem os sujeitos da violência que incomodam e que desestabilizam uma

prática, possibilitando (ou não) a mudança de olhar e ação. Deslandes (1999)

define a violência como um grande desafio para o setor da saúde: por não ser

uma doença e tratar-se apenas dos “efeitos” ou consequências deixadas e por

exigir uma mudança na práxis a partir de uma articulação interna e com outros

setores. Além disso, suplica ao profissional de saúde que não veja apenas um

corpo lesionado, mas um sujeito!

A violência aparece para “dramatizar causas” e, desta forma, torna o incômodo

público, o que possibilita o movimento para propor e exigir mudanças, rupturas

(MINAYO, 2003). E não há lugar melhor do que a saúde pública para que esse

problema seja visto e ouvido.

Jacques e Olinda (2012, p. 127) afirmam que “[...] a violência avançou da esfera

governamental-social para sua intersecção com a saúde [...]” e isso se deu não

apenas pelos índices de mortalidade e morbidade, mas pela sua colaboração na

proposição de estratégias preventivas.

A saúde pública brasileira está caminhando e apresenta várias falhas, mas não é

possível negar que tem avançado a passos largos. A tentativa de humanização

Page 38: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

38

dos serviços é um grande testemunho desse novo momento. Além disso, Krug et

al. (2002, p. 4) lembram que “[...] a saúde é, acima de tudo, caracterizada por sua

ênfase na prevenção”. Enfatiza que esse setor opera com uma outra lógica e que,

“[...] em vez de simplesmente aceitar ou reagir à violência, seu ponto de partida é

a forte convicção de que tanto o comportamento violento quanto suas

consequências podem ser evitados”.

Definitivamente, isso não significa que a saúde salvará e livrará a sociedade das

violências sofridas e praticadas, pelo contrário, sozinha ela não terá êxito algum.

Sua contribuição reside na mudança de foco! A integralidade do cuidado exige a

intersetorialidade e sabe-se que para a redução da violência é necessário

empenho coletivo voltado para os três níveis de prevenção: primário, secundário e

terciário, envolvendo toda a sociedade nos processos de gestão social para a

construção de propostas viáveis, eficientes e eficazes.

O tema da violência foi incorporado aos poucos na área da saúde pública e ainda,

infelizmente, encontra resistências por meio das condutas dos profissionais que

não reconhecem suas nuanças, apesar dos órgãos gestores implantarem uma

Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Na

verdade, a atuação dos profissionais reflete uma violência institucional que tem

raízes mais profundas e não cabe, neste trabalho, discuti-las (MINAYO, 2006).

O importante é considerar que este assunto é novo para a saúde e apresenta-se

como um grande desafio, pois nos serviços de saúde brasileiros tem-se como

referência a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à

Saúde (CENTRO BRASILEIRO DE CLASSIFICAÇÃO DE DOENÇAS, 2008). E a

atual classificação não explicita a questão da violência, pois não é considerada

doença na perspectiva biomédica; mas condensa-se em “causas externas” (V01-

Y98), que por sua vez são divididas em: não intencional, intencional e evento de

intenção indeterminada. Causa externa não intencional abrange acidente de

trânsito, envenenamento acidental, quedas, exposição ao fogo, frio, afogamento,

contato com calor, com cobras, lagartos, aranhas, escorpiões, abelhas, vespas,

complicações da assistência médica e outras. Causa externa intencional abarca

Page 39: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

39

suicídio, homicídio, guerra, intervenção legal e, por último, os eventos de intenção

indeterminada (MINAS GERAIS, 2010).

Desta forma, torna-se imperativo uma ruptura de paradigmas para a construção

de uma “cultura de paz” na nossa sociedade construída:

[...] por sujeitos que a partir do seu cotidiano de trabalho e de vida se encontram, produzem conhecimento coletivo e se constroem como sujeitos coletivos, portanto, unificados num projeto maior no qual se reconhecem e, sobretudo, dentro do qual ainda preservam a sua autonomia (MELO, 2010, p.13).

Esse é o desafio não só da saúde pública, mas do nosso e de todos os outros

países que encontram na violência um problema complexo que interfere no

desenvolvimento social, econômico, político e humano das nossas nações.

Promover a saúde biopsicossocial e espiritual das pessoas é proporcionar-lhes

oportunidades de serem sujeitos e cidadãos do mundo!

2.2 Tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes

El suicidio es una cuestión de algunos, el suicida es una cuestión de todos.

Boronat.

As crianças e adolescentes representam 31,3% da população brasileira, conforme

demonstram os dados colhidos pelo censo demográfico de 2010. Isso equivale a

aproximadamente 60 milhões de pessoas (IBGE, 2010).

De acordo com Waiselfisz (2012), ao longo dos últimos 10 anos a taxa de suicídio

infanto-juvenil aumentou quase 26,2%. Nosso país possui um índice

relativamente baixo, se comparado com outras nações, mas há que se considerar

alguns agravantes: apesar da existência dos sistemas de notificação de casos de

violência, os quantitativos não expressam fielmente nossa realidade,

principalmente quando se trata das “tentativas de suicídio”. Outra questão

Page 40: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

40

relevante é que o aumento mais expressivo de casos encontra-se na faixa etária

dos jovens. Desta forma, são mais de 24 milhões de adolescentes em risco.

É também comum as pessoas acreditarem que as crianças não tentam suicídio e

esse mito impossibilita o seu registro como violência e são vistos e interpretados

como “acidentes”. O que difere o acidente de uma tentativa de suicídio é

justamente a sua intencionalidade; e a criança, se escutada, dá conta de dizer do

seu sofrimento e da sua intenção. Mas parece ser ameaçador e inconcebível que

uma criança deseje a morte e, assim sendo, os pais não relatam e os

profissionais de saúde não “escutam” também esse pedido de cuidado. Ressalta-

se, no entanto, que a crença da inocência infantil e incapacidade de tentar a

morte estão aos poucos sendo questionadas (WHO, 2013).

Os adolescentes também são negligenciados e as suas tentativas são vistas

como ações irresponsáveis “pedidoras” de atenção. A partir do uso do poder nos

serviços de atenção e cuidado da criança e do adolescente e também no seio do

núcleo familiar e social, são, algumas vezes, ridicularizadas e discriminadas. Eles,

assim como as crianças, são mais uma vez “violentados” no seu direito de ser

sujeito.

Diante dessa reflexão e da complexidade do tema, propõe-se um percurso por

três visões do suicídio: sociológica, psicossocial e da saúde. A visão sociológica

resgata, brevemente, uma discussão clássica baseada nos estudos de Durkheim

e Marx, considerando o aspecto social do suicídio. A psicossocial apresenta

alguns autores que concebem o fenômeno como uma junção dos aspectos

psíquicos e sociais com foco nos vínculos estabelecidos pelo sujeito e sua

importância nesse ato. Já a saúde apresenta diversos documentos que apostam

em uma política pública, o suicídio, como forma de violência e propõe ações

intersetoriais de prevenção e promoção de saúde.

Essas três perspectivas de estudo do suicídio não são as únicas e

separadamente não dão conta de explicar a complexidade do problema. Optou-se

por utilizar essas referências na expectativa de que abordem o fato,

complementarmente, de forma mais sistêmica e corresponsável, pois se acredita

Page 41: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

41

na responsabilidade de TODOS diante do fenômeno. No entanto, este trabalho

não pretende, de forma alguma, esgotar o tema, pois é sabido das limitações

existentes em cada abordagem por tratar-se de fenômeno complexo e

multifatorial. A tentativa é trazer algumas concepções que possibilitem ajudar na

discussão e compreensão dos casos de tentativa de suicídio infanto-juvenil

pesquisados no município de Matozinhos, nos últimos cinco anos.

2.3 Visão sociológica do suicídio

Inicialmente, faz-se necessário resgatar uma discussão clássica que circunda

esta temática tão delicada: o suicídio.

De acordo com Durkheim (1897/2000), o suicídio foi muito frequente entre os

povos primitivos. No entanto, apresentava características distintas entre si com

foco maior nas questões culturais. Ele agrupa os suicídios realizados na época

em três categorias:

1º. Suicídios de homens que chegam ao limiar da velhice ou são afetados por doenças. 2º. Suicídios de mulheres por ocasião da morte do marido. 3º. Suicídios de clientes ou servidores por ocasião da morte de seus chefes (DURKHEIM, 2000, p. 272, publicação 1897).

Essa categorização e o relato dos fatos ocorridos fazem com que o autor conclua

que “a sociedade pesa sobre o indivíduo”, de forma a “levá-lo a se destruir”

(DURKHEIM, 1897/2000, p. 273). Caso o fato não fosse concretizado, o indivíduo

era punido com a desonra e castigos religiosos.

Quando se refere às cidades greco-latinas, Durkheim (1897/2000) descreve uma

“legislação do suicídio”, que passou por duas fases: a primeira, na qual o ato de

autoextermínio só era “[...] considerado ilegítimo quando não tinha autorização do

Estado” (DURKHEIM, 1897/2000, p. 426).

Page 42: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

42

Aquele que não deseja viver por mais tempo deve expor suas razões ao Senado e, depois de ter obtido dispensa, deixar a vida. Se a existência te é tediosa, morre; se estás oprimido pela fortuna, bebe cicuta. Se estás arqueado pela dor, abandona a vida. Que o infeliz conte seu infortúnio, que o magistrado lhe forneça remédio e tua miséria terá fim (DURKHEIM, 2000, p. 427, grifo do autor, publicação 1897).

O remédio referido era veneno, substância que ficava em posse de todos os

magistrados. Caso a autorização não fosse concedida e o ato cometido, havia

penalizações: eram recusadas as honras da sepultura e a “[...] mão do cadáver

era cortada e enterrada à parte” (DURKHEIM, 1897/2000, p. 426).

Na segunda fase, a condenação do suicídio era absoluta e sem qualquer

exceção. Desta forma, tanto o indivíduo quanto a sociedade perdem o “direito de

escolha pela morte”. E, segundo Durkheim (1897/2000), à medida que o tempo

passa, essa proibição torna-se ainda mais radical, mas não evitou que o fato

ocorresse. Marx (1846/2006), em seu livro “Sobre o Suicídio”, alerta sobre esse

fracasso, quando diz dessa crença em conter o autoextermínio com base em

penalidades, sejam elas morais ou jurídicas.

Vê-se que o suicídio não é, definitivamente, evento recente em nossa sociedade.

Na linha histórica tem-se desde ato “heróico”, honroso, até penalizações e sanção

desse “direito” (DURKHEIM, 1897/2000). Mas, realmente, o que vem a ser o

suicídio?

As abordagens sociais referem-se àquelas que buscam respostas nas ciências

sociais. Essa vertente entende o suicídio como fato e sintoma social.

Responsabiliza não só o indivíduo, mas toda sociedade sobre cada ato de

autoextermínio. O foco é a sociedade e suas mazelas, seus vínculos e forma de

funcionamento.

Segundo Rodrigues (2009), apesar de Marx e Durkheim partirem de pontos de

vistas diferentes, eles chegam à conclusão de que a “causa” desse sintoma é

social. Marx faz um estudo de casos analisando a “vida privada” e Durkheim parte

de uma análise do “exterior”, da sociedade, do contexto. Rodrigues (2009, p. 706)

afirma que, “[...] como Durkheim, Marx também acreditava que os valores sociais

Page 43: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

43

são determinados pela natureza particular das sociedades e [...]”. Como somos

parte integrante desse sistema, não há como eleger privilegiados para

determinados sintomas, pois “[...] uma sociedade de natureza desumana fere

todos, das mais diversas origens sociais”.

Essa sociedade fere todos, mas apenas alguns cometem suicídio. Com base

nessa afirmação, é necessário pensar na necessidade de “[...] lançar mão de

múltiplos olhares que focalizem a relação que travamos entre o interior/exterior”

(RODRIGUES, 2009, p. 708). Por intermédio das palavras de Enderle (1846, apud

MARX, 2006, capa do livro de MARX) percebe-se essa ampliação de perspectiva

quando se referir ao suicídio:

[...] uma correta compreensão do suicídio não pode limitar-se a causas puramente psicológicas, tampouco reduzir este fenômeno a uma variável condicionada por fatos sociais exteriores ao indivíduo. [...] o suicídio possui, em Marx e Peuchet, o alcance de uma renúncia do indivíduo a uma existência inautêntica, apartada do gênero humano. Suas raízes não se encontram, portanto, em nenhuma individualidade ou sociedade cristalizadas, mas sim no âmago daquele vivo e sempre mutável complexo de categorias que chamamos de ser social.

É justamente esse ser social que tenta o autoextermínio que se busca, neste

trabalho, pesquisar, compreendendo esse fenômeno como um ato complexo e

multidimensional.

Assim, aqui suicídio é conceituado como “[...] todo caso de morte que resulta

direta ou indiretamente de um ato, positivo ou negativo, realizado pela própria

vítima e que ela sabia que produziria esse resultado” (DURKHEIM, 1897/2000, p.

14). E para esse autor, o suicídio possui três tipos: egoísta, altruísta e anômico. O

egoísta resulta de uma falha da integração do indivíduo com o seu meio social,

ou seja, há excesso de individualização e o vínculo se perde, fazendo com que a

pessoa não tenha mais sentimentos de coletividade e a sua vida seja

insignificante para o “todo”. O altruísta é o oposto; o indivíduo está unificado ao

social de tal forma que não existe na sua singularidade, não há individualidade;

depende e está totalmente integrado ao meio social. O terceiro e último é o

anômico, um estado de desregramento, uma fraca regulação social na qual o

Page 44: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

44

indivíduo não encontra razão em si nem no meio social, está sem freio para

dominar suas paixões.

Suicídio é um ato praticado por um indivíduo, porém suas causas não são

puramente subjetivas; são sociais, referem-se à sociedade na qual ele pertence.

Acredita-se que o suicídio é um “[...] sintoma da organização deficiente de nossa

sociedade” (MARX, 1846/2006, p. 23-24). E que “[...] os motivos pessoais que

levam os indivíduos a buscarem a morte de maneira deliberada podem funcionar

como canais por onde forças coletivas também passam” (RODRIGUES, 2009, p.

700).

Nesse contexto, a tentativa de suicídio seria justamente um esforço sem êxito,

“[...] interrompido antes que dele resulte a morte” (DURKHEIM, 1897/2000, p. 14).

Nessa perspectiva sociológica, o suicídio e a tentativa são produtos das relações

que se presentificam nos âmbitos sociais de uma sociedade “adoecida” e

“perversa”. Durkheim e Marx consideram o sujeito um integrante de uma cena do

contexto social e o foco privilegia esse cenário.

Atualmente, uma socióloga de nome Maria Cecília de Souza Minayo, estudiosa

sobre o assunto, assim como vários outros autores, faz algumas reflexões mais

ampliadas, abordando a temática por meio de uma interseção com a saúde e

tratando o fato como violência estrutural e grave problema de saúde pública.

Resgata a história brasileira marcada pelas diversas violências e, recentemente,

em estudo realizado com outros pesquisadores, apresenta uma metodologia

psicossocial para autópsias psicológicas e psicossoais, na qual busca diversificar

as interlocuções, apostando que o suicídio é multicausal, multidimensional, social,

mas também singular, pois “[...] cada pessoa reage e interpreta o sofrimento que

a atinge de um modo particular” (CAVALCANTE et al., 2012, p. 2051). Essa nova

visão é um convite à transdisciplinaridade!

Page 45: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

45

2.4 Visão psicossocial do suicídio

Para apresentar a visão psicossocial, utilizar-se-ão três autores, que são

complementares, para expressar a compreensão do suicídio e da tentativa nesta

perspectiva.

Bastos (2009, p. 72) considera que as tentativas de autoextermínio são diferentes

do suicídio fatal, pois há um “desejo ambíguo” entre a vida e a morte e “[...] nem

todo paciente que tenta se matar necessariamente tornar-se um suicida de fato”.

Baseado em estudos de Stubbe e Bojanovsky, ele apresenta passos gradativos

antes de se chegar ao suicídio propriamente dito, conforme FIG. 4:

FIGURA 4 – Contínuo da autodestruição

1º Grau de suicídio 2º Grau de suicídio 3º Grau de suicídio

VIDA MORTE

Fantasias suicidas Tentativas de suicídios Suicídios exitosos

Fonte: adaptado de Bastos (2009, p. 71) com adaptações.

O autor defende a visão psicanalítica e declara que o primeiro grau de suicídio

refere-se ao nosso inconsciente e que todos o apresentam, o que não significa,

necessariamente, que venhamos a tentar suicídio ou de fato nos matar. O

segundo grau de suicídio é considerado uma fase intermediária na qual “[...]

realiza-se alguma atitude que põe em risco a sua própria vida [...]” (BASTOS,

2009, p. 72), o que não significa, objetivamente, que essa pessoa se tornará “um

suicida de fato”. Porém, existe o alerta para que não haja negligência do

profissional clínico diante do ato. O terceiro grau caracteriza-se pelo “forte e firme

desejo” que a pessoa tem de se matar, com grandes possibilidades de

concretização do ato de autoextermínio.

Assim, o ciclo do suicídio teria essas três fases, que são separadas em graus,

trazendo as características peculiares de cada um. Bastos (2009) também

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46

recomenda para tratamento dos primeiros graus um trabalho com equipe

multiprofissional para reversão dessa “tendência autodestrutiva”. E ressalta a

necessidade de verificar o contexto político e social que inclui esse sujeito, pois é

em função dele “[...] que poderemos ler qual desses fatores ou patamares poderá

estar preponderando na tentativa da morte de si mesmo ou no suicídio fatal”

(BASTOS, 2009, p. 68).

Boronat (2013)4, baseado em muitos estudos sobre o tema, construiu um

esquema que seria uma síntese do processo do suicídio que ultrapassa e

completa a ideia de Bastos. Ele parte dos fatos cotidianos vivenciados por todos

nós e ressalta que as nossas ações são escolhas e possuem intenções com foco

no alcance e na conquista de algo. Quando fazemos escolhas que dificultam ou

impossibilitam a conquista daquilo que desejamos, temos um problema: “[…] En

la medida que aparecen las dificultades, cualquier situación puede transformarse

en un problema cuando no encontramos alguna alternativa posible y sustitutiva”

(“[…] Na medida em que aparecem as dificuldades, qualquer situação pode

transformar-se em um problema quando não encontramos alguma alternativa

possível ou substitutiva” – tradução livre) (BORONAT, 2013, s.p.).

Podem-se encontrar soluções para alguns problemas e conviver com outros, no

entanto, alguns se agravam nessa ausência de possibilidades na qual as

soluções não são aquelas desejadas ou aceitas; e assim tem-se um conflito. Até

então, fatos cotidianos, problemas e conflitos são comuns nos sujeitos e fazem

parte da nossa existência. O que difere uma pessoa da outra é, entre várias

outras peculiaridades, justamente as suas relações consigo, com os outros e com

o mundo, que são influenciadas pelo ambiente político, histórico, social e subjetivo

(psíquico) (BORONAT, 2013, s.p.).

Esse conflito, quando não resolvido, torna-se insuportável para o sujeito e tem-se

uma crise. Para Boronat (2013), a crise é totalizadora e a pessoa deseja a todo o

instante acabar com a angústia que sente, pois se confunde com a dor que é da

ordem do insuportável. Nessa fase tem-se baixo potencial suicida.

4 Boronat enviou a apresentação por e-mail e autorizou o uso do seu esquema, ainda não

publicado.

Page 47: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

47

Caso a crise não seja vista, escutada e tratada, a pessoa passa a ter

pensamentos de fuga, pois não consegue distanciar-se do seu sofrimento. E

“sumir, fugir, distanciar” são soluções vistas para encerrar com o insuportável.

São fantasias negativas que geralmente a pessoa verbaliza antecipando as suas

decisões. Boronat (2013) destaca alguns comportamentos característicos dessa

fase: “[...] síndrome pre-suicida (germina la idea); pérdida de intereses, repliegue

sobre sí mismo; Suspensión de las vivencias en el tiempo; Inhibición de la

agresividad” (“[…] síndrome pré-suicida (nasce a ideia); perda de interesse, volta

para si mesmo, suspensão das experiências exteriores, inibição da agressividade”

– tradução livre) . Nesta fase, o potencial suicida é mediano e o autor ressalta a

possibilidade e necessidade de “prevenção”, de ações interventivas e preventivas.

Boronat (2013, s.p.) preleciona: “[…] La fantasía permanente de huída, el

sentimiento de soledad y de que no existe solución ni comprensión para su

sufrimiento, transforma el deseo de alejamiento en la idea de desaparecer, de

matarse” (“[…] A fantasia permanente de ruína, o sentimento de solidão e de que

não existe solução nem compreensão para o seu sofrimento, transforma o desejo

de afastamento em uma ideia de desaparecer, de matar-se” – tradução livre).

Essa é a fantasia de morte, também chamada de ideação suicida. Nesse

momento, há um planejamento da ação com detalhes do tipo: onde, quando,

como e que, variando, para o autor, segundo a situação e personalidade do

sujeito. O potencial suicida é alto e, geralmente, há mensagens das intenções.

O desenvolvimento da ideação suicida é detalhado por Boronat (2013, s.p.,

trasdução livre), sugerindo que os três momentos são preveníveis:

Consideración: El suicidio es una vía de escape de los conflictos. Ambivalencia: Lucha interna entre las tendencias destructivas y de conservación. Decisión: Aparece una brusca tranquilidad “siniestra”. Aparecen actos preparatorios, planificación concreta. Consideração: O suicidio é uma via de escape dos conflitos. Ambivalência: Luta interna entre as tendencias destrutivas e de conservação. Decisão: Aparece uma brusca tranquilidade “sinistra” Aparece matos preparatórios, planejamento concreto.

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48

Essa ideia, quando concretizada e não ocasiona imediatamente a morte, recebe o

nome de tentativa de suicídio. Podem ocorrer várias tentativas e quando não

são escutadas e assistidas em tempo possivelmente serão repetidas no prazo de

três a seis meses. Para Boronat (2013), os “intentos” são ensaios ou buscas de

mudanças no seu entorno para término do sofrimento sentido. E ressalta que são

imprescindíveis a assistência e o cuidado da pessoa nesse momento.

Caso a tentativa seja “exitosa” tem-se o suicídio em si e o que resta a fazer, de

acordo com o autor, é decodificar as mensagens deixadas pela pessoa para

interpretar os motivos e causas, a partir das autópsias psicológicas. Pontua,

também, que a família deve reordenar-se diante desse contexto e acrescenta que

ações pontuais e até preventivas no núcleo familiar deverão ocorrer, pois é sabido

na literatura que a existência de casos de suicídio na família pode ser dispositivo

para que outros consanguíneos repitam a ação (BORONAT, 2013).

Conforme explanação anterior e FIG. 5, percebe-se que esse é um processo

contínuo e crescente que se inicia com um fato corriqueiro e no meio do caminho

são transmitidos vários sinais de que devem ser escutados para que esse “ciclo”

não se conclua e não seja preciso perder mais vidas. Assim, a proposta de

prevenção para interrupção do agravamento dessas fases torna-se prioridade.

FIGURA 5 - Processo de suicídio

Fonte: adaptado de Boronat (2013).

O contínuo de autodestruição apresentado por Bastos (2009) e o processo do

suicídio construído por Boronat (2013) explicam o fato de forma psíquica,

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49

subjetiva e contribuem de forma efetiva para a construção de intervenções

preventivas clínicas e sociais, baseadas no funcionamento e procedimentos

característicos do suicídio e dos sujeitos que cometem ou são “acometidos” por

ele.

Bentancurt (2011) acredita que existem características de personalidade que

propiciam o suicídio, mas aposta em uma visão mais sistêmica e inclui a família e

o contexto social, pois acredita que o conflito não é individual.

Assim sendo, a autora apresenta, no QUADRO 1, algumas características que

estão na base, são causas primárias de um suicídio ou da tentativa.

QUADRO 1 – Fatores de risco para o suicídio

Familiares

Sociais

Antecedentes familiares de conduta suicida

Exposição a outro suicídio, de um companheiro, amigo ou conhecido

Disponibilidade de meios em casa Acesso a meios letais e meios de comunicação irresponsáveis

Antecedentes de depressão ou enfermidade mental na família

Estigma negativo associado à procura por ajuda e falta de acesso aos serviços de ajuda

Mudanças na estrutura familiar e também mudanças constantes de residência

Morte inesperada e outros eventos de perda

Família disfuncional: violência; dificuldades de comunicação; abuso de álcool ou drogas; pais incoerentes, imprevisíveis ou muito rígidos

Violência estrutural e problemas com a lei

Isolamento Isolamento ou discriminação social

Expectativas paternas afastadas da realidade (sobre-exigência)

Altos níveis de pressão, inclusive para ter êxito

Família pouco afetiva ou excludente Bullying, cyberbullying ou eventos humilhantes

Fonte: adaptado de Bentancurt (2013), que autorizou por e-mail o uso da sua apresentação, com a devida referência para citação que foi fornecida por ela.

Nesse quadro didático e aparentemente simples é possível visualizar que o

suicídio é um fenômeno multifatorial, complexo, social e histórico, que extrapola

as características de personalidades. A questão familiar explora desde o ambiente

físico e concreto até as relações e vínculos estabelecidos, passando, inclusive,

Page 50: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

50

pelo imaginário quanto ao desempenho dos papéis dos seus membros. No social,

percebe-se a ampliação do círculo desse sujeito, com fatos que extrapolam a sua

“autonomia”, pois estão presentes para todos e o diferencial será justamente a

forma como lidar com eles.

A ideia apresentada complementa os autores anteriores, ressaltando a

contribuição desses fatores “externos” ao sujeito para que decida por ações que

visam à morte ou ao alívio de um sofrimento (BENTANCURT, 2011).

O mais interessante é que Bentancurt (2011) apresenta possibilidades de

prevenção e tratamento e denomina DE “recursos” capazes de ajudar o sujeito.

São baseados no QUADRO 1, no qual se incluem as características e ações

pessoais, familiares e sociais necessárias para a promoção de saúde da pessoa.

Como traços pessoais ou de personalidade, cita a criatividade, adequada

autoestima, capacidade prospectiva, autoexigência proporcional às suas

capacidades, etc. Na parte das relações familiares, afirma serem necessários:

relações afetivas, tolerância com erros, apoio incondicional, reconhecimento,

comunicação favorável, etc. Em relação às características sociais, menciona as

amizades e relações emocionalmente significativas; acesso a oportunidades de

desenvolvimento pessoal integral, e adequada resolução de conflitos.

O sujeito transita, então, pela sua psique, sua família e pelo item social. E a partir

das relações que constrói e que são estabelecidas consigo, com outro e com o

mundo encontra fatores que favorecem ou não o risco do suicídio

(BENTANCURT, 2011).

Neste texto, foi possível verificar que, por ser extremamente complexo, o suicídio

deve ser percebido, estudado e tratado por diversas fontes, que ao conversarem

entre si identificam as peculiaridades e diferentes ressalvas sobre o mesmo fato.

Page 51: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

51

2.5 Visão da saúde quanto ao suicídio

A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2002) afirma que o suicídio refere-se

diretamente à agressividade, conceituando-o como um ato violento cometido

sobre si mesmo, com a clara intenção de morrer. E constata que ele está entre as

20 maiores causas de morte mundiais para todas as idades e que a cada 40

segundos uma pessoa comete suicídio no mundo. É um dado assustador!

Principalmente ao se ter conhecimento de que a taxa entre os jovens aumentou

ao nível de, na atualidade, constituírem-se no grupo de mais alto risco. Cabe

ressaltar que o suicídio, como uma forma de violência, é também multifatorial,

sendo suas causas complexas e sua descrição e conceito não menos densos.

O suicídio é um fato antigo, mas que se apresenta na atualidade como problema

de saúde pública. Tardiamente incluído na agenda pública, mobilizou parte da

sociedade e do poder público para construção de políticas e ações de prevenção.

A tentativa de suicídio, ainda mais complexa, por sua dificuldade de registro,

destaca o imperativo de intervenções urgentes. Essa assertiva encontra eco nas

dizeres do Ministério da Saúde, quando afirma que os registros de tentativas de

suicídio são mais escassos e menos confiáveis, mas estima-se que seja pelo

menos 10 vezes maior do que o número de suicídios (BRASIL, 2009).

[...] em muitos locais, os ferimentos não precisam ser relatados e as informações referentes aos mesmos não são coletadas em nenhum nível. Outros fatores também podem influenciar os registros, como idade, método utilizado para tentativa de suicídio, cultura e acesso a serviços de saúde. Em resumo, na maioria dos países, os índices de tentativas de suicídio não são claramente conhecidos (OMS, 2002, p.187).

Essa subnotificação engendra reflexões acerca do cuidar realizado pelo

profissional de saúde. É um cuidar ético, estético e humano? Quando se pensa

que os profissionais da área da saúde lidam com a díade vida-morte a todo o

momento, torna-se difícil e escabroso entender os motivos da ausência de dados

sobre a tentativa de “morte”. Se é difícil trabalhar a morte como finitude e

processo natural da vida, se é quase inaceitável, questionamentos lúcidos e

opacos rondam o imaginário humano quando um sujeito “sadio” escolhe por ela.

Essa dificuldade de compreensão se presentifica para o profissional que lida

Page 52: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

52

diariamente com pessoas, em tenra idade e, ao que tudo indica, que não veem

pela frente uma existência fascinada, mas obscura e sem perspectivas. Afinal, a

morte não está associada apenas ao corpo físico, mas ao sujeito que imprime

significado aos objetos e atos que executa. Dessa maneira, não se pensa na

violência apenas como lesão de um corpo, mas como um ato social executado

por um sujeito que será acolhido por outro sujeito que também carrega suas

representações e significações referentes à vida e à morte.

Os profissionais da saúde lidam com suas questões subjetivas e também as

objetivas que otimizam e viabilizam o trabalho. Como exemplo, pode-se citar a

Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde

(CID), que enquadra e caracteriza o suicídio como lesão autoprovocada

intencionalmente (X60 a X84). É esse código que aparece, ou deveria aparecer,

nos prontuários para determinar e orientar a atuação diante desse tipo de

violência, pois o profissional é obrigado a notificar em formulário específico tal fato

(CENTRO BRASILEIRO DE CLASSIFICAÇÃO DE DOENÇAS, 2008).

Com base nesses dados e em estudos, percebeu-se a necessidade de construir

políticas públicas de prevenção do suicídio e promoção da saúde. O suicídio é

visto como um grave problema de saúde pública que afeta todos e pode ser

prevenido e, para tanto, várias portarias foram criadas. Entre elas, destacam-se:

a) Portaria nº 737, de 16 de maio de 2001, que dispõe sobre a Política

Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências,

cujo objetivo é estabelecer diretrizes e responsabilidades institucionais em

que se contemplem e valorizem medidas inerentes à promoção da saúde e

à prevenção de agravos externos (BRASIL, 2001);

b) Portaria nº 936, de 19 de maio de 2004, que dispõe sobre a estruturação

da Rede Nacional de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde e a

implantação e implementação de núcleos de prevenção à violência em

estados e municípios (BRASIL, 2004a);

c) Portaria nº 1876, de 14 de agosto de 2006, que institui Diretrizes

Nacionais para Prevenção do Suicídio, a serem implantadas em todas

Page 53: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

53

as unidades federadas, respeitadas as competências das três esferas de

gestão (BRASIL, 2006b).

As proposições dessas portarias possibilitaram a construção de ações de

prevenção da violência e promoção da saúde. Alguns manuais foram criados para

orientar os profissionais de saúde, dos diferentes níveis de complexidade, nas

ações de prevenção do suicídio. Apesar de algumas iniciativas reforçarem a visão

biomédica do fenômeno, não se pode negar que o tema entrou para pauta da

saúde e isso trouxe benefícios. Também é importante destacar que essa inclusão

deu-se por fatores econômicos, inclusive, pois o custo de vitimados pela violência

nos serviços de urgência é altíssimo. De acordo com informações do site do

Ministério da Saúde (SIH–SUS), em 2003 aproximadamente, 724 mil pessoas

foram internadas por causas externas e o custo disso aos cofres públicos foi de

R$ 466.412.502,80 (BRASIL, 2012a). Portanto, não sejamos ingênuos de

acreditar que a “cultura pela paz” se dá meramente pela filosofia “cristã” e

solidária de um governo; o suicídio é um problema histórico, social, político,

econômico e psíquico.

2.6 Qualidade de vida: prevenção da tentativa de suicídio e promoção da

saúde

A discussão sobre o conceito de qualidade de vida aborda diferentes olhares

sobre a temática, destacando aspectos objetivos, subjetivos, econômicos e

sociais, dependendo da perspectiva e do campo semântico que será analisado.

Na verdade, o ponto comum é seu aspecto multidimensional, sua multiplicidade e

variedade de fatores que influenciam sua composição.

Minayo (2000) afirma que a relação estabelecida entre saúde e qualidade de vida

é antiga e existe desde o século XVIII, quando surgiu a Medicina social. Naquele

tempo, o termo utilizado era: condições de vida. Outro ponto importante para

ressaltar é que as pesquisas realizadas com esse viés subsidiaram algumas

políticas públicas e movimentos sociais.

Page 54: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

54

Atualmente, existem indicadores e diversos instrumentos utilizados para medir a

qualidade de vida de determinados grupos e sociedades, inclusive brasileiros

(final dos anos 80), que se basearam na compreensão da nossa realidade social,

considerando as desigualdades existentes na perspectiva microrregional, com

foco local (MINAYO et al., 2000).

De acordo com Silveira et al. (2013, p. 2008), “[...] há uma escassez de estudos

sobre a qualidade de vida entre adolescentes brasileiros” e urge a necessidade de

mais estudos para esta população, visando à elaboração de políticas públicas de

prevenção e promoção de saúde. E quando se pensa na violência juvenil

existente em nosso país, esta temática torna-se relevante e preocupante, pois os

dados vistos vão de encontro ao que se considera qualidade de vida para as

crianças e adolescentes.

Minayo (2000, p. 10) destaca essa preocupação, afirmando que “[...] no mundo

ocidental atual, por exemplo, é possível dizer também que desemprego, exclusão

social e violência são, de forma objetiva, reconhecidos como a negação da

qualidade de vida”. Mas o que consideramos como qualidade de vida?

Antes de apresentar o conceito, cabe refletir acerca das palavras de Herculano

(2000), que salienta a necessidade de abordar a qualidade de vida como base

para a construção de uma sociedade ética, humanizada e que respeite a vida e as

potencialidades humanas sem destruir a natureza. Nessa consideração, pode-se

verificar que a qualidade de vida é mais que um simples conceito, é uma visão de

mundo que orienta ações e constrói sujeitos.

A esse respeito, Rufino Netto (1994, apud MINAYO, 2000, p. 8), no II Congresso

de Epidemiologia, considera:

[...] como qualidade de vida boa ou excelente aquela que ofereça um mínimo de condições para que os indivíduos nela inseridos possam desenvolver o máximo de suas potencialidades, sejam estas: viver, sentir ou amar, trabalhar, produzindo bens e serviços, fazendo ciência ou artes.

Qualidade de vida, então, é um misto de objetividades e subjetividades que vão

possibilitar a saúde e existência diferenciada dos sujeitos no mundo. Erik Allardt

Page 55: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

55

(1993, apud VITTE, 2009), enfatiza que as necessidades individuais podem ser

resumidas em três verbos: ter, amar e ser. O verbo ter estaria ligado às condições

materiais, “necessidades básicas, de sobrevivência”. O amar seria aquela

necessidade de relacionar-se com outras pessoas, formando identidades sociais;

são os aspectos afetivos e de “solidariedade intragrupos”. O ser ultrapassa e

engloba a integração com a sociedade pelo viés da participação: em que medida

uma pessoa participa nas decisões e atividades coletivas que influenciam sua

vida, atividades políticas, oportunidades de tempo de lazer, etc.

Essa proposta aparentemente simples abrange diversas dimensões humanas que

propiciam, ou não, a qualidade de vida. O ter está relacionado às condições de

vida das pessoas e é preponderante que essa pessoa tenha moradia,

alimentação, saneamento e acesso aos setores e serviços básicos para que se

relacione com o mundo de forma diferenciada e positiva (ALLARDT, 1993 apud

VITTE, 2009).

Na dimensão do verbo amar é interessante resgatar “[...] as ideias de

desenvolvimento sustentável e ecologia humana”, destacados pela autora Minayo

(2000, p. 10). É essa solidariedade e consciência coletiva que torna o ser humano

capaz de construir uma forma diferenciada de ser e estar no mundo, garantindo o

seu bem-estar e a qualidade de vida de todos.

O verbo ser remete à dimensão de sujeito, cidadão e “[...] relaciona-se ao campo

da democracia, do desenvolvimento e dos direitos humanos e sociais” (MINAYO,

2000, p. 10). E sabe-se que a relação estabelecida entre a democracia e a

qualidade de vida é íntima, pois “[...] quanto mais aprimorada a democracia, mais

ampla é a noção de qualidade de vida, do grau de bem-estar da sociedade e da

equidade ao acesso aos bens materiais e culturais” (MINAYO, 2000, p. 11).

Assim sendo, ter, amar e ser são fundamentais para a construção da qualidade

de vida. Qualidade de vida, então, é um processo multidimensional de construção

do seu lugar no mundo, considerando os aspectos biológicos (necessidades

básicas), psicológicos, políticos, sociais e ambientais.

Page 56: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

56

Alguns pesquisadores discutem a temática e preocupam-se com os instrumentos

utilizados para a sua medição, sua avaliação. Segundo Fleck (2000), a OMS

desenvolveu um instrumento para avaliação da qualidade de vida chamado World

Health Organization Quality of Life (WHOQOL-100) e, posteriormente, criou sua

versão resumida com apenas 26 questões (WHOQOL-Bref). Seidl e Zannon

(2004) abordaram a construção desse instrumento como um projeto multicêntrico

baseado em quatro grandes dimensões: física, psicológica, relacionamento social

e ambiente. Essas dimensões são também contempladas nos verbos, ter, amar e

ser, destacados por Erik Allardt (apud VITTE, 2009). Desta forma, percebe-se

que, no seu aspecto prático e objetivo, é possível mensurar esses pressupostos,

principalmente porque a avaliação do grau de qualidade de vida em que a pessoa

se encontra é explicitado de forma subjetiva.

É subjetivo porque “a qualidade de vida só pode ser avaliada pela própria pessoa”

(SEIDL; ZANNON, 2004, p. 582). E assim tem-se a definição de qualidade de vida

pelo grupo de Qualidade de Vida da Organização Mundial da Saúde como “a

percepção do indivíduo sobre a sua posição na vida, no panorama da cultura e

dos sistemas de valores nos quais ele vive e em relação a seus objetivos,

expectativas, padrões e preocupações” (SILVEIRA et al., 2013, p. 2008). Isso não

descaracteriza sua multidimensionalidade, visto que é composta de: “[...] um

híbrido biológico-social, mediado por condições mentais, ambientais e culturais”

(MINAYO, 2000, p. 12).

Sendo a qualidade de vida um conceito tão complexo e inesgotável, salienta-se

um aspecto de grande importância e que necessita de todas as dimensões: ter,

amar e ser para se efetivar. Fala-se, neste momento, da prevenção da violência

autoinfligida e da promoção da saúde como uma das formas de construção e

efetivação da qualidade de vida.

Por fim, esta pontuação convoca à reflexão de Rodrigues (2009, p. 711), que

suplica a formulação de políticas públicas que, “[...] levando em consideração

quem somos, ajudem-nos a não desperdiçar mais vidas” e a pensar em

intervenções locais que considerem a prevenção e a promoção da saúde com

enfoque na qualidade de vida como estratégias para ter, amar e ser.

Page 57: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

57

A Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências

foi promulgada em 2001, por intermédio da Portaria GM/MS nº 737/2001, e tem

como objetivo central o estabelecimento de diretrizes e responsabilidades

institucionais visando ações de promoção da saúde e de prevenção de agravos

externos (BRASIL, 2001). Para sua implementação, em 2004 foi estruturada a

Rede Nacional de Prevenção de Acidentes e Violências com base em três

estratégias centrais: informação e gestão em rede; criação de núcleos estaduais,

municipais e acadêmicos; indicadores de gestão. As diretrizes dessa política

preveem ações de prevenção nos três níveis, a partir de investimentos na

promoção da saúde, assistência multidisciplinar e intersetorial, sistematização dos

dados, qualificação dos recursos humanos e estudos e pesquisas na área.

É interessante registrar que, como há dificuldade em inserir no cotidiano dos

profissionais essas diretrizes e práxis e a assistência aos “vitimados” pela

violência, principalmente aqueles que tentaram suicídio são vistos como “não

sujeitos” que escolheram a morte e, portanto, salvar sua vida não é prioridade nos

atendimentos, seja na atenção primária, ambulatórios ou urgências (MELO,

2010).

Melo (2010, p. 15) explicita a “não existência” desses sujeitos, que são reduzidos,

quando muito, a apenas um corpo doente, reproduzindo a ideologia e o poder

biomédico no setor público de saúde. Propõe que o combate à violência recupere

“[...] em cada espaço, no cotidiano, essa competência que nos dá, a todos, a

condição de sujeitos, a fala; e explorar, ao máximo, em todos os espaços, as

suas potencialidades interativas” (grifo nosso). Para isso, é preciso ouvir e

mapear o problema para, assim, construir estratégias de prevenção e promoção

da saúde.

Elaborar propostas de prevenção e promoção são ações difíceis e devem ser

pensadas e construídas em conjunto com todos os envolvidos. Considerar os três

tipos de prevenção também é interessante para delimitar em qual nível ou quais

níveis as intervenções ocorrerão. Tem-se, assim, de acordo com Krug et al.

(2002, p. 15), a seguinte classificação:

Page 58: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

58

· Prevenção primária - abordagens que visam a evitar a violência antes que ela ocorra. · Prevenção secundária - abordagens que têm como foco as respostas mais imediatas à violência, tais como assistência pré-hospitalar, serviços de emergência ou tratamento de doenças sexualmente transmitidas após um estupro. · Prevenção terciária - abordagens que visam à assistência em longo prazo no caso de violência, tais como reabilitação e reintegração, e tentam diminuir o trauma ou reduzir a invalidez de longo prazo associada à violência (grifo nosso).

Mesmo na prevenção secundária, em que há “mais” urgência na atuação dos

profissionais, é possível e preciso escutar esse sujeito para além das suas lesões.

É necessário perceber as crianças e os adolescentes que tentaram suicídio e

chegam aos serviços de urgência e emergência como sujeitos e não apenas

pequenos corpos lesionados que precisam de sutura, lavagem gástrica ou demais

procedimentos. É pela saúde que eles pedem socorro e esse grito deve ser

também “tratado”. Não há como acolher, atender e tratar os sujeitos sem escutá-

los, muito menos criar projetos de intervenções sem incluí-los no processo.

Sejam políticas locais ou globais, a presença e participação dos cidadãos torna-se

fator indispensável para sua realização. A construção de redes e parcerias entre

os setores e as pessoas possibilita uma ação eficiente e eficaz no combate à

violência e na mobilização para uma cultura da paz. Sem ingenuidades, aqui não

se desconsideram os poderes e interesses existentes na perpetuação e

manutenção na violência, nem mesmo o recurso financeiro para sua manutenção.

A crença é de que esse fenômeno pode ser prevenido e reduzido, de forma que

se preservem as vidas, principalmente das nossas crianças e adolescentes, pois

a vida vale muito, literalmente! (SILVA; MAETA, 2010).

Silva e Maeta (2010) compartilham dessa visão e afirmam que a saúde deve atuar

intersetorialmente e intervir nos fatores determinantes e condicionantes da

violência, desenvolvendo ações de vigilância, promoção e prevenção.

Através de articulações intra e intersetoriais, deve-se buscar a construção de redes de solidariedade, a garantia de direitos, a promoção de uma cultura de paz e uma atenção integral e humanizada as pessoas que sofreram violência ou estão em vulnerabilidade às violências. Dentre as ações desenvolvidas pelo setor saúde, destacam-se também as articulações feitas no sentido de implementar medidas promotoras da qualidade de vida e de leis que sejam protetoras e que garantam direitos

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59

humanos. Outra grande ação é a avaliação de políticas e programas e a formação de recursos humanos, dentro de uma perspectiva de educação permanente (SILVA; MAETA, 2010, p. 85).

Ressalta-se, no entanto, que a “atenção integral” é uma utopia a ser alcançada e

que a saúde não é a salvadora do mundo nem a aniquiladora da violência, pois

esta é um fato complexo e multicausal. No entanto, cobrar sua implicação nesse

problema de saúde pública fortalece a rede e instrumentaliza as ações e as

intervenções intersetoriais. A inclusão na agenda escancara o problema como

sendo de TODOS os setores, serviços, profissionais e cidadãos.

Assim sendo, é necessário criar ações estratégicas transversais que perpassam

por várias políticas públicas para alcançar resultados positivos a partir da

prevenção e da promoção.

A Política de Promoção da Saúde foi aprovada em 2006, por meio da Portaria

MS/GM nº 687, e ultrapassa o discurso de cura e reabilitação, focando a

prevenção. Para tanto, aposta em intervenções intersetoriais que consideram

também os aspectos políticos, sociais e ambientais da saúde e as ações são

voltadas para os seus determinantes e condicionantes, ou seja, “[...] fatores da

vida que colocam as coletividades em situação de iniquidade e vulnerabilidade“

(BRASIL, 2012b, p. 11).

Promover a saúde é buscar qualidade de vida da sociedade e, para tanto, faz-se

necessária a sua participação ativa, a partir de gestão compartilhada entre todos

os usuários, os movimentos sociais, os trabalhadores e os gestores públicos e

também privados construindo uma rede baseada na corresponsabilização dos

atores, preservando a autonomia e as peculiaridades (BRASIL, 2010).

Entende-se, portanto, que a promoção da saúde é uma estratégia de articulação transversal na qual se confere visibilidade aos fatores que colocam a saúde da população em risco e às diferenças entre necessidades, territórios e culturas presentes no nosso país, visando à criação de mecanismos que reduzam as situações de vulnerabilidade, defendam radicalmente a equidade e incorporem a participação e o controle sociais na gestão das políticas públicas (BRASIL, 2010, p. 12).

Page 60: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

60

Desta forma, promover a saúde ultrapassa o pensamento biomédico e insere-se

como direito e dever de todo cidadão e esse processo possibilita a ampliação das

perspectivas sobre os problemas existentes, tratando as questões por meio de

uma vertente intersetorial, pois o sujeito é único e suas necessidades diversas.

Não se trata, porém, de atender às demandas existentes, mas de escutá-las e

corresponsabilizar os cidadãos para que também saiam do lugar da simples

“queixa”. A palavra de ordem será: “participação ativa” de todos os envolvidos

para que ações eficientes e eficazes possibilitem saídas para os problemas

multifatoriais e multicausais.

Para resumir o posicionamento adotado neste texto, exibe-se a citação trazida na

Política Nacional de Promoção da Saúde:

Entende-se que a promoção da saúde apresenta-se como um mecanismo de fortalecimento e implantação de uma política transversal, integrada e intersetorial, que faça dialogar as diversas áreas do setor sanitário, os outros setores do governo, o setor privado e não governamental e a sociedade, compondo redes de compromisso e corresponsabilidade quanto à qualidade de vida da população em que todos sejam partícipes na proteção e no cuidado com a vida (BRASIL, 2010, p. 15, grifo nosso).

É justamente essa proteção e cuidado com a vida que devem ser pensados

quando se trata de uma temática tão complexa como a violência, em especial a

tentativa de suicídio. Como propor ações efetivas, eficientes e eficazes com

responsabilidades múltiplas, mobilizando recursos humanos e financeiros de

diversos setores e representações, para promover a saúde infanto-juvenil e

reduzir os índices de tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes do

município de Matozinhos? Eis a questão!

2.7 Gestão social e desenvolvimento local

Na tentativa de articulação dos conceitos e ideias trazidos anteriormente,

elegeram-se a gestão social e o desenvolvimento local como referenciais

transversais para possibilitar reflexões e ações de prevenção à violência e

promoção da saúde no município de Matozinhos.

Page 61: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

61

Gestão social e desenvolvimento local são conceitos analisados amplamente na

nossa sociedade. Na verdade, estão intrinsecamente ligados e torna-se tarefa

difícil desmembrá-los, mesmo que para efeitos conceituais e didáticos.

O município é carente de infraestrutura e de espaços que possibilitem o lazer aos

seus moradores. Registra-se que a maioria da população é formada por jovens e

que alguns destes queixavam-se no Ambulatório Infanto-juvenil sobre ausência de

atividades no tempo livre e à falta de opção oferecida pela cidade.

Duas questões precisam ser discutidas nesse aspecto: a real falta de opção de

lazer nos tempos livres e a apropriação dos espaços públicos.

Em Matozinhos, há falta de instrumentos e de ações que estimulem o lazer como

qualidade de vida e o tempo livre passa a ser utilizado de formas diferenciadas

(uso e abuso de drogas, adoecimentos, homicídios, suicídios, etc.) aumentando o

número de pessoas atendidas pelos serviços de saúde mental do município.

O Ambulatório Infanto-juvenil de Saúde Mental é um lugar onde isso aparece mais

evidente e talvez seja justamente por isso que a escuta do sofrimento desses

sujeitos seja tão importante. Mas ressalta-se que esse não é, ou não deveria ser,

o único espaço. É fundamental ouvir o que eles têm a dizer sobre a morte, a vida,

os sentidos do viver e a qualidade de vida. Soares et al. (2011, p. 3197) destacam

no seu estudo esse movimento de “[...] valorização da perspectiva da criança e do

adolescente como relator de sua experiência de vida [...]” e que além de oferecer

um espaço de escuta é preciso transformar. Transformar esse lugar!

Esse lugar é aqui entendido como referência para as pessoas, no qual se

reconhecem, se identificam, socializam e constroem relações com o mundo,

modificando seu modo de ser e estar. Na visão de Carlos (1996), o lugar permite

que o sujeito pense e reelabore o seu viver, o seu trabalho, o seu lazer e seu

fazer, produzindo a sua existência social. O Ambulatório Infanto-juvenil pode ser

reconhecido como “lugar” onde se discutem a morte, a vida e a subjetividade dos

sujeitos, pois retrata o objetivo de construção de uma política para o serviço de

saúde mental: proteção e cuidado!

Page 62: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

62

É certo que se deseja um desenvolvimento local que ultrapasse as paredes de um

serviço de saúde mental institucionalizado, no entanto, perceber a ressignificação

da subjetividade e relação desses sujeitos é muito gratificante e torna a ação mais

que válida, inovadora! Principalmente quando esse serviço pode contar com os

demais atores da rede de acolhimento, atenção e promoção de saúde.

Essa transformação local, pessoal e social visa ao desenvolvimento. Mas o que

seria, então, um “desenvolvimento local”? Tem-se estudado e abordado tal tema

sob diferentes olhares. Uns enfatizam o caráter econômico, outros o social, o

humano, o ambiental, a junção deles, e assim por diante. Na verdade, o que se

percebe é que não há consenso conceitual sobre o tema. O conceito e as ações

estão em processo de construção. Nessa perspectiva, aborda-se, neste trabalho,

uma visão mais humanista e para sustentar essa crença serão utilizados alguns

autores que compartilham dessa idéia.

O desenvolvimento local valoriza as ações “microrregionais” e intersetoriais.

Proporciona aos atores o verdadeiro protagonismo, estabelecendo redes,

parcerias e encontrando formas “micro” de resolver problemas e dificuldades

“regionais”. Oferece aos cidadãos a autonomia, a liberdade e a oportunidade de

construção de uma vida melhor: “qualidade de vida”. Enfatizar o local como

âmbito de história, vida, sentido e transformação.

Sen (1999) concebe o desenvolvimento local como “um processo de expansão

das liberdades” e ressalta que o papel dos sujeitos, como instrumentos de

transformação, deve ultrapassar a visão econômica e incluir a perspectiva social e

humana. Não nega o econômico, mas transcende-o, tornando-o social, cultural e

humano, para a promoção do bem-estar e, por que não, da “qualidade de vida”.

Para que essa transformação econômica, política, cultural e social ocorra é

necessário que as pessoas se tornem sujeitos, cidadãos ativos de seu processo

de crescimento e desenvolvimento. Na construção desse processo a informação,

ou melhor, a educação faz-se primordial para sermos atores principais nas nossas

Page 63: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

63

mudanças. De acordo com Dowbor (2007), a ação do cidadão depende da

informação contextualizada que acontece desde a infância.

A ideia da educação para o desenvolvimento local está diretamente vinculada a essa compreensão e à necessidade de se formarem pessoas que amanhã possam participar de forma ativa das iniciativas capazes de transformar o seu entorno, de gerar dinâmicas construtivas (DOWBOR, 2007, p. 76).

Diante desta discussão, percebe-se a necessidade de intervenções pontuais e

transversais que colaborem para o desenvolvimento social, econômico e humano.

O município de Matozinhos, região metropolitana de Belo Horizonte, compartilha

das limitações nacionais no que se refere à saúde, principalmente saúde mental

de sua população. Crianças, adolescentes e adultos jovens tentam suicídio

frequentemente e não há trabalhos preventivos implantados, apenas tratamento

paliativo e para poucos, pois a estrutura física e profissional não suporta toda a

demanda.

Urge a construção e implantação de uma proposta de intervenção com foco na

promoção da saúde que seja construída em conjunto com a população, baseada

nos princípios de democracia, cidadania, educação e desenvolvimento.

Essa escolha vai ao encontro de uma visão que favorece a gestão social, aqui

pensada como sinônimo de participação, justiça, igualdade e liberdade que visa à

transformação da sociedade.

[...] gestão social como um conjunto de processos sociais com potencial viabilizador do desenvolvimento societário emancipatório e transformador. É fundada nos valores, práticas e formação da democracia e da cidadania, em vista do enfrentamento às expressões da questão social, da garantia dos direitos humanos universais e da afirmação dos interesses e espaços públicos como padrões de uma nova civilidade. Construção realizada em pactuação democrática, nos âmbitos local, nacional e mundial; entre os agentes das esferas da sociedade civil, sociedade política e da economia, com efetiva participação dos cidadãos historicamente excluídos dos processos de distribuição das riquezas e do poder (MAIA, 2005, p. 15-16, grifo nosso).

Segundo Maia (2005), apesar de diferentes enfoques dados pelos estudiosos de

gestão social, todos possuem como valores fundantes a democracia e a cidadania

e será nessa perspectiva que a intervenção em saúde mental será construída,

Page 64: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

64

pois pressupõe a corresponsabilidade. Nessa construção, serão pensadas

estratégias locais possíveis envolvendo a comunidade, as famílias e o poder

público, visando a prevenção, a proteção, a promoção e o melhor acolhimento e

atendimento das crianças e adolescentes em tratamento.

É escutando os sujeitos e convidando para a construção das ações intersetoriais,

em parceria com os demais integrantes da rede, que será possível implantar

propostas de prevenção da tentativa de suicídio e de promoção da saúde infanto-

juvenil.

2.8 Considerações

Os temas foram separados de forma didática para que esclarecessem seus

pontos de origem e discussões, mas na verdade o intuito desta explanação foi

traçar um diálogo entre essas visões que tivessem como fio condutor a tentativa

de suicídio infanto-juvenil.

A inclusão da violência como temática referente à saúde é um processo lento e

árduo, porém fundamental para a quebra do paradigma biomédico e ampliação da

visão humana de forma mais holística, proporcionando a construção de políticas

públicas transversais e intersetoriais com foco na prevenção e na promoção da

saúde.

Conceituar a tentativa de suicídio como uma forma de violência e escancarar a

sua urgência como um problema de saúde pública possibilita a desmistificação de

alguns mitos e torna a ação um fato concreto, principalmente quando se depara

com uma política pública que busca estruturar uma Rede Nacional de Prevenção

da Violência e Promoção da Saúde. É unânime considerar que algo deve ser feito

quanto à tentativa de suicídio, independentemente da abordagem que seja

privilegiada para sua discussão, para que mais vidas não sejam desperdiçadas.

E promover a saúde é ofertar uma das condições para que os sujeitos tenham

qualidade de vida. Ao ampliar o conceito de saúde e considerar os seus fatores

Page 65: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

65

determinantes e condicionantes, tem-se como meta proporcionar aos cidadãos

melhores condições de existência nos seus aspectos físicos, psíquicos, sociais,

políticos e espirituais.

A gestão social democrática, cidadã e compartilhada coloca os “usuários” na cena

e cobra-lhes participação ativa para transformação e desenvolvimento social e

humano. Na atualidade tem-se uma gestão “do” social ou “para” o social e a

proposta e convite feitos, neste trabalho, é que as pessoas reflitam e se

empoderem do seu discurso e poder para saírem do lugar da simples queixa e

promoverem ações efetivas de prevenção e promoção visando melhor qualidade

de vida.

Desta forma, não há como pesquisar a tentativa de suicídio infanto-juvenil sem

passar pela saúde, violência, democracia, cidadania e qualidade de vida. Dar voz

para esses sujeitos e corresponsabilizá-los é primordial para efetivar qualquer

ação.

Page 66: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

66

3 OBJETIVOS

Os objetivos desta pesquisa foram divididos em geral e específicos, sendo que

todas as ações desempenhadas foram construídas com este foco.

3.1 Objetivo geral

Analisar a tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes do município de

Matozinhos nos últimos cinco anos, na visão desses sujeitos.

3.2 Objetivos específicos

a) Descrever o quantitativo e a forma de tentativas de suicídio entre crianças

e adolescentes do município de Matozinhos.

b) Identificar os motivos que levam as crianças e adolescentes do município

de Matozinhos a tentarem suicídio.

c) Propor uma intervenção psicossocial visando à qualidade de vida a partir

da prevenção, proteção e promoção da saúde mental das crianças e

adolescentes do município de Matozinhos.

Page 67: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

67

4 METODOLOGIA

A metodologia é uma das partes mais importantes de toda a pesquisa e sua

escolha está intrinsecamente ligada ao seu problema e objetivo. Geralmente, é

conceituada como um conjunto de normas, técnicas e métodos científicos

sistematizados utilizados para a resolução de problemas e aquisição de

conhecimento.

Minayo (2008, p. 14) extrapola esse conceito e ressalta que a metodologia é a

articulação da teoria e dos pensamentos sobre a realidade. Afirma que “a

metodologia inclui simultaneamente a teoria da abordagem (o método), os

instrumentos de operacionalização do conhecimento (as técnicas) e a criatividade

do pesquisador (sua experiência, sua capacidade pessoal e sua sensibilidade)”.

Considerar a criatividade e até mesmo a subjetividade do pesquisador como parte

integrante da metodologia é um diferencial essencial para as pesquisas realizadas

nas “ciências humanas e sociais”, principalmente quando abordam temáticas

delicadas, tal como, tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes.

Nessa acepção, a forma de apreensão e aquisição do conhecimento escolhida,

para a pesquisa, foi a dialética. Esta considera que o sentido das coisas é

historicamente construído, que o sujeito não está deslocado do objeto e visa a

compreender a conexão existente entre a superfície e a essência do fato5. Konder

(2004) reforça essa ideia ao dizer que a dialética é o modo de se pensarem as

contradições da nossa realidade que permanece em constante transformação.

Para investigar a tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes do município

de Matozinhos nos últimos cinco anos, tornou-se primordial adotar uma

concepção que valoriza a dimensão subjetiva e que se preocupa com o fenômeno

no seu contexto psicossocial, histórico e político.

5 Informações retiradas de anotações feitas em sala, no dia 23/03/2012, na disciplina de

Metodologia da Pesquisa e Práticas de Intervenção, ministrada pela professora Dra. Maria Lúcia Miranda Afonso.

Page 68: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

68

Na dialética, “não existe dado sem a relação do pesquisador! Sujeito e objeto

estão relacionados intersubjetivamente e objetivamente no contexto social e

histórico”6. Sousa Santos (1988, p. 16, grifo do autor) esclarece tal afirmativa ao

descrever que:

A concepção humanística das ciências sociais enquanto agente catalisador da progressiva fusão das ciências naturais e ciências sociais coloca a pessoa, enquanto autor e sujeito do mundo, no centro do conhecimento, mas, ao contrário das humanidades tradicionais, coloca o que hoje designamos por natureza no centro da pessoa. Não há natureza humana porque toda natureza é humana.

O pesquisador, sendo também autor e sujeito no e do mundo em busca de

significados e conhecimentos acerca de uma realidade deve, no encontro com

seus “pesquisados”, ouvi-los crítica e empaticamente. Desta forma, a melhor

linguagem para a descrição da realidade retratada na pesquisa foi a

quantiqualitativa.

Apesar da discussão feita em torno da utilização de métodos quantitativos e/ou

qualitativos e de afirmarem a existência de antagonismo entre eles, compartilha-

se da visão de Minayo e Sanches (1993, p. 247) quando realçam que “[...] são de

natureza diferenciada, mas se complementam na compreensão da realidade

social”.

Pesquisa qualitativa é aquela que se preocupa com a apreensão do

conhecimento de questões sociais e culturais ao longo do vivido, do sentido, do

valor, do contexto, da subjetividade. De acordo com Serapioni (2000, p. 190), ela

tem a “[...] capacidade de fazer emergir aspectos novos, de ir ao fundo do

significado e de estar na perspectiva do sujeito [...]”, pensando a formação e

relação com o social para construção do saber.

A pesquisa quantitativa preocupa-se mais com os aspectos objetivos e, segundo

Serapioni (2000), seu enfoque é na realidade, mas com o objetivo de produção de

dados numéricos, indicadores e tendências observáveis.

6 Frase retirada de anotações feitas em sala, no dia 30/03/2012, na disciplina de Metodologia da

Pesquisa e Práticas de Intervenção, ministrada pela Professora Dra. Maria Lúcia Miranda Afonso.

Page 69: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

69

Acreditando que há uma complementaridade entre as duas abordagens e que

essa junção foi necessária e benéfica na aquisição dos dados para responder à

questão da pesquisa, a escolha pela pesquisa quantiqualitativa foi fundamental.

Nesta dissertação caracteriza-se como pesquisa quantiqualitativa mais que uma

simples união de dois métodos. É uma construção de um método científico único

que utiliza técnicas rigorosas e diferenciadas para obtenção de dados, com o

objetivo de responder ao problema inicial e possibilitar uma intervenção social.

4.1 Coleta de dados

Para melhor sistematização da pesquisa, a coleta dos dados foi feita em etapas,

visando à concretização dos objetivos propostos e é minuciosamente descrita a

seguir.

4.1.1 Primeira etapa: mapeando o problema no município

A busca de dados quantitativos justificou-se pelo fato de o município não ter

registros dos casos de tentativas de suicídio entre crianças e adolescentes e

porque se considerou imprescindível conhecer a magnitude do fenômeno, suas

dimensões e especificações locais.

Inicialmente, foram realizados levantamentos, nos últimos cinco anos, dos casos

de tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes (de três a 17 anos), na

Prefeitura de Matozinhos. A separação da faixa etária fundamentou-se no

Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (MINAS GERAIS, 2012), que

considera crianças aquelas de até 12 anos incompletos e como adolescentes

aqueles entre 12 e 18 anos. No entanto, para este trabalho consideraram-se

crianças a partir de três anos, visto que esta é a idade mínima estabelecida pelo

Ambulatório de Saúde Mental Infanto-juvenil para atendimento psicológico.

Page 70: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

70

A busca pelos casos de tentativas de suicídio foi realizada no setor de

epidemiologia do município, nos prontuários do pronto-atendimento (PA) do

município (serviço de urgência onde eles eram atendidos e internados) e também

do Ambulatório Infanto-juvenil (local onde faziam acompanhamento psicológico

após alta da internação). É importante ressalvar que o Ambulatório Infanto-juvenil

foi criado em 2009, o que, por si só, define os três últimos anos como o período

de coleta dos dados, nesse cenário.

Essa coleta de dados iniciou-se em janeiro de 2013 e terminou no final de maio. O

primeiro local pesquisado foi o Ambulatório Infanto-juvenil. Foram verificadas

aproximadamente 400 fichas, o que corresponde a todos os casos existentes no

serviço, desde sua implantação. As fichas tinham os dados pessoais das crianças

e adolescentes, local de encaminhamento e queixa inicial. O critério de seleção

para a pesquisa foram os casos que tinham como queixa inicial a tentativa de

suicídio, assim como casos que estavam em atendimento cujos sujeitos

cometeram o ato durante o tempo de atendimento, mesmo que a demanda

primária tenha sido outra.

Após a leitura exaustiva dos prontuários e a coleta dos dados das crianças e

adolescentes e das características e demais informações sobre a tentativa de

suicídio, partiu-se para a busca no PA: porta de entrada das urgências e

emergências.

Nesse intervalo, foram solicitados aos profissionais do setor de epidemiologia

dados sobre os casos de tentativa de suicídio registrados no município nas Fichas

do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). Foram entregues

registros apenas de 2011 e 2012, pois relataram que eram os únicos existentes.

No PA, as fichas estavam em um arquivo e foi permitido total acesso. As pessoas

que procuram o PA preenchem, primeiramente, uma ficha para posterior triagem

(pré-consulta) com os profissionais de enfermagem, que avaliarão cada caso de

acordo com o Protocolo de Manchester. Essas fichas são repassadas para o

médico de plantão. Ressalva-se que os casos urgentes, com risco de morte, são

primeiramente socorridos e depois preenchidas as exigências burocráticas.

Page 71: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

71

Algumas intercorrências fizeram-se presentes e percebeu-se a necessidade de

registro das atividades de coleta de dados em um diário de campo. Os prontuários

estavam em caixas-box que continham, cada uma, cerca de 1.100 fichas: em

2008 verificaram-se 25 caixas; em 2009 foram 28; em 2010 foram 21; em 2011

foram 27; por fim, em 2012 foram 24 caixas. Totalizando, a leitura foi de

aproximadamente 137.500 prontuários (DIÁRIO DE CAMPO, fev. 2013).

Ressalta-se que uma caixa estava vazia (2009) e que algumas fichas estavam

com dados incompletos, letra ilegível e informando que o paciente foi embora

antes de ser atendido pela triagem.

O critério de inclusão foram todas as fichas apresentaram hipótese diagnóstica de

tentativa de suicídio ou outras descrições que sugeriam tal fato, baseado nas

orientações do CID (X60-X84 – lesões autoprovocadas intencionalmente). Todos

esses dados foram organizados em planilha do Excel para posterior análise pelo

Statistical Package for Social Sciences (SPSS), versão 19.0. Todas as

informações recolhidas nas diversas fontes de dados foram categorizadas da

seguinte forma:

1. Fonte dos dados: PA, Ambulatório, SINAN

2. Local de nascimento

3. Data de nascimento

4. Idade: 3 a 18 anos

5. Bairros

6. Data da tentativa de suicídio: 2008 a 2012

7. Tipo de tentativa de suicídio: corte, intoxicação, queimadura,

eletrocussão, enforcamento, queda / precipitação

8. Local de origem

9. Classificação dos casos: casos com CID; casos sem CID, mas escritos

por extenso; casos com outro CID, mas escritos por extenso; casos

suspeitos sem CID; casos suspeitos com outro CID.

10. Procedimentos adotados

11. Encaminhamentos feitos

12. Reincidências

13. Gravidez

Page 72: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

72

Foram investigadas as frequências simples e realizados alguns cruzamentos de

dados para melhor análise e visualização do problema.

4.1.2 Segunda etapa: ouvindo os sujeitos

Esse momento foi importante e necessário para estabelecer uma “[...] articulação

das informações compreensivas com dados quantitativos sobre os fenômenos,

buscando responder a questões da prática [...]” (MINAYO, 2006, p. 113). Ouvir os

sujeitos que tentaram suicídio é trazê-los para a cena e retirá-los da invisibilidade

em que se encontram. Assim, foram coletados os dados qualitativos por meio de

grupo focal com os adolescentes e do método criativo sensível com as crianças:

A) Grupo focal com adolescentes

Houve certa dificuldade para contatar os sujeitos. No primeiro momento foram

enviadas cartas-convites para as casas das crianças e adolescentes aos cuidados

destes e seus responsáveis para se encontrarem com a pesquisadora em dia e

local agendado. As cartas foram entregues pelos agentes de saúde do município,

que informaram a mudança de endereço de três famílias.

A escolha desses sujeitos considerou a data de nascimento, pelo menos dois de

cada idade, e pelo menos um representante de cada tipo de tentativa de suicídio,

incluindo os casos suspeitos cuja intencionalidade apresentava-se mais explícita.

Dos 40 sujeitos convidados por meio de cartas, apenas uma criança e um

adolescente compareceram com os responsáveis, deixando o Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) assinado. Outra estratégia então foi

pensada: consideraram-se todas as crianças e adolescentes que tinham número

de contato.

A pesquisadora ligou para 30 adolescentes, explicou sobre a pesquisa e agendou

encontros individuais para a assinatura no TCLE: três não aceitaram o convite,

uma mudou de município (para Ribeirão das Neves), em 13 o telefone não existia

ou estava fora de área e os demais aceitaram e se comprometeram com o

Page 73: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

73

encontro, mas apenas quatro apareceram para a assinatura no TCLE. Foram

feitos novos contatos, sem sucesso. Totalizaram-se cinco adolescentes. Desta

forma, foi alcançado o número mínimo para a realização do nosso grupo focal.

Os GFs são grupos de discussão que dialogam sobre um tema em particular, ao receberem estímulos apropriados para o debate. Essa técnica distingue-se por suas características próprias, principalmente pelo processo de interação grupal, que é uma resultante da procura de dados (RESSEL et al., 2008, p. 780, grifo do autor).

A escolha por essa técnica de coleta de dados justifica-se pela necessidade de se

ouvirem as concepções, pensamentos e sentimentos desse público e dialogar

sobre a tentativa de suicídio no município. Afinal, de acordo com Lervolino e

Pelicioni (2001, p. 116), o “[...] grupo focal tem como uma de suas maiores

riquezas basear-se na tendência humana de formar opiniões e atitudes na

interação com outros indivíduos”.

Complementando esses dizeres, Lervolino e Pelicioni (2001, p. 116, grifo do

autor) explicitam que:

Os procedimentos qualitativos têm sido utilizados quando o objetivo do investigador é verificar como as pessoas avaliam uma experiência, ideia ou evento; como definem um problema e quais opiniões, sentimentos e significados encontram-se associados a determinados fenômenos.

O diálogo, os estímulos e o processo de interação nos grupos focais respeitaram

seus sujeitos e buscaram preservar a integridade física, psíquica e moral de cada

um.

O grupo encontrou-se em um sábado pela manhã (23/11/2013), no salão

paroquial do município (espaço cedido pelo padre), conforme disponibilidade de

todos. Apresentaram-se quatro adolescentes, sendo que um chegou um pouco

atrasado e o pai de um outro foi para explicar a ausência do jovem, que resolveu

não comparecer ao encontro agendado.

Após a acolhida do grupo, cada um fez uma apresentação rápida, dizendo nome,

idade e bairro em que mora. Em seguida, a pesquisadora apresentou uma figura

Page 74: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

74

e pediu que olhassem com calma e pensassem o que significava: era o mapa da

cidade. A partir desse momento o grupo seguiu, quase espontaneamente, o

roteiro de questões que abordavam temas sobre a visão e relação com município,

com amigos, familiares e com a VIDA (APÊNDICE A – Roteiro de Grupo Focal

com Adolescentes).

As conversas foram gravadas e também se contou com a presença de um

observador externo que relatou as impressões verbais e não verbais do grupo.

Ao final, houve o agradecimento da pesquisadora, o convite para um lanche e o

ressarcimento dos gastos com deslocamento.

Concernente ao papel do pesquisador no grupo, tem-se como premissa que:

A pesquisa é vista como prática social que apreende as determinações econômicas, sociais e políticas, sendo a possibilidade de desvelar as contradições a causa responsável pelas mudanças sociais. Sendo assim, a atitude do pesquisador dialético não é a de um sujeito cognoscente que simplesmente examina objetos, mas de um sujeito que age objetiva e praticamente a partir das condições que o rodeiam (DEVECHI; TREVISAN, 2010, p. 153, grifo do autor).

Nessa relação intersubjetiva com os integrantes do grupo focal foram colhidos

dados necessários para a apreensão dos motivos/problema da tentativa de

suicídio. A discussão em grupo teve, em segundo plano, caráter mobilizador para

proporcionar reflexão e uma ação acerca desse problema de saúde pública.

B) Método criativo sensível com crianças

No caso das crianças, como apenas uma compareceu ao encontro agendado por

meio das cartas-convites, a pesquisadora buscou 23 crianças cujo contato estava

nas fichas pesquisadas. Ligou para os responsáveis e não foi possível falar com

10 famílias porque o telefone não existia ou estava fora de área. Uma criança

mudou-se para Vespasiano para morar com a mãe e as demais foram convidadas

por intermédio de seus responsáveis, que se comprometeram a encontrarem-se

com a pesquisadora dias antes da realização do encontro para assinarem o

Page 75: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

75

TCLE, mas apenas quatro cumpriram o combinado. Totalizaram-se cinco

crianças para participação da pesquisa pelo método criativo sensível.

O método criativo sensível (APÊNDICE B) foi criado pela pesquisadora Cabral, no

século XX, em sua tese de doutorado em Enfermagem, no estado do Rio de

Janeiro. Essa inovação foi baseada nas teorias de Paulo Freire (método crítico-

reflexivo) e René Barbier (criatividade e sensibilidade) e caracteriza-se pela

confluência das singularidades dos sujeitos em uma experiência coletiva

(GAUTHIER et al., 1998).

Segundo Gauthier et al. (1998, p. 177,187), o método criativo sensível é a “[...]

junção de estratégias e métodos de interação grupal [...] com métodos já

consolidados de pesquisa e de educação [...]”. É uma tríade entre a “[...]

discussão de grupo, observação participante e dinâmicas de criatividade e

sensibilidade/produção artística [...]”.

A riqueza dos encontros grupais não é novidade, mas a inclusão da criatividade e

da produção artística na coleta de dados e o compartilhamento e construção de

conhecimentos com crianças torna esse método propício à realização e validação

de trabalhos qualitativos com temas tão complexos: tentativa de suicídio infanto-

juvenil.

A reunião da ciência e da arte torna o método peculiar, pois proporciona ao sujeito

participante da pesquisa a expressão da sua criatividade e sensibilidade de

maneira espontânea. Desta forma, “[...] as produções artísticas deixam

transparecer o imaginário, [...] apontando as contradições [...]” (GAUTHIER et al.,

1998, p. 179). Gauthier et al. (1998, p. 191) propõem que o método criativo

sensível seja concretizado em cinco momentos:

a) Organização

b) Apresentação

c) Explicação da dinâmica

d) Trabalho individual e enunciação da experiência individual no plano coletivo

e) Coletivização e análise dos dados

Page 76: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

76

O encontro com as crianças aconteceu em um sábado (23/11/2013), no salão

paroquial do município, durante a tarde. Apenas três crianças compareceram. O

pai de uma ligou e justificou a ausência devido à falta do transporte coletivo.

Apesar de a autora propor cinco momentos para aplicação do método e incluir a

análise dos dados nessa estrutura, decidiu-se inovar. O encontro foi realizado em

seis momentos e a análise dos dados não foi incluída nesta fase.

Primeiramente, elas foram acolhidas e fez-se a apresentação; no segundo

momento, foi explicado às crianças o funcionamento da dinâmica proposta e as

suas duas fases distintas e complementares, apresentando as questões

norteadoras:

Primeira fase: entregou-se uma folha A4 com o limite territorial do município de

Matozinhos e foi perguntado se eles conheciam a figura. Depois foi solicitado que

respondessem, de forma criativa, as questões a seguir:

1 - Como é morar aqui em Matozinhos?

2 - O que você gosta de fazer e com quem?

Compartilhar: todos conversaram sobre o que fizeram e sentiram.

Segunda fase: entregou-se uma folha A3 e pediu-se que expressassem seus

sentimentos de forma livre e criativa, baseados nas questões a seguir:

3 - Já ficou muito triste? O que fez quando ficou muito triste?

4 – Quando ficou muito triste, sentiu vontade de morrer?

5 – O que você fez quando sentiu vontade de morrer?

Compartilhar: todos conversaram sobre o que fizeram e sentiram.

Após o esclarecimento da dinâmica, partiu-se para a composição das

produções e foram disponibilizados os seguintes materiais: lápis de cor e de

escrever, borracha, giz de cera, canetinha, o mapa do município na primeira fase

e folha A3 na segunda fase.

Encerradas as produções, partiu-se para o momento de compartilhar, ocasião

em que as crianças apresentaram e discutiram sobre suas criações temáticas.

Page 77: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

77

Esse momento foi feito nas duas fases do encontro e após a segunda foi pedido

às crianças que fizessem uma avaliação do encontro como forma de conclusão

daquele trabalho, fechamento daquele grupo. Em seguida, procedeu-se ao

momento de descontração, no qual foi oferecido um lanche e as crianças ficaram

à vontade.

Todo o encontro foi gravado com prévia autorização dos responsáveis no TCLE e

também se contou com a colaboração de um observador para registro das

linguagens não verbais e de expressões significativas das atividades práticas. Os

responsáveis também foram ressarcidos dos gastos com transporte.

4.2 Aspectos éticos

Esta pesquisa foi encaminhada ao Comitê de Ética em Pesquisa do Centro

Universitário UNA (CEP/UNA) para análise e deliberação. Sua aprovação

aconteceu em dezembro/2012 e a coleta de dados só foi iniciada após geração

CAAE 11451412.2.0000.5098 (ANEXO A).

Conforme as deliberações da Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996, do

Conselho Nacional de Saúde, esta pesquisa seguiu todos os aspectos éticos

envolvendo seres humanos e resguardou os sujeitos, garantindo o anonimato e a

confidencialidade dos dados no TCLE.

Os TCLEs, em número de três, um para cada segmento de sujeitos, foram

assinados antes de dar-se início à coleta dos dados (APÊNDICES C, D, E).

Page 78: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

78

5 RESULTADOS E ANÁLISE DOS DADOS

Por tratar-se de uma pesquisa quantiqualitativa desmembrada em dois momentos

distintos, mas complementares, optou-se por descrever e analisar os resultados

obtidos de forma separada e ao concluir fazer a junção e relação entre o que foi

observado nas etapas.

5.1 Pesquisa quantitativa

Os dados objetivos coletados foram submetidos à tabulação manual e analisados

por meio do programa SPSS versão 19.0, privilegiando as frequências simples

dos indicadores: fonte dos dados, faixa etária, bairro, tipo de tentativa de suicídio

(agregado e desagredado), classificação dos casos, data da tentativa de suicídio,

procedimentos, encaminhamentos, reincidência e gravidez. Também foi realizado

o cruzamento desses indicadores para verificar relação possível entre os dados

coletados. Ressalta-se que o local e a data de nascimento, assim como o local de

origem, foram encontrados apenas nos prontuários do Ambulatório Infanto-juvenil.

Desta forma, optou-se por excluí-los da análise de dados.

As fontes municipais de dados foram: Ambulatório Infanto-juvenil, PA e SINAN,

ressaltando-se que alguns casos foram encontrados em mais de um local. A faixa

etária variou de três a 18 anos e foram abordados apenas os bairros que

apareceram nos prontuários analisados.

O Ambulatório Infanto-juvenil foi implantado em 2009. As crianças e adolescentes

são encaminhadas formalmente para o serviço de saúde mental, para serem

acolhidas e, posteriormente, se for o caso, atendidas pela psicóloga. Só são

atendidas aquelas pessoas que apresentem quadro de sofrimento psíquico

intenso, casos considerados de média complexidade. Quando acolhidas, o

profissional preenche uma ficha com os dados pessoais, queixa inicial descrita no

encaminhamento, local de origem, impressões e conduta adotada.

Page 79: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

79

Todas as pessoas que entram no PA são registradas, mesmo que desistam do

atendimento. Por esse motivo, têm-se diversas fichas preenchidas apenas com o

cabeçalho, ou seja, dados pessoais da pessoa. Outras passam pela triagem, mas

não aguardam o atendimento médico. Nos casos estudados, observam-se as

duas situações, mas em menor número.

Quanto ao tipo de tentativa de suicídio, separou-se de forma agregada, ou seja,

grupos descritos conforme CID (X60-X84 – lesões autoprovocadas

intencionalmente) que estavam presentes nos casos verificados e que

englobavam todas as ocorrências: corte, corte e intoxicação, intoxicação,

eletrocussão, enforcamento, queda/precipitação, queimadura, outros e não

especificado. Ao desagregar citaram-se, detalhadamente, todas as tentativas de

suicídio encontradas.

Como havia grande diversidade de apresentação dos fatos nos prontuários

pesquisados, optou-se por classificar os casos encontrados da seguinte forma:

casos com CID, casos com outro CID, mas escritos por extenso, casos sem CID,

mas escritos por extenso, casos suspeitos com outro CID e, por fim, casos

suspeitos sem CID. Os casos suspeitos são aqueles em que não há dados

suficientes para verificar a intencionalidade e também situações nas quais foram

registradas apenas as consequências de determinado ato.

Os procedimentos adotados nem sempre estavam descritos nas fichas, mas foi

possível inferir as seguintes categorias: alta, contato com Hospital João XXIII,

outro, sem informação.

Os encaminhamentos realizados também não foram expressos em todos os

prontuários, mas citaram-se: Ambulatório, Centro de Atenção Psicossocial -

CAPS, Psiquiatra, Psicologia, outro, sem informação.

A reincidência e a gravidez também foram registradas em poucos casos.

A coleta de dados iniciou-se em janeiro de 2013 e terminou em maio do mesmo

ano. Foram analisados aproximadamente 137 mil prontuários ao total e, destes,

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80

apenas 185 casos encontrados de tentativas de suicídio entre crianças e

adolescentes, conforme a TAB. 1.

TABELA 1 - Fontes dos dados

N % %

acumulado

Ambulatório Infanto-juvenil 13 7,0 7,0

PA 160 86,5 93,5

SINAN 2 1,1 94,6

PA e Ambulatório Infanto-juvenil 8 4,3 98,9

PA, Ambulatório Infanto-juvenil e SINAN 2 1,1 100,0

Total 185 100,0

SINAN: Sistema de Informação de Agravos de Notificação; PA: Pronto-atendimento.

É importante ressaltar que os dados coletados incluíram os últimos cinco anos.

No entanto, o Ambulatório Infanto-juvenil foi implantado em 2009 e no setor de

Epidemiologia só havia fichas SINAN de 2011 e 2012. Outra questão importante a

ser salientada é que há precariedade de informações nos prontuários analisados

e também houve subnotificação. De acordo com Silva e Maeta (2010), a

notificação é um instrumento complexo e poderoso que possibilita a ação da

vigilância epidemiológica, a intersetorialidade, a organização da rede dos serviços

de saúde, além de ser uma ferramenta que garante os direitos básicos

constitucionais.

Quanto à intersetorialidade entre os serviços de saúde do município, percebe-se

que apenas 10 casos foram acolhidos ou registrados em mais de um serviço.

Ao analisar o perfil das pessoas que tentaram suicídio em Matozinhos, tabulou-se

por idade, sexo e tipo de tentativa. Outros dados, tal como a associação com a

gravidez, foi irrisória, apresentando o registro de dois casos; e a taxa de

reincidência das tentativas foi de aproximadamente 5%, ou seja, foi obtida em 10

casos (ALVES; CADETE, 2013). Geralmente, a taxa de reincidência é baixa e

apenas em estudos de Santos et al. (2009) e Feijó et al. (1996) foram

encontrados percentuais elevados: 51 e 53,8%, respectivamente.

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81

Quanto às faixas etárias, foi encontrado elevado número de casos entre

adolescentes, mas a expressiva quantidade de tentativas entre pessoas até cinco

anos de idade desconstrói o mito de que criança não tenta suicídio. No entanto,

destaca-se que em nenhum dos prontuários infantis (três a 11 anos) havia registro

explícito de tentativa de suicídio, eram todos casos suspeitos. Nenhum artigo

brasileiro foi encontrado disponível nas bases de dados brasileiras, que versasse

especificamente sobre o público infantil. Alguns trabalhos classificaram

adolescentes em diferentes faixas etárias, que variaram de 10 a 29 anos,

conforme revisão integrativa realizada (ALVES; CADETE, 2013).

TABELA 2 - Faixa etária de crianças e adolescentes de Matozinhos que tentaram

suicídio entre 2008 e 2012

N % %

acumulado

Até 5 anos 33 17,8 17,8

De 6 a 9 anos 13 7,0 24,9

De 10 a 14 anos 49 26,5 51,4

De 15 a 18 anos 88 47,6 98,9

Sem informação 2 1,1 100,0

Total 185 100,0

Foram 107 casos com pessoas do sexo feminino - sendo que de duas não havia

informação sobre idade - e 78 do sexo masculino.

TABELA 3 - Idade e sexo de crianças e adolescentes de Matozinhos que

tentaram suicídio entre 2008 e 2012

Idade Sexo

Feminino Masculino %

3 a 11 21 38 32%

12 a 18 84 40 67%

Sem informação 2 1%

Total 107 78 100%

Nas crianças, o sexo que prevalece é o masculino, mas na adolescência há uma

inversão e as meninas superam. Interessante observar que na adolescência o

Page 82: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

82

número de meninas que tentaram suicídio é mais que o dobro dos meninos e os

casos totais que ocorreram entre 12 e 18 anos são 35% a mais que os infantis.

Esse predomínio feminino nas tentativas de suicídio na adolescência coincide

com pesquisas já realizadas por diversos autores, conforme revisão integrativa de

literatura brasileira das últimas décadas! (ALVES; CADETE, 2013).

A contribuição desta pesquisa está justamente nos dados infantis, que são pouco

encontrados nos estudos realizados, e descobriu-se que não seguem a tendência

“feminina” da adolescência, representando 32% dos casos registrados.

Baseado na classificação das lesões autoprovocadas intencionalmente descritas

na CID, foi possível listar os tipos de tentativa de suicídio que apareceram no

município de Matozinhos.

TABELA 4 - Tipo de tentativa de suicídio (agregado), Matozinhos, 2008-2012

N % %

acumulado

Corte 21 11,4 11,4

Corte e intoxicação 2 1,1 12,4

Intoxicação 127 68,6 81,1

Eletrocussão 1 ,5 81,6

Enforcamento 1 ,5 82,2

Queda / Precipitação 8 4,3 86,5

Queimadura 18 9,7 96,2

Outros e não especificado 7 3,8 100,0

Total 185 100,0

Constatou-se que o maior número de registros indicou a intoxicação, seguida de

corte e queimadura. Este dado confirmou observação feita pela psicóloga do

serviço, que destacou o uso de chumbinho e medicação, principalmente, pelos

adolescentes, para tentativa de morte. E também vai ao encontro dos resultados

registrados na literatura brasileira sobre o assunto, que afirma que o

envenenamento é, geralmente, a forma eleita e o que varia é a escolha entre

Page 83: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

83

medicamentos e pesticidas (ALVES; CADETE, 2013). Na categoria outros

encontraram-se: ingestão de objetos, descrições ilegíveis e casos não

especificados.

Ao detalhar melhor essas categorias, percebe-se que intoxicação por

medicamento, álcool/droga, agentes tóxicos e chumbinho são os métodos mais

utilizados. Nas queimaduras destacam-se as categorias outras, que não

apresentam a substância que ocasionou a lesão, sendo a água e o álcool também

utilizados.

Estudo brasileiro realizado por Leão et al. (2011) especificamente com tentativas

de suicídio por queimaduras revelou que a forma mais utilizada é pelo álcool. Nos

cortes, a não especificação do objeto utilizado também lidera, juntamente com a

faca e o vidro. As quedas apresentam oito casos e, entre eles, é imprescindível

citar a precipitação de um adolescente de um carro em movimento para

exemplificar a categoria.

Detectou-se a escolha por mais de um meio para tentar suicídio, mas de forma

não muito expressiva, apenas sete casos.

Page 84: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

84

TABELA 5 - Tipo de tentativa de suicídio (desagregado), Matozinhos, 2008-2012

% %

acumulado

Corte e intoxicação N 1,1

Eletrocussão 1 ,5 1,6

Enforcamento 1 ,5 2,2

Queda / precipitação 8 4,3 6,5

Outros e não especificado 7 3,8 10,3

Corte - vidro 3 1,6 11,9

Corte - faca 4 2,2 14,1

Corte - gilete 1 ,5 14,6

Corte - não especificado 13 7,0 21,6

Intoxicação - medicamento 49 26,5 48,1

Intoxicação - medicação + álcool 1 ,5 48,6

Intoxicação - álcool / droga 32 17,3 65,9

Intoxicação - planta 5 2,7 68,6

Intoxicação - chumbinho 7 3,8 72,4

Intoxicação - chumbinho + medicação 3 1,6 74,1

Intoxicação - outro 4 2,2 76,2

Intoxicação - agente tóxico 25 13,5 89,7

Intoxicação e lesão por arma de fogo 1 ,5 90,3

Queimadura álcool 3 1,6 91,9

Queimadura água 4 2,2 94,1

Queimadura óleo 1 ,5 94,6

Queimadura gordura 1 ,5 95,1

Queimadura outros 9 4,9 100,0

Total 185 100,0

Quando se cruzam os dados dos tipos de tentativa de suicídio e a faixa etária,

constata-se que as crianças até cinco anos optam pela autointoxicação, seguida

do corte. Aquelas que possuem seis a nove anos ficam divididas entre a

intoxicação, a queda/precipitação e a queimadura de forma bastante equilibrada.

Na faixa etária de 10 a 14 anos é expressiva a escolha pela autointoxicação e em

Page 85: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

85

menor número a queimadura e o corte. Já os adolescentes de 15 a 18 anos

optam pela autointoxicação, de forma quase unânime.

TABELA 6 - Tipo de tentativa de suicídio, por faixa etária, Matozinhos, 2008-2012

Faixa etária

Total Até 5

anos

De 6 a

9 anos

De 10

a 14

anos

De 15

a 18

anos

Sem

informação

Tipo de

tentativa -

agregada

Corte 15,2% 15,4% 10,2% 10,2% 11,4%

Corte/ intoxicação 2,0% 1,1% 1,1%

Intoxicação 72,7% 23,1% 61,2% 77,3% 100,0% 68,6%

Eletrocussão 2,0% ,5%

Enforcamento 7,7% ,5%

Queda/

precipitação

3,0%

23,1%

6,1%

1,1%

4,3%

Queimadura 9,1% 23,1% 12,2% 6,8% 9,7%

Outros e não

especificado

7,7%

6,1%

3,4%

3,8%

Total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%

Devido aos incipientes registros contidos nas Fichas Ambulatoriais - com poucas

informações e, quando presentes, não são detalhadas - e a ausência de dados

importantes, optou-se por classificar os dados encontrados da seguinte forma,

conforme explicitado anteriormente: casos com CID; casos com outro CID, mas

escritos por extenso; casos sem CID, mas escritos por extenso; casos suspeitos

com outro CID, casos suspeitos sem CID.

Trata-se de um problema recidivo e generalizado, também reafirmado por Minayo

et al. (2003) ao tecerem críticas às estatísticas hospitalares, devido à falta de

qualidade de suas informações. Contudo, apesar de se saber da precariedade

dos dados, é o melhor lugar para realização de pesquisas sobre essa temática,

pois concentra as informações necessárias. Afinal de contas, o hospital ou PA são

a porta de entrada para casos de urgência. E a forma encontrada para

Page 86: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

86

sistematizar as precárias e controversas informações recolhidas foi agrupando

todos os casos encontrados (TAB. 7).

TABELA 7 - Classificação dos casos de tentativa de suicídio, Matozinhos, 2008-

2012

N % %

acumulado

Caso com CID 1 ,5 ,5

Caso com outro CID, mas escrito por extenso 6 3,2 3,8

Caso sem CID, mas escrito por extenso 34 18,4 22,2

Caso suspeito com outro CID 62 33,5 55,7

Caso suspeito sem CID 82 44,3 100,0

Total 185 100,0

Apreende-se que apenas um caso apresentou CID correspondente aos descritos

como lesões autoprovocadas intencionalmente (X60-X84) e foi uma ficha

recolhida no setor de epidemiologia registrado no SINAN. Os outros três casos,

também registrados no sistema, ou não apresentavam CID ou continham outro

que não era condizente com o evento; descreviam apenas a lesão. Esses dados

evidenciam subnotificação dos casos pelos profissionais de saúde.

Dessa constatação emergiram algumas questões referentes aos profissionais de

saúde: qual o motivo da subnotificação? Será que o risco de morte infanto-juvenil

produz incômodo subjetivo de ordem insuportável, bloqueando-os para se

implicarem? Ou na cotidianidade do atender tornaram-se absorvidos pelo

impessoal, pela tradição e pela inautenticidade?

Não se pode esquecer que os profissionais de saúde são, antes de tudo: sujeitos

biopsicossociais. A profissão carrega consigo o peso de “salvar vidas”, mas

daqueles que por algum infortúnio “sofreram” ameaça de morte. No entanto, a

dimensão simbólica e a subjetividade não permitem que esses sujeitos e também

profissionais de saúde percebam uma urgência na pessoa sadia que escolheu

morrer.

Page 87: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

87

A pergunta é: os profissionais “especialistas” da área da saúde cuidam das

pessoas ou de parte delas? A formação do profissional e a especialização no

paradigma biomédico dificultam a percepção da unicidade do sujeito e a questão

é que “a parte não morre”! Quem vive ou morre é a pessoa, o sujeito e não o

braço com corte no pulso... Afinal de contas, a pessoa vive sem o braço, mas o

braço inexiste sem o sujeito! Lembrando Merleau Ponty (1999): “eu não tenho

corpo, eu sou o corpo”.

Se o que difere uma lesão ou intoxicação acidental de uma tentativa de suicídio é

justamente a intencionalidade, fica quase impossível declarar que o corte nos

pulsos D e E seja uma lesão autoprovocada intencionalmente, tendo em vista que

a única pessoa que pode atestar sua “intenção” é o próprio sujeito e não sua

lesão (consequência de um ato, de uma escolha). Assim, para esclarecer uma

hipótese diagnóstica, é preciso ver o todo e mais que isso: escutá-lo! Claro que

merecem ressalvas todas as peculiaridades do serviço e formação do profissional.

A escuta qualificada não é virar psicólogo; pelo contrário, é apenas ver o sujeito

para além de sua lesão. Tentar compreender o todo!

Talvez tenha sido uma forma, uma saída encontrada pelos profissionais de saúde

para lidarem com esse incômodo e imprecisão que a vida e a morte causam. Em

recente estudo de Santos et al. (2012), apesar do foco de investigação ser outro,

conclui-se que há sofrimento psíquico dos médicos ao lidarem com a morte e que

este é suprimido, de forma que não leve à reflexão e ao devido cuidado. E Afonso

(2013) vai um pouco mais além, ao fazer uma resenha do livro “Sobre a Morte e o

Morrer”, acentuando que o texto afirma que a nossa sociedade evita e ignora a

morte e que tanto os médicos como os demais profissionais de saúde que estão

inseridos nesse quadro não sabem lidar com essa situação na relação com o

sujeito que precisa e solicita cuidados. Por fim, sugere que os médicos reflitam

sobre a própria morte e que usem do processo empático e se coloquem no lugar

daquele que sofre e pede auxílio, que necessita ser acolhido e escutado no seu

suplício! Pois, se há negação do todo e cuidado só de determinada parte, o

trabalho do profissional de saúde se limita à atenção com a consequência do ato

praticado ou sofrido por determinada pessoa.

Page 88: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

88

Ver o todo é cogitar a possibilidade de que aquela pessoa não é apenas “vítima

ou paciente”, mas sujeito de sua história e que pode ser igualmente cuidado no

todo! É o que a Política Nacional de Humanização do serviço de saúde chama de

“[...] mudança na cultura da atenção dos usuários e da gestão dos processos de

trabalho [...]” e demarca, inclusive, que nos atendimentos de urgência os

profissionais de saúde respeitem as diferenças e as necessidades do sujeito

(BRASIL, 2004b, p. 02).

Machin (2009) realizou pesquisa em um hospital público de São Paulo com

profissionais de saúde que lidam com situações de lesões autoprovocadas e

apurou também, além da subnotificação, a estigmatização desse público por

causa da sua escolha afetando (fragilizando) a dimensão do cuidado. E identificou

a necessidade do resgate da verdadeira noção de sofrimento. Acrescentam-se ao

trabalho da autora outras duas questões: ruptura de paradigma (visão global

desse sujeito que sofre), humanização do serviço e, principalmente, legitimidade e

escuta do sujeito que sofre.

Nessa direção, o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro preconiza como direito

do usuário a anotação no prontuário de todas as informações sobre a sua saúde

de forma legível, clara e precisa. Quando os profissionais não cumprem sua

função, lesam o sujeito no seu direito primário e, mais que isso, dificultam o

acolhimento universal, equânime e integral (COMBINATO; QUEIROZ, 2006).

A subnotificação inviabiliza a efetivação de um dos objetivos centrais do SUS, que

é a formulação de políticas de saúde. Não registrar os casos significa a

inexistência do problema. Logo, pouco investimento financeiro, político e social na

construção dessas políticas voltadas para a temática com vistas à assistência que

se recusa a reduzir a realidade ao que "existe", à objetivação e se embravece

com algumas características do que está posto e ambiciona transcendê-las.

Humanizar o acolhimento de crianças e adolescentes que tentam suicídio significa

valorizar esses sujeitos, inclusive nas suas dimensões psíquicas (subjetivas) e

sociais. É ser corresponsável no atendimento e preconizar pela inseparabilidade

do sujeito e dos serviços de saúde.

Page 89: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

89

Conforme a TAB. 7, em Matozinhos houve 41 casos declarados de tentativa de

suicídio e 144 suspeitos. Elegeram-se como casos suspeitos aqueles em que há

uma lesão característica da tentativa de suicídio, porém não há explicitação da

intencionalidade da criança ou adolescente e esse fato impossibilita a afirmação

sem a escuta prévia dos sujeitos.

Um dos aspectos mais complexos da definição é a questão da intencionalidade. Dois pontos importantes devem ser observados aqui. Em primeiro lugar, mesmo a violência sendo distinta de eventos não intencionais que resultam em lesões, a presença de uma intenção de usar a força não necessariamente significa que houve uma intenção de causar dano. Na verdade, pode haver uma grande disparidade entre o comportamento pretendido e a consequência pretendida. Um perpetrador pode cometer intencionalmente um ato que, por padrões objetivos, é considerado perigoso e com alta possibilidade de resultar em efeitos adversos à saúde, mas o perpetrador pode não perceber seu ato dessa forma (KRUG et al., 2002, p. 5).

Já na TAB. 8 os casos de crianças até cinco anos são, em sua totalidade,

suspeitos com ou sem CID. Na faixa etária de seis a nove anos, admite-se uma

pequena porcentagem de tentativas de suicídio, mas é inferior a 10%. Na faixa

etária de 10 a 14 anos, têm-se 32,6% de casos declarados e o fato curioso é que

nos adolescentes de 15 a 18 anos esse número reduz-se para 27,2%. Seria

razoável que esse número aumentasse visto que há uma mitificação de que

criança não tenta suicídio. No entanto, quando se considera a faixa etária 10 a 14

anos, incluem-se crianças de 10 e 11 anos e adolescentes de 12, 13 e 14. Desta

forma, pode-se inferir que à medida que a idade aumenta torna-se mais explícito

o fenômeno.

Page 90: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

90

TABELA 8 - Classificação dos casos de tentativa de suicídio por faixa etária,

Matozinhos, 2008-2012

Classificação dos casos -

categorizada

Faixa etária

Total Até

5 anos

De 6 a

9 anos

De 10 a

14 anos

De

15 a 18

anos

Sem

informa-

ção

Caso com CID 1,1% ,5%

Caso com outro CID, mas

escrito por extenso

6,1%

3,4%

3,2%

Caso sem CID, mas escrito

por extenso

7,7%

26,5%

22,7%

18,4%

Caso suspeito c/outro CID 42,4% 23,1% 24,5% 37,5% 33,5%

Caso suspeito sem CID 57,6% 69,2% 42,9% 35,2% 100,0% 44,3%

Total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%

Quando se associam as porcentagens dos tipos de tentativa com a classificação

dos casos, detecta-se que 77,8% são suspeitos. E com exceção do

enforcamento, que foi apenas um episódio, e do corte e intoxicação, todos os

outros tipos apresentam seu maior quantitativo nos casos suspeitos.

Page 91: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

91

TABELA 9 - Classificação dos casos por tipo de tentativa, Matozinhos, 2008-2012

Classificação dos

casos -

categorizada

Tipo de tentativa – agregada

Total Corte

Corte e

intoxica-

ção

Intoxica-

ção

Eletrocus-

são

Enforca-

mento

Queda /

precipita-

ção

Queima-

dura

Outros e

não

especificado

Casos com CID ,8% ,5%

Caso com outro CID,

mas escrito por

extenso

4,7%

3,2%

Caso sem CID, mas

escrito por extenso

9,5%

50,0%

19,7%

100,0%

71,4%

18,4%

Caso suspeito com

outro CID 23,8% 50,0% 30,7% 100,0% 37,5% 72,2% 33,5%

Caso suspeito sem

CID 66,7% 44,1% 62,5% 27,8% 28,6% 44,3%

Total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%

Para melhor esclarecer o que foi citado em cada categoria de classificação dos

casos, será descrita e exemplificada cada uma delas, logo a seguir.

A) Caso com CID (X60-X84)

Foi encontrado apenas um caso registrado em novembro de 2012 no SINAN, de

uma adolescente de 17 anos que tomou medicamentos e o diagnóstico foi X64 –

autointoxicação por exposição, intencional, a outras drogas, medicamentos e

substâncias biológicas e às não especificadas.

B) Casos com outro CID, mas escritos por extenso (tentativa de suicídio ou

tentativa de autoextermínio ou tentativa de morte)

Nos casos de tentativa de suicídio registrados com outro CID foram encontradas,

entre outras, as seguintes classificações: T65.9 (efeito tóxico de substância não

especificada) e F10.2 (transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de

álcool - síndrome de dependência).

Page 92: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

92

Destaca-se que, de acordo com as orientações da CID 10, as causas de morte

e/ou tentativa deveriam, de preferência, ser tabuladas segundo os códigos dos

capítulos XIX (Lesões, envenenamento e algumas outras consequências de

causas externas – S00 –T98) e do capítulo XX (Causa externa de morbidade e de

mortalidade – V01 – Y98). No entanto, caso não seja possível, deve-se eleger

como prioritário o capítulo de causas externas (capítulo XX) (CENTRO

BRASILEIRO DE CLASSIFICAÇÃO DE DOENÇAS, 2008).

Os dados comprovam que a maioria dos médicos não elege o capítulo XX para

hipótese diagnóstica e eles estão “presos, limitados” nas consequências dos atos

praticados, ou seja, veem apenas a lesão, fratura, intoxicação. Assim sendo, não

chega ao PA uma criança ou adolescente que não vislumbre outra saída para seu

sofrimento além da própria morte. Chega um caso de corte nos pulsos D e E e o

procedimento se limitará à “sutura” e a hipótese diagnóstica será “ferimento de

região não especificada do corpo” (grifo nosso).

C) Casos sem CID, mas escritos por extenso (tentativa de suicídio ou

tentativa de autoextermínio ou tentativa de morte)

Nesta categoria está contido o maior número de casos declarados como tentativa

de suicídio. Os profissionais de saúde registram por extenso o fato ocorrido, mas

não o classificam como lesão autoprovocada intencionalmente. São indícios de

uma atitude profissional aética, irresponsável, imprópria e indigna para com o

sujeito acolhido e toda a sociedade, visto que impossibilita ações e procedimentos

que garantam a integralidade do cuidado. Sabe-se que as necessidades de ações

de saúde, como as relacionadas ao diagnóstico precoce ou à redução de fatores

de risco, delineiam um sentido da integralidade.

Outra hipótese aventada é o fato de o profissional não querer se implicar, tomar

decisões que convocam outras ações que demandam assumir o sujeito em seu

sofrimento com implicações outras como referências, discussão de caso clínico

em rede, compartilhamento de informações e outras ações e cuidados que vão

além da simples “sutura” corriqueira.

Page 93: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

93

D) Casos suspeitos com outro CID

Em prosseguimento à análise e com o intuito de clarear acerca do que está sendo

narrado, citam-se dois casos suspeitos de tentativa de suicídio registrados com

outro CID.

Caso 1 – Adolescente de 18 anos, acolhida em julho/2009. Descrição da queixa:

“Intoxicação exógena por “chumbinho” há 3 horas”. CID: T65.9 (efeito tóxico de

substância não especificada).

A leitura desse caso revela que há incongruência de informações: se a

intoxicação foi por “chumbinho”, como o CID declara que é “substância não

especificada”? Este caso não é exceção, pois vários outros com essa incoerência

foram encontrados nas fichas.

Caso 2 – Criança de 04 anos, acolhida em junho/2010. Descrição da queixa:

“Começou agora à tarde com febre e vômitos. Tomou 10 comprimidos de dipirona

há mais ou menos 40 minutos”. CID: J 22 (infecções agudas não especificadas

das vias aéreas inferiores).

Percebe-se novamente existir descaso ou ruído de informações entre o visto e o

dito, isto é, o exame clínico e a linguagem do acompanhante, ao expor sua

demanda, não encontram ressonância com o percebido pelo profissional. Ou é

preciso silenciar as situações detectadas e, assim, ir em linha contrária ao ideário

expresso no texto constitucional da construção de um sistema de saúde justo,

equânime e igualitário?

Diversos estudos evidenciam uma importante lacuna entre o ideal e o real, isto é,

há idealização dos modelos de atenção à saúde que não se materializam nas

práticas sociais concretas. A produção do cuidado, nos espaços reais, não é

corporificada (OMS, 2006).

Verificam-se nos casos suspeitos e escritos com outro CID as seguintes

classificações: F10.2 (transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de

Page 94: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

94

álcool - síndrome de dependência), T18.9 (corpo estranho em parte não

especificada do aparelho digestivo), T65.9 (efeito tóxico de substância não

especificada), R10.1 (dor localizada no abdome superior), F10.0 (transtornos

mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool), R07.0 (dor de garganta),

T14.1 (ferimento de região não especificada do corpo), T30.0 (queimadura, parte

do corpo não especificada, grau não especificado), J03.9 (amigdalite aguda não

especificada), J.22 (infecções agudas não especificadas das vias aéreas

inferiores), R60.9 (edema não especificado) e K12.1 (outras formas de

estomatite).

Observou-se que dois deles (T65.9, F10.2) foram também encontrados nos casos

com outro CID, mas escritos por extenso: tentativa de suicídio. Essa comprovação

implica indagações a respeito do real quantitativo de casos de tentativa de

suicídio infanto-juvenil atendidos pelo serviço de PA do município. Afinal, o que é

tentativa de suicídio para os profissionais de saúde de Matozinhos?

E) Casos suspeitos sem CID

No que concerne aos casos que sugeriram tentativa de suicídio, mas sem

informação suficiente para conclusão sobre a “intencionalidade” do ato, citam-se

mais dois casos:

Caso 1 – Criança de 05 anos, acolhida em agosto/2008. Descrição da queixa:

“Corte com faca no punho esquerdo”. CID: não foi informado.

Neste caso, torna-se difícil a atribuição do desejo de morte considerando-se que o

fato pode ter sido apenas “acidental”. Ressalta-se, porém, uma possível

negligência que deve ser também escutada. No entanto, diante da omissão

expressa nos outros relatos esse discurso não deve ser aceito como verdade

imediatamente; é preciso investigar todos os casos para escutar dos próprios

sujeitos sua versão sobre os atos praticados.

Page 95: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

95

Caso 2 – Adolescente de 16 anos, acolhido em novembro/2009. Descrição da

queixa: “Ferimento corto-contuso extenso no punho esquerdo (vidro) com lesão

artéria radial + tendão flexor 3º quirodáctilo esquerdo”. CID: não foi informado.

Como se processou a anamnese desse adolescente? Que história de vida foi

inquirida? Corte profundo no pulso convoca a apreender as necessidades mais

abrangentes do paciente. Sem escuta do ser biológico, psicológico e social torna-

se impossível e irresponsável atribuir-lhe um diagnóstico. No entanto, com lesão

de tamanha gravidade, interroga-se a negligência dos profissionais de saúde ao

não descreverem a classificação de tal problema. Sobressai, também, que não há

registro do relato desse adolescente ou sequer do seu acompanhante: como este

adolescente se feriu? Silenciar o sofrimento supostamente provocado pelo corte

no pulso é absolutamente inaceitável.

A questão não se resume apenas em uma “mudança ou inclusão de CID”, e sim

em uma ruptura de paradigmas, pois se pode inferir que os profissionais de saúde

de Matozinhos omitem informações, talvez na busca de consolo para lidar com o

horror do real: crianças e adolescentes desejando a morte! Nessa acepção,

Combinato e Queiroz (2006, p. 210) expõem que, apesar de ser um fato natural,

“para o homem ocidental moderno a morte passou a ser sinônimo de fracasso,

impotência e vergonha. Tenta-se vencê-la a qualquer custo e, quando tal êxito

não é atingido, ela é escondida e negada”. Como toda escolha e ação têm

consequência, ao subnotificar o fato ele passa a ser “inexistente” e tratar ou

prevenir torna-se “desnecessário”.

Pode-se inferir, ainda, que a responsabilização pelo cuidado decorre dos saberes

e das experiências de diferentes atores sociais que têm suas histórias de vida e

visão de mundo direcionando o cuidar, o ser com o outro no mundo da saúde,

quer seja no cotidiano dos ambulatórios de saúde mental de uma pequena cidade

interiorana, na sua micropolítica, quer seja em hospitais de grande porte em

metrópoles.

Page 96: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

96

Nas TAB. 10 e 11 encontram-se registros dos pouquíssimos encaminhamentos e

interlocuções feitas com outros serviços ou setores de saúde, demonstrando a

“não implicação” do profissional de saúde no cuidado e tratamento do sujeito.

TABELA 10 – Encaminhamentos das tentativas de suicídio, Matozinhos, 2008-

2012

N % %

acumulado

Não se aplica/sem informação 164 88,6 88,6

Ambulatório 2 1,1 89,7

CAPS 5 2,7 92,4

Outro 9 4,9 97,3

Psiquiatria 3 1,6 98,9

Psicologia 2 1,1 100,0

Total 185 100,0

Pensando em trabalho em rede e intersetorialidade dos serviços, apenas 21

foram encaminhados para outros serviços de saúde e em 15 casos foi feito

contato com a rede extensa para obter informações de como proceder no caso

recebido, o que sugere duas coisas: não sabem como proceder diante de um

caso de tentativa de suicídio e/ou estão interessados na discussão de caso clínico

para melhor resolução do caso.

TABELA 11 – Procedimentos realizados nas tentativas de suicídio, Matozinhos,

2008-2012

N % %

acumulado

Alta 4 2,2 2,2

Contato com Hospital João XXIII 15 8,1 10,3

Outro 6 3,2 13,5

Não se aplica/sem informação 160 86,5 100,0

Total 185 100,0

Page 97: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

97

Curioso é que após a implantação do Ambulatório Infanto-juvenil os

encaminhamentos reduziram-se: apenas um em 2009 e um em 2010. Isso remete

a reflexões sobre a construção da rede de atenção à saúde do município e ao

encaminhamento implicado: como esses serviços se articulam? São

intersetoriais? Trabalham mesmo em rede? Sabem da existência e do trabalho

desenvolvido pelos serviços que compõem o sistema público de saúde do

município? Percebem o sistema de forma integrada?

Esses questionamentos indicam uma visão da fragmentação do sujeito como ser

existente, dicotomizado, esfacelado e, cartesianamente falando, dividido em

partes. Com esse modelo reducionista, o cuidar se torna também reduzido à

queixa, à medicalização e à alta sem implicações e sem corresponsabilização

pela vida.

Ao analisar os dados ao longo do tempo, foi possível notar, conforme o GRÁF. 1,

que no decorrer dos meses os casos de tentativa de suicídio e os casos suspeitos

mantiveram certa regularidade nesse período de cinco anos.

GRÁFICO 1 – Total de casos de tentativa de suicídio infanto-juvenil no município

de Matozinhos no período entre 2008-2012

Page 98: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

98

Destacam-se os meses de julho, com o menor número de casos (sete), e de

novembro, com a maior quantidade registrada (24 casos). É importante pontuar

que, mesmo mantendo certo padrão, os resultados encontrados revelam maior

concentração no segundo semestre (98 casos), conclusão também encontrada

em um estudo realizado no Ceará em 2005, por Pordeus et al. (2009).

Houve constância também no número de casos, perpassando média de 37 casos

por ano, ou seja, três casos mensais, sendo que em 2009 foram registrados 33

casos e em 2012 o maior índice, com 44 casos.

Em 2008 foram registrados 34 casos de tentativas, incluindo aqueles

considerados suspeitos, sendo que 12 eram crianças de três a 11 anos e 22

adolescentes de 12 a 18 anos. Conforme o GRÁF. 2, só foram registrados casos

de intoxicação e corte, sendo o último pouco expressivo. Junho e outubro não

apresentaram registro algum.

GRÁFICO 2 – Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos

registrados no ano de 2008

Foi quantificado, em 2009, o menor valor de casos, no entanto, a categoria de

queimadura apareceu de forma pouco expressiva, mas superou o número de

cortes. Nesse ano também prevaleceu a faixa etária dos adolescentes de 12 a 18

Page 99: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

99

anos, com 21 casos, sendo quase o dobro das crianças (12 casos). Não houve

registro no mês de março.

GRÁFICO 3 – Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos

registrados no ano de 2009

No ano de 2010, a maioria dos casos também foi com adolescentes e repetiu a

tendência dos anos anteriores. Houve mais destaque para as queimaduras no

mês de novembro e as quedas/precipitações no primeiro semestre do ano. Houve

pelo menos um caso em todos os meses do ano.

Page 100: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

100

GRÁFICO 4 – Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos

registrados no ano de 2010

Fato curioso ocorreu em 2011, quando apenas seis crianças de três a 11 anos

tentaram suicídio, em contraponto aos 32 casos de adolescentes. Outra

observação importante é o aparecimento de novas modalidades de tentativas e

também a junção de mais de um método.

GRÁFICO 5 – Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos

registrados no ano de 2011

Page 101: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

101

No último ano, não foi verificado algum caso no mês de fevereiro e a eletrocussão

e o enforcamento não foram mais utilizados como forma de tentativa, mas houve

a inclusão de instrumento mais letal: arma de fogo, que até o momento não havia

aparecido. Apesar de ser inexpressivo numericamente, apresenta intensificação

da letalidade dos instrumentos e formas utilizadas ao longo desse período. Foram

44 casos, sendo que 15 eram crianças e 29 adolescentes.

GRÁFICO 6 – Casos de tentativa de suicídio no município de Matozinhos

registrados no ano de 2012

Em todos os gráficos apresentados anteriormente é possível perceber a

prevalência de casos de intoxicação e que ao longo do tempo foram aumentando

as categorias das formas como as crianças e os adolescentes tentaram suicídio,

juntamente com seu poder de letalidade. Pode-se inferir que a procura por

instrumentos e métodos “mais perigosos” ao longo desse período retrata uma

busca incessante para serem vistos, escutados como sujeitos.

Na busca pela compreensão do fenômeno de tentativa de suicídio infanto-juvenil

nos últimos cinco anos, no município de Matozinhos, também foi possível situar

espacialmente a ocorrência dos casos, localizando no território e fazendo o

cruzamento com os tipos de tentativas cometidas e as idades.

Page 102: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

102

FIGURA 6 – Mapa das ocorrências de casos de tentativa de suicídio do município

de Matozinhos – 2008 a 2012

Nesse mapa estão os casos com endereço completo e que foram localizados por

meio do google maps. Nota-se que os casos de tentativa de suicídio infanto-

juvenil de Matozinhos ocorreram em diversos bairros do município, distribuídos

quase que simetricamente dentro do território. No entanto, em alguns bairros

houve mais frequência de casos: Bom Jesus, Cruzeiro, Florestal, São Miguel,

Vista Alegre, Centro e Mocambeiro. Outra questão a ser considerada é que

alguns poucos endereços registrados nas fichas dos serviços de saúde foram

discordantes do programa de busca, mas isso não inviabiliza sua utilização, pois

os casos foram encontrados em quase todo o território.

Ao visualizar as ocorrências, conclui-se que a tentativa de suicídio infanto-juvenil

é um fenômeno municipal e não se concentra em apenas um local específico. Os

bairros que se destacaram têm características distintas e podem ser tomados

como territórios para propostas de projetos pilotos, mas jamais se deve suprimir a

dimensão global e esquecer que o fato está presente em todo o município. As

tentativas de suicídio estão nas periferias e, também, no centro de Matozinhos.

Page 103: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

103

Pires et al. (2012), Veras e Katz (2011), Souza et al. (2010), Botega et al. (2009) e

Marcondes Filho et al. (2002) são alguns dos autores que incluíram a categoria

renda ou classe social na construção do perfil dos sujeitos que tentaram suicídio e

constataram que a maioria era de classe baixa ou média. Neste estudo não se

avaliaram a renda ou classe social, mas se se considerar a infraestrutura e a

localização dos bairros, pode-se abstrair que os casos abrangem todas as

classes, visto que, com exceção das “Quintas das Fazendinhas” (área com

grande concentração de sítios e fazendas), o Centro é uma área de expressivo

valor imobiliário da região, pois possui todo o suporte disponível para o município.

Optou-se por englobar os bairros Bom Jesus e Vista Alegre e suas respectivas

subdivisões, visto que eles encontram-se muito próximos e a sua delimitação

espacial é confusa. É como se fosse um bairro dividido em três partes. Conforme

informações da TAB. 12, o bairro Bom Jesus, juntamente com suas divisões,

representa 18,1% dos casos de intoxicação, seguido do Cruzeiro (15%), Florestal

(13,4%) e Vista Alegre com “agregados” (9,4%). No Bom Jesus também ocorreu o

maior número de casos de queda/precipitação. No Centro é alto o número de

casos de queimadura, queda/precipitação e corte, este último expressivo também

em Mocambeiro. No bairro São Miguel encontrou-se o único caso de eletrocussão

e a quantidade de queimaduras é expressiva. É interessante observar em Bom

Jesus II e em São Miguel o quantitativo de 28,6% de casos categorizados como

outros ou não especificado. No Cruzeiro viu-se o único caso de enforcamento,

que foi ouvido na pesquisa qualitativa.

Page 104: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

104

TABELA 12 – Tipos de tentativas de suicídio nos bairros de Matozinhos, 2008-

2012

Bairro por tipo de tentativa

Bairros

Tipo de tentativa - agregada

Total

Corte

Corte e

intoxica-

ção

Intoxica-

ção

Eletro-

cussão

Enforca-

mento

Queda /

Precipita-

ção

Queima-

dura

Outros

Bom Jesus 4,8% 13,4% 37,5% 5,6% 14,3% 12,4%

Bom Jesus I 4,8% 50,0% 1,6% 2,2%

Bom Jesus II 9,5% 3,1% 5,6% 28,6% 4,9%

Cruzeiro 15,0% 100,0% 12,5% 11,1% 12,4%

Florestal 4,8% 13,4% 9,7%

São Miguel 7,9% 100,0% 16,7% 28,6% 8,6%

Vista Alegre 4,8% 5,5% 12,5% 4,9%

Vista Alegre I ,8% ,5%

Vista Alegre II 3,1% 2,2%

Centro 19,0% 3,9% 12,5% 16,7% 7,0%

Mocambeiro 14,3% 5,5% 5,4%

Quando se organizam as tentativas de suicídio por faixa etária distribuídas nos

bairros com maior incidência, obtém-se que nos bairros Cruzeiro, Bom Jesus,

Florestal e São Miguel concentram-se os casos daqueles com idades entre 10 e

18 anos (TAB. 13). No Centro, São Miguel, Bom Jesus, Cruzeiro e Florestal estão

as ocorrências infantis de três a nove anos.

Page 105: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

105

TABELA 13 – Distribuição por faixa etária das tentativas de suicídio nos bairros de

Matozinhos, 2008-2012

Bairro por faixa etária

Bairro

Faixa etária

Total Até 5

anos

De 6 a 9

anos

De 10 a

14 anos

De 15 a

18 anos

Sem

informação

Bom Jesus 3,0% 15,4% 16,3% 13,6% 12,4%

Bom Jesus I 3,0% 2,0% 2,3% 2,2%

Bom Jesus II 3,0% 7,7% 6,1% 4,5% 4,9%

Cruzeiro 9,1% 7,7% 8,2% 15,9% 50,0% 12,4%

Florestal 12,1% 4,1% 13,6% 9,7%

São Miguel 6,1% 15,4% 16,3% 4,5% 8,6%

Vista Alegre 9,1% 6,1% 3,4% 4,9%

Vista Alegre I 1,1% ,5%

Vista Alegre II 4,5% 2,2%

Centro 18,2% 23,1% 2,0% 3,4% 7,0%

Mocambeiro 3,0% 8,2% 5,7% 5,4%

Em suma, esta primeira etapa da pesquisa abordou o perfil dos casos de tentativa

de suicídio infanto-juvenil de Matozinhos nos últimos cinco anos. Descobriu-se

que 86,5% são acolhidos no PA e que esse serviço apresenta subnotificações e

condutas profissionais insuficientes para atendimento ético e humano da

demanda recebida. Foram realizados 21 encaminhamentos para a rede de saúde

municipal e apenas um prontuário continha CID; a maioria dos casos foi

considerada “suspeita” (77,8%).

Seguindo os resultados encontrados nos diversos estudos brasileiros realizados,

concluiu-se que a maioria daqueles que tentaram suicídio eram adolescentes, do

sexo feminino e utilizaram a intoxicação como método (68,6%), com prevalência

do uso da medicação. A média de casos por ano foi de 37, mantendo certa

regularidade ao longo desses cinco últimos anos. Houve maior concentração no

segundo semestre, mas não muito expressiva (53%), e também progressivo

aumento da letalidade dos métodos escolhidos e utilizados para tentativa de

Page 106: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

106

suicídio. E os casos foram bem distribuídos, territorialmente, mas nos bairros

Cruzeiro, Bom Jesus, Florestal e São Miguel concentraram-se os adolescentes.

A inovação deste trabalho reside na construção do perfil infantil de sujeitos que

tentaram suicídio no município de Matozinhos. A maioria das crianças tem até

cinco anos, é do sexo masculino e também escolhe a autointoxicação como

método, concentrando-se no bairro Centro.

Diante destas conclusões, justifica-se um encontro com os profissionais da rede

de atenção e cuidado à criança e ao adolescente do município para discussão

dos perfis encontrados e construção de fluxos de acolhimento e direcionamento

dos casos de tentativa de suicídio, pensando em ações de prevenção e promoção

de saúde. Neste sentido, a proposta de intervenção intersetorial prevê um curso

de capacitação profissional participativo com os trabalhadores da rede de atenção

e cuidado à criança e ao adolescente do município de Matozinhos, dividido em

módulos e que ao final, prevê a construção de uma rede de apoio e fluxo de

funcionamento de atendimento da demanda, das necessidades apresentadas

pelos usuários.

5.2 Pesquisa qualitativa

Os dados coletados por meio dos grupos focais e método sensível criativo foram

transcritos, uma vez que se pediu autorização para gravar os depoimentos e

discussões em grupos, com vistas à manutenção da fidedignidade das falas.

Foram analisadas juntamente com o texto do relator. As produções criativas e

sensíveis feitas pelas crianças foram recolhidas e digitalizadas para posterior

avaliação, juntamente com o discurso do sujeito e o relatório do observador.

Assim, de posse dos discursos, eles passaram pela análise de conteúdo baseada

nos referenciais de Bardin (2010). Foram seguidas as três fases cronológicas

sugeridas pela autora: pré-análise, exploração do material e tratamento dos

resultados. Deste modo, em um primeiro momento, foi feita a leitura flutuante de

cada discurso oriundo dos grupos, com vistas à familiarização com o seu

Page 107: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

107

conteúdo. Posteriormente, foram realizadas novas leituras para pinçamento das

unidades de registro, ou seja, das frases ou parágrafos que respondem às

questões estimuladoras da obtenção dos depoimentos. A partir da codificação de

todo o material por meio dos recortes em unidades de registro, elas foram unidas

por convergência e passou-se para a fase de interpretação ou análises reflexivas.

A interpretação do conteúdo foi baseada em uma análise qualitativa que

considera a presença ou ausência de características peculiares nos depoimentos

dos sujeitos escutados.

Os grupos foram analisados separadamente, demarcando as respectivas

unidades de registro e categorias, resguardando-se a singularidade de cada

discurso. Afinal, Bardin (2010) ressalta que não existe uma análise de conteúdo

padronizada a priori. O que há é um conjunto de técnicas, de regras que servem

apenas de base para realizar a investigação, mas que deve ser adaptável, deve

ser reinventada a todo o momento para se adequar ao objeto estudado, pois a

interpretação vai além da obviedade do que é dito pelo sujeito.

A) Grupo focal com adolescentes

O grupo focal foi realizado com quatro adolescentes na faixa etária de 14 a 19

anos, sendo duas meninas e dois meninos. Apenas uma menina não reside nos

bairros que apresentaram maior número de casos. O jovem de 19 anos foi

incluído no estudo porque no seu prontuário só havia registro da sua idade e não

da data de nascimento, por isso, quando aceitou o convite revelou que tinha 19

anos, mas gostaria de participar. Dois tiveram a tentativa de suicídio registrada

em 2010 e os outros em 2011 e todos por autointoxicação. Para preservar a

identidade dos sujeitos, serão representados pela letra A, seguida de um número

em ordem decrescente de acordo com a idade atual.

A1 é um jovem de 19 anos. No seu prontuário constava que ele tentou suicídio

tomando um vidro de medicação desconhecida, a mando das vozes. Foi acolhido

pelo Ambulatório Infanto-juvenil em junho de 2011, quando tinha 16 anos. Foi

encaminhado pelo Programa Saúde da Família (PSF) da sua área, que declarou a

Page 108: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

108

tentativa de suicídio. No seu relato ele apresenta diversas tentativas de suicídio,

desde corte até enforcamento. O caso foi classificado como sem CID, mas escrito

por extenso (tentou suicídio tomando vidro de medicação desconhecida).

Conforme informação da sua ficha, o adolescente não retornou para

acompanhamento psicológico.

A2 é uma adolescente de 18 anos que tentou suicídio por autointoxicação

(medicação) em janeiro de 2010 aos 14 anos e foi atendida no PA. Apesar de

declarar no grupo que tentou se matar, no prontuário estava escrito que foi uma

“intoxicação exógena: tomou vários comprimidos” e classificou-se como caso

suspeito sem CID.

A3 é uma adolescente de 17 anos que foi atendida no PA e depois acolhida pelo

ambulatório, com encaminhamento do PSF, em maio de 2011, aos 14 anos. No

PA o caso foi classificado como suspeito com outro CID - intoxicação exógena (1

cartela fluoxetina + 1 cartela paroxetna) – CID: T65.9 (efeito tóxico de substância

não especificada). No ambulatório, caso sem CID, mas escrito por extenso -

tentativa de suicídio, pois veio com essa queixa declarada pelo PSF. Para

tabulação, permaneceu a classificação do primeiro local em que ela passou, ou

seja, PA. Adolescente fez acompanhamento psicológico.

A4 é um adolescente de 14 anos que foi encaminhado pelo PSF e acolhido pelo

Ambulatório Infanto-juvenil em maio de 2010, aos 10 anos. A queixa inicial era de

que estava em sofrimento com perda de ente querido. “Fala que quer morrer e ir

pra perto de Deus!” Na anamnese foi relatada história de autoextermínio, com a

ingestão de uma planta “venenosa” (comigo-ninguém-pode). Classificado como

caso sem CID, mas escrito por extenso (história e relato de autoextermínio).

Criança fez acompanhamento psicológico.

Estes são os sujeitos da pesquisa descritos pelo prontuário, mas a partir da

análise do discurso possibilitado por meio do grupo focal foi possível perceber e

escutar que esses jovens são muito mais complexos que seus sintomas.

Page 109: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

109

Baseado no roteiro seguido para a coleta de dados com os adolescentes,

estabeleceram-se três categorias:

a) Relações sociais

b) Tentativa de suicídio

c) Proposta de intervenção

Em cada categoria foram listadas as unidades de registro respectivas,

considerando a presença/ausência de algumas características, sua frequência,

intensidade, ordem de aparição e repetição de ocorrências.

Para a análise das relações sociais, a pesquisadora baseou-se nas respostas

das seguintes questões:

1. O que é pra vocês morar aqui em Matozinhos?

2. Como é o dia-a-dia de vocês? O que fazem nos finais de semana?

3. O que vocês gostam de fazer para se divertirem aqui em Matozinhos

(momento de lazer)?

4. Vocês acham que a cidade oferece lugares para lazer / diversão?

5. Vocês têm amigos? Como é a relação com eles? O que fazem juntos?

6. Como é a relação com seus familiares? O que fazem juntos?

Nesta categoria, os adolescentes trouxeram o município a partir das suas

relações com os espaços, as pessoas e os problemas que eles percebem que

envolvem os jovens residentes. Diante destas subcategorias, foram retiradas

como unidades de registros: diversão / lazer; amigos; família; drogas.

Os discursos resgatam as discussões sobre qualidade de vida, enfocando o

aspecto local e as relações que eles estabelecem com os espaços que o

município possui.

De acordo com Bacheladenski e Matiello Júnior (2010), foi no início do século XX

que o Brasil passou a preocupar-se com o lazer como forma de saúde dos

trabalhadores e recuperação da mão-de-obra explorada e deteriorada. Para os

Page 110: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

110

adolescentes, lazer e diversão estão associados e reclamam da falta de espaços

e atividades, conforme depoimentos a seguir:

A1: É só na quadra do Caíque de vez em quanto o povo abre lá pra gente jogá bola. E tem esse campo, esse campo que nós távamos conversano, então só os dois, a quadra e o campo de bola, porque aqui na praça mesmo, no centro aqui, não tem nada. Não tem nada. Igual nós lá távamos falano de ter uma pracinha pra gente sentá, conversá, lá também não tem. Então a única coisa que tem lá pra nós é só o campo, que tá avacalhado, mas tem o campo e a quadra de bola. Pra nós é só. [...] Não tem um lugar, por exemplo, igual a gente mora lá no bairro, num tem lugar pra a gente ir. Então não tem um lugar pra ocê saí, então a gente fica brincano na rua, porque não tem. Igual os amigos falam: vamo ali tomá um açaí? O que acontece? A gente tem que vim aqui pra praça. Aí fica muito ruim. Num tem praticamente nada lá no bairro [...]”. A2: Bom, o meu lazer aqui em Matozinhos, não tenho. Eu acho que lazer aqui eu não tenho. [...] Eu não acho que aqui tem espaço, porque cultura… aqui não tem esse tipo de coisa. Bom, coisas para interagi com gente jovem não tem. É muito difícil. Se tem é porque cada um caça seu rumo e num expõe o que tá ruim.

Diante da exposição de falta de espaços de lazer, questiona-se a real falta de

opção de lazer nos tempos livres e a apropriação, pelos adolescentes, desses

espaços públicos. Ao mesmo tempo em que eles relatam não haver investimento

estatal para construção ou recuperação de locais para atividades prazerosas,

divertidas, de lazer, eles apresentam outras opções: música, relações sociais,

brincar na rua, jogar bola, pegar “traseirão”.

A1: Olha, a minha diversão é cantá, porque, igual eu falei, sou evangélico, vou na igreja evangélica, e eu canto, onde me convidam para está cantano eu canto. A3: Com relação a lazer… o que eu não consigo falá com os meus pais eu falo com amigo ou outro parente. Na diversão eu procuro… eu sempre falo com a minha mãe, o que me distrai, deixa mais feliz assim quando eu tou com raiva e tudo, é escutano música. É uma coisa que eu gosto muito, escutá música. Em termos de saí, eu não saio muito, não gosto de saí pra festa, essas coisas, até porque hoje em dia tá muita bagunça, certas festas nem compensa você ir. E como eu namoro também, então assim, a minha diversão é saí com meu namorado, às vezes tem uma festa em casa de família ou aniversário, essa que é a minha diversão. A4: A mesma coisa. A gente mora perto. A única coisa que tem é isso. A quadra e o campo, porque o resto… A4: Tem vez que os meninos vão diverti na BR, pega traseirão.

Page 111: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

111

A1: Fala assim: eu vô pegá o traseirão ali, vô segurá no caminhão e vô brincá de anda. Ou então… deixa eu vê que mais… brincá também na rua. A gente também, de vez enquanto, brinca na rua também, com os amigos. Porque quando tá de noite num tem lugá procê ir, num tem.

Entre essas opções apresentadas, é interessante perceber que esse “lugar” do

lazer, da diversão está intrinsecamente ligado às relações sociais estabelecidas e

à oportunidade de expressão de sentimentos e pensamentos. Assim como para

os trabalhadores do início do século XX, o lazer é uma válvula de escape para as

pressões externas e internas sofridas por esses adolescentes; é uma

possibilidade de SER. Entende-se “lugar” conforme conceituação de Carlos

(1996), que entende como uma maneira de viabilizar a ressignificação do viver do

sujeito, a partir das suas relações com o mundo e produzindo a sua existência

social. Nas falas a seguir, percebe-se claramente que a função desse “lugar” de

diversão na vida desses adolescentes ultrapassa a ruptura com o tédio da vida

diária, para transformar-se em suporte existencial para lidar com as adversidades

vivenciadas.

A1: Então o que acontece? A minha diversão é essa, é cantá, porque quando eu tô triste eu canto, quando eu tô alegre eu canto. Então tipo assim, a maneira deu me expressá quando eu tô com raiva, que eu tô nervoso, que eu não quero vê ninguém é eu cantá. Isso me desabafa. Então eu fico muito feliz, porque onde eu tenho passado pra cantá é muito gratificante as pessoas me receberem de braços abertos e graças a Deus é menos de um ano e já tô com mais de duzentas cópias vendidas. Então é muito gratificante da minha família ter visto isso aí e ter investido em mim. A4: A minha diversão é jogá bola, gosto muito de jogá bola, porque quando eu tô jogano bola eu num lembro de nada de mau, num lembro de nada, só fico na minha, feliz, jogano bola. Tem vez que tentam me derrubá, mas tá bom, gosto demais de jogá bola. A3: Bom, lazer é meio difícil aqui, esse espaço, porque num tem. A única coisa que lá no bairro que eu moro, que… é assim, é um encontro, que lá tinha o encontro dos jovens, que era no salão paroquial, no dia de domingo tinha esse encontro aí a gente fazia dinâmicas, essas coisas, era muito bom. Só que agora os meninos brigaram e tudo, aí parou de ter. Mas era um encontro muito bom. E era um meio de lazer porque a gente tinha que fazê dinâmica, conversava, interagia, então era muito bom.

Outra questão é tratar o lazer de forma mercadológica. Conforme Bacheladenski

e Matiello Júnior (2010), o lazer tornou-se um produto, uma mercadoria, um

objeto, uma diversão de e para o consumo. Vê-se este discurso também

Page 112: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

112

impregnado nos adolescentes, apesar de indicarem formas alternativas e “não

pagas” de lazer.

A1: Igual se a gente quiser, igual tomá um sorvete, comê uma pizza, tem que vim aqui no centro. Lá tem é um negócio lá (palavra incompreensível). Então só tem hamburgue e o pessoal tá cansado de comê hamburgue. Então num tem um lugar pra você saí, então a gente fica brincano na rua, porque não tem. Igual os amigos falam: vamos ali tomá um açaí? O que acontece? A gente tem que vim aqui pra praça. Aí fica muito ruim. Não tem praticamente nada lá no bairro. A2: Se eu quero passeá, assisti um filme, ir no cinema, se quero ir no shopping, fazê alguma coisa diferente eu vou no shopping de Pedro Leopoldo, ou então vou em Sete Lagoas.

E, afinal, que “lugar” é esse que eles dizem não ter? Será que a reclamação é um

reflexo da invisibilidade, da “não existência” neste território, nesta sociedade?

A1: E eu acho que muitas das vezes os jovens ficam revoltados, por conta disso, porque os jovens vê que tem gente que tem capacidade de ajudá e num ajuda. Eu acho que é isso. No meu entender. [...] Porque as pessoas acham que é só colocá o médico aqui, eles acham que é só falá eu vô te dá uma cesta básica e tá tudo bem. E eu acho que com o jovem num dá certo, porque no meu caso se o jovem não trabalha, ele dá trabalho. Porque o jovem tá precisano envolvê com mais jovens, precisano conversá mais e o que tá aconteceno é que o jovem tá ficano muito de lado, muito de canto, tipo assim, é só os mais velhos agora, é só os que tão trabalhano na obra. Igual esses jovens que tão nesse mundo aí, tem muitas pessoas que… eu não tenho nada contra, mas tem muitas pessoas que dizem assim: vai sê um marginal, vai sê um assassino, então tipo assim, a sociedade mesmo tá julgano muitos os jovens e é isso que eu acho que é por isso que os jovens tão muito revoltados assim, porque se eu acho que se as pessoas estendessem a mão pra esses jovens e num jogasse pedra neles, no modo de dizê, e sim estendesse a mão pra ele e falasse com ele: você vai saí dessa. Nós vamos te ajudá. Eu vô te mostrá o lugá que cê pode tá conversano, pode tá expressano tudo aquilo que ocê tá sentino. Então, o que acontece? No meu entendimento não tá aconteceno isso, eles só tão quereno criticá aqueles que tão nesse mundo e num é assim. Eles são feito de carne e osso como a gente mesmo. A1: Porque, tipo assim, já que num querem fazer nada por nós mesmo, então já tá tudo perdido. Assim, no pensamento dos jovens que eu converso com eles, eles falam comigo: “A1, já que tá desse jeito aqui, vamo acabá de coisa já”.

Esse espaço para conversar, ser acolhido, visto e escutado, sem críticas é a

grande reivindicação. É a solicitação por um papel social que não seja aquele de

“bode expiatório”. Serem cidadãos, saírem também da passividade que sempre

aguardam alguém fazer algo por eles! Diante desta reflexão, Bacheladenski e

Page 113: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

113

Matiello Júnior (2010, p. 2576) tratam o lazer como forma de promoção da saúde

(lazerania) e também de cidadania: “[...] eles podem e devem reivindicar o seu

direito a um espaço público e de qualidade para vivenciar [...] o seu lazer”.

Acrescenta-se a requisição pelo reconhecimento dessas crianças e adolescentes

como sujeitos, seja para usufruir do lazer, da saúde, do cuidado, da vida. Que

essa luta pela diversão represente também uma luta por um “lugar” na sociedade,

afinal, “[...] o lazer que se propõe é em favor da emancipação humana e em

resposta a todas as formas de exploração [...]” (BACHELADENSKI; MATIELLO

JÚNIOR, 2010, p. 2577).

Outra questão que esse grupo possibilitou resgatar foi a percepção das relações e

dos vínculos sociais frágeis como fatores de risco para tentativa de suicídio, de

acordo com o QUADRO 2 de Bentancurt (2011). Nos seus relatos, os

adolescentes contaram suas histórias e trouxeram fatos e situações que

desvelaram a presença de elementos propulsores para o suicídio. Com base nas

assertivas de Bentancurt (2011), elaborou-se um quadro com trechos que

exemplificam o que a autora considera como “fatores de risco”. Aproveitou-se

para incluir as falas das crianças que também foram escutadas pelo método

sensível criativo, tornando-se um quadro infanto-juvenil único.

QUADRO 2 – Fatores de risco para o suicídio apresentados pelas crianças e

pelos adolescentes de Matozinhos, 2008-2012 - continua

Familiares Sociais

Antecedentes familiares de conduta suicida Apesar da adolescente (A3) não relatar, foi verificado na sua ficha que a mãe também tentou suicídio.

Exposição a outro suicídio, de um companheiro, amigo ou conhecido Falam da “influência” que um jovem ou familiar tem sobre o outro: A1: Porque influencia, sem querer influencia... A4: Influencia. Às vezes vai pensar que é bom, porque ele

tá fumano, tá bebeno, deve se bom... A1: Foi criança igual ele foi criança, e simplesmente foi por

um caminho errado, por influência de alguém. Então na influência ali daquela pessoa, daquele baque, ela falô assim: o que eu tenho para fazê?

A3: [...] porque um incentiva o outro, um que leva o outro. E quem é cabeça mais fraca cai, quem num tem personalidade forte, que tudo que fala… “Vou fazer porque fulano faz.” Então acho que tem muito jovem assim, que tá precisano de tê personalidade mais forte, mais firme e sabe fala um não...

Page 114: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

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QUADRO 2 – Fatores de risco para o suicídio apresentados pelas crianças e

pelos adolescentes de Matozinhos, 2008-2012 - continua

Disponibilidade de meios em casa Intoxicação A2: ... eu tomei… meus avós tinha problema

de coração, pressão alta, eles tinham acabado de comprá os remédio, eu tinha pegado todos os remédios deles e tinha tomado café com eles...

A3: Eu tomei uns remédios, tomei muitos remédios...

A4: ... aí tinha uma planta lá que um dia a minha tia e meu tio falô que a planta era venenosa, aí eu peguei um pedaço da planta...

Acesso a meios letais e meios de comunicação irresponsáveis Criança (B1) enforcou-se no quintal de casa com um varal: ... quando eu tava na casa do meu avô, lá tinha uma corda, eu enrolei ela no meu pescoço... cortou aqui...

Antecedentes de depressão ou enfermidade mental na família Antecedentes familiares Apesar da criança (B2) não relatar, foi verificado na sua ficha que a mãe fazia acompanhamento psiquiátrico no CAPS do município.

Estigma negativo associado à procura por ajuda e falta de acesso aos serviços de ajuda Estigma negativo A1: Para quem disse que eu ia ficá internado, que ia

sê doido, e hoje eu encontro apoio em você, Michelle, que conversa muito com a gente, na minha família, encontrei apoio, esse abraço seguro. E aí é isso que eu sempre quero frisá, é isso que a gente tá precisano, de apoio, de dar a mão.

Acesso aos serviços A1: Eu mesmo não queria o tratamento mais, porque

eu falava que era muito longe. Aí mesmo que a gente vê, nessa área aí, tá muito prejudicada, porque se um jovem tá precisano de um acompanhamento ele não vai ter, ele vai ter que sai daqui pra ir pra Belo Horizonte. E aí o que acontece? Ele vai fala: “não, é muito cansativo.” Igual a gente pega o carro da assistência aqui pra gente ir pra lá, quando a gente chega lá eles largam a gente lá. A gente pega o carro aqui quatro horas da manhã, a gente chega lá umas cinco e meia da manhã e a gente fica de cinco e meia até três horas, quatro horas da tarde. O que acontece? Se a pessoa num tive um dinheiro pra comprar uma coisa pra comer, a pessoa vai ficar ali com fome. Porque num tem o apoio ali. Então como aqui num tinha psiquiatra, num tinha psicólogo e eu tive que ir pra Belo Horizonte, eu achava ruim, mas na mesma hora que eu achava ruim eu achava bom, porque ali eu tava recebeno apoio que eu estava necessitano...

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QUADRO 2 – Fatores de risco para o suicídio apresentados pelas crianças e

pelos adolescentes de Matozinhos, 2008-2012 - continua

Mudanças na estrutura familiar e também mudanças constantes de residência Mudança A2: [...] não sei se era porque eu não morava

com meus pais, então quando ocê tá morano numa casa, mesmo que seja dos seus avós, viveno de favô, tinha aquela obrigação, aquele trem, era muito difícil...

Separação dos pais A4: [...] meu pai saiu de casa, agora tem a

minha mãe, tá tudo bem agora... Até que a minha mãe e o meu pai se separaram, aí eu fiquei mal porque o meu pai saiu de casa, eu gostava muito dele e da minha mãe. Eu fiquei muito mal. Fiquei mal. Fiquei sozinho, sem meu pai, eu via as criança com o pai deles, eu chorava, fiquei muito mal por causa disso...

Morte inesperada e outros eventos de perda Morte Apesar do adolescente (A4) não relatar, no seu

encaminhamento a queixa inicial era de que estava em sofrimento com perda de ente querido. “Fala que quer morrer e ir pra perto de Deus!”

Família disfuncional: violência; dificuldades de comunicação; abuso de álcool ou drogas; pais incoerentes, imprevisíveis ou muito rígidos Comunicação A3: [...] num tinha aquela comunicação com

meus pais, porque eles num davam liberdade pra mim falá, pra eu me expressá o que eu tava sentino... Bom, eu assim, o meu pai era… ele é muito fechado, até hoje, ele comunica bem pouco dentro de casa. A minha mãe é tipo explosiva, nervosa demais, então assim, a gente não… às vezes o assunto que eu queria falá com ela eu num conseguia, por ela ser muito nervosa ela não dava liberdade de eu comunicá...

A2: [...] para tê um diálogo mesmo com seus pais é muito difícil, adolescência também num tive...

A4: Antes também a minha mãe e o meu pai só vivia brigano, ia lá, eles brigava, quando eles brigava eu sentia mal, eu sentia que era eu que tava fazeno eles brigarem...

B2: [...] eu fiquei com medo da minha mãe sabe... Porque se ela soube ela vai me xingá.

P: - Então o que você contou aqui pra gente a sua mãe não sabe e você tem medo dela sabe.

B2: - Tenho.

Violência estrutural e problemas com a lei Sociedade A1: Não é só julgá e falá: cê vai morrê, cê vai sê

ladrão. A sociedade julga, ladrão, ladrão. Não... Ausência de espaços de lazer A3: Bom, lazê é meio difícil aqui, esse espaço, porque num tem... A2: Bom, o meu lazer aqui em Matozinhos, num

tenho. Eu acho que laze aqui eu não tenho... Eu não acho que aqui tem espaço, porque cultura… aqui não tem esse tipo de coisa. Bom, coisas para interagi com gente jovem num tem. É muito difícil. Se tem é porque cada um caça seu rumo e num expõe o que tá ruim...

Escola A4: Eu vejo isso. Tanto é que na escola tem menino

(palavra incompreensível) que pensa em matá. Tipo assim, a menina tá ali, eu vou mexê com ela, ela vai lá e chama alguém para defendê, aí vai lá, o menino num vai deixá, num vai fica só ali... Num vai ficá sozinho. Vai buscá alguma coisa aí acaba nisso, acaba em morte. Morte na escola, tem mais isso aqui, morte na escola...

A1: E sempre influência da escola, porque na escola eles lá que resolve, as professoras, diretora, aí na rua é a polícia. Aí sai com aquela mágoa de dentro da escola e vai resolve na rua...

Lei

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QUADRO 2 – Fatores de risco para o suicídio apresentados pelas crianças e

pelos adolescentes de Matozinhos, 2008-2012 - continua

Abuso de álcool ou drogas A1: Tem altos e baixos… igual, o meu pai

bebe muito, então ele briga, xinga, fala, então quando ele se acalma, a gente se abraça e a gente fala eu te amo. Então o que acontece? A gente vê que quando ele tá sem beber, sem nada, ele é um amor de pessoa...

A2: Sabe quando você tem… a minha mãe foi viciada em drogas...

A4: Igual tem vez que eu vejo o meu tio fumano, alguém vê o tio dele fumano, aí eles vão querê fazê a mesma coisa...

Violência psicológica A1: ... porque o meu pai me xingava bastante,

ele me xingava bastante. Igual ele bebia, como eu falei, ele bebia e vinha descontá tudo em mim. Então era só eu que era o errado, era só eu que era culpado de tudo. Então ele fala essas coisas eu mesmo me sentia culpado de tudo, aí pegava e me sentia culpado e ele me xingava bastante. Aí eu peguei e falei, vou te matá também. Ocê tá me matano, eu vô te matá...

B2: [...] achei que o meu pai ia entendê, aí só falou assim: “Cê por acaso é um gigante?” Eu falei assim: também num sô anão não. Aí ele começô a me xingá e eu fiquei com muita raiva...

A4: Desobedece pai, desobedece mãe... A3: E acaba descontando nas pessoas inocentes,

porque a gente hoje em dia, pra você saí de casa ocê fica com medo, fica constrangida, cê sai de casa e num sabe se vai voltá. Porque às vezes acontece… tá aconteceno na rua briga, igual aconteceu aquela briga para mata...

A3: Então, principalmente em trânsito que sai esses menino todo novinho dirigino carro, num tem carteira, sai alcoolizado, mata pessoa, idoso atravessano… eles num tão nem aí...

Drogas A4: Os meus amigo mexe com isso. Tenho amigo

que mexe com isso. Então, eles faz isso achano que melhora, tipo melhora, mas isso num melhora, é uma coisa ruim, porque eles quer é diversão mesmo, mas isso num traz diversão, traz morte...

A3: Então eu acho assim, que os jovens hoje em dia, a droga pra eles, viraram uma diversão pra eles. Isso pra eles agora… ou não… eu vou usá pra mim esquecê os problemas...

A1: Porque ele fala que quando eles fuma lá, cheira, sei lá, eles fala que eles esquece dos pobrema, eles ficam doidão. Só que nesse meio tempo de ficá doidão é que prejudica aqueles que num tem nada a vê com os pobrema e com as dificuldade que eles têm passado...

A3: Então eles tão tipo, revidano, desfocano o que eles sente por dentro, porque quando eles tão lá eles ficam doido, eles esquecem mesmo. Então eu acho que isso virou um meio deles, tipo colocarem pra fora o que tá sentino. Eu acho que principalmente dentro de casa, porque tem uns jovens, tipo assim, eles busca esse meio pra pode descarregar aquela… tudo que vem guardano...

Isolamento A2: ... mas só que antes eu num tinha

liberdade pra saí, eu num pude aproveita a minha adolescência... Podê saí, podê conversá mais com os amigos. Num tinha lazê, eles não levava a gente pra passear. Quando era criança num podia aproveita porque era criança, pra saí, pra tê um diálogo mesmo com seus pais é muito difícil, adolescência também num tive...

A3: [...] mas aquela angústia que eu sentia era tão grande que eu chorava, ficava mais dentro do quarto, num comunicava com a minha família...

B2: [...] Num tem a sorveteria? Então, aí cê desce até a rua da igreja. Então, sabe aquelas árvore altona? Então, quando eu tô triste eu subo lá, fico lá em cima...

Isolamento ou discriminação social Discriminação A1: [...] mas tem muitas pessoas que dizem assim:

“vai sê um marginal, vai sê um assassino”, então tipo assim, a sociedade mesmo tá julgano muito os jovem e é isso que eu acho que é por isso que os jovens tão muito revoltado assim, porque se eu acho que se as pessoas estendesse as mãos pra esses jovens e num jogasse pedra neles, no modo de dizer, e sim estendesse a mão pra ele e falasse com ele: você vai saí dessa. Nós vamos te ajudá. Eu vou te mostrar o lugá que cê pode tá conversano, pode ta expressano tudo aquilo que cê tá sentino. Então o que acontece? No meu entendimento num tá aconteceno isso, eles só tão quereno criticá aqueles que tão nesse mundo e num é assim...

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QUADRO 2 – Fatores de risco para o suicídio apresentados pelas crianças e

pelos adolescentes de Matozinhos, 2008-2012 - conclui

Expectativas paternas afastadas da realidade (sobre-exigência) Não houve ocorrência nos relatos da pesquisa.

Altos níveis de pressão, inclusive para ter êxito Não houve ocorrência nos relatos da pesquisa.

Família pouco afetiva ou excludente Afetividade A2: [...] eu achava que a minha família era

muito desligada... o meu pai, ele começô a trabalhá e ele ficava fora o dia inteiro, era 24 por 24. Então eu num tenho… até hoje eu num tenho um abraço de pai, não tenho. Sabe quando ocê sente falta de carinho?

A1: Porque se a família assim… o tratamento da família for aquele lá de desprezá, aí a pessoa vai crescê com aquela revolta, assim, num tê aquele amor, aquele aconchego da família...

Bullying, cyberbullying ou eventos humilhantes Bullying B2: Foi na escola que a professora foi lá, me chamou de anão eu fui e saí da sala, fiquei escondido lá no lugar que fica as cadeira lá, matei a aula inteira lá. A professora foi lá e descobriu, a minha mãe foi lá na escola e me buscô, achei que o meu pai ia entendê, aí só falô assim: “Cê por acaso é um gigante?” Eu falei assim: também num sô anão não. Aí ele começô a me xingá e eu fiquei com muita raiva...

Percebe-se que a maioria dos fatores familiares foi claramente descrita pelos

adolescentes e os sociais expressos de forma mais camuflada, mas ambos

presentes. É importante salientar que este é um compilado de elementos e que a

intenção não era encontrar correspondente para todos, mas é assustador

constatar tantas verbalizações sobre os fatores de risco nas relações familiares e

sociais e alguns apresentarem-se como “motivos” para tentativa de suicídio.

Registra-se que essa categorização é didática e que diversas falas podem ser

incluídas em mais de um fator.

Pode-se também dizer das outras violências sofridas por esses adolescentes, que

estendem o âmbito privado e são percebidas e colocadas como problemas sociais

que afetam a vida desses sujeitos, seja direta ou indiretamente. Eles apresentam,

então, as drogas e a tentativa de suicídio como resposta violenta às agressões

sofridas pela sociedade.

Seguindo a tipologia das violências, pode-se verificar que nos relatos dos

adolescentes há a presença de todas. Sem dúvida, a violência interpessoal, mais

especificamente a intrafamiliar, esteve presente em todo o discurso apresentado

pelos adolescentes. A queixa apresenta-se por meio da natureza psíquica e

Page 118: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

118

também da privação de cuidados sofridas por eles. As falas sobre a falta de

afetividade familiar são muito claras ao relatarem esaa indiferença, esse

abandono.

A violência coletiva e estrutural também se presentificaram de forma naturalizada,

pelos relatos da visão que a sociedade tem dos jovens e de como julgam suas

ações; da falta de acesso aos serviços públicos em detrimento das políticas e

ações governamentais existentes; da ausência de políticas e espaços para lazer e

diversão; da escola como um espaço de reprodução da violência sofrida,

vivenciada, realizada e silenciada; da droga como um mecanismo de “diversão”,

de saída, de pedido de socorro e inserção social e também de auto e

heteroagressão; da discriminação social que mascara as desigualdades de

raça/cor, de renda ou classe social por meio de outros subterfúgios; do fracasso

da internalização da lei e, por fim, do abuso de poder em relação desigual e

manutenção da visão adultocêntrica.

Na violência autoprovocada, foco deste trabalho, a natureza mais explícita foi a

violência psicológica e a privação de cuidados ou negligência/abandono. Diante

dessa ausência, os sujeitos tentam produzir sentido para sua existência e Melo

(2010, p. 14-15) afirma de forma simples e resumida tudo o que esses

adolescentes e também crianças expuseram como angústia e sofrimento:

Se falta sentido, vínculo, sentimento de identidade e de pertença, falta o próprio sujeito - não há reprodução simbólica da sociedade. O vazio resultante, sem dúvida, demandará ser preenchido: é necessário “empanturrar” de coisas e, uma vez que o outro não conta, entra-se no jogo do vale tudo – comida, mercadorias, emoções fortes, “adrenalina”, prazeres perversos, agressões, vandalismo, destruição, etc. –, numa tentativa vã de recuperar o sentido da própria existência. Nessa situação, a violência passa a ser o único e mais eficiente mediador das relações humanas e seus conflitos, impregnando-as e aos sujeitos e suas concepções (grifo nosso).

Como dados para a escuta da tentativa de suicídio, os sujeitos deste estudo

expressaram-se extrapolando as questões pensadas para abordar o tema:

1. Como vocês percebem as suas vidas hoje? O que consideram como

positivo e negativo na vida de vocês?

Page 119: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

119

2. Teve algum momento em que vocês acharam que seria melhor morrer? O

que fizeram? (Explorar mais).

3. Como vocês veem a vida no futuro? Vocês têm algum projeto de vida?

As unidades de registro citadas foram: invisibilidade, vínculo, escola/estudo,

depressão, rede de apoio.

Os relatos sugerem uma invisibilidade sentida e vivida pelos adolescentes e

remetem à visão sociológica do suicídio, quando se pensa no lugar desse jovem

na nossa sociedade, e também à visão psicossocial, quando se aborda a

subjetividade desse sujeito e as suas relações estabelecidas. Ressalta-se que

eles expuseram sua subjetividade, mas não estavam sós, era na relação com o

outro.

A1: [...] o que eu tô fazeno aqui? O que eu tô fazeno aqui já que ninguém num tá nem aí pra mim, vô acabá com essa coisa logo, pronto e acabô. Então a primeira coisa que eu fiz foi tentá cortá os meus pulsos, num consegui, porque… graças a Deus, porque a minha mãe pegô e viu, a minha mãe escondeu todas as facas. A2: E nisso, o meu pai… um dos pontos de eu tê feito isso, eu falei com meu pai que eu queria vê minha irmã, então ele deixô eu viajá, foi aí que eu vi, nossa, agora eu tô livre, meu Deus do céu! Agora eu sei que eu vou sê amada, que eu vou tê alguém pra conversá comigo, então eu fui pra casa da minha irmã. Fiquei mais ou menos um mês. Sabe quando ocê vê outras pessoas, cê respira outros ares, ocê vê que cê é importante, foi assim que eu me senti a primeira vez que eu viajei. A3: Depois que eu tentei o suicídio, muitas pessoas que, tipo, me deram as costas, num viam que… parecia que eu tava pedino aquele socorro, aquela ajuda, mas ninguém via. Depois que aconteceu isso, muitas pessoa olharam pra mim, que aí foi quando eu comecei a fazê o tratamento [... ] Eu tomei uns remédios, tomei muitos remédios. Só que aí a minha mãe viu, me levô pro médico. A4: Eu tava sentino muita dor. Parecia que a minha mãe e o meu pai num queria mais que eu existisse, esse tipo de coisa. Eu ficava pensano nisso. Era o único jeito.

Os atos eram endereçados e a vinculação com a família e o social foram

determinantes para precipitar o fato e também para o “resgate”. São os sujeitos

sociais que “socorrem”.

Page 120: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

120

A1: ... a minha mãe escondeu todas as facas. Aí depois eu peguei o garfo, quis enfiá o garfo assim, ela escondeu todos os garfo. Peguei o cabo da colhé assim, tentano me furá com o cabo da colhé, também nada. Peguei o caco de vidro, quebrei a garrafa assim e queria me cortá. Ela também, graças a Deus tava lá também e num deixou eu me cortá... Aí a minha mãe foi lá escondeu todas as faca, todos os garfo, todas as colher, todas as garrafa, até garrafa de água, de geladeira que tava lá. Loça, prato, tudo. Ela tirou tudo. Deixô a casa limpinha. Porque eu já tinha quebrado um bocado de coisa, então ela tava… como ela viu que eu tava assim, ela tava reformano tudo aquilo que eu quebrei, todos os prato, todas os jogos de talher, tudo. Aí ela falou assim: “Meu Deus eu num posso deixá o meu filho fazê isso. O que eu vou fazê?” Aí que a doutora passô esse remédio forte demais pra mim e eu ficava dormino, só dormino [...] Aí, tipo assim, eu peguei e comecei a arrancá o cabelo da minha cabeça, porque eu falei: eu machuquei a minha mãe, eu machuquei a minha mãe. Então, tipo assim, a gente num sabe o que a gente tá fazeno ali naquela hora [...] Aí a minha mãe ligô pro hospital pra eles virem me buscá, porque eu ia arrancá o couro da minha cabeça toda, o cabelo todo [...] Eu tava ficano tão ruim, mas tão ruim que eles falaram com a minha mãe que parecia que não tinha jeito mais. Então a minha mãe cuidô de mim juntamente com a equipe médica. Eu gostei muito, porque quando eu chegava no hospital, os médico tudo parava tudo que tavam fazeno e vinha conversa comigo. Poderia tá atendeno um paciente chegô o A1, eu vou lá conversá com ele, então todos da equipe médica, que era do PA, do PA e até as faxineira iam lá pra conversa comigo, então isso aí foi muito bom [...] A minha mãe também, sou muito grato por tudo que ela fez por mim, porque num é qualquer uma que larga a vida dela pra cuidá do filho, não é qualquer mãe que deixa de vivê a vida dela para ajudá o filho a vivê a vida dele. Num é qualqué mãe. E a minha mãe saiu do serviço e falô assim… olha pra você vê, a minha mãe falou assim: eu enfrento tudo, enfrento todos pelo meu filho. Então eu achei assim, muito gratificante da minha mãe falá isso. Porque se as pessoas tão me julgano, que ele ia atrás deles. Tanto que a minha mãe falava assim: eu vou contra eles na fúria da leoa, quando a leoa tem o filhotinho, eu vou na fúria da leoa, porque o meu filho, se ele tá passano por isso, ele num qué isso, ele num qué isso, ele tá passano por isso, ele num tem culpa dele tá passano por isso. Então o que acontece? A minha mãe me ajudô bastante. A minha mãe, ocês, me ajudaram bastante. E graças a Deus eu tô aí. A2: O meu pai me levou pro PA, no PA eu senti vontade de sê social [palavra incompreensível]. Então lá tinha esses dois policial comigo, aí eu desabafei com eles, contei que o meu sonho era ser policial, então eles me ajudaram bastante. Aí fez aquele processo com a sonda que ela falou de tirá com a sonda, tirá aquilo tudo, foi muito ruim. A3: [...] a minha mãe me levou pra fazê o tratamento, então depois disso, que aconteceu, foi como se eu tivesse ali alguém pra ajudá, foi quando me levou pra fazê o tratamento. Foi uma coisa que me melhorô, foi por causa disso. A4: [...] aí foi lá e a minha mente ficou muito melhó, fiquei conversano muito com a minha família, relacionei muito melhor com a minha família, falava os segredo tudo com a minha família [...] Aí eu escondi no banheiro, fiquei batendo na porta do banheiro, fiquei fazeno um monte de negócio, aí a minha mãe foi lá e conversô comigo, aí foi lá, eu parei.

Page 121: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

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Foi possível verificar que o relato dos adolescentes sobre o ocorrido trouxe de

forma muito clara os motivos objetivos da tentativa, a forma, seus pensamentos e

sentimentos naquele momento, que exemplificam o esquema sobre o processo do

suicídio apresentado por Boronat (2013).

QUADRO 3 – Processo de suicídio dos adolescentes de Matozinhos baseado no

esquema de Boronat (2013)

Processo do

suicídio

Adolescentes (relatos na íntegra no APÊNDICE F)

A1 A2 A3 A4

Fato cotidiano

Relação com o pai Família “desligada”

Falta de diálogo familiar

Briga dos pais

Problema Sentir que todo mundo está com raiva e falando mal de você. Sentir-se culpado pelos problemas familiares e externos

Limitação da liberdade, morando de “favor” com avós, falta de carinho dos pais

Decepção com amigos

Separação dos pais

Conflito Nada estava bom, tudo estava ruim, era muito triste, chorava bastante, não queria ver ninguém

Triste, angustiada, sem amigos, sem ninguém

Angústia Morar com a mãe e ficar longe do pai. Ficou mal, sozinho, triste, chorava

Crise Crise nervosa, depressão profunda (ouvir vozes de comando)

Pai não autoriza viagem para ver a irmã, sente-se sufocada

Isolamento, só chorava, tudo estava ruim: depressão

Retorno do pai para buscá-lo, desespero, choro, fuga para casa da tia

Fantasias negativas

Queria fugir, ir embora, esconder para resolver o “problema”

Sem solução para mais nada

Não querer mais existir, cansada de viver

Pensava que os pais não queriam mais que ele existisse

Fantasias de morte

[...] queria me suicidá, queria amarrá uma corda e me enforcá [...] Acabá com a vida porque num tinha mais solução.

[...] tinha nada na minha frente que pudesse falá fica, você é importante pra mim, num tinha ninguém [...]

Melhor acabar com tudo de vez: [...] única saída pra deprimido é droga ou suicídio [...]

Morrê é a única forma de num dá mais trabalho pra minha mãe, pra ninguém

Tentativa de

suicídio

[...] pegava uma faca pra cortá o meu pulso [...] tentei fugi pra me afogá na lagoa [...] Eu pulei lá de cima da varanda lá em baixo [...]

Tomou todos os remédios dos avós

Tomou medicação em casa

Comer a planta venenosa da casa da tia

Suicídio Nenhum dos adolescentes chegou nesta fase, pois receberam acompanhamento e o apoio que tanto demandaram.

Page 122: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

122

Esse painel reforça o QUADRO 2, resgatando os vínculos familiares e sociais

como estratégias para intervenções em casos de tentativa de suicídio. Viu-se que

as ações são endereçadas e que a angústia é da ordem do insuportável, mas é

imprescindível destacar que a invisibilidade dos sujeitos e a fragilidade das

relações estabelecidas são peças fundamentais nesse quebra-cabeça. É preciso

resgatar e reconstruir as relações familiares e sociais para que o sentido do “ser

nada” se recomponha no “ser existente” e, conforme atesta Heidegger (1998), a

totalidade de tudo ganha sentido e significado.

Após exposição da tentativa de suicídio é importante verificar a existência de

plano futuro. Os adolescentes apresentam a escola como espaço de vida, de

continuidade, de futuro, de projeto de vida.

A2: [...] fazer curso de Marketing, de Administração, mas tô achano as coisas tão difíceis. Tem que estudá bastante. Pra ser sincera eu num sô muito inteligente, então eu acho as coisas tão difíceis, é tão complicado. É muito difícil [...] É estuda, entrá pra uma faculdade, mas o que, em mente eu num sei, é no futuro. A3: O meu projeto de vida, eu quero estudá. Esse ano eu vou formá, então eu quero saí da escola, começá uma faculdade, agora e… porque eu tenho muita vontade de começá a estudá, tê uma profissão boa pra eu podê morá sozinha. Essa é a minha vontade daqui pra frente. A4: Minha vontade é ser jogadô de futebol profissional. E estudá muito. Estudá inglês, espanhol, pra eu dá um futuro pra minha família.

Essas falas expressam que o espaço escolar é fundamental na construção de

qualquer ação intersetorial, pois é nesse espaço que eles estão (ou deveriam

estar) e criam vínculos, seja para um passado, presente ou futuro.

Resgatando Dowbor (2007), é justamente na escola que se formam

multiplicadores, seja para o exercício pleno da cidadania, da cultura da paz, da

promoção e prevenção da vida ou para a replicação da violência existente. E para

que haja desenvolvimento local, o investimento nesse setor torna-se

indispensável. Ao longo dos discursos, os adolescentes trazem a escola como

espaço de vida e morte, local que será utilizado conforme as relações que foram e

são estabelecidas, ou seja, querem existir nesse lugar também e serem

escutados. Diante disso, qualquer proposta de prevenção deve ser intersetorial e

Page 123: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

123

considerar esse espaço de oportunidades como ponto-chave para intervenções

infanto-juvenis.

Os adolescentes também denunciam a ineficiência e ineficácia dos serviços de

saúde municipais e da rede de apoio à criança e adolescente, o que impulsiona

uma reflexão acerca das políticas públicas propostas e implementadas sobre a

prevenção do suicídio e a promoção da saúde.

Matozinhos não possui um projeto claro ou política de prevenção que contemple

as crianças e adolescentes com ideações suicidas. Na saúde, há um Ambulatório

Infanto-juvenil de Saúde Mental, composto por uma psicóloga e uma psiquiatra,

que atendem casos em que existe sofrimento intenso, considerados de média

complexidade. E um PA que também recebe esse público após consumação do

ato. Esses serviços estão situados no que se chama de de prevenção terciária

(assistência para reduzir trauma) e prevenção secundária (resposta imediata à

violência), respectivamente. Na atenção básica não são realizados grupos com

crianças ou adolescentes com essa demanda. Conclui-se, então, pela

necessidade de melhor organização da rede setorial de saúde para que se

desenvolvam ações de prevenção primária, para que efetivamente as crianças e

os adolescentes que ainda não tentaram suicídio sejam acolhidos e escutados

para que não precisem usar da violência para serem vistos.

A Assistência Social também não desenvolve ação específica para esse público,

assim como a Educação, o Esporte, o Conselho Tutelar, o Conselho da Criança e

Adolescente ou o Judiciário. Eles encaminham para o ambulatório ou para o PA.

E como é sabido que um único setor não suporta a resposta interina de um

problema tão complexo, é necessário que esses outros setores conversem, cada

um com sua política e ação específica, para que as intervenções tenham foco no

cidadão matozinhense, nas crianças e adolescentes aí residentes. Ações

transversais e intersetoriais possibilitarão a construção de estratégias inovadoras

para minimização do impacto dessa violência e prevenção de novos casos. E

Silva e Maeta (2010) expressam a importância de vencer esse desafio.

Page 124: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

124

Outro desafio é sensibilizar os gestores e profissionais da saúde para a importância da notificação e do processo de formação permanente, capacitando-os para atuar nas áreas de vigilância, prevenção, atenção e promoção da saúde e cultura de paz. Articular, apoiar e fomentar as redes de atenção e de proteção, através de articulações com outros setores, como educação, assistência social, órgãos de proteção e garantia de direitos – conselhos tutelares, Ministério Público, defensorias, varas e delegacias – é um dos grandes desafios para os gestores do SUS. Portanto, o desafio é fazer com que as informações de fato gerem ações de intervenção, garantindo direitos, prevenindo violências, promovendo qualidade de vida e cidadania (SILVA; MAETA, 2010, p. 88-89, grifo nosso).

Questiona-se essa invisibilidade do “fato” e negligência da rede de apoio ao

atendimento de uma demanda urgente. A subnotificação presente no setor da

saúde inviabiliza qualquer proposta, pois se o fato não existe, para que mobilizar

e executar ações direcionadas? Mas o questionamento é mais profundo, pois,

segundo as queixas dos adolescentes do grupo focal, são eles que não existem

para esse município. A subnotificação mascara a tentativa de suicídio e revela

que esses sujeitos não possuem um “lugar” nessa sociedade. A rede de apoio

infanto-juvenil perpetua o discurso adultocêntrico e não permite que esses

adolescentes sejam vistos e escutados.

Esta visão está impregnada e até os adolescentes se valem do discurso

biomédico para justificarem suas angústias, diagnosticando-se como

“depressivos”. Será essa uma forma de serem inseridos nessa rede, por meio da

“doença”? Por que a “violência” choca e paralisa os profissionais que deveriam

acolher, escutar, direcionar e apoiar?

A denúncia da falência da rede de apoio é um alerta para a construção de ações

preventivas e de promoção que considerem essas crianças e adolescentes

sujeitos de direitos, deveres e desejos e que possibilitem uma qualidade de vida

que considere as necessidades individuais desse público como o ter, o amar e o

ser, para sejam mais que um simples corpo lesionado (ERICK, 1993, apud

VITTE, 2009).

A proposta de intervenção foi uma inovação dos adolescentes que sugeriram

formas de resolver ou amenizar os danos da problemática, quando foi aberto o

espaço para exporem outras questões:

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1. Tem alguma questão que vocês gostariam de acrescentar sobre o assunto

e não foi perguntado?

Nesse momento, pode-se entender como unidade de registro as seguintes

palavras: espaço de escuta, apoio, ajuda.

A3: Eu acho que falta um pouco disso. Eu acho que seria bom se tivesse um local assim, direto, pra jovens tarem se encontrano pra podê conversa, pra falá o que aconteceu, porque é tão bom cê passa pra pessoa e a pessoa também lembrá que não foi só ocê que passou por aquilo, que muitas pessoas passaram e que ainda pode vim a passar e, às vezes, se tivesse um local de encontro, as pessoas que tivessem angustiadas, tivessem pensando em fazer isso, escutá a experiência que nós que já passamos por isso, pra não fazê. Eu acho que seria muito bom se tivesse um lugar assim pra interagi uns com os outros [...] Eu acho que seria muito bacana também com os pais também, porque… contá uns aos outros como tá, o que aconteceu com os filhos para servi de experiência pro próximo. Eu acho que seria bom. A2: Porque cê fica guardano procê. Você poderia expressar o que ocê tá sentino. A1: Uma ONG de apoio pros jovens. A1: Eu acho que se tivesse, igual a gente passou por esse problema, eu acho que se tivesse assim esse momento, igual nós tamos tendo hoje aqui de conversá, eu acho que… a gente num voltaria, porque a gente é feito de carne e osso, porque hoje a gente tá em pé aqui hoje, amanhã a gente pode tropeçá e caí, então eu acho que se tivesse aqui, igual a gente tá aqui hoje, eu acho que nesse momento de fraqueza, aquilo que ela me falou ia me fortalecê, aquilo que ela falou ia me ajudá a vencê aquilo que eu tava passando. Então eu ia falá assim: olha, ela passou por aquilo e olha o tanto que ela sofreu, eu num vou passá por isso não, eu vou erguê a minha cabeça, num é? Então eu acho assim, se tivesse seria muito bom. Aí evita acontecê o que já havia acontecido na nossa vida pra trás. Evita acontecê no futuro, pra frente. Eu acho assim.

Os adolescentes apresentaram como proposta para amenizar os problemas

vivenciados por eles e por outros jovens do município a construção de um espaço

para escuta. No entanto, demarcam essa solicitação como um pedido de ajuda e

inserem os pais também como atores necessitados de auxílio. Essa proposta,

aparentemente simples, denuncia uma desfuncionalidade dos serviços públicos

municipais oferecidos, seja pelo desconhecimento dos adolescentes, dos

atendimentos oferecidos ou mesmo dos profissionais que compõem a rede de

apoio a eles e pela burocratização existente.

Page 126: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

126

Dizer que não há um espaço no qual possam ser vistos, ouvidos, ajudados e

cuidados significa dizer que nesse município não há desenvolvimento local nem

gestão social. Eles não existem e, logo, não participam do processo democrático,

cidadão, emancipatório e transformador. Mas será que há desenvolvimento local

e gestão social em Matozinhos, conforme descrevem Sen (1999) e Maia (2005)?

Os relatos são enfáticos e acusam a inexistência desses conceitos: não há

expansão de liberdades nem participação democrática. A postura dos

adolescentes também denuncia uma ação destrutiva para conquista de um

espaço e de um direito: é preciso morrer para viver, para existir?

B) Método sensível criativo com crianças

O método sensível criativo foi realizado com três crianças, na faixa etária de oito a

12 anos, sendo todos meninos e apenas um não morava em um dos sete bairros

que apresentaram alta incidência de ocorrências de tentativa de suicídio.

Ressalta-se que, apesar de considerar os 12 anos como adolescente, esse sujeito

foi incluído neste grupo porque, quando foi convidado a participar da pesquisa,

ainda não havia completado essa idade. Os casos de tentativa de suicídio foram

registrados em 2010, 2011 e 2012 e foram, respectivamente, corte, enforcamento

e queda/precipitação. Para preservar a identidade dos sujeitos, serão

representados pela letra B, seguida de um número em ordem decrescente de

acordo com a idade atual.

B1 foi acolhido pelo ambulatório em fevereiro de 2011, aos nove anos, com

queixa de tentativa de suicídio por enforcamento: “enforcou-se com uma corda

(varal) no quintal de casa”. No grupo, verbalmente, ele afirmou e também negou a

sua intenção de morrer, mas sua expressão corporal, facial e seu desenho

confirmaram a sua intenção. Classificado como caso sem CID, mas escrito por

extenso (tentativa de suicídio).

B2 foi acolhido em março de 2010 no ambulatório, aos oito anos, após ser

encaminhado pelo PSF com queixa de automutilação (cortou o braço: sempre

pega a faca e fala que quer morrer). No encontro falou explicitamente da sua

Page 127: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

127

vontade de morrer e citou algumas ações que sugerem outras “tentativas”

(precipitações). Classificado como caso suspeito sem CID.

B3 foi atendido no PA em setembro de 2012, aos sete anos, com queixa de queda

de altura (queda da laje + de 2 metros – escoriações face). Falou pouco no

encontro e negou intenção de morte. Foi classificado como caso suspeito sem

CID.

A análise dos dados será realizada de forma qualitativa, articulando os dados do

relatório do encontro com as crianças, as suas produções sensíveis e criativas e a

transcrição dos seus relatos. É importante destacar que, dos três garotos

escutados, dois moravam nos bairros Centro e Florestal, que apresentaram maior

número de casos de tentativa de suicídio infantis. O outro residia em um bairro

novo, no município chamado Presidente.

A pesquisadora acolheu as crianças e pediu que escrevessem os nomes nos

crachás, para posterior apresentação dizendo nome, idade e bairro. Ficaram

todos em silêncio e a investigadora decidiu começar para quebrar o gelo e

estimular o grupo. B3, muito tímido, não quis se apresentar, mas respondeu

quando foi questionado o seu bairro (Florestal) e idade (oito), sempre de cabeça

baixa. Aparentava dúvida quanto às informações que prestava. B2 se apresentou

incluindo a família e falando muito baixinho e com vergonha ([...] moro no Centro,

moro com a minha mãe e duas irmãs [...]). B1 também se apresentou sem

problemas ( [...] eu moro no Presidente… no bairro Presidente Costa e Silva e

tenho 12 anos [...]). Estavam todos sentados em volta de uma mesa, de forma

que B2 ficou ao lado de B3 e B1 de frente para a pesquisadora. Os lugares foram

escolhidos por eles.

Ao explicar o procedimento, todos ficaram muito atentos às falas da pesquisadora

e disseram não terem dúvidas, apesar da expressão facial e corporal de B3 dizer

o contrário (DIÁRIO DE CAMPO, nov. 2013).

Foi entregue uma folha com o contorno do mapa de Matozinhos para cada um

deles e questionado se sabiam o que era. B2 respondeu primeiro que era um

Page 128: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

128

mapa e os outros concordaram. Geralmente, ele quem iniciava as falas e ações,

para só depois as outras duas crianças tomarem a iniciativa.

Foi solicitado que eles colocassem no mapa como é morar aqui em Matozinhos, o

que eles fazem e com quem. B3 teve um pouco de dificuldade, olhou o que os

outros meninos estavam fazendo, bastante inquieto, e depois questionou se era

só para colorir. Após a intervenção da pesquisadora ele pegou o lápis de cor e

coloriu o contorno do seu mapa. Pareceu que não entendeu o que foi solicitado.

B1 estava pensativo e também olhou para a folha dos colegas. B2 ficou

concentrado e foi o primeiro a terminar todas as atividades. B3 pareceu

incomodado porque os colegas estavam escrevendo, ficou muito inquieto,

respirando fundo e, a todo o momento, olhando para as pessoas do entorno.

Perguntou se poderia escrever o seu nome e escolheu o interior do mapa,

novamente respirando fundo. B1 terminou após B2 e também aguardou B3.

Ambos ficaram em silêncio (DIÁRIO DE CAMPO, nov. 2013).

Os desenhos foram digitalizados, com o cuidado de preservar a identidade dos

sujeitos, e podem-se inferir algumas questões da relação que estabelecem com o

território, a partir do lazer e com o social e a família.

Ao falarem sobre o que fizeram na folha, B2 foi o primeiro, sempre falando muito

baixo. B1 balançava o corpo enquanto explicava e sempre muito sucinto. B3 falou

rapidamente e logo baixou a cabeça, tampando o rosto. Só respondia às questões

da pesquisadora “balançando a cabeça”. As outras crianças riram de B3, mas não

aparentava um tom de zombaria.

B2 apresentou a sua produção, frisando que só desenhou o que gosta de fazer:

[...] Soltá pipa, todo dia vô pro campo, solto pipa, depois vô… Quando tá no tempo de soltá pipa, eu vô todo dia pro campo e solto pipa, fico lá soltano pipa, depois eu vô pro jogo. De noite eu vô pra praça e fico lá tomano vitamina de açaí. Só isso... Após esta fala, a criança é questionada sobre o que acha de morar em Matozinhos e com quem executá estas atividades e responde que acha muito legal e que [...] de vez enquanto quando eu acho os meus colegas, eu vô com eles, quando eu num acho, eu vô sozinho.

Page 129: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

129

FIGURA 7 – Desenho da criança B2 respondendo a questão sobre morar em

Matozinhos, 2013

B2 fez todos os seus desenhos sem cor, fora do mapa de Matozinhos, e fez essa

pergunta antes, além de exclamar que estava muito difícil pensar em tudo o que

ele fazia. Primeiro ele relata que solta pipa e está sozinho, depois gosta de jogar

bola no campo e inclui alguns amigos e, por último, vai sozinho para a praça

tomar vitamina de açaí. Interessante perceber que, apesar de a criança se

apresentar incluindo a família (mãe e irmãs), esta não está presente em qualquer

atividade que ele desenvolve no município. Essa criança “solitária” deve ser

observada e escutada, principalmente porque durante o encontro esta questão

aparece em diversos momentos: que “solidão” é essa sentida?

A criança B1 escreveu um texto, respondendo à questão:

[...] porque gosto de Matozinhos. Eu gosto de Matozinhos porque é uma cidade grande e dá para eu fazer o que eu mais gosto, que é jogar bola e brincar com os meus colegas de soltar papagaio, jogar bola, jogar videogame e muito mais coisas que dá para fazer; e também eu gosto de ver jogo do Cruzeiro com os meus colegas...

Page 130: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

130

Ele foi o único que virou a folha e escreveu com o mapa “de cabeça para baixo”.

Também possui um colorido discreto, que foi realizado após olhar os mapas dos

colegas, demonstrando certa ansiedade. No seu parágrafo, não há pontuação na

resposta, são muitas coisas e os amigos estão incluídos nas atividades. Já na sua

fala apareceram outras ações de lazer que não estavam no papel: “[...] Eu vou na

aula, eu vejo muito jogo de futebol, videogame, assisto televisão, saio com meus

pais, no shopping, gosto de soltá papagaio na rua, gosto de brincá muito com

meus colega”.

FIGURA 8 – Desenho da criança B1 respondendo a questão sobre morar em

Matozinhos, 2013

A escola e os pais foram incluídos, ressaltando-se as suas relações familiares e

sociais estabelecidas cotidianamente no município em que reside. Resgata-se,

nesse momento, o importante papel da escola e da família, relações sociais e

Page 131: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

131

familiares, já discutidas na análise dos resultados do grupo com os adolescentes

e também no QUADRO 3, onde os dados encontrados das crianças também

foram inseridos.

FIGURA 9 – Desenho da criança B3 respondendo a questão sobre morar em

Matozinhos, 2013

Este é o desenho de B3 e na sua apresentação ele foi quase monossilábico,

dizendo que gosta de morar em Matozinhos e de jogar bola, que é isso que o

deixa feliz. Seu desenho é colorido e extremamente congruente ao revelar um

menino com uma bola, no entanto, ele não tem boca. Sem boca, realmente é

impossível ser mais que monossilábico! Essa criança posicionou-se dessa forma

durante todo o encontro, falando pontualmente, de forma muito breve e com

pouquíssimas palavras. O objetivo não era investigar tal fato, mas pode-se

constatar que existe algo com essa criança que deve ser escutado. O que ou por

que ela não pode ou não quer falar? Interessante também verificar que insere seu

nome dentro do mapa de Matozinhos (o nome foi coberto para preservar a sua

Page 132: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

132

identidade), dizendo que está inserido nesse contexto, que gosta deste território,

apesar de se desenhar do lado de fora.

Diferentemente dos adolescentes, as crianças não se queixam da ausência de

espaços de lazer e descrevem muitas atividades que executam sozinhos ou

acompanhados. É imperativo frisar que os tipos de lazer variam conforme a faixa

etária, mas eles encontram formas de brincar e se divertir que extrapolam a

ausência estatal, apesar de todos citarem o “campo de futebol” (tanto as crianças

como os adolescentes). Também se ressalta que os adolescentes têm uma

análise crítica diferenciada da situação. Fato é que a questão do lazer não se

apresenta como problema para as crianças, pelo menos nesse momento.

A pesquisadora propôs uma conversa sobre sentimentos, tristezas e alegrias,

vontade de morrer. Nesse momento, B1 foi o primeiro a falar, acomodando-se à

cadeira e apoiando a cabeça no braço. Ficou extremamente incomodado com a

sua intervenção. B2 falou em seguida, de forma bem vergonhosa, com um sorriso

tímido e meio nervoso, com olhar para baixo, desviando a atenção. B3 disse o

que o deixa feliz e não rendeu muito. B3 e B1 disseram que não tiveram vontade

de morrer e B2, com expressão triste, contou quando sentiu essa vontade. Os

outros ouviram em silêncio, no entanto, B3 estava atento e B1 desviou o olhar e

mostrou-se incomodado com a fala do colega.

Apesar de toda a sua inquietação, B1 conversou:

B1: Eu já senti tristeza, alegria, tudo. P: E o que deixou você feliz? Teve alguma coisa assim que marcou que deixou você feliz? B1: São poucas coisa... [brinca]. P: E quando você está triste assim, como que é, B1, quando acontece alguma coisa assim ou quando você está se sentindo triste, como que você fica? B1: Eu fico quieto, vô pro meu quarto e fico lá. P: - E você chora? B1: Não.

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133

Em seguida, B2 afirmou:

B2: Quando eu fico triste eu vô pro meu quarto, fico quieto lá, no meu canto lá. Se eu fico mais nervoso eu começo a quebrá tudo, guarda roupa, esses negócios assim. P: - Entendi. E quando você está alegre, quando você está bem assim, como que é? B2: - Eu fico brincano, assisto televisão, eu fico feliz.

Como sempre, B3 foi bastante sucinto e negou sentir tristeza:

P: Entendi. B3, e você? (pausa) O que te deixa triste, B3? Ou o que te deixa feliz? B3: Jogá bola. Só um está bom. P: Jogar bola te deixa feliz. Que bacana! E o que te deixa triste? R3: Nada.

Ausência de tristeza ou ela não pode ser revelada? Eis a questão...

Ao modificar a pergunta e questionar se alguém já viveu uma situação em que

quase morreu, B1 falou o que sente quando fica com raiva e também contou

sobre sua “brincadeira” no quintal de casa, mas negou a intenção e vontade de

morrer, no entanto, sua expressão era de tristeza.

B1: Eu fico bravo com a minha mãe, com o meu pai, com todo mundo. P: Fica bravo como B1? B1: Não converso com eles, deixo ficá… fico no quarto, depois vô lá e peço desculpa, quando eu acalmo. P: E você tentou alguma vez assim, morrer, para acabar com o problema, para ficar livre, para não ficar mais sofrendo, mais triste? Você já quis morrer? B1: Já. Quando eu tava na casa do meu vô, lá tinha uma corda, eu enrolei ela no meu pescoço, eu tava brincano, eu escorreguei, caí aí quase (palavra incompreensível), cortou aqui. P: Cortou o seu pescoço. E o que você sentiu nessa hora, B1? B1: Eu pensei que ia morrê. P: E você queria morrer?

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134

B1: Não. P: O que você queria naquele momento? B1: Ah! Quase todo dia eu ficava fazendo isso; foi lá, naquele dia eu escorreguei e caí.

O discurso da criança é incoerente, pois inicialmente afirma o seu desejo de

morrer e quando é inquirido mais diretamente ele nega e apresenta uma resposta

“politicamente correta” para justificar a ação. Brincar todos os dias de tentar se

enforcar? Brincadeira ou pedido de socorro? Uma criança que realiza esse tipo de

ação e trata dessa forma, no mínimo, pode-se inferir que não havia ninguém por

perto “vendo” essa “diversão”. Negligência? Invisibilidade? Tratar a tentativa de

suicídio como uma “brincadeira malsucedida” retira do fato a intencionalidade da

criança e justifica-o de forma amena, ou seja, mascara também a ausência dos

responsáveis.

A criança B2 também expôs seus sentimentos e, em seguida, relatou um caso:

B2: Quando fiquei assim numa solidão terrível eu ficava dando mortal nas arvores. B2: Foi na escola que a professora foi lá, me chamou de anão eu fui e saí da sala, fiquei escondido lá no lugar que fica as cadeiras lá, matei a aula inteira lá. A professora foi lá e descobriu, a minha mãe foi lá na escola e me buscou, achei que o meu pai ia entender, aí só falou assim: “Você por acaso é um gigante?” Eu falei assim: também não sou anão não. Aí ele começou a me xingar e eu fiquei com muita raiva. P: E aí me conta como que você se sentiu, B2? B2: Querendo morrer. Eu fiquei com muita raiva.

B3 não respondeu essa questão verbalmente, apenas balançou a cabeça

negativamente quando perguntado se já teve vontade de morrer.

Solicitou-se que eles colocassem isso no papel de forma livre e criativa. Os três

ficaram em silêncio, concentrados nas suas folhas. A observadora espirrou e B3 e

B1 olharam, mas B2 não; continuou produzindo, concentrado. B2, novamente,

terminou primeiro e com expressão preocupada questionou se a folha seria

mostrada para a mãe. Em seguida baixou a cabeça e ficou pensativo,

aparentemente preocupado. B3 ficou concentrado no seu desenho e terminou em

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135

seguida, expressando verbalmente, seguido de um suspiro e cruzando os braços.

No entanto, continuou desenhando e colorindo. B1 terminou e foi o primeiro a

falar, parecia ansioso, pois piscava os olhos com mais intensidade e frequência.

B3 disse que “nada” fez e ficou incomodado quando olhou para a observadora,

cobrindo o rosto com o desenho. B2 explicou seu desenho, baixinho.

O desenho do menino B1 expressa a contradição do seu discurso (FIG. 10).

FIGURA 10 – Desenho da criança B1 sobre a tentativa de suicídio, Matozinhos,

2013

Ele escreve que quase morreu enforcado enquanto brincava com a corda no

pescoço. Na sua produção, ele expressa o seu sofrimento e desespero diante da

morte e as lágrimas são visíveis e abundantes. Ele mostra um antes e um depois

e também não há mais alguém na cena, o que sugere o que se inferiu

anteriormente sobre a ausência e negligência dos responsáveis e a invisibilidade

Page 136: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

136

dessa criança diante da sua família. Seu sofrimento também pode ser visto na

primeira figura que faz de si, pois não está sorrindo, sua expressão facial é de

“indiferença”, sua boca está “reta”...

Ao ser solicitado que a criança B3 apresentasse a sua produção, ele disse que

“não fez nada”! Foi pontuado, mas ele insistiu na resposta e seu silêncio foi

escutado e respeitado. Seu desenho é muito colorido, traz casas, flores,

borboletas e camas, mas como a criança não comentou, é difícil fazer qualquer

inferência. É possível verificar que existem pessoas de tamanhos diferentes,

deitadas em camas dentro de algumas casas. Estão dormindo? Mortas? E outra

que parece estar em uma gangorra brincando. Pelas cores, parece pouco

provável que seja algo de natureza tão mórbida, a questão que fica é: será que

não ter boca e não poder falar diz de algo que deve permanecer em segredo e ser

camuflado através da felicidade, da alegria? Neste caso, seriam interessantes

novos encontros, talvez individuais, para que essa criança pudesse expressar o

que estes desenhos não deram conta de dizer ou não que a pesquisadora não

deu conta de entender.

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137

FIGURA 11 - Desenho da criança B3 sobre a tentativa de suicídio, Matozinhos,

2013

B2, antes de iniciar o seu desenho, fez uma confissão de outro episódio no qual

“achou” que iria morrer:

B2: Só teve uma vez que eu quase morri. P: Como que foi? B2: Sabe esse prédio novo que tá construino? P: Onde? B2: Aqui na praça. P: Sim. B2: Eu fiquei andano e fui até lá na ponta, fora do prédio, teve uma hora que eu escorreguei, quase caí, fiquei pendurado pelas mão. P: E aí, como que foi isso, B2? B2: Coração começou a batê, batê, aí eu fui lá e consegui subi, fui lá pra baixo e num morri não. E num subi lá mais. P: E o que você pensou, B2, quando você estava lá em cima?

Page 138: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

138

B2: Eu pensei que eu ia morrê. Eu estava lá na ponta e lá era alto. P: E quando você estava lá na ponta, você pensou em pular? (Silêncio) Pensou? (Silêncio) E o que você sentiu quando você estava lá pendurado? B2: Achei que ia morrê. Fiquei com medo. P: Medo! Você sentiu medo!

Pode-se inferir que esta seja uma tentativa de precipitação? Ou mais uma

brincadeira malsucedida? Quando questionada sobre sua intencionalidade, a

criança cala-se! Esse silêncio deve ser escutado, pois diz, sim, do seu desejo!

FIGURA 12 – Desenho da criança B2 sobre a tentativa de suicídio, Matozinhos,

2013

Seu desenho retrata, curiosamente, o momento presente, isto é, todos que

estavam na sala, exceto a observadora. A sua cadeira e a do colega ao lado (B3),

pintadas de vermelho. Sangue? Morte simbólica? E a escolha pelo colega ao

lado, representa algo? Qual o significado desse espaço de escuta para essa

criança? Esta produção faz uma referência à fala dos adolescentes quanto à

importância de serem vistos e escutados por alguém, de existirem para alguém,

Page 139: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

139

de receberem apoio e serem acolhidos. Terem um espaço só para eles, para que

possam dizer das suas angústias que não são escutadas pelos familiares e, de

acordo, com B2, também não “podem ser contadas”...

Ao escrever, ele conta o fato da possível “precipitação” e do seu medo da mãe

saber. Que relação é essa que esse menino estabelece com a sua mãe? Que

“medo” é esse? Essa preocupação também remete ao QUADRO 2, quando se

verifica a fragilidade dos vínculos sociais e, principalmente, familiares. A

comunicação e a afetividade não encontram espaço diante de tanto “medo”.

A pesquisadora foi surpreendida quando perguntou se gostaram do encontro, pois

B3 falou bem alto e com sorriso no rosto, que ele achou “legal”. Interessante, pois

em nenhum momento do encontro ele se posicionou de forma tão segura, precisa

e com satisfação. Percebe-se que mesmo que a criança não diga o que aflige ou

sente, o fato de ter atenção e poder ser escutada e vista é uma possibilidade de

transformação da existência, da postura e escolha que se faz diante das

circunstâncias vivenciadas cotidianamente. B1, com expressão desanimada, falou

que achou “chique”; e B2, com aparência envergonhada, disse que também

achou “legal”. Mas todos disseram que voltariam caso fosse necessário. Ao

finalizar, a pesquisadora pediu “segredo” das informações compartilhadas e todos

concordaram, baixando o olhar. Encerrou-se e convidou para o lanche.

Page 140: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

140

6 CONTRIBUIÇÕES TÉCNICAS

6.1 Projeto de intervenção intersetorial: Fórum Municipal da Rede de Apoio

Infanto-juvenil de Matozinhos

Este projeto de intervenção psicossocial terá foco na comunidade, família,

usuários e poder público local, visando a prevenção, proteção e tratamento das

crianças e adolescentes. O objetivo é construir, junto com a população e o poder

público local, um Fórum Presencial de Discussão sobre a Rede de Apoio

Infanto-juvenil do município para a prevenção e tratamento das necessidades

urgentes desse público em Matozinhos. É importante salientar que a tentativa de

suicídio apresenta-se como uma dessas prioridades, conforme pesquisa

quantiqualitativa realizada. Como essa demanda está subnotificada e “invisível”, a

proposta é que as discussões comecem baseadas nos dados encontrados nos

últimos cinco anos.

Esta proposta está de acordo com as Diretrizes Nacionais para Prevenção do

Suicídio (BRASIL, 2006a), principalmente quando a Portaria nº 1.876/2006

destaca no seu art. 2º a construção de uma rede para:

I - desenvolver estratégias de promoção de qualidade de vida, de educação, de proteção e de recuperação da saúde e de prevenção de danos; II - desenvolver estratégias de informação, de comunicação e de sensibilização da sociedade de que o suicídio é um problema de saúde pública que pode ser prevenido; IV - identificar a prevalência dos determinantes e condicionantes do suicídio e tentativas, assim como os fatores protetores e o desenvolvimento de ações intersetoriais de responsabilidade pública, sem excluir a responsabilidade de toda a sociedade; (BRASIL, 2006a, grifo nosso).

Essa rede é mais complexa e prevê, também segundo a Portaria citada

anteriormente, que ela seja organizada e que implante projetos estratégicos de

intervenções nos casos de tentativa autoextermínio. Ressalta-se que deve:

Page 141: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

141

VI - contribuir para o desenvolvimento de métodos de coleta e análise de dados, permitindo a qualificação da gestão, a disseminação das informações e dos conhecimentos; VII - promover intercâmbio entre o Sistema de Informações do SUS e outros sistemas de informações setoriais afins, implementando e aperfeiçoando permanentemente a produção de dados e garantindo a democratização das informações [...] (BRASIL, 2006a, grifo nosso).

O Fórum Municipal da Rede de Apoio Infanto-juvenil de Matozinhos será um

espaço coletivo para a discussão de problemas locais quanto às necessidades

das crianças e adolescentes residentes no município. A proposta é de que esse

processo se inicie com os dados levantados sobre os casos de tentativa de

suicídio e que seja realizada uma breve capacitação profissional, informando,

caracterizando o fato territorialmente e desmitificando paradigmas que rondam o

imaginário dos trabalhadores dessa rede de apoio à criança e ao adolescente.

Far-se-á do Fórum Municipal “um importante instrumento de gestão” social local!

Mas o que é um Fórum? “O fórum é um espaço de debate coletivo considerando-

se as diferentes interfaces necessárias para o fortalecimento de uma política [...]”

(BRASIL, 2005, p. 17). É um espaço representativo, de caráter consultivo e/ou

deliberativo, que busca dialogar sobre os problemas encontrados em diversas

áreas e propor mudanças com objetivos preventivos e “curativos”, ou melhor,

resolutivos. No caso específico do Fórum Municipal da Rede de Apoio Infanto-

juvenil de Matozinhos, pensa-se em um momento de capacitação, reflexão e ação

com função inicial apenas informativa e consultiva.

A ideia é que o espaço seja construído em conjunto com a população civil, os

familiares, os próprios adolescentes e crianças, o poder público e os demais

interessados. São necessárias diversas ações antes de elaborar uma verdadeira

política municipal de saúde mental infanto-juvenil, pois não há, até o momento,

um mapeamento do território e algum estudo que possibilite visualizar a real

situação de vulnerabilidade em que se encontram essas crianças e adolescentes.

A constituição, participações, atribuições e características de seu funcionamento

serão construídas com os interessados, baseando-se sempre nas diretrizes

Page 142: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

142

nacionais e respeitando-se as peculiaridades locais. No entanto, têm-se algumas

propostas iniciais norteadoras.

A primeira ação, considerada fundamental, é um breve “mapeamento” dos

sujeitos interessados na discussão da rede de apoio infanto-juvenil do município.

Em seguida, o processo de mobilização social e construção inicial de parcerias.

Serão feitas visitas aos serviços públicos que trabalham com as crianças e

adolescentes; enviados convites para a comunidade, por intermédio de seus

representantes e dos usuários dos serviços e para demais órgãos e outros

possíveis interessados. Uma reunião será agendada e nela apresentada, para os

presentes, a análise dos dados levantados durante a pesquisa como “pontapé

inicial” para conversa sobre os problemas locais. O espaço será para explanação,

discussão, ruptura de paradigmas e convite para um “estudo” sobre essa

necessidade, para posterior levantamento de possibilidades de ações para

mudança da realidade local.

Desse encontro poderão surgir demandas diversas e serem formados grupos de

parceiros para a realização de determinadas tarefas compartilhadas e sugeridas

nessa reunião inicial. Outros encontros serão agendados com os presentes para

retorno das “deliberações” pactuadas.

O intuito é de que esse fórum seja permanente, presencial e que as suas reuniões

sejam temáticas e mensais, de acordo com a sugestão e disponibilidade dos

participantes e com duração aproximada de uma hora para cada encontro.

À medida que houver adesão de participantes interessados na causa, deverá ser

constituído um Regimento Interno estabelecendo critérios, atribuições,

características de funcionamento e funções para melhor organização dessa ação

coletiva. É importante haver uma “mesa diretora” que seja eleita pelos

representantes com direito a voto, pois será um suporte e uma referência nas

discussões e ações das necessidades infanto-juvenis, contribuindo para a gestão

social local.

Page 143: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

143

Após sua estruturação, torna-se imprescindível o trabalho contínuo de

mobilização para manutenção do fórum e das discussões, conquistas, ações

efetivas e eficazes, para que futuramente haja a construção de uma política

infanto-juvenil local.

Diante da proposta inicial de discussão e capacitação e para sanar a deficiência

encontrada nos dados quantitativos, a sugestão é que se monte um “minicurso”,

apresentando os dados coletados e o principais conceitos para entender-se a

dinâmica do suicídio infanto-juvenil: prevenção, condução, tratamento e

notificação. Para tanto, pensou-se em uma divisão por pequenos módulos que

serão realizados nos primeiros encontros do fórum, caso todos queiram e

concordem com a ideia.

Como formação de um grupo “ideal”, pensa-se em pelo menos um representante

de cada setor responsável pelo cuidado à criança e ao adolescente (saúde:

atenção básica / PSF, Programa Saúde nas Escolas - PSE, Núcleos de Apoio à

Saúde da Família - NASF; média / saúde mental; alta complexidade / urgência,

assistência social: CRAS e Centro de Referência de Assistência Social – CRAS

– e Centro de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS;

Conselho Tutelar, educação, Judiciário, Conselho da Criança e Adolescente,

etc.), além dos gestores, adolescentes, crianças, pais e demais membros da

comunidade.

Como temáticas para os seis encontros com esta proposta de informação e

desmitificação, foi elaborado um roteiro que será apresentado e discutido com os

integrantes, caso haja adesão para realização dessa “capacitação”. A ideia é que

esse movimento possibilite reflexões e ações para a construção e organização de

uma rede intersetorial municipal.

Primeiro encontro: O PROBLEMA - acolhimento e apresentação dos resultados

da pesquisa de mestrado (trazendo o assunto como problema do município e

responsabilidade de todos). Propor combinados para a realização do curso: o

número de encontros, duração, formas de funcionamento e produção do final -

fluxograma da rede.

Page 144: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

144

Mito 1: As pessoas que falam sobre o suicídio não farão mal a si próprias, pois querem apenas chamar a atenção. Mito 2: O suicídio é sempre impulsivo e acontece sem aviso. Mito 3: Os indivíduos suicidas querem mesmo morrer ou estão decididos a matar-se. Mito 4: Quando um indivíduo mostra sinais de melhoria ou sobrevive a uma tentativa de suicídio, está fora de perigo. Mito 5: O suicídio é sempre hereditário. Mito 6: Os indivíduos que tentam ou cometem suicídio têm sempre alguma perturbação mental. Mito 7: Se um conselheiro falar com um cliente sobre suicídio, o conselheiro está a dar a ideia de suicídio à pessoa. Mito 8: O suicídio só acontece “àqueles outros tipos de pessoas,” não a nós. Mito 9: Após uma pessoa tentar cometer suicídio uma vez, nunca voltará a tentar novamente. Mito 10: As crianças não cometem suicídio dado que não entendem que a morte é final e são cognitivamente incapazes de se empenhar num ato suicida (OMS, 2006, p. 9 – 11, grifo nosso).

Segundo encontro: O QUE É? - apresentar conceitos e mitos sobre o tema

(perguntar o que sabem sobre o assunto, etc.).

Terceiro encontro: COMO É? - levantar o que eles consideram como fatores e

situações de risco. Fazer, coletivamente, quadro com fatores de risco e condução

de cada profissional e cidadão diante do fato.

Quarto encontro: O QUE FAZER? - acolhimento e condução dos casos de

tentativa de suicídio. Construção de uma ficha básica de anamnese que será

utilizada por todos os serviços e profissionais, com sugestão dos cidadãos

presentes.

Quinto encontro: É POSSIVEL PREVENIR? - possíveis ações de prevenção de

casos de suicídio e tentativa na rede de atenção do município.

Sexto encontro: REDE MUNICIPAL INTERSETORIAL DE APOIO INFANTO-

JUVENIL - construção de um fluxograma para orientação dos encaminhamentos

necessários e serviços disponíveis para apoio e acolhimento das crianças e

adolescentes do município.

Após esse compartilhamento de informações, experiências e construção de ações

intersetoriais, a ideia é que essa sintonia e objetivo permaneçam para que novas

Page 145: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

145

saídas inovadoras sejam concretizadas, beneficiando todos os cidadãos de

Matozinhos.

6.3 Espaço de apoio

Esse espaço de apoio foi pensado como um lugar para oferecer a escuta, o

apoio, o auxílio e ajuda para adolescentes e crianças. Pensa-se que com essa

oportunidade, além de terem a “demanda” inicial atendida, eles se tornem

protagonistas da própria existência e também multiplicadores no “combate” às

violências. Afinal:

Não é por acaso que as experiências de prevenção da violência incluem atividades que, de um modo ou de outro, passam pela reafirmação do mundo da vida, seja por meio de processos sociais amplos, como organização de grupos, parcerias, redes e movimentos sociais, campanhas, debates públicos, movimentos de defesa de direitos humanos, fortalecimento da democracia e construção de cidadania; ou outros mais setorizados, como o desenvolvimento e formação de valores que preconizam a não violência e o respeito pelo outro, em determinados espaços sociais, por meio de mecanismos gerais, voltados para todos os atores aí incluídos, por exemplo, todos os alunos de uma escola, todos os integrantes de uma associação; e/ou mecanismos específicos e direcionados para certos grupos e indivíduos; construção de vínculos e referências por meio do desenvolvimento de projetos, programas e políticas destinados às escolas, famílias, comunidades, organizações sociais; pela pactuação de normas de convívio e desenvolvimento de atitudes cooperativas e solidárias nos mais diferentes espaços sociais; e outros ainda voltados para o indivíduo e para o investimento no seu crescimento e desenvolvimento, mas sempre referenciados pelas suas relações e vínculos (MELO, 2010, p. 16-17, grifo nosso).

E nesse momento é imprescindível a parceria efetiva da escola e da saúde. No

espaço escolar em que esse público está inserido e passa parte do seu dia e,

ainda, como já foi discutido anteriormente, é um importante lugar de

“oportunidades”. Não precisa criar novo projeto ou ação para oferecer às crianças

e adolescentes essa possibilidade de serem vistos e escutados; já existe o PSE

no município.

Page 146: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

146

De acordo com o Ministério da Saúde (2014)7, como o próprio nome diz, esse

programa tem como objetivo integrar e articular os dois setores fundamentais para

o cuidado infanto-juvenil: saúde e educação, visando à promoção da qualidade de

vida e a luta contra as vulnerabilidades que comprometem o desenvolvimento

desses sujeitos.

O espaço escolar é considerado fundamental para a realização das ações

propostas, pois o programa compartilha do discurso realizado neste trabalho, que

possibilita a convivência social e o estabelecimento de relações saudáveis, desde

que seja assim construído.

O programa tem como um dos seus propósitos a “promoção da saúde e de

atividades de prevenção”, o que justifica a construção desse espaço de apoio

para as crianças e os adolescentes do município de Matozinhos.

Quando se aborda essa “construção desse espaço”, não se está desejando um

local físico específico para esse fim, pelo contrário, é realizar, dentro dos locais já

existentes, um momento de escuta diferenciada desses sujeitos. Um instante

lúdico, alegre, descontraído, que possibilite a ressignificação da existência, que se

apresente como um “porto seguro”, um apoio, uma ajuda para que esses sujeitos

permaneçam vivos!!!

7 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&id=14578%3Aprograma-

saude-nas-escolas&Itemid=817. Acesso em: 17 de janeiro de 2014.

Page 147: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

147

7 ARTIGO - TENTATIVA DE SUICÍDIO INFANTO-JUVENIL: LESÃO

DA PARTE OU DO TODO?

Suicide attempts in children and adolescents: injury of the part or of the

entire?

Este capítulo apresenta o artigo oriundo desta dissertação, que foi submetido à

Revista Ciência e Saúde Coletiva em outubro de 2013 e está em processo de

avaliação.

Michelle Alexandra Gomes Alves

Matilde Meire Miranda Cadete

RESUMO

Neste estudo procurou-se verificar o registro e o número de casos de tentativa de

suicídio entre crianças e adolescentes do município de Matozinhos, Minas Gerais,

Brasil, que foram atendidos pelos profissionais de saúde do Pronto-Atendimento.

Trata-se de uma pesquisa documental e descritiva, cuja coleta dos dados ocorreu

por meio de investigação nas Fichas Ambulatoriais, no período de 2008 a 2010.

Das 73.000 fichas levantadas, selecionaram-se aquelas que tratavam de casos de

tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes do município, com idades entre

três e 18 anos. Percebeu-se que os profissionais de saúde, mais especificamente

os médicos e enfermeiros, não registram os casos de forma adequada,

inviabilizando a informação sobre o problema e as medidas de prevenção.

Concluiu-se que a subnotificação e a discrepância dos diagnósticos e o não

encaminhamento aos órgãos competentes exigem repensar e rever a prática

médica e dirigir um olhar sistematizado e cuidadoso para perceber o sujeito como

um todo complexo.

Palavras-chave: Suicídio. Tentativa de suicídio. Criança e adolescente.

Profissionais de saúde.

Page 148: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

148

ABSTRACT

This study aimed to verify the registration and the number of cases of suicide

attempts among children and adolescents in the municipality of Matozinhos, Minas

Gerais, Brazil, who were assisted by health professionals from the Emergency

Care. This is a documental investigation, which data were collected through a

survey in Outpatient Sheets from 2008 to 2010. Of the 73,000 sheets evaluated,

those dealing with cases of attempted suicide among children and adolescents

between three and 18 years old were selected. It was realized that the health

professionals, particularly physicians and nurses, do not register the cases

appropriately, invalidating information about the problem and its prevention

measures. It was concluded that the underreporting and the discrepancy of the

diagnostics which were also not referred to the competent agencies require

rethinking and reviewing the medical practice, and drive a systematic and careful

look to realize the subject as a whole complex.

Key words: suicide, attempted suicide, children and adolescents, health

professionals.

INTRODUÇÃO

A violência é um fenômeno complexo e multicausal que tem afetado a

humanidade há séculos. Atualmente, as discussões em torno desta temática

evidenciam-na como uma “denúncia” das relações sociais e interpessoais

estabelecidas pela sociedade. Não se trata de esvaziar a importância do conflito

nas relações como propulsor de mudanças e ressignificações, mas de ampliar

esse olhar e entendê-lo nas suas peculiaridades.

Conforme Minayo1, a violência aparece para “[...] dramatizar causas, trazê-las à

opinião pública e, incomodamente, propor e exigir mudanças”. É possível

perceber que o campo da saúde é um dos espaços privilegiados, no qual todas

essas demandas aparecem e apresentam-se de formas latentes. Os profissionais

de saúde recebem os sujeitos da violência que incomodam e que desestabilizam

uma prática, possibilitando (ou não) a mudança de olhar e ação. Deslandes2

pontua a violência como um grande desafio para o setor da saúde: por não ser

Page 149: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

149

uma doença e tratar-se apenas dos “efeitos” ou consequências deixadas e por

exigir uma mudança na práxis a partir de uma articulação interna e com outros

setores. Além disso, suplica ao profissional de saúde que não veja apenas um

corpo lesionado, mas um sujeito!

São diversos os tipos de violência e também as formas como que ela se

apresenta. Nos serviços de saúde brasileiros, tem-se como referência a

Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde3

(CID). A atual classificação não explicita a questão da violência, uma vez não

considerada doença na perspectiva biomédica; mas condensa-se em “causas

externas” (V01-Y98), que por sua vez é dividida em: não intencional, intencional e

evento de intenção indeterminada. Causa externa não intencional abrange

acidente de trânsito, envenenamento acidental, quedas, exposição ao fogo, frio,

afogamento, contato com calor, com cobras, lagartos, aranhas, escorpiões,

abelhas, vespas, complicações da assistência médica e outras. Causa externa

intencional abarca suicídio, homicídio, guerra, intervenção legal e, por último, os

eventos de intenção indeterminada4.

Neste estudo elegeu-se a causa externa intencional, mais precisamente o suicídio

e a tentativa de suicídio como focos investigativos. O suicídio não é,

definitivamente, fato recente em nossa sociedade. Durkheim5 discorre sobre sua

história desde os povos primitivos com realce para a construção do seu lugar na

sociedade: como ato “heróico”, honroso; depois penoso (sanção desse “direito”); e

hoje poder-se-ia dizer que esse “direito” tornou-se um problema de saúde pública.

[...] o suicídio é um fenômeno universal, registrado desde a alta Antiguidade, rememorado pelos mitos das sociedades primitivas, criticado pelas religiões como ato de rebelião contra o criador, aparecendo ainda, em muitos escritos filosóficos, como ato de suprema liberdade

6.

Trata-se, então, de um tema atualíssimo e de extrema relevância que mobiliza o

poder público na construção de políticas e destaca a necessidade de um olhar

minucioso para a questão; afinal de contas, foi criado um dia para “alertar” sobre a

gravidade da situação atual: 10 de setembro é o dia mundial de prevenção ao

suicídio.

Page 150: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

150

A Organização Mundial da Saúde7 afirma que o suicídio refere-se diretamente à

agressividade, conceituando-o como um ato violento cometido sobre si mesmo,

com a clara intenção de morrer. E constata que ele está entre as 20 maiores

causas de morte mundiais para todas as idades, sendo que a cada 40 segundos

uma pessoa comete suicídio no mundo. É um dado assustador! Principalmente ao

se ter conhecimento de que a taxa entre os jovens aumentou ao nível de, na

atualidade, constituírem-se no grupo de mais alto risco.

Cabe ressaltar que o suicídio, como uma forma de violência, é também

multifatorial, sendo suas causas complexas e sua descrição e conceito não

menos densos. A escolha por esta definição justifica-se pelo fato de ela apreender

os aspectos do objeto deste estudo e do seu cenário: o serviço de pronto-

atendimento.

O Ministério da Saúde destaca que o “[...] Brasil está entre os 10 países com

maiores números absolutos de suicídio”8. Nessa perspectiva, foram criados

“Manuais de Prevenção do Suicídio” destinados aos profissionais da equipe de

saúde mental e da atenção básica, que listam os aspectos sociodemográficos,

mas consideram como principais fatores de risco para o suicídio a história de

tentativa do ato e os transtornos mentais.

Em âmbito estadual, percebe-se que o suicídio tem atingido igualmente os

menores de 15 anos. Em 2004, a taxa de suicídio em Minas, entre crianças e

adolescentes de 10 a 14 anos, era a mais alta da região Sudeste do Brasil8.

Contudo, as mortes registradas a partir das taxas de suicídio são apenas uma

porção desse grave problema, tendo em vista que se têm também aquelas

pessoas que tentaram suicídio.

No período de janeiro/2008 a agosto/2012, foram registradas 6.883 internações

no estado de Minas Gerais por lesões autoprovocadas intencionalmente (tentativa

de suicídio). Destas, 1.052 foram de crianças e adolescentes de zero a 19 anos, o

que equivale a 15,3% do total de casos9. À primeira vista, esse número pode não

parecer tão significativo, mas deve-se levar em conta que os dados sobre as

tentativas de suicídio não são comumente declarados, podendo-se inferir que este

Page 151: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

151

valor não expressa fielmente a nossa realidade. Essa assertiva encontra eco nos

dizeres do Ministério da Saúde: “[...] os registros de tentativas de suicídio são

mais escassos e menos confiáveis, mas estima-se que seja pelo menos 10 vezes

maior que o número de suicídios”10.

[...] em muitos locais, os ferimentos não precisam ser relatados e as informações referentes aos mesmos não são coletadas em nenhum nível. Outros fatores também podem influenciar os registros, como idade, método utilizado para tentativa de suicídio, cultura e acesso a serviços de saúde. Em resumo, na maioria dos países, os índices de tentativas de suicídio não são claramente conhecidos

7.

Essa subnotificação engendra reflexões acerca do cuidar realizado pelo

profissional de saúde. É um cuidar ético, estético e humano? Quando se pensa

que os profissionais da área da saúde lidam com a díade vida-morte todo o

momento, torna-se difícil e escabroso entender os motivos da ausência de dados

sobre a tentativa de “morte”. Se é difícil trabalhar a morte como finitude e

processo natural da vida, se é quase inaceitável, questionamentos lúcidos e

opacos rondam o imaginário humano quando um sujeito “sadio” faz essa escolha.

Essa dificuldade de compreensão se presentifica para o profissional que lida

diariamente com pessoas em tenra idade e, ao que tudo indica, não veem pela

frente uma existência fascinada, mas obscura e sem perspectivas. Afinal, a morte

não está associada apenas ao corpo físico, mas ao sujeito que imprime

significado aos objetos e atos que executa. Nesse contexto, não se pensa na

violência apenas como lesão de um corpo, mas como um ato social executado

por um sujeito que será acolhido por outro sujeito que também carrega suas

representações e significações referentes à vida e à morte.

Com a intencionalidade de “não dissipar mais vidas”, realizou-se esta pesquisa

com busca de casos de tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes, de

três a 18 anos, do município de Matozinhos, em Minas Gerais, recebidos no

serviço de pronto-atendimento (PA) nos anos de 2008 a 2010.

Matozinhos é uma cidade localizada a 47 km da capital mineira e possui 33.955

habitantes. Sua população é predominantemente jovem e os casos de tentativas

de suicídio são crescentes e alarmantes. Na sua estrutura de serviços de saúde

Page 152: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

152

incluem: um hospital, que a partir de meados de 2013 passou a dividir o espaço

com o pronto-atendimento, 10 postos de saúde, um CAPS I, um ambulatório

adulto e um ambulatório infanto-juvenil de saúde mental, além de clínicas e

consultórios médicos particulares.

Os dados apresentados fazem parte da primeira fase da pesquisa de mestrado

intitulada: “Prevenção do suicídio e promoção da saúde mental entre crianças e

adolescentes do município de Matozinhos”. Esta primeira etapa diz respeito ao

levantamento do número de tentativas de suicídio ocorrido nos últimos cinco

anos. As informações foram extraídas de alguns serviços de saúde, mas neste

trabalho apresentaram-se apenas aqueles colhidos nos prontuários do pronto-

atendimento (PA).

Ao levantarem-se o registro e o número de casos de tentativa de suicídio

cometidos por crianças e adolescentes, a leitura atentiva dos prontuários

desvelou uma questão instigante e merecedora de análise, ou seja, demandas

similares eram registradas diferentemente pelos profissionais de saúde (médicos

e enfermeiros) do PA. Essa constatação convocou para um olhar mais diretivo

sobre os registros dos casos de tentativa de suicídio infanto-juvenil e a visão e o

papel dos profissionais de saúde diante desses casos, pontuando os

desdobramentos dos atendimentos de urgência (encaminhamentos feitos) e a

interlocução entre os serviços de saúde. Desta forma, voltamos nosso olhar para

os prontuários do PA e suas dissonâncias.

METODOLOGIA

Trata-se de pesquisa documental com o objetivo de verificar o registro e o número

de casos de tentativa de suicídio entre crianças e adolescentes do município de

Matozinhos que foram atendidos pelos profissionais de saúde do pronto-

atendimento. A coleta dos dados se deu por meio das fichas ambulatoriais do

pronto-atendimento. Foram lidas aproximadamente 73.000 fichas. Destas,

selecionaram-se aquelas que tratavam de casos de tentativa de suicídio entre

crianças e adolescentes do município, com idades entre três e 18 anos.

Page 153: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

153

As pessoas que procuram o PA preenchem, primeiramente, uma ficha para

posterior triagem (pré-consulta) com os profissionais de enfermagem que

avaliarão cada caso de acordo com o Protocolo de Manchester. Essas fichas são

repassadas para o médico de plantão. Ressalva-se que os casos urgentes, com

risco de morte, são primeiramente socorridos e depois preenchidas as exigências

burocráticas.

Todas as pessoas que entram no PA são registradas, mesmo que desistam do

atendimento. Por este motivo têm-se diversas fichas preenchidas apenas com o

cabeçalho, ou seja, dados pessoais da pessoa. Outras passam pela triagem, mas

não aguardam o atendimento médico. Nos casos estudados, observam-se as

duas situações, mas em menos número.

Salientam-se as limitações desta pesquisa em referência aos incipientes registros

contidos nas fichas ambulatoriais: poucas informações; quando presentes, não

detalhadas; e ausência de dados importantes. Trata-se de um problema recidivo e

generalizado, também reafirmado por Minayo et al.11: “[...] as informações

oriundas das estatísticas hospitalares geralmente são alvo de críticas, por causa

das limitações relacionadas à qualidade dos dados que apresentam”. Contudo,

apesar de se saber da precariedade dos dados, é o melhor lugar para realização

de pesquisas sobre esta temática, pois concentra as informações necessárias.

Afinal de contas, o hospital ou pronto-atendimento é a porta de entrada para

casos de urgência.

Com os dados em mão, foram quantificados os casos de tentativa de suicídio e

analisados a partir de categorias criadas para as diversas situações encontradas:

a) casos com CID de tentativa de suicídio (X60-X84); b) casos sem CID, mas

escrito por extenso (tentativa de suicídio ou tentativa de autoextermínio ou

tentativa de morte); c) casos com outro CID, mas escrito por extenso (tentativa de

suicídio ou tentativa de autoextermínio ou tentativa de morte); d) casos suspeitos

com outro CID; e) casos suspeitos sem CID.

O CID de tentativa de suicídio está entre X60 e X84 (lesões autoprovocadas

intencionalmente). Consideram-se casos suspeitos aqueles em que não há dados

Page 154: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

154

suficientes para verificar a intencionalidade e também outros nos quais foram

registradas apenas as consequências de determinado ato. Entre eles, pode-se

destacar o caso de um adolescente em que há descrição de corte dos pulsos D e

E, sem hipótese diagnóstica e com conduta de sutura. Foi acidental ou este

adolescente escolheu cortar os dois pulsos?

À vista disso tudo, definiu-se quantificar quantos desses casos eram referentes às

crianças e quantos aos adolescentes, bem como quantos foram encaminhados

para algum serviço de “saúde mental” (Psicologia, Psiquiatria, CAPS, ambulatório)

e se os profissionais de saúde se articularam com outros serviços. Para fins deste

estudo, foram consideradas crianças aquelas com idades de três a 12 anos

incompletos e como adolescentes os de 12 a 18 anos completos12.

As informações foram incluídas no software SPSS para posterior análise

estatística, de forma descritiva, ressaltando-se as dimensões mais relevantes.

Optou-se, como forma de exemplificação, apresentar alguns casos e discutir o

papel do profissional de saúde no serviço de urgência no atendimento dos casos

de tentativa de suicídio.

O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário

UNA sob a CAAE 11451412.2.0000.5098.

RESULTADOS

De todos os 136 casos com suspeita de tentativa de suicídio, 13 foram, de fato,

escritos como tentativa de suicídio, porém 11 registrados sem CID e dois com

outro CID não correspondente à hipótese diagnóstica declarada. As demais

situações figuravam-se como tentativa de suicídio, todavia, sem informações

claras e suficientes para conclusão sobre a “intencionalidade” do ato.

Page 155: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

155

Gráfico 1 – Registro dos casos de tentativa de suicídio entre crianças e

adolescentes de Matozinhos no período de 2008 a 2010

0

5

10

15

20

25

30

35

2008 2009 2010

Período

Qu

an

tid

ad

e d

e c

aso

s

Casos com CID (X60-

X84)

Casos sem CID, mas

escrito por extenso

Casos com outro CID,

mas escrito por extenso

Casos suspeitos com

outro CID

Casos suspeitos sem

CID

Ao se analisarem os dados do Gráfico 1, percebe-se que não há um registro

sequer com o CID X60-X84 correspondente à tentativa de suicídio. Considerando-

se os dados por ano, encontram-se 42 casos em 2008 (sendo 15 crianças e 27

adolescentes); em 2009, 54 casos (destes, 19 eram crianças e 35 adolescentes);

e em 2010, os registros mostraram 40 casos (nove crianças e 31 adolescentes).

Detecta-se, por conseguinte, que apenas 9,6% do universo de 136 casos

receberam o diagnóstico de tentativa de suicídio.

Nessa direção, o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro preconiza como direito

do usuário a anotação no prontuário de todas as informações sobre a sua saúde

de forma legível, clara e precisa. Quando os profissionais não cumprem sua

função, lesam o sujeito no seu direito primário e, mais que isso, dificultam o

acolhimento universal, equânime e integral.13

A subnotificação inviabiliza a efetivação de um dos objetivos centrais do SUS, que

é a formulação de políticas de saúde. Não registrar os casos significa a

inexistência do problema e, logo, pouco investimento financeiro, político e social

na construção dessas políticas voltadas para a temática com vistas à assistência

que se recusa a reduzir a realidade ao que "existe", à objetivação, e se

Page 156: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

156

embravece com algumas características do que está posto e ambiciona

transcendê-las.

Humanizar o acolhimento de crianças e adolescentes que tentam suicídio significa

valorizar esses sujeitos, inclusive nas suas dimensões psíquicas (subjetivas) e

sociais. É ser corresponsável no atendimento e preconizar a inseparabilidade do

sujeito e dos serviços de saúde.

Casos com CID de tentativa de suicídio

Consideraram-se casos de tentativa de suicídio aqueles com CID X60-X84

(lesões autoprovocadas intencionalmente). Não foi encontrado algum registro

com o diagnóstico explicitado por esta classificação.

Dessa constatação emergiram algumas questões referentes aos profissionais de

saúde: qual o motivo da subnotificação? Será que o risco de morte infanto-juvenil

produz incômodo subjetivo de ordem insuportável, bloqueando-os para se

implicarem? Ou, na cotidianidade do atender tornaram-se absorvidos pelo

impessoal, pela tradição e pela inautenticidade ?

Casos sem CID, mas escrito por extenso (tentativa de suicídio ou tentativa

de autoextermínio ou tentativa de morte)

Nesta categoria registra-se o maior número de casos declarados como tentativa

de suicídio. Averiguou-se que dos 11 casos encontrados, quatro eram do ano de

2008, seis referentes a 2009 e apenas um a 2010. Os profissionais de saúde

registram por extenso o fato ocorrido, mas não o classificam como lesão

autoprovocada intencionalmente. São indícios de uma atitude profissional

irresponsável e indigna para com o sujeito acolhido e toda a sociedade, visto que

impossibilita ações e procedimentos que garantam a integralidade do cuidado.

Sabe-se que as necessidades de ações de saúde, como as relacionadas ao

diagnóstico precoce ou à redução de fatores de risco, delineiam um sentido da

integralidade.

Page 157: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

157

Casos com outro CID, mas escrito por extenso (tentativa de suicídio ou

tentativa de autoextermínio ou tentativa de morte)

Nos dois casos de tentativa de suicídio registrados com outro CID foram

encontradas as seguintes classificações: T65.9 (efeito tóxico de substância não

especificada) e F10.2 (transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de

álcool - síndrome de dependência).

É importante ressaltar que, de acordo com as orientações da CID 10, as causas

de morte e/ou tentativa deveriam, de preferência, ser tabuladas segundo os

códigos dos capítulos XIX (Lesões, envenenamento e algumas outras

consequências de causas externas – S00 –T98) e do capítulo XX (Causa externa

de morbidade e de mortalidade – V01 – Y98). No entanto, caso não seja possível,

deve-se eleger como prioritário o capítulo de causas externas (capítulo XX)3.

Os dados comprovam que a maioria dos médicos não elege o capítulo XX para

hipótese diagnóstica e estão “presos, limitados” às consequências dos atos

praticados, ou seja, vê apenas a lesão, fratura, intoxicação... Assim sendo, não

chega ao PA uma criança ou adolescente que não vislumbre outra saída para seu

sofrimento além da própria morte. Chega um caso de corte nos pulsos D e E e o

procedimento se limitará à “sutura”; e a hipótese diagnóstica será “ferimento de

região não especificada do corpo” (grifo nosso).

Casos suspeitos com outro CID

Em prosseguimento à análise e com o intuito de clarear acerca do que está sendo

narrado, citam-se dois casos suspeitos de tentativa de suicídio registrados com

outro CID.

Caso 1 – adolescente de 18 anos, acolhida em julho/2009. Descrição da queixa:

“intoxicação exógena por „chumbinho‟ há três horas”. CID: T65.9 (efeito tóxico de

substância não especificada).

Page 158: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

158

A leitura desse caso revela que há incongruência de informações: se a

intoxicação foi por “chumbinho”, como o CID declara que é “substância não

especificada”? Esse caso não é exceção, pois vários outros com essa

incoerência foram encontrados nas fichas.

Caso 2 – criança de quatro anos, acolhida em junho/2010. Descrição da queixa:

“começou agora à tarde com febre e vômitos. Tomou 10 comprimidos de dipirona

há mais ou menos 40 minutos”. CID: J 22 (infecções agudas não especificadas

das vias aéreas inferiores).

Percebe-se novamente existir descaso ou ruído de informações entre o visto e o

dito, isto é, o exame clínico e a linguagem do acompanhante, ao expor sua

demanda, não encontram ressonância com o percebido pelo profissional. Ou é

preciso silenciar as situações detectadas e, assim, ir em linha contrária ao ideário

expresso no texto constitucional da construção de um sistema de saúde justo,

equânime e igualitário?

Diversos estudos evidenciam uma importante lacuna entre o ideal e o real, isto é,

há idealização dos modelos de atenção à saúde que não se materializam nas

práticas sociais concretas. A produção do cuidado, nos espaços reais, não é

corporificado.14

Verificam-se nos casos suspeitos e escritos com outro CID as seguintes

classificações: F10.2 (transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de

álcool - síndrome de dependência), T18.9 (corpo estranho em parte não

especificada do aparelho digestivo), T65.9 (efeito tóxico de substância não

especificada), R10.1 (dor localizada no abdome superior), F10.0 (transtornos

mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool), R07.0 (dor de garganta),

T14.1 (ferimento de região não especificada do corpo), T30.0 (queimadura, parte

do corpo não especificada, grau não especificado), J03.9 (amigdalite aguda não

especificada), J.22 (infecções agudas não especificada das vias aéreas

inferiores), R60.9 (edema não especificado) e K12.1 (outras formas de

estomatite).

Page 159: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

159

Observou-se que dois deles (T65.9, F10.2) foram também encontrados nos casos

com outro CID, mas escritos por extenso: tentativa de suicídio. Essa comprovação

implica indagações a respeito do real quantitativo de casos de tentativa de

suicídio infanto-juvenil atendidos pelo serviço de pronto-atendimento do

município. Afinal, o que é tentativa de suicídio para os profissionais de saúde do

PA de Matozinhos?

Casos suspeitos sem CID

No que concerne aos casos que sugeriram tentativa de suicídio, mas sem

informação suficiente para conclusão sobre a “intencionalidade” do ato, citam-se

mais dois casos:

Caso 1 – Criança de cinco anos, acolhida em agosto/2008. Descrição da queixa:

“corte com faca no punho esquerdo”. CID: não foi informado.

Neste caso, torna-se difícil a atribuição do desejo de morte considerando-se que o

fato pode ter sido apenas acidental. No entanto, diante da omissão expressa nos

outros relatos, este discurso não deve ser aceito como verdade imediatamente; é

preciso investigar todos os casos para escutar dos próprios sujeitos sua versão

sobre os atos praticados.

Caso 2 – Adolescente de 16 anos, acolhido em novembro/2009. Descrição da

queixa: “Ferimento corto-contuso extenso no punho esquerdo (vidro) com lesão

artéria radial + tendão flexor 3º quirodáctilo esquerdo”. CID: não foi informado.

Como se processou a anamnese desse adolescente? Que história de vida foi

inquirida? Corte profundo no pulso convoca a apreender as necessidades mais

abrangentes do paciente. Sem escuta do ser biológico, psicológico e social, torna-

se impossível e irresponsável atribuir-lhe um diagnóstico. No entanto, com lesão

de tamanha gravidade, interroga-se a negligência dos profissionais de saúde ao

não descreverem a classificação de tal problema. Ressalta-se, também, que não

há registro do relato desse adolescente ou sequer do seu acompanhante: como

esse adolescente se feriu? Silenciar o sofrimento supostamente provocado pelo

corte no pulso é absolutamente inaceitável.

Page 160: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

160

A questão não se resume apenas em uma “mudança ou inclusão de CID” e sim

em uma ruptura de paradigmas, pois se pode inferir que os profissionais de saúde

do PA de Matozinhos omitem informações, talvez na busca de um consolo para

lidar com o horror do real: crianças e adolescentes desejando a morte! Nessa

acepção, Combinato e Queiroz15 expõem que, apesar de ser um fato natural, “[...]

para o homem ocidental moderno, a morte passou a ser sinônimo de fracasso,

impotência e vergonha. Tenta-se vencê-la a qualquer custo e, quando tal êxito

não é atingido, ela é escondida e negada”. Como toda escolha e ação têm

consequência, ao subnotificar o fato ele passa a ser “inexistente” e tratar ou

prevenir torna-se “desnecessário”.

Pode-se inferir, ainda, que a responsabilização pelo cuidado decorre dos saberes

e das experiências de diferentes atores sociais que têm suas histórias de vida e

visão de mundo direcionando o cuidar, o ser com o outro no mundo da saúde,

quer seja no cotidiano dos ambulatórios de saúde mental de uma pequena cidade

interiorana, na sua micropolítica, quer seja em hospitais de grande porte em

metrópoles.

No Gráfico 2, encontram-se registros dos pouquíssimos encaminhamentos e

interlocuções feitas com outros serviços ou setores de saúde, demonstrando essa

“não implicação” do profissional de saúde no cuidado e tratamento do sujeito.

Page 161: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

161

Gráfico 2 – Encaminhamentos e outros procedimentos realizados nos casos

acolhidos no pronto-atendimento de Matozinhos no período de 2008 a 2010

0

2

4

6

8

10

Quantidade

Encaminhamento para

Psiquiatria, CAPS,

Ambulatório ou

Psicologia

3 1 1

Outra conduta: Contato

com Hospital João

XXIII

9 1 3

2008 2009 2010

De 136 casos, apenas cinco foram encaminhados para o ambulatório infanto-

juvenil de saúde mental ou outro serviço de saúde psicológico ou psiquiátrico.

Fato curioso é que, após a implantação do ambulatório infanto-juvenil, os

encaminhamentos reduziram-se: apenas um em 2009 e um em 2010. Isso remete

a reflexões sobre a construção da rede de atenção à saúde do município e ao

encaminhamento implicado: como esses serviços se articulam? São

intersetoriais? Trabalham mesmo em rede? Sabem da existência e do trabalho

desenvolvido pelos serviços que compõem o sistema público de saúde do

município? Percebem o sistema de forma integrada?

Em Matozinhos não há uma política municipal de saúde mental infanto-juvenil e a

rede de apoio às crianças e adolescentes é desarticulada. Desta forma, os

serviços de saúde, assistência, esporte, segurança, educação e conselhos não

desenvolvem ações com foco no cidadão, mas ficam centrados nas suas metas e

produtividades, inviabilizando um trabalho em rede que supõe a prevenção de

casos de violência e a promoção da saúde e da qualidade de vida. Os

profissionais do PA apenas mascaram um problema que é de gestão social. Não

é apenas para os serviços de saúde que esses sujeitos estão invisíveis, mas para

Page 162: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

162

todo o município. Como que uma rede de serviços de apoio à criança e ao

adolescente não vê e escuta seu público-alvo? Resgata-se que visto que o ponto

comum entre todos os serviços e políticas é justamente o sujeito, a interlocução

existente entre os setores deve, necessariamente, considerar sua existência e,

para isso, torna-se fundamental percebê-los como cidadãos, corresponsáveis pela

sua vida e morte.

Esses questionamentos indicam uma visão de fragmentação do sujeito como ser

existente, dicotomizado, esfacelado e, cartesianamente falando, dividido em

partes. Com esse modelo reducionista, o cuidar se torna também reduzido à

queixa, à medicalização e à alta sem implicações e sem corresponsabilização

pela vida.

DISCUSSÃO

Falar e tratar da tentativa de morte de crianças e adolescentes é algo difícil e

pouco trabalhado. A Organização Mundial da Saúde (OMS), inclusive, cita como

um dos grandes mitos mundiais o fato de as pessoas não acreditarem que as

crianças suicidam.

Mito 10: as crianças não cometem suicídio dado que não entendem que a morte é final e são cognitivamente incapazes de se empenhar num ato suicida. FALSO. As crianças cometem suicídio e qualquer gesto, em qualquer idade deve ser levado muito seriamente

16.

Apesar de a morte ser um ato natural, ela impacta os homens ocidentais pela sua

conotação negativa. Combinato e Queiroz15 reforçam a dimensão simbólica

existente nesse ato, lembrando que o morrer é “[...] um fenômeno impregnado de

valores e significados dependentes do contexto sociocultural e histórico em que

se manifesta”. Desta forma, não se pode esquecer de que os profissionais de

saúde são, antes de tudo: sujeitos biopsicossociais. A profissão carrega consigo o

peso de “salvar vidas”, mas daqueles que por algum infortúnio “sofreram” ameaça

de morte. No entanto, a dimensão simbólica e a subjetividade não permitem que

esses sujeitos e também profissionais de saúde percebam uma urgência na

pessoa sadia que escolheu morrer17.

Page 163: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

163

Pesquisa em um hospital público de São Paulo com profissionais de saúde que

lidam com situações de lesões autoprovocadas salientou, além da subnotificação,

a estigmatização desse público por causa da sua escolha, afetando (fragilizando)

a dimensão do cuidado18. O autor ressalta a necessidade do resgate da

verdadeira noção de sofrimento. Acrescentam-se ao trabalho da autora outras

questões: ruptura de paradigma (visão global desse sujeito que sofre),

humanização do serviço e, principalmente, legitimidade e escuta do sujeito que

sofre.

Conte et al.19 relatam uma experiência de um programa de prevenção ao suicídio

no Sul do Brasil (Candelária-RS). Apuraram uma realidade de não escuta do

sujeito pelos profissionais de saúde. A saída encontrada foi desmitificar o tema da

morte por suicídio e, com isso, abrir possibilidades de falar sobre o assunto e

capacitar profissionais da saúde para que ficarem atentos à identificação de risco

e às diferenças conceituais e de abordagem referentes à ideação, ao plano ou à

tentativa de suicídio e à busca ativa das famílias que tiveram perdas fatais antes

da implantação do programa. A partir dessas ações iniciais foi possível construir o

Plano Terapêutico Individual, focando a singularidade de cada caso, trabalho com

a família, acesso do paciente aos serviços e medicamentos, possibilidade de

inserção nas unidades de atenção básica, escuta da rede social, trabalho em

equipe com corresponsabilidade, acompanhamento sistemático intensivo de

situações de risco e a importância do sigilo e da ética.

O sofrimento social, na contemporaneidade, é resultado de uma violência

cometida pela própria estrutura social e pelos efeitos lesivos das relações de

poder que caracterizam a organização social20. Ele limita a condição humana e se

insere em diversas dimensões, convocando a vencer o desafio de conectá-las.

Assim, o suicídio ou tentativa de suicídio é maior do que o grupo ou o indivíduo,

uma vez ser fruto da experiência social. Esta, às vezes, é banalizada e

distanciada, principalmente pelos profissionais que lidam com a vida e a morte

dos sujeitos.

A pergunta é: os profissionais “especialistas” da área da saúde cuidam das

pessoas ou de parte delas? A formação do profissional e a especialização no

Page 164: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

164

paradigma biomédico dificultam a percepção da unicidade do sujeito e a questão

é que “a parte não morre”! Quem vive ou morre é a pessoa, o sujeito e não o

braço com corte no pulso... Afinal de contas, a pessoa vive sem o braço, mas o

braço inexiste sem o sujeito! Lembrando Merleau Ponty21: “ eu não tenho corpo,

eu sou o corpo”.

Se o que difere uma lesão ou intoxicação acidental de uma tentativa de suicídio é

justamente a intencionalidade, fica quase impossível declarar que o corte no

pulsos D e E seja uma lesão autoprovocada intencionalmente, tendo em vista que

a única pessoa que pode atestar sua “intenção” é o próprio sujeito e não sua

lesão (consequência de um ato, de uma escolha). Assim, para esclarecer uma

hipótese diagnóstica, é preciso ver o todo e, mais que isso: escutá-lo! Claro que

merecem ressalvas todas as peculiaridades do serviço e formação do profissional.

A escuta qualificada não é virar psicólogo; pelo contrário, é apenas ver o sujeito

para além de sua lesão. Tentar compreender o todo!

Talvez tenha sido uma forma, uma saída encontrada pelos profissionais de saúde

para lidarem com esse incômodo e imprecisão que a vida e a morte causam.

Recente estudo22, apesar do foco de investigação ser outro, concluiu que há

sofrimento psíquico dos médicos ao lidarem com a morte e que este é suprimido,

de forma que não leve à reflexão e ao devido cuidado. Afonso23 vai um pouco

mais além, ao fazer uma resenha do livro “Sobre a Morte e o Morrer”, dizendo que

o texto afirma que a nossa sociedade evita e ignora a morte e que tanto os

médicos como os demais profissionais de saúde que estão inseridos nesse

contexto não sabem lidar com essa situação na relação com o sujeito que precisa

e solicita cuidados. Por fim, sugere que os médicos reflitam sobre a própria morte

e, mais que isso, que usem do processo empático e se coloquem no lugar

daquele que sofre e pede auxílio, que necessita ser acolhido e escutado no seu

suplício! Pois, se há negação do todo e cuidado só de determinada parte, o

trabalho do profissional de saúde se limita à atenção com a consequência do ato

praticado ou sofrido por determinada pessoa.

Ver o todo é cogitar a possibilidade de que aquela pessoa não é apenas “vítima

ou paciente”, mas sujeito de sua história e que pode ser igualmente cuidado no

Page 165: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

165

todo! É o que a Política Nacional de Humanização do serviço de saúde chama de

“[...] mudança na cultura da atenção dos usuários e da gestão dos processos de

trabalho [...]” e demarca, inclusive, que nos atendimentos de urgência os

profissionais de saúde devem respeitar as diferenças e as necessidades do

sujeito13.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se afirmar que seria utópico e hipócrita, na nossa pós-modernidade, pensar

em apenas um saber que dê conta sozinho do todo; mas também é ingênuo

acreditar que a soma das partes resulta no todo! Ver o adolescente e não apenas

o corte nos pulsos exige “humanização” e “integralidade” do profissional que

recebe e atende no serviço de saúde, mas entendendo-se integralidade como

noção amálgama carregada de sentido. Impõe, portanto, indignar-se diante de

atitudes fragmentárias e buscar debates intensos e densos com vistas a que os

profissionais da área da saúde e de toda a rede de apoio a esse público vejam

além das demandas explícitas e se sintam responsáveis não apenas pelo

diagnóstico correto da tentativa de suicídio, mas tomem as iniciativas que esse

procedimento requer.

Ressalvando as peculiaridades de um serviço de saúde que (teoricamente)

atende a casos de urgência, perceber que esse sujeito precisa de outros cuidados

que vão além da sutura e contribuir para que haja uma possibilidade, uma escolha

de viver é imprescindível: é humano! Mas, o que faz com que os profissionais de

saúde se omitam diante da possibilidade de morte? Como “bancar” uma hipótese

diagnóstica de tentativa de autoextermínio entre crianças e adolescentes de uma

cidade relativamente pequena? É melhor desresponsabilizar-se por tal situação?

Interessante pontuar que quando existe uma rede de serviços que acolhe o

público infanto-juvenil nas suas diversas necessidades e que conversa e

desenvolve ações intersetoriais, o “problema” torna-se de todos e, logo, a

responsabilidade por aquele caso, aquela vida, aquele sujeito, também. Dividir e

compartilhar as responsabilidades e as próprias dificuldades diante de situações

complexas fortalece os setores e os seus profissionais. A ausência de uma gestão

social, pensada como sinônimo de democracia e cidadania, também inclui outros

Page 166: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

166

atores além dos profissionais dessa rede, pois o sistema é muito mais amplo. A

participação dos gestores e da comunidade também deve ser questionada e

sugestionada, pois é um direito e um dever contribuir para o bem-estar e para a

qualidade de vida de toda a comunidade.

Os dados levantados neste estudo exibiram falhas grosseiras no diagnóstico e,

principalmente, nos encaminhamentos exigidos tanto pelo sujeito quanto pelos

familiares que buscaram socorro. Diante disso, não se pensa exclusivamente em

mudanças curriculares. Não se pode apenas culpabilizar a formação flexneriana.

Preconizam-se mudanças de atitude!

Essas reflexões incomodam e reivindicam mais investigações, pois se acredita

que apenas ouvindo os sujeitos é possível construir saídas inovadoras, rompendo

com o atual paradigma do profissional da saúde coletiva.

COLABORADORES

Michelle Alexandra Gomes Alves e Matilde Meire Miranda Cadete participaram

igualmente de todas as etapas de elaboração do artigo.

REFERÊNCIAS 1. Minayo MCS. A violência dramatiza causas. In: Minayo MCS, Souza ER. (orgs). Violência sob o olhar da saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003; p. 23-47. 2. Deslandes SF. O atendimento às vítimas de violência na emergência: “prevenção numa hora dessas?”. Cien Saude Colet. 1999; 4:81-94. 3. Centro Brasileiro de Classificação de Doenças – Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo/Organização Mundial de Saúde/Organização Pan-Americana de Saúde. CID-10 - Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. 10ª Revisão. Versão 2008. Volume I. Disponível em: http://www.datasus.gov.br/cid10/V2008/cid10.htm Acesso em: 19 abr. 2013. 4. Minas Gerais. Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. Superintendência de Epidemiologia da Subsecretaria de Vigilância em Saúde. Análise de Situação de Saúde. Belo Horizonte, 2010.

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167

5. Durkheim É. O suicídio: estudo de sociologia. Tradução: Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes; 2000. Coleção tópicos. Primeira publicação em 1987. 6. Minayo MCS. A autoviolência, objeto da sociologia e problema de saúde pública. Cad Saúde Pública. 1998; 14:421-428. 7. Organização Mundial de Saúde (OMS). Relatório Mundial sobre Violência e Saúde. Genebra: OMS; 2002. 8. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Organização Pan-Americana de Saúde. UNICAMP. Prevenção do suicídio: Manual de prevenção do suicídio para equipes de saúde mental. Brasília, outubro de 2006. 9. Brasil. Ministério da Saúde. DATASUS – Departamento de Informática do SUS. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sih/cnv/fimg.def Acesso em: 05 out. 2012. 10. Brasil. Ministério da Saúde. Organização Pan-Americana de Saúde. UNICAMP. Prevenção do suicídio: Manual de prevenção do suicídio para profissionais da atenção básica. Brasília, setembro de 2009. 11. Minayo MCS, Souza ER, Malaquias JV, Reis AC, Santos NC, Veiga JPC, Silva CFR, Fonseca IG. Análise da morbidade hospitalar por lesões e envenenamentos no Brasil em 2000. In: Minayo MCS, Souza ER. (orgs). Violência sob o olhar da saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003, p. 109-129. 12. Brasil. Ministério da Saúde. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, 1990; 13 jul. 13. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Núcleo Técnico de Política Nacional de Humanização. Humaniza SUS: Política Nacional de Humanização - a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS. Série B. Textos Básicos de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. 14. Andreazza R, Carapinheiro G, Teixeira L, Cecilio LCO. Do Centro de saúde à unidade de saúde familiar: narrativas de ausência e intermitências. In: Anais do 12º Congresso Paulista de Saúde Pública. Rev Saude Soc. 2011; 20(Supl. 1):200-201. 15. Combinato DS, Queiroz MS. Morte: uma visão psicossocial. Estudos de Psicologia. 2006; 11:209-216. 16. Organização Mundial de Saúde (OMS). Departamento de Saúde Mental e de Abuso de Substâncias. Gestão de Perturbações Mentais e de Doenças do Sistema Nervoso. Genebra: OMS; 2006.

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168

17. Santos AAG, Silva RM, Machado MFAS, Vieira LJES, Catrib AMF, Jorge HMF. Sentidos atribuídos por profissionais à promoção da saúde do adolescente. Cien Saude Colet. 2012; 17: 1275-1284. 18. Machin R. Nem doente, nem vítima: o atendimento às “lesões autoprovocadas” nas emergências. Cien Saude Colet. 2009; 14:1741-1750. 19. Conte M, Meneghel SN, Trindade AG, Ceccon RF, Hesler LZ, Cruz CW, Soares RPS, Jesus I. Programa de Prevenção ao Suicídio: estudo de caso em um município do sul do Brasil. Cien Saude Colet. 2012; 17:2017-2026. 20. Kleimann A, Kleimann J. The appeal of experience; the dismay of images: cultural appropriations of suffering in our time. Daedalus. 1996; 125: 1-25. 21. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. Trad: Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Marins Fontes; 1999. 22. Santos MA, Aoki FCO, Oliveira-Cardoso ÉA. Significado da morte para médicos frente à situação de terminalidade de pacientes submetidos ao Transplante de medula Óssea. Cienc Saude Colet. 2013; 18 (9): 2625-2634. 23. Afonso SBC. Sobre a morte e o morrer [Resenha]. Cienc Saude Colet. 2013; 18 (9): 2781-2782.

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8 CONCLUSÃO

Falar e tratar da tentativa de morte de crianças e adolescentes é algo difícil e

pouco trabalhado. A Organização Mundial da Saúde (OMS), inclusive, cita como

um dos grandes mitos mundiais o fato de as pessoas não acreditarem que as

crianças suicidam.

Mito 10: As crianças não cometem suicídio dado que não entendem que a morte é final e são cognitivamente incapazes de se empenhar num ato suicida. FALSO. As crianças cometem suicídio e qualquer gesto, em qualquer idade, deve ser levado muito seriamente (OMS, 2006, p. 11).

Esta pesquisa evidencia a falta de notificação dos casos, principalmente das

crianças. Os resultados encontrados reafirmam a literatura, que descreve o perfil

dos sujeitos que tentam suicídio e as formas utilizadas. No entanto, ressalta outra

violência cometida contra as crianças e os adolescentes, que é a negligência dos

profissionais de saúde.

Ampliando o olhar, pode-se estender esse problema para os demais serviços de

cuidado da rede infanto-juvenil de Matozinhos. E qualquer intervenção pensada

nesse sentido deve ser intersetorial e abranger os diversos serviços que acolhem

esse público.

Pode-se afirmar que seria utópico e hipócrita, na nossa pós-modernidade, pensar

em apenas um saber que dê conta sozinho do todo; mas também é ingênuo

acreditar que a soma das partes resulta no todo! Ver o adolescente e não apenas

o corte nos pulsos exige “humanização” e “integralidade” do profissional que

recebe e atende no serviço de cuidado, mas entendendo-se integralidade como

noção amálgama carregada de sentido. Impõe-se, portanto, indignar-se diante de

atitudes fragmentárias e buscar debates intensos e densos com vistas a que os

profissionais das diversas áreas vejam para além das demandas explícitas e se

sintam responsáveis não apenas pelo diagnóstico correto da tentativa de suicídio,

mas tomem as iniciativas que esse procedimento acarreta.

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170

Ressalvando as peculiaridades de um serviço de saúde que (teoricamente)

atende casos de urgência, perceber que esse sujeito precisa de outros cuidados

que vão além da sutura e contribuir para que haja uma possibilidade. Uma

escolha de viver é imprescindível: é humano! Mas o que faz com que os

profissionais de saúde se omitam diante da possibilidade de morte? Como

“bancar” uma hipótese diagnóstica de tentativa de autoextermínio entre crianças e

adolescentes de uma cidade relativamente pequena?

Conte et al. (2012) relatam uma experiência de um programa de prevenção ao

suicídio no Sul do Brasil (Candelária – RS). Constataram uma realidade de não

escuta do sujeito pelos profissionais de saúde. A saída encontrada foi

desmistificar o tema da morte por suicídio e, com isso, abrir possibilidades de falar

sobre o assunto e capacitar os profissionais da saúde para que fiquem atentos à

identificação de risco e às diferenças conceituais e de abordagem referentes à

ideação, ao plano ou à tentativa de suicídio e à busca ativa das famílias que

tiveram perdas fatais antes da implantação do programa. A partir dessas ações

iniciais foi possível construir o Plano Terapêutico Individual, focando a

singularidade de cada caso, trabalho com a família, acesso do paciente aos

serviços e medicamentos, possibilidade de inserção nas Unidades de Atenção

Básica, escuta da rede social, trabalho em equipe com corresponsabilidade,

acompanhamento constante de situações de risco e a importância do sigilo e da

ética.

Os dados levantados neste estudo revelaram falhas grosseiras no diagnóstico e,

principalmente, nos encaminhamentos exigidos tanto pelo sujeito quanto pelos

familiares que buscaram socorro. Não se percebeu referência nem

contrarreferência de um caso sequer. Diante disso, não se pensa exclusivamente

em mudanças curriculares. Não se pode apenas culpabilizar a formação

flexneriana. Preconizam-se mudanças de atitude!

Essas reflexões incomodam e reivindicam a construção de saídas inovadoras,

rompendo com o atual paradigma do profissional da saúde coletiva. Neste

sentido, este trabalho propõe uma formação participativa dos profissionais não só

da saúde, mas da rede de atenção e cuidado à criança e ao adolescente quanto à

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171

prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde. Melo (2010, p. 16)

também acredita que a “[...] criação de espaços que propiciem o diálogo como

forma essencial de formação da opinião e da vontade coletiva [...]” favorece a

construção de redes de trabalho pautadas no desenvolvimento social, político,

econômico e humano e na gestão compartilhada. É necessário partir do

pressuposto de que “[...] soluções para a violência envolvem a responsabilidade

de todos os cidadãos” (MELO, 2010, p. 16).

E nesse mesmo pensamento de corresponsabilização é possível pensar um

espaço de diálogo para os próprios adolescentes, que clamam por isso ao serem

escutados no grupo focal desta pesquisa. Eles afirmam que não precisam de

muito, apenas querem ser escutados, vistos e percebidos pela sociedade, querem

um lugar, querem existir, viver, enfim, SEREM SUJEITOS, assim como as

crianças! E sujeitos de direitos e deveres, que poderão ser multiplicadores nesse

processo de construção da cidadania e da saúde infanto-juvenil.

A proposta é um convite aos adolescentes para a construção de um espaço no

qual serão escutados e poderão exercer o seu poder cidadão a partir de

mudanças da realidade local das crianças e adolescentes de Matozinhos

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172

REFERÊNCIAS

AFONSO, S.B.C. Sobre a morte e o morrer [Resenha]. Cienc Saúde Colet, v. 18, n. 9, p. 2781-2782, 2013. ALVES, M.A.G.; CADETE, M.M.M.; BORONAT, C.B. Produções científicas brasileiras sobre a prevenção da tentativa de suicidio infanto-juvenil nas últimas décadas. In: V CONGRESO LATINO AMERICANO DE PREVENCIÓN DEL SUICIDIO, setembro de 2013, Campeche, no México. Anais..., 2013. ALVES, M.A.G.; CADETE, M.M.M. Política de saúde mental infanto-juvenil do município de Matozinhos. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM GESTÃO SOCIAL (ENAPEGS), Belém, Pará, 2012. Anais..., 2012. ALVES, M.A.G. Relatório de Avaliação do Ambulatório Infanto-juvenil de Saúde Mental. Matozinhos, 2012. 10 p. Não publicado. BACHELADENSKI, M.S.; MATIELLO JÚNIOR, E. Contribuições do campo crítico do lazer para a promoção da saúde. Ciênc Saúde Colet, v. 15, n. 5, p. 2569-2579, 2010. BARDIN, L. Análise do conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2010. BASTOS, R.L. Suicídios, Psicologia e vínculos: uma leitura psicossocial. Psicologia USP, v. 20, n. 1, p. 67-92, jan/mar, 2009. BENTANCURT, L. Curso-oficina "A vida de acompanhamento", uma ferramenta de prevenção de suicídio para os professores. Associação Mexicana de Suicidologia (inédito), 2011. BENTANCURT, L. Detección y prevención del suicídio em jóvenes: herramientas para el docente”. In: V CONGRESO LATINOAMERICANO DE PREVENCIÓN DEL SUICIDIO, setembro de 2013, Campeche, México. Anais..., 2013. BEZERRA JÚNIOR, B. Desafios da Reforma Psiquiátrica no Brasil. PHYSIS: Rev Saúde Colet, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, p. 243-250, Rio de Janeiro, 2007. BORONAT, Carlos B. El trabajo comunitario para la atención y prevención del suicídio. In: V CONGRESO LATINO AMERICANO DE PREVENCIÓN DEL SUICIDIO, setembro de 2013, Campeche, no México, Taller, 2013. BOTEGA, N.J. et al. Prevalências de ideação, plano e tentativa de suicídio: um inquérito de base populacional em Campinas, São Paulo, Brasil. Cad Saúde Púb = Rep Public Health, v. 25, n. 12, p. 2632-2638, 2009. BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Informática do SUS. DATASUS. 2012a. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sih/cnv/fimg. def. Acesso em: 05 out. 2012.

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APÊNDICES E ANEXO

APÊNDICE A – Roteiro do Grupo Focal dos Adolescentes

Primeiro momento: acolhimento e apresentação da pesquisadora, da

observadora e dos adolescentes, colocação do crachá com os nomes. Mostrar

mapa do município, passar para os adolescentes e questionar se conhecem o

lugar.

Segundo momento: em seguida, iniciar a “conversa” com as seguintes questões:

1. O que é pra vocês morar aqui em Matozinhos?

2. Como é o dia-a-dia de vocês? O que fazem nos finais de semana?

3. O que vocês gostam de fazer para se divertirem aqui em Matozinhos

(momento de lazer)?

4. Vocês acham que a cidade oferece lugares para lazer / diversão?

5. Vocês têm amigos? Como é a relação com eles? O que fazem juntos?

6. Como é a relação com seus familiares? O que fazem juntos?

7. Como vocês percebem as suas vidas hoje? O que consideram como

positivo e negativo na vida de vocês?

8. Teve algum momento em que vocês acharam que seria melhor morrer?

O que fizeram? (Explorar mais...)

9. Como vocês veem a vida no futuro? Vocês têm algum projeto de vida?

10. Tem alguma questão que vocês gostariam de acrescentar sobre o

assunto e não foi perguntado?

Terceiro momento: Agradecer, encerrar e convidar para o lanche. Ressarcir os

adolescentes quanto aos gastos para participarem do encontro.

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APÊNDICE B – Roteiro do Método Sensível Criativo com Crianças

Primeiro momento: acolhida – entrega de crachá e apresentação lúdica.

Segundo momento: explicar as duas fases com as questões norteadoras.

Terceiro momento: composição das produções.

1ª fase: entregar uma folha A4 com o limite territorial do município de Matozinhos,

perguntar se reconhecem e depois dizer que é o mapa da cidade e pedir que

respondam as seguintes questões com desenhos ou palavras:

1 - Como é morar aqui em Matozinhos?

2 - O que você gosta de fazer e com quem?

Compartilhar: Conversar sobre o que cada um fez e sentiu.

2ª fase: entregar uma folha em branco A3 e pedir que desenhem como eles estão

se sentindo e depois respondam, com desenhos ou palavras:

3 - Já ficou muito triste? O que fez quando ficou muito triste?

4 – Quando ficou muito triste, sentiu vontade de morrer?

5 – O que você fez quando sentiu vontade de morrer?

Compartilhar: Conversar sobre o que cada um fez e sentiu.

Quarto momento: compartilhar

Obs: este momento foi dividido durante a execução das duas fases.

Quinto momento: avaliação do encontro – as crianças falarão sobre o que

acharam e como se sentiram nesse encontro. Agradecer, encerrar e convidar

para o lanche.

Sexto momento: confraternização – as crianças irão lanchar e ficar à vontade.

Obs: ressarcir os pais dos gastos para levar os filhos ao encontro.

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APÊNDICE C - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (para os

adolescentes)

Título da pesquisa: “Promoção da saúde mental infanto-juvenil entre crianças e

adolescentes do município de Matozinhos”

Nós, Michelle Alexandra Gomes Alves e Matilde Meire Miranda Cadete, aluna e

professora do Centro Universitário UNA, convidamos você para participar de um

trabalho que estamos realizando e que tem como objetivo analisar a saúde mental

entre as crianças e adolescentes do município de Matozinhos nos últimos cinco

anos. Ao participar deste estudo você nos ajudará a encontrar os motivos que

levam as crianças e adolescentes do município a apresentarem algum sofrimento

psíquico e, assim, poder ajudar na sua prevenção e tratamento.

Você tem liberdade de desistir de participar e ainda deixar de continuar

participando em qualquer momento do trabalho, sem qualquer prejuízo. Sempre

que quiser, você poderá pedir mais informações sobre este trabalho pelo telefone

da aluna e da professora e, se necessário por meio do e-mail do Comitê de Ética

em Pesquisa da UNA.

Pedimos permissão a você para participar de um encontro no salão paroquial em

dia combinado anteriormente para que você, juntamente com outros

adolescentes, converse conosco sobre a saúde mental. Seu nome não vai

aparecer em momento algum. A participação neste trabalho não traz problemas

legais para você e se sentir qualquer desconforto ou não quiser continuar

conversando, poderá parar um pouco ou cancelar a participação neste trabalho.

Os passos adotados nesta pesquisa obedecem aos Critérios da Ética em

Pesquisa com Seres Humanos conforme Resolução nº. 196/96 do Conselho

Nacional de Saúde. Nenhum dos procedimentos usados oferece riscos à sua

dignidade.

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182

Toda a conversa do encontro será gravada, mas o seu nome não aparecerá e

somente a aluna e a professora terão conhecimento dos dados.

Você não terá qualquer tipo de despesa ao participar deste trabalho, bem como

nada será pago por sua participação.

Após estas informações, pedimos o seu consentimento de forma livre para

participar deste estudo. Portanto, complete, por favor, os itens que se seguem.

Obs: não assine este termo se ainda tiver dúvida a respeito.

Consentimento Livre e Esclarecido

Tendo em vista os itens aqui apresentados, eu, de forma livre e esclarecida, deixo

claro que aceito participar deste trabalho. Declaro que recebi cópia deste termo

de consentimento e autorizo a minha participação no encontro e a divulgação dos

dados obtidos neste estudo.

Nome do (a) adolescente ___________________________________________

Assinatura do (a) adolescente

Assinatura da aluna:

Assinatura da professora:

Aluna: Michelle (31) 2511-3336 ou (31) 8844-6558

Professora: Drª. Matilde (31) 99728033

Comitê de Ética em Pesquisa: Rua Guajajaras, 175, 4o andar – Belo

Horizonte/MG Contato: e-mail: [email protected]

Page 183: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

183

APÊNDICE D - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (pais

autorizando os filhos adolescentes)

Título da pesquisa: “Promoção da saúde mental infanto-juvenil entre crianças e

adolescentes do município de Matozinhos”

Nós, Michelle Alexandra Gomes Alves e Matilde Meire Miranda Cadete, aluna e

professora do Centro Universitário UNA, pedimos ao(à) Sr.(a) permissão para que

seu(sua) filho(a) possa participar de um trabalho que estamos realizando e que

tem como finalidade analisar a saúde mental entre as crianças e adolescentes do

município de Matozinhos nos últimos cinco anos. Ao deixar seu(sua) filho(a)

participar deste estudo o(a) sr.(a) possibilitará que nós encontremos os motivos

que levam as crianças e os adolescentes do município a apresentarem algum

sofrimento psíquico e, assim, poder ajudar na sua prevenção e tratamento.

Seu(sua) filho(a) tem liberdade para desistir de participar e ainda deixar de

continuar participando em qualquer momento do trabalho, sem qualquer prejuízo

para ele(ela). Sempre que quiser, o(a) sr.(a) poderá pedir mais informações sobre

este trabalho pelo telefone da aluna e da professora e, se necessário, por meio do

e-mail do Comitê de Ética em Pesquisa da UNA.

Pedimos permissão ao(à) sr.(a) para seu(sua) filho(a) participar de um encontro

no salão paroquial em dia combinado anteriormente para que ele(ela), juntamente

com outros adolescentes, converse sobre a saúde mental. O nome de seu(sua)

filho(a) não vai aparecer em momento algum. A participação neste trabalho não

traz problemas legais para seu(sua) filho(a) e se ele(ela) sentir desconforto ou

não quiser continuar respondendo às perguntas, poderá parar um pouco ou

cancelar a participação neste trabalho.

Os passos adotados neste trabalho obedecem aos Critérios da Ética em Pesquisa

com Seres Humanos conforme Resolução nº. 196/96 do Conselho Nacional de

Saúde. Nenhum dos procedimentos usados oferece riscos à dignidade do(a)

seu(sua) filho(a).

Page 184: Prevenção da tentativa de suicídio e promoção da saúde mental

184

Toda a conversa do encontro será gravada, mas os nomes dos adolescentes não

aparecerão e somente a aluna e a professora terão conhecimento dos dados.

O(a) sr.(a) não terá qualquer tipo de despesa ao deixar seu(sua) filho(a) participar

deste trabalho, bem como nada será pago por sua participação.

Após estas informações, pedimos o seu consentimento de forma livre para

seu(sua) filho(a) participar deste trabalho. Portanto, complete, por favor, os itens

que se seguem.

Obs: não assine este termo se ainda tiver dúvida a respeito.

Consentimento Livre e Esclarecido

Tendo em vista os itens aqui apresentados, eu, de forma livre e esclarecida, deixo

claro que aceito que meu(minha) filho(a) participe deste trabalho. Declaro que

recebi cópia deste termo de consentimento e autorizo a participação do(a)

meu(minha) filho(a) no encontro e a divulgação dos dados obtidos neste estudo.

Nome do pai ou responsável________________________________________

Assinatura do pai ou responsável

Assinatura da aluna:

Assinatura da professora:

Aluna: Michelle (31) 2511-3336 ou (31) 8844-6558

Professora: Drª. Matilde (31) 99728033

Comitê de Ética em Pesquisa: Rua Guajajaras, 175, 4o andar – Belo

Horizonte/MG Contato: e-mail: [email protected]

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APÊNDICE E - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (pais

autorizando as crianças)

Título da pesquisa: “Promoção da saúde mental infanto-juvenil entre crianças e

adolescentes do município de Matozinhos”

Nós, Michelle Alexandra Gomes Alves e Matilde Meire Miranda Cadete, aluna e

professora do Centro Universitário UNA, pedimos ao(à) Sr.(a) permissão para que

seu(sua) filho(a) possa participar de um trabalho que estamos realizando e que

tem como finalidade analisar a saúde mental entre as crianças e os adolescentes

do município de Matozinhos nos últimos cinco anos. Ao deixar seu(sua) filho(a)

participar deste estudo, o(a) sr.(a) possibilitará que eu encontre os motivos que

levam as crianças e adolescentes do município a apresentarem algum sofrimento

psíquico e, assim, poder ajudar na sua prevenção e tratamento.

Seu(sua) filho(a) tem liberdade de desistir de participar e ainda deixar de

continuar participando em qualquer momento do trabalho, sem qualquer prejuízo

para ele(ela). Sempre que quiser, o(a) sr.(a) poderá pedir mais informações sobre

este trabalho pelo telefone da aluna e da professora e, se necessário, por meio do

e-mail do Comitê de Ética em Pesquisa da UNA.

Pedimos permissão ao(à) sr.(a) para seu(sua) filho(a) participar de um encontro

no salão paroquial em dia que vamos combinar antes para que ele(ela),

juntamente com outras crianças, desenhe, brinque e converse sobre saúde

mental. O nome de seu(sua) filho(a) não vai aparecer em momento algum. A

participação neste trabalho não traz problemas legais para seu(sua) filho(a) e se

ele(ela) não quiser participar ou não quiser continuar nos encontros poderá

cancelar a participação neste estudo.

Os passos adotados neste trabalho obedecem aos Critérios da Ética em Pesquisa

com Seres Humanos conforme Resolução nº. 196/96 do Conselho Nacional de

Saúde. Nenhum dos procedimentos usados oferece riscos à dignidade de

seu(sua) filho(a).

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Todas as atividades do encontro serão gravadas, mas os nomes das crianças não

aparecerão e somente a aluna e a professora terão conhecimento dos dados.

O(a) sr.(a) não terá qualquer tipo de despesa ao deixar seu(sua) filho(a) participar

deste trabalho, bem como nada será pago por sua participação.

Após estas informações, pedimos o seu consentimento de forma livre para

seu(sua) filho(a) participar deste trabalho. Portanto, complete, por favor, os itens

que se seguem.

Obs: não assine este termo se ainda tiver dúvida a respeito.

Consentimento Livre e Esclarecido

Tendo em vista os itens aqui apresentados, eu, de forma livre e esclarecida, deixo

claro que aceito que meu(minha) filho(a) participe deste trabalho. Declaro que

recebi cópia deste termo de consentimento e autorizo a participação do(a)

meu(minha) filho(a) no encontro e a divulgação dos dados obtidos neste estudo.

Nome da criança: _________________________________________________

Assinatura do pai ou responsável

Assinatura da aluna:

Assinatura da professora:

Aluna: Michelle (31) 2511-3336 ou (31) 8844-6558

Professora: Drª. Matilde (31) 99728033

Comitê de Ética em Pesquisa: Rua Guajajaras, 175, 4o andar – Belo

Horizonte/MG Contato: e-mail: [email protected]

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187

APÊNDICE F – Relatos de tentativa de suicídio dos adolescentes de

Matozinhos

P: - Bom, vocês a questão do choro, angústia, uma coisa assim por dentro, uma

tristeza, uma vontade de não existir mais, uma vontade de não viver mais,

uma vontade de sair dali, daquilo acabar rápido, enfim. Eu queria que vocês

falassem o que vocês fizeram com isso. Vocês estavam ali sofrendo, uma

tristeza muito grande, uma dor no peito, o que vocês fizeram com isso?

A2: - Cê fala com a angústia?

P: - Sim, para amenizar ou melhorar. Ou que saída que vocês encontraram. Acho

que seria essa melhor pergunta. Que saída vocês encontraram para isso que

vocês estavam sentindo naquele momento?

A3: - Como naquele instante eu num tive apoio pra um tratamento, eu tentei

suicídio. Eu achava assim, num tem outra saída. Ocê se sente tão… parece

que cê sofre tanto sozinha, cê num tem aquela pessoa, num tem aquele…

num tem um tratamento pra ocê faze na hora. Num tem ninguém pra te

ajudá, o que eu tô fazeno aqui? O que eu vô fazer da minha vida? Vô fica

sofreno, sofreno? Melhor acabá com tudo de uma vez. Então a única saída…

acho que todo mundo que é deprimido e num tem ninguém pra ajudá,

quando num cai no mundo das drogas tenta o suicídio.

P: - Você quer contar um pouquinho mais da sua experiência pra gente, A3?

A3: - Bom, é muito angustiante. Hoje eu falo, num tenho vergonha, num tenho

ressentimento de falá o que eu sentia. Hoje eu falo, converso. Quando me

perguntam eu falo sem me senti mal. É uma experiência muito ruim. Por isso

que eu falo que hoje em dia o que falta, a falta que faz é um grupo

relacionado aos jovens ou um grupo com os próprios pais pra interagi mais

com os filhos. Acho que falta isso. Porque aquele sofrimento é muito grande,

ocê num vê saída, ocê tenta de um jeito, tenta de outro, ocê acha que todo

mundo… ninguém tá ali pra te ajudá, ninguém tá ali pra te escutá, ninguém

tá ali pra te dá um abraço, “conta comigo pro que ocê precisá.” Então acho

que a única saída que ocê vê é essa. No momento que eu tava angustiada e

num tinha ninguém pra me ajudá, que era a depressão. Muita gente fala,

nossa, mas porque ocê fez isso? Todo mundo sempre fala isso, mas na hora

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que ocê tá ali naquela depressão, ocê num vê outra saída, por isso que eu

tentei o suicídio.

P: - Tentou como A3?

A3: - Eu? Eu tomei uns remédios, tomei muitos remédios. Só que aí a minha mãe

viu, me levô pro médico. Foi uma experiência muito ruim da minha vida, que

eles tiveram que tirá com a sonda e tudo, depois eu fiquei… com isso eu

fiquei muito fraca, depois que aconteceu isso, eu num tava me alimentano,

eu só tava dentro do quarto, só deitada, num queria ir pra escola, num queria

sair de casa. Então ocê num sente vontade de… tudo procê tá ruim, tudo é

triste, num tem nada procê… é como se num tivesse nada procê fazê. Então

eu fiquei muito fraca. Depois que eu tentei o suicídio, muitas pessoas que,

tipo, me deram as costas num viam que… parecia que eu tava pedino aquele

socorro, aquela ajuda, mas ninguém via. Depois que aconteceu isso, muitas

pessoas olharam pra mim, que aí foi quando eu comecei a fazê o tratamento,

a minha mãe me levô pra fazê o tratamento, então depois disso, que

aconteceu, foi como se eu tivesse ali alguém pra ajuda, foi quando me levô

pra fazê o tratamento. Foi uma coisa que me melhorou, foi por causa disso.

A2: - Eu acho que a minha vida pra eu podê sê feliz teria que sê assim... primeiro,

eu tive uma vida muito difícil, tinha solução pra mais nada, tinha nada na

minha frente que pudesse falá fica, ocê é importante pra mim, num tinha

ninguém... eu também tentei suicídio, eu tomei… meus avós tinha problema

de coração, pressão alta, eles tinham acabado de comprá os remédios, eu

tinha pegado todos os remédios deles e tinha tomado café com eles. Eu

fiquei superdopada, eu num tava vendo mais nada na minha frente, só

andava, caía e tombava. O meu pai me levô pro PA, no PA eu senti vontade

de ser social [palavra incompreensível]. Então lá tinha estes dois policial

comigo, aí eu desabafei com eles, contei que o meu sonho era ser policial,

então eles me ajudaram bastante. Aí fez aquele processo com a sonda que

ela falou de tirá com a sonda, tirá aquilo tudo, foi muito ruim. E nisso, o meu

pai… um dos pontos deu tê feito isso, eu falei com meu pai que eu queria vê

minha irmã, então ele deixou eu viajá, foi aí que eu vi, nossa, agora eu tô

livre, meu Deus do céu! Agora eu sei que eu vô sê amada, que eu vô tê

alguém pra conversá comigo, então eu fui pra casa da minha irmã. Fiquei

mais ou menos um mês. Sabe quando ocê vê outras pessoas, cê respira

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outros ares, cê vê que ocê é importante, foi assim que eu me senti a primeira

vez que eu viajei. Foi nisso que eu voltei “regenalizada”, parece que eu tinha

um demônio no meu corpo de tanta coisa ruim na minha vida. Eu voltei muito

melhor.

P: - Como você estava se sentindo?

A2: - Como eu tava sem ter ninguém, entre aspas, eu me sentia muito triste,

angustiada, nada tava bom pra mim, os amigos… eu nem posso dizê que

tinha amigos porque na hora que a gente mais precisa eles some. Então é

muito ruim. Num tinha liberdade pra nada, eu achava que a minha família era

muito desligada, num sei se era porque eu num morava com os meus pais,

então quando ocê tá morano numa casa, mesmo que seja dos seus avós,

viveno de favô, tinha aquela obrigação, aquele trem, aí era muito difícil.

P: - Você falou assim, sua família era muito desligada, desligada como assim?

A2: - Sabe quando ocê tem… a minha mãe foi viciada em drogas, o meu pai, ele

começou a trabalhá e ele ficava fora o dia inteiro, era 24 por 24. Então eu

num tenho… até hoje eu num tenho um abraço de pai, num tenho. Sabe

quando ocê sente falta de carinho?

P: - Meninos.

A1: Como é que é a pergunta mesmo?

P: Aquilo que você sentia foram essas experiências do passado, que vocês

disseram que sentiam angustiados, se sentiram tristes, estavam em

depressão, em crise, o que vocês fizeram?

A1: - O que eu fiz? A primeira coisa que eu fiz quando tava assim, fui lá na gaveta

pegar a faca, porque eu falei que eu queria coráa os meus pulsos. Porque eu

falei… igual à menina falou, a A3, que num tinha mais jeito, que acabou, num

tem… o que eu tô fazeno aqui? O que eu tô fazeno aqui já que ninguém num

tá nem aí pra mim, vô acabá com essa coisa logo, pronto e acabô. Então a

primeira coisa que eu fiz foi tentá cortar os meus pulsos, num consegui,

porque… graças a Deus, porque a minha mãe pegô e viu, a minha mãe

escondeu todas as faca. Aí depois eu peguei o garfo, quis enfiar o garfo

assim, ela escondeu todos os garfo. Peguei o cabo da colhé assim, tentando

me furá com o cabo da colhé, também nada. Peguei o caco de vidro, quebrei

a garrafa assim e queria me cortá. Ela também, graças a Deus, tava lá

também e num deixou eu me cortá. Eu corri, tentei fugi pra me afogar na

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lagoa. Porque eu num sei nada direito. Então aí como eu tava doente, aí

deixa eu morrê direito também. Aí era pra me afogá. Fugi de tudo, porque eu

tava achano que se eu fugisse ia resolvê o meu pobrema. Então num podia

deixá uma porta aberta que eu tava correno, e fugia correno mesmo. A

varanda lá de casa é da altura daquela janela lá, tem um coisa, o alpendre

da varanda é alto. Eu pulei lá de cima da varanda lá em baixo assim, só que

eu num sei, foi Deus mesmo que num deixou eu me machucá, aí eu caí em

cima da perna, machuquei a perna, mas num cheguei machucá outra coisa

não. Tava tentano acabá com a minha vida mesmo, porque parecia que num

tinha mais saída, solução. Então é isso que a gente faz, igual à gente tava, a

gente acha que essas coisas vai resolvê os nossos pobremas. Quebrar tudo,

dá um fim na vida da gente. Então eu tava achano que dá o fim na minha

vida ia acabá os meus pobremas. Aí eu pegava e falava eu vô acabá com os

meus pobremas e vô acabá com os pobremas da minha mãe, porque a

minha mãe tá passano por esses pobremas por minha causa. Igual o A4 tá

falano, a gente pega… por exemplo, se os pais brigam, a gente acha que

eles tão brigano pela gente, que é culpa da gente. Então, o que acontece?

Tanto que a Doutora me deu um remédio tão forte, mas tão forte, que eu

tava dormindo de manhã, de tarde e de noite. Então a única coisa que a

minha mãe me acordava era pra mim ir ao banheiro, bebê água e comê.

Nem comê eu tava comeno. Então era muito pouco mesmo, então eu só

dormia, porque eu tava achano que tudo que tava aconteceno era por minha

culpa. Até se quebrasse um copo na minha casa era por minha culpa,

porque fui eu que fiz isso, foi eu que… num sei como, mas eu que fiz, foi

culpa minha. Igual quando a minha mãe discutia, isso é culpa minha. Por

exemplo, a minha vó gritava com os menino, eu achava que era culpa minha.

Então eu pegava a dor de todo mundo pra mim. Então eu me sentia

sufocado. Então, tipo assim, eu falei assim, já que eu tô com a dor de todo

mundo eu vô dá um fim na minha vida e acabá com o pobrema de todo

mundo. Pronto, ninguém mais vai senti pobrema. Então no nosso entendê é

que a gente era um fardo pesado pras pessoas carregarem, que tudo que

tava passano na vida delas era minha culpa. Era eu que era culpado de tá

aconteceno o que tava aconteceno. Tanto que a doutora me impediu até deu

assisti televisão, porque quando passava assim: matô fulano de tal, passou

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isso, passou aquilo, “Meu Deus, fui eu.” Então, tipo assim, num era eu, o

cara que matô e eu que tomava aquela… “fui eu que matei, fui eu que matei.

Agora, quem é que eu vô mata?” Então, o que acontece? Chegou eu falá

que eu ia matá meu pai. Eu falava que eu ia esperá ele dormi, com a minha

mãe mesmo, porque o meu pai me xingava bastante, ele me xingava

bastante. Igual ele bebia, como eu falei, ele bebia e vinha descontá tudo em

mim. Então, era só eu que era o errado, era só eu que era culpado de tudo.

Então, nele falá essas coisas eu mesmo me sentia culpado de tudo, aí

pegava e me sentia culpado e ele me xingava bastante. Aí eu peguei e falei,

vô te matá também. Ocê tá me matano, eu vô te matá. Então, aí o que

acontece? Aí eu peguei e falei com a minha mãe assim: eu vô espera ele

dormi, eu vô matá ele. Num vô matá ocê não, mas eu vô matá ele. Aí a

minha mãe foi lá escondeu todas as faca, todos os garfo, todas as colher,

todas as garrafa, até garrafa de água, de geladeira que tava lá. Louça, prato,

tudo. Ela tirou tudo. Deixou a casa limpinha. Porque eu já tinha quebrado um

bocado de coisa, então ela tava… como ela viu que eu tava assim, ela tava

reformano tudo aquilo que eu quebrei, todos os pratos, todas os jogos de

talher, tudo. Aí ela falou assim: “Meu Deus, eu num posso deixá o meu filho

fazê isso. O que eu vô fazê?” Aí que a doutora passô esse remédio forte

demais pra mim e eu ficava dormino, só dormino. Então, assim, a saída que

eu tava encontrano era dormi, porque aí a minha saída era antes tentá

morre, aí a minha outra saída foi dormi, porque eu dormino eu num ia vê que

eu num tava fazeno nada com ninguém. Então eu dormia dia e noite, dia e

noite. Ficava direto dormino, dormino. A minha saída, que eu tava

encontrano neste momento, era o suicídio e dormi. Como o suicídio eu num

tava conseguino, eu falei: vô dormi. Então eu dormi. A minha saída foi assim,

neste momento. Até que, graças a Deus, deu tudo bem.

P: - A1, você falou que tentou e num conseguiu. Você chegou a ir pra algum lugar

quando você tava acordado?

A1: - Já.

P: - Como que foi isso? Você chegou a conseguir cortar?

A1: - Já. O que eu fiz? Eu arranquei o meu cabelo da cabeça. Eu dava tanta crise

que eu puxava o meu cabelo assim, arrancava o meu cabelo, puxava

mesmo, num tinha dó de mim. Eu puxava. Aí teve uma vez, num foi assim…

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eu me cortei e na crise lá de puxando o meu cabelo, tava sangrano a minha

cabeça. Tava sangrando. Aí a minha mãe ligou pro hospital pra eles virem

me buscá, porque eu ia arrancá o couro da minha cabeça toda, o cabelo

todo. Porque é uma coisa que só Deus mesmo pra tê misericórdia. A gente

num sabe nem mesmo o que a gente tá fazeno. Depois que passa é que a

gente vai vê. A gente fez isso mesmo?

A3: Eu arrependo.

A1: E eu me arrependo, porque uma vez eu peguei e dei um tapa na minha mãe,

assim no braço dela, ficou roxo. Aí eu falei: mãe, a senhora machucou? Ela

pegou e falou assim: “Machuquei, meu filho.” Depois as minhas irmã falaram

assim, foi ocê que machucou a minha mãe. Foi ocê que machucou a minha

mãe. Aí, tipo assim, eu peguei e comecei a arrancá o cabelo da minha

cabeça, porque eu falei: eu machuquei a minha mãe, eu machuquei a minha

mãe. Então, tipo assim, a gente num sabe o que a gente tá fazeno ali

naquela hora.

A2: Parece que num é a gente.

A1: Depois que passa a gente arrepende e parece que é pior, porque a gente fica

mais oprimido. A gente fica assim: meu Deus, aí agora o que é que eu vô

fazê outra vez, quando eu tive outra crise, será que eu vô matá alguém, será

que eu vô machucá alguém? Então fica muito difícil assim. Muito difícil

mesmo. Aí a minha cabeça tava sangrano bastante, porque eu tinha

arrancado esse pedaço do meu cabelo, um bocado, aí pegou eles me

levaram pro hospital. Isso foi muito ruim, porque na hora que eu ia pentear o

meu cabelo, num tinha o cabelo. Era muito ruim, tava doendo a minha

cabeça demais, demais, demais mesmo. Aí eu tava dano ataque de

epilepsia. O ataque era tão forte que quando eu dava o ataque tinha que

corrê comigo pro hospital. Eu acordava e desmaiava, acordava e desmaiava

e ficava assim. Aí até que um dia eu comecei a dar um negócio lá que

parecia que eu tava morreno, que eu perdi a respiração e comecei a fazê

aquela coisa assim, pareceno que era o último fôlego de vida. Aí correram

comigo pro hospital e os médicos lá conseguiram me voltá lá e graças a

Deus eu tô aqui.

P: - A4.

A4: É... O que que é pra falar mesmo?

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P: Quando você estava muito triste, angustiado, aqueles fatos do passado que

vocês contaram, o que você fez?

A4: - A minha mãe tinha separado do meu pai, aí foi lá… eu tava dano muito

trabalho pra minha mãe, ela falei assim: tô dano muito trabalho pra minha

mãe, então eu vô morar com o meu pai. Aí eu fui lá pra morá com o meu pai,

a minha mãe deixô, aí foi lá o meu pai num tinha dinheiro pra pagá a

passagem, porque era muito longe, ele mora em outra cidade e a passagem

é cara. Aí fui lá… falei assim, mas o que eu vô fazê, eu dô muito trabalho pra

minha mãe. Aí eu comecei a fica sozinho, comecei a andá, depois aí eu tava

andano com uns meninos lá... Tava brigano na escola, bateno nos meninos

tudo. Aí fui lá e falei assim, ah, num vô pará de anda com esses menino, aí

comecei a andá com meus amigo do bem, comecei a ficá na minha. Aí falei

assim: o bom é isso. Aí fui lá e pedi à minha mãe de novo pra morá com o

meu pai. A minha mãe deixô, o meu pai num tinha dinheiro pra pagá

passagem. Aí eu fiquei muito mal por causa disso, aí foi lá, a minha mãe falô

assim: ocê num vai morá mais com o seu pai não, ocê vai ficá aqui. Então foi

assim… a senhora é o meu pai e a minha mãe, aí eu fiquei muito triste

porque a minha mãe num deixou mais eu morá com o meu pai, fiquei lá perto

dela, falei com ela que eu amo ela muito, aí foi lá e a minha mente ficou

muito melhor, fiquei conversano muito com a minha família, relacionei muito

melhor com a minha família, falava os segredos tudo com a minha família, aí

foi lá… teve um dia que o meu pai foi lá em casa, falô que ia me buscá, aí eu

comecei a chorá e falei que num queria mais morá com ele não. Eu fui lá pra

casa da minha tia, corri pra lá, aí tinha uma planta lá que um dia a minha tia

e meu tio falô que a planta era venenosa, aí eu peguei um pedaço da planta,

na hora que eu ia colocá na boca assim, a minha tia viu e tomô da minha

mão. Aí eu escondi no banheiro, fiquei bateno na porta do banheiro, fiquei

fazeno um monte de negócio, aí a minha mãe foi lá e conversou comigo, aí

foi lá, eu parei.

P: - Quando você pegou essa planta, A4, o que você estava sentindo, o que você

tava pensando, como que foi?

A4: - Num sei. Tava sentino um negócio ruim. Parece que era minha vez de morrê

mesmo, tava dano muito trabalho pra minha mãe, vô morrê, vô ficá muito

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[palavra incompreensível]. Aí foi a hora que eu peguei a planta pra comê e aí

a minha tia foi lá e pegô da minha mão. Aí fui pro banheiro e fiquei lá.

P: - Então você queria morrer naquele dia.

A4: - Queria. Porque era a única forma de… eu num ia dá trabalho pra ninguém.

P: - E o que você estava sentindo? Assim, lá no seu coração, como o seu coração

estava?

A4: - Eu tava sentino muita dor. Parecia que a minha mãe e o meu pai num queria

mais que eu existisse, esse tipo de coisa. Eu ficava pensano nisso. Era o

único jeito.

P: - Você ficava pensando que a sua mãe e o seu pai num queriam mais que ocê

existisse.

A4: - É. Eu ficava pensano que dava muito trabalho pra minha mãe.

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ANEXO A – Parecer Consubstanciado do Comitê de Ética em Pesquisa

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