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OQUE ColeC;80 .:.. ': • Primeiros Passos 250 Relacionada ao surgimento da vida nas cidades, a cidadania significa m ultima instancia 0 direito a vida no sentido pleno. Este livro claro oportuno mostra queesse direita precisa ser construido coletivam nt , tanto na luta pelo atendimento d necessidades basicas (alimenta~a , moradia, saude, educa~ao) qual1t num plano mais abrangente, qu envolve a discusseo sobre 0 p do proprio homem no Univ r OQUEE CIDADANIA

Primeiros Passos - O que é Cidadania

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OQUEColeC;80 • .:..': • Primeiros Passos 250

Relacionada ao surgimento da vidanas cidades, a cidadania significa m

ultima instancia 0 direito a vidano sentido pleno. Este livro clarooportuno mostra que esse direita

precisa ser construido coletivam nt ,tanto na luta pelo atendimento d

necessidades basicas (alimenta~a ,moradia, saude, educa~ao) qual1tnum plano mais abrangente, quenvolve a discusseo sobre 0 pdo proprio homem no Univ r

OQUEECIDADANIA

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••••••Copyright © by Maria Lourdes Manzini Covre, 1991Nenhuma parte desta publica<;iio pode ser gravada,armazenada em sistemas eletr6nicos,/otocopiada.

reproduzida por meios mecilnicas ou outros quaisquersem autoriza<;iio previa do editor.

Primeira Edi<;iio, 19913" edi<;iio, 1995

10" reimpressiio, 2002

Prepara<;iio de originais: Rizzo e Arrutjiio Edi<;iioe PesquisaRevisiio: Rosemary C. Machado e Carmem T. S. CostaCapa e ilustra<;oes: Qu4tro Design - Claudio Ferlauto

10" reimpr. da 3" ed. de 1995.ISBN 85-11-01250-8

Primeira aproxima<;ao de cidadania . . . . . . . . . . . 7Origem da cidadania. ascensao da

burguesia e cultura burguesa ..... 16Marx e cidadania: nem oito, nem oitenta . 32Capitalismo monopolista e 0 usa da

cidadania .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38Welfare State e cidadania em parses como

o Brasil 50Cidadania, uma categoria estrategica para

uma sociedade melhor . . . . . . . 62Indica<;6es para leitura 76

Dados Intemacionais de Cataloga9ao na Publica9ao (CIP)(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Manzini Covre, Maria de Lourdeso que e cidadania I Maria de Lourdes Manzini

Covre. - Sao Paulo: Brasiliense, 2002. - (Cole9aoprimeiros passos ; 250).

indices para catalogo sistematico:

I. Cidadania : Ciencia politica 323.6

editora brasilienseRua Airi, 22 - Tatuape - CEP 03310-010 - sao Paulo - SP

Fone/Fax: (Oxxl1) 6198-1488E-mail: [email protected]

WW\1J. editorabrasiliense. com. brIivraria braslliense

Rua Emilia Marengo, 216 - TatuapeCEP 03336-000 - sao Paulo -SP - Fone/Fax (Oxxl1) 6675-0188

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Tem certos dias em que eu penso em minha genteE sinto assim todo meu peito se apertar

E ate parece que acontece de repenteComo um desejo de eu viver sem me notar

Igual a como quando eu passo num suburbiaEu muito bem vindo de trem de algum lugar

Af me dfi uma inveja dessa genteQue vai em (rente sem nem ter com quem contar

Me dfJ. uma tristeza no meu peitoFeito um despeito de eu nao ter como lutar

Gente Humilde, cangao deChico Buarque e Vinfcius de Moraes

Para Jose Fernandes, Creusa,Daniel e Andre

••••••

PRIMEIRA APROXIMA<::AoDE CIDADANIA

Ha algum tempo 0 tema cidadania passou a sermais ventilado no mundo contempor{meo, inclusive noBrasil. Ele aparece na fala de quem detem 0 poder po-litico (politicos, capitalistas etc.), na produgao intelectuale nos meios de comunica<;ao (radio, jomal, TV), e tam-bem junto as camadas mais desprivilegiadas da popu-la<;ao.

Nas decadas de 60 e 70, esse tema nao exercia 0

mesmo apelo. Ouvfamos entao falar de mudan<;a social,do modelo revolucionario russo ou do chines. Naquelaepoca, cidadania tinha uma conota<;ao pejorativa, espe-cie de engodo a "Ia democracia americana", que naolevaria a nada. Hoje, aqueles model os revolucionarios,tais como foram encaminhados inicialmente, mostram-se falidos. Novas propostas, de certa forma relaciona-das ao tema cidadania, pas saram sobre eles. Bonsexemplos sac a perestroika e a glasnost enquanto re-

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forma economica e abertura polftica na Uniao Sovieticae paises congeneres.

Assim, a cidadania e atualmente assunto de debatetanto na democracia ocidental quanta no socialismo doLeste, entre as classes abastadas e as menos abasta-das, e aparece na pauta de diversos movimentos so-ciais - que reivindicam saneamento basico, saude,educa<;ao, fim da discrimina<;ao sexual e racial. Recen-temente, tivemos no Brasil a experiencia da Constituinteque elaborou a Constitui<;ao de 1988, fixando um novoquadro de leis relativas aosdireitos e deveres dos ci-dadaos.

Mas de que cidadania fala cada um desses grupossociais, personagens que ocupam posi<;6es tao diferen-tes na sociedade? Alguns deles tem acesso a quasetodos os bens e direitos; outros nao, em virtude do bai-xo salario e do nao-direito a expressao, a saude, aeduca<;ao etc. 0 que e cidadania para uns e 0 que epara outros? E importante apreender de que cidadaniase fala. Tente responder voce mesmo: 0 que e cidada-nia? Podemos deli near concep<;6es diferentes e atemesmo opostas. You procurar compor adiante 0 quedistinguo por cidadania, resultado nao de uma apreen-sac estanque, mas de um processo dialetico em inces-sante percurso em nossa sociedade.

Fa<;amos uma primeira aproxima<;ao. 0 que e ser ci-dadao? Para muita gente, ser cidadao confunde-se como direito de votar. Mas quem ja teve alguma experien-cia polltica - no bairro, igreja, escola, sindicato etc. -sabe que 0 ato de votar nElOgarante nenhuma cidada-

nia, se nao vier acompanhado de determinadas condi-<;6es de nivel economico, politico, social e cultural.

Podemos afirmar que ser cidadao significa ter direi-tos e deveres, ser sudito e ser soberano. Tal situa<;aoest a descrita na Carta de Direitos da Organiza<;ao dasNa<;6es Unidas (ONU), de 1948, que tem suas primei-ras matrizes marcantes nas cartas de Direito dos Esta-dos Unidos (1776) e da Revolu<;ao Francesa (1798).Sua proposta mais funda de cidadania e a de que to-dos os homens sac iguais ainda que perante a lei, semdiscrimina<;ao de ra<;a, credo ou cor. E ainda: a todoscabem 0 dominio sobre seu corpo e sua vida, 0 acessoa um salario condizente para promover a propria vida,o direito a educa<;ao, a saude, a habita<;ao, ao lazer. Emais: e direito de todos poder expressar-se livremente,militar em partidos politicos e sindicatos, fomentar mo-vimentos sociais, lutar por seus valores. Enfim, 0 direitode ter uma vida digna de ser homem.

Isso tudo diz mais respeito aos direitos do cidadao.Ele tambem deve ter deveres: ser 0 proprio fomentadorda existencia dos direitos a todos, ter responsabilidadeem conjunto pela coletividade, cumprir as normas epropostas elaboradas e decididas coletivamente, fazerparte do governo, direta ou indiretamente, ao votar, aopressionar at raves dos movimentos sociais, ao partici-par de assembleias - no bairro, sindicato, partido ouescola. E mais: pressionar os governos municipal, esta-dual, federal e mundial (em nivel de grandes organis-mos internacionais como 0 Fundo Monetario Internacio-nal - FMI).

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Na realidade, essas propostas sac diffceis de seremefetivadas, pois quem detem 0 poder cuida de enca-minhar as coisas na diregao que atenda basicamenteaos seus interesses, e nao ao interesse de todos, ape-sar da aparencia contraria. Contudo, existe a Carta Uni-versal e ela transparece, em maior ou menor grau, nasConstituigoes de cada pais. A Constituigao e uma armana mao de todos os cidadaos, que devem saber usa-Iapara encamihhar e conquistar propostas mais igualita-rias. Por esse motivo, 0 que apresentei como direitos edeveres (conteudo do exercicio de cidadania) e algopossivel mas dependente do enlrentamento politico ado-tado por quem tem pouco poder. S6 existe cidadaniase houver a pratica da reivindicagao, da apropriagao deespagos, da pugna para lazer valer os direitos do cida-dao. Neste senti do, a pratica da cidadania pode ser aestrategia, por excelencia, para a construgao de umasociedade melhor. Mas 0 primeiro pressuposto dessapratica e que esteja assegurado 0 direito de reivindicaros direitos, e que 0 conhecimento deste se estenda ca-da vez mais a toda a populagao.

As pessoas tendem a pensar a cidadania apenas emterm os dos direitos a receber, negligenciando 0 fato deque elas pr6prias podem ser 0 agente da existenciadesses direitos. Acabam por relevar os deveres queIhes cabem, omitindo-se no sentido de serem tambem,de alguma lorma, parte do governo, ou seja, e precisetrabalhar para conquistar esses direitos. Em vez demeros receptores, sac acima de tudo sujeitos daquiloque podem conquistar. Se existe um problema em seu

bairro ou em sua rua, por exemplo, nao se deve espe-rar que a solugao venha espontaneamente. E preciseque os moradores se organizem e busquem uma solu-gao capaz de atingir varios niveis, entre eles 0 de pres-sionar os 6rgaos governamentais competentes.

Desse modo, pense que a cidadania e 0 pr6prio di-reito a vida no sentido pie no. Trata-se de um direitoque precisa ser construido coletivamente, nao s6 emtermos do atendimento as necessidades basicas, masde acesso a todos os niveis de existencia, incluindo 0

mais abrangente, 0 papel do(s) homem(s) no Universo.Para facilitar a compreensao, detalharei a cidadania

em term os de direitos civis, politicos e sociais. Essa di-visao serve apenas a analise; para que esses direitossejam eletivamente atendidos, eles devem existir inter-ligados. Por exemplo: 0 atendimento real dos direitossociais - e mesmo dos civis - depende da atuagaopolitica, isto e, de que vigorem os direitos politicos. Va-mos falar um pouco de cad a um desses direitos e desuas inter-relagoes.

Os direitos civis dizem respeito basicamente ao direi-to de se dispor do pr6prio corpo, locomogao, segurangaetc. Parece 6bvio que somos donos do nosso pr6priocorpo. Alinal, nao nos movimentamos por ele, dormi-mos e andamos nele? Mas, na realidade, esse direitoe muito pouco respeitado para a maior parte da popu-lagao mundial, inclusive a do Brasil.

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Tomemos, por exemplo, a experiencia brasileira dequase duas decadas de ditadura tecnoc;rata-militar. Foium periodq de anticidadania, de cerceamento da ex-pressao e da liberdade, de trancafiamento, de tortura emesmo de elimina<;:ao daqueles que se opunham a for-ma de pensar e agir entao dominantes. Isso e praticausual sob regimes ditatoriais - para nao lembrar oscampos de concentra<;:ao dos regimes nazi-fascistas, decerta forma reproduzidos na America Latina, nas ulti-mas decadas (e principal mente na Argentina), duranteditaduras militares.

Essa pratica tirEmica tambem ocorreu, destacadamen-te e em suas formas particulares, no socialismo doLeste: grande restri<;:ao a expressao e a locomo<;:ao ff-sica, existencia de campos de trabalho for<;:ados e dehospitais especiais para dissidentes. Hoje, como se sa-be, tal situa<;:ao se desmantelou.

Mas nem e precise ater-se aos regimes de exce<;:ao,as ditaduras. No Brasil da chamada Nova Republica, emesmo atualmente, assistimos a fen6menos que expli-citam a nossa nao-cidadania. Exemplo gritante: osEsquadroes da Morte, por meio dos quais a policia de-cide torturar ou matar os considerados marginais, numprocesso de "profilaxia social", considerando que deter-minados homens nao valem nada, nao passam de nu-meros;

o quadro torna-se mais grave quando refletimos so-bre qU8:m sac esses "marginais" - na maioria, a popu-la<;:ao advinda da c1asse trabalhadora, levada a margi-nalidade'devido a propria exclusao (e, portanto, repres-

rA~

sac) a que foi submetida pelo regime tecnocratico-mili-tar, cuja estrutura subjacente ainda nao se desfez.

Outre exemplo doloroso de nossa nao-cidadania: aexistencia de fazendas, principal mente nas regi6es Nor-te e Nordeste do pais, onde trabalhadores rurais sactratados como escravos, mantidos em regime de cer-ceamento, conforme denuncias feitas nos meios de co-munica<;:ao.

Ainda sobre 0 direito ao corpo, os direitos civis:quem disse que os trabalhadores escolhem onde vaocolocar as seus corpos e em que condi<;:oes e ritmosvaG trabalhar? 0 capitalismo contemporaneo, com umsistema de produ<;:ao baseado em tecnologia cada vezmais complexa, exige de corpos e mentes dos traba-Ihadores um esfor<;:o e um sofrimento desumanos. Valea pena assistir (au rever) ao filme Tempos Modernos(1936). Nele, Charles Chaplin nos mostra, com sensibi-lidade inigualavel e perspectiva tragic6mica, 0 sofrimen-to do trabalhador na fabrica: he'! a que vira "marginal",a que serve de cobaia para novas tecnologias e trata-mentos de saude, 0 que tem a sonho da casa propriaetc. Isso, na decada de 30. Imaginem hoje!

A luta pelos direitos civis de locomo<;:ao, de liberdadede expressao, tem side bastante intensa no mundo, in-clusive na America Latina. Mas ainda ha muito a fazerantes de se poder afirmar que esses direitos sac res-peitados. De qualquer forma, eles dependem da exis-tencia dos direitos politicos; estes, par sua vez, depen-dem da existencia de regimes efetivamente democra-ticos.

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Os direitos sociais dizem respeito ao atendimentodas necessidades humanas basicas. Sao todos aquelesque devem repor a forga de trabalho, sustentando 0

corpo. humane - alimentagao, habitagao, saude, educa-gao etc. Dizem respeito, portanto, ao direito ao traba-Iho, a um salario decente e, por extensao, ao chamadosalario social, relativo ao direito a saude, educagao, ha-bitagao etc. 0 que dizer do atendimento desses direitosno Brasil, quando se sabe que a maioria da populagaose encontra em situagao de clamorosa injustiga e po-breza?

Chamo a atengao para a importancia que assumiramos direitos sociais na etapa contemporanea; e precisa-mente sobre essesdireitos que os detentores do capitale do poder tem construfdo a sua concepgao de cidada-nia. Com ela, procuram administrar a classe trabalhado-ra, mantendo-a passiva, "receptora" desses direitos, quesupostamente devem ser agilizados espontaneamentepelos capitalistas e pelos governantes. Mas, ao mesmotempo, essa concepgElo de cidadania faz parte de umconjunto de modificagoes do capitalismo contemporaneoque pode acenar com uma sociedade melhor.

Se, de um lado, isso pode ser um engodo, de outropode vir a tornar-se realidade se os trabalhadores, ci-dadaos subalternizados, reverterem 0 quadro e procura-rem ocupar efetivamente os espagos acenados para osdireitos.

Direitos pollticos

Convem falar dos direitos politicos e, depois, retornaraos direitos sociais (ou mesmo civis), pois a Iigagao ouo desligamento entre os dois, a meu ver, levam a dife-rentes experiencias de cidadania.

Os direitos politicos dizem respeito a deliberagao dohomem sobre sua vida, ao direito de ter livre expressaode pensamento e pratica politica, religiosa etc. Mas,principal mente, relacionam-se a convivencia com os ou-tros homens em organismos de representagao direta(sindicatos, partidos, movimentos sociais, escolas, coneselhos, associagoes de bairro etc.) ou indireta (pelaeleigao de governantes, parlamento, assembleias), re-sistindo a imposigoes dos poderes (por meio de greves,pressoes, movimentos sociais). E, ainda, dizem respeitoa deliberagoes dos outros dois direitos, os civis e ossociais - esclarece quais sac esses direitos e de quemodo chegar a eles.

Em suma, esses tres conjuntos de direitos, que com-poriam os direitos do cidadao, nao podem ser des-vinculados, pois sua efetiva realizagao depende de suarelagao recfproca. Esses direitos, por sua vez, sacdependentes da co-relagao de forgas econ6micas e po-Ifticas para se efetivar. Nesse contexto esta a diffcil re-flexao: os direitos de uns precisam condizer com os di-reitos dos outros, permitindo a todos 0 direito a vida nosentido pleno - trago basico da cidadania.

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ORIGEM DA CIDADANIA,ASCENSAo DA BURGUESIA E

CULTURA BURGUESA

E onde esta a origem da cidadania? Atribui-se emprincipio a cidade ou p6lis grega. A p6lis era compostade homens livres, com participagao politica continua nu-ma democracia direta, em que 0 conjunto de suas vi-das em coletividade era debatido em fungao de direitose deveres. Assim, 0 homem grego livre era, por exce-lencia, um homem politico no sentido estrito.

A cidadania esta relacionada ao surgimento da vidana cidade, a capacidade de os homens exercerem di-reitos e deveres de cidadao. Na atuagao de cad a indi-viduo, ha uma esfera privada (que diz respeito ao par-ticular) e uma esfera publica (que diz respeito a tudoque e comum a todos os cidadaos). Na p6lis grega, aesfera publica era relativa a atuagao dos homens Iivrese a sua responsabilidade juridica e administrativa pelosneg6cios publicos. Viver numa relagao de iguais comoa da p6lis significava, portanto, que tudo era decidido

mediante palavras e persuasao, sem violencia. Eis 0

espirito da democracia. Mas a democracia grega ~rarestrita, pois incluia apenas os homens livres, deixandode fora mulheres, criangas e escravos.

Embora fossem escravistas, as sociedades grega eromana promoveram em suas cidades certo exerciciode cidadania. Contudo, no perfodo que vai do seculo Vao XIII, surgiu a sociedade feudal - que era rural. Fois6 com 0 desenvolvimento da sociedade capitalista (cujoinicio podemos talvez situar no seculo XV), com a lon-ga ascensao da burguesia em luta contra 0 feudalismo,que se retorna pouco a pouco ao exercfcio da cidada-nia, como parte da existencia dos homens vivendo no-vamente em nucleos urbanos.

Para uma primeira aproximagao, vale a pena retroce-der as revolugoes burguesas, particularmente a Revolu-gao Francesa. Com elas, estabelecem-se as CartasConstitucionais, que se opoem ao processo de normasdifusas e indiscriminadas da sociedade feudal e as nor-mas arbitrarias do regime monarquico ditatorial, anun-ciando uma relagao juridica centralizada, 0 chamadoEstado de Direito. Este surge para estabelecer direitosiguais a todos os homens, ainda que perante a lei, eacenar com 0 fim da desigualdade a que os homenssempre foram relegados. Assim, diante da lei, todos oshomens passaram a ser considerados iguais, pela pri-meira vez na hist6ria da humanidade. Esse fate foi pro-c1amado principalmente pelas constituigoes francesa enorte-americana, e reorganizado e ratificado, ap6s a IIGuerra Mundial, pela Organizagao das Nagoes Unidas

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(ONU), com a Declara<;ao Universal dos Direitos do Ho-mem (1948).

Lembre-se, aqui, a importancia de uma constitui<;ao.E um documento que limita 0 poder dos governantes econdensa a ideia dos direitos e da cidadania, unico ins-trumento nao-violento para a seguran<;a dos cidadaos,que nao podem ser tratados arbitrariamente. Os ho-mens de uma sociedade mantem-se como cidadaos amedida que partilham as mesmas norm as e podem lan-<;ar mao delas para se defender. Constitui<;ao violada'significa cair na tirania e no arbftrio dos que tem 0 po-der economico e/ou politico.

Detenho-me na ascensao da burguesia (antes, oscomerciantes) para entender melhor a restaurac;ao dosdireitos (da cidadania) e, agora, da extensividade a to-dos os homens - ainda que perante a lei.

Se foi com as revolu<;6es burguesas que a burguesiatomou 0 poder estatal, e se loi com a Revoluc;ao Fran-cesa que se instauram de vez a burguesia como c1assedominante e 0 capitalismo como forma de produzir e vi-ver, como situar a questao do Estado de Direito e dacidadania? Como intrinsecamente burguesa? Respondocom um sim e um nao ...

Nao, se identificarmos esses resultados como con-quista da burguesia - que se processa no longo pe-riodo de transi<;ao entre 0 feudalismo e 0 capitalismo -por valores universais, quando carrega todos os seg-mentos subalternizados (camponeses, artesaos etc.), 0

chamado terceiro estado, para a revolu<;ao.

Sim, se nos ativermos a concepc;ao do Estado deDireito, de cidadania, depois que a burguesia se trans-forma em classe dominante, principalmente depois queNapoleao Bonaparte torna-se imperador, difundindo 0capitalismo pelo mundo, a partir do seculo XIX.

Vou me deter agora sobre 0 que permite identificarcidadania de conteudo mais universal com a burguesia,que estava no longo processo de transforma<;ao do feu-dalismo para 0 capitalismo. Para essa fase, estareiusando precariamente a nomenclatura capitalismo emforma<;ao ou primeira etapa do capitalismo, pois nao sepode considera-Ia capitalista no sentido estrito. Nesseperiodo, a burguesia tinha um carater revolucionario eera for<;a construtiva de uma estrutura que inclui 0 de-senvolvimento das cidades e, depois, das nac;6es.

Para haver na<;ao, era precise que a burguesia pro-movesse a unifica<;ao de regi6es, rompendo a organiza-Ciao descentralizada dos feudos. A desagregac;ao dofeudalismo variou de regiao a regiao da Europa, emquestao de seculos. A unifica<;ao de Portugal e a da Es-panha, por exemplo, se realizaram antes que a daInglaterra e da Franga; suas revolug6es burguesas sederam ainda em fins dos seculos XIV e XV. Foi porisso mesmo que Portugal e Espanha, com essa orga-nizagao centralizada nacionalmente, puderam langar-seaos mares na conquista de novos continentes.

Essas duas nag6es parecem ter liderado a fase deformagao do capitalismo: a acumulagao do capital emnivel de capital comercial. A unificagao - e, depois, re-volugao burguesa - ocorreu na Inglaterra apenas no

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fim do seculo XVII, com a Revolu<;ao Gloriosa de 1688,quando' 0 rei Jaime II foi decapitado e teve infcio a erado poder parlamentar. Foi com ela que 0 processo ca-pitalista adquiriu maior significa<;ao, sendo completadoum seculo mais tarde com a Revolu<;ao Francesa, em1789.

Contudo, mesmo antes de criar a na<;ao, a burguesiavinha constituindo a cidade e, com isso, um tipo espe-cffico de viver - 0 urbano - e de homem - 0 cida-dao. Esse longo processo fez-se at raves dos seculos.

Quero assinalar 0 duplo recorte da ascensao do ca-pitalismo, que identifica 0 seu aspecto contraditorio. Deurn lado, trata-se do processo - 0 mais avan<;ado quea humanidade ja conheceu - de safda do imobilismoda sociedade feudal. Nessa evolu<;ao, despontou a ci-dadania, em sua proposta de igualdade formal para to-dos. De outro lado, porem, delineia-se p processo deexplora<;ao e domina<;ao do capital.

Cada um desses recortes permite uma concep<;ao decidadania. Mas e diffcil demarcar uma e outra, porqueesses recortes se sobrepoem um ao outro em diferen-tes momentos historicos, num debate continuo de apro-xima<;ao e contrarios, de evolu<;ao e de explorac;ao.

De momento, abordo aqui mais 0 carater de evolu-<;ao, a proposta emancipatoria contida nas revolu<;oesburguesas. Mas por que a Revolu<;ao Francesa nostrouxe a proposta de cidadania, de igualdade de todos,ainda que somente perante a lei? Porque ela significou

um rompimento profundo com 0 direito obtido pelo nas-cimento, caracterfstico da sociedade feudal.

o Estado de Direito coloca-se como 0 oposto aoEstado de Nascimento, ao Estado Despotico, ate entaoexistente sob a regencia da aristocracia. Neste ultimo,a sorte dos homens podia ser decidida arbitrariamente;nao havia como se opor a morte ou a outras imposi-c;oes. Assim 0 foi tambem, de forma diferente mas tira-nica, na Idade Media. Na sociedade feudal, os servose os camponeses eram tratados como gada, agregadosa gleba; nao tinham escolha sobre seus destinos, nemarbftrio sobre seus valores. Se, sob 0 Estado Monarqui-co, os camponeses e os trabalhadores ja desfrutavamcerta Iiberdade de locomo<;ao e algum desfgnio de suasvidas, estavam contudo submetidos aos desejos do mo-narca e nao tinham como defender sua seguranc;a pes-soal. Tudo isso mudou com 0 surgimento do Estado li-beral burgues, quando a burguesia instaurou 0 Estadode Direito.

Assim, creio que uma forma de compreender a cida-dania ever como ela se desenvolve juntamente com 0capitalismo, pois estara tambem vinculada a visao dac1asse que 0 instaurou: a classe burguesa.

Toda essa revoluc;ao comec;ou, de certa forma, coma valorizac;ao do trabalho. Na Idade Media, 0 trabalhoera desprestigiado, indigno mesmo de um cavalheiro,de um nobre. Com a ascensao da burguesia, 0 surgi-mento das cidades e da vida urbana, despontam os ci-dadaos que trabalham, fazem comercio, desenvolvem 0

sistema fabril e administram a coisa publica em term os

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de direitos e deveres - resultado de um longo proces-so de oposic;ao ao imobilismo e dogmatismo da Igrejae nobreza da sociedade feudal.

Essa valorizac;ao do trabalho - primeiro marco paraa existencia de cidadania - pode ter sua origem data-da com as revoltas religiosas e a revoluc;ao protestanteno seculo XIV. Se com Lutero (1483-1546) tivemos asprimeiras disputas, foi com Calvi no (1509-1564) e a eti-ca protestante que se desenvolveu e sistematizou essavalorizac;ao do trabalho. Nao havia mais como assegu-rar 0 plano divino com a compra de indulgencias (pe-dac;os do Ceu) pelos ricos em doac;6es a Igreja, comoacontecia antes. 0 Reino dos ceus ja cabia aos pobrespelo seu sofrimento.

Com a "revoluc;ao" protestante, todo esse esquemase esvaiu. Nao havia mais salvac;ao assegurada. Comoja nao se sabia quem estaria entre os escolhidos, 0que se podia fazer era seguir a etica religiosa, na ten-tativa de estar entre os que seriam salvos. E a etica di-zia que 0 homem devia trabalhar, e nao trabalhar portrabalhar, mas faze-Io produtivamente (ao contrario, por-tanto, do desprestfgio do trabalho na sociedade feudal).Isso porque 0 homem seria 0 administrador e criadordos bens divinos na Terra. Eis a etica que influencioutodo 0 comportamento do burgues e empresario no inf-cio do capitalismo: leva a uma ideologia que e a pr6-pria mola da acumulac;ao do capital. Assim, 0 empresa-rio deve trabalhar, viver asceticamente e acumular.

Nesse contexto, surge a ciencia experimental, quedepende do trabalho. Pode-se ter em Galileu Galilei

(1564-1642), juntamente com Descartes (1596-1650),um marco da revoluc;ao no pensamento. Na visao cle-rical, a Terra era im6vel, assim como as estrelas numaab6bada celeste e todo 0 Universo. De acordo· com es-se esquema, a Terra era 0 centro do Universo, assimcomo a Igreja - enquanto centro do poder - era 0centro da. Terra. Ate entao, na Idade Media, a Igrejadispunha de todo 0 poder. 0 que aconteceu quandoGalileu afirmou que as estrelas nao eram im6veis eque a Terra nao era 0 centro do Universo? Rompeu-seo poder da Igreja: tirando a Terra do centro do Univer-so, a Igreja foi deslocada do centro da Terra, ou seja,abalou-se a sua racionalidade e, portanto, 0 seu poder.Passou-se, entao, da racionalidade da Igreja para umanova racionalidade a nortear os homens e que permitiu,em sua evoluc;ao, a retomada da ideia de cidadaniasurgida com os gregos.

Acenou-se, de certa forma, com a pro posta que sur-giria seculos depois, sobre a possibilidade de todos oshomens serem iguais, ainda que apenas perante a lei.A concepc;ao de que todos os homens podem seriguais pelo trabalho e pela capacidade que tem - eisaf a visao de mundo burguesa, que preza 0 individua-lismo e um tipo de cidadania.

Cultura burguesa econcep~ao de cidadania

Com a ascensao do capitalismo e,.portanto, da bur-guesia, desenvolveu-se uma visao de mundo e uma

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forma de viver distintas daquelas da sociedade feudal- enfim, uma nova racionalidade, uma nova ideologia.

Em primeiro plano, a ideologia ·13 composta de ideiasque, por sua vez, expressam valores capazes de seremincorporados pelos indivfduos ou pelos grupos de indi-vfduos no decorrer de sua vida. Isso se realiza pelaeducac;ao, pela vida em sociedade, e 13 0 que orientao comportamento de indivfduos e grupos. Todos os in-divfduos e grupos possuem ideologias que Ihes permi-tem orientar-se em tal equal sociedade, pois compor-tam a explicac;ao de si proprios e das coisas do mundoem que vivem. No sentido mais amplo, pode-se com-preender a ideologia como uma concepc;ao de mundo,expressao cultural de uma epoca cujo interior pode serformado por muitos veios, mesmo contraditorios - seconsiderarmos que a ideologia 13 a expressao do emba-te entre varias formas de pensar e agir dos grupos queformam a sociedade.

Por exemplo: a concepc;ao de direitos humanos con-tida na luta da burguesia e do resto do terceiro estado(camponeses, artesaos, "povo") vai redundar em concei-tos e praticas diferentes. 0 "povo" concebia esses direitosextensivos a proprietarios e a nao-proprietarios. A bur-guesia, deixando de ser revolucionaria (e deixando deser terceiro estado) para tomar-se 0 grupo vencedor eque esta no poder, vai vincular direitos humanos so-mente aqueles que tem propriedade.

E com esse conceito de ideologia e de embate emseu interior que pode ser entendida a visao de mundoburguesa, cuja formac;ao demorou seculos. A base de

sua inspirac;ao estava na releitura dos classicos (gregose romanos), que teve sua grande expressao na Renas-cenc;a, apreendendo tudo 0 que de melhor houve nahumanidade. Ao mesmo tempo, foi se compondo umaexplicac;ao de mundo que permitiria a dominac;ao degrupos da burguesia. E por isso que determinadas for-mulac;oes de cidadania manterao 0 seu carater univer-sal e outras mais 0 carater de prover a dominac;ao.Quando temos um conceito de cidadania vinculado re-ciprocamente a propriedade, trata-se da cidadania maisformal, a que serve a dominaC{ao. Num tipo de cidada-nia mais efetivo, os direitos sac extensivos, quantitativae qualitativamente, a todos.

A visao de mundo burguesa foi formada por intelec-tuais. 0 trac;o mais ou menos comum a todos eles erao de rebaterem a concepc;ao basica da visao de mundofeudal (0 direito pelo nascimento), contrapondo a este 0

estado natural em que todos os homens nascem Iivrese com direitos. Todos, em principio, estarao abarcandoa questao da cidadania, por construC{oes diversas. Youme deter um pouco em Locke, Rousseau e Kant parafacilitar a compreensao do tema.

No Segundo Tratado sabre a Governo, de Locke(1632-1704), ha uma composic;ao de cidadania que per--mite uma interpretac;ao de como ela p6de servir paralegitimar a explorac;ao que os burgueses farao sobre ostrabalhadores. Retomo uma ideia de Locke que me pa-rece importante destacar, sobre a propriedade do cor-po: cada um tem uma propriedade em seu propriocorpo que so a ele diz respeito.

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Entretanto, essa ideia vai adquirindo outra conotac;ao.Trabalhando 0 vfnculo de propriedade do corpo e cida-dania, Locke 0 faz de tal forma que passa a indicarquem, segundo ele, tem a propriedade do proprio corpoe, portanto, quem e real mente cidadao. Ele afirma quea propriedade nao e exatamente 0 corpo, mas 0 frutoque 0 corpo produz pelo trabalho ao se apropriar danatureza. E argumenta que essa apropriac;ao nao pre-cisa do consentimento expresso de todos os homens.Para Locke, 0 que e meu nao e so 0 que retiro da na-tureza por mim mesmo, mas tudo aquilo retirado danatureza por meu cavalo, por meu criado. Aqui, ele co-mec;a a deli near os cidadaos e os nao-cidadaos, osque tem propriedade do corpo e os que tem 0 corpomandado.

Locke vai assim, pouco a pouco, esvaziando a pos-sibilidade de sua afirmac;ao inicial, de que todos temuma propriedade no proprio corpo. Em certo momentado texto, ele sai a busca da autoridade para essa apro-priac;ao e argumenta que 0 direito a ela pertence aque-les, conforme suas palavras, que sac os mais diligentese racionais, em vez de preguic;osos e incapazes. Estaaf perfilada a ideologia capitalista - da lei dos maisaptos e da competic;ao -, possibilitando a explorac;aode grupos de homens por outros. Assenta-se af, tam-bem, uma construc;ao da cidadania que desenha a de-sigualdade.

Por outro lado, encontramos em Rousseau (1712-1778) uma construc;ao de cidadania bem diferente, queaponta nao para a explorac;ao, mas para relagoes mais

justas entr8 os homens. Em 0 Contrato Social, ele sediz -em busca do regime polftico legftimo. Nenhum ho-mem tern autoridade natural sobre seu semelhante, ar-gumenta Rousseau; a forc;a nao produz nenhum direito.E um alerta contra 0 despotismo e a tirania. Nos car-ceres, continua ele, vive-se com tranquilidade, mas issoe suficiente para nos sentirmos bem? Renunciar a Iiber-dade e, para 0 homem, renunciar a sua qualidade dehomem, aos direitos da humanidade e aos proprios de-veres. Rousseau fez um certo tragado de cidadania,com suas contradigoes, mas que elimina a possibilidadede explorac;ao, de dominac;ao de homem sobre homem.

Ha uma sfntese da proposta dessa convivencia de-mocratica em seu 0 Contrato Social, que e a propriasfntese do contrato entre os homens para que isso serealize preservando-se os direitos e deveres de todos:"Encontrar uma forma de associagao que defenda eproteja com toda a forc;a comum as pessoas e bens decad a associado e pela qual, unindo-se a todos, so obe-dece todavia a si proprio e permanece tao livre quantaanteriormente".

Rousseau fala de uma democracia direta, da qual to-dos participariam. Sei que e diffcil entender esse racio-cfnio, pois so conhecemos a democracia formal, emque somos representados no poder pelos deputados,presidente etc. que elegemos. Pode existir, contudo, aadministrac;ao da coisa publica de modo direto em for-mas fragmentarias: na gestao de uma escola, sindicato,hospital ou de uma organizac;ao qualquer.

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Um tra«o importante na concep«ao de cidadania deRousseau 'e a preocupa«ao em nao separar a igualda-de (mais ligada ao aspecto economico) da liberdade(cujo vinculo e mais politico), Isso fica mais claro quan-do ele reitera que nenhum homem pode ser tao rico aponto de sua posi«ao Ihe permitir comprar 0 outro, etampouco um outro tao pobre a ponto de se vender.

Rousseau apresenta posi«ao oposta a de Locke, aoelaborar uma precau«ao contra a explora«ao de unspelos outros, e tambem no modo pelo qual toma 0exercicio. da cidadania, entremeado no nivel economicoe politico, sem disjun«ao entre liberdade e igualdade.

Detenho-me ainda sobre Kant (1727-1804), particular-mente sobre 0 seu texto Da Paz Perpetua, para verificarcomo ele situa 0 Estado de Direito e, consequentemen-te, a sua concep«ao de cidadania. Assume importElnciacrucial a questao do Estado de Direito no pensamentbkantiano, que abrange nao so 0 relacionamento entreindividuos, mas tambem a rela«ao dos estados nacio-nais entre si. Para Kant, e 0 Estado de Direito que po-de assegurar 0 desenvolvimento pacifico necessario aoprogresso da humanidade, sem retornar a barbarie pri-mitiva. E 0 instrumento pelo qual se pode viver civiliza-damente. Kant afirma que 0 desenvolvimento da histo-ria humana depende do desenvolvimento da historia dasociedade juridica.

Acredito que, como eu, voce tambem alimente umcerto ceticismo e pessimismo em rela«ao as leis. Con-tudo, a Estado de Direito, 0 governo pelas leis, foi umaconquista historica e deve ser irreversivel da humanida-

de: Com toda a sua ambiguidade, a lei pode ser tam-bem instrumento da maioria dos cidadaos. E precisoutilizar-se dela, ajuda-Ia e construi-Ia da melhor formapossive!. Mas nao devemos ser ingenuos e acreditarque a luta pela cidadania se restringe as leis, emboraelas Ihe sejam essenciais. As leis saG instrumentos im-portantes para fazer valer nossos direitos, ainda quepor meio de inumeras press6es sociais. E, quanta maisa sociedade evolui, mais os homens serao capazes deIidar com as conflitos pela palavra, conforme 0 espirito dapolis grega.

Acho importante essa dimensao de os homens luta-rem par leis justas. Elas saG a sedimenta«ao de outraslutas e de certa estrutura«ao da cidadania - que, porsua vez, esta sempre em processo. So as leis naoconstroem a cidadania, mas e importante que as ho-mens comuns, os trabalhadores, se apropriem tambemdo espa«o para a constru«ao de leis favoraveis a ex-tensao da cidadania.

A semelhan«a de Rousseau, Kant fala no cidadao eno sudito. Estes devem obedecer as normas da leimas, enquanto homens que raciocinam, devem faze~usa publico da propria razao e estar num processocontinuo de critica as leis, se consideram que elas SaGinjustas, para que exista um processo tambem continuode reformula«ao desse Estado de Direito.

Analisando, portanto, esses tres teoricos da culturaburguesa, podemos inferir linhas distintas para pontearuma concepc;:ao de cidadania. Quero conciuir que a ci-dadania nao e uma categoria burguesa no sentido estri-

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to. E uma categoria que pode tambem ser elaborada,apropriada e utilizada pelos trabalhadores, como 0 foipela burguesia revolucionaria e, depois, pela burguesiadominante no sentido que Ihe conveio, e novamentereedificada em nosso seculo pelos capitalistas tecnocra-tas. A bem da verdade, ressalte-se que a cidadania po-de ser reedificada pelos trabalhadores mais no seusentido universal, pois so assim servira de fato a eles.Isso depende de uma luta continua e efetiva para fazervaler universalmente os direitos civis, sociais e politicos.E uma reedificac;ao da apropriac;ao historica, que temsua genese na polis grega, ainda que restrita aos ho-mens livres, mas que interessa como qualidade de oshomensdecidirem sobre suas proprias vidas, e que seuniversaliza, com a Revoluc;ao Francesa, enquanto pro-posta de governar com uma Constituic;ao e de enfasena atuac;ao da esfera publica.

Uma constituic;ao esta assentada em tres poderesque devem ser independentes: executivo, legislativo e

. judiciario. 0 Poder Executivo refere-se ao exercfcio dopresidente na execuc;ao dos projetos politicos e leis, de-correntes de debates e formulac;6es de deputados e se-nadores no ambito do Poder Legislativo, ratificados (ounao) e fiscalizados, enquanto leis, pelo Poder Judiciario.Quero recordar tambem um quarto poder hoje em vigor:o da imprensa e dos meios de comunicac;ao em geral,fundamentais para a formac;ao da opiniao publica nomundo atual. Esse quarto poder e tambem atravessadopela ambiguidade do capitalismo. De um lado, porexemplo, denuncia 0 caso Watergate e provoca a que-

da do presidente dos EUA, Richard Nixon (1974). Poroutro, boicota certos avanc;os democraticos ao omitir fa-tos, distorcer outros etc. Enquanto as gest6es tecnocra-ticas se servem bem dele para sua propaganda, asgest6es democraticas as vezes podem ter suas realiza-c;6es boicotadas.

Os trabalhadores devem estar atentos ao papel quepodem desempenhar em todos esses poderes, paramelhor construir a cidadania e estende-Ia a todos os ni-veis possiveis. Assim, ela pode ser de uso muito impor-tante para os trabalhadores. Contudo, sua face de ca-tegoria burguesa deve ser controlada e criticada. paraque exista a cidadania efetiva. Vamos encontrar nomarxismo a melhor crftica a esse ponto.

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MARX E CIDADANIA:NEM OITO, NEM OITENT A

o marxismo contribui bastante para a construgao doconceito de cidadania, ao criticar 0 uso dos direitos pe-la burguesia para dominar os outros grupos sociais.

Pode-se imaginar 0 marxismo como um corpo teoricoque deseja revolucionar, transformar a sociedade bur-guesa vigente de entao, que explora e domina, para re-tomar os caminhos universais de seus primordios - avisao do trabalho como algo que liberta. 0 marxismose propoe tambem a lutar contra a transformagao doproprio trabalho em arma de opressao e exploragao.

Como que assumindo a posigao de quem foi veneidonesse processo, Marx (1818-1883) avanga na questaoda cidadania ao indicar as contradigoes que devem sersuperadas. Melhor que ninguem, esclarece como ostrabalhadores sac obrigados a se submeter as condi-goes de exploragao do capital. Aparentemente, 0 traba-Ihador vende sua forga de trabalho em troca de bens

que suprem sua vida. Mas nao escolhe quanta e em quecondigoes vai trabalhar. E tudo 0 que faz, na maioriados casos, nao Ihe da 0 retorno esperado: a alimenta-gao, educagao e saude necessarias a sua familia, a ha-bitagao digna etc.

Marx denuncia, de forma mais funda que qualqueroutro teorico, a exploragao do capitalismo - seja a daacumulagao primitiva, seja a exploragao das condigoese da extensao da jornada de trabalho a que sac sub-metidos os operarios. Para existir, 0 capitalismo preci-sou (e precisa) de uma grande acumulagao de capital,obtida com os saques das riquezas dos povos dasAmericas, das Indias, e com intensa expropriagao dostrabalhadores por meio de um trabalho de baixfssimaremuneragao. E, alem disso, forgando com medidasestatais a falencia de pequenos proprietarios rurais,obrigados entao a mudar-se para a cidade e se vendercomo forga de trabalho, unico bem que passavam apossuir. Todas as bandeiras da Revolug8.o Francesa -e de todas as revolugoes burguesas: Iiberdade, igualda-de, fraternidade - podem parecer quimera, diante daquantidade de sangue, musculos e cerebros sugadospara a construgao da sociedade burguesa, do capita-Iismo.

E 0 marxismo que propoe a revolugao socialista nasua forma mais bem acabada: a administragao da so-ciedade pela classe trabalhadora, que toma 0 poder eplaneja 0 .acesso de todos ao trabalho e aos bens ne-cessarios a vida.

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Num segundo momento, nao haveria, portanto, c1as-se nenhuma, porque topos participariam da gestao dasociedade, partilhando equiparadamente os bens econo-micose .0 prestfgio polftico - fruto de uma construgaodemorada de todos para todos. Essa e uma imagem dosocialismo ideal. Nao devemos confundi-Io com 0 socia-lismo desenvolvido no Leste europeu, destrufdo pelaspr6prias mazelas.

Na etapa contemporanea, e precise ler com cuidadoo ponto em que Marx toca na reprodugao da explora-gao no Estado; bastaria tomar 0 Estado para comegara reformulagao de todo um modo de vida.A exploragaose reproduz em parte, porque 0 Estado aparece comoaquele que defende 0 interesse de todos, mas primor-dial mente os interesses de quem tem 0 poder. Essa re-produgao tinha mais validade na epoca hist6rica emque Marx viveu, no seculo XIX. Pensar 0 Estado hojee pensa-Io no seu sentido amplo, que vai muito alemdo Estado no sentido estrito, ocupando outros espagosem relag6es sociais no sindicato, bairro, escola etc.

Hoje, a luta entre trabalhadores e capitalistas se da,de certa forma, pelos espagos do e no pr6prio Estado.Oaf a conveniencia de adotar a cidadania como catego-ria estrategica dessa luta. A valorizagao da luta pelosdireitos. E mesmo a recente experiencia do Leste ilus-tra como as pessoas sobreviveram apegando-se a essaconquista, que deve ser irreversivel: a questao dos di-reitos do cidadao contra a opressao stalinista e, ate hapouco tempo, contra os campos de concentragao, oshospitais de dissidentes etc.

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Apreenda-se a ambivalencia do capitalismo: de umlado, exploragao e desigualdade; de outro, caminhandoconcomitantemente, 0 aceno a igualdade e a constru-gao da cidadania mais plena. Uma vez legislados os di-reitos (civis, politicos e sociais), eles tornam-se reivindi-caveis pelos cidadaos, que podem lutar para realiza-Iosefetivamente. A forga de trabalho, essa mercadoriaespecial, pode pressionar de diversas formas e fazervaler esses direitos.

Retiramos do proprio marxismo esse jogo de possi-.bilidades: os homens fazem a historia, mas sob deter-minadas condig6es. Para manter-se 0 mais fiel as pro-posigoes de Marx, e precise nao pender para nenhumdos lados.

Assim, embora os homens estejam limitados em suaevolugao pelas condigoes existentes, sac esses mes-mos homens quevao criar outras condig6es - e, dian-te dessas novas condig6es, deverao tambem ser novoshomens. Do contrario, a Historia vai emperrar. Veja-se,por exemplo, a posigao da ciasse burguesa depois doperfodo revolucionario, tornando estanque 0 avango dasestruturas, em luta permanente contra a nova forga queavanga, os trabalhadores. Vejam-se, tambem, as revolu-g6es socialistas que mudaram grande parte das estrutu-ras, mas que depois nao se permitiram avangar plena-mente em nfvel cultural; restaram mentalidades velhaspara uma nova estrutura, que caducou. Hoje, essespafses renovam-se, abrindo-se para 0 exterior em bus-ca de novos caminhos. A mudanga entre estrutura e

. sujeitos e complexa; tanto um quanta 0 outro mudam-

se reciprocamente, e e preciso, de forma contfnua,aprender-se 0 novo, a nova estrutura, 0 novosujeito.

Tomando como panorama de fundo aspectos da cul-tura burguesa (e, em seu extremo, do marxismo), gos-taria de pensar uma concepgao de cidadania plena -ao nfvel econ6mico, politico, social, cultural. E que secoadune com a construgao de uma sociedade mais de-mocratica. Nao pode haver cidadania se nao houverum s.alario condigno para a grande maioria da popula-gao. 0 trabalhador, enquanto mercadoria, deve lutar pa-ra obter certa equivalencia na troca estabelecida com 0

capitalista e 0 Estado. E precise que ele tenha acessoaos bens que complementam sua vida (habitagao, sau-de, educagao) e que comp6em os chamados direitossociais. Mas, antes, e necessario que os trabalhadorestenham direitos politicos, e que existam minimas condi-goes democraticas para reivindicar 0 seu direito de sercidadao e de, enquanto tal, poder batalhar, por quais-quer de seus direitos. Por outro lado, e precise que es-ses trabalhadores possam ser educados sobre a exis-tencia desses direitos, venda dessa forma a amplidaodo que ha para construir em term os de uma sociedadesempre melhor.

Essa concepgao de cidadania mais plena esta sem-pre ameagada pelo conceito de cidadania mais esva-ziada, calcada no consumo e em certo imobilismo,acenada pelo capitalismo dos oligopolios e seduzindo atantos. A seguir, veremos 0 embate entre a concepgaode cidadania e 0 exercfcio possivel da cidadania na erados oligopolios.

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CAPITALISMO MONOPOLISTA Eo usa DA CIDADANIA

Convencionou-se chamar de monopolista a etapacontemporanea do capitalismo, embora 0 termo maiscorreto seja oligopolista - ou seja, a era das grandesempresas, de centralizac;ao do capital e de poder. Issoimplica uma forma bastante nova de viver, tendo emmente a evoluc;ao do capitalismo em suas etapas ante-riores, a mercantilista e a liberal.

Em cada uma dessas etapas, a ideologia capitalistaparece haver acenado com aspectos da cidadania,sempre atravessados pela sua dubiedade caracteristica:apontando para a melhoria nas condic;oes de vida dostrabi:l.lhad6res, mas guardando 0 carater de como explo-rar esses trabalh~dores.

Essa dybiedade pode ser notada no embate de vi-sao entre 'OS grupos fundamentais, os capitalistas (an-

tes, diriam-se burgueses) e os trabalhadores (antes,proletariado), no interior da chamada cultura burguesa,prevalecendo obviamente a visao dos capitalistas, poisos trabalhadores estao subalternizados. Devemos estaratentos a orientagao que esse embate da a praticas so-ciais, econ6micas e polfticas. 0 desenlace que leva auma situagao melhor para os trabalhadores e, portanto,para uma nova sociedade (pois sempre que os traba-Ihadores dao um passe a frente toda a sociedade tam-bem 0 faz, se reedificando), depende dessa luta no in-terior do capitalismo, da cultura burguesa e do Estado,que e tambem responsabilidade deles.

Essa relagao fundamental entre uns e outros nao po-de ser pensada de um s6 lade: cada vez que um dosp610s age de determinada forma, 0 outro tambem semodifica. Os trabalhadores, por exemplo, sofreram in-tensa exploragao no seculo XIX; para sobreviver, rea-gindo a essa exploragao, conseguiram com muita 'difi-culdade se organizar em corporagoes - sindicatos quepressionaram os capitalistas a diminuir a jornada detrabalho, aumentar os salarios e, assim, melhorar ascondic;oes de vida. 0 capital reagiu a ofensiva operariacriando mais e mais tecnologia para diminuir sua de-pendencia dos trabalhadores. Entao, os trabalhadoresprocuram se atualizar em sua1t'C"elagaocom a tecnolo-gia. Os capitalistas acenam com 0 processo participati-vo de lucros de empresa, para neutralizar a ofensivatrabalhista. Os trabalhadores precisam estar atentos pa-ra nao serem ludibriados. E assim continua a luta ...

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Tudo isso valoriza mais uma vez a categoria cidada-nia como estrategia de luta para uma nova sociedade.Os trabalhadores devem estar sempre em pugna parseus interesses e direitos - e a primeira exigencia pa-ra isso e a manutengao de condigoes democraticas mf-nimas, acompanhadas de uma boa Constituigao e degovernantes que a respeitem. Luta que inclui pressoes,greves e desobediencia civil, se necessario, mas com 0

fim de manter 0 processo civilizatorio contra um proces-so anarquico e barbaro, que pode par abaixo conquis-,tas anteriores. Esse processo de resolugao de conflitostorna-se imposslvel, contudo, em determinadas regioesdo mundo, como no Vietna e na Nicaragua, cujos gru-

'pos dominantes destrufam toda a lavoura, parte da edi-ficagao social desses povos. Em tais casos, nao ha co-mo revidar a nao ser com a luta armada, se possivelsob normas juridicas internacionais. Mas a luta armadadeve ter como objetivos a negociagao e 0 restabeleci-mento de condigoes democraticas minimas para que osgrupos possam viver sob controle de leis, civilidade eexercicio de cidadania.

Foi no seculo XX, em torno das Guerras Mundiais,que 0 embate entre capital e trabalho assumiu form asdistintas das anteriores e se projetou com a proposta"socializante" do Welfare State ou Estado do Bem-Estar. Veremos como isso se reflete na propria explo-ragao elou libertagao do trabalhador, nao mais so emtermos de fabrica, mas na sua relagao com 0 Estado.

A etapa mercantilista ou manufatureira e consideradapor alguns teoricos uma fase de transigao do feudal is-

mo para 0 'capitalismo. 0 Estado era monarquico mas,de certa forma, regia em lugar da burguesia. Naqueleperiodo, ja se acenava com a ideia de cidadania maisgenerica, no sentido de valorizagao do trabalho - aideologia de que 0 individuo possui a propriedade doproprio corpo.

Quero destacar, no entanto, a importancia dos direi-tos civis (liberdade de locomogao, de trabalho). Emborahoje nos paregam banais, eles foram fundamentais emesmo revolucionarios porque se opunham a socieda-de rural e organizada em feudos, na ql,Jal os servoseram parte da propria gleba, como 0 gado, e nao do-nos de si, de seu corpo e locomogao. A medida que osburgueses passaram a desenvolver 0 comercio e a mo-rar nos burgos (depois cidades), a medida que surgi-ram um modo de vida urbano e um processo fabril, foiprecise que as pes soas saissem do campo e viessempara a cidade, despojadas de qualquer bem para servira nova forma de produzir e viver.

E importante ressaltar, assim, 0 ace no dubio dessesaspectos da cidadania: ao mesmo tempo em que secriavam condigoes de os homens se libertarem da con-digao de servo, vivia-se um processo de profunda ne-cessidade para 0 sistema comercial e fabril, que preci-sava de mao-de-obra.

A etapa liberal se demarca a partir principal mente daRevolugao Francesa. Ao tomar 0 poder politico, a bur-guesia erigiu um Estado sui generis, 0 Estado liberalburgues, que descentralizou 0 Estado monarquico erntres poderes: executivo, legislativo e judiciario. E cuja

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maior autoridade estava no Poder Legislativo, na a<;:aodo parlamento, das assembleias constituintes. Nesseprocesso, chegamos a uma Declara<;:ao dos Direitosdos Homens; instaurou-se um Estado de Direito emque os governantes nao podem usar do poder arbitra-riamente, como 0 faziam no regime monarquico, masterao de governar Iimitados pelo conjunto de leis queestabelece os direitos e deveres dos cidadaos. Com 0avan<;:oda sociedade burguesa, a separa<;:ao entre 0 pu-blico e 0 privado come<;:ou pouco a pouco a se deli-mitar, chegando ao seu auge na etapa do capitalismoliberal.

Nesse contexte do liberalismo, a face mais acenadada cidadania e ados direitos polfticos. Vale tambemnotar sua dubiedade. Lembre-se que todos os segmen-tos componentes do terceiro estado, em que se inclufaa burguesia, fizeram as revolu<;:6es burguesas. Em suapropria ambiguidade de voltar-se para 0 universal e pa-ra 0 particular, sendo revolucionaria e depois c1asse do-minante, a burguesia carreou todos para a "sua" revo-lu<;:ao. Durante todo esse periodo, desenvolveram-se in-tensamente os direitos politicos; era evidente que, coma tomada do poder, eles se tornassem explfcitos, taiscomo aparecem na Declara<;:ao dos pireitos.

Em termos efetivos, quando os trabalhadores - jano fim do seculo XIX - come<;:aram a se organizarmais, os capitalistas responderam com mais maquinariapara substitui-Ios. E 0 conflito continuou. A luta de clas-ses, 0 antagonismo e a divisao entre capitalistas e tra-balhadores foram levados adiante. Esses ultimos foram

se organizando em sindicatos, associa<;:6es, partidospoliticos.

Retorno agora ao perfodo "em torno das GuerrasMundiais, quando 0 acirramento entre capitalistas e tra-balhadores estava no auge, tanto no interior dos pafsesquanta entre paises. Desenrolou-se a Revolu<;:ao Russade 1917, houve uma ascensao dos partidos socialistasna Alemanha, na Italia, na Espanha, na Fran<;:a. Os tra-balhadores reivindicavam melhores condi<;:6es de traba-Iho, saude, habita<;:ao e educa<;:ao, remanescentes daluta do seculo anterior. Agora, organizavam-se comofor<;:a polftica e apoiavam-se em partidos para fazer arevolu<;:ao e implantar uma nova sociedade - 0 que fa-zia parte das formas de exercer e ampliar a cidadania.

Ao mesmo tempo, 0 afa de lucro e a acumula<;:ao daera dos 0ligop6lios eram complementados com a' a<;:aoimperialista sobre outras na<;:6es e regi6es. Vieram asguerras. 0 nazi-fascismo que devastou a Europa na- IIGuerra Mundial (1939-1945) foi, a meu ver, 0 momentaem que a burguesia, digamos, "cedeu" a coroa para fi-car com a bolsa; essa burocracia nazi-fascista apareceucomo for<;:a social capaz de opor-se ao intenso avan<;:odos partidos socialistas e do poder dos trabalhadores.

Foi mais ou menos por essa epoca que se desenvol-veu a ideologia p6s-liberal do Estado de Bem-Estar,com sua proposta "socializante" e um aceno a uma ci-dadania, a de atendimento a todos os direitos sociais- salario, saude, transporte, educa<;:ao, habita<;:ao, se-guro-desemprego, lazer etc.

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Com a etapa liberal, temos construfda a forma capi-talista de produzir e viver. E, por consequencia, 0 me-canismo de acumula9ao nao cessa. 0 aumento da or-ganiza9ao operaria, com os trabalhadores tentando re-

. frear 0 alto nfvel de explora9ao (Iutando pelas propriasvidas), leva a rea9ao do capital, primeiro como maqui-naria e, ja na etapa monopolista, com a tecnologia, ins-trumento para favorecer 0 capital em dois niveis: no ho-rizontal, na rela9ao entre fra90es do capital; e no verti-cal, na forma de 0 capital lidar com os trabalhadores.Da perspectiva dominante, porem, essa tecnologia pre-tende-se neutra, servindo a todos os cidadaos. Cabeaos trabalhadores cidadaos organizarem-se e lutarempara tornar a realidade mais proxima disso.

Assim, na etapa monopolista, 0 Estado surge comouma especie de empresa maior para reger as lutas declasses, horizontal e vertical. Ele atua entre as empre-sas, favorecendo 0 processo de concentra9ao, massem anarquizar a organiza9ao capitalista a ponto dedestruir-se pel a falta de regras. 0 local do poder -que no Estado liberal burgues estava no legislativo -agora desloca-se naturalmente para 0 executivo, centra-lizando as decisoes por meio de um corpo burocratico,que se torna mais complexo com a chamada tecnocra-cia. Isso significa que a tecnologia tambem esta pre-sente no Estado, sob a forma de tecnologia organizato-ria, de modo mais acabado e eficaz no planejamento.Este causava medo, pois era arma para a constru9aodo socialismo; uma vez transfigurado em seus objeti-vos, passa a servir a organiza9ao do capital.

Assim os capitalistas/tecnocratas pretendem implan-tar 0 Estado do Bem-Estar, proposta "socializante" por-que estaria no meio-termo entre 0 capitalismo liberal eo socialismo cerceador vigente, ao guardar desses mo-delos apenas tra90s positivos, desfazendo-se dos tra-90S deleterios. Conservaria dessa forma a igualdade, apreocupa9ao com a distribui9ao e justi9a social do socialis-mo, despojando-se do cerceamento a liberdade do socia-Iismo existente, bem como manteria a liberdade do ca-pitalismo, sem reter 0 seu carater de explora9ao inten-sa da etapa liberal. Nessa etapa do capital, de acenoaos direitos sociais, a concep9ao de cidadania esta in-trinsecamente vinculada a tecnologia organizatoria (pla-nejamentos e politicas sociais do Estado).

Mas por que essa pro posta "socializante"? Trata-sede uma forma de enfrentar 0 avan90 da organiza9aooperaria - que poderia implantar uma sociedade maisigualitaria - e do socialismo do Leste, entao identifica-do como primeira amea9a. Trata-se de desmobilizar es-ses trabalhadores e de conforma-Ios ao capital ismo.

Elaborq-se um nfvel de cidadania que avan9a, mastambem desmobiliza. Cria-se um novo modo de lidarcom as coisas e com os homens, mantendo 0 mesmoobjetivo da acumula9ao, situado no uso da tecnologia,no saber tecnico. Sao as ideias de igualdade e liberda-de geradas com a pretensa neutralidade da tecnica quevaG vigorar. Na empresa, como que desaparecem asdiferenc;as entre proprietarios e assalariados pel a divi-sac e contrale da propriedade.

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No interior da visao de mundo capitalista, deslocou-se 0 pomo da disc6rdia da propriedade para 0 saber;nem sequer em nivel ideol6gico se conseguia sustentarque todos poderiam ser proprietarios. E mais: a proprie-dade adquiriu um novo carater, vinculada a propriedadede know how, do saber tecnico. Nesse contexto, os ho-mens sac iguais porque todos sac capazes de dominaro conhecimento tecnico (pela educac;ao) e podem (tema liberdade de) ascender na burocracia da empresa pe-10 merito que possuem. Formar-se-ia assim a burocra-cia, os gerentes que administrariam as empresas dandoum rumo "socializante" a forma de produzir.

Em nossa era, a forma de produc;ao dos 0ligop6liosexige a concentrac;ao de capital. Essa forma existe, porsua vez, como resultado da busca de maiores lucras,do mecanismo de acumulac;ao. Por outro lado, ao re-vestir-se pelo uso· de tecnologia, ela pode obter lucrode maneira mais eficaz e, ao mesmo tempo, criar essecarater "socializante" - as empresas tendem a ser or-ganizadas por ac;6es, e nao mais por proprietarios. 0processo joga com a ideia de que 0 trabalhador tam-bem pode ser "proprietario", pois pode ser acionista,aquele que "manda" na empresa, depois de subir nahierarquia gerencial e incorporar 0 saber tecnologizado,imprescindivel para a existencia da empresa. A luta pe-la cidadania efetiva deve se dar tambem ai. Se os em-presarios abrem espac;o para participac;6es, cabe aostrabalhadores se apropriarem efetivamente desse espa-C;O.E, na defesa de seus direitos de trabalhadores-cida-daos, podem ter participaC;ao efetiva tambem na empre-

sa, a medida que conseguem reformular condic;6esespecfficas da relac;ao de trabalho.

Situa-se num segundo plano, mais amplo, a propostade transformar 0 trabalhador em consumidor no sentidopleno: consumidor de suas necessidades basicas, denovas mercadorias e de ideias-mercadorias. De formaavassaladora, os meios de comunicac;ao insistem nesseaspecto, procurando tirar do trabalhador 0 carater poli-tico desenvolvido durante decadas na luta pela sobrevi-vencia, despoja-Io da qualidade humana herdada dap61is grega. Metamorfosear 0 homem mais para animalsocial, minando 0 ente politico cultural cuja qualidadeseria pensar e repensar, discutir em publico, criticar co-mo cidadao as leis injustas. Cabe aos trabalhadores re-verter a situac;ao.

Historicamente, vimos que as origens desse quadroremontam ao periodo entre as Grandes Guerras, pre-sentes tanto no planejamento do nacionalismo fascistaquanta no New Deal implementado pelo presidenteRoosevelt nos EUA. Este programa dava condic;6es detrabalho e de vida a c1asse operaria, incorporando-ade fato aos bens do capitalismo. Mesmo em paisesnao-democraticos, como a Alemanha de Hitler e a Italiade Mussolini, criou-se uma forma de atendimento cor-porativista que cooptou grande parte da massa trabalha-dora por atender determinadas necessidades basicas.Nao foi por acaso que esses regimes se sustentarampor muito tempo, apesar de tudo 0 que de anti-humanoe destrutivo fizeram.

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De qualquer forma, ainda que nos parses democrati-cos os pianos fossem diferentes, a experiencia nazi-fas-cista marcou a atuaC{ao posterior das elites tecnocrati-cas e continuou como um pequeno facho que acenapara boa parte das massas. Amparada na pretensaneutralidade da tecnica, essa concepC{ao de cidadaniatambem poderia estar atravessada pela esprrito fascis-toide.

Em parses como as EUA e a Inglaterra, onde a im-plementaC{ao dessa cidadania foi mais democratica, aproposta original esvaziou-se e, hoje, esta em francadecadencia. Os EUA desmontaram cinquenta anos depolfticas sociais. A Inglaterra atual pouco tem avercom a do Welfare State. Mas, entre as exemplos quepersistem com sucesso, esta a italiano.

Essa forma de cidadania serve aos propositos do ca-pitalismo a medida que desmobiliza os trabalhadores emantem 0 status quo. Ao mesmo tempo, contudo, elaabre espaC{o a novas condiC{oes que podem possibilitaruma nova sociedade, mais igualitaria e justa. Como?Pela proprio carater do Estado contemporaneo.

o Estado intervem na economia e e socio econ6mi-co de muitos empreendimentos. Com a "revoluC{ao con-sentida" (0 planejamento), a reivindicaC{ao dos direitostende a deslocar-se da area da produC{ao para a dagestao publica, tornando-se coisa do Estado. Nesseprocesso, 0 Estado se apropria de grande parte damais-valia produzida na sociedade, por meio do reco-Ihimento de impastos e de outros mecanismos. Comesse fundo publico criado, financia suas polfticas, ou

seja, reemprega esse "capital". E pode faze-Io dupla-mente, de acordo com a pressao social: enquanto fi-nancia a produC{ao e atende aos capitalistas, pode pro-mover a distribuiC{ao e, com isso, atender aos direitos,elevando a salario dos trabalhadores, provendo maiseducaC{ao publica etc.

A efetivaC{ao da cidadania depende, portanto, daaC{ao dos subalternizados. Em vez de refrear a esferapublica, 0 Estado a amplia, embora nao 0 fac;a esponta-neamente, e sim em func;ao da tomada desse espac;o.

Podemos demarcar um pouco mais a dubiedade dacidadania na etapa atual: de um lado, era atende ascondic;oes de promover a lucro; de outro, possibilita quea luta dos trabalhadores extrapole a fabrica e ganhemais espac;o.

Sabre a relac;ao entre cidadania e tecnica, devemosatentar para outra dubiedade: a tecnologia domina mas,ao mesmo tempo, pode libertar. Hoje, as trabalhadorestem mais conhecimentos; a evoluc;ao da tecnologia in-tensiva e a forma de produc;ao complexa exigem dotrabalhador mais e mais especializac;ao. Se disso tiverconsciencia, ele pode negociar.

No ambito mais amplo do Estado, e necessario umembate continuo. Se 0 Estado acena com determinadosdireitos e nao as cumpre, os cidadaos podem reverterisso e ganhar novos espac;os. Na etapa monopolista, acidadania tem sua forc;a no grande espac;o criado parareivindicac;oes; cabe aos trabalhadores se apropriar dele.

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WELFARE STATE E CIDADANIAEM PAISES COMO 0 BRASIL

Em pafses como 0 Brasil, tudo e muito diferente _mas, em termos de explorac;:ao e dubiedade do capita-Iismo, ha muitas semelhanc;:as. Nao experimentamos 0processo evolutivo de passagem do feudalismo parao capitalismo, que foi construindo pouco a pouco a de-mocracia liberal e a categoria cidadania que procurodistinguir.

o Brasil ja nasceu no perfodo de transic;:ao para 0capitalismo, ainda que ordenado por relac;:6es feudais.Nasceu fruto da expansao do capitalismo originario, sobo estigma da explorac;:ao e da subalternizac;:ao, com se-rias consequencias para sua populac;:ao. A vigencia dademocracia liberal e da cidadania parece mais diffcil empafses como 0 nosso.

8em discutir, agora, a responsabilidade pela organi-zac;:ao das forc;:as sociais internas, a hist6ria do Brasil ede seus congeneres e a de povo explorado, porque ti-

vemos e temos uma posic;:ao subalterna no processocapitalista; 0 que muda em nosso processo hist6rico equem nos explora e como - Portugal ou Inglaterra,EUA ou os grandes 0ligop6lios, como hoje.

Poderfamos dizer, por exemplo, que em nome dosdireitos humanos (e, portanto, da cidadania) a Inglaterra"ajudou" pafses como 0 Brasil a se livrar da condic;:aode colonia e a lutar contra a escravidao. A Inglaterrainterveio dessa forma em toda a America Latina. Valenovamente salientar a dubiedade des sa a«ao: serve aevoluc;:ao da humanidade, mas tambem. a uma formamais organizada de explorac;:ao dos seres human~s~ 0Brasil livre de Portugal conheceu melhores condlc;:oesde desenvolvimento, sem a explora«ao direta e as inter-venc;:6es do Estado portugues. Tambem a libertac;:ao -mesmo formal - dos escravos pode ter um significadoimenso para os direitos do homem. Mas a interven«aoda Inglaterra teve outros significados, em especial 0 deorganizar a nova forma de domina«ao no mundo, a c~-pitalista, que naquele momenta dirigia. Tratava-se de 11-berar os mercados dos pafses da America Latina, quepassaram a comprar diretamente da Inglaterra produto~manufaturados, sem a mediac;:ao de Portugal. Quanto aliberta«ao dos escravos, cuidava-se de se estender 0trabalho assalariado, sem 0 qual nao ha capitalismo.

A situa«ao de pafses como 0 Brasil sempre foi cau-dataria do processo desenvolvido no nucleo do capitalis-mo originario. Depois de ser col~nia de Portugal, 0 Br~-sil foi "colonia" da Inglaterra. Eramos uma economlaagraria exportadora de materias-primas imprescindfveispara 0 processo industrial ingles.

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Quem produzia toda a- economiaa ser exportada?Os trabalhadores brasileiros, os rurrcolas. Quem impor-tava os produtos manufaturados? Somente a elite eco-n6mica e polftica. Esta, alias, importava tudo, porquenEW produz[amos aqui nenhum bem manufaturado, nElOtfnhamos industrias e nem isso nos seria permitido. As-sim, a elite importava m6veis, marmores, material deconstru~ao, roupas, cal~ados, lou~as, baixelas, pratariaetc. Entre a classe abastada, vivia-se aqui como na Eu-ropa, inclusive em rela~ao a bens culturais - monta-gens de 6peras, pe~as teatrais etc. A elite vivia sua ci-dadania com regalo.

Mas e 0 povo, a maioria da popula~ao brasileira? Vi-via pobremente, da economia de subsistencia. Os rurf-colas retiravam do campo praticamente tudo para suprirsua vida. Tinham pouqurssimos direitos e, apesar da li-berta~ao dos escravos, negros e brancos pobres viviamem condi~ao semi-escravista.

Contudo, alguns tra~os da luta por igualdade e liber-dade instalaram-se aqui, atraves dos imigrantes italia-nos. E que significado politico isso alcan~ou! A partir daexperiencia de luta contra 0 capital trazida por essestrabalhadores italianos, 0 movimento anarquista carac-·terizou a luta operaria no Brasil principalmente nas de-cadas de 10 e 20. 8im, luta operaria, pois come~a-mos a ter uma industria incipiente no perfodo entre asGuerras Mundiais. Embora os italianos viessem original-mente como mao-de-obra para a economia agrario-ex-portadora, em substitui~ao a mao-de-obra escrava, foino ambito das cidades que se fizeram sentir as primei-

ras grandes lutas, ja em termos de capitalismo, p Irealiza~ao de direitos e pela constru~ao da cidadania.

Ao mesmo tempo, popula~6es como a do Brasil per-cebiam que nao eram atendidas em suas reivindica~6esnao s6 porque as classes dominantes recusavam-se aisso, mas porque seus parses eram explorados. Essaconsciencia da explora~ao, aliada ao desejo de cons-truir uma na~ao, iniciou-se com a pr6pria tomada deconsciencia do subdesenvolvimento. A ideologia nacio-nalista, com todos os seus equrvocos, significou umavan~o em term os de repensar a cidadania, ainda quefosse a do brasileiro como cidadao no ambito das rela-~6es entre os parses.

A pressao popular foi de tal dimensao que a elite,tambem envolvida em seu processo de mudan~a, per-cebeu, adiantou-se e fez a Revolu~ao de 1930, nosmoldes do que assinalava 0 politico mineiro AntonioCarlos: "Fa~amos a revolu~ao antes que 0 povo 0 fa-~a". Essa posi~ao voluntarista - relacionada a tomadade consciencia da na~ao explorada, cujo desenvolvi-mento deve ser programado para existir - contrastacom a ideologia do perrodo anterior, a do agrario-expor-tador, de que 0 desenvolvimento viria natural mente; 0pars era jovem e cheio de riqueza, bastava esperaro seu amadurecimento.

Vale recordar que a era do capital dos 0ligop6liosinstaurou-se mais nitidamente no mundo no perfodo emtorno das Guerras Mundiais, cujo marco pode ser aqueda da Boisa de Nova York em 1929. Essa era dos0ligop6lios, da etapa monopolista do capital, caracteri-

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zou-se por um processo de concentrac;ao do capital ede internacionalizac;ao da produc;ao, executada atravesda transferencia de tecnologia. 0 Brasil nao esteveisento desse processo. Par outro lado, "contraditoria-mente", delineia-se uma proposta nacional de desenvol-vimento, de criac;ao da industria nacional, com a suaburguesia nacional etc. Esse projeto fora a da Inglaterrano seculo XIX, a da Frnnc;a do fim do seculo XVIII, ada Alemanha e Italia no fim do seculo XIX. Mas esseprojeto nacionalista veio atrasado e ja nao encontroumais espac;o. E uma proposta de nac;ao, quando 0 mo-do de prod~c;ao capitalista S8 voltava para a internacio-nalizac;ao. E uma proposta de desenvolvimento do ca-pitalismo liberal (de nac;ao), mas desenvolvida numaetapa monopolista, de regencia dos oligopolios, em queas regras ja eram outras.

De 1945 a 1964, desenvolveu-se no Brasil a chama-da democracia populista. Sendo democracia, ainda queautoritaria e atravessada pelas duas vertentes (Iiberalis-mo e monopolismo), como ficou a questao da cidadanianesse periodo? A grande atuac;ao politica dos trabalha-dores nas decadas de 10 e 20 levou a um contexto emque as elites pensavam como atender ou acenar como atendimento de certas reivindicac;6es. Tratada ate en-tao como caso de policia, a classe operaria tornou-seum caso de politica - uma significativa ampliac;ao dacidadania.

Ao mesmo tempo, com a politica do Estado de favo-~ecer a industria em detrimento do campo, criou-se 0exodo rural, que encheu as cidades com uma popula-

c;ao a ser instrumentalizada como mao-de-obra naindustria. "Inchou-se", assim, a c1asse operaria anterior,que se transformou, de corpo politico atuante, num cor-po disforme, diluido, de gente pobre, passivel de mani-pulac;ao - mas que, mesmo fragil, pode reclamar suacidadania.

o Estado atendeu em parte as reivindicac;6es popu-lares, procurando desmobilizar a organizac;ao operaria.Lembre-se aqui a efeito das leis trabalhistas "doadas",da "Iiberac;ao" do sindicato. Ou seja: 0 sindicato tempermissao de existir, mas e atrelado ao Estado peloscham ados pelegos, que fazem para as trabalhadores apolitica trabalhista entre a sindicato e 0 Estado.

Mas a ambiguidade des sa proposta democratica le-vou a existencia de certos direitos politicos: voto siste-matico para todos os cargos (prefeito, governador, ve-reador, deputado, senador e presidente), processo degreve mais ou menos assegurado. Press6es politicasdas organizac;6es populares e, basicamente, 0 minimade respeito dos governantes pela Constituic;ao de 1946fizeram tambem com que fossem um tanto atendidosdireitos sociais - educac;ao, habitac;ao, saude, segu-ranc;a no trabalho, aposentadoria etc.

No Brasil, como em outros paises similares, juntou-se a mobilizac;ao da democracia liberal - de exercfciodos direitos pol iticos, como na Europa ate 1930 - coma desmobilizac;ao da democracia planejada - 0 Estadoatendendo os direitos sociais "naturalmente". .

Vejamos 0 exemplo da educac;ao. Na decada de 50,as escolas publicas (e, portanto, gratuitas), tao diferen-tes de hoje, eram as melhores do pais. Ao frequenta-

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las, os filhos dos trabalhadores podiam concorrer comos filhos dos ricos nos exames rigidos para 0 ingressona universidade, que ofere cia pouquissimas vagas.Uma vez formados, esses filhos de trabalhadoresnham assegurada uma boa colocaC{ao no mercado detrabalho. Percebam a diferenC{a em relaC{ao a escolapublica de primeiro e segundo graus a partir de 1968.

E importante notar a ligaC{ao intima entre exercfciodos direitos politicos e certo atendimento efetivo dos di-reitos sociais antes de 1964. Ap6s 0 golpe militar, vive-mos um periodo da hist6ria do Brasil em que isso setornou inconcebivel, impensavel.

Depois de 1964, a area social sofreu uma forte re-traC{ao e, com isso, a cidadania perdeu terreno. "Resol-veu-se" a contradiC{ao que vinha desde 1945: tomado 0

Estado na forma tecnocratico-militar, assegurou-se noBrasil 0 capitalismo monopolista, com todos os seustraC{os e consequencias, no sentido da exploraC{ao, esem quase nada do sentido emancipador do WelfareState.

Isso porque 0 Brasil ja era um espaC{o geografico so-cial subalternizado e 0 capital monopolista aqui sed i-mentado tinha um carater diferente daquele dos paisesde onde se originava. A sua pr6pria forma de organiza-C{ao Ihe fornecia os limites para proporcionar mais bem-estar ou mais exploraC{ao. A organizaC{ao das grandesempresas (as multinacionais) em matrizes e subsidia-rias expressa, pelo assentamento de subsidiarias empaises como 0 Brasil, a nossa situaC{ao de heteronomia(0 contrario de autonomia) e sujeiC{ao. Lembre-se que a

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forma de produc;ao monopolista possui na tecnica 0 seuinstrumento para melhor efetivar a acumulac;ao. Poisbem: a pr6pria organizac;ao multinacional - em que assubsidiarias recebem das matrizesos pacotes tecnol6-gicos - ja indica como se da 0 processo. Tais pacotestecnol6gicos, alias, passam tambem para as grandesempresas nacionais, caso elas queiram manter-se nomercado, dando conta do processo continuo de inova-c;ao - e, portanto, da incorporac;ao continua de ino-vac;ao e de crescente tecnologia. Isso significa que a

.produc;ao desses paises esta atrelada intimamente aforma de produc;ao internacional, aos ditames dos cen-tros das tecnologias e a transferElncia das mesmas.

Contudo, 0 acesso a essa tecnologia transferida sefaz em condic;oes desfavoraveis de negociac;ao e temum alto onus; desde que nao dispomos do segredo datecnologia, mas apenas do seu processo, ficamos nadependencia externa. Imagine-se quanta pagamos porisso, em termos de patentes, royalties, reposic;ao de pe-c;as etc. 0 resultado e a divida externa de paises comoo nosso: por mais que trabalhemos, continuamos sem-pre devedores, pois nossos excedentes escoam para 0exterior como pagamento dos juros da divida. Pior: pou-co sobra para se aplicar internamente. Eis por que naose reproduz aqui, junto com 0 assentamento do mono-polismo, 0 Estado do Bem-Estar e sua proposta de ci-dadania, com a reivindicac;ao de direitos sociais paratodos os trabalhadores.

Nao se trata, porem, de criar uma expectativa de na-cionalismo ingenuo. Se estamos inseridos em uma no-

va era do capitalismo, aproveitemos 0 que ha de me-Ihor nela - precisamente 0 aceno a cidadania comatendimento aos direitos sociais. Para tanto, deve-senegociar a tecnologia que entra, 0 que e produzido,quanta se paga por isso, quanta se deve aos brasilei-ros pelo seu trabalho. Em vez de negar a tecnologia,trabalhar para que 0 vinculo entre ela e a cidadania seestabelec;a real mente de forma favoravel aos trabalha-dores. Ou seja: para que a tecnologia venha a atenderaos homens - no caso, a maioria dos brasileiros. Essaluta, parte importante da construc;ao da cidadania, deveser ,travada no interior do Estado, aqui compreendidoem seu senti do ample. A questao tecnol6gica e polfticae exige em torno dela 0 debate publico.

Vale recordar que a primeira condic;ao para essa luta- e para qualquer outra luta dos trabalhadores - e amanutenc;ao daquelas condic;oes minimas da democra-cia formal, do respeito a Constituic;ao. E preciso tersempre em mente que, no Brasil, os governos ditato-riais no poder de 1964 (mais exatamente 1968, ana doAto Institucional nQ 5) ate a decada de 80 acabaramcom quaisquer direitos. Vivemos nesse periodo uma an-ticidadania. E foi em nome da Declarac;ao dos Direitosdo Homem que se trabalhou contra a tortura, 0 arbitriodas prisoes, 0 desaparecimento e 0 exilio das pessoas.Que nao se esquec;a jamais 0 sofrimento infligido a tan-tas famflias brasileiras!

Assim, essa primeira condic;ao implica que nao setenha atrac;ao pelo autoritarismo como forma rapida desolucionar as coisas. Embora custoso e mais lento, 0

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jogo democratico e 'mais seguro em seu caminho depreservar e melhorar as condic;oes da vida humana,com a participac;ao de todos.

De forma competente, 0 Estado tecnocratico-militarresolveu 0 problema dos direitos sociais, do salario so-~iaL Viabilizou 0 atendim'ento a esses direitos at ravesde projetos empresariais, que primeiramente atendiam agrupos, em especial de classe media. Alem disso, 0 fi-

. nanciamento desses beneffcios foi feito pelos propriosbeneficiados. Assim ocorreu com 0 Plano Nacional deHabi~ac;ao do BNH (Banco Nacional de Habitac;ao), fi-nanclado pelo FGTS (Fundo de Garantia por Tempo deServic;o) e pelas cadernetas de poupanc;a. Assim ocor-reu, t~mbem, co~ a democratizac;ao do ensino superioratraves da prollferac;ao do "negocio" das faculdadesparticulares, bem como com a entrada da iniciativa pri-vada no setor de saude. Correios, telefones, rodovias emeios de comunicac;ao foram organizados para atendera necessi?ade de organizac;ao do capital monopolista.Contudo, ISSO deu a aparencia de que os direitos doscidadaos eram atendidos, 0 que p6de criar uma formade legitimar essas ditaduras.

Nesse quadro de equfvocos, inclui-se tambem 0 de-ficit das empresas estatais. E evidente que elas foramcna?as par~ atender em primeiro lugar aos proprios oli-gopollos. Sao estatais, mas nao tem 0 espfrito de em-presas publicas, pois 0 setor publico deveria servir a to-dos os cidadaos .

. Na luta contra os regimes ditatoriais, passamos porvanos momentos que culminaram com a campanha po-

pular pelas Diretas Ja (1985), mobilizando todo 0 pais.Chegamos a Tancredo, ao 1im oficial da ditadura, aoaborto da Nova Republica, a Constituinte, a Consti-tuic;ao de 1988 (com muitos topicos progressistas), aeleic;ao direta para a Presidencia ... Contudo, a existen-cia de cidadania para a maior parte da populac;ao bra-sileira depende ainda de muita luta social.

Deve-se ressaltar que, ao lado de um movimento detendencia autoritaria, de atrac;ao pela tirania, constituiu-se na sociedade brasileira uma profunda rede de orga-nismos aut6nomos de exercfcio democratico, fruto dapropria luta contra a tirania e a expropriac;ao dos traba-Ihadores pelo monopolismo. Sem estatuto oficial, essarede esta presente em nosso dia-a-dia, como um veiofundo de democracia e de possivel cidadania.

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CIDADANIA, UMA CATEGORIAESTRATEGICA PARA UMA

SOCIEDADE MELHOR

Numa era em que os mode/os revolucionariosdesen-cadeadores do socialismo do Leste perdem credibilida-de, 0 que colocar em seu lugar para satisfazer 0 sonho- que 0 homem sempre tera - de a/can<;ar uma so-ciedade melhor? Para refletir sobre isso, retornemos aoperfodo riqufssimo da burguesia revolucionaria e beba-mos em suas fontes, naquilo que se propos e nEW rea-lizou. Bebamos tambem na fonte marxista, no que ace-nou e igualmente nao realizou.

Em maior ou menor grau, temos no Ocidente a rea-liza<;ao da democracia formal; alguns pafses (como a/ng/aterra) passaram e outros (como a Italia) estao pas-s~.ndo pela experiencia do Welfare State, que pode sig-nlflcar um avan<;o estrutural no encaminhamento da de-mocracia.

No ambito do Welfare State, ha espa<;o para 0 de-senvolvimento da democracia, uma vez resguardado 0tra<;o basico da existencia de cidadania - 0 fato de aspessoas exteriorizarem, na a<;ao social, a crftic;a cons-trutiva do comum. Nesse processo, elas podem lidarcom 0 usa da tecnologia como instrumento basico daexplora<;ao do capital e lutar para reverter 0 direciona-mento tecnol6gico no sentido de atender, cada vezmais, ao bem-estar da maior parte da popula<;ao doplaneta. Tal a<;ao social crftica diz respeito ao exercfcioda cidadania como processo i'nventivo de cada um e detodos, de forma que possamos ter as mesmas condi-({oes comuns, regidas por norm as legais de que possa-mos fazer uso igualmente. Avan({amos daf para maiordemocracia.

A categoria cidadania, como tento distingui-Ia, depen-de da a<;ao dos sujeitos e dos grupos basicos em con-flito, e tambem das condi<;oes globais da sociedade. Nodecorrer da hist6ria, tivemos em nossos modelos dedesenvolvimento posturas que enfatizaram ora os sujei-tos, ora as estruturas e seus pr6prios mecanismos, co-mo agentes da hist6ria. A categoria cidadania permiteavan({ar no pressuposto dialetico marxista: os homensfazem Hist6ria, segundo determinadas circunstanciasestruturais - 0 que significa nao pender nem para ossujeitos, nem para as estruturas. Nisso reside a possi-bilidade de fazer a liga({ao entre os desejos e as n -cessidades dos homens, enquanto individuos (subj tivi-dades) e enquanto sujeitos grupais no bairro, nas f bri-cas, sindicatos, partidos, ate chegar ao ambito glob Ida sociedade.

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I I

III

I

I:IIIII

I

Subjetividade, cIasse,cidadania e cotidiano

Distintamente do marxismo ortodoxo (ao menos depa~e dele), quero enfatizar que a "revolu<;ao" por umasocledade melhor passa pela revolu<;ao nas subjetivida-des das pessoas. Um dos nfveis dessa revolu<;ao esta

. na . ~ossibilidade de 0 homem contemporaneo rompercotldlanamente com as trevas da aliena<;ao (e uma de-las seria 0 consumismo no sentido amplo). Isso se da-ria, a todo instante, nas rela<;6es diarias, criando rela-<;6es que eliminem 0 homem "marcado" historicamentee apo.ntem, dentro desse homem, 0 ser universal quepOSSUI.Trata-se de pensar, sentir e agir no sentido deque a democracia se constroi a todo instante, nas rela-<;6es sociais de que fazemos parte.

Mas essa revolu<;ao interna nao e facil: ou e fruto deterapia, ou da religiao, ou de uma viagem poetica, artis-tica. Excluo aqui as terapias que tentam "adaptar 0 ho-mem ao mundo", numa linha positivista. Penso em te-rapias que nao percam a perspectiva historica, mas quet.ragam para fora dos individuos a for<;a necessaria paraIldar com esse mundo e faze-Io avan<;ar. Tambem naofalo aqui da religiao que desenvolve um subjetivismopara 0 alem-mundo. Refiro-me aquele tra<;o espiritualque permite ao homem perceber-se e perceber seuespa<;o no Universo, e que promove for<;as para ajudara mudar 0 mundo. E falo do poeta, do artista, mesmo~uem jamais escreveu ou criou arte, que tenha a qua-Ildade de fazer os vinculos de dentro e de fora, do

mundo externo e interno, infinitamente, e que se preo-cupe com 0 Universo como um todo e, portanto, como seu destino.

Esses tres poss[veis propiciadores, bem proximos, di-zem respeito a capacidade de trazer para fora a su~je-tividade, no sentido de expressa-Ia no mundo. E aidentidade do individuo que vem a ton a e, ao mesmotempo, e pensamento e a<;ao para Iidar com 0 mundo,para organiza-Io melhor na dire~ao do que parece sero sonho recondito dos homens - a busca de formaspossiveis de justi<;a e igualdade, Iiberdade e ao mesmotempo de individualidade, embora impliquem uma rela-~ao complexa, diflcil de resolver.

Na perspectiva interna de quem sofre 0 processo, ainternaliza<;ao da racionalidade formal, exigida para seviver no capitalismo, ou 0 que aparece no marxismocomo processo de aliena~ao, cria na alma do individuouma parte morta ou amortizada. Aqui, pode-se vislum-brar 0 vinculo com a area do desejo. E 0 desejo quemotiva 0 ser humane a agir dessa ou daquela forma,como expressao do proprio fluxo da vida.

E precise resgatar 0 desejo. a que chamei de pro-piciadores da revolu~ao individual pode ajudar em seudesbloqueio e desnorteamento. as meios de comunica-<;ao, por exemplo, veiculam estilos de vida como a for-ma de viver. Entretanto, cad a individuo deve ter a suaforma de viver. Outre exemplo esta na importancia dotrabalhador diante da empresa. 5e ele consegue, pormeio desses propiciadores, buscar dentro de si a sen-

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sagao de poder, podera me/hor barganhar os seus di-reitos.

_ E~sa rev?lugao interna e trago essencial para a exis-tencl~ da cldadania. Todavia, su~ construgao dependetambem de outras dimens6es. E precise haver uma~d.ucagao para a cidadania. A violencia perpassa 0 co-tl?lanO das pessoas de inumeros segmentos, em espe-cial da populagao mais carente: mulheres, presos, ne-gros, cn_ang~s e .idosos. Ha um sofrimento que tem lu-gar no ambito pnvado e nao vem a publico, a nao serque essas pes soas tomem consciencia de seus direi-t?S co~o ci?adaos e se organizem para lutar por eles.~ precl.so cnar espagos para reivindicar os direitos, mase preciso tambem esterider 0 conhecimento a todospara que saibam da possibilidade de reivindicar. '

E 0 que fazemos com a c1asse social se enfatizot.anto a individualidade, a subjetividade? B~m, a c1assee composta de indivfduos cujos desejos devem ser le-vadas e~. con~a. Nao se trata de uma categoria estru-tural estatlca; e na pratica que os trabalhadores se for-mam como c1asse.

. A. ?ivisao em duas classes aparece como tendenciahlstonca, resultante de muitas articulag6es. Basicamen-t~, es.sas duas classes se distinguiram pela sua posi-ga~ dlante de: propriedade: uma tem tudo ou quase tu-do,. ~ ~utra nao tem nada, trabalha. Nao jogo fora essadeflnlgao porque, grosso modo, a hist6ria da humanida-de tem side assim: relagao entre homens livres eescr~vos (Grecia, Roma), entre servos e c1ero/nobreza(socledade feudal), entre burguesia e proletariado, e ho-

je, como prefiro denominar, entre capitalistas/tecnocra-tas e trabalhadores. Dessa forma, a conceito de classeexpressa a desigualdade estrutural entre os homens.

Devemos reter esse esquema analftico das classescomo um contexto mais remoto. Contudo, na relagaoentre subjetividade e c1asse, serve melhor 0 conceitode que a c1asse existe no seu efetivo "acontecer". Ouseja: a c1asse deve construir-se para existir, no desen-volvimento das pr6prias reivindicag6es e lutas - no in-terior da fabrica, no bairro ou num movimento social.

Cidadania, conselho de fabricae movimentos sociais

Diante das profundas modificag6es no capitalismo,em que a luta mais ampla direciona-se para 0 Estado,capital e trabalho podem de certa forma conviver, em-bora conscientes do conflito, e estabelecer normas quepermitam construir uma sociedade melhor.

No caso brasileiro, isso parece um tanto ut6pico eilus6rio. Mas, em termos de possibilidades hist6ricas,trata-se de a tecnologia nao servir apenas aos capital is-tas, mas tambem aos trabalhadores. Determinados em-presarios e administradores de alto nivel podem teruma visao avangada do processo social, de tal modoque suas empresas tornem-se, de certo modo, patrim6-nio da sociedade.

Nao sou ingenua a ponto de pensar que todos osempresarios participariam dessa visao mais avangada do

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p~ocesso social. Esta al a maioria da populagao brasi-lelra, faminta e injustigada, para documentar 0 contrario.

Nao ha mudanga sem a ofensiva do trabalhador-ci-dadao. Por exemplo: pode haver exerclcio democraticono interior das fabricas quando os trabalhadores conse-guem se organizar e lutar - com representagoes, de-bates, decisoes coletivas em assembleias - contrap.ontos fundamentais para a exploragao da divisao so-cial do trabalho: horario de trabalho e descanso, trans-porte para 0 servigo, alimentagao na fabrica etc.

Em movimentos sociais, essa mesma organizagaopode se dar num bairro, em torno de reivindicac;oes li-gadas ao chamado salari? social - saneamento, agua,luz, asfalto, creche etc. E com essas lutas, na fabrica,na rua ou na favela, que se amplia a cidadania para apopulac;ao carente.

Partidos, sindicatos eo exercfcio da cidadania

A relagao entre tipos de organizagao mais esponta-ne~s (nas qu.ais emerge 0 sujeito coletivo) e outrasmals. estruturals (mesmo as que se propoem em defesados mteresses dos trabalhadores ou da populac;ao maisampla, como sindicatos e partidos) merece uma certaatengao. Como fica a questao da cidadania diante detran.sfig~rac;oes que podem ser operadas por essas or-ganlzagoes, em relagao aos interesses originais que asgeraram?

o sindicato, que deveria ser 6rgao de representativi-dade por excelencia dos trabalhadores, adquire tam-bem, na etapa contemporanea, uma faceta perversa.De um lado, figuram os sindicatos que permanecemleais aquela representatividade, apoiando as lutas fabrise incorporando-as a uma melhor negociac;ao global. Umbom exemplo e 0 das greves dos metalurgicos de SaoBernardo, esparsas em 1978 e, nos anos seguintes,encampadas pelo Sindicato.

De outro, existe 0 sindicato do qual 0 governo naopode abrir mao, hoje, para governar. Esses sindicalistassac os pr6prios gestores de seus companheiros, ad-ministradores da mao-de-obra, que dirimem da melhorforma posslvel os conflitos entre governo e trabalhado-res. Esse genero de sindicato existe tambem na Euro-pa. No caso brasileiro, essa divisao parece que ficamais clara: de um lado, a CUT (Central Unica dos Tra-balhadores); de outro, 0 "sindicalismo de resultados" daCGT (Central Geral dos Trabalhadores) de Antonio Ro-gerio Magri, nao por acaso nomeado ministro do Tra-balho e da Previdencia Social no governo Collor. Tantoa CUT quanta a CGT estao atravessadas por uma cul-tura fragmentada dos trabalhadores, que inclui, portan-to, uma visao de cidadania.

Quanto a relagao entre organizac;oes espontaneas epartidos, ha sempre a possibilidade de as primeiras se-rem cooptadas pelos segundos. Tambem aqui reapare-ce a dubiedade no encaminhamento do exercfcio da ci-dadania. De um lado, elementos de partidos se infiltra-ram nessas organizac;oes, no sentido de torna-Ias mais

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efetivas. Se, nesse processo, eles as respeitam, entaosac catalizadores do que esses movimentos fazem epodem ate ajudar a esclarecer 0 que realmente se de-seja, desde que exista aquela experiencia da polis - ada ~~isa publica tornada visfvel, resolvendo-se tudo pe-10 dlalogo, pela persuasao, pelo argumento. Mas tal si-tuagao pode ser ambfgua, se os elementos de partidos,"persuasivos", manipularem e transformarem os espa-gos conquistados para a democracia e cidadania emespago cooptado que Ihe seja util, partidaria e estrutu-ralmente. Pensamos aqui em partidos considerados re-presentativos dos trabalhadores, catalizadores reais dereivindicagoes.

o Brasil se caracteriza por essa ampla rede de or-ganizagoes autonomas, criadas na decada de 70 comoresultado da propria exclusao e repressao a que se viurelegada a c1asse trabalhadora no periodo da ditadura.

o proprio Estado criou um oponente, organizado deforma diversa e no qual se destaca 0 apoio da ala pro-gressista da Igreja, que exerceu a democracia, parale-lamente, mesmo nos anos da ditadura. Afastado todoesse tempo do espago estatal, esse oponente tem ago-ra que Iidar com 0 aceno de certo espago tambem noEstado - e, por sua vez, contamina-Io.

_A possivel contaminagao de ambos os polos ocorrenao a~enas na relag30 dialetica entre organizagoesespontaneas e Estado, mas tambem naqueles niveis deconselho de fabrica e sindicato. Os conselhos de fabri-ca podem ser minados pelo corporativismo do sindicato,

mas os sindicatos tambem acabam se modificando coma participagao dos representantes de fabrica no interiordo sindicato.

Nao creio que possamos dispensar canais de repre-sentag30, como os sindicatos ou os partidos, para che-gar ate 0 espago do Estado. Mas trata-se de estar aler-ta para a atuagao desses organismos mais estruturais,em term os dos interesses efetivos dos trabalhadores ouda populag30 que reivindica.

Cidadania do consumismo versuscidadania plena: a constru<;ao do novo

Observe-se que a proposta mais avangada do capi-talismo na pratica foi (e ainda e) 0 Welfare State. To-das as modificagoes que apresenta em relagao ao ca-pitalismo liberal, de algum modo e ainda que dubia-mente, apontam para um processo que leva a uma so-ciedade melhor. No Estado do Bem-Estar, coloca-seuma cidadania que tambem e dubia, mas que pode serrica e proveitosa.

De um lado, ela advem da proposta de transformaro trabalhador em consumidor, servindo para estimular 0consumo e neutralizar os trabalhadores enquanto sujei-tos atuantes, tornando-os sujeitos que "recebem". Des-mobilizando, portanto, as organizagoes trabalhistas e,assim, melhor servindo a acumulag30 de oligopolios;dai resulta um conglomerado de consumidores. Ela nElOse baseia na agao de sujeitos que contribuem para aquestao da coisa publica, restringindo-se a uma propos-

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ta de atendimento das necessidades basicas e deacesso aos bens da civilizagao, proporcionados pelatecnologia. E um aceno de conteudo passive a igualda-de. Consequentemente, e uma cidadania de nao-sujei-tos, de seres passivos, de conformismo com a socieda-de, de preocupagao com a consumo.

No mundo atual, as horas vag as de muitos trabalha-dares sac gastas em consumir, negligenciando-se 0 de-bate publico, a exercfcio pratico da cidadania. Ao mes-mo tempo, sem a ocupagao da esfera publica pelas ho-mens, nao pode existir de fato a esfera publica - naopode existir realmente cidadania. Com a enfase no con-sumo, ha a economia de desperdicios e do descartavel,em que todas as coisas (mercadoria material, valores eideias) sao devoradas e abandonadas tao rapidamentequanta possivel.

Isso se deve nao so aos tragos estruturais sabre asquais as poderes econ6mico e politico :>e apoiam (eque podem manipular as cidadaos), mas tambem a op-gao dos sujeitos que compoem determinada sociedadepar um tipo de vida. Quere dizer que as individuos-su-jeitos tambem sac responsaveis (e nao apenas vitimas)por esse tipo de comportamento da chamada sociedadee cultura de massas. Falta-Ihes realizar a sua revolugaoindividual-cultural e desenvolver uma nova etica social.

De outro lado, contudo, a proposta de cidadania daetapa atual permite abrir espago para a retomada da-quele exercfcio de cidadania do periodo do avango re-volucionario da burguesia, com a vantagem de que,agora, a sociedade tecnologica criou bens e condigoes

de atender real mente a todos os homens do plan I .Isso depende de uma condigElo sine qua non - a dque as sujeitos precisam construir a possivel nesseespa<;o aberto, lutando par todos as direitos .do cida-dao. E lembrando sempre: 0 que se reivindica tem re-lagao intima com 0 modo usado para reivindicar.

A bandeira de luta da cidadania plena deve ser trans-formar a cotidiano do trabalhador em alga bom, satisfa-torio, sob condigoes que respeitem a propria vida, dan-do chance tambem a questao do desejo - a identida-de do individuo com as atividades que realiza.

Num segundo momento, reitero 0 pressuposto basicopara a existencia da cidadania: 0 de que os sujeitosajam e lutem po. seus direitos. Assim, e precise queessa pralica ocor'a sempre na fabrica, no sindicato, nopartido, no bairro, na escola, na empresa, na familia,na favela, na rua etc. E preciso trazer as coisas ate 0

visivel politico (ter presente sempre a negociagao), paraque 0 cotidiano se transforme historicamente.

Aqui, detenho-me num impasse: a justiga existente ecapaz de dar conta dos inumeros fatos que ocorremnos movimentos sociais? Reflitamos sabre a relaciona-mento entre a lei e a real. Por exemplo: ocorre umagr19ve condicionada par leis injustas. Para que a grevepossa continuar com 0 seu espfrito, fatos tem mostradoque um momenta criativo pode ajudar a criar 0 novo(normas, negociagoes reconstruidas para aquela situa-gao), sem romper completamente com a lei. Trata-sede construir a justi<;a, pois a propria Constitui<;ao e umprocesso, e nao uma Carta estagnada. Uma nova leitu-

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ra da realidadese torna a propria realidade; nisso, cons-trufmos 0 novo em torno do qual os personagens seaglulinam, lutando por algo que antes nElOviam. E nemos outros! Permanece no centro do debate a questaoda noc;ao de justic;a - de isonomia, de igualdade pe-rante a lei - contraposta a noc;ao de justic;a construfdanas multiplas relac;6es intersubjetivas.

Em suma, insisto sobre os contornos da cidadaniaplena. 0 primeiro passe e aquela revoluc;ao interna, naqual 0 rompimento com 0 autoritarismo e com 0 consu-mismo comec;a em cad a uma das subjetividades - emcad a um de nos, portanto, a todo momenta - e daqual extrafmos a forc;a subjetiva de se sobrepor ao co-tidiano e, pouco a pouco, ao mundo, ao capitalismo.Externamente, em termos de sociedade global, devemser mantidas as condic;6es minimas de democracia co-mo espac;o paraavanc;ar.

Entao, torna-se possfvel 0 desenvolvimento daquelaac;ao social de conteudo coletivo dos trabalhadores, nocampo economico, para obter os bens- e direitos a quefazem jus. E, tambem, 0 exercfcio da ac;ao social no nf-vel polftico, como construc;ao da democracia em seusentido mais ample - de usa da persuasao, do argu-mento, de construc;ao da justic;a, Iiberdade, igualdade.Retomo aqui, pela ultima vez, a dubiedade da cidada-nia: de um lado, a cidadania esvaziada, consumista; deoutro, a cidadania plena, dos que atuam nos varios nf-veis sociais, para atingir 0 nfvel mais abrangente domundo, avanc;ando nessa ac;ao como sujeitos em dire-c;ao a utopia (e ao destino da Terra em seu navegarpelo Universo).

E um imenso desafio, caro leitor, mas nao valerapena continuar essa revoluc;ao pela cidadania aqui eagora, a partir deste momento em que voce terminoupacientemente esta leitura?

••"...

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INDICA<;OES PARA LEITURA

Este pequeno texto possui muitas limita<;oes, mas espero que seuobjetivo seja atingido: 0 de tomentar 0 interesse e 0 debate sobre aquestao da cidadania e de sua liga<;ao com 0 encaminhamento dademocracia etetiva. A bibliogratia sobre 0 tema e bastante ampla,principalmente em paises onde mais se desenvolveu 0 Estado doBem-Estar, como na Inglaterra, nos paises escandinavos (e hoje, porexemplo, na Italia). Contudo, vou me restringir a uns tantos textosque, por sua vez, podem levar a outras bibliogratias de interesse doleitor.

Um texlo c1assico no assunto e Cidadania, Classe Social e Status(Citizenship and Social Class), de T. H. Marshall, publicado pel a Za-har. 0 autor taz uma importante discussao sobre cidadania e classe.sobre a contradi<;ao que essa rela<;ao encerra (a primeira categoriaaponta para igualdade e a segunda para desigualdade). E ele quemestabelece 0 aparecimento dos direitos civis, politicos e sociais cor-respondendo, cada um deles, as etapas do capitalismo: mercantilis-mo, liberalismo e monopolismo. Com certa ressalva, diria que se pro-cessou, nas tres situa<;6es, mais 0 direito de reivindicar tais direitosdo que 0 atendimento dos mesmos.

Para quem deseja saber mais sobre a origem da cidadania, dap61is grega ao liberalismo, eu lembraria Hannah Arendt (A Condir;ao

Humana, Forense Universitaria), Ernest Cassirer (Filosofia d In Illutraci6n, Fondo de Cultura Econamica) e Norberto Bobbio (0 Fufulda Democracia, Paz e Terra). Outra interessante retlex30 sobre clda·dania e Estado de Direito,acenando com 0 socialismo, e a de liaDiaz, Estado de Direito e Sociedade Democratica (Iniciativas Editor s,de Lisboa),

Sobre 0 exercicio da cidadania e a constru<;30 da hist6ria na bus-ca de uma vida melhor, que pode ser construfda cotidianamente, su-giro todos os textos de Agnes Heller, principalmente 0 Quotidiano ea Hist6ria (Paz e Terra). No Brasil, diante das decadas de governosditatoriais e do massacre da cia sse trabalhadora, com estatuto dequase n30-cidad3, quase sem direitos, sugiro textos como Brasil Nun-ca Mais (Ed. Lopes), Sao Paulo 1975 - Crescimento e Pobreza (Lo-yola), Sao Paulo - 0 Povo em Movimento (Vozes) .. Sobre 0 possivelexercicio da cidadania no ambito da popula<;30 mais ampla, seria im-portante ler tudo 0 que puder sobre movimentos sociais. DestacoQuando Novo's Personagens Entram em Cena (Paz e Terra). de EderSader, que trata das experiencias e lutas dos trabalhadores em SaoPaulo, na passagem da decada de 70 para a de 80. Nele, alem dariqueza do texlo, 0 leitor encontrara ampla indica<;ao bibliogratica so-bre movimentos e lutas populares.

Quanto a discuSS30 dos direitos sociais no capitalismo contempo-raneo brasileiro, me permito indicar 0 capitulo 3 de meu texto A Falados Homens (Brasiliense). Ali, discute-se como a classe trabalhadoratoi relegada a uma situa<;30 de quase exclusao, e assim mantida porrepressao. "Distributivismo" e "produtivismo" nao significam propria-mente distribuiC;30 e n30-distribui<;ao, sac conceitos que express mtormas de os grupos dominantes lidarem com os direitos sociais (po-Ifticas salarial, de saude, habita<;ao etc.), no periodo da chamada do-mocracia populista e periodo pas-54, respectivamente. Lembro aindaa coletanea organizada por mim, A Cidadania que nao Temos (Bra-siliense). Meu ensaio nessa coletanea (Capital Monopolista - Da Ci-dadania que nao Temos a Invenr;ao Democrafica) toi a prim Ira re-tlexao basica para a teitura do presente livreto. Da col t n a empauta, constam muitos outros artigos importantes sobre dir ita a ali-menta<;ao, a educa<;30, a saude, a habita<;30, e sobre a questao dacidadania. Recomendo tambem a coletanea Direifo, Cidadania e Par-ficipar;ao (T. A. Queiroz), 0 livro Cidadania e Jusf;r;a (de Wanderley

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Guilherme dos Santos, Campus) e 0 artigo de Maria Celia P. M.Paoli, "Violencia e Espago Civil", in Violencia Brasileira (a autora in-dica ampla bibliografia sobre a relagao violencia e cidadania), da Bra-siliense.

Sugiro ainda 0 ensaio de Francisco de Oliveira, 0 Surgimento doAntivalor (Estudos CEBRAP 22, outUbro de 1988), bastante instigantepara se pensar a questao do Welfare State e, portanto, da cidadania.

Maria de Lourdes Manzini-Covre e cientista social, do-cente da USP e da PUC. Desenvolveu atividades de pesqui-sa e docencia junto a Universidade de Bolonha.

E autora de varios textos, destacando-se A cidadania quen{io temos (organizadora; Brasiliense, 1986), Educa9{io, tec-nocracia e democratiza9{io (Atica, 1990), A forma9{io e ide-ologia do administrador de empresas (Cortez, ed. revista eampliada, 1991), 0 que e cidadania (Brasiliense, 1991).