Princípios de Semiótica Musical

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  • Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC Centro de Artes CEART Departamento de Msica Laboratrio de Ensino da rea de Fundamentos da Linguagem Musical

    Anlise Musical1 semestre de 2005

    Prof. Srgio Freitas

    Semitica Musical: conceitos gerais1por Fernando Lewis de Mattos 1.1. Conceitos Gerais sobre Semitica Semitica, em um sentido amplo, a cincia que se dedica ao estudo dos signos. A origem da palavra semitica vem do vocbulo grego semeon, que significa signo. Todorov (1988)2 considera o signo como sendo a noo bsica de toda a cincia da linguagem (p. 101), definindo-o como sendo uma entidade que 1) pode tornar-se sensvel e 2) para um grupo definido de usurios. A parte do signo que pode tornar-se sensvel denomina-se, desde Saussure, significante, a parte ausente, significado, e a relao mantida por ambos, significao (ibid., p. 102). Em outras palavras, o signo sempre alguma coisa que est no lugar de outra coisa, que substitui outra coisa. O Novo Dicionrio Aurlio define o signo como uma entidade constituda pela combinao de um conceito, denominado significado, e uma imagem acstica, denominada significante (...), a imagem acstica de um signo lingstico no a palavra falada (ou seja, o som material), mas a impresso psquica deste som (...) (1986, p. 1584). Em outro momento, o mesmo dicionrio define o signo como todo objeto, toda forma ou fenmeno que representa algo distinto de si mesmo (ibid.). Desta forma, o signo sempre algo que representa algo que est fora de si mesmo, algo que remete para outra situao que no a situao concreta que experimentada. H uma diviso geral nas cincias da linguagem que distingue duas categorias cientficas que se dedicam ao estudo do signo: 1) Semitica estudo dos signos com base na filosofia, em especial desenvolvida por Charles

    Sanders Peirce (filsofo norte-americano, 1839-1914); 2) Semiologia estudo dos signos com base na lingstica, especialmente a partir da teoria

    lingstica geral de Ferdinand de Saussure (lingista suo, 1857-1913). 1.1.1. As diversas teorias sobre o signo Trabant (1976)3, e Nth (1995; 1996)4 dedicam-se ao estudo de vrias teorias semiticas ao longo da histria, desde Plato ao sculo XX. A seguir ser apresentada uma sntese das pesquisas

    1 Fonte: Polgrafo para a disciplina Forma e Anlise Musical IV | Fernando Lewis de Mattos | Ufrgs (s.d.). 2 TODOROV, Tzvetan; DUCROT, Oswald. Dicionrio enciclopdico das cincias da linguagem. So Paulo: Perspectiva, 1988. Nascido em Sfia, na Bulgria, em 1939, Tzvetan Todorov muda-se para Paris em 1963, aps completar seus estudos, passando a freqentar ento os cursos de Filosofia da Linguagem ministrados por Roland Barthes, um dos grandes tericos do Estruturalismo. Todorov foi professor da cole Pratique de Hautes tudes e na Universidade de Yale e Diretor do Centro Nacional de Pesquisa Cientfica de Paris (CNRS). Atualmente Diretor do Centro de Pesquisa sobre as Artes e a Linguagem da mesma cidade. Publicou um nmero considervel de obras, que esto hoje traduzidas em vinte e cinco idiomas, alm disso, produziu vastssima obra na rea de pesquisa lingstica e teoria literria. O pensamento de Todorov direciona-se, aps seus primeiros trabalhos de crtica literria sobre poesia eslava, para a filosofia da linguagem, numa viso estruturalista que a concebe como parte da semitica (saussuriana), fato que se deve aos seus estudos dirigidos por Roland Barthes. Com a publicao de A Conquista da Amrica, Todorov expe suas pesquisas a respeito do conceito de alteridade, existente na relao de indivduos pertencentes a grupos sociais distintos, cujo tema central encontra justificativa na situao do prprio autor, que imigrante na Frana, um pas onde a relao entre nacionais e estrangeiros historicamente marcada por um xenofobismo no declarado. [Origem: Wikipdia, a enciclopdia livre]. 3 TRABANT, Jrgen. Elementos de semitica. Lisboa: Editorial Presena, 1980. 4 NTH, Winfried. Panorama da semitica de Plato a Peirce. So Paulo: Annablume, 1995. NTH, Winfried. A semitica no sculo XX. So Paulo: Annablume, 1996.

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    desenvolvidas por estes dois autores, separando-se entre aqueles pensadores que desenvolveram teorias didicas do signo (ou bipartidas, dividido-o em dois elementos) daqueles que desenvolveram teorias tridicas (dividindo o signo em trs elementos). As teorias didicas do signo so aquelas que consideram que o signo uma coisa que est por outra coisa. As teorias tridicas dividem o signo em trs elementos: 1) o significante aquilo que substitui algo (a palavra cavalo, por exemplo); 2) o significado a idia gerada pelo significante (a imagem mental gerada pela palavra cavalo); 3) o referente aquilo que representado pelo significante (o cavalo real representado pela palavra). As teorias didicas dividem-se entre:

    1. Aquelas que consideram que h somente o significante (palavra cavalo) e o significado (idia de cavalo). Entre estas se encontram os modelos desenvolvidos pelos filsofos racionalistas do sc. XVII, em especial Rn Descartes (1596-1650), cuja teoria descreve o processo cognitivo como uma cadeia de razes independente da realidade sensorial; assim, o processo semitico fica completamente confinado mente, desde a recepo at a compreenso do signo (NTH, 1995, p. 43). Thomas Hobbes (1588-1679) definiu que os nomes so signos das nossas concepes e no das coisas mesmas (HOBBES apud NTH, 1995, p. 45), desta maneira os signos no se referem ao mundo, mas a outros signos gerando uma rede de tramas mentais. Os empiristas John Locke5 (1632-1704) e George Berkeley (1685-1753) tambm tinham uma concepo didica do signo, considerando que a matria no participa do processo de semiose. Locke distinguia duas classes de signos: as idias, que representam as coisas na mente de quem as percebe, e as palavras, que so signos das idias na mente de quem as utiliza. O construtivismo radical dos bilogos Maturana e Varela (1972) postula que o signo jamais poderia ser originado fora da mente, defendendo que todo o processo cognitivo puramente mental.

    2. Aquelas que consideram que h somente o significante (palavra cavalo) e o referente

    (cavalo real). Entre aqueles que postularam este modelo esto os epicuristas (ca. 300), cuja teoria divide o signo em significante (coisa percebida como signo) e referente (objeto referido pelo signo). Os elementos do modelo epicurista so os seguintes:

    semanon significante | tygchnon objeto referido

    Para Aurlio Agostinho (345-430), que definiu (com base nos epicuristas) o signo como um fato perceptivo que representa alguma coisa atualmente no perceptvel, o signo uma coisa que, alm da impresso que produz nos sentidos, faz com que outra coisa venha mente como conseqncia de si mesma (AGOSTINHO apud NTH, 1995, p. 34).

    Os processos elaborados pelas teorias didicas do signo poderiam ser sintetizados pelo esquema abaixo: Sistema: Coisa 1 (signo) Coisa 2 (objeto representado) Coisa 1 (signo) Coisa 2 (conceito) Exemplos: Fumaa Fogo Fumaa Idia de Fogo

    5 O empirista britnico John Locke considerado como o primeiro pensador a utilizar o termo semitica com o sentido que esta palavra possui atualmente.

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    Teorias tripartidas do signo

    As teorias tradicas do signo acrescentam, ao sistema didico anterior, uma distino entre a coisa designada e o conceito (ou idia) gerado no interregno entre a coisa que representa (Coisa 1) e a coisa representada (Coisa 2). Desta forma, tm-se as teorias que dividem o signo em trs partes: 1) o significante (Coisa 1, aquilo que designa outra coisa); 2) o significado (conceito ou idia gerado pelo significante); 3) o referente (objeto, evento ou conceito representado pelo significante). Conforme Trabant:

    Se bem que muitos tericos estejam de acordo em que se deve estabelecer uma distino entre a coisa designada, por um lado, e o conceito ou idia, por outro, a maneira como se deve conceber a relao entre signos, conceitos e a coisa designada constitui um dos problemas mais controversos da filosofia (1976, p. 31).

    Entre os autores e escolas que desenvolveram teorias tridicas do signo esto: Na Antigidade, os principais pensadores que desenvolveram teorias tridicas sobre o signo so Plato (427-347 a. C.), Aristteles (384-322 a. C.) e os esticos (ca. 300 a. C. 200 d. C.). Abaixo, os modelos apresentados por estes pensadores:

    O modelo platnico O modelo aristotlico O modelo estico

    Nmos - o nome

    Symbolon o smbolo lingstico, definido como um signo convencional

    Semanon entidade percebida como signo (significante)

    Edos ou Lgos a noo ou idia Pathmata as afeies da alma provocadas pelo signo

    Semainmenon o conceito gerado pelo signo (significado)

    Prgma - a coisa qual o signo se refere

    Prgmata os retratos das coisas representadas pelo signo

    Tygchnon o evento ou objeto ao qual o signo se refere (referente)

    Na Idade Mdia, os pensadores de maior influncia foram os chamados escolsticos, que dividiam-se em realistas e nominalistas (cujas teorias sero abordadas a seguir). Os principais dentre estes pensadores foram o nominalista Roger Bacon6 (1215-1294), Duns Scott (1270-1308) e Willian Ockham (1290-1349).

    A distino entre denotao e conotao provm da semitica desenvolvida neste perodo, quando tambm uma teoria da representao comeou a estudar as funes semiticas de signos, smbolos e imagens (NTH, 1995, p. 37).

    Outro elemento importante na semitica medieval a interpretao da Bblia com base em modelos pansemiticos a partir de quatro nveis:

    1. Sentido literal por exemplo: Jerusalm a cidade dos judeus; 2. Sentido moral por exemplo: Jerusalm a alma do homem; 3. Sentido alegrico por exemplo: Jerusalm a Igreja de Cristo; 4. Sentido anaggico7 por exemplo: Jerusalm a cidade de Deus no cu.

    6 As discusses de Bacon em torno do nome das coisas (da nominalismo), utilizando principalmente o nome da rosa como referencial, inspirou outro nominalista contemporneo, Umberto Eco a escrever seu famoso romance O Nome da Rosa, no qual entram discusses que retomam a escolstica medieval. 7 Anagogia a elevao da alma na contemplao das coisas divinas, tambm a interpretao das Escrituras Sagradas, ou de outros textos (Virglio, Dante, etc.) que permite passar do sentido literal ao sentido mstico (NOVO DICIONRIO AURLIO, 1986, p. 112).

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    No Renascimento, esta viso pansemitica foi utilizada tambm para as investigaes das Cincias Naturais, pois eram entendidas como assinaturas deixadas pelo Criador em vrios cantos do mundo. Teoria Realista do Signo

    A posio realista considera os conceitos como grandezas espirituais independentes das coisas reais, que mantm uma relao convencional com as palavras (signos). Estabelece-se, portanto, uma distino entre o signo e o conceito, por um lado, e a relao do signo e do conceito com a coisa designada, por outro (TRABANT, 1976, p. 31-32). Desta forma, os conceitos so interpretados como sendo independentes dos processos psicolgicos individuais de cada sujeito, isto , como sendo entidades que existem em um plano ideal independente do sujeito. Este plano ideal poderia ser o resultado de uma estrutura superior ou das relaes sociais que se desenvolvem em cada grupo humano. Este sistema poderia ser representado genericamente pelo seguinte esquema:

    Significante Significado [plano ideal geral] Sistema: Referente [mundo material]

    Palavra Cavalo Conceito de Cavalo Exemplo: Animal Cavalo

    Teoria Nominalista do Signo Para os nominalistas medievais seria incorreto aceitar a existncia de um mundo das idias como sendo superior e independente dos indivduos, pois todas as idias so geradas por indivduos e somente se tornam gerais quando compartilhadas por um grupo de indivduos. Desta forma, as idias ou conceitos so concebidos como representaes individuais, que esto pelas coisas reais, e as palavras como os signos destas representaes. Para o nominalismo somente so reais as coisas e os nomes, e no os conceitos gerais. Os signos so os meios que conferem realidade s idias, os nomes so as realidades das idias, que de outra maneira permaneceriam ocultas no ntimo do sujeito (da nominalismo) (ibid., p. 33). A teoria nominalista poderia ser sistematizada da seguinte forma: Sistema: Idia [plano espiritual] Exemplar de Significante8 Referente [plano material] Exemplo: Conceito Geral de Cavalo Palavra Cavalo (Nome) Cavalo Real Trabant (ibid., p. 55) realiza, para fins de entendimento e expanso dos conceitos realista e nominalista sobre o signo, uma projeo da teoria realista sobre a teoria nominalista, esquematizando da seguinte maneira:

    8 Neste sentido, o exemplar de significante uma imagem material perceptvel atravs dos sentidos (p. ex.: o som concreto da palavra cavalo), enquanto que o referente no necessariamente perceptvel (p. ex.: um cavalo real, individual).

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    Sistema: Significante Significado [plano ideal geral] Idia Plano do indivduo e da matria Exemplar de Significante Referente Exemplo: Palavra Cavalo Conceito [plano ideal geral]

    Geral de Cavalo Representao

    do Conceito de Cavalo Plano do indivduo e da matria Som da palavra Cavalo Cavalo Real Teoria Pragmtica do Signo (Peirce)

    Charles Sanders Peirce (1839-1914), um dos fundadores do pragmatismo norte-americano e pensador que se dedicou a vrios campos do conhecimento (matemtica, fsica, astronomia, qumica, filosofia e lgica), um dos iniciadores da semitica geral contempornea. Sua teoria pansemitica, pois para ele o homem um signo (PEIRCE apud NTH, 1995, p. 63). Peirce desenvolveu sua fenomenologia9 com base em trs categorias universais, sendo seu modelo filosfico um dos mais amplamente tridicos j elaborados. As categorias peirceanas so:

    Primeiridade Secundidade Terceiridade o sentimento imediato e presente das coisas, sem nenhuma relao com outros fenmenos do mundo, sem reflexo: primeiridade o modo de ser daquilo que tal como , positivamente e sem referncia a outra coisa qualquer (ibid., p. 65).

    Inicia quando se relacionam um primeiro fenmeno a um segundo: ela nos aparece em fatos tais como o outro, a relao, compulso, efeito, dependncia, independncia, negao, ocorrncia, realidade, resultado (ibid., p. 66).

    a categoria que relaciona o fenmeno segundo a um terceiro fenmeno: a categoria da mediao, do hbito, da memria, da continuidade, da sntese, da comunicao, da representao, da semiose e dos signos (ibid., p. 66).

    Para Peirce, todo o signo ocorre em uma relao tridica, ou seja, entre trs elementos e com base nas trs categorias. Por exemplo, ao sentirmos o perfume de determinada flor que nos lembra uma situao agradvel vivida h anos: a primeiridade seria a experincia sensorial olfativa de percepo do perfume, a secundidade seria o primeiro momento em que este perfume nos traz a experincia passada memria, a terceiridade seria o processo de conscientizao desta memria e de sua sensao agradvel, atravs de uma teia de relaes mentais j existentes, que permite contar, 9 Fenomenologia o estudo descritivo de um fenmeno ou de um conjunto de fenmenos em que estes se definem quer por oposio s leis abstratas e fixas que os ordenam, quer s realidades de que seriam a manifestao (NOVO DICIONRIO AURLIO, 1986, p. 769). Este termo foi cunhado por J. H. Lambert (1728-1777), com o sentido de uma doutrina das aparncias. Os principais pensadores que desenvolveram teorias fenomenolgicas so Hegel, Peirce, Husserl, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty e Paul Ricoeur. A mais difundida a fenomenologia de Husserl, que consiste em um retorno essncia das coisas mesmas, como negao da cincia e como uma nova forma de significao do mundo com base nos dados originrios da experincia.

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    posteriormente, a experincia a algum. O sistema semitico de Peirce pode ser sintetizado no quadro abaixo:

    Tricotomias I II III Categorias REPRESENTAMEN em si Relao ao OBJETO Relao ao INTERPRETANTE

    PRIMEIRIDADE QUALI-SIGNO CONE REMA SECUNDIDADE SIN-SIGNO NDICE DICENTE TERCEIRIDADE LEGI-SIGNO SMBOLO ARGUMENTO

    Em seu modelo, Peirce realiza uma diviso do signo, no processo de semiose10, em trs categorias (primeiridade, secundidade e terceiridade) que apresentam trs correlatos do signo (representamen, objeto e interpretante) que, por sua vez, se dividem, cada um, em trs classes (o representamen divide-se em: quali-signo, sin-signo e legi-signo; o objeto divide-se em: cone, ndice e smbolo; o interpretante divide-se em: rema, dicente e argumento). Abaixo, ser apresentada uma explicao sinttica desta terminologia. Na terminologia peirceana, o REPRESENTAMEN a parte perceptvel do signo, ou seja, aquilo que chega ao receptor atravs dos sentidos (o som da palavra cavalo, por exemplo11). A diviso do representamen em trs classes, com base nas categorias primeiridade, secundidade e terceiridade, a seguinte (chamada de primeira tricotomia): quali-signo a qualidade do signo, o signo em si mesmo, que participa da categoria de primeiridade do representamen;

    sin-signo a existncia singular do signo como algo concreto no mundo, participa da categoria de secundidade do representamen;

    legi-signo a lei geral que permite a comunicabilidade, ou seja, que haja a comunicao por meio deste signo, o legi-signo participa da categoria de terceiridade do representamen.

    Desta forma, cada palavra de determinada lngua humana (a palavra cavalo em portugus, por exemplo) um legi-signo (uma lei geral), enquanto que a utilizao concreta desta palavra em uma frase singular, formulada por um emissor especfico, um sin-signo. O quali-signo apenas uma qualidade que um signo, que no pode atuar como um signo enquanto no se corporificar (ibid., p. 78). Aquela parte do signo qual Peirce denomina OBJETO corresponde ao referente em outras teorias semiticas. Este objeto pode ser tanto algo material, um objeto concreto do mundo (uma mesa, por exemplo), como pode ser uma entidade mental ou emocional (o sentimento de gratido, por exemplo), ou, ainda, algo inimaginvel em um certo sentido (o exemplo de Peirce a palavra estrela, que no imaginvel por si mesma, mas somente no sentido em que significa: 1. um astro luminoso, 2. um artista famoso ou 3. a boa sorte estrela da sorte). O objeto composto pelos seguintes elementos (segunda tricotomia):

    cone o elemento do signo que faz parte do objeto, em que h similaridade entre o representamen e o objeto. Desta forma, o cone participa da categoria de primeiridade do objeto. Um cone de um cavalo poderia ser uma pintura ou uma fotografia do cavalo;

    ndice

    Participante da categoria de secundidade de um objeto, o ndice est fisicamente conectado com seu objeto; formam, ambos, um par orgnico. Porm a mente interpretativa no tem nada a ver com essa conexo, exceto pelo fato de registr-la depois de estabelecida (ibid., p. 84). Um ndice de um cavalo poderia ser o seu relinchar ou o som de seus cascos;

    smbolo um signo arbitrrio, que faz parte de um cdigo e depende de convenes sociais estas podem ser geradas tanto pelo hbito, quanto por leis, regras ou memria coletiva. Participa da terceiridade do objeto. A palavra cavalo, falada ou escrita, um smbolo de um cavalo.

    10 Semiose o processo total de ao do signo sobre o intrprete deste signo (o receptor, na terminologia da Teoria da Comunicao). Os lingistas franceses tambm chamam de semiose os diferentes cdigos de comunicao no verbais, tais como a linguagem dos gestos, a msica, a matemtica, etc. Para estes lingistas, em especial Barthes (1992), para que um cdigo de comunicao possa receber o estatuto de linguagem, deve preencher certos requisitos, como ter uma sintaxe formalmente elaborada (gramtica) e uma semntica com base em um lxico (dicionrio). Somente as lnguas preenchem estes requisitos. Por esta razo, os outros cdigos de comunicao so chamados de semiologias, ou semioses. 11 Neste sentido, o representamen de Peirce o mesmo que o significante de Saussure, ou o semanon dos esticos.

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    O INTERPRETANTE, para Peirce, aquilo que gerado pelo signo na mente do intrprete. Para Peirce um signo [representamen] dirige-se a algum, isto , cria na mente dessa pessoa um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Chamo o signo assim criado de interpretante do primeiro signo (ibid., p. 74). Os elementos que fazem parte do interpretante so os seguintes (terceira tricotomia): Rema (do grego rhma, palavra)

    qualquer signo que no verdadeiro nem falso, como quase cada palavra por si mesma, exceto as palavras sim e no (ibid., p. 90); por ser a palavra isolada, o rema, que pertence primeiridade do interpretante, a possibilidade puramente qualitativa do signo, pois ainda no faz parte de qualquer sentena para que possa ser comprovada ou refutada. A palavra cavalo isolada de qualquer contexto de significao um rema;

    Dicente Pertencente secundidade do interpretante, o dicente corresponde categoria lgica da proposio12, ou seja, um signo com existncia real que veicula informao. A afirmao o cavalo corre um dicente;

    Argumento

    o aspecto do signo que participa da categoria de terceiridade do interpretante, ou seja, ocorre quando o signo faz parte de um discurso racional mais amplo que permite passar da simples proposio elaborao mais completa de conceitos com premissas e concluses, como ocorre, por exemplo, no famoso silogismo13 platnico: Se todo o homem mortal, ora Scrates um homem, logo Scrates mortal.

    Com base nas tricotomias apresentadas acima, Nth (1995, p. 93-94) apresenta uma lista com as dez principais classes de signos de Peirce:

    1. o quali-signo remtico icnico uma qualidade que um signo, tal como a sensao de vermelho; 2. o sin-signo icnico remtico um objeto particular e real que, pelas suas prprias qualidades, evoca a

    idia de um outro objeto, tal como o diagrama dos circuitos eletrnicos em determinada mquina; 3. o sin-signo indicial remtico dirige a ateno a um objeto determinado pela sua prpria presena, tal

    como um grito de dor; 4. o sin-signo indicial dicente tambm um signo afetado diretamente por seu objeto, mas alm disso

    capaz de dar informaes sobre esse objeto, assim como um cata-vento; 5. o legi-signo icnico remtico um cone interpretado como lei, tal como um diagrama parte sua

    individualidade ftica em um manual de eletrnica; 6. o legi-signo indicial remtico uma lei geral que requer que cada um de seus casos seja realmente

    afetado por seu objeto, de tal modo que simplesmente atraia a ateno para esse objeto (PEIRCE apud NTH, 1995, p. 94), como o pronome demonstrativo aquele;

    7. o legi-signo indicial dicente uma lei geral afetada por um objeto real, de tal modo que fornea informao definida a respeito desse objeto, tal como uma placa de trnsito;

    8. o legi-signo smbolo remtico um signo convencional que ainda no tem o carter de uma proposio, tal como um dicionrio;

    9. o legi-signo smbolo dicente combina smbolos remticos em uma proposio, sendo, portanto, qualquer proposio completa;

    10. o legi-signo simblico argumento o signo do discurso racional, tal como um silogismo.

    12 Em lgica, proposio a unidade mnima com significado, pois a expresso de idias completas (combinao de, pelo menos, um sujeito e um predicado) que permite a verificao da propriedade de falso ou verdadeiro. Assim, a palavra cavalo isolada no pode ser uma proposio, enquanto que a sentena todo o cavalo voa uma proposio falsa e o cavalo um mamfero uma proposio verdadeira. 13 Silogismo um argumento formado por trs proposies: a premissa maior, a premissa menor e a concluso, que deduzida pela concatenao da premissa maior com a menor. Por exemplo: Se A B, ora B C, logo A C (cf. exemplo acima).

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    Teoria Lingstica do Signo (Saussure) A teoria do signo de Ferdinand de Saussure14 (1857-1913), considerado pai da lingstica moderna, acrescenta fundamentos com base na Psicologia Social e no somente na lgica, como ocorre com as teorias realistas e nominalistas. Saussure apresenta trs diferenas importantes com relao s teorias anteriores: 1. a Coisa 1, o signo, tal como a Coisa 2 (conceito e referente) diferenciada, na medida em que 2. se estabelece uma distino entre o plano do sistema de signos (a lngua) e o plano de

    atualizao dos signos (a fala)15. 3. O signo passa a ser no apenas a coisa 1, mas em certa medida a unidade constituda pela Coisa

    1 e pela Coisa 2, ou antes, a unidade constituda pela imagem acstica e pelo conceito (cf. TRABANT, 1976, p. 40).

    A influncia da obra Curso de Lingstica Geral (1916), uma compilao dos cursos oferecidos por Saussure em Genebra realizada por Charles Bally, foi de grande influncia no desenvolvimento subseqente da lingstica. Saussure define o signo lingstico como sendo arbitrrio (convencional), apresentado como a combinao de uma imagem acstica (o significante, a Coisa 1) com um significado (o conceito gerado pelo significante). Outra importante contribuio de Saussure foi a distino entre a tradicional anlise diacrnica (evoluo histrica da lngua) e a anlise sincrnica (funcionamento da lngua em um dado momento histrico). Saussure sublinha que o signo une no uma coisa e um nome, mas um conceito e uma imagem acstica. O significado de cavalo no , pois, nem um cavalo, nem o conjunto dos cavalos, mas o conceito cavalo. (...) No significado de um signo encontram-se apenas os traos distintivos que o caracterizam relativamente aos outros signos da lngua e no uma descrio completa dos objetos que ele designa (TODOROV, 19, p. 229-230). Assim, os signos so definidos negativamente, isto , em comparao quilo que no significam em um determinado sistema lingstico, e no por seu contedo implcito. Trabant esquematiza a teoria de Saussure da seguinte forma:

    Sistema16: Significante Significado [modelo coletivo psicolgico social] Imagem Acstica Representao [processos psicolgicos indiv. indiv. Individuais] Exemplar de Significante Referente [realizao individual e material]

    14 Conforme j foi visto, costuma-se distinguir a semitica, de origem norte-americana com base na filosofia de Peirce, da semiologia, de origem francesa e fundamentada na lingstica de Saussure. 15 A lngua (langue), para Saussure, o sistema lingstico geral atravs do qual determinados grupos humanos se comunicam, por exemplo: a lngua portuguesa. A fala (parole) seria a utilizao prtica deste sistema lingstico geral e abstrato em cada situao especfica, por exemplo: o portugus falado em Angola, em Timor Leste ou no Sul do Brasil (cf. Barthes, 1992, p. 17-18). 16 Nth (1995, p. 42) considera que o modelo semitico de Saussure seria didico, pois, para Saussure, o significante seria uma imagem acstica, ou seja, mental e no um estmulo externo.

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    Exemplo: Palavra Cavalo Conceito Geral [modelo coletivo em geral de Cavalo psicolgico social] Impresso psquica Representao [processos

    gerada pelo som da individual do conceito psicolgicos palavra cavalo no de cavalo individuais]

    indivduo

    Som da palavra Cavalo Cavalo Real [realizao individual e material]

    Teoria Behaviorista do Signo (Morris) Se a teoria de Saussure aproxima-se mais da teoria realista por levar em considerao processos sgnicos gerais, a teoria de Charles William Morris (n. 1901) aproxima-se da teoria nominalista por considerar os signos em sua utilizao prtica. Morris distingue trs reas de atuao e estudo do signo: a sintaxe (estudo das relaes entre os signos), a semntica (o significado dos signos, ou aquilo que os signos designam) e a pragmtica (o significante dos signos, ou aquilo que os signos interpretam), mantm a distino de Saussure entre a lngua e a fala, assim como sua dependncia mtua. Morris diferencia-se da posio nominalista em trs aspectos (cf. TRABANT, 1976, p. 49-50): a) A teoria nominalista inflectida no sentido de um behaviorismo materialista cientfico, ou seja,

    a teoria do signo de Morris explicitada segundo conceitos behavioristas no sentido de comportamentos observveis, concebidos como sendo a reao de um organismo a estmulos. Assim, desenvolve uma Semitica Descritiva, da qual o objeto de estudo seria o comportamento sgnico.

    b) Em segundo lugar, a teoria do signo de Morris uma teoria da recepo dos signos, enquanto que a teoria nominalista atendia produo destes.

    c) Em terceiro lugar, Morris, uma vez que no pode falar de grandezas espirituais no observveis, no sentido das idias nominalistas, completa o modelo nominalista com a noo de designatum17, que no tem o significado de uma grandeza conceptual, mas sim de uma classe de referentes.

    O comportamento sgnico demonstrado por Morris atravs de dois exemplos: 1. Um co devidamente condicionado corre para determinado local quando ouve uma campainha. 2. Um motorista modifica seu percurso para chegar em determinada cidade quando informado

    que a estrada principal est bloqueada. Nos dois casos, tanto o toque da campainha quando a informao verbal, o que ocorre so signos, ou seja, estmulos que desencadeiam determinadas reaes. A disposio para responder a determinado estmulo sgnico atualiza-se da seguinte maneira:

    17 Por designatum, Morris entende a relao estabelecida em determinada classe de coisas (p. ex.: classe de coisas cavalo).

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    perante a presena do portador do signo o organismo no se apercebe da presena de determinada coisa material o referente , mas sim de uma classe de coisas, ou seja, o intrprete, em conseqncia dessa disposio (interpretante18), responde como se o denotatum19 estivesse presente: o co corre para o local onde normalmente encontra o alimento aps ouvir a campainha. Aquilo que o intrprete se apercebe, condicionado pelo interpretante e devido presena do portador do signo, no apenas um denotatum, mas sim um designatum, isto , a totalidade dos objetos que tm a propriedade de que o intrprete se apercebe atravs da presena do portador do signo (ibid., p. 52).

    A teoria behaviorista do signo poderia ser representada pelo seguinte esquema: Sistema: Interpretante

    Significante Classes de [Classe] referentes

    Exemplar de Significante Referente [Elemento da da Classe: Indivduo]

    Exemplo: Disposio condicionada para reconhecer os cavalos

    Palavra Cavalo Classe de [Classe] Referentes: Cavalo

    Som da palavra Cavalo Cavalo Real [Elemento da Classe: Indivduo]

    Referncias BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. So Paulo: Cultrix, 1992. COOK, Nicholas. A guide to musical analisys. New York: Norton, 1987. CORTOT, Alfred. Curso de interpretao musical. Braslia: Musimed, 1986. DICIONRIO DE MSICA ZAHAR. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. ENCICLOPDIA ILUSTRADA LAROUSSE Cultural. So Paulo: Nova Cultural, 1993. MITIDIERI, Ricaro Athaide. Semitica e msica. Dissertao de Mestrado. So Leopoldo: Unissinos, 1997. MOLINO, Jean. Fait musical et smiologie de la musique. Musique en Jeu, n. 17, p. 37-62, 1975. NATTIEZ, Jean-Jacques.Fondements dune semiologie de la musique. Paris: Union Gnrale dditions, 1975. NATTIEZ, Jean-Jacques. Music and discourse - toward a semiology of music. Princeton: Princeton University Press, 1990a. NATTIEZ, Jean-Jacques.Semiologia musical e pedagogia da anlise. Opus, Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 50-58.jun. 1990b. NTH, Winfried. Panorama da semitica de Plato a Peirce. So Paulo: Annablume, 1995. NTH, Winfried. A semitica no sculo XX. So Paulo: Annablume, 1996. NOVO DICIONRIO AURLIO da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. RATNER, Leonard. Classic music expression, form and style. New York: Schirmer, 1980. TARASTI, Eero. A theory of musical semiotics. Bloomington: Indiana University Press, 1994. TARASTI, Eero et al. Musical semiotics in growth. Bloomington: Indiana University Press, 1996. TRABANT, Jrgen. Elementos de semitica. Lisboa: Editorial Presena, 1980. TODOROV, Tzvetan; DUCROT, Oswald. Dicionrio enciclopdico das cincias da linguagem. So Paulo: Perspectiva, 1988.

    18 Morris busca em Peirce o conceito de interpretante, porm o utiliza em um sentido comportamentalista. Para Morris os interpretantes so as disposies gerais para determinado comportamento, ou seja, so disposies orgnicas dos seres vivos para responder a um determinado signo-estmulo. Desta maneira, o conceito de interpretante substitui a idia da teoria nominalista, porm no como grandeza mental, mas como disposio comportamental. 19 Para Morris, denotatum o referente observvel em todos os comportamentos sgnicos (p. ex.: a palavra cavalo).

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    1.2. Semitica da Msica1 por Fernando Lewis de Mattos

    1.2.1. Tripartio semiolgica e anlise musical Nattiez (1975) utiliza a diviso do fato musical2 em trs dimenses analticas, conforme proposta por Molino (1975). Estas dimenses so denominadas: a) nvel poitico (do grego: poietiks, que produz, que cria; poesis, ao de fazer algo) este nvel

    concernente ao processo de composio, em que so considerados todos os aspectos que colaboram para o entendimento do ato de criao, tais como sociologia e histria da msica, biografia do compositor, aspectos antropolgicos3, etc.;

    b) nvel neutro a prpria obra musical (neutro porque no existe por si mesmo, mas somente na medida em que h quem a realiza compe e/ou toca e quem a percebe), so considerados todos os aspectos que colaboram para o entendimento da obra (independentemente de como foi concebida ou de como percebida), tais como anlise morfolgica, anlise harmnica, etc.;

    c) nvel estsico (do grego: aisthetiks, sensvel; asthesis, ato de perceber) este o processo de recepo da obra musical por parte dos ouvintes, em que so considerados os aspectos que fazem parte da recepo da obra, tais como psicologia da audio, acstica musical, esttica musical, etc.

    Este modelo tripartido representado por Nattiez da seguinte forma:

    nvel poitico nvel neutro nvel estsico Os princpios nos quais repousa o modelo tripartido so os seguintes (cf. NATTIEZ, 1990b, p. 54):

    1) Toda obra musical o produto de uma atividade composicional criadora especfica: o processo

    poitico; 2) Esse processo poitico deixa um trao: onda sonora que o gravador pode registrar no caso da

    msica de tradio oral, ou partitura que permite que a obra seja reproduzida no caso da msica ocidental;

    3) Esse trao, quando executado, d lugar a processos perceptivos (qualificados de nvel estsico ou estsica) por parte dos ouvintes. (Note-se o sentido da seta que se encontra direita no esquema). Na perspectiva semiolgica de Molino no h transmisso para um receptor das intenes do compositor por intermediao de uma obra e de sua execuo; a percepo, aqui, um processo ativo de reconstruo da mensagem.

    Vrios fatores so importantes na diferenciao entre as teorias analticas tradicionais e a nova teoria de Molino/Nattiez. A primeira mudana de direo encontra-se na distino entre as pesquisas e estudos sobre a obra (nvel neutro), os processos envolvidos na composio ou execuo (poitica) e os processos envolvidos na recepo (estsica) da mesma. A teorias analticas tradicionais postulavam que o processo analtico desvendaria o processo compositivo de

    1 Fonte: Polgrafo para a disciplina Forma e Anlise Musical IV | Fernando Lewis de Mattos | Ufrgs 2 Por fato musical, os semioticistas entendem a totalidade da experincia musical, em todas as suas nuanas e caractersticas, desde a primeira idia construtiva do compositor at a audio por parte do pblico, passando por aspectos socioculturais, econmicos, histricos, estticos, interpretativos, ticos, antropolgicos, psicolgicos, etc. 3 Os aspectos concernentes interpretao e execuo por parte de instrumentistas fazem parte dos processos poiticos da interpretao e execuo musicais.

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    determinada obra4. Com a tripartio, Nattiez demonstra ser impossvel esta conexo direta entre aquilo que o ouvinte percebe e as intenes do compositor.

    Compreende-se, ento, que, por um lado, as anlises dos processos poiticos e dos processos estsicos, diversamente do que afirma a teoria clssica da comunicao, no coincidem necessariamente e que, por outro lado, as estruturas que o musiclogo ressalta na obra tm uma realidade distinta dessas duas famlias de processos (ibid., p. 55).

    Ao compreender a autonomia entre os trs nveis (poitico, neutro e estsico), Nattiez apresenta outro quadro, em que distingue seis diferentes famlias da anlise musical: Processos Poiticos Estruturas Imanentes da Obra Processos Estsicos (I) x

    Anlise Imanente

    (II) x x Anlise Poitica Indutiva (III) x x Anlise Poitica Externa (IV) x x Anlise Estsica Indutiva (V) x x Anlise Estsica Externa (VI) x = x = x Comunicao entre os trs nveis

    Anlise Holista Nattiez compreende as seis situaes analticas da seguinte maneira (cf. NATTIEZ, 1990a, p. 140-143; 1990b, p. 55-57): a) Anlise Imanente esta uma famlia de anlise que, trabalhando com uma metodologia

    explcita ou implcita, aborda somente as configurao imanentes da obra, sem tomar parte na pertinncia poitica ou estsica das estruturas assim discernidas. Em outras palavras, so as anlises que somente consideram o texto musical e no os processos e condies de criao, execuo ou recepo. Nattiez exemplifica esta famlia com a anlise rtmica de Boulez da Sagrao da Primavera (1966), a anlise da msica atonal com base na Teoria dos Conjuntos de Allen Forte, ou as anlises com base na informtica.

    b) Anlise Poitica Indutiva nesta famlia analtica procede a partir da observao da pea (o trao, ou nvel neutro) chegando a concluses sobre o processo compositivo. Esta , segundo Nattiez, uma das situaes mais freqentemente encontradas na anlise musical. O analista observa diversos procedimentos recorrentes em uma obra, ou conjunto de obras, e chega

    4 As teorias analticas tradicionais, mesmo aquelas desenvolvidas no sculo XX, como a anlise schenkeriana ou a anlise motvico-temtica, postulam que ao descobrir elementos existentes em determinada obra, o analista est desvelando as intenes do compositor ao comp-la. Schenker, por exemplo, afirmava que a anlise segmentada em nveis estruturais, desde o plano imediato (Hintergrund) em direo ao plano de fundo (Vordergurnd) e sua estrutura bsica (Ursatz), desvendaria o plano de composio de uma obra por percorrer o processo composicional desde o produto final (a obra) at sua estrutura bsica originria (seu ponto de partida).

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    concluso: difcil de crer que o compositor no tenha pensado sobre isto. Esta famlia exemplificada com a anlise motvico-temtica de Schoenberg e Rti.

    c) Anlise Poitica Externa neste caso, a situao o reverso da anterior, o musiclogo toma documentos deixados pelo compositor cartas, projetos, esboos como ponto de partida e analisa a obra com base nestas informaes. O caso mais destacado deste tipo de anlise a obra de Paul Mies (1929) em que so descobertas caractersticas estilsticas da obra de Beethoven com base nos seus esboos.

    d) Anlise Estsica Indutiva pratica-se uma anlise estsica indutiva quando se procura predizer como a obra ser percebida pelo ouvinte com base nas estruturas musicais observadas pela anlise no nvel neutro (partitura). Esta projeo da audio pode ser tanto por meio da ampliao da prpria experincia pessoal do analista (hipostasiada em conscincia universal), quanto tendo em conta as leis perceptivas gerais desenvolvidas por pesquisas no campo da psicologia. Para Nattiez, este o caso mais comum na anlise musical, em primeiro lugar porque diversas anlises desejam se colocar como sendo relevantes do ponto de vista da audio e, em segundo lugar, porque muitos analistas colocam a si mesmos como uma espcie de conscincia coletiva de ouvintes, chegando deduo isto o que se ouve, porque desta maneira que eles prprios ouvem.

    e) Anlise Estsica Externa esta famlia procede de pesquisas experimentais em que grupos de ouvintes so incentivados a dar respostas sobre aquilo que esto ouvindo. Desta forma, a anlise fundamenta-se no sobre as obras, mas sobre as respostas de sujeitos que as percebem em situaes experimentais. Assim, o processo analtico principia com as informaes coletadas dos ouvintes dirigindo-se, posteriormente, compreenso de como a obra (ou conjunto de obras) percebida. Esta famlia amplamente estudada nas pesquisas em psicologia da msica, tendo ganhado considervel impulso nos ltimos anos com as pesquisas cognitivas.

    f) Anlise Holista esta a situao analtica mais complexa, na qual a anlise imanente (do nvel neutro) tomada como sendo igualmente relevante tanto para o entendimento dos processos poiticos quanto para os processos estsicos. Em outras palavras, o analista considera que as observaes realizadas no campo da anlise imanente correspondem tanto aos processos de composio e execuo, quanto aos processos de recepo da obra (em todas as peculiaridades possveis). A anlise schenkeriana seria o exemplo mais conhecido desta famlia analtica, pois Schenker acreditava que o seu procedimento analtico iria revelar, por um lado, os passos da composio e, por outro lado, as estruturas que deveriam ser explicitadas pelo intrprete, pois, assim, seriam percebidas pelo ouvinte.

    Com esta classificao, Nattiez pretende apresentar um ponto de partida para investigaes posteriores sobre as diferentes situaes envolvidas na anlise musical, possibilitando delinear limites claros para cada campo analtico. Alm desta classificao com base na tripartio do fato musical em trs situaes (processos de produo, obra musical e processos de recepo), Nattiez apresenta uma classificao dos campos analticos que se dedicam anlise do nvel neutro (anlise imanente) em dois tipos distintos, conforme a linguagem utilizada na reflexo analtica: 1. Anlises no-formalizadas estas so as anlises que utilizam a linguagem verbal como

    metalinguagem para discursar sobre a msica. H trs subtipos de anlise no-formalizada:

    a) Anlise Impressionista: as anlises impressionistas (ou impressionsticas) explicam o contedo musical de determinada obra em um estilo mais ou menos literrio, partindo de uma seleo inicial de elementos tomados como sendo caractersticos. Estas anlises apenas descrevem as impresses causadas pela msica no prprio analista, ou seja, no possuem qualquer valor cientfico, nenhum acrscimo ao conhecimento sobre msica. A

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    seguinte anlise, do Prlude la Prs-midi dun Faune de Debussy, pertence a esta categoria:

    A alternncia entre as divises binrias e ternrias das colcheias, as fintas maliciosas dadas pelas trs pausas, suavizam tanto a frase, a tornam to fluida, que ela escapa a qualquer rigor aritmtico. A melodia flutua entre o cu e a terra como um canto gregoriano; escorrega sobre os sinais tradicionais de diviso; desliza to furtivamente entre vrias tonalidades que se liberta sem esforo de suas amarras, e se pode esperar a primeira vez em que aparece um fundamento harmnico antes que a melodia chegue graciosa despedida de sua atonalidade casual (VUILLERMOZ apud NATTIEZ, 1990a, p. 161).

    b) Parfrase: a parfrase consiste em somente re-contar um texto musical em palavras,

    sem adicionar nada a este texto. Estas so aquelas anlises puramente descritivas em que o autor limita-se a enumerar os eventos da obra, um aps o outro. A seguinte anlise da Bourre da Suite III de J. S. Bach pertence a este tipo de anlise:

    Uma anacruse, uma frase inicial em R maior. A figura marcada com (a) imediatamente repetida, descendo uma tera e sendo empregada no decorrer de toda a pea. Esta frase imediatamente elidida com seu conseqente, que modula de R maior para L maior. A figura (a) utilizada novamente duas vezes, em um registro mais agudo em cada vez; esta seo repetida (WARBURTON apud NATTIEZ, 1990a, p. 162).

    c) Leitura Hermenutica: esta a anlise verbal mais rica e interessante, pois no apenas apresenta impresses pessoais ou descreve um texto musical, mas tambm acrescenta ao texto um grau de profundidade hermenutica e fenomenolgica que, em mos de um escritor talentoso, pode resultar em genunas obras primas interpretativas (NATTIEZ, 1990a, p. 162). As leituras hermenuticas so aquelas que acrescentam algo de significativo ao entendimento da estrutura musical, seguindo o caminho da anlise estilstica, estrutural, fenomenolgica ou especulativa.

    A transio do primeiro para o segundo tema sempre uma pea difcil da arte criar estruturas musicais; e nas raras vezes em que Schubert alcana isto com suavidade, o esforo o conduz s raias da imbecilidade (como ocorre no movimento lento do Quarteto em L menor, que em outros aspectos genial). Assim, em suas obras mais inspiradas, a transio alcanada por um abrupto coup de thatre; e de todos estes coups, sem dvida o mais rude aquele que ocorre na Sinfonia Inacabada. Muito bem, ento, h, aqui, algo de novo na histria da sinfonia, no mais novo, no mais simples do que as coisas novas que foram reveladas, uma a uma, na Nona Sinfonia de Beethoven. No importa sua origem histrica, este fato tem seus mritos. Este no seria um dos momentos mais impressionantes? (TOVEY apud NATTIEZ, 1990a, p. 162)

    Referncias BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. So Paulo: Cultrix, 1992. COOK, Nicholas. A guide to musical analisys. New York: Norton, 1987. CORTOT, Alfred. Curso de interpretao musical. Braslia: Musimed, 1986. DICIONRIO DE MSICA ZAHAR. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. ENCICLOPDIA ILUSTRADA LAROUSSE Cultural. So Paulo: Nova Cultural, 1993. MITIDIERI, Ricaro Athaide. Semitica e msica. Dissertao de Mestrado. So Leopoldo:

    Unissinos, 1997. MOLINO, Jean. Fait musical et smiologie de la musique. Musique en Jeu, n. 17, p. 37-62, 1975. NATTIEZ, Jean-Jacques.Fondements dune semiologie de la musique. Paris: Union Gnrale

    dditions, 1975.

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    NATTIEZ, Jean-Jacques. Music and discourse - toward a semiology of music. Princeton: Princeton University Press, 1990a.

    NATTIEZ, Jean-Jacques.Semiologia musical e pedagogia da anlise. Opus, Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 50-58.jun. 1990b.

    NTH, Winfried. Panorama da semitica de Plato a Peirce. So Paulo: Annablume, 1995. NTH, Winfried. A semitica no sculo XX. So Paulo: Annablume, 1996. NOVO DICIONRIO AURLIO da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. RATNER, Leonard. Classic music expression, form and style. New York: Schirmer, 1980. TARASTI, Eero. A theory of musical semiotics. Bloomington: Indiana University Press, 1994. TARASTI, Eero et al. Musical semiotics in growth. Bloomington: Indiana University Press, 1996. TRABANT, Jrgen. Elementos de semitica. Lisboa: Editorial Presena, 1980. TODOROV, Tzvetan; DUCROT, Oswald. Dicionrio enciclopdico das cincias da linguagem.

    So Paulo: Perspectiva, 1988.

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    1.2.2. A anlise distributiva de Jean-Jacques Nattiez1 por Fernando Lewis de Mattos

    Aps apresentar a concepo de Nattiez sobre a situao geral da anlise musical (no texto 1.2. Semitica da Msica), estudar-se- os seus prprios princpios analticos, que se referem especialmente anlise imanente (do nvel neutro). Este processo analtico freqentemente chamado de anlise distributiva. Esta anlise realizada em vrios estgios. O primeiro estgio da anlise distributiva a segmentao, que consiste em re-escrever a msica alinhando as recorrncias motvicas, em repeties literais ou variadas, uma abaixo da outra, classificando-as por meio de letras ou letras e nmeros (ex.: A1, A2, B1, B2). A principal diferena entre a segmentao motvica semitica e a anlise motvica de Rti consiste em que, na segmentao, se mantm o aspecto linear da msica, isto , sua seqncia temporal (sua distribuio no tempo). A leitura da segmentao no sentido convencional, da esquerda para a direita e de cima para baixo, apresenta a distribuio dos eventos musicais conforme ocorrem em sua seqncia temporal; a leitura no sentido vertical, de cima para baixo, apresenta as recorrncias do mesmo motivo e suas variaes; a leitura horizontal, da esquerda para a direita, evidencia os diferentes motivos que ocorrem na pea analisada. O mesmo processo de segmentao e explicitao pode ser realizado para a anlise de qualquer parmetro compositivo, sendo especialmente comum a segmentao rtmica. Para Nattiez, a segmentao apresenta a vantagem de no substituir a escrita musical por outro cdigo, como ocorre com as anlises no-formalizadas, que substituem a linguagem musical pela linguagem verbal. Alm disto, na segmentao, as recorrncias motvicas so explicitadas de forma imediata ao leitor, o que no acontece na partitura convencional. Por esta razo, a apresentao de um quadro de segmentao chamado por Nattiez de explicitao. Com a segmentao possvel evidenciar os tpicos paradigmticos existentes na obra musical analisada. Em lingstica, paradigmas so os modelos ou padres a partir dos quais qualquer linguagem articulada. Os paradigmas bsicos da lngua falada so os fonemas, que se articulam em unidades maiores, as palavras, que formam um nvel paradigmtico superior. Em msica, o nvel paradigmtico bsico representado pelo material sonoro utilizado em determinada pea (as notas da escala de D maior o paradigma bsico de todas as obras escritas em D maior). Como em cada obra so criadas diferentes relaes com o mesmo material sonoro (a coleo de notas da escala de D maior, por exemplo), o paradigma motvico bsico especfico de cada obra escrita com o mesmo meio sonoro distinto. Desta forma, os paradigmas motvicos da cano Ich Grole Nicht de Schumann, em D maior, so diferentes da Sonata KV 545 em D Maior de Mozart. Os tpicos paradigmticos de cada uma destas obras deve ser reconhecido e evidenciado pelo analista em um mapa de segmentao2. Assim, a anlise paradigmtica consiste, inicialmente, em reconhecer e destacar os paradigmas principais caractersticos de cada obra musical, ou seja, aquilo que a diferencia de todas as outras. No caso da cano Ich Grole Nicht de Schumann, o paradigma meldico bsico seria o movimento diatnico descendente do 3 ao 1 grau da escala e um salto posterior em direo ao 4 grau, gerando o movimento meldico: 3-2- 1-4.

    1 Fonte: Polgrafo para a disciplina Forma e Anlise Musical IV | Fernando Lewis de Mattos | Ufrgs 2 Tambm chamado de quadro de segmentao.

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    Ex. 1: R. Schumann, cano Ich grole nicht

    Na Sonata KV 545 de Mozart, o paradigma meldico bsico seria o arpejo ascendente sobre a trade de tnica com um salto descendente em direo sensvel, resolvendo na tnica, gerando o movimento: 1-3-5-7-1-2-1.

    Ex. 2: W. A. Mozart, Sonata KV 545, I. Allegro

    O passo seguinte consiste em realizar o quadro de segmentao, demonstrando como se desenvolvem e relacionam os paradigmas bsicos de determinada pea de msica. Abaixo, est reproduzida a anlise paradigmtica de Elisabeth Morin (in: COOK, 1987, p. 153-154) da primeira variao de William Byrd sobre a cano John come kiss me now:

    Ex. 3: William Byrd, Variaes sobre a cano John come kiss me now, Var. 1

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    Ex. 4: E. Morin, anlise paradigmtica meldica da Var. I de Byrd sobre John come kiss me now

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    Ex. 5: E. Morin, anlise paradigmtica rtmica da Var. I de Byrd sobre John come kiss me now Aps realizar a anlise paradigmtica, a tarefa da anlise semitica, conforme preconizada por Nattiez, consiste na realizao da anlise sintagmtica. Na terminologia de Saussure, sintagma a combinao de unidades lingsticas bsicas (paradigmas) em unidades lingsticas superiores. Na linguagem verbal, consiste na combinao de palavras (unidades paradigmticas) formando sentenas ou frases. As unidades paradigmticas (palavras) formam os sintagmas (frases) atravs de relaes sintagmticas. Na frase Menuhin um grande msico, os paradigmas so: o substantivo prprio Menuhin, o verbo ser, o artigo um, o adjetivo grande e o substantivo comum msico. O sentido da frase somente possvel porque cada um destes paradigmas (palavras) apresenta uma relao com os demais. Estas relaes ocorrem com base em vrios princpios: 1. Linearidade a ordem em que os eventos ocorrem. O sentido da frase citada anteriormente

    seria diferente se a ordem fosse: Um grande msico Menuhin, ou Menunhin um msico grande; da mesma forma, a frase no faria sentido se fosse dita da seguinte maneira: Msico um Menuhin grande isto significa que as relaes sintagmticas significativas so limitadas.

    Dizer a maneira como diferentes elementos se combinam dizer que lugares respectivos eles podem tomar no encadeamento linear do discurso (...). Por conseguinte, descrever um sintagma descrever quais unidades o constituem, em que ordem de sucesso, e, se elas no so contguas, a que distncia se encontram umas das outras (TODOROV, 1972, p. 108).

    2. Funo somente possvel reconhecer o sentido da frase porque cada palavra (paradigma) desempenha uma funo especfica, como: sujeito (Menuhin), verbo (ser) e predicado (um grande msico).

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    3. Tipo pertencem ao mesmo tipo sintagmtico aquelas unidades que possuem a mesma relao entre o sentido da seqncia total e o de seus componentes, como, por exemplo, o prefixo des pertence ao mesmo tipo sintagmtico quando acrescentado ao verbo fazer ou ao verbo colar, pois as palavras desfazer e descolar pertencem mesma categoria; porm o mesmo prefixo combinado palavra continuo, gerando a expresso descontnuo pertence a outro tipo sintagmtico, pois contnuo no um verbo, mas um adjetivo. O mesmo serve para as sentenas e frases: as sentenas Menuhin um grande msico e Pollini um excelente intrprete pertencem ao mesmo tipo sintagmtico, pois so formadas pela combinao sucessiva de: substantivo prprio + verbo + artigo + adjetivo + substantivo comum.

    4. Sentido as duas frases citadas anteriormente pertencem mesma categoria de sentido, pois

    ambas apresentam juzo de valor sobre determinado msico. J a frase Estrelas configuram a beleza do cu apresenta outro sentido, mesmo pertencendo ao mesmo tipo sintagmtico (substantivo prprio + verbo + artigo + adjetivo + substantivo comum).

    5. Nvel o nvel sintagmtico corresponde camada estrutural qual determinada unidade

    pertence: as palavras que formam uma sentena pertencem ao mesmo nvel sintagmtico; as sentenas que formam cada frase pertencem ao mesmo nvel de estrutura; frases que formam um pargrafo pertencem ao mesmo nvel sintagmtico; os pargrafos que formam um captulo de um livro pertencem ao mesmo nvel de estrutura; os captulos que formam um livro pertencem ao mesmo nvel sintagmtico. Assim, para descrever um sintagma particular, dever-se- dizer no s quais unidades o constituem, mas dentro de qual unidade se encontra (ibid., p. 109).

    Na semitica musical, a anlise sintagmtica corresponde ao estudo das relaes temporais que ocorrem na msica. Assim, a distribuio das unidades paradigmticas no tempo analisada de modo a descobrir quais so as regras que tm prioridade sobre esta distribuio (COOK, 1987, p. 165). Com a anlise sintagmtica, a anlise semitica do nvel neutro estaria completa. Neste estgio devero ser compreendidas as relaes entre as unidades sintagmticas quanto linearidade (a distribuio das unidades no tempo), s funes exercidas por cada unidade paradigmtica, aos tipos de unidades paradigmticas em diversos nveis sintagmticos e suas relaes, ao sentido especfico de cada unidade em cada momento da pea e aos nveis estruturais em que cada unidade ocorre. No ltimo estgio da anlise sintagmtica, o analista deve abstrair os materiais destacados de seus contextos especficos e apresent-los como frmula(s) simblica(s), com o intuito de descobrir quais as leis generativas gerais que podem ser aplicadas para o entendimento de cada estgio da estrutura compositiva. Para chegar a este estgio, o analista deve realizar uma lista fisionmica. Esta lista deve apresentar uma catalogao de deferentes caractersticas encontradas na obra analisada, do ponto de vista de cada parmetro (meldico, rtmico, etc.). Abaixo, est a lista fisionmica de Morin (in: COOK, 1987, p. 173) retirada de sua anlise do conjunto completo das variaes de Byrd sobre a cano John come kiss me now:

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    Ex. 6: E. Morin, lista fisionmica das variaes de Byrd sobre John come kiss me now

    Abaixo, uma sntese da anlise da pea para flauta solo Syrinx de Debussy, por Nattiez (in: COOK, 1987, p. 161-164; 180-171; 176).

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    Ex. 7: J-J. Nattiez, primeira anlise paradigmtica de Syrinx de Debussy

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    Ex. 8: J-J. Nattiez, segunda anlise paradigmtica de Syrinx de Debussy

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    Ex. 9: J-J. Nattiez, lista fisionmica de Syrinx de Debussy Referncias BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. So Paulo: Cultrix, 1992. COOK, Nicholas. A guide to musical analisys. New York: Norton, 1987. CORTOT, Alfred. Curso de interpretao musical. Braslia: Musimed, 1986. DICIONRIO DE MSICA ZAHAR. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. ENCICLOPDIA ILUSTRADA LAROUSSE Cultural. So Paulo: Nova Cultural, 1993. MITIDIERI, Ricaro Athaide. Semitica e msica. Dissertao de Mestrado. So Leopoldo:

    Unissinos, 1997. MOLINO, Jean. Fait musical et smiologie de la musique. Musique en Jeu, n. 17, p. 37-62, 1975.

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    NATTIEZ, Jean-Jacques.Fondements dune semiologie de la musique. Paris: Union Gnrale dditions, 1975.

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Music and discourse - toward a semiology of music. Princeton: Princeton University Press, 1990a.

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    So Paulo: Perspectiva, 1988.

  • Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC Centro de Artes CEART Departamento de Msica Laboratrio de Ensino da rea de Fundamentos da Linguagem Musical

    Anlise Musical1 semestre de 2005

    Prof. Srgio Freitas

    1.2.3. A anlise inter-semitica de Eero Tarasti 1por Fernando Lewis de Mattos

    Enquanto Nattiez (cf. texto A anlise distributiva de Jean-Jacques Nattiez) est interessado em resolver os problemas de anlise do fato musical em si mesmo com a tripartio deste fato em trs nveis poitico, neutro e estsico dedicando-se especialmente sobre o nvel neutro (anlise imanente), Tarasti (1996) busca estabelecer relaes entre o campo musical e outros campos semiticos, relacionando especialmente a msica com as artes visuais e a literatura. Desta forma, Tarasti realiza a anlise musical como uma espcie de metfora narrativa, tendo

    como base terica principal a Semitica Narrativa de Greimas e a tipologia dos signos de Peirce, no se tratando, porm, de uma tentativa de conciliao entre as duas linhas tericas, mas apenas um uso paralelo. Uma parte de sua tentativa vai na direo de achar analogias entre o funcionamento musical e o narrativo. Desse modo, Tarasti fala de actantes, de sujeito, objeto, modalidades e isotopia aplicados msica (MITIDIERI, 1997, p. 119).

    A narratividade em msica

    Conforme afirma Nth (1996, p.165), a Semntica Estrutural (1966) de Greimas foi considerada pela Escola de Paris como a primeira elaborao de uma semitica lingstica. A teoria de Greimas no se coloca como uma teoria sobre o signo, mas pretende ser uma teoria sobre a significao, que somente se torna operacional quando se situa tanto acima quanto abaixo do signo (GREIMAS apud NTH, 1996, p. 165). Nas pesquisas que se desenvolvem abaixo do signo, ou nvel inferior, realiza-se a diviso do signo em seus componentes semnticos que so menos do que signos. No nvel superior, ou acima do signo, desenvolvem-se pesquisas relativas s unidades textuais que produzem estruturas ou entidades semnticas que so mais do que signos. Com este projeto, busca-se explicar o funcionamento estrutural de qualquer sistema lingstico ou semitico2. Para isto, so distintas trs reas de anlise semitica:

    1. estruturas smio-narrativas so aquelas que ocorrem pela combinao de estruturas semnticas e sintticas;

    2. estruturas discursivas tm por funo trazer as estruturas superficiais ao discurso,

    ou seja, so as estruturas que localizam os atores narrativos no tempo e no espao; 3. estruturas textuais so estruturas da substncia de expresso que ocorrem, no texto

    falado, pela seqncia linear (justaposio) fontica e, no texto escrito, pelo espao visual do campo de escritura.

    Uma importante contribuio de Greimas foi a elaborao do quadrado semitico, que amplia os conceitos lgicos tradicionais de contraditrio e contrrio para um sistema amplo de significados que busca dar conta de todas as possibilidades lgicas. Este quadrado semitico o seguinte:

    1 Fonte: Polgrafo para a disciplina Forma e Anlise Musical IV | Fernando Lewis de Mattos | Ufrgs 2 Note-se aqui a semelhana com a anlise paradigmtica unidades paradigmticas bsicas (como a coleo de notas de determinada obra): menos que signos, segmentao da obra em unidades paradigmticas especficas (como motivos): signos; e com a anlise sintagmtica inter-relaes de unidades paradigmticas (como a organizao frsica de determinada obra): mais que signos.

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    Assero Negao (VIDA) (MORTE) contrariedade S1 S2

    c e o d m a p d l i e r m contra- a e t n n t e a dio m r e i l d p a m d o e c

    __ __ S2 S1 No-assero No-negao (NO-MORTE) (NO-VIDA)

    No quadro acima, S1 e S2 so semas, ou seja, unidades semnticas mnimas de estrutura abstrata e profunda que tm a funo de diferenciar significaes. Quaisquer dois semas agrupados em alguma categoria formam uma hierarquia smica, sendo que o universo dos semas representa a totalidade de categorias conceituais da mente humana (NTH, 1996, p. 172). A combinao de semas em qualquer contexto de significao constituem lexemas, que so unidades da estrutura superficial do lxico que ocorrem no nvel da manifestao, no chegando a ser unidades semnticas em si mesmos. As significaes que ocorrem como combinao de semas como unidades semnticas so os sememas3. H dois tipos de semas, na constituio de um semema: 1. semas nucleares que caracterizam um semema na sua particularidade especfica,

    independentemente de qualquer contexto; 2. semas contextuais que caracterizam-se por ser compartilhados em um contexto sintagmtico,

    ou seja, so aqueles que os sememas possuem em comum com outros elementos do sintagma.

    Na concepo lgica de Greimas, h quatro tipos de relaes lgicas (por isto, a representao por meio do quadrado):

    3 De modo simplificado, pode-se dizer que o sema seria qualquer relao fontica de determinada lngua. Sendo assim, a combinao dos semas (fonemas) 'f' e 'a' gera o semema (monema) 'fa'; a combinao do semema fa com o semema do forma o lexema (palavra) fado, que no tem um sentido determinado antes de sua atualizao em um discurso especfico como um semema (frase). Por exemplo, na frase todo o homem carrega seu fado, o lexema fado adquire o sentido de destino, tornando-se assim, um semema, pois passa a ser uma unidade semntica. A atualizao do lexema fado na frase o fado a tpica cano portuguesa constitui-se em outro semema, com sentido de cano popular portuguesa, melanclica e fatalista, usualmente com acompanhamento de guitarra (DICIONRIO DE MSICA ZAHAR, 1985, p. 120).

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    1. Contradio: a relao existente entre dois termos de uma relao binria, como

    assero/negao. Esta relao descrita como a oposio entre a presena e a ausncia de um sema. Assim um sema S1 (vida) oposto ao seu no-S1 (no-vida) no qual a vida est ausente.

    2. Contrariedade: a relao entre dois semas quando um deles implica o contrrio do outro.

    Neste caso, o contrrio de S1 (vida) S2 (morte). Na relao de contrariedade necessrio que um termo exista para pressupor o outro, ou seja, sem o conceito de vida no pode haver o conceito de morte.

    3. Implicao (ou Complementaridade): que ocorre entre os termos S1 (vida) e no-S2 (no-

    morte), ou seja, vida implica no-morte. 4. Implicao (ou Complementaridade): a mesma relao de complementaridade ocorre entre os

    termos S2 (morte) e no-S1 (no-vida), ou seja, morte implica no-vida. Conceitos da Semitica Narrativa de Greimas utilizados por Tarasti Quanto aos conceitos da Semitica Narrativa de Greimas utilizados por Tarasti, os mais significativos so os seguintes:

    I. Aspectualizao do Discurso4 As aspectualizaes descrevem elementos de continuidade e descontinuidade, estabilidade e instabilidade na representao narrativa de eventos. Esta uma dimenso dinmica na estrutura narrativa de Greimas, que se distingue em: I. Aspectualizao espacial; II. Modalidades e III. Isotopia. I. Aspectualizao espacial quanto s consideraes sobre o espao musical, Tarasti distingue:

    a) Espacialidade real que a estrutura de alturas da msica, que pode ser interpretada em dois sentidos:

    Espacialidade interna: que realizada atravs da categoria

    centro/periferia, ou seja, por tendncias centrpetas ou centrfugas em um texto musical. Algum lugar em um universo ou espao musical pode ser escolhido como um centro, com relao ao qual outros lugares podem ser mais ou menos perifricos (TARASTI, 1994, p. 79). Tarasti utiliza o conceito de Greimas de dbrayage/embrayage: o movimento a partir de um centro (dbrayage francs, debreagem) e o movimento de retorno a um centro (embrayage francs, embreagem)5. O exemplo mais caracterstico de espao real interno seriam as relaes harmnicas de afastamento e retorno tnica na msica tonal.

    4 Aspectualizao , na gramtica verbal, a categoria que indica as relaes entre processo e tempo. 5 Tarasti define debreagem espacial como o movimento para fora de alguma norma de locao de algum texto seu aqui; debreagem temporal definida como um acontecimento no passado ou no futuro em relao a um agora textual; debreagem atorial ocorre quando se focaliza a ateno para fora de um eu central, ao dirigir a ateno para outro atores. Embreagem seria o movimento oposto ao de debreagem, ou seja, o retorno a um aqui, a um agora ou a um eu central de um texto.

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    Espacialidade externa: refere-se a diferentes registros em msica; todo o material acstico musical pode ser medido com relao ao registro que ocupa. As espacializaes visuais da msica tm geralmente por base somente este tipo de espao musical externo (ibid., p. 79), como, por exemplo, os diagramas realizados por computadores e osciloscpios que descrevem o curso de linhas meldicas em grficos. Espacialidade externa tambm pode ser entendida como a posio ocupada pelos intrpretes em uma sala de concerto, como a disposio dos msicos em uma obra policoral da Escola de Veneza do sculo XVII para a Catedral de So Marcos.

    O espao musical (interno ou externo) pode ser articulado conforme as seguintes dimenses: horizontal (antes/depois), vertical (acima/abaixo), profundidade (figura/fundo) e centro/periferia no sentido de que alguma coisa em msica pode ser envolvida por outra coisa (ibid., p. 79), como ocorre quando um tema (actante musical) impulsiona a si mesmo para frente, enquanto o restante da textura o envolve ou circunda. Para Tarasti, o espao musical relaciona-se sempre com o movimento, ou seja, com sua qualidade cintica, que classificada em:

    Espaos pontuais: posies de sons e alturas separadas entre si, isto , a coleo de alturas (o meio sonoro) pelo qual constituda uma pea musical e as relaes existentes entre estas alturas (intervalos). A primeira tarefa do analista realizar um quadro topolgico destes pontos, porm deve tambm determinar quais os pontos que funcionam como centro(s) em relao ao(s) qual(is) qualquer movimento pode ser considerado como sendo embreagem ou debreagem. H uma hierarquia de pontos no espao musical, de tal forma que eles tm diferentes valores, aos quais Tarasti denomina modalidades, tomando o termo da Semntica Estrutural de Greimas.

    Os pontos, no espao musical, recebem diferentes valores modais denotando o quanto so desejados, esperados, alcanveis, possveis, necessrios, facultativos, fortuitos, etc. Mesmo peas totalmente seriais (...) so modalizadas na mente do ouvinte de acordo com alguma estrutura modal implcita do prprio texto musical. Assim, a primeira tarefa da anlise espacial da msica realizar uma anlise topolgica aproximada de quais so os pontos empregados na pea; a tarefa seguinte esclarecer como estes pontos so modalizados [como se relacionam] (ibid., p. 84).

    Transies de um espao musical para outro: a rota percorrida na mudana de

    um espao musical a outro chamada de vetor.

    Na msica tonal, a transio de um ponto A (dominante) para um ponto B (tnica) pode ser modalizado de diversas formas, isto , provido com um intenso direcionamento para algo (um querer), conforme ocorre na irrupo do tema principal no movimento lento da Quinta Sinfonia de Tchaikovsky (ibid., p. 85).

    Campos sonoros completos: acrescentando algo aos pontos e s transies entre

    estes pontos, Tarasti reconhece que o espao musical pode consistir de campos completos, que no so percebidos como conglomerados de pontos tonais salientes mas como massas sonoras ou tmbricas mais ou menos articuladas (ibid., p. 85). Este conceito no aplicado somente s obras que lidam com o

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    conceito de massa sonora, como as obras de Penderecki ou Ligeti, mas tambm a peas tonais, como ocorre no Scherzo em D# menor de Chopin, em que os campos sonoros ou as superfcies sonoras no so entidades neutras, tornando-se modalizadas quando ocorre algum movimento em direo, ou a partir, de um ponto ou centro fixo do espao musical.

    b) Espacialidade fictcia (metafrica) diz respeito s relaes externas prpria estrutura musical. Greimas define o ponto em que a narrao inicia como um espao-zero, chamado de espao tpico, que envolvido por outros espaos, situados antes ou depois dele, denominados de espaos heterotpicos. Tarasti acrescenta o conceito de espao utpico, em que a ao transforma o ser:

    este um espao para atuaes (nos mitos h lugares que so geralmente subterrneos ou celestiais). Em adio, h um espao paratpico, no qual as competncias so adquiridas. Em msica, o espao paratpico o lugar onde a substncia musical revela sua prpria competncia (saber) e atuao (estar apto a fazer). Por exemplo, a exposio na forma sonata tipicamente um espao utpico, em que os temas so introduzidos; a seo de desenvolvimento o espao onde as atuaes temticas ocorrem. Muito freqentemente este espao paratpico , ao mesmo tempo, um espao heterotpico: as atuaes existem em outro lugar, ou seja, em tonalidades diferentes daquelas do espao utpico (ibid., p. 97).

    2. Aspectualizao temporal so indicaes cronolgicas de determinada qualidade ou ao, interiores ao predicado, e que comportam a idia de um certo modo de manifestao no tempo, desta ao ou da qualidade, a indicao da maneira como elas preenchem o perodo [de tempo] a que a enunciao diz respeito (TODOROV, 1972, p. 278). Os aspectos temporais distinguem-se, entre outros, em: incoativos (aspectos que isolam o incio de um processo), durativos (aspectos de continuidade de um processo), perfectivos (aspectos que indicam que a ao, ou a qualidade, aparece em um certo momento do perodo de tempo que objeto da enunciao), imperfectivos (indica que a ao, ou a qualidade, se desenvolve durante o perodo de tempo que objeto da enunciao, preenchendo-o) e terminativos (aspectos que isolam o final de um processo). Para Tarasti, o tempo musical no pode ser reduzido a simples esquemas rtmicos ou mtricos, pois o tempo uma categoria mais profunda, da qual os fenmenos rtmicos so somente prolongaes de superfcie. Com base no quadrado semitico de Greimas e nas categorias de irreversibilidade e imprevisibilidade do tempo, Tarasti apresenta o seguinte quadro, representando diferentes possibilidades de universos musicais:

    1. 2. irreversvel reversvel

    imprevisvel previsvel

    3. 4. irreversvel reversvel previsvel imprevisvel

    O primeiro seria um universo de primeiras vezes, no qual nada realmente retorna e nada pode ser previsto, representaria uma conscincia momento a momento, uma negao de toda a continuidade. Visto que a predio do futuro recai, de alguma forma, sobre a

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    memria, uma completa perda da memria dominaria este universo musical. Nenhum evento poderia ser retido na mente e, assim, o futuro seria experimentado como uma contnua surpresa. Esta no seria uma apoteose da singularidade exatamente como a esttica de certas escolas da msica de vanguarda? No Universo 2 pode-se prever aquilo que segue, porm no momento em que acontece, j esquecido. difcil de imaginar tal universo musical, [que], de fato, representa uma certa atuao de determinado sujeito, seja compositor ou intrprete: um talento sintagmtico que cria ou executa sem obedecer a limites da forma global, esquecendo, por exemplo, ao escrever ou tocar uma sonata, se est no desenvolvimento ou na recapitulao. O Universo 3 apresenta um caso no qual o receptor da entonao a percebe pela primeira vez (por exemplo, a primeira audio de uma sinfonia). Cada momento, cada evento no decorrer da msica novo e nico, permanecendo na memria, enquanto a forma global conceptualizada somente aps os primeiros compassos terem sido tocados. No Universo 4 se orientado tanto para o passado quanto para o futuro. Cada evento pode ser antecipado e pode, tambm, chamar outro anterior. O retorno de um tema , no mnimo, similar sua primeira ocorrncia. Ao mesmo tempo, um certo frescor de inveno mantido devido ao tornar-se contnuo (TARASTI, 1994. p. 62).

    3. Aspectualizao actancial descreve o modo de distanciamento do enunciador narrativo do sujeito narrativo. Na estrutura narrativa de um conto, por exemplo, seriam as relaes existentes entre o narrador e cada um dos personagens (em especial, o personagem principal). Nas relaes entre o narrador e o personagem, isto , entre a narrativa e a trama, Greimas reconhece aspectualizaes durativas (representaes da continuidade do evento), incoativas (focalizando o comeo de um processo) ou terminativas (focalizando o fim de um processo). As categorias actanciais que Tarasti utiliza na anlise atorial so: sujeito, objeto, destinador, destinatrio, adjuvante e opositor. Para Greimas, o modelo bsico da estrutura actancial o seguinte:

    um sujeito narrativo (...) deseja e procura um objeto (...). O sujeito e o objeto fazem parte de duas redes semnticas mais desenvolvidas: o sujeito, por um lado, assistido por um adjuvante, mas, do outro lado, tem de lutar contra um opositor (...). Ambos possuem o poder de auxiliar ou prejudicar (...) [o sujeito]. O objeto se encontra entre um destinador que d o objeto (...) e um destinatrio que o recebe (...). O destinador e o destinatrio possuem um saber situacional e representam um eixo de comunicao. Entre o destinador e o destinatrio, Greimas v uma relao de implicao, entre o sujeito e o objeto, uma relao de projeo e entre adjuvante e opositor, uma relao de contradio (NTH, 1996, p. 178-179).

    Para Tarasti, os actantes

    so unidades sintticas, na forma de oposies binrias que tm precedncia sobre o investimento semntico. Desenvolvidos temporalmente como pares actanciais, os actantes transformam-se em uma histria. Os papis (ou funes) actanciais so definidos em termos de seu contedo e funo modais na narrativa. Vrios atores podem incorporar um nico actante, ou um ator pode preencher uma variedade de funes actanciais. Atores emergem atravs de semas de individualizao e, assim, tornam-se pontos de convergncia entre a sinttica e a semntica (TARASTI, 1994, p. 303).

    O objeto

    a metade do par actancial sujeito/objeto. Muitas narrativas centram-se em relaes sujeito/objeto bsicas nas quais um sujeito separado do objeto (disjuno) e luta por unir-se a ele (conjuno) em uma busca pelo objeto (ibid., p. 304).

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    Para distinguir entre sujeito e objeto em uma pea de msica necessrio reconhecer o ser da pea, ou seja, seu estado de consonncia: neste estado de consonncia, sujeito e objeto formam uma entidade sincrtica, ou seja, na modalidade ser no percebemos a msica como um estgio em que o sujeito est se movimentando para alcanar o objeto. Na categoria fazer ocorre o inverso: sentimos um estado de dissonncia no qual falta algo, em que a energia nos deixa insatisfeitos. O que falta pode ser tomado como uma disjuno, uma procura pelo objeto; quando este objeto alcanado ocorre, finalmente a conjuno (cf. TARASTI, 1994, p. 104). Um bom exemplo desta atorializao seria a relao entre primeiro e segundo tema em uma pea na forma sonata, em que as modulaes e contraposies dos temas no desenvolvimento atuam como disjuno e como luta pela conjuno, enquanto que a reexposio do segundo tema na tnica seria a conjuno final. Esta disputa entre conjuno e disjuno (entendida em qualquer nvel ou parmetro da composio) o que Tarasti chama de atorialidade em msica. II. Modalidades 1. Modalidades Actanciais (do fazer)

    Para Greimas, todo o texto (seja literrio, filosfico, cientfico, etc.), sempre tem uma estrutura narrativa, sendo que as unidades sintticas deste texto so chamadas de actantes (ou categorias actanciais). O modelo apresentado por Greimas o seguinte:

    Destinador (saber) Objeto (saber) Destinatrio (desejo)

    Adjuvante (poder) Sujeito (poder) Opositor

    (GREIMAS apud NTH, 1996, p. 179). necessrio distinguir entre os actantes da sintaxe de nvel profundo daqueles de nvel de superfcie. Pois as categorias actanciais desta sintaxe de profundidade podem se manifestar em atores na superfcie da narrativa (NTH, 1996, p. 179). Na superfcie, vrias categorias actanciais de profundidade podem ser combinadas em um nico ator (personagem). Nth exemplifica comparando um romance de amor com a histria de Parsifal. No primeiro caso, o amante pode representar, na estrutura de superfcie, tanto o sujeito quanto o destinatrio, enquanto que a amada pode ser tanto o objeto quanto o destinador. Na busca do clice sagrado de Parsifal, por outro lado, esses quatro papis ficam bem distintos. Parsifal o sujeito, o clice sagrado o objeto, Deus o destinador e o homem em geral (a humanidade) o destinatrio (ibid., p. 179-180). 2. Modalidades Descritivas (do ser) As aes dos actantes no so somente meros produtos de um fazer, mas tambm o resultado de um querer, de um dever, de um saber ou de um poder.

    Essas modalidades das aes j caracterizam as relaes entre os actantes na estrutura profunda do modelo actancial. O eixo sujeito-objeto, por exemplo, ligado pela modalidade teleolgica6 do querer. O eixo adjuvante-opositor representa a modalidade poder e o eixo destinador-destinatrio representa a modalidade etolgica7 do saber (...). As modalidades do querer e do dever pertencem ao nvel virtual dos valores, as modalidades do poder e do saber pertencem ao nvel da atualidade, e as modalidades

    6 Teleologia, em filosofia o estudo da finalidade; teleolgico aquele argumento que relaciona um fato sua causa final. 7 Etologia a cincia que estuda o comportamento e os costumes, humanos ou animais.

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    do fazer e do ser pertencem ao nvel da realizao. No nvel da realizao, as relaes so conjuntivas, no nvel da virtualidade, elas so disjuntivas (ibid., p. 182-183).

    Morris (apud TARASTI, 1994, p. 85) fala de trs tipos de movimento: 1. Movimento em direo a algum ponto; 2. Movimento contra algum ponto; 3. Movimento a partir de algum ponto. Tarasti utiliza estas categorias para explicar as modalizaes de micro-espaos e registros musicais, aplicando a elas as modalidades de Greimas, na busca de um programa de anlise do espao musical. Ao conceito de espao musical, Tarasti aplica a modalidade ser, a estase (algo que simplesmente ), ou seja, cada momento da msica em um sentido esttico do espao musical, como cada um dos dois temas de um movimento em forma sonata o primeiro tema seria um ser 1, o segundo tema seria um ser 2. A modalidade fazer relaciona-se ao tempo musical e representa o dinamismo (algo que faz ou torna possvel que algo acontea), geralmente diz respeito aos pontos de transio, como a transio do primeiro para o segundo tema na forma sonata, ou: o acorde de stima diminuta, no qual qualquer nota pode servir como sensvel, uma harmonia que facilmente nos move de um espao musical a outro (TARASTI, 1994, p. 86). As modalidades adicionais so: o querer, que se relaciona energia cintica, isto , ao movimento em direo a determinado objetivo, como ocorre na resoluo de um acorde de dominante na tnica; o dever, que ocorre quando a estrutura musical exige determinado procedimento compositivo, como acontece na msica serial em que determinada nota deve seguir outra na estrutura da srie, para Tarasti h vrios graus de dever em alguns casos algo fortemente obrigatrio, em outros casos menos obrigatrio (ibid., p. 90); o poder, que se relaciona reproduo, virtuosidade, poder e eficincia de recursos tcnicos, como, por exemplo, o finale de uma obra sinfnica extremamente afirmativo com efeitos de tutti em fortssimo; o saber, que se relaciona informao contida em cada novo segmento da pea por exemplo, uma progresso diatnica em quintas no projeta a modalidade saber fazer, porm uma modulao habilidosa e dramtica atravs da re-interpretao de alguma tonalidade exibe esta modalidade (como ocorre na cano Erlknig de Schubert) (ibid., p. 92) .

    A modalidade saber influencia a modalidade crer no sentido em que o acrscimo de tenso musical convincente e persuasivo. Determinada pea pode conter um clmax final que no realmente crvel ou necessrio (...), se a obra musical obedece somente a normas externas e de acordo com as quais situa o clmax na seo urea, por exemplo, (...), sem que este ponto se torne necessrio por algum querer energtico interno, ento este clmax certamente no sentido como uma soluo eficiente ou acreditvel (ibid., p. 92).

    Qualquer modalidade apresentada anteriormente pode ser combinada com outras. Tarasti combina as modalidades bsicas ser e fazer com as modalidades adicionais querer, dever, poder e saber, gerando o seguinte quadro:

    Espao Musical querer ser querer no-ser poder ser poder no-ser no-querer no-ser no-querer ser no-poder no-ser no-poder ser dever ser dever no-ser saber ser saber no-ser no-dever no-ser no-dever ser no-saber no-ser no-saber ser

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    Tempo Musical

    querer fazer querer no-fazer poder fazer poder no-fazer no-querer no-fazer no-querer fazer no-poder no-fazer no-poder fazer dever fazer dever no-fazer saber fazer saber no-fazer no-dever no-fazer no-dever fazer no-saber no-fazer no-saber fazer Esta combinao entre as modalidades bsicas e adicionais pode ser entendida com dois exemplos: 1. combinao entre ser e querer (a) a modalidade querer ser significa que algum ponto do

    espao musical o resultado de algum esforo particular, como a tnica no espao interno de uma pea musical; (b) a modalidade querer no-ser significa que se quer evitar determinado registro, como, por exemplo, a proibio de Berlioz quanto utilizao de certas notas graves dos instrumentos de madeira, em seu Trait dInstrumentation et dOrchestration; (c) a modalidade no-querer ser significa que algum registro (ou ponto) em um espao musical, embora tenha sido utilizado, produz um efeito desagradvel ou indesejvel, como ocorre na Sinfonia Fantstica de Berlioz com a transformao grotesca da ide fixe no ltimo movimento; (d) a modalidade no-querer no-ser realiza-se quando se parte do princpio de que nenhuma lacuna pode ficar sem ser preenchida, pois no preencher as lacunas poderia representar um desequilbrio no espao musical.

    2. combinao entre fazer8 e querer (a) a modalidade querer fazer significa que um texto

    musical se esfora para aumentar o grau de tenso por meio de uma forte tendncia em direo a determinado objetivo, ocorre quando o processo musical tem uma direcionalidade fortemente definida; (b) a modalidade querer no-fazer ocorre quando a msica tende ao decrscimo de tenso a se movimenta para fora do campo de dissonncias, como, por exemplo, quando

    um ponto x do espao musical foi modalizado com poder fazer e se procede de x at um ponto modalizado com poder e com querer ser, neste caso, geralmente, se encontra um decrscimo gradual de tenso musical, evitando, assim, uma transio muito abrupta (ibid., p. 91).

    Outra situao desta modalidade ocorre quando o querer musical aponta para um determinado rumo, porm este evitado, como acontece no final de vrias danas de J. S. Bach, em que a frase se dirige para a concluso final, porm chega a uma cadncia deceptiva, exigindo uma quebra na quadratura pelo acrscimo de mais uma frase necessria para concluir o movi