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1 PRINCÍPIOS TRANSGREDÍVEIS PARA AMORES PRECÁRIOS De: Thales Paradela

PRINCÍPIOS TRANSGREDÍVEIS PARA AMORES PRECÁRIOS … · bolognese. Vai até a geladeira, pega uma garrafa de prossecco e coloca-a em um balde com gelo sobre a mesa. Aproveita para

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PRINCÍPIOS TRANSGREDÍVEIS PARA AMORES PRECÁRIOS

De: Thales Paradela

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PERSONAGENS:

AURÉLIO – 37 ANOS, JORNALISTA DE ECONOMIA STELLA – 16 ANOS, SUA FILHA MARTHA – CHEFE DE AURÉLIO

ÂNGELA – EX-ESPOSA DE AURÉLIO, MÃE DE STELLA ULYSSES – 19 ANOS, NAMORADO DE STELLA

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PRÓLOGO VOZ EM OFF: Hoje é 21 de junho de 1989, 4a-feira. (Aurélio entra segurando uma grande sacola de papel de supermercado com as compras. Ele acende a luz com o cotovelo e bate a porta com os pés, sem trancá-la. A luz sobe lentamente e revela a cozinha. Vê-se então uma ampla copa-cozinha dos anos 80. Piso quadriculado em preto e branco. Em primeiro plano, uma mesa de fórmica azul com cadeiras brancas. Sobre a mesa, ao centro, uma luminária pendente em formato de globo de acrílico azul. Ao fundo, vê-se uma parede de azulejos decorados verdes, uma geladeira sobre a qual há um pinguim com camisa do botafogo, uma pia, um fogão, uma bancada. Uma prateleira pequena com livros de culinária. Vários apetrechos de cozinha pendentes, mostrando que a cozinha é muito usada. Atrás da pia uma janela. A janela é formada por uma tela que servirá também para projeções. Neste momento ela deixa passar uma luz fria de início da noite. Ele coloca a sacola de supermercado na pia e vai colocar uma música na vitrola – A introdução de Tristão e Isolda de Wagner. Depois começa a arrumar as compras, dispondo metodicamente todos os ingredientes e temperos a serem utilizados no jantar que irá preparar: tagliatelle a bolognese. Vai até a geladeira, pega uma garrafa de prossecco e coloca-a em um balde com gelo sobre a mesa. Aproveita para arrumar as flores que estão sobre a mesa, tirando-as do centro e colocando-as mais para um dos lados, como que para abrir espaço. Os pratos já estavam colocados, mas ele troca a disposição, colocando-os lado a lado ao invés de um a frente do outro. Vai até uma dispensa alta e começa a procurar um dos vinhos. Escolhe um Chianti, abre e serve-se. Acende o fogão, coloca água na panela, um filete de óleo e sal. Toca a campainha. Ele está com as mãos ocupadas com a taça e a panela, olha para o relógio de parede, percebe-se que não esperava alguém tão cedo.)

AURÉLIO: (De costas) Vai entrando... Ciao, Bella!

CENA 1 – UMA VISITA INESPERADA (Stella entra timidamente. Cabelos curtos e pintados em tons de vermelho escuro. Uma mochila camuflada grande com uma alça rompida. Dá apenas um passo para dentro do palco e fica parada. Aurélio termina de colocar a panela no fogo e se vira devagar. Imóveis, se observam.) STELLA: Oi Aurélio, tudo bem? AURÉLIO: Olá... STELLA: Stella! Posso entrar? Você deve estar esperando alguém... prefere que eu... AURÉLIO: De jeito nenhum, entra (tira a música da vitrola). Quer um vinho? STELLA: Eu não bebo Aurélio. Talvez água. (Quando vai entregar o copo, abre os braços para um abraço e Stella estende a mão. Ele então aperta sua mão e fica segurando o copo. Depois

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faz a troca e entrega o copo. Tenta abraçar na hora que ela abaixa a cabeça para beber a água. Batem a cabeça.)

STELLA: Obrigada! Eu tava preocupada se você... AURÉLIO: (focado no cabelo dela) Por que vermelho? STELLA: Ah, não sei, uma mudança... AURÉLIO: Curtos? STELLA: Desde que são vermelhos: hoje de manhã. AURÉLIO: Não cresce, é impressionante! STELLA: (mexendo nos cabelos) Crescem sim... é só... AURÉLIO: Os olhos não crescem, não envelhecem! São os mesmos olhinhos! STELLA: Ah, Aurélio, não repara, eu devo estar péssima! Tô moída, dois dias com essa roupa... AURÉLIO: Você tá ótima! quer tomar... STELLA: Um banho, se não te incomoda. Preciso ir ao banheiro também. AURÉLIO: Claro, ao final, à esquerda, tem toalha no armário. (Stella deixa a mochila no chão e sai deixando Aurélio atônito)

CENA 02: UM PRIMEIRO CONTATO TÍMIDO DE PAI E FILHA (Trilha de passagem de tempo. Stella volta vestida com roupas de Aurélio, uma bermuda larga e uma camisa antiga e justa do botafogo, anos 70. Traz um caderno do jornal. Se observam novamente, imóveis)

STELLA: Eu precisava trocar de roupa, a mochila ficou aqui e... AURÉLIO: Ficou bem em você! Stella! Por isso você é Stella, a estrela solitária. STELLA: Ah, o poema! (citando, um pouco afetada) “...na plêiade ofuscada refulge a mais bela / a solitária chama no céu, minha Stella”. Eu adoro esse final! AURÉLIO: Não ficou mal... Eu já havia me acostumado com Nilton. STELLA: Nilton?! AURÉLIO: Se fosse menino, homenagem ao Nilton Santos. Quando veio menina, fiquei meio perdido, então pensei na estrela solitária do botafogo, por isso Stella. STELLA: Mas, e o poema? AURÉLIO: Claro, fiz pra você, mas foi depois. Eu não podia dizer a tua mãe que o nome de nossa filha seria em homenagem ao botafogo.

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STELLA: Puxa! Até hoje eu lia este poema e pensava que você tinha feito pra mim, olhando meu nome num céu de estrelas pontilhadas. Tá, Aurélio, a Stella do botafogo refulge no céu... o poema é só uma lenda! AURÉLIO: Lenda é uma realidade com sentido melhorado! STELLA: Mais alguma revelação acerca do meu nome? Estrela de escudo de time de futebol! AURÉLIO: 15 de novembro de 1972! STELLA: Pelo que me contaram foi quando eu nasci! AURÉLIO: 6 a 0 o Botafogo fez em cima do Flamengo! Eu já tinha comprado o ingresso, estava saindo de casa quando sua mãe começou a passar mal. O ônibus demorou, fui num orelhão e liguei pra casa. Ela tava chorando: voltei correndo. Fomos pro hospital, eu fiquei na sala esperando e corria a toda hora pra perguntar o placar pro porteiro flamenguista. Já tava 5 a 0 quando eu voltei e a enfermeira veio dizendo...é linda: uma menina! Fiquei perdido, depois disse... Stella!! Na mesma hora ouvi o porteiro praguejar que o Botafogo tinha feito o 6o gol. Foi o dia mais feliz da minha vida! STELLA: Ah, (irônica) desculpe o transtorno! Fiz você perder o jogo! AURÉLIO: Você me fez ganhar o jogo. Eu sou um tremendo pé frio e por sua causa eu não fui ao Maracanã: o Botafogo massacrou... não vou mais no maraca!! E olha que hoje é final contra o flamengo. Depois de 21 anos sem título, vai dar Botafogo! STELLA: A vela que eu vi no banheiro tem alguma coisa a ver com isso? AURÉLIO: Você apagou? STELLA: Não, pensei que fosse devoção! AURÉLIO: E é!! Hoje vai... STELLA: (mostrando no jornal que trouxera do banheiro) Acabar com as alíquotas de importação não vai derrubar as empresas aqui no Brasil? Aumentar a exploração do capital estrangeiro? AURÉLIO: (lendo sua própria matéria) Eu não escrevi “acabar” com as alíquotas. Eu disse que a redução favorece a derrubada da inflação, incrementa a produtividade nacional, embora possa comprometer o fluxo cambial numa época em que a captação externa está... calma ai, você gosta de economia? STELLA: Tô começando a me interessar. Em Brasília tem uma banca que vende o jornal do Rio, eu compro pra ver tua coluna. Meus amigos dizem que você é careta! Um liberalóide vendido. AURÉLIO: Na certa acham que esta nossa indústria medíocre, sem competitividade, deve ser sustentada com imposto externo e inflação. Devem usar camisa do Che Guevara nas rodinhas de violão, fazendo corinho pra cantar “andança” (irônico...) “Amor...por onde for quero ser seu par”. Ah, não, me poupe Stella... Tua mãe sabe que você está aqui? Não quero problema com ela... STELLA: Ela não sabe. Bem deve estar me procurando. Eu fugi.

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AURÉLIO: Você o quê? Tá louca menina, vou ligar já pra ela, qual é o número. STELLA: Não liga, Aurélio! Eu preciso só de umas horas, depois eu vou embora. AURÉLIO: Pra onde, menina? STELLA: Pra Tiradentes, com o Ulysses! Meu namorado tem um primo que mora lá e tem um restaurante com uns quartos nos fundos. A gente vai ficar lá por uns tempos. Vou fazer vestibular para Ouro Preto no ano que vem e vou trabalhando enquanto isso. AURÉLIO: Você é uma menina, Stella! Tá te faltando o quê? Tua mãe tá sem dinheiro? Ela sempre recusou qualquer ajuda minha... não sabia que a coisa estava assim tão séria. STELLA: Aurélio, não é o dinheiro. Vou pra Tiradentes pra morar com o Ulysses, minha mãe nunca iria deixar, por isso eu vim sem falar. Mas já que você tocou no assunto, sim eu preciso de um pouco de dinheiro. Vim aqui pra isso. Você pode me arrumar algum, ao menos desta vez? AURÉLIO: Peraí!!! Eu sempre tentei te mandar dinheiro, tua mãe que proibiu... agora não vem com essa. Quer dinheiro pra me transformar num cúmplice desta criancice? STELLA: Talvez um parceiro do meu sonho! Mas parece que é idiotice minha mesmo. Por que, agora, você iria ajudar em alguma coisa? AURÉLIO: Ei, devagar meninota! Isso não é jeito de falar com teu pai! STELLA: Sem grilo, Aurélio? Como eu poderia aprender o jeito de falar com meu pai se eu nunca falei com ele? Escuta, esquece a grana, deixa pra lá, eu me virei até hoje... Só me deixa esperar um pouco aqui, tá! depois eu vou. AURÉLIO: Só com essa mochilinha? STELLA: Ele deve estar vindo pra cá pra gente ir pra rodoviária. AURÉLIO: Quem? STELLA: O Ulysses. AURÉLIO: Stella, deixa de ser criança, senta aí enquanto eu ligo pra tua mãe. Com sorte te coloco num voo da Varig ainda hoje pra Brasília. STELLA: Qual é Aurélio, vai querer dar uma de pai agora, depois de tanto tempo? (Aurélio solta o telefone e fica em silêncio. Serve mais vinho, toma um gole. Acusa o golpe.)

CENA 3 – INÍCIO DE JANTAR E LEMBRANÇAS (Depois de um tempo, Stella se levanta, sem graça, acaba por revirar as compras, corta um pedaço de queijo). AURÉLIO: Você almoçou hoje? STELLA: Comi sim... um pastel.

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AURÉLIO: Tá com fome? STELLA: Aurélio, não quero incomodar... AURÉLIO: Você sabe cozinhar? Vai viver de pipoca e miojo? Você já comeu um bom molho bolognese? É quase simples, como toda arte sofisticada. Sabe despelar um tomate? Vou te ensinar: É assim... STELLA: Isto tudo você aprendeu quando fugiu para a Itália? AURÉLIO: Aprendi a cozinhar... com uma importante correção de que eu não fugi pra Itália, eu precisei me exilar. STELLA: Agora não faz diferença. A gente está aqui... eu estragando o seu jantar romântico. AURÉLIO: De jeito nenhum. STELLA: Aurélio, por favor! Hoje é final do campeonato do botafogo... e você fica em casa? champagne no gelo, musiquinha bonita... AURÉLIO: Wagner, não diz musiquinha!! E é prosseco, não é champagne. STELLA: Tá... desculpa se eu não morei na Itália, como eu poderia ter morado? afinal você foi sozinho! Aurélio, você não deixou de ir ao jogo pra jantar sozinho... AURÉLIO: Claro que eu não iria ao Maracanã, ainda mais hoje! Pé frio que eu sou... Sabe que depois que você nasceu, nunca mais fui ao estádio? Minto, fui a um jogo: 8 de novembro de 1981. STELLA: Como é que você sabe o dia exato? AURÉLIO: Porque era sua primeira comunhão. Sua avó me escreveu uma carta avisando. Eu tinha decidido ir pra Brasília, daí liguei pra tua mãe e ela pediu pra eu não ir, que você, ela e o Rubens passavam melhor sem mim. STELLA: Mas o Rubens, nunca... AURÉLIO: Não me diz que ele é legal, por favor! Basta sua mãe descrever o marido perfeito... Eu sei que eu fiquei arrasado. O Joca passou na minha casa, a gente foi até o Geraldo, tomamos várias, quando vi já tava dentro do Maracanã gritando Foooogooo, enquanto entrava aquele timaço do Flamengo. Culpa minha, claro, não podia ter ido... não deu outra, 6 x 0 Flamengo. Foi o dia mais triste da minha vida. STELLA: (vai até a mochila, abre, pega um caderno, dentro dele tem fotos, pega uma foto e entrega a Aurélio). Eu sempre achei estranha, mas me dá uma certa paz quando eu olho. (Quando ela entrega a foto, esta é projetada na tela que sugere a janela: a foto da primeira comunhão.) AURÉLIO: É do dia? STELLA: Segurando o crucifixo e tudo... (Trilha musical. A foto, que é o primeiro frame de um vídeo, ganha vida e vê-se, em preto e branco, super 8, o filme da primeira comunhão. Vê-se ela abraçar a mãe. Vê-se o Rubens ao lado, bem diferente de Aurélio. Ela pula no colo do Rubens que a beija com muito carinho. Formam uma família feliz!

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Depois ela sai correndo, pisa no vestido longo e cai. Rubens corre, ajuda-a a levantar, faz um carinho e a menina se põe a correr novamente.) AURÉLIO: (Emocionado, dissimulando o choro) Eu... acho que vou cortar a cebola. STELLA: Aurélio, foi uma boa ideia tua não ir ao jogo, você É pé-frio! AURÉLIO: Eu estou esperando a Valentina, deve estar chegando. STELLA: Ah, Aurélio, desculpa, eu tô de saída. AURÉLIO: Ela come com a gente. STELLA: Aurélio, vai ser ótimo o jantar! Mas eu estou de saída. AURÉLIO: Isso a gente decide despois do jantar. STELLA: A gente nada Aurélio. É minha vida! Eu já decidi. AURÉLIO: Stella, você é uma criança. STELLA: Quando você abandonou a gente eu era uma criança, mas eu cresci, só que você não viu. AURÉLIO: Ei, ei, ei... peralá, mocinha... você não tem este direito de fazer acusações sem saber de nada. STELLA: Nem você de dizer que vai participar da minha vida, agora. AURÉLIO: (mudando o foco) Presta atenção ao tomate! Você tá jogando fora a melhor parte com a casca, tem que ser mais fino o corte... Segura a faca assim, (pega na mão da filha) pra não ter risco de se cortar... isso, assim... STELLA: Obrigada, por tentar ensinar... (emocionada, dissimulando o choro) melhor você despelar o tomate, eu corto a cebola. AURÉLIO: (vai nas prateleiras, entre os livros acha um envelope colorido. Tira de dentro uma foto.) Toma essa pra você. Pode ser útil no dia que você viajar... STELLA: Aurélio eu viajo hoje...! (pega a foto.)

(Projeta a foto na tela, trilha. Agora é Aurélio, Ângela e a pequena Stella, segurando as mãos do pai, tentando dar uns passos. Stella se emociona, depois ri. Levanta-se e então a foto vira outro filme antigo de super 8 dela tentando dar passos e o pai ajudando, com a mãe ao lado.)

STELLA: Parece que ia me jogar! Vovó que contava que eu sempre saía correndo pro mar quando a gente chegava na praia, aí a mãe corria e me punha sentada. Era ela virar pro lado e você me catava, corria pro mar e me prendia nos braços, deixando a onda bater... e que minha mãe ficava gritando da areia. A vó conta que você não tinha juízo, ficava rindo... e eu também ficava rindo. (Guarda a foto ganha, fade-out do filme e trilha.) Obrigada, vou levar. Troca justa! AURÉLIO: Não é justo! STELLA: Claro que é! Cada um com uma foto... AURÉLIO: Você fugir... não é justo! STELLA: Foi justo quando você fugiu?

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AURÉLIO: Foi justo o que pensei que devia fazer naquela hora. STELLA: E depois se arrependeu? AURÉLIO: Não há saída quando se envolve paixão. Escolher é carregar um dos arrependimentos... partir, ficar... “e se?”... é o “e se?” que apavora. STELLA: Eu já me decidi. AURÉLIO: Decidiu do que prefere se arrepender. STELLA: O que prefiro viver. AURÉLIO: Dá no mesmo. Isso não apaga o que ficou. Você não precisa deste peso nesta fase da vida. Vai pesar muito mais que esta tua mochila. STELLA: Pesou pra você? AURÉLIO: Agora, te vendo... mais que nunca. STELLA: Ai, Aurélio, não joga em mim tuas culpas. Eu quero ir, não quero escolher a menor culpa, quero a maior paixão. AURÉLIO: Faz sentido na tua idade. Tua idade é que não faz sentido. Essa mochila tua tá com a alça rasgada, eu tenho uma melhor, mas não tá aqui em casa, eu emprestei. Faz assim, dorme hoje aqui, amanhã eu recupero a mochila e te dou. STELLA: A gente já comprou passagem... AURÉLIO: Tem ônibus todo dia. STELLA: Ah, Aurélio, complicado isso... tá quase na hora, eu como um tasco de queijo e vou nessa, pra não atrapalhar teu jantar! (Toca a Campainha)

CENA 04: MARTHA PEDE A AURÉLIO UM TEXTO PARA O JORNAL

(Aurélio prevê que seja Valentina e antecipa o constrangimento de recebê-la tendo Stella ali, enquanto se direciona para a porta.)

AURÉLIO: Martha, o que você está fazendo aqui? Nem pensa... MARTHA: Obrigado por me convidar a entrar Honey. Ah, du Rouge ce soir! C’est domage, acho que você já está acompanhado. AURÉLIO: Esta aqui é a... STELLA: Stella, vou fazer vestibular para jornalismo, vim fazer uma pesquisa. O Aurélio está me ajudando. AURÉLIO: (embarcando na ideia) Stella, sobre aquelas referências que conversávamos, lá no escritório tem dois livros interessantes do Truman Capote que podem ser úteis. Vai lá dar uma olhada. MARTHA: Ah, sim Stella, boa referência! Aurélio pode ser um amor de mestre! (Stella sai.) Bonitinha ela Aurélio, bom gosto você sempre teve! Toma cuidado com essa ai, darling, depois de despejar todo este Truman Capote e prosecco... estas de 15 anos não largam o pé.

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AURÉLIO: Dezesseis! Vai fazer dezessete em novembro, e “não é nada disso que você está pensando”! MARTHA: Pero non, corazón, esta frase “lugar comum” não combina com você, não foi atrás disso que vim até aqui (Lúbrica) Preciso de coisas mais elaboradas, ao mesmo tempo despretensiosas e profundas; tintas leves mas com várias camadas, só você pode fazer isso: um textinho simples! AURÉLIO: Seção de “textinhos simples” fica no outro andar, chefa! MARTHA: Estou com um grande problema e preciso de uma indicação tua: preciso de alguém que conheça muito de cinema e que fale italiano, para poder acompanhar o festival de Veneza deste ano. Parece que esse filme novo, “Cinema Paradiso”, é tropo bello!! AURÉLIO: Cacete!... E o pagamento da chantagem, qual seria? MARTHA: Não seja rude, love! Eu venho aqui com um convite, você me acusa de chantagista! Uma lauda: 30 linhas de 72 toques! Isso não te atrapalha com a jovem Stella, pelo contrário, ela pode ajudar muito. Deixa ela posar para teu texto. AURÉLIO: Rápido Martha, o que você quer? MARTHA: Quero encontrar alguém brilhante que possa fazer a cobertura do Festival de Cinema de Veneza este ano... AURÉLIO: Blá, Blá, Blá.... MARTHA: Antes disso, esta pessoa brilhante e prestativa me concederia uma pequena gentileza: escrever uma matéria atrasada que preciso para fechar a edição desta semana do caderno feminino... AURÉLIO: que seria... MARTHA: “Dez princípios para o amor perfeito!” Não se preocupe, você tem tempo. Eu ainda tenho um jantar agora e devo demorar umas... duas horas pelo menos. Preciso fechar esta matéria hoje de qualquer maneira. AURÉLIO: Esquece Martha, nenhuma chance de eu escrever essa babaquice. A Luísa é a editora do caderno feminino, ela que se vire. MARTHA: Uma conjuntivite que não pode se aproximar de ninguém, nem ficar de olho aberto. AURÉLIO: Outras pessoas poderiam fazer esse texto medíocre. MARTHA: Você não foi nem minha segunda opção. Depois, estou com essas passagens para Veneza queimando nas minhas mãos e não sei o que fazer... Ah, cariño, ayuda-me, por favor, use tuas mãos habilidosas! (Sinceramente nostálgica) Não acredito que esse pragmatismo cínico de editor de economia tenho soterrado completamente aquela verve de poeta que eu conheci na faculdade. AURÉLIO: Cinismo é condição de sobrevivência para um editor de economia em país de hiperinflação. (Entrando na provocação). E você pediria justamente a um cínico pragmático para escrever sobre “amor perfeito”? Por quê?

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MARTHA: Porque você é um canalha sofisticadíssimo e delicioso. Olha o jantar que você prepara para a jovem Stella! Isso é bala de canhão pra matar formiga! Escuta, darling, é antes da cama que se conhece os homens interessantes! AURÉLIO: Não seria depois da cama? MARTHA: Depois da cama se conhece os homens bons! Nunca são a mesma pessoa! Eu resolvi isso, prefiro os interessantes, a bondade eu mesma compro com meu dinheiro. (Martha vai andando em direção à vitrola) Já ouviu falar em CD PLAYER? É muito melhor que estes discos enormes cheios de poeira. (examina o disco) Olha! O Disco que estava na vitrola é perfeito pra te inspirar, baby, o mito do amor romântico! (recoloca a música). AURÉLIO: Tristão e Isolda. MARTHA: Wagner, belíssimo! Pense nisso, no amor romântico, é linda esta ilusão, daria tudo para poder recuperar a minha, mas é tarde demais. Ah, o amor romântico...! AURÉLIO: Tem um problema no que você me pediu. Se fosse realmente pra falar alguma coisa sobre amor, não daria pra escrever uma lista de princípios. O amor iria triturar a listinha – transgredir as linhas! MARTHA: Viu? Você já começou... um primeiro princípio. AURÉLIO: Bobajada Martha! O amor pega é pela precariedade, pela nossa forma de enfrentar esta precariedade. Este amor perfeito da tua revistinha é uma puta fábrica de mulheres infelizes e controladoras, testando sapatinho de veludo de príncipe num bando de sapo tonto. MARTHA: Meu deus, Você já está escrevendo outro princípio! Deixa eu ir embora pra não atrapalhar teu texto e tua noite. Esta menina tem sorte, se é pra se iludir, que seja com chianti italiano e Wagner, que ao menos o canalha seja sofisticado e gentil. AURÉLIO: Não é nada disso, Martha. E Você? Acha mesmo que eu... MARTHA: Vai se vender, sem perder a dignidade, por estas lindas passagens para Veneza! Sim, eu acho! Vai me entregar dez princípios sobre o amor perfeito, lindos! (Arrumando um detalhe na mesa) Não, mon amour, não insista, eu não posso ficar para jantar com você e a jovem Stella não apreciaria. Ciao Princcipe (vai saindo). AURÉLIO: Você é uma porra de uma manipuladora! MARTHA: Também te amo!!! Bye!!!

CENA 05 – COMEÇA O TRABALHO E AURÉLIO TENTA CONVENCER

STELLA

STELLA: (voltando) Ela já foi? Que furacão! Ela...( tira a música da vitrola) AURÉLIO: É minha chefe, editora do jornal. STELLA: Parece que ela te conhece bem...!

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AURÉLIO: Foi minha colega de faculdade... tá, tivemos uma amizade colorida. Meu deus, ainda se fala assim? STELLA: Não, mas eu sei o que é. Você vai fazer o tal texto? AURÉLIO: Não, claro que não! Quer dizer, sei lá... loucura isso tudo! Não faz sentido. (Vai até a prateleira e pega um caderno, um lápis e uma borracha. Abre e anota umas coisas). Veneza é linda! STELLA: Eu ainda fico um pouco, posso te ajudar. AURÉLIO: Qual é moleca, quem você acha que é pra saber alguma coisa de amor...? Fica nessa de “felizes para sempre”, fazendo o Falcon beijar a Susy! Tanto trabalho teve a minha geração, pra quê? Forçamos a barra do tal amor livre, pra abrir as portas do mundo e minha filha fugir com um moleque. STELLA: Isso devia te deixar orgulhoso. AURÉLIO: Me deixa perdido. Sabe o que me deixa mais perdido? é olhar esse teu olhinho de quem quase nada viu na vida e ver dentro dele tanta certeza. Só pode vir da ignorância. STELLA: Ou da esperança, ou do amor...ou, da esperança no amor! AURÉLIO: Pelamordedeus Stella, cai na real. Este mundo precisa cair na real! O Lennon disse que o sonho acabou há anos e ninguém entendeu? Até darem um tiro nele pra ver se agora sacam alguma coisa. STELLA: Aurélio, você envelheceu quantos séculos? Quantas vezes você votou pra presidente? Então, depois de vinte e cinco anos do golpe a gente vai votar juntos pra presidente pela primeira vez, eu e você, o sonho está apenas começando. O Lula... AURÉLIO: Não acredito menina, você lê realmente minha coluna no jornal? Lula, que Lula? Esse cara nunca vai ser presidente! A União Soviética está implodindo e não são os mísseis americanos que fazem o serviço, é a fila da carne. Daqui há alguns anos isto vai virar um dominó e só vai sobrar destroços da cortina de ferro, só o muro de Berlim vai ficar de pé como monumento da insanidade. E você falando de Lula? STELLA: Você é mais reacionário do que eu pensava! Eu ainda guardava uma imagem de você como um herói. Alguém que se sacrificou por alguma coisa. Agora que estamos nas portas de começar a construir um sonho, você vem com essa! AURÉLIO: Que papo de grêmio estudantil é esse? STELLA: Você não era do diretório acadêmico? Qual o problema de eu ser do grêmio estudantil? AURÉLIO: Sabia, coisa de movimento estudantil, fileiras de playmobil guerrilheiros. Acorda, protótipo de Rosa de Luxemburgo!! A minha geração sonhou e tomou porrada, não pôde nunca mais dormir tranquila pra tua geração poder acordar. Precisamos é de um choque de realidade: gestão, foco, trabalho, pragmatismo. Só o Covas pode dar rumo pra esse país. É trabalho, não é sonho! STELLA: Ah, não Aurélio, desculpa, eu não te passei nenhuma procuração pra você sonhar por mim. Disso cuido eu. Aliás, vou cuidar muito bem pra

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não acabar tendo essa vida tua. Você nunca vai escrever um artigo sobre o amor perfeito! Você parece que já morreu. (vai até o caderno que Aurélio deixou aberto, lê o que ele escreveu, acha estranho. Escreve outra coisa.) AURÉLIO: (Lendo o que Stella escreveu) “É o amor, não a vida, o oposto da morte. Não qualquer vida”... isso não é teu. STELLA: É do Roberto Freire, do livro Cléo e Daniel. AURÉLIO: Você quer que eu faça um plágio do Roberto Freire? STELLA: Queria que você lembrasse. O livro era teu, tava lá num canto, onde a mãe guarda umas coisas. AURÉLIO: (lembrando) do livro “Cléo e Daniel”. Como terminam os dois? Você lembra? Fugindo... morrendo, nus, numa rua vazia de desespero. Vem aqui, me ajuda, vai moendo. (Stella começa a moer a carne). Muito edificante a morte desesperada de Cléo e Daniel... (vai até a vitrola, troca o disco, coloca Nino Rota, tema de Romeu e Julieta.) STELLA: Bonitinho isso, o que é? AURÉLIO: Bonitinho? Isso é Nino Rota, Stella! Pra continuar o capítulo das mortes edificantes de adolescentes apaixonados. Basta trocar o cenário, (brincando) “uma catacumba em Verona, uma tocha pífia, uma adaga e um frasco elaborado por um boticário desterrado. Fica ainda mais dramático... e lá podem morrer mais dois fugitivos, Romeu e Julieta”. A música é do filme do Zefirelli. Não era o amor o oposto da morte? STELLA: Não! É que a vida sem amor já é a morte! AURÉLIO: Eu quase fico orgulhoso dos teus sofismas, se eu não tivesse impressionado com tua imaturidade. STELLA: E eu ficaria muito triste se você se orgulhasse de mim! Tem vários outros casais... Léo e Bia, por exemplo. AURÉLIO: Léo e quem? STELLA: Se passa em Brasília, inclusive, (cantando) “no centro de um planalto vazio, como se fosse em qualquer lugar...Léo e Bia souberam amar”. AURÉLIO: Que diabos é isso? STELLA: Oswaldo Montenegro! AURÉLIO: Ah, não... eu falo de Nino Rota e você me vem com este “mala”! Vê se pluga esses violõezinhos numa tomada. Você fuçou meus livros, ok... e os discos? (vai até a vitrola, troca o disco, põe Tommy do The Who, Pinball Wizard.) Ouve isso, também é ópera, só que Rock...Tommy, do The Who, conhece?... aperta o cinto e boa viagem! (Aurélio dá uma taça a Stella, brindam, se olham, ela não bebe. Música alta e diálogo aos gritos). AURÉLIO: Agora tem que beber, tem uma maldição terrível pra quem brinda e não bebe. STELLA: Você é mandingueiro, hein...! que maldição?

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AURÉLIO: A pessoa vira flamenguista! Toma cuidado, teu cabelo está vermelho e preto! A maldição tem a ver com uma coisa muito gostosa que fica um longo tempo sem acontecer. STELLA: Sexo! AURÉLIO: Respeito menina... STELLA: Melhor não arriscar! (bebe devagar)

AURÉLIO: Tua mãe vaiou o Caetano em 67! STELLA: O quê? AURÉLIO: Tua mãe vaiou o Caetano no festival da canção de 67, só porque ele tinha feito um arranjo com guitarra pra “Alegria, Alegria”, a turminha dos Beat Boys é que tava tocando. Você acredita que ela tava torcendo pro Roberto Carlos, com uma insossa “Maria, Carnaval e Cinzas”... ela dizia que era puro, autêntica MPB... Caetano que estava certo, ninguém tava entendendo nada... STELLA: (Tira a música) Por que você se casou com minha mãe? AURÉLIO: Uma armadilha! STELLA: A mãe fez uma armadilha pra você? AURÉLIO: Não, o amor que fez. STELLA: Ai, Aurélio, se morre! Culpando o amor... AURÉLIO: Mas é... isso não é ruim. Quer dizer, o amor, o amor é bom, mas é preciso ser bom para torná-lo bom. STELLA: Você não era bom? AURÉLIO: Bom o suficiente? Ninguém é, por isso é um projeto precário. STELLA: Mas minha mãe... AURÉLIO: Era a menina mais gracinha, tímida e caretinha de Laranjeiras. E seu avô com aquele bigode de coronel aterrorizava toda a molecada. STELLA: E como vocês se conheceram? AURÉLIO: A gente se cruzava direto pelas ruazinhas, perto da praça na General Glicério. Ela me olhava, mas se eu virasse o rosto ela desviava o olhar. Eu era cabeludo, andava com uma turminha de moto e fumava. Ela parecia que havia sido criada pra casar com milico, seguir a tradição da família. STELLA: O Rubens é militar e muito bacana. AURÉLIO: Era a sina dela... eu que entrei no lugar errado. Minha prima estudava francês com ela e me deu a dica do ponto da praia que tua mãe ia com as amigas do São Vicente de Paulo: bem em frente a rua Montenegro, quer dizer, hoje a rua se chama Vinícius de Moraes. Eu ficava cercando a saída dela. Teve uma vez, que ela chegou no ponto e o ônibus tinha acabado de sair. Parei do lado e ofereci carona... Ela aterrorizada! linda, dizendo que não subia em garupa de moto, nem andava com gente que fumava. Eu disse que se ela aceitasse um cinema, eu buscaria ela sem moto. Ela disse que

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nem pensar em buscar, mas que talvez se encontrasse comigo na porta do cinema. Eu falei: “Hoje no Payssandu: sessão das 16:30” e parti na moto sem esperar a resposta. STELLA: Qual filme? AURÉLIO: “Duas ou três coisas que eu sei dela”. STELLA: Do Goddard... Ela foi? AURÉLIO: Ela pirou... Saiu com o cabelo cheirando a cigarro... Tinha um fumoir, atrás deste cinema, perfeito! A gente parou numa lanchonete, ela tomou um MILK SHAKE e eu uma batida de coco. Aí eu tive a brilhante ideia de pedir para ela me ajudar numas traduções do francês! Eu fazia crítica de cinema para a revista do diretório acadêmico e usava uns artigos dos Cahiers de Cinèma... STELLA: Caiê? AURÉLIO: Stella, você precisa ficar mais um tempo no Rio, aqui comigo, preciso te mostrar umas coisas. STELLA: Tem tempo... uma meia hora. Depois eu vou embora! AURÉLIO: Stella... STELLA: E a parada dos caiês, como ficou? AURÉLIO: Ah, foi isso, a gente começou a trabalhar nestes artigos e eu fui me divertindo em provocar a Ângela... Até insisti pra ela provar o cigarro, ela tossiu a beça, disse que aquilo era horrível e que devia ser insuportável beijar alguém com aquele gosto. Eu joguei fora meu cigarro e falei “agora sem eu fumar: vê o gosto”... ela paralisou... demos um beijaço e começamos a namorar. A gente se apaixonou! Depois antecipamos as coisas e a solução foi casar. STELLA: Como assim? Foi um acidente porque vocês “anteciparam as coisas”...? Eu fui esse acidente? AURÉLIO: Não Stella, você veio depois. A armadilha foi outra, o encanto cresceu... a gente se apaixonou mesmo, ou então sua mãe não teria cedido. Mas assim mesmo, eu poderia não ter topado ficar junto depois, não tinha obrigação de nada. Só que a gente estava tão feliz! Ela ficou chorando, dizendo que tinha feito uma besteira. Eu beijei uma lágrima dela e disse: “fica comigo pra sempre...” ela me abraçou e eu conseguia ouvir meu coração bater no peito dela, como se estivesse fora de nós dois... foi místico! STELLA: Místico, mas não suficiente... depois você largou ela. AURÉLIO: Eu achava que podia escrever a história, mas hoje eu vejo que é a história que escreve a gente. No máximo, dá pra escolher uns impulsos pra seguir... neste caso, o impulso foi um amor. A gente acreditou neste impulso, ele cresceu, mais amor a cada dia era melhor que menos amor. STELLA: Se era melhor mais amor, nunca seria melhor você fugir pra menos amor.

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AURÉLIO: A gente era tão inexperiente! Eu não estava preparado, depois... a realidade joga um monte de desejos na tua cara pra ver se você tem coragem de dizer não. STELLA: Um monte de desejos, Aurélio, pra quê? Esta Martha, por exemplo, você amou ela mais do que a mãe? Eu não sei, eu amo o Ulysses e isso parece bem suficiente. AURÉLIO: Um amor não se mistura com outro, não se compara. O amor não se esgota em si, digo, a força que cria um amor ela não para de criar quando você encontra este amor. Ela segue criando, pode gerar um monte de coisas, filhos, filmes, outros encontros... STELLA: Bobagem Aurélio! Você é meio galinha! (constrangem-se.) AURÉLIO: Stella, presta atenção, esquece essa loucura. Vou conversar com tua mãe e você vai passar uns tempos aqui comigo. Você não sabe onde está se metendo nesta história. STELLA: Aurélio, o único tempo que eu vou passar com você é até o Ulisses chegar. AURÉLIO: (Vai na direção do caderno aberto, escreve umas coisas. Stella pega, lê, anota algo, leva o caderno como se fosse ao banheiro, pega mochila e vai pro interior da casa. Aurélio começa a colocar na panela os ingredientes do molho e acende o fogo, ao lado da panela com a água que já está esquentando) Você é turrona igual a tua mãe!, quando encasqueta com uma coisa...

CENA 06 – ÂNGELA SE DESESPERA (ÂNGELA bate à porta com força. Aurélio fica assustado e corre para abrir.) ÂNGELA: Aurélio... desculpa eu vir, eu não queria vir... eu disse que eu não queria, mas... é que aconteceu uma coisa... não aconteceu nada, calma, mas aconteceu... a Stella... não, ela tá bem, mas ela... eu não sei onde ela está, ela pode ter fugido... AURÉLIO: (Pega um copo de água para Ângela) Calma Ângela, bebe esta água, respira. Tá tudo bem! (Ângela pega o copo. Ela se vira para a porta e começa a beber. Stella aparece vinda do quarto, vê a mãe que não a vê, não quer encontrá-la, olha para o pai que fica indeciso. Trocam olhares cúmplices. Stella solta o caderno em um canto e volta para dentro) Deve estar tudo bem! Calma, o que foi que aconteceu? (Aurélio começa a mexer pra não queimar o molho, durante toda esta cena ele está preparando o molho). ÂNGELA: Tem dois dias que a Stella não volta em casa, nem telefona. AURÉLIO: Ela deve estar bem, Ângela, curtindo em algum lugar... não conseguiu ligar. ÂNGELA: Claro que você não iria se preocupar! Aurélio, ela levou a mochila de campanha do Rubens. AURÉLIO: Ela pode ter ido acampar, sei lá, num mato desses, sem telefone...

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ÂNGELA: Você não teria como saber, mas eu te informo: tua filha não é dessas hipongas! O problema é o namoradinho dela, um tal de Ulysses. Claro que eu pensei nisso, até porque os pais deste Ulysses moram em Alto Paraíso, têm uma pousadinha. Consegui o raio do telefone da pousada e liguei. O Ulysses tinha estado lá e dito que iria viajar, passar na casa da avó, que eu descobri era aqui no Rio. AURÉLIO: E daí, é a vida do menino, nada a ver com a Stella. ÂNGELA: Se ela não tivesse levado até o passaporte... Os cadernos, Aurélio, ela tem uns cadernos, uns diários, com fotos, coisas dela... ficam trancados numa gaveta, ela levou tudo e deixou a gaveta aberta. Ninguém leva este tipo de coisa pra acampamento. Ela pensa em ficar muito tempo fora. O Rubens vasculhou a cômoda, tinha um bloco com uns horários anotados e ele descobriu que eram os horários dos ônibus para o Rio. Ela deve estar aqui, correndo atrás deste indiozinho. AURÉLIO: Por que ela faria isso? Ela poderia esperar ele voltar. ÂNGELA: Só se fosse pra me enganar, a gente discutiu semana passada Aurélio. Eu pedi pra ela não ver mais o tal Ulysses. AURÉLIO: Mas com que direito você fez isso? ÂNGELA: Com o direito de uma mãe que tem que se preocupar sozinha em cuidar de uma menina. Digo, sozinha não, o Rubens é um anjo...! ora Aurélio, exatamente pra não acontecer dela se enrabichar por esse malandrinho e depois ele dar o fora... AURÉLIO: Então este é o ponto! Você se projeta nisso tudo... ÂNGELA: Isso não tem nada a ver comigo. Só estou aqui por causa da Stella. AURÉLIO: Eu achei importante você me procurar. ÂNGELA: O Rubens é que deduziu que, como ela saiu sem dinheiro, poderia te procurar para conseguir algum. Só por isso eu pensei que ela poderia passar aqui. Teu endereço está na lista telefônica... AURÉLIO: Eu ficaria feliz se ela viesse aqui pra pedir dinheiro pra fugir, já que a mãe lança nela seus traumas em vez de simplesmente encarar o pai da menina nestes últimos anos. ÂNGELA: Ah... foi uma grande perda de tempo! Por que ela procuraria um pai que ela nem conhece? Até porque, corria o risco de você não reconhecer a menina. Pra seu governo, Tua filha tem uns cabelos compridos, enormes, bem escuros... Ela nunca viria aqui, você não existe! AURÉLIO: Você não quis que eu existisse! Você que nunca me deixou chegar perto da menina depois que eu voltei. ÂNGELA: Depois que acabou a tua viagem...? Depois que a Italiana te largou...? Anistia foi pra dissidente político, não pra dissidente familiar! AURÉLIO: Eu quis estar perto, você nunca aceitou que eu viajasse à Brasília.

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ÂNGELA: Porque você acha que eu me mudei pra Brasília? Benção!! Benção na nossa vida foi esta transferência do Rubens!!! Ele sim, presente, preocupado com a menina. AURÉLIO: Ela é uma mulher, Ângela. ÂNGELA: Como você pode saber? Você nem tem ideia de quem ela seja... Mas, sabe que faz sentido. É... Foi melhor assim, talvez você não identificasse nada nela que se parecesse mesmo com você. Até porque... AURÉLIO: Até por que, o quê, Ângela? ÂNGELA: Nada! É que você estava tão ocupado com as reuniões do movimento estudantil, tantas noites sem voltar pra casa... não sei... até tenho dúvidas. AURÉLIO: Ela é MINHA filha, Ângela!!! Porra!!! Eu sei que é! ÂNGELA: Como pode ter tanta certeza? AURÉLIO: Eu tenho certeza agora! ÂNGELA: Só se for agora, porque se você tivesse essa certeza na época, não teria fugido atrás de qualquer italianinha mal ajambrada, pra depois posar de exilado. AURÉLIO: Foi pra te proteger! ÂNGELA: Uma ova!!! Você tava louco pela gringa, ia com ela até pro Alasca pra inventar revolução de esquimó. AURÉLIO: Eu tinha 21 anos! ÂNGELA: E devia ter ficado com 21 anos, de lá pra cá tua vida não significou nada pra menina, nem pra mim. Aliás, eu tô perdendo meu tempo. Vou procurar a polícia pra dar queixa do sumiço da Stella. Ela não tem dinheiro, não tem como ir longe. O Rubens já falou com uns amigos dele do exército... AURÉLIO: Não envolve essa gente, Ângela. Calma, dá um tempo pra menina, ela vai aparecer, confia nela. ÂNGELA: O que você pode saber sobre filhos? Acha que dá pra confiar na cabecinha adolescente deles? Até juras de sangue estes doidinhos fazem! Ela vai ouvir um monte de coisa, é sedutor o malandrinho... Ela vai acreditar em qualquer coisa que ele disser quando ela estiver chorando e depois ele foge com outra. Isso não tem como dar certo. AURÉLIO: Não tem que dar certo, Ângela! Existe e pronto. O amor dela por esse menino não precisa de ser retribuído. Se ele não gostar dela, ele que tem um problema, ela já tem um amor. ÂNGELA: Ela tem uma ilusão de amor. Ela vai ter um grande problema quando for abandonada. AURÉLIO: Então, se eles não envelhecerem juntos significa que não teve amor? O amor não vence tudo não... ÂNGELA: Sabia que você não iria me ajudar! AURÉLIO: (mudando o foco para o molho) Me ajuda!

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ÂNGELA: O quê?! AURÉLIO: Me ajuda com o molho, prova aqui. Eu nunca provo o molho, eu sempre acho que falta sal, prefiro alguém provar o sal pra eu não exagerar. ÂNGELA: Você tá ouvindo o que você me pede, nesta hora... AURÉLIO: Vai queimar, preciso desligar, prova logo. (Ângela prova o molho, coloca mais um pouco de sal e um filete a mais de azeite, segue mexendo. Depois prova de novo, desliga o fogo, coloca o molho pronto numa tigela e começa a lavar a panela. Aurélio observa como que relembrando. Ela pega um pano de prato para enxugar a panela, de costas ainda. Ele para bem atrás e coloca a mão no ombro dela. Ela para.) AURÉLIO: Por que você nunca quis que eu visse a menina? Você achava realmente que eu não tinha nada pra dizer a ela? Ou será que era você que... (Ângela se vira chorando, se olham.) ÂNGELA: (entrega a ele a panela e o pano de prato) Fica uma vez com a parte mais pesada da história... (pega no bolso um cartão do hotel) Este é o número do hotel que eu estou, se aquela cabecinha de vento aparecer me liga. AURÉLIO: (Aurélio prova o molho) Ficou ótimo nosso molho! (pausa) Ângela... ÂNGELA: Eu resolvo (se vira para a porta e começa a sair). Se ela aparecer, não tenta resolver, me liga. (Sai deixa a porta encostada, sem fechar.) AURÉLIO: (sozinho) Gentileza, guardar amor antigo é gesto de extrema gentileza.

CENA 07: UMA PRIMEIRA CONVERSA NO MESMO NÍVEL (Aurélio fica um tempo parado, coloca o cartão como marcador de texto no caderno, faz anotações nas páginas onde começara a guardar coisas para os princípios.) STELLA: (voltando já com a roupa que chegara, coloca a camisa do Botafogo sobre a mesa. Enche a taça de Aurélio com vinho) Toma! Ajuda? AURÉLIO: Esse sorriso ajuda! (coloca a massa na panela.) STELLA: Obrigado pela ajuda! É isso mesmo? AURÉLIO: A água, está fervendo, só esperar 10 minutos... STELLA: É isso mesmo? Você fugiu pra ir atrás de uma Italiana? AURÉLIO: Giovana não era italiana, o pai dela que era... anarquista! Ela que tava metida no movimento de vanguarda armada. Eu só ajudava nos folhetos, fazia textos. Naquele tempo parecia que a palavra tinha força! Eu acreditava naquilo. Mas eu acreditaria em qualquer coisa que ela me pedisse sorrindo... STELLA: Então vocês trabalhavam juntos, você provocava ela, depois caía na mesma armadilha, vai culpar o amor de novo? Filme repetido Aurélio... AURÉLIO: Não existe acúmulo de entendimento nesta coisa de se apaixonar. E eu tinha dado só um beijo nela...

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STELLA: Só um? AURÉLIO: Segurando uma arma! Quando ela falou que a turma ia se encontrar na Floresta da Tijuca eu pensei que fosse uma trilha... Cheguei lá, eles estavam fazendo um tipo de treinamento de guerrilha. Ela pegou um revolver e colocou na minha mão... eu congelei. Ela veio por trás de mim e segurou o revolver junto comigo, nunca soube quem apertou o gatilho... Ela ria, mas meu coração tava disparado. Ela disse “Bravo, bambino...” então me beijou, uma vez só e ficou rindo. STELLA: Você foi embora por conta de um único beijo? AURÉLIO: Tinha também uns caras que rondavam pela faculdade, meganha infiltrado. Já tinha acontecido de um destes parar do meu lado e começar a fazer pergunta da turma, especialmente da Giovana... eu saquei a dele e vi que o caldo tava engrossando pra mim também. Fiquei preocupado com você e tua mãe, até porque eu tinha topado guardar em casa uma mala... STELLA: Sem saber o que tinha dentro? Maluquice! AURÉLIO: Eu não tava pensando em nada disso... Uma noite ela me ligou precisando daquela mala e perguntou se eu tinha mais uma. Eu levei as duas malas. STELLA: Ela ia usar as duas malas? AURÉLIO: Ela disse que queria me levar na outra mala... STELLA: Assim? Só isso? AURÉLIO: O abismo só chama uma vez... STELLA: E isso foi suficiente para você jogar fora todo o teu encontro com a mãe? Comigo? AURÉLIO: A gente procura o encontro, mas nem sempre o encontro acha a gente. STELLA: Você não acreditou. AURÉLIO: Eu acreditei a ponto de criar você! Mas tinha sempre um desejo de partida, um caminho que chamava... STELLA: Covarde! AURÉLIO: Covarde... Ao mesmo tempo, te olhando agora, percebo que foi preciso muito mais coragem. STELLA: E eu? AURÉLIO: A ferida de saudade mais funda, num ponto do meu corpo que eu só descobri agora que existe. STELLA: (sem saber o que responder, vai até a massa e confere dentro da panela) Tá pronto? (mostra a massa) AURÉLIO: Nunca tá pronto. (Aurélio começa a verter a massa e Stella ajuda). Tá decepcionada?

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STELLA: Não sei, tô confusa. Não era nada disso que eu pensava, mas ao mesmo tempo... não sei Aurélio... não sei se melhora ou piora a imagem que eu tinha. AURÉLIO: Prova meu jantar que vai melhorar. STELLA: Não sei Aurélio, não dá tempo, depois tem tua convidada... AURÉLIO: Deve ter acontecido alguma coisa. Senta que eu te sirvo. STELLA: Ah, não... Aurélio, assim eu fico sem graça. AURÉLIO: Só vou tomar uma taça pra te ver comendo (prepara uma garfada e faz “aviãozinho”). STELLA: Bobo... (provando) Huuuummm! Meu deus... que delícia!!! AURÉLIO: É melhor do que papinha? STELLA: É maravilhoso! AURÉLIO: É maravilhoso!... Como você conheceu este Ulysses? STELLA: Ué, porque você quer saber? AURÉLIO: Eu coleciono. STELLA: Coleciona? AURÉLIO: Encontros, coleciono encontros. Eu pergunto a tudo quanto é casal como é que se conheceram... depois anoto! STELLA: Pra quê? AURÉLIO: Não sei, queria usar isso um dia... um filme, de repente. Um filme sem história, só encontros, um monte deles, até ver que é a soma dos encontros que faz a história... STELLA: Ninguém sabe como termina nenhuma das histórias? AURÉLIO: Importa? STELLA: Pra mim sim! Como eu vou saber se valeu a pena? AURÉLIO: Se houve um encontro... como foi o teu? STELLA: Quer mesmo saber? ... Ah, foi... Inesquecível! Foi na Chapada dos Veadeiros, lá perto de Brasília, conhece? AURÉLIO: Já ouvi falar: cachoeiras místicas, um tal vale da lua... STELLA: Isso, foi no vale da Lua. A gente tava passando um final de semana lá, muito massa! AURÉLIO: Massa? STELLA: É muito bom! É como a gente fala em Brasília... mas, ouve, eu fui até o vale da lua, era uma trilha fácil. Resolvi ir subindo as pedras, elas são escuras, arredondadas, parece mesmo que a gente tá na lua... Na hora de voltar acho que eu confundi as pedras, eu nunca encontrava o início da trilha. Aí eu cheguei numa parte que fazia uma piscina e o Ulysses tava sozinho, nadando, pelado! AURÉLIO: Pelado?!

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STELLA: Ele ficou morrendo de vergonha e pediu pra eu jogar o short dele pra dentro d’água. Eu peguei o short, mas fiquei com medo e saí correndo segurando o short dele. Ele veio atrás gritando pra eu parar. Eu joguei o short no chão e continuei correndo, sem olhar pra trás. Sei que eu virei atrás de uma pedra grande e, nem sei como, ele estava na minha frente, de short, rindo, com o cabelo todo grudado no rosto. Eu achei tão lindo que não tive mais medo... a gente ficou rindo um tempão, os dois com vergonha. Ele perguntou meu nome, de onde eu era, onde eu estudava, essas coisas... AURÉLIO: Vocês ficaram ali no meio da Lua? STELLA: No vale da lua...! Não Aurélio, ele me mostrou o início da trilha, se ofereceu pra ir comigo até a pousada, mas eu sabia que minha mãe não ia gostar nada disso. AURÉLIO: Agora os lunáticos querem fugir! Stella tem tempo pra tudo, porque você quer apressar a coisa? STELLA: Você não entende, minha mãe não gosta dele. Agora, depois de tanta coisa que eu ouvi, acho até que é por causa de você... ou eu fujo agora ou nunca vou viver meu grande amor. AURÉLIO: Sabe o que é louco na tua idade? Vocês não viveram absolutamente nada, tem uma vida inteira pela frente, todo o tempo do mundo e acha que tudo é sempre a última chance. Nobre é o conselho do Nelson Rodrigues aos jovens: Envelheçam! STELLA: Apodreçam? AURÉLIO: Cresçam... Eu tenho muito menos tempo pela frente que você e nunca acho que é a última chance. A gente percebe o tempo das coisas, joga com isso... Querer ser o autor da história do mundo é muito prepotente, ser um personagem atento já é grande coisa. STELLA: Daí tanto faz? Pra mim não, é muito importante. Você larga as coisas, Aurélio... Largou a mãe pela Italiana, largou a Italiana pela... por que, mesmo? AURÉLIO: Ela se casou! STELLA: Que furada! Você não foi atrás dela? AURÉLIO: Fui... até Veneza. STELLA: Veneza? AURÉLIO: Festival de cinema, 1977, ela tinha se casado com um Diretor de Fotografia bem mais velho. Eu não tinha dinheiro pra hotel, passei dois dias vagando pelos cantos e, de repente, ela estava entrando sozinha num vaporetto, um tipo de barca. O vaporetto não tinha saído, eu tentei chegar perto, pulei numa gôndola que estava atracada, pulei dela pra outra mais perto e no terceiro pulo, nossos olhares se cruzaram... eu pisei em falso, cai no canal, que fedia a beça. Quando subi de novo na gôndola escutei o barulho do vaporetto partindo, nunca mais vi a Giovana. STELLA: Ai Aurélio, pagou mico! AURÉLIO: Como é que é, paguei quem?

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STELLA: Mico, Aurélio, passou vergonha... não se sentiu ridículo? AURÉLIO: Mas é próprio do amor deixar o amante ridículo. O amante é que não pode ridicularizar o amor. No mais, o amante é inimputável... STELLA: “Inim...” o quê? AURÉLIO: (solene, se aproxima do caderno e pega a caneta) “Inimputável, a quem não se pode atribuir culpa... O amante é inimputável em caso de vexame de saudades” (risos, anota coisas). STELLA: Mas por que você foi atrás dela se sabia que ela tinha se casado? AURÉLIO: Eu tava morrendo de saudades. Pensa, eu só podia cuidar era do meu amor por ela, o dela por mim, era problema só dela. STELLA: Aurélio, você não existe... (faz menção de lavar os pratos.) AURÉLIO: Deixa os pratos, a gente lava amanhã. STELLA: Aurélio, você lava o prato amanhã.

CENA 09 – ULYSSES PASSA PARA BUSCAR STELLA (ULYSSES, 19 anos, magro, moreno, cabelo desconjuntado, esboço de barba. Um mochilão nas costas, entra com cuidado pela porta aberta.) ULYSSES: (da porta) Ei Estrelinha, E aê... tudo bem? (Entra e beija Stella.) STELLA: Ulysses, esse aqui é o.... Aurélio. ULYSSES: O seu pai? STELLA: É... (Ulysses estende a mão para cumprimentar Aurélio que não tira os olhos de Stella. Stella coloca um copo de água na mão estendida de Ulysses.) ULYSSES: Pô, não rola um pouco deste vinho... STELLA: Toma esta água Uly, eu só vou acabar de ajudar o Aurélio com este jantar, daí a gente vai. AURÉLIO: Deixa o menininho beber, Stella. Se ele pensa que já pode beber... (dá copo para Uly). Você já sabe beber, menino? ULYSSES: (vira o copo, desafiador) Aê, vinho não é meu forte... é meio fraco! Deixa pra lá! Eu pensava que você era mais velho! As paradas que você escreve... AURÉLIO: Pra você ver... Não precisei de tanto tempo pra sacar a real. Tem um mundo de verdade que precisa ser reformado. É muito trabalho, não dá pra ficar tomando conta das crianças no parquinho. ULYSSES: Bicho, sabe que às vezes eu penso que o parquinho é que é mundo de verdade. Sei não... acho mais é que alguém tem que levar o parquinho pra onde o mundo insiste em sacar esta tal “real”. STELLA: Uly, você não quer me esperar lá embaixo? AURÉLIO: Deixa o menino aqui Stella, ele quer brincar. Você gosta de brincar?

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ULYSSES: Ih... mas muito! Eu gosto de brincar de inventar o que eu gosto de brincar... Fico meio de bobeira, com medo de descobrir a regra e depois ficar assim, repetindo. AURÉLIO: A vida é à vera, menino, não é de à brinca. ULYSSES: Sério? Não brinca...! Acho que devo ter matado esta aula..., ainda bem, morro de medo desta gente séria, com cara de triste. Se o cara é feliz ninguém confia, daí vai pintando uma carranca de tristeza profissional. Tô fora! AURÉLIO: E você acha que dá pra confiar só no sorriso? Tem que fazer força! (Senta e faz uma posição de queda de braço) Vem aqui então, menino, fazer um pouco de força, senta aqui do lado. STELLA: Aurélio!! ULYSSES: Calma aí, meu chapa, eu vim numa “nice”... AURÉLIO: Valendo a Stella, você não quer tirar ela daqui, tem que ganhar... STELLA: Aurélio, você não tem direito de regular nada e... ULYSSES: É sério, coroa? Não quer fumar um “da paz”? STELLA: Ridículos, os dois!!! Parem com isso agora, eu não sou prenda de gincana... AURÉLIO: É só brincadeira Stella, ele sabe... ULYSSES: Deixo ele ganhar, Estrelinha, para ele pensar que ainda tem alguma potência... AURÉLIO: Muito bem, valendo a Stella, no três: um... dois... (rouba o início, faz força antes do sinal)... três... STELLA: Chega!!! Para!!! Vou embora... ULYSSES: Deixa Estrelinha, o crime não compensa...(Ulysses resiste um pouco, desafiam-se, mas Aurélio se levanta e rouba novamente forçando o braço de Ulysses de cima pra baixo até encostar na mesa.) AURÉLIO: Stella, serve mais vinho pro seu amiguinho, ajuda a suportar a derrota. ULYSSES: Típica truculência dos desonestos. AURÉLIO: Típica ingenuidade dos crédulos. Tem que ser esperto. ULYSSES: Outro nome para sacanagem. AURÉLIO: Relaxa menino, era só brincadeira... talvez você seja bom em alguma coisa, afinal, como você espera ganhar a vida? STELLA: O Uly desenha muito bem, Aurélio, ele faz umas ilustrações lindas, uns quadros... AURÉLIO: Que vai vender em Tiradentes, suponho. ULYSSES: Só pra quem eu achar que tem a energia da ilustração. Daí vendo sim, não tem nada de errado com a gente viver da ideia.

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AURÉLIO: E das gorjetas que a Stella vai ganhar servindo mesa no tal restaurantezinho. STELLA: É só por um tempo, Aurélio, vou fazer vestibular no final do ano. Economia, em Ouro Preto. AURÉLIO: Você não tem vergonha não, rapaz? Você vai deixar a menina segurar tuas barras? Vai ficar com a palheta na mão e ela carregando prato, acha que tá bacana isso? ULYSSES: Acho que isso não te interessa. AURÉLIO: Claro que me interessa, seu moleque! Acha que vai entrando aqui em casa e levando MINHA filha como um cantil que você pendura nessa mochila de aventureiro? STELLA: Eu não sou propriedade tua Aurélio, você não tem direito de falar assim. AURÉLIO: Tenho direito sim, esse moleque não tem maturidade nem condições de te levar a lugar nenhum. Eu sei onde terminam esses arroubos românticos ingênuos. No início, parece que o mundo não faz sentido sem esse “amor eterno”... Depois da primeira transa, a novidade passa e a realidade se impõe. STELLA: (desafiadora) A realidade só ficou mais linda depois que a gente transou. (Aurélio se descontrola e joga em Stella o final de vinho que tem em sua taça.)

ULYSSES: Não vou entrar numas com você, bicho! Só quero é ficar muito ligado, porque se um dia eu der bobeira e ficar parecido com você, um yuppie, liberalóide e careta, daí é que eu não mereço mesmo levar a estrelinha a lugar nenhum. AURÉLIO: Um liberal que paga suas contas. (Pega a carteira, começa a contar notas de dinheiro, faz um maço e joga sobre Ulysses.) AURÉLIO: Vai, não era de dinheiro que vocês precisavam? Pega, senão o moleque não paga nem o lanche da viagem. (Ulysses pega o dinheiro, cada nota e volta para devolver para Aurélio. Joga as notas com as duas mãos para o alto, sobre a cabeça de Aurélio e fica com os braços estendidos para o alto, como se tivesse comemorando. Aurélio o empurra, ele cai. Aurélio vai por cima dele, então Ulysses, caído, lhe dá um soco. Aurélio rola para o lado com o nariz sangrando. Ulysses levanta rápido, pega a mochila e caminha para a porta. Stella vai acudir o pai no chão. Primeiro ela pega a camisa do Botafogo que estava sobre a mesa, passa sobre o rosto dele e deixa uma marca de sangue.) STELLA: Pai, você tá bem? AURÉLIO: Melhor... STELLA: Isso tá horrível, eu vou te ajudar! AURÉLIO: Já me ajudou.

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ULYSSES: Stella, va’mbora, ainda tem que pegar um ônibus pra rodoviária. STELLA: (para o pai) Meu deus, do que você precisa? AURÉLIO: Pega o dinheiro, não deixa no chão. STELLA: Isso tá uma bagunça, tá tudo uma bagunça! ULYSSES: Estrelhinha, qual vai ser? Vem comigo... vai ficar tudo bem! STELLA: Tem que arrumar essa bagunça! AURÉLIO: Eu consigo terminar de arrumar os pratos. ULYSSES: (saindo) Meu amor... eu vou esperar lá embaixo mais cinco minutos (sai, como um ultimato). STELLA: Teu nariz, quebrou? AURÉLIO: Às vezes, só quebrando. STELLA: Se você quiser... AURÉLIO: Vai! STELLA: Mas, eu posso ir amanhã, só pra te ajudar a.... AURÉLIO: Agora! STELLA: Você mesmo falou que tem ônibus pra Tiradentes todos os dias... AURÉLIO: (Percebendo que a filha ficaria, simula um tom agressivo) Eu sei me virar sozinho, foi assim até agora, não preciso de babá. (Pausa). O que você está esperando? Não queria ir? STELLA: (escreve no caderno de Aurélio) Vou ficar aqui, neste endereço, vai me ver! Eu não sei se tenho coragem de voltar aqui. AURÉLIO: Eu não sei se tenho coragem se você ficar. (Incisivo) Vai... não olha pra trás... (Stella pega a mochila e sai correndo. Na saída da porta bate o ombro em Martha que chegava) CENA 10: VOLTA MARTHA E TERMINAM O TEXTO ENCOMENDADO MARTHA: Aurélio, você tá bem? Que briga foi essa? A putinha chamou o cafetão? AURÉLIO: Martha... MARTHA: Vamos chamar a polícia e... AURÉLIO: Martha... MARTHA: Eles não devem estar longe e... AURÉLIO: Martha, ela é minha filha! MARTHA: Filha? Não sabia que você tinha uma filha! AURÉLIO: Nem eu, Martha, nem eu.

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MARTHA: Mas quem era aquele Marginalzinho charmoso? Pra onde eles foram? AURÉLIO: Fugir. MARTHA: Oh, god! Eles fizeram merda... roubaram alguma coisa?... Mon dieu, alguém morreu? AURÉLIO: Eles vão fugir (didático) “dos grilhões da sociedade burguesa que soterram as aspirações amorosas libertárias”. MARTHA: Que papo estudantil é esse? AURÉLIO: Amor, Martha! Eles vão fugir por amor... pra terem espaço pra este amor, seja lá o que isto significar. MARTHA: (nostálgica) Jura? Ainda se faz este tipo de coisa? Que lindo!... Você teria coragem de ser meu príncipe montado num fusca branco? AURÉLIO: Eles vão de ônibus mesmo, pra Tiradentes, em Minas. Ela serve mesas, ele faz ilustrações... MARTHA: (Explode numa gargalhada) Desculpe, quer dizer, é engraçado, é super-clichê juvenil. Como é que você deixou a menina sair assim? AURÉLIO: Você fica falando de príncipe num fusca branco e depois cai na armadilha do rótulo clichê. Claro que é clichê! Evidente que é juvenil!!! Ou não seria paixão, “Darling”...! quando foi que a gente desistiu de se apaixonar? MARTHA: Tá com saudades da Stella? AURÉLIO: Tô, tô com saudades do Ulysses... Tô morrendo de saudades da Stella! MARTHA: Agora que você falou, sabe que o Marginalzinho parece mesmo com você na época da faculdade? AURÉLIO: Ele me deu um soco! MARTHA: Você acha que vai dar certo? AURÉLIO: Já deu! A única coisa a dar certo é o impulso do amor, não o resultado, o mais é o tempo. MARTHA: Isso que você falou é um dos “princípios para o amor perfeito”? AURÉLIO: Não, mas podia ser um princípio para o amor imperfeito, o possível só na transgressão. MARTHA: Nossa Aurélio, não faz assim. AURÉLIO: Você quer ou não o teu texto? MARTHA: Você quer ou não as passagens para Veneza? AURÉLIO: Então para de me sacanear e ajuda a terminar. E tem mais, nada disso de “princípio para amor perfeito”, vai ser “princípios transgredíveis para amores precários” e eu uso pseudônimo para não perder a credibilidade de analista econômico. MARTHA: Socorro!!! Wagner, Socorro!!! (Vai até a vitrola e coloca outra parte de Tristão e Isolda de Wagner, talvez o tema da morte de Isolda.)

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(Enquanto isso, projeta-se na tela que é a janela imagens de Stella e Ulysses. Algumas imagens: Ônibus de noite ela dormindo no ombro dele / contando moedas para comprar e dividir um salgado / ônibus de dia, ela com um caderno e ele com um violão / uma cachoeira / Ela servindo mesas / ele rasgando uma ilustração / cachoeira / uma briga entre eles / alguém compra uma ilustração / ela chora / cachoeira / uma risada em torno de uma fogueira... Passagem de tempo fica pronto o texto, a imagem congela em uma cachoeira parada com cores retrabalhadas.) MARTHA: Mais uma revisão? Eu sempre pego umas coisinhas nos teus textos. (Lendo de forma intercalada. Aurélio começa)

1. Todo princípio amoroso, em princípio, é transgredível. 2. Todo amor é precário, pois de corações finitos. Há que cuidar! 3. Amor é potencialmente bom mas é preciso ser bom para torná-lo bom. 4. Um amor não se mistura com outro amor, nem se disputam. Cada

amor tem o tamanho da sua própria história. 5. Amor só acresce ou encolhe dentro do amante, enquanto impulso.

Nesse caso, mais amor é melhor que menos. 6. Amor não tem que dar certo, nem exige retribuição para dar-se. Se

João ama Maria que não o ama, quem tem um problema é Maria. João já tem um amor.

7. Amor não é eterno, nem vence tudo. Entretanto, guardar carinhosamente amor antigo é gesto de extrema delicadeza.

8. É próprio do amor deixar o amante ridículo, embora seja vedado ao amante ridicularizar o amor. O amante é inimputável em casos de vexames de saudades.

9. Só é possível cuidar do amor seu pelo outro, o do outro a seu respeito é da alçada do outro.

MARTHA: (Retira a música) Foi bonito o que você fez. AURÉLIO: O texto? MARTHA: Não, o que você fez pela Stella. AURÉLIO: Agora que eu me apaixonei por ela...! Não podia cair nesta armadilha de segurar ela comigo. Mas dói, Martha, agora tá doendo. MARTHA: Você está sendo óbvio: rimando dor e amor! AURÉLIO: O óbvio é o destino inescapável do afeto puro! MARTHA: Tem um problema, só tem nove princípios, essas coisas sempre têm dez. AURÉLIO: Palhaçada Martha, estes princípios não têm a menor importância. O amor resolve sozinho o que ele quiser... MARTHA: (completando no caderno) Isso, décimo princípio: Caso algum dos princípios acima seja transgredido, não tem problema. Se as pessoas não

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atrapalharem muito, o amor dá um jeito de fazer-se por si. Mamma Mia, Dio Santo! Deixa eu ir embora antes que eu me arrependa! AURÉLIO: De ir embora? MARTHA: De publicar essa doideira. AURÉLIO: Fica aqui! MARTHA: Não posso. AURÉLIO: Tá tarde, tem tanta comida. Fica? MARTHA: Só uma taça de vinho. (Aurélio dá um copo a Martha) MARTHA: Prova você para eu ter certeza que não está envenenada! (Ela prova e beija Aurélio, enquanto pega o texto de sua mão) Thanks Darling, adorei o texto, it’s lovely. Me voy, que sou uma mulher casada. Também te amo, Bye!

EPÍLOGO: ESTRELA SOLITÁRIA (Aurélio observa Martha sair. Se lembra e põe no rádio o jogo do botafogo. Ouve-se a transmissão oficial do jogo. Aurélio veste camisa do Botafogo. Narração proclama vitória do Botafogo e ouve-se o hino do clube. ) (A Campaínha toca... ele se vira para porta. Fade para BO)

FIM