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143 almanack braziliense n°02 novembro 2005 resenhas RICUPERO, Bernardo. O romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Coleção temas brasileiros), 287 p. Priscilla Rampin de Andrade Aluna de graduação do curso de História da FFLCH-USP; desenvolve pesquisa de Iniciação Científica no IEB-USP, sob orientação da Profa. Dra. Monica Duarte Dantas Uma vez feita a Independência nos países da América Latina colo- cava-se um problema para os homens desse período, como realizar também a “independência mental” (p.XXV), ou ainda, como diferenciar a “América da Europa” (p.XXXII), como afirmar as particularidades desses países. Num lugar onde a herança ibérica era muito forte, isso representava a busca por uma maior “autonomia cultural” (p.85). É a essa tarefa que os românticos vão se dedicar, a tarefa de criar símbolos que fizessem com que a popu- lação desses países recém emancipados se reconhecesse a eles pertencente, ou seja, a tarefa de construção da nação. Essa é a proposta de Bernardo Ricupero em “ O romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-1870)” : examinar que nação o roman- tismo buscou criar naquele momento, ou melhor, que idéia de nação esses homens podiam construir para o período. O autor trata de forma cuidadosa a questão da criação da literatura, da critica literária e da historiografia brasileiras, deixa claro, no entanto, que sua intenção não é fazer uma análise de critica literária ou história, mas sim “estudar o esforço que reali- zaram, a partir de suas obras, de criar referencias para as sociedades em que agem” (p. XXI). Retomando algumas discussões, como os debates em torno do india- nismo ou os debates em torno da História Geral de Varnhagen, buscou mostrar toda a complexidade envolvida nessa construção, bem como as contradições e os obstáculos que a conformaram. Para tanto, dialoga primeiramente com os próprios autores da época, além de Antonio Candido, Afrânio Coutinho e Manuel Luis Salgado Guimarães, entre outros. Ricupero faz todo esse percurso visando mostrar como naquele momento de auge do romantismo foram fundados/criados alguns mitos e símbolos da nação brasileira, que foram posteriormente trabalhados por outros autores e que tem repercussão até hoje. Nesse sentido, salienta que essa construção apenas começou no século XIX, sendo necessário ainda muito tempo para se consolidar. Originalmente sua tese de doutorado, o livro se divide em três partes e sete capítulos. Na primeira parte, “Tema: A nação”, discute os dois núcleos principais com os quais trabalha: a nação e o romantismo; na segunda, “Desenvolvimento: A nação segundo o romantismo brasileiro”, analisa o surgimento da critica literária, da literatura e da historiografia brasileiras, partindo do momento de ascensão do romantismo até o começo de sua queda. Na terceira e última parte, “Contraponto: A nação segundo o romantismo argentino”, contrapõe o romantismo brasileiro ao argentino visando mostrar como preocupações parecidas adquiriram formatos dife- rentes dependendo da realidade político-social em que estavam inseridas, contraponto esse que também se presta a salientar as particularidades do processo Brasileiro. Sua idéia é mostrar como a questão da nação se desenvolveu nesse período de grande influência do romantismo e como esse problema

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RICUPERO, Bernardo. O romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Coleção temas brasileiros), 287 p.

Priscilla Rampin de AndradeAluna de graduação do curso de História da FFLCH-USP; desenvolve pesquisa de Iniciação Científica no IEB-USP, sob orientação da Profa. Dra. Monica Duarte Dantas

Uma vez feita a Independência nos países da América Latina colo-cava-se um problema para os homens desse período, como realizar também a “independência mental” (p.XXV), ou ainda, como diferenciar a “América da Europa” (p.XXXII), como afirmar as particularidades desses países. Num lugar onde a herança ibérica era muito forte, isso representava a busca por uma maior “autonomia cultural” (p.85). É a essa tarefa que os românticos vão se dedicar, a tarefa de criar símbolos que fizessem com que a popu-lação desses países recém emancipados se reconhecesse a eles pertencente, ou seja, a tarefa de construção da nação.

Essa é a proposta de Bernardo Ricupero em “O romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-1870)”: examinar que nação o roman-tismo buscou criar naquele momento, ou melhor, que idéia de nação esses homens podiam construir para o período. O autor trata de forma cuidadosa a questão da criação da literatura, da critica literária e da historiografia brasileiras, deixa claro, no entanto, que sua intenção não é fazer uma análise de critica literária ou história, mas sim “estudar o esforço que reali-zaram, a partir de suas obras, de criar referencias para as sociedades em que agem” (p. XXI).

Retomando algumas discussões, como os debates em torno do india-nismo ou os debates em torno da História Geral de Varnhagen, buscou mostrar toda a complexidade envolvida nessa construção, bem como as contradições e os obstáculos que a conformaram. Para tanto, dialoga primeiramente com os próprios autores da época, além de Antonio Candido, Afrânio Coutinho e Manuel Luis Salgado Guimarães, entre outros.

Ricupero faz todo esse percurso visando mostrar como naquele momento de auge do romantismo foram fundados/criados alguns mitos e símbolos da nação brasileira, que foram posteriormente trabalhados por outros autores e que tem repercussão até hoje. Nesse sentido, salienta que essa construção apenas começou no século XIX, sendo necessário ainda muito tempo para se consolidar.

Originalmente sua tese de doutorado, o livro se divide em três partes e sete capítulos. Na primeira parte, “Tema: A nação”, discute os dois núcleos principais com os quais trabalha: a nação e o romantismo; na segunda, “Desenvolvimento: A nação segundo o romantismo brasileiro”, analisa o surgimento da critica literária, da literatura e da historiografia brasileiras, partindo do momento de ascensão do romantismo até o começo de sua queda. Na terceira e última parte, “Contraponto: A nação segundo o romantismo argentino”, contrapõe o romantismo brasileiro ao argentino visando mostrar como preocupações parecidas adquiriram formatos dife-rentes dependendo da realidade político-social em que estavam inseridas, contraponto esse que também se presta a salientar as particularidades do processo Brasileiro.

Sua idéia é mostrar como a questão da nação se desenvolveu nesse período de grande influência do romantismo e como esse problema

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percorria um duplo caminho que era ao mesmo tempo político e cultural. Ou seja, a criação da nação no Brasil e, de certa forma, também na Argen-tina, envolvia dois momentos com características peculiares. O primeiro, no pós-independência, foi essencialmente político, em que se buscou criar instituições que desempenhassem funções atribuídas ao Estado. O segundo momento, cujo viés era marcadamente cultural, já em meados do século XIX, foi marcado pela tentativa de fazer com que os habitantes das antigas colônias se identificassem com as novas nações, e foi exatamente este segundo o momento de predomínio do romantismo que visava buscar na história e na cultura os argumentos que justificassem/legitimassem essa identificação. Esses dois momentos, no entanto, se completavam, daí boa parte dos românticos serem ao mesmo tempo políticos (ou altos funcioná-rios) e escritores. Na Argentina a “republica das letras” foi ainda mais longe em termos de política já que o historiador Bartolomé Mitre e o escritor Domingos Faustino Sarmiento chegaram à presidência do país.

Como salienta Ricupero, a nação é na verdade uma construção artificial e, assim, “em poucas palavras, a identidade nacional é uma construção polí-tica e cultural que não possui realidade objetiva fixa. Complementarmente, determinadas relações sociais estabelecem o ambiente das operações ideo-lógicas, homens e mulheres, em situações muito diversas, passam a acre-ditar que estão unidos numa mesma comunidade, a nação”. (p.26). A tarefa principal da nação, em sua relação com o Estado, é fornecer a legitimidade necessária para que esse exista (ou se afirme), daí nação ser ao mesmo tempo uma questão cultural e política, duas faces de uma mesma moeda.

Foi justamente no campo cultural que os argumentos românticos se fizeram sentir com mais força, pois criaram os símbolos e tradições que forneceram a base para a construção da nação. Dessa maneira, Ricupero deixa claro que no caso do Brasil, e da própria América Latina, a nação só pode ser pensada depois da independência e que, portanto, esta é a prova de que a nação é uma construção artificial (produto da ação das elites polí-ticas) e não reflexo de um passado imemorável.

O autor demonstra que, tendo os românticos assumido a responsabi-lidade pela criação da nação, sua grande influência partira do romantismo francês, o que foi facilitado pelo fato de que os fundadores do romantismo na América Latina, Domingos José Gonçalves de Magalhães, no Brasil, e Esteban Echeverria, na Argentina, passaram um longo período na França, onde puderam entrar em contanto com essas novas idéias. Além disso, salienta que o século XIX, tanto para a Europa como para a América, foi um momento de transição, pois enquanto lá se procurava superar o Antigo Regime, aqui se buscava superar o período colonial. Daí ser o romantismo tão adequado às expectativas do momento, pois traduzia essa necessidade de afirmação das particularidades de cada sociedade Nacional, superando as tradições universalistas do Iluminismo. Ricupero não deixa de destacar, contudo, as particularidades do romantismo latino americano, “o roman-tismo aqui não compartilha dos objetivos que tem na Europa. É um roman-tismo de meios, que proclama, como o europeu, a especificidade de suas sociedades nacionais, mas que pretende, ao fim do caminho, encontrar a civilização européia” (pp. XXVII-XXVIII).

No que tange ao caso brasileiro, a preocupação de Ricupero é mostrar como literatura, história e política se articulavam, mostrando toda a trans-formação dessas áreas dentro do processo de formação da nação brasileira. Assim, o autor se dedica a mostrar toda uma evolução do pensamento

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brasileiro, passando não só pelo começo da crítica literária, com a publi-cação da Revista Niterói em 1836 (considerada o marco inicial da indepen-dência literária do país), como pelo início da historiografia, com a criação do IHGB e a concretização de seus objetivos com a publicação da História do Brasil de Vanhagen. Contudo, cabe aqui uma ressalva, quando trata do IHGB, ainda que afirme dialogar primeiramente com Manoel Salgado Guimarães, ao dedicar-se mais à abordagem das questões referentes à composição dos quadros do Instituto e de sua ligação com D. Pedro dialoga mais diretamente com a obra de Lília Schwarcz - ainda que Manoel Salgado Guimarães trabalhe exatamente a tríade IHGB-História-Nação.

Quanto à literatura, o principal foco de Ricupero é a questão indianista. Para tanto, retoma as discussões centrais do período, além de mostrar os principais embates ocorridos na época, tais como as disputas entre Vanhagen e Gonçalves de Magalhães, e também entre Magalhães e José de Alencar e, por fim, o embate entre Alencar e Joaquim Nabuco. Assim, parte do início do romantismo, com Magalhães, passando por seu auge, com as obras de Gonçalves Dias, e seu declínio, com José de Alencar. O que se evidencia é sua tentativa de desvendar o porquê de serem esses os temas escolhidos pelo romantismo e não outros, destacando, por exemplo, a diferença entre o Brasil e a Argentina no que tange à escolha da figura do indígena. Isso se deu, segundo Ricupero, pelo fato de que no Brasil o indígena, ao contrário do que acontecia na Argentina, não era mais um problema, diferentemente do que ocorria com os negros, o que, para ele, justifica a exclusão do negro da literatura. Além disso, o indianismo seria também uma forma de se discutir posições sociais. Aliás, Gonçalves Dias, por ser mestiço, teria se identificado mais com a condição dos índios – e também dos homens livres pobres –, o que demonstraria que “boa parte da produção indianista parece ser uma maneira cifrada para que alguns homens de situação pouco definida discutirem seu lugar na sociedade brasileira do século XIX”. (p.155).

Ao fazer esse percurso Ricupero não deixa de mostrar como o próprio momento político estava mudando. Ricupero destaca as diferenças entre a época da abdicação de D. Pedro I (em 1831), as peculiaridades da Regência e também do período de consolidação do Império e do programa político conservador - o que Ilmar Mattos chamou de Projeto Saquarema -, termi-nando com as primeiras críticas ao poder moderador por volta de 1860, o que abriu uma crise que levaria, algumas décadas mais tarde, ao fim do Império; sendo também esse o marco do começo da decadência do próprio romantismo. Ao mesmo tempo em que marca as mudanças políticas, não deixa de mencionar também as mudanças culturais do país, mudanças essas que visavam incorporar as novas idéias de forma a contribuir para a formação da “identidade nacional brasileira”.

Ricupero também não se furtou em mostrar as contradições do romantismo, como a ausência de discussões acerca de questões sociais ou o fato da literatura e historiografia brasileiras terem começado com estran-geiros. Além desses temas, ele retoma outros como a questão da especifici-dade da língua brasileira, da mestiçagem e, no final de seu texto, a própria questão da escravidão, mostrando como esses temas mudaram dependendo do momento político pelo qual passava o país. Aliás, a própria organização da sociedade brasileira fez com que, durante muito tempo, questões sociais não aparecessem nas obras. Isso se explica, segundo Ricupero, porque no caso da escravidão por exemplo, havia um consenso da elite imperial quanto à necessidade do trabalho servil. Contudo, como a instituição servil

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opunha-se já aos princípios da civilização, buscava-se, ou bem, o uso de argumentos que explicassem tal necessidade, ou recorria-se à simples exclusão de tal questionamento dos escritos (embora não ficassem total-mente de fora, aparecendo “ocasionalmente” em algumas obras). Com isso Ricupero tem por objetivo mostrar quais eram as dificuldades encontradas pelos românticos brasileiros, o que os levou a escolherem determinados temas em detrimento de outros e como deles tratavam de formas especi-ficas. Para completar o quadro sobre as especificidades do caso Brasileiro ele termina seu livro contrapondo Brasil e Argentina.

Na Argentina o romantismo começou com a Nueva Generación ou Geração de 1837, sendo os principais nomes do romantismo argentino Esteban Echeverria, Juan Bautista Alberdi, Juan Maria Guitiérrez, Lopés e Domingos Faustino Sarmiento. Assim como no Brasil, a preocupação desses homens também era a de completar a “independência política com a mental” (nas palavras do próprio autor).

No entanto, o caminho percorrido pelos românticos argentinos foi diferente, a começar pela construção do Estado argentino que foi mais longa que a brasileira, já que somente após a queda de Rosas, em 1852, é que a nova geração se colocou a frente desse processo, mesmo porque enquanto Rosas esteve no poder essa geração foi perseguida e teve que se refugiar nos países vizinhos, sobretudo, no Uruguai, Chile e Bolívia. Nesses lugares esse grupo acabou influenciando as elites intelectuais locais com suas idéias, o que não evitou que entrasse em conflito com suas lideranças intelectuais, sobretudo, no Chile, destacando-se o embate entre Sarmiento e Andrés Bello. Tal embate, segundo Sarmiento, era importante na medida em que fazia com que os argentinos se reconhecessem como tais. “Ou seja, muitos do exilados do Prata começam a se ver como argentinos porque outros, no caso chilenos, fazem questão de identifica-los como tal” (p.231)

Ricupero buscou mostrar então os tratamentos que esses român-ticos deram a diferentes questões, como a do deserto argentino (falta de pessoas, enorme espaço geográfico e cultural que deveria ser ocupado e que, na visão de Alberdi por exemplo, deveria ser resolvida com a imigração de europeus), dos localismos (a disputa entre as várias provín-cias) e, finalmente, a própria questão indígena que, ao contrário do caso brasileiro, ainda suscitava grande preocupação. O autor busca ressaltar o embate entre os românticos sobre essas questões, pois, tal como entre os românticos brasileiros, ainda que concordassem acerca da necessidade de “emancipação mental”, discordavam quanto à forma de fazê-la. No entanto, para Ricupero, a grande obra dessa geração de 1837 foi a construção de referências comuns, a criação de uma literatura nacional, a defesa da especificidade da língua, mas, ainda assim, “seu esforço fracassou no mais importante: na incapacidade que demonstraram ao lidar com os setores populares que a maioria pretendia civilizar” (p.259).

Ricupero termina seu livro mostrando especial preocupação com duas questões, no seu entender duas continuidades. No caso brasileiro se detém na construção dos mitos, ou melhor, na formulação de algumas das idéias que, guardadas as devidas proporções, mantém-se até hoje. “Ainda mais importante, as referências para se pensar o Brasil sugeridas pelo romantismo continuarão a influenciar as gerações seguintes, a ponto de se confundirem com a própria imagem do país (...). Mais de cento e cinqüenta anos depois ninguém mais questiona a unidade do país, o índio continua a ser utilizado como símbolo nacional e a mestiçagem esta consolidada

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no imaginário coletivo como grande elemento diferenciador do Brasil em relação a outras nações” (pp. 261-62). Do lado Argentino, no entanto, sua preocupação centrou-se na análise da relação entre elite e setores popu-lares, ou melhor, a frustrada relação entre esses grupos, algo que também teria continuidade nos dias de hoje e fica perfeitamente exemplificado com a seguinte passagem que fecha o livro: “A melhor descrição que conheço sobre a relação entre intelectuais e setores populares na América Latina não está, porém, em nenhum tratado de ciência política. Li, certa vez, não me lembro onde, um relato de Ernesto Sábato sobre o dia em que Perón caiu, em 1955. Sábato e seus amigos – médicos, professores, advogados – haviam se reunido para comemorar o golpe. Estavam felizes, afinal o ditador contra o qual toda a Argentina civilizada – conservadores, liberais, radicais, socialistas e comunistas – tinha se unido, fora derrubado. Sábato, que havia sido militante anarquista e comunista na juventude, compar-tilhava do sentimento de seus amigos. Uma hora, contudo, olhou para a cozinha. Lá, o ambiente não era como o do resto da casa: as empregadas choravam...” (p.268).