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1 PRÓLOGO udo que eu sabia, era que as minhas lembanças haviam sumido enquanto eu redescobria a vida em meio ao caos da cidade. Eu devo ser uma pessoa muito sem sorte mesmo.... “As mãos grossas e ásperas apertando a minha boca me deixaram vunerável. A minha boca estava imóvel e o meu corpo interamente entrelaçado ao dele sem que eu pudesse movimentar nem um tendão que fosse. Sabia apenas que gritando ou não eu estaria ferrada. Isso não foi dificil de concluir. A plena certeza de que eu iria morrer, a qualquer momento quando as suas mãos encontrassem o canivete, me preencheu por completa e antes de tudo, eu o mordi com toda a minha força sentindo a sua pele seca reagindo contra os meus dentes. Ele me lançou contra o chão se curvando com a mão direita entre as pernas tentando abafar o som da dor. Eu vi a sua postura mudar. Eu sabia que a qualquer momento a reação seria inevitável e por mais que o seu rosto aparentasse calma, a força que me dominara a poucos segundos iria faze-lo novamente — me deixando frente a frente com a indesejada morte. O garoto encontrou o canivete no seu bolso Encarei o grande e longo aposento e o seu olhar semicerrou contra mim. A chance que eu teria de sobreviver fugindo da morte banal era mínima.” T

PRÓLOGO T udo que eu sabia, era que as minhas lembanças ... · enquanto eu redescobria a vida em meio ao caos da cidade. Eu devo ser uma pessoa muito sem sorte mesmo.... “As mãos

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PRÓLOGO

udo que eu sabia, era que as minhas lembanças haviam sumido enquanto eu redescobria a vida em meio ao caos da cidade.

Eu devo ser uma pessoa muito sem sorte mesmo.... “As mãos grossas e ásperas apertando a minha boca me

deixaram vunerável. A minha boca estava imóvel e o meu corpo interamente

entrelaçado ao dele sem que eu pudesse movimentar nem um tendão que fosse.

Sabia apenas que gritando ou não eu estaria ferrada. Isso não foi dificil de concluir.

A plena certeza de que eu iria morrer, a qualquer momento quando as suas mãos encontrassem o canivete, me preencheu por completa e antes de tudo, eu o mordi com toda a minha força sentindo a sua pele seca reagindo contra os meus dentes. Ele me lançou contra o chão se curvando com a mão direita entre as pernas tentando abafar o som da dor.

Eu vi a sua postura mudar. Eu sabia que a qualquer momento a reação seria inevitável e por mais que o seu rosto aparentasse calma, a força que me dominara a poucos segundos iria faze-lo novamente — me deixando frente a frente com a indesejada morte.

O garoto encontrou o canivete no seu bolso Encarei o grande e longo aposento e o seu olhar

semicerrou contra mim. A chance que eu teria de sobreviver fugindo da morte banal era mínima.”

T

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UM

ENTI SEUS MEDOS ANTES DE OUVI-LOS. O que eu estava sonhando, tinha a ver com alguma coisa boa. Um mundo de paz, alegria e silêncio, em

meio a uma onda negra que bloqueava a minha memória. Era um desejo e não uma lem- brança e mesmo que fosse, eu não saberia reconhecê-la. Não mesmo.

Agora eu era uma página branca a ser escrita pelo tempo. E nada parecia fazer sentido. Somente uma dor que aos poucos minava como uma rocha se abrindo em minha cabeça. Ela doia e latejava num incomodo mortal. Desejei morrer.

— E agora? O que faremos? — uma voz feminina e meio infantil perguntou.

— Que tal cantarmos My Chemical Romance até estourarmos a garganta? — a voz era masculina e um tanto aguda. Ele não me pareceu nem um pouco preocupado. Foi apenas uma emissão de som comum.

— Não seja condescendente comigo Malcon.

S

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— Não estou sendo condescente com você Melissa! Só não posso arrancar os meus cabelos por isso. — ele se chamava Malcon. Melissa o chamou por esse nome.

— Seria hilario, mas eu compreenderia muito bem se começassemos a arrancar os cabelos, afinal, não temos comida. Ou melhor. O pouco que temos não deve durar nem três dias. Acha que não é um bom motivo? — o tom ironico de Melissa penetrou em mim porque eu estava sensível demais para qualquer emoção tão forte. Mas eu sabia que os motivos dela eram maiores do que apenas o fato de não haver comida. Senti isso.

Houve uma pausa até que Malcon respondesse. — A galera já foi em busca, tenta relaxar. Lê um livro. —

Um barulho de folhas sendo jogadas no ar se debateram umas nas outras, e uma queda violenta. Malcon deu de ombros novamente. — Depois, se eles não conseguirem comida, a pior coisa que poderia acontecer seria morrermos de fome. — ele sorriu. — Ou eles nos encontrarem.

— Idiota! Nem pense nisso. — ela grunhiu e de repente o silencio pairou.

Não era bem um silencio. Eu pudia senti-los. Todas as presenças eram faceis de notar para mim embora eu não soubesse o que isso significava. De repente tudo ficou bem claro e dividido. A alma de Malcon exalava muito mais preocupação do que a sua voz aparentava. A de Melissa me fazia sentir medo e horror, mas era um medo de perder alguem que ela ainda não havia citado. Alguem que faria muita falta.

Me desliguei dos dois. Eu estava imóvel. Prisioneira do meu proprio corpo como em sonhos em que não se consegue acordar.

Lutei violentamente, sentindo minha mente enviando os comandos ao corpo, mas todo esse esforço era em vão. Só me restava: Ouvir aqueles dois brigarem e trocarem ofensas infantis; Sentir o desespero dos dois por alguma coisa que eu não havia tomado conhecimento; Ou ainda tentar me lembrar

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de quem eu era — Acho que essa seria a tarefa mais dificil já que qualquer imagem me feria. Eu forçava lembrar e uma dor latejante voltava e me consumia por inteira. Eu desisti então.

Estou com medo. Com sede. Eu dizia para mim mesma, mas queria que eles me ouvissem. Frustração tomou conta dos meus pensamentos quando notei que era impossivel. Que eu não representava nada e que eu morreria ali sem ser lembrada. Foi o que eu senti deles. Nenhum dos dois demonstravam preocupação comigo.

— Estou com medo. — ela disse. Não fiquei surpresa ao ouvir. Estavamos compartilhando alguns sentimentos, mesmo que por motivos diferentes. — Não quero que eles nos encontrem! — o horror foi mais intenso do que qualquer outro agora.

— Eles não vão nos encontrar. Calma. Fiquei confusa. Havia uma distinção entre os eles. Por hora

Melissa e Malcon desejavam que eles os encontrasse e por outra não. Com certeza não se tratava das mesmas pessoas.

— Existe sempre uma possibilidade. — A onda de medo ficava mais forte a cada instante e me atingia em cheio. Um arrepio subia pela minha espinha dorsal.

— Esquece isso maninha. Tudo vai ficar bem. — ele tentou... mas não convenceu. Não a mim e eu tambem notei pelo silencio de Melissa que ela não compartilhava da mesma teoria pregada por ele. Mas do que eles tinham medo? Porque? — Porque eu não me mexia ou acordava daquele pesadelo? Só me restavam interrogações.

— Bem? — Melissa instigou. O tom de descrença. Continuei a ouvir o diálogo dos dois e percebi que ele

servia de distração. Irritante e confusa, mas servia. Malcon me fazia ter vontade de rir em alguns momentos. E eu imaginei como eles seriam fisicamente. Melissa seria loira? Morena? Gorda?

Ela aparentava frieza. Suas sensações remetiam a sofrimento, angustia. Não foi dificil de adjetivar. Não era nada

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que eu já não tivesse sentido, mas... quando eu havia sentido coisas parecidas?

— Arg... Estou tentando ler, depois a gente fala sobre isso! — o barulho de uma foleada fez com que Melissa se calasse.

Um instante de pausa me golpeou. Só me restava ouvi-los já que meu corpo não respondia aos estimulos do cerebro. Algo muito ruim havia acontecido comigo. Um acidente? Seria dificil saber, mas, talvez eu virasse o tópico da conversa em algum momento, eu esperava que sim. Se seria bom eu não sabia. Me questionei sobre isso até que eles voltassem a conversar.

— Queria ser como você... — Melissa murmurou, a voz mais calma.

— Como eu? Como? — Malcon se fez num espasmo. — Do tipo que não liga pra nada. Que mesmo em meio a

tudo isso ainda tem tempo pra fazer piada e achar graça da desgraça e se concentrar num livro por exemplo.

Ouvi risos engraçados por parte de Malcon. Só não consegui entender porque “mesmo em meio a tudo isso” O que ela queria dizer? A minha cabeça doia a cada vez que eu tentava lembrar. As minhas memórias não existiam ou eram doloridas demais.

— Não consigo imaginar você sendo igual a mim. — ele pausou praticamente assentido ser o que ela havia descrito. Senti suas emoções se alterarem.

— O que? — Melissa perguntou. — Porque não? Sou sua irmã. Deveriamos ser pelo menos parecidos nesse tópico não acha?

— Claro! — ele sorriu novamente. — Mas... — Mas... — Melissa exigiu que ele continuasse. — Nós somos parecidos em muitas coisas que você nem

imagina. — Em que sentido? — ela não deu credito — Rá. Você

gosta de Rock e eu de Blues... Eu adoro comida japonesa e você odeia. Ai... Porque eu lembrei de comida? Meu estomago

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até roncou. — uma breve pausa para rir. — Nem vou citar todas as diferenças. Então me diz em que somos parecidos.

— Eu explico quando terminar de ler esse livro. — Mas... — ela estava analisando alguma coisa. Sua voz

estacionou numa nota grave. “M – aaaaaaaaa – s” — ele parece ter umas mil paginas.

— Então quanto mais rapido você me deixar ler, mais rapido eu vou explicar.

Alguns minutos se passaram enquanto eu ainda ouvia as folhas do livro de Malcon sendo trocadas rapidamente. Ele não estava absorvendo nada, conclui. Melissa ainda estava no ambiente, mas agora mais calma e entediada. Por algum momento preocupada com alguem que eu ainda não sabia.

Outro som de folhas sendo jogadas no ar ativaram os meus sentidos. Conclui que o tal livro de mil páginas havia sido atirado em qualquer direção. Agora Malcon parecia estár tão entediado quanto Melissa. Eu desesperada porque não falavam sobre mim.

— Está acordada? — ele perguntou. — Sim. Porque? Vai explicar agora nossas semelhanças?

— ironia resumia o que ela havia dito. Malcon sorriu forçadamente. Um murmurio saiu como

um rosnado. — Não acho que elas devam existir. — ele mentiu. Eu

sabia que existiam semelhanças entre eles. A mesma alma, os mesmos anseios. Isso tudo era facil de perceber, mas não era normal. Nada ali era normal. Tudo completamente ridiculo. É um pesadelo. Eu queria ter certeza disso. Uma certeza tão grande quanto a dor que eu estava sentindo.

Eu devo acordar a qualquer momento. Contarei para amigos sobre esse sonho ruim. Eu devo ter amigos. Muitos. Isso não é real. Não é! Gritei essas palavras tentando me convencer, mas por mais que o horror me amedrontasse, mais eu tinha a convicção de que eu já estava acordada e aquilo, por mais que doesse, era real.

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— Já sabia disso. Você é um cabeça oca, não temos mesmo nada em comum.

— Está preocupada com o Gabriel não é? — disse ele. — Sim, não só como ele. — ela admitiu com dificuldade.

— Porque? — Por nada. Só acho que eles estão bem. Devem chegar

logo. — ele procurou as palavras — Gabriel me disse que sabe lidar com as aberrações. Acho de verdade que a nossa turma está bem. — outra mentira. A voz dele estava tremula.

— Porque você acha isso? — a curiosidade tomou con- ta de Melissa de tal forma que me fez compartilhar da mesma sensação, mesmo sabendo que era mentira.

— Er... Porque ele é muito esperto e corajoso... E... — Arg. Só disse isso porque não tinha o que dizer não é?

— ela gritou irritada. — Hum... Não... Er... — então eu senti o motivo dele fingir

ser corajoso, centrado, calmo, debochado... Tudo isso era apenas para que ela o usasse como respaldo. Era uma boa intenção. Um modo de protege-la talvez, mas não muito eficiente.

— Idiota. Idiota... — algo foi derrubado. O barulho foi estridente. Vidro quebrado.

— Desculpa maninha... Não pensei que estivesse tão irritada.

— Idiota. Imbecil. — Melissa disse furiosa, mas não com Malcon. Ela apenas o usou para descontar a raiva. Suas emoções me enviavam as informações. Ela estava furiosa por vários motivos acumulados. Preocupação. Tristeza. Amor não correspondido.

— Eu hein! Calma! — ele disse entre um grunhido dela — Só estava tentando te animar de alguma modo. Desculpa a minha atitude idiota.

*** Eles se calaram novamente por um bom tempo. Um tempo

atordoante.

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Sempre que isso acontecia, eu voltava a pensar em mim e isso fazia a minha cabeça doer como se fosse proibido acessar os campos da minha mente. Como se eles estivessem danificados. Não era fácil suportar, mas com um bom esforço eu exercitava um modo de esquecer até mesmo de tentar lembrar. Seria melhor assim.

Gemi numa tentativa de choro. Então ela suspirou para o meu alivio. Agucei meus ouvidos para que eles captassem todas as ondas sonoras, inclusive a respiração. Ela estava prendendo o choro. Soltava o ar tentando não fazer barulho, mas mesmo com todo o esforço... Ela supirou novamente.

— Não tenho cabeça pra brincadeiras. — ouvi um choramingo e uma tentativa de auto controle.

Toda a atmosfera estava pesada. Entre o silencio, ouvi alguns passos lentos. Era Malcon.

— Confesso que tambem não tenho mais tanta paciencia, mas é uma boa valvula de escape. Você deveria tentar não levar isso tão a sério. Eu sei que é impossivel, mas...

A respiração de Melissa estava ofegante. — Desculpa. — Ouvi o som das suas costelas se apertando. — Deixa eu te dar um abraço? — ele pediu e ela assentiu

com um murmurio. — Calma maninha. Tudo vai ficar bem. — Não estou tão certa disso. — senti temor — Já fazem

quase dois dias que eles se foram e não voltaram ainda. Não consigo nem imaginar...

— Vai dar certo. Tudo vai dar certo. Pensamento positivo. — Dar certo. — o tom esgarniçado expressou duvida. —

Como dar certo? — Vamos confiar. Apenas confiar. *** O tempo correu como os passos de uma tartatuga. Eu

continuei ali deitada. A minha cabeça continuava a doer, mas somente porque eu estava forçando as minhas lembranças a voltarem. Se isso me fazia mal, então eu deveria evitar para o

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meu proprio bem. Claro. Tirando o fato de que eu não sabia nem como era o meu rosto, tudo estava calmo. Imaginar a minha voz... Arg. Isso tudo era dificultoso demais.

Eu só sabia que eles citavam recorrentemente o nome de Gabriel.

E, agora eu entendia quem era Gabriel. Ele era uma especie de lider deles, mas eu tambem não compreendia porque eles não podiam sair. Porque? Apenas falavam sobre aberrações e diziam que elas não os encontrariam.

Eu estava com sede. Com fome. Meu lábios ressecados. Forcei mais uma vez tentar acordar. O meu corpo doeu como se eu estivesse quebrada então ouvi um murmurio meu. Aquela era a minha voz, claro, mas ela não estava muito audivel.

— Você ouviu isso? — Malcon perguntou. — Não. — Melissa respondeu com a voz seca e fria. Tentei novamente dizer alguma coisa. Um sinal. Eu

precisava de agua e isso era desesperador. Tudo era. — Está ouvindo? — Não! — ela disse seguido de um suspiro — Eu acho... Murmurei mais algum som outra vez e Malcon cortou o

que Melissa iria dizer. — Espera! Um silencio novamente foi estabelecido como se eles

estivessem esperando o meu proximo som abafado pela minha incapacidade. Tentei mais uma vez, mas não consegui. A minha cabeça doeu novamente como se alguma lembrança estivesse prestes a voltar sem que eu precisasse força-la.

— O que foi? — ela perguntou depois de longos segundos. — Acho que ouvi alguma coisa. Todas as tentativas eram desesperadoras. Eu já estava

acostumada a ser uma vegetante mesmo tendo experimentado aquilo por tão pouco tempo. Toda vez que eu tentava sair dessa zona de conforto, a minha cabeça doia como se estivesse jorrando sangue dela. Minha mente se dissipou e eu gritei de dor.

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— É ela — eles perceberam finalmente. — Esquecemos da garota Melissa! — Malcon finalmente

me notou. — Parece que sim. — Melissa demonstrou outra vez um

tom de deboche. — O que? Você responde assim? — Nós bem sabemos o quanto ela é um peso aqui não é?

Seria melhor que morresse logo. — ouvir-la me fez ter uma estranha sensação de medo. Porque ela não gostava de mim? É! Isso agora estava confirmado e não precisava que eu sentisse isso com a minha exdruxula capacidade.

Malcon suspirou como se estivesse admitindo. — Gabriel nos mataria. — ele considerou. — Que se dane o Gabriel. Eu não sabia se tinha escutado direito, mas naquele

momento nada fazia muito sentido. Gabriel? Porque ele iria mata-los? Ele gostava de mim? Era o meu pai? Amigo?

Passos apressados se aproximaram de mim num ritimo frenetico. Eu ainda estava imovel e desejei não estar. Queria levantar dali e simplesmente correr sem rumo. Eu sentia os meus olhos tentarem abrir. Sem desistir, eu os forcei mais uma vez. O Silvo da minha voz brindou todo os ambiente com uma nota de dor.

— Ela está acordando? — É o que parece. — Acho que ela está morrendo. Isso não seria tão ruim. — Sem brincadeiras por favor. — Não vê. Seria um presente. Não! Eu não estou morrendo para decepção de vocês seus

idiotas. Foi o que eu queria dizer embora não conseguisse. As minhas pernas ensaiaram um movimento enquanto um formigamento as faziam mais paralisadas ainda.

— Os lábios dela estão rachados! — Gabriel pediu que você a alimentasse! — Malcon gritou. — Não. Ele pediu que você fizesse isso.

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— Agora é tarde pra discutir. Me da um pouco de agua. Os meus lábios foram umedecidos com um pano, mas não

era o suficiente. Eu queria mais e mais. Em meio a tudo isso eu dormi.

DOIS

NDE EU ESTOU? ISSO É UM SONHO?

Não foi dificil diferenciar. Agora eu estava em meio a um lugar frio. Uma especie de neblina

percorria os campos que impediam a minha visão. Mas não existia medo.

Caminhei longos passos seguros. Os meus ombros erguidos e o meu olhar atento ao chão a procura de algo. A areia dura e cheia de pequenos galhos secos era iluminada por uma lanterna grande com um incrivel potencial de luz. Ela era pesada para os meus braços finos e aparetemente delicados. Foi bom saber como eu era.

A imagem se cogelou em cima de um galho seco. O formato era um “V” descoordenado e eu finalmente me satisfiz.

O

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“Perfeito” eu disse. A minha voz era melodiosa. Eu não fazia ideia de como ela era, mas agora eu estava me vendo fazer ou refazer todos aqueles passos. Uma lembrança.

Voltei pelo mesmo lugar de onde eu provavelmente ha- via saido. O meu calçado — um all star imundo com um aver- melhado de areia, a barra da calça dobrada tentando impedir o contado dela com o solo.

Mais a frente havia uma luz forte. Vozes baixinhas e um véu fumegante como se fosse um fantasma, a fumaça de uma fogueira ainda tentando ser acendida.

— Achei mais um! – gritei erguendo o braço direito. Eu exibia um troféu.

— Maravilha! — a voz forte e animada não era estranha. Quando tudo ficou claro para mim. Eu percebi estar em

uma area plana. O chão não era tão sujo e as arvores não eram vizinhas coladas.

Um Fiat vermelho em um plano distante. Um Corsa brilhando sob a luz do luar e um grupo de pessoas sorrindo. Era o cenário perfeito de uma noite de diversão.

— Vem cá filha! — o Senhor da voz forte me chamou. Joguei o galho perto da fogueira assim que cheguei. Sentei

ao galho enorme de madeira que servia de banco e um violão surgiu num passe de mágica das mãos de um jovem ma- gro e cabeludo. Sua roupa era de malha preta com uma gola re- donda. O “jeans” preto colado e um relógio enorme contras- tando na sua pele branca.

Esperei que ele viesse até mim e num estranho movi- mento, os seus lábios tocaram os meus duratemente. Isso tam- bem não foi estranho.

— Psiu... Psiu... Acho que fiquei com ciume. — o meu pai disse.

Todos sorriram. Uma garota morena de cabelos lisos com uma franja levemente caida para o lado caminhou até o carro em resposta ao beijo que me fora dado. Duas argolas bri- lharam nas suas orelhas. A camiseta de tecido branco apertada.

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O rapaz cabeludo piscou o olho direito para mim e seus labios finos curvaram-se gentilmente.

— Está gostando? — o meu pai perguntou ao meu suposto namorado.

— Claro. Nunca fiz nada parecido na minha vida. — Faziamos isso quase sempre antes de eu me separar da

Silvia. — ele justificou. Aquela conversa pareceu desinteressante e eu levantei

emburrada com a ausencia da garota morena. As mãos do cabe- ludo se amarraram as minhas. Era quente, mas deixei de senti-las quando a minha expressão se fechou pedindo que ele assen- tisse comigo. Ele o fez. Caminhei em direção ao Fiat como se estivesse marchando e deixando pra tras qualquer desejo impli- cito de desaprovação.

Bem a frente. Muito a frente. Havia uma linda paisagem azulada com alguns morros acinzentados. O céu estrelado com uma enfase muito forte.

— Porque você não aceita? — perguntei batendo a porta do carro. Dentro dele — um conjunto de mochilas de acampamento. Um Ipod branco proximo a uma caneta esferografica e um conjunto de Cds empilhados sem proteção alguma.

Eu vi o meu reflexo no espelho. Eu era linda. Meus cabelos loiros e medianos iam até os ombros. Eram levemente ondulados com cachos abertos e brilhantes. Meus olhos verdes e brilhantes como uma pedra esmeralda e a pele branca e bem cuidada.

Ela não respondeu. Os seus olhos semicerrados se abriram ao encontro do Ipod.

— Não faz isso. — tentei exigir. Logo um alto som foi ligado a ponto de me fazer ouvir mesmo estando muitos centimetros distante dela. A encarei com frieza.

— But I won't hesitate no more, no more! — ela acampanhou a musica desafinando em todas as notas.

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O meu rosto se encheu de sangue. Eu estava quente e irritadiça. Ela sendo infantil. A moça morena de olhos de gato não gostava de mim por algum motivo.

— Ele me ama! — gritei puxando os fones ao volume maximo.

— Eu sei disso. — ela disse sinicamente. — Então porque você não deixa que tudo aconteça sem que

essa sua cara de ofendida entre no meu caminho? — Talvez porque você tenha roubado ele de mim? — Eu não roubei ele de você. — Ok. Vou tentar encontrar uma palavra parecida pra que

você não se sinta tão incomodada. Está bom pra você? Ela tocou por fim o indicador no meu nariz tentando fazer o

meu rosto se movimentar para a direita. Eu agarrei o seu punho com exatidão e o expremi tentando cravar as minhas unhas até o fim. Foi uma gesto ridiculo e banal. Os nossos corpos se encontrando até que ela me ferisse com a caneta esferografica rasgando o meu braço, mas não profundamente. A minha mão direita agarrou-se a sua argola e um jorro de sangue sujou toda a camisa branca. Ela arfou com um grito estridente.

*** — Eu não queria! — gritei aterrorizada com a dor no canto

direito da minha testa. Estava acordada? Gotas de lagrimas encheram os meus

olhos embaçando a minha visão, mas tudo aqui era escuro embora não aparentasse noite. Eu estava anteriormente sonhando algo real. Aquilo se tratava de uma lembrança não muito agradável e talvez por isso a minha cabeça doesse tanto.

— Ela acordou! — a voz de... Malcon? Ele existia mesmo? Uma sombra surgiu de um corredor estreito com várias

portas retangulares. Havia luz artificial e uma sensação incrivel de umidade. Umidade me agradava.

— Eu não queria... — disse mais uma vez, mas foi tão sussurrante que só eu pude ouvir. Forcei os meus silios e os enxuguei com as costas das minhas mãos.

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— Onde eu estou? Onde? — repeti várias vezes enquanto as vozes conversaram comigo. Eram várias e me confundiam. Eu ainda estava sonhando ou já havia acordado?

Onde estava Malcon? Melissa? Então eu senti um estalo do meu lado. Uma sombra. Um rosto de repente. Ele tinha um olhar perverso e cheio de más intensões e ele vinha em minha direção com uma arma na mão. Ele ia me matar...

— Acorde! Acorde! — mãos pegajosas e frias se chocavam ao meu rosto me fazendo ter certeza de que aquilo se tratava de um sonho... pesadelo terrivel.

— Ele vai me matar! Vai... A mão foi erguida em minha direção. Eu esperei mesmo

sem saber do que se tratava. Seja rapido. Logo. Conversei comigo. Ele apertou.

*** — Não! — grunhi até perceber que aquilo só se tratava de

outra lembrança ou ilusão. Agora duas pessoas me olhavam aterrorizados.

Eram olhos arregalados de um jovem moreno. A sua pele era escura e seus cabelos grandes e crepos. A moça muito parecida com ele, mas o seu rosto era fino e bem desenhado. Malcon? Melissa? O silencio era perturbador então eu decidi publicar a minha pergunta para os dois.

— Ele vai te matar? — Melissa perguntou ironicamente. — Ele quem?

Responder não fazia parte dos meus planos. Eu nem sabia se conseguiria.

Senti as pregas vocais vivas no meu corpo e elas queriam falar. Eu perguntei.

— Como vocês se chamam? Agora tudo estava sob o meu comando, mas eu ainda não

conseguia me lembrar de tudo. Não o que me fizesse dizer quem eu era.

A boca dele se abriu com dificuldade e eu vi os seus dentes saltados.

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— Me chamo Malcon. — ele disse. — Eu me chamo Melissa. Eu os estudei com cautela.. Os dois ao meu redor. O

ambiente escuro. A mesma luz turva, a mesma umidade. Era basicamente o que eu já havia imaginado.

— E você? Como se chama? Malcon repirou quando na verdade, parecia querer soltar o

ar preso. Pareceu um rosnado. As suas emoções claramente amedrontadas me fizeram sentir o mesmo.

Eu deveria responder? Ponderei. Deveria considerar que os meus lábios estavam agora umidos graças a ele, mas tambem o fato de que os dois não se importavam nem um pouco comigo estava cada vez mais contrastado com a vontade que eu tinha de sair dali.

— Não vai responder? — ela perguntou, as palavras duras. Meu nome era... Alicia? Foi assim que o Senhor do sonho

havia me chamado, mas o meu instinto me dizia para não abrir a boca e tambem não confiar em ninguem. Isso devia ser levado em consideração, muito mais do que o gesto de preocupação de Malcon. Eles temiam Gabriel. Foi o que ficou claro quando perceberam a minha quase morte. Talvez esse suposto lider fosse o grande causador da minha dor. Ou não?

Levantei a minha mão direita e a levei até a minha testa. Para minha surpresa não existia nem uma cicatriz se quer. Somente uma dor aleijada. Agora ela estava calma.

— Anda garota! Diz logo o seu nome! — Melissa exigiu. Curvei os meus ombros em defesa. Ainda estava deitada na

cama improvisada bem distante da bagunça. Notei ao percorrer o meu olhar por todos os lados.

— Espera que ela vai dizer. Malcon caminhou para dentro do corredor e a dor voltou

como se estivesse sinalizando perigo. Eu poderia interpretar dessa forma. Melissa moveu a sua perna meticulosamente para frente.

17

A dor se sobressaiu a qualquer emoção que eu pudesse capitar deles. Antes que o tempo se encerrasse, eu levantei num salto que pareceu muito bem ensaiado. Como se eu fosse uma heroina de filmes fastasticos.

— Malcon! — ela gritou agarrando um objeto pontiagudo. Um pedaço de metal muito fino que fora adapitado como uma faca enorme e brilhante.

Não. Eu não queria machuca-los e nem ser machucada. Sair dali era o meu objetivo embora a onda de adrenalina impedisse o meu raciocinio lógico.

No chão havia um livro grosso jogado que caira proximo a mim. Lembrei disso no instante em que Malcon surgiu novamente no corredor com outro objeto que eu não pude ver.

— O que aconteceu? — ele pareceu inofensivo, mas aquilo poderia ser um truque.

— Ela... — Melissa arfou. Olhei para o lado e uma entrada retagular igualmente

parecida com a outra de onde Malcon entrava e saia me encheu de esperança. Corri por ela encontrando um grande vão cheio de portas, mas todas elas não se fizeram tão convidativas como a penultima. Ali era muito umido. Um frio brotava dela.

Os passos eram lentos. Eles estavam com medo de mim e eu com medo deles.

Uma grande entrada em formato esferico com uma escuridão aterrorizante estava bem ao lado. Foi lá onde eu entrei e corri sem direção. Então um som encoou até mim.

— Sem luz, ela vai se perder no caminho. — a voz dela evidenciava certeza. — ela vai morrer.

18

TRÊS

ão está tão escuro assim. Não como ela disse por fim. Quando eu corri sem direção por entre o grande tunel, a certeza de Melissa de que eu iria morrer me

encheu de duvidas. Talvez eles não fossem me fazer mal. Ou eu estava simplesmente assustada.

N

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Poderia ser. Ou não. Melissa não me pareceu confiavel. Havia luz ou ela estava enganada? Não. Havia luz sim. Não

estava tão escuro mesmo. Os meus passos agora eram lentos e estudados. Cada vez que eu me movia, uma grande rede de sensações

me instigava a me aproximar. Era uma grande massa de medo. Tudo muito cinza como cimento. Os meus pés calçados no

velho all star faziam barulho me incomodando a cada vez que se chocavam com a agua rasa. Ela era limpa e cada vez mais presente.

Quando eu já havia desistido, os meus olhos se apertaram

de raiva. Meus dentes cerraram-se ao notar o fim do tunel. Eu estava cansada e com fome. A quanto tempo eu não comia?

Num ato de desespero, juntei as minhas mãos formando um firme e eficiente recipiente e levei a agua até os meus lábios. Ela era limpa, mas sob outro ponto de vista. Para tomar banho e não para beber.

Eu me satisfiz e me senti enojada no ultimo gole. Me empolerei por alguns segundos sobre uma pequena forma geometrica solida e respirei. Foi então que a agua mais a frente desceu um pouco e em seguida emergiu. Claro. Era uma fraca correnteza. A agua estava correndo para baixo daquele lugar, mas o quão profundo era?

Definitivamente mergulhar, sem saber para onde, não estava no topo da lista das coisas que eu faria. Pensei fortemente nisso, mas mesmo sem lembrar quem eu era, estar parada sem reação alguma não seria a minha atitude. Tomei isso como uma certeza.

Estudei por um instante olhando o mediano buraco. Tirei o tenis e o predi com os cadarços no meu jeans me deixando levar sem medo sempre com o pé esquerdo tentando sentir onde eu iria me lançar.

Encontrei o ponto e uma onda de frio subiu pela minha espinha. Um frio maior do que o que estava fazendo. Sentei-me

20

na divisão e a agua me cobriu até o umbigo. Os tenis boiaram sobre a agua e eu fechei os olhos me lançando. Tentando absorver todo o ar que coubesse nos meus pulmões.

Fui arrebatada por uma força que me fizera voltar até onde as minhas lembranças haviam se estagnado. Logo eu estava lá com a mão sangrando entre os gritos da moça morena.

*** — Pai! Pai! — ela gritou. Eu não podia deixar de considerar esse fato, mas uma

intrigante presença me chamou mais a atenção como se aquilo fosse desimportante. Presenças eram comum para mim então desde antes?

Tudo estava ali como da outra vez. Era a continuação daquela lembrança. Entre os gritos, o rosto do Senhor surgira no vidro da janela alinhado a ela. Do meu lado, o garoto cabeludo. Bem onde o vidro permitira a passagem dos nossos sons abafados. Eles abriram quase simutaneamente.

— O que está acontecendo? — o meu pai perguntou aterrorizado.

Meus dedos sujos de sangue vivo e brilhante. — Foi ela! Ela me deformou porque me odeia Bernardo! — Meu Deus! — exclamou o moço cabeludo a qual ela

chamou de Bernando. O meu namorado com certeza ou não teriamos brigado por ele.

— Temos que leva-la pro hospital. Estavamos no carro voltando para a cidade sob uma alta

nuvem de poeira. A orelha da moça — que na verdade se chamava Anita e era minha irmã — foi estancada com uma enorme quantidade de materias hospitalares de uma caixinha de primeiros socorros. Bernardo dirigia seguindo a estrada por tras do Fiat. Eu sem esboçar emoção alguma.

A presença forte e a sensação de que algo ruim iria acontecer fez com que eu comprimisse os meus orgãos. Minha respiração saiu com dificuldade.

— Você está bem? — ele perguntou.

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— Sim. — olhei para o meu braço e nele havia uma grande linha quase reta sobre a pele branca um pouco inchada. Era como se houvesse uma grande erupção.

Do lado eram claros os altos planaltos praticamente invisiveis, mas eu parecia estar enxergando tudo muito bem. Aos poucos me senti culpada por ter feito a minha irmã sangrar e os meus labios se curvaram ensaiando movimentos.

A viagem foi fria e distante. O meu corpo parecia rejeitar o movimento que ela fazia como se eu fosse sensível demais a eles. Por instante pensei em vomitar, mas não o fiz. Então achamos uma lisa estrada de asfalto que me fizera sentir saudade do barulho das pedras sendo atiradas para todos os lados quando os pneus novos se apertavam contra elas. Tudo era silencio. Não estavamos muito propensos a falar, conclui.

As luzes da pequena cidade brilharam quando passamos por um posto de gasolina muito pequeno que eu pude perceber com o meu olho esquerdo. Um singelo estabelecimento esverdeado de Um andar se destacou em meio as casas simples.

A ladeira passou rapidamente enquanto faziamos a curva circular apontando mais luzes a frente e um grande lago. Estavamos descendo uma avenida, sob a luz amarelada dos postes, cheia de pequenas lanchonetes. Os rostos eram conhecidos. Pelo menos não causaram estranhamento a minha memoria.

Descemos mais. Um prédio vermelho, uma lanchonete na esquina, uma ladeira de paralepipedos com uma enorme casa desajustada foram amigaveis para mim até então que entrassemos em um hospital localizado na esquina de uma rua escura cheia de algarobas. Nas paredes de entrada uma extensa lista com rostos de pessoas desaparecidas. Alguns datavam muito tempo. Meses até. Ponto.

Com essa lembrança eu voltei a mim. Os ultimos segundos da minha respiração estavam se aproximando. Aparentemente eu já tinha aguentando muito tempo, mas faltava mais um pouco até que eu atingisse o meu objetivo. Só um pouco.

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A luz branca do dia iluminou, com um laranja forte, os meus olhos fechados. Eu os abri e agarrei o concreto me impulsionando para fora.

Meu pulmões buscaram o ar perdido novamente no desespero mortal.

Respirei agarrada ainda ao concreto sentindo todo o cabelo loiro colado em minha cabeça. Ele murchara com a agua que escorrera por ele.

Apertei os meus silios uma vez e outra e outra até que o embaçado do contato com a agua se dissipasse. Era um enorme Rio e eu deveria estar com medo. A minha intuição me avisou enviando fortes ondas de frio, mas eu podia estar enganada. A agua era fria como a dor disfarçada da minha cabeça.

Bem ao longe, resquicios de uma civilização, agora aparentemente destuida. Alguns prédios partidos ao meio com variações. Um lembrava os dentes de um serrote.

Em cima de mim, grandes rochas grudadas a uma alta parede e, mais a frente alinhado com o meu braço direito, uma pequena rampa cinza com ferros em formato de cubo formando barras. Eles eram pintados de azul desgastado.

Nadei até lá. Eu poderia não saber nadar, mas essa possibilidade não passou pela minha cabeça quando eu agi por impulso antes do mergulho.

Encontrei o solido com as mãos e o agarrei me fazendo subir na rampa. A minha cabeça doeu como quando eu senti no esconderijo de Malcon, Melissa e ... Gabriel?

Porque esse não me era tão estranho assim? Ele eu ainda não conhecia, mas algo me dizia que tinhamos uma ligação muito forte. Intuição apenas já que as minhas lembranças estavam aqui na minha cabeça, só não nitidas.

O fato de que ele se preocupava comigo pesou ou talvez eu só fosse a refém deles. Tantas duvidas permearam a minha imaginação enquanto eu recostei na rampa sem saber do que esperar ao encontrar o seu fim que seria o inicio de tudo.

***

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Depois de dois longos suspiros me senti encorajada. A vista ainda era a outra cidade. O céu num azul homogeneo se aproximou dos meus olhos me fazendo fecha-los de dor. Ele estava me ferindo como a luz forte do sol impossivel de encarar.

Levanta-se Alicia. Não desista. A voz do meu pai sussurrou como outra lembrança. Aos poucos, as letras apagadas do meu livro se acendiam, mas em uma ordem não muito clara. Não havia linearidade.

Ainda tentando me acostumar com a claridade, eu olhei para o tenis molhado, amarrados ao jeans negro-apertado, as cochas medianas e firmes. Sem duvida eu não os calçaria agora.

Uma rua enorme com uma grande calçada vestida de pedras brancas e pretas montando desenhos irregulares, com uma tempestade de calor tremeluziram como se o pavimento brotasse ondas incolor. Foi o que eu vi quando ergui a minha cabeça timidamente ao subir a rampa. Porque eu estava com medo? Era o meu instinto novamente dizendo que aquele lugar era perigoso.

As lembranças não existiam, mas de um modo estranho, elas brigavam e me mandavam avisos de alerta. Não vá. Não vá. Mas eu fui. Teimosamente.

Ergui os meus ombros vestida na camiseta branca de alças finas. Ela se modava ao meu corpo como uma segunda pele. Isso me ajudou no mergulho, embora eu estivesse ocupada demais lembrando que eu tinha uma familia em uma cidade que não se parecia nem um pouco com essa. Eu devia procura-los ou não? Mas onde?

Tentei não pensar muito nisso ao me agarrar atras de uma arvore mediana como se ela fosse capaz de esconder todo o meu corpo. Isso foi insano.

Havia uma grande parede com um prédio em construção totalmente inacabado. Somente a estrutura como os ossos expostos por fora da pele.

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Então eu percorri os meus olhos para os lados e vi um grande espaço evidentemente abalado como se um furação tivesse passado deixando a sua marca.

No meio, uma divisão com as bordas de paralepipedo e arvores de palmeiras pequenas trilhando o grande caminho sem fim. Eu corri sentindo o silencio e me direcionei para o outro lado da parede onde havia sombra, mas agora eu estava totalmente exposta. Para quem eu não sabia e se ao menos existisse movimentação. Cabeças, pernas, baços se movendo de lá para cá. Mas não. Só existia a paisagem.

Corri sem rumo. Mais e mais até que bem ao alto o semaforo pendurado despencou. O estrondo da queda ecoou pela rua inteira e pareceu caminhar sobre o rio onde do outro lado havia a outra cidade. Eu corri sem duvida. Passei pela esquina com pequenas barras de ferro pregadas ao chão e virei vendo outro posto de gasolina.

Os barulhos continuaram, mas não remetiam ainda ao eco da queda do semaforo. Tive a impressão de que uma lamina afiada passara proxima aos meus ouvidos.

Mas não era isso. Por sobre os meus ombros eu vi uma escada dando margem

a uma loja de conveniencia subterranea. As janelas de vidro quebradas e quase tudo aparentemente saqueado pareceram atraentes. Mas um cheiro estranho de carne podre me deixava em duvida. Esse cheiro me causava repulsa. Lógico. Não era nada agradável.

*** A porta era um grande painel de vidro dividido em quatro

partes e um estava quebrado. Era um formato quadrado de vidro fino e branco. Lá dentro, várias prateleiras jogadas e algumas ainda de pé.O cheiro ruim era forte e vinha de lá, mas o barulho que eu não sabia do que se tratava me fizera entrar rapidamente me curvando e gentimente entrando no estabelecimento caótico.

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Meus pés se chocaram com um pequeno pedaço de vidro, ou algo espinhento que me fizera emitir um barulho timido de dor.

— Ai... — Essa dor não chegava nem perto da que eu sentia na minha cabeça que por incrivel que pareça, por alguns momentos estava sanada.

Eu conclui que só podia ser graças a minha tática de não forçar lembrar do que tudo aquilo se tratava. Por alguns momentos cheguei a considerar que tudo ainda não passava de um sonho e que a qualquer momento eu iria acordar. Foi uma boa maneira de me convencer.

Não era normal. Semáforo caindo justo quando eu passara por ele? Prédios semi-destruidos? Ruas desabitadas sem nenhum sinal de civilização embora tudo remetesse a isso? Esse cheiro forte de carne podre que parecia me chicotear querendo me fazer sair dali. Eu resisti com todas as minhas forças porque ali eu sabia que estava segura. Outro fato inexplicavel.

No ambiente ainda existia comida, mesmo que escondida debaixo das tralhas. Peguei um saco de batata frita jogado proximo; a maquina de refrigerantes, que estava destruida e inegavelmente vázia.

Continuei a estudar tudo aquilo. Biscoitos amassados. Vidros e enlatados desperdiçados. Outra boa evidencia de que eu deveria ficar atenta a tudo o que viesse pela frente.

Caminhei ouvindo o barulho lá fora, agora um pouco distante e me penetrei mais ao interior da loja. Não havia ninguem ali. Só eu. Eu tinha certeza disso? Sim. Não sentia nada a não ser o meu medo e cautela, diferentemente do lugar onde Malcon e Marisa estavam. Lá eu conseguia sentir a presença deles e até entender como eles eram.

Atravessei o emaranhado de prateleiras de metal ainda enojada com o cheiro de carne podre. Bem do outro lado do empilhado, encontrei uma porta escondida. As minhas mãos

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demoraram a achar a maçaneta porque tudo em mim exalava nervosismo a flor da pele. Então eu entrei.

*** A porta dava vista para um muro alto e semi-coberto. Pouca

luz o penetrava, mas o suficiente para que eu pudesse enxergar sem que tombasse em algo. Era apenas um grande espaço. Um antigo deposito talvez?

Deposito quase a céu aberto? Acho que errei nesse palpite. Corri para tras de caixas altas bem no final do espaço e abri o saco de batatas-fritas como se elas fossem um prato suculento. Comi sentindo atentamente todo o sabor e antes que eu me satisfizesse ele acabou.

A minha cabeça estava desligada demais para pensar. Eu mais parecia uma maquina ou um animal apenas correndo de algo e agindo instintivamente

Eu estava exausta e sonolenta depois da loucura cometida, então tirei a minha camiseta branca e o jeans deixando-os sobre uma das caixas. Me curvei recostando-me em uma delas; observei o meu pé. Ele não estava tão ferido. O corte era quase invisivel.

Sem suportar, dormi sobre o chão liso e duro ignorando toda a dor que eu estava começando a sentir. A minha cabeça novamente latejou como se eu estivesse sentido bombeadas de sangue.

*** Estava tão escuro agora, mas isso já estava virando rotina.

Só me lembrava de ter dormido e depois... acordado em meio a um lugar escuro como se eu fizesse parte dele. Uma escada de ferro pregada na parede de encontro a uma entrada geometricamente quadrada. Uma jovem negra começando a subir nela e vozes resumiam o lugar onde eu estava.

Definitivamente era uma lembrança. — Está na hora? — perguntei para a garota negra. — Sim. — ela respondeu depois de assentir com um gesto.

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Vi ela abrir a entrada bem acima no teto de onde estavamos. Zumbidos atras de nós duas. Eram vozes cochichando a nossa ação. Estavamos sendo criticadas?

— Temos comida o suficiente, vocês não precisam se arriscar assim! — um jovem com a voz branda disse. Quando me virei pude percebe-lo. Seus cabelos estavam grandes e mal cortados. A pele suja e oleosa.

— Não somos sangue-sugas Ed — a moça negra disse para ele. —, tambem queremos contribuir.

— Alicia. Não deixe que ela faça essa loucura. — ele olhou para mim.

Fiz uma expressão penosa. — Nem pense em desistir agora Alicia. — ela exigiu. Ed pediu mais uma vez sem proferir palavra alguma. Fiz uma longa pausa em concordancia com a jovem negra e

respondi. — Concordo com Katie. — eu sussurrei. A jovem negra chamada Katie, foi assim que eu a chamei,

suspirou e revirou os olhos. — Então vamos. Eu estava olhando para Ed quando Katie me intimou a

segui-la. — Espera Alicia. — ele pediu. — Sim? — Ela eu não posso convencer porque já a conheço, mas

talvez você possa. — murmurou quase implorando, então eu percebi o quando ele gostava dela. — Não deixe que ela faça isso.

Eu parecia estar amedrontada com alguma coisa e a ponto de concordar com ele.

— Não... — Katie interrompeu. — Ed. Tudo vai ficar bem. Ele deixou os seus ombros flacidos de frustração. — Se ao menos eu pudesse ir com vocês. — murmurou ele

se punindo. — Você não tem culpa de estar com o pé ferido.

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Olhei para o pé de Ed. e ele estava enrolado a uma grande faixa.

— Ed. — eu chamei a sua atenção. — Eu sei o quanto você se preocupada comigo e com a Katie — eu queria dizer somente Katie, mas parecia que eu sabia que os sentimentos dele eram escondidos. — Mas... Desde que cheguei aqui, não contribuo com nada e estou começando a me sentir mal por isso. E depois...

Ele me interrompeu. — Não seja orgulhosa. Esse não é o melhor momento para orgulho.

— Não significa isso. — sorri. — Por favor. — ele pediu pela ultima vez. — Voltamos logo. Quando olhei para cima. A garota que eu havia chamado de

Katie já estava me esperando. Em meio aos pedidos do moço chamado Ed, eu fui, dando

de ombros para ele. Subi a escada reta de madeira e emergi. Era um pequeno apartamento com uma entrada no canto.

Um piso falso de ceramica velha. Ela tentou levantar, mas reclamou.

— Da uma forcinha aqui. — murmurou franzindo a testa. Segurei firme e levantei sentindo o fundo falso muito

pesado. Fechamos vendo a ultima imagem do Ed. — Pronta para a caça? — ela perguntou empolgada. Sorri dizendo que sim. Passamos por uma parede fina que dividia o vão em dois

comodos e depois abrimos a porta com maçaneta de alavanca. Olhei na porta o numero 203 pregado com numeros de aluminio.

Batemos a porta e seguimos pelo corredor escuro. Curvamos para a direita e bem no meio achamos a escada. Seus degraus grandes e sólidos foram descidos rapidamente, e mais, e mais fazendo uma espiral.

Parei um segundo segurada a parede branca e suspirei.

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— Vamos... — ela me apressou quando eu parecia apreensiva com aquilo tudo.

Estanquei o ar dos meus pulmões tentando não ofegar tanto, então eu perguntei algo.

— E se dermos de cara com...? — pelo menos eu tentei, mas ela me cortou.

— Não teriamos tanto azar. — ela me assegurou. Eu gostaria de saber do que eu tinha tanto medo e do que

todos se escondiam. — Por aqui. — Katie deu um salto pulando alguns degraus

a mais. Por fim, chegamos a início da escada. Ponto. Ela abriu a porta timidamente. O portão era de ferro, mas

não muito visível. Um estabelicimento avermelhado com vidros negros estava

bem a frente. Descemos a pequena escada de três degraus e encostamos o

portão o fechando em seguida. — Vem aqui. — Katie me puxou pela braço falando

silenciosamente. — O que foi? — perguntei franzindo a testa enquanto ela

me puxava agarrada ao meu pulso. Quando chegamos ao muro do lado esquerdo, ela me

mostrou um buraco e de lá puxou uma chave grande que tomou conta de toda a sua mão média.

Ela ela arqueou a grossa sobrancelha e curvou os labios grossos num sorriso.

— Essa chave abre aquele portão. — ela apontou de onde nós tinhamos saido.

Olhei para o lado esquerdo e o beco de onde nós estavamos dava direto pra rua com asfalto, com lojas fechadas. O ventou fez um percurso como se estivesse dançando ali.

— Porque ela fica aqui fora? — passei a mão direita no pescoço sentindo a tensão. — Não é perigoso? E se alguem achar? Um deles por exemplo.

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Eu sabia. Agora nada mais deixava duvida de que existia alguma coisa nada natural nos ameaçando. Cheguei a considerar a idéia de uma guerra, mas Malcon e Melissa falaram sobre pessoas estranhas e isso quebrava toda a minha linha de raciocinio.

Olhei para a moça negra — Katie — e ela escondeu a chave no buraco novamente.

— É simples. — disse me puxando novamente nos direcionando para o lado direito oposto ao da rua pavimentada. — Se entrarmos com a chave, os que sairam hoje, ficaram de fora desprotegidos e terão que gritar, chamar a atenção tocando a campainha e fazendo barulhos entendeu? Por isso é melhor que ela fique aqui fora.

Balancei a cabeça positivamente. — Entendi. Corremos pelo beco ladrilhado de pedras pelo chão. Do

lado direito havia um antigo hotel. Eu li no letreiro. Descemos passando por casas lindas e viramos a esquerda

correndo o mais rapido que podiamos até que nossos pulmões estivessem a ponto de soltar fogo.

— Pra onde estamos indo? — perguntei parando grunhindo barulhos de cansaço com as mãos apoiadas no joelho.

Katie revirou os olhos. — Não conheci você tão delicada. — ela disse

ironicamente. Sorri depois do seu comentário. — Sei disso. — ofeguei mais uma vez. — Dá um tempo. — Não podemos parar. — ela balbuciou. — Vamos. Eu parecia estar pensando ou refletindo sobre aquele

caminho que estavamos traçando. — Meio segundo. — O que você pensa que está fazendo? Encostei as minhas sobrancelhas uma na outra depois de

uma longa pausa. — Tem certeza que devemos ir para esse lado? — Claro! — ela nem pestanejou. — Porque?

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— Nada. — eu me ergui levantando os meus ombros — Foi apenas uma curiosidade.

— Não se preocupe. — ela sorriu como se estivesse lembrando de alguma coisa engraçada. — Ouvi aqueles idiotas da turma do Marcos dizendo que tem um lugar intacto por aqui.

Corremos mais um pouco agora para a esquerda na rua estreita de casas com muros altos e chegamos a uma estrada de asfalto.

A rua era vertical porque descia ao encontro de um lugar impedido pela visão de arvores e monumentos; Depois que passamos por tudo isso olhando atentamente para todos os lados, entramos em outra rua de asfalto e foi então que eu vi bem no final a visão sobre outro plano da rua onde havia a loja onde eu estava dormindo. O posto de gasolina com uma cobertura pintada de laranja e amarelo.

Mas isso era uma lembrança e nela eu parecia já conhecer esse lugar embora ele não significasse tanto. Não antes, mas agora sim.

Agora eu conhecia o caminho de volta. Eu sabia que tinha uma amiga e ela se chamava Katie e tambem existia o Ed.

Vários pensamentos passaram pela minha cabeça enquanto eu lembrava no sonho. O caminho estava claro para mim como um mapa. Bastava apenas que eu subisse a rua do posto de gasolina, depois entrasse na rua com a casa branca na esquina e seguisse o caminho longo até a outra rua. Direita, esquerda, direita. A chave no buraco do muro e eu estaria completamente segura.

Foi esse o mapa que eu tracei enquanto dormia. — É aqui. — ela me mostrou a loja com o vidro já

quebrado, mas não existia cheiro ruim. Tudo estava completamente limpo e quase funcional. Havia

um frizer cheio de carnes e ele agora nas minhas novas lembranças, estava debaixo de prateleiras. Conclui que vinha dali o cheiro ruim de carne podre.

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— Maravilha. — eu disse olhando as prateleiras cheia de produtos bem organizados.

Enchemos as sacolas com besteiras de todos os tipos. — Hum. Coca-cola... Que saudade. — Katie murmurou. — Adoro torrada com geleia. — coloquei um pacote na

sacola grande tentando ponderar o quando eu iria suportar até o caminho de volta.

— Coloca mais Coca ai. — Pra que? Quando chegarmos lá já estará quente. — Ai droga. Esqueci que a energia daquele lado da cidade

foi cortada. — Esqueci das lanternas. — Pra que lanternas? — ela perguntou. — Ler de noite. — Você não é humana Alicia. Sorrimos trocando um olhar sincero de amizade. *** Acordei sorrindo depois da intensa lembrança e nem

percebi o quando eu tinha dormido. O céu estava ainda azulado — o que eu pude perceber entre as brechas da semi-cobertura —, mas ensaiando uma rapida mudança de cor com um amarelado forte do por-do-sol. A minha cabeça doeu. Isso não era surpresa agora.

Surpreendentemente eu disse para mim mesma: “Eu adorava o por-do-sol”. As imagens surgiram enquanto eu lembrava de ve-lo com o meu pai em um lugar diferente desse, mas que tinha em comum o mesmo ar, a mesma temperatura e atmosfera — não de medo —, talvez.

Eu me vira correndo em uma rua de casas antigas com uma imensa ladeira dando margem ao rio. O crepusculo do anoitecer enchia os meus olhos com uma nostalgia da qual eu nem sabia do que se tratava. Era uma linda rua modulada com altos e baixos. O relevo instavel.

Me vi observando o lugar e lembrei que aquele era um hábito que eu quase sempre cultivava. Era adorável. Atras —

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bem de frente a paisagem da qual eu lembrara —, havia uma praça florida com pedras de concreto muito bem esculpidas, e postes pequenos um pouco mais altos que eu — pintados de amarelo. Bancos quase decorativos e um cemitério. Isso nem de longe era assustador.

O rio refletia o amarelado do sol se pondo atras do altos montes e nele — um pequeno barco totalmente negro, já que a minha visão era limitada demais para chegar até ele. Para chegar lá bastava que eu descesse a grande ladeira de areia cheia de pedregulhos e depois de uma longa caminhada, o encontro das margens douradas. Lembrei de incriveis momentos.

Como o dia em que o meu pai que agora eu sabia o nome. Se chamava Eduardo. Ele quase sempre pescava como uma atividade meramente passageira. Anita — a minha irmã — e mamãe que morrera a muito tempo se davam muito bem. O que não me incluia na relação das duas.

A imagem da minha mãe estava bloqueada como se ela me odiasse por algum motivo. Isso fez a minha cabeça doer novamente como quando eu acordei naquele lugar estranho e subterraneo onde Malcon e Melissa se escondiam com mais pessoas.

Apertei ainda mais os meus olhos raivosamente e me desliguei das lembranças.

Eu precisava encontrar alguem. Conversar com alguma pessoa que me contasse o que tudo aquilo significava. Porque eu estava desmemoriada ou porque a cidade estava tão vazia e implicitando perigo.

Peguei as minhas roupas quase secas após sanar a dor, e as vesti para percorrer aquele percurso que estava vivo em minha mente. Eu iria até o prédio proximo de onde eu estava para encontrar Katie e as pessoas que se escondiam lá, dentro daquele lugar pequeno e abafado, mas agora estava escurecendo e isso não me parecia nada agradável.

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Eu tinha toda as certezas de que durante o dia a minha exposição para o desastre era maior, mas algo me dizia que o perigo se escondia na noite como se uma força maior agisse nesse momento. Uma tática sem explicação, mas eu decidi esperar até o amanhecer.

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QUATRO

ão havia barulho nem perto nem longe agora. Tudo perfeitamente calmo, inclusive a dor recorrente que eu tinha sentido desde que acordei no esconderijo de

Malcon e Melissa. Eu estava com sono embora não conseguisse mais dormir

depois do longo cochilo. Talvez não apenas um cochilo já que as minhas roupas já estavam quase secas no momento em que eu acordei. Permaneci sentada atrás das caixas esperando o momento certo enquanto refletia agonizantemente.

Meu pai se chamava Eduardo, a minha irmã Anita, o meu namorado que eu me vira beijando na lembrança do acampamento no alto — era Bernardo.

Aos poucos algumas lembranças me faziam sentir algumm novamente. Alguem pensamento e existente. Isso era bom. Eu sabia para onde eu deveria ir e sabia que, esse lugar por mais que me causasse naúseas, era seguro. Eu já havia estado nele antes com Katie num outro momento em que ele era mais organizado.

N

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Enquanto eu pensava nisso, um barulho silencioso e quase sussurrante percorreu o ambiente até os meus ouvidos como se houvesse alguem ali. Tentei sentir alguma presença como quando acontecera antes, mas não consegui detectar nada. Talvez eu estivesse sensível demais ou alucinada demais naqueles momentos em que eu achei ter algum dom especial.

Porque realmente eu conseguiria sentir como as pessoas eram? Isso tambem não se encaixava — onde eu conclusivamente não atrubuiria — no topo das listas das coisas mais naturais. Se tudo agora não fazia sentido e era ridiculo demais, tambem não seria tão fora do comum a minha anterior certeza de que eu conseguria desvendar qualquer pessoa com uma simples sensação.

Levantei automaticamente e ergui os meus ombros encostada nas caixas altas. O barulho sussurrante era apenas mais outro fruto da minha imaginação? Levando em consideração que eu estava propensa demais para isso não seria um grande espanto.

Respirei aliviada depois de um longo tempo que durou muito mais do que eu esperava.

Tudo estava estático e calmo. Com essa certeza eu me atrevi a caminhar me

desvinculando da imagem das caixas e me expondo ao lugar. Fui até a porta caminhando como uma pluma sem que os meus pés emitissem qualquer nota.

Parei em frente a porta esperando a minha respiração se acalmar e encontrei a maçaneta pausando assim pensativa. Porque eu deveria abrir? Se não havia som algum, então nada justificava essa ação. Conclui e me virei voltando relaxadamente para trás das caixas.

Foi quando eu senti a porta se abrir fazendo uma sombra diagonal no chão.

As mãos grossas e ásperas apertando a minha boca me deixaram vunerável.

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Eu podia imaginar milhares de possibilidades. Infindáveis até, mas o terror do momento não me permitira tamanha liberdade. A minha boca estava imóvel e o meu corpo interamente entrelaçado ao dele sem que eu pudesse movimentar nem um tendão que fosse.

— Eu gostaria de fazer algumas perguntas, mas eu sou inteligente o suficiente pra saber que segurando a sua boca vai ser impossível de obter alguma resposta, sonora — as palavras foram quase cerimoniais — então eu vou segurar o meu canivete, que está no bolso direito da calça, contra a sua garganta e se você pelo menos uma vez ousar se mexer ou gritar... Já era! Entendeu? — ele disse com a voz forte. Eu não sabia como ele era, apenas que era forte o suficiente para me prender.

Ao ouvir a sua proposta, e em seguida a pergunta se eu havia entendido, movimentei o meu rosto positivamente com as suas mãos ainda pressionadas ao meu rosto.

Sabia apenas que gritando ou não eu estaria ferrada. Isso não foi dificil de concluir.

— Ok. — ele murmurou com a respiração morna. E embora eu já tivesse respondido que iria colaborar com a

sua causa, ele continuou me estudando como se estivesse se aproveitando do momento.

Desejei te-lo matado ali mesmo com a minha raiva. Quando eu senti os seus braços ficarem flácidos deixando

pra trás toda a rigidez imposta ao me segurar com força, reagi me balançando ferozmente — e por mais que doesse admitir, me balancei — , frustrantemente. Qualquer movimento parecia desencorajador diante dele.

A plena certeza de que eu iria morrer, a qualquer momento quando as suas mãos encontrassem o canivete, me preencheu por completa e antes de tudo, eu o mordi com toda a minha força sentindo a sua pele seca reagindo contra os meus dentes.

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Ele me lançou contra o chão se curvando com a mão direita entre as pernas tentando abafar o som da dor.

Quando eu me virei, vi um menino. Um menino de mãos grandes e mais forte do que aparentava ser. Ele estava tão assustado quanto eu. Como se eu estivesse invadindo o seu espaço.

— Você está louca? — ele grunhiu tentando abafar. — O que você quer? — perguntei me arrastando pelo piso e

me direcionando para trás. Eu vi a sua postura mudar. Eu sabia que a qualquer

momento a reação seria inevitável e por mais que o seu rosto aparentasse calma, a força que me dominara a poucos segundos iria faze-lo novamente — me deixando frente a frente com a indesejada morte.

O garoto encontrou o canivete no seu bolso e ele se abriu como as asas de um beija-flor, quase impossível de saber quando havia acontecido. Logo eu vi a lâmina prateada reluzindo sob a luz impedida da lua.

O seu rosto era de grandes maçãs coradas e morenas. Seus cabelos ligeiramente grandes como se estivessem pedindo para serem cortados. Uma grande bola felpuda.

Encarei o grande e longo aposento e o seu olhar semicerrou contra mim. A chance que eu teria de sobreviver fugindo da morte banal era mínima. Então, eu vi os seus ombros se relaxarem e toda a sua expressão se abrandar.

— Só um lugar pra dormir. — ele respondeu amigavelmente.

A atmosfera mudou de agua para vinho com a sua reação. Ou melhor seria de vinho para agua, porque a bebida remetia a sangue. Essa seria uma possibilidade agora remota.

Eu esperava que ele viesse ao meu encontro e me estraçalhasse ali mesmo.

— Você costumava dormir aqui? — levantei o meu corpo com um impulso contra o chão.

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Havia uma grande onda transitória como se toda a tensão estivesse sendo evaporada lentamente. Nós nos estudamos com cautela.

— Não. — ele murmurou secamente. — E você? — É a minha primeira vez — pausei observando cada gesto

dele — , eu acho. Ele sorriu. — Eu acho? — Você não entenderia. — Porque não? — Talvez porque esteja ocupado demais esperando a hora

de me matar. — explicitei o meu pensamento e dei mais dois passos para trás encarando o canivete.

Ele olhou para a sua mão fechada e olhou para mim novamente.

— Porque eu deveria confiar em você? — Talvez porque eu esteja assustada a ponto de não

conseguir me segurar em pé? Os seus lábios se fecharam numa linha fina, os músculos do

rosto quiseram rir, mas ele estava fazendo muito bem o papel de durão ou não era um papel.

— Está bem. — ele disse depois de me olhar por um bom tempo e o barulho da lâmina se desfazendo foi como um calmante quase desconcertante.

Ele cuspiu no chão, com o canivete ainda na mão, o que me causou repulsa.

— Acho que ainda está planejando algo contra mim. Fui sincera com os meus pensamentos. — Porque? — ele foi irônico com um sorriso disfarçado. — Tenho cara de idiota? A minha desconfiança o instigou a confiar em mim. Ele

guardou o canivete no bolso e abriu os dois braços num sorriso largo, agora de total segurança.

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Ele sabia que podia me dominar sem o uso daquela arma, eu conclui e o terror se estabelecera em mim novamente como se ele estivesse quase sempre me procurando.

— Não quero te matar. — ele disse. — Até faria, mas vejo que você não é um deles.

Toda a tensão dos meus ombros se desfizeram ao ouvir novamente sobre eles. Malcon e Melissa falavam sobre eles com medo e terror.

— Quem seriam eles? — tentei perguntar, mas a dor insuportável começou a fluir novamente e aos poucos se estabelecera. Me curvei ajoelhada abafando os sons que eu costumava emitir. Encontrei o chão e nem me dei ao trabalho de observá-lo.

Percebi que ele não havia ensaiado nenhum movimento; como se não estivesse dando crédito a minha dor. Ouvi alguns passos lentos em minha direção.

— Não se aproxime. — eu disse segurando a minha cabeça. — Boa tática. — ele murmurou. — Do que está falando? Eu sabia do que se tratava o seu comentário. — Está fazendo um teatro pra... — com certeza eu já sabia. — Não tem nada a ver com isso seu idiota. — eu o

interrompi ofendidamente embora a dor já estivesse passando. Agora eu estava levando em consideração a possibilidade de testá-lo.

O garoto permenecera imovel por muito tempo enquanto eu, sentia a dor, que aos poucos era mais fingida do que verdadeira. Porque eu estava fazendo isso mesmo? Me perguntei.

— Deixa de brincadeira garota. — o garoto sussurrou tentando me consolar de alguma maneira, rude e desengonçado. — Eu já disse que não vou fazer nada contra você. — ele garantiu.

— Eu já ouvi.

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— Então porque continua caida como se estivesse morrendo?

— Talvez porque eu esteja morrendo. — observei. — Já pensou nisso?

Nossos olhares se cruzaram por um bom tempo. Ele caminhou em minha direção, mas de alguma maneira eu sabia que agora podia confiar nele. Se ele enfim, quisesse me matar já teria feito a muito tempo, então só me restava essa ultima decisão.

— Deixa eu te ajudar. Quando ele se ajoelhou e tentou tocar no meu braço, eu

ergui o meu rosto e o cuspi numa das maçãs sem pensar duas vezes. Ele se fez num espasmo sem emitir som algum. Lentamente o vi limpar a minha saliva com a barra da camiseta esverdeada.

— Isso é pelo abuso. — Ficou louca garota? — ele perguntou. — Abuso? — Está se fazendo de fingindo? Você se aproveitou de mim

no momento em que me prendeu com os seus braços. — Ah! É por isso? — o garoto deu de ombros — Esse é o

seu desejo e não um fato. — O que? Como pôde ser tão... Ele sorriu. — Sincero? — Abusado! — eu exclamei. — Você é um abusado. — Acho que você é meio histerica e nem por isso eu falei

nada. Ops. Acabei de dizer. — E você tambem é irritante. — adicionei, cuspindo por

entre os dentes num rosnado. Esperei pacientemente pela sua resposta ofensiva. Ele me

olhou como das outras vezes, mas agora parecia não estar muito propenso a me ofender. Felizmente, mas o silêncio não me agradara.

— E você é... — Porque está gaguejando? — perguntei

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Ele engoliu o bolo da sua garganta e criou coragem. — Muito bonita. Justificadamente o silêncio se estabelecera e pôde ser

sentido em todas as brechas do quase depósito. Continuamos naquele clima estranho de timidez até que ele se engasgasse com a própria saliva, tossindo e tapando a boca como se não fossemos permitidos a fazer isso.

Ergui minha sobrancelha direita num sorriso curvado. — Você acabou de admitir que se aproveitou de mim. —

eu me orgulhei dizendo isso. Ele parou de tossir voltando a sua pose normal, o que

remetia a um bad boy sarcastico. — Eu admito. — o rosto dele, descaradamente estava igual

como uma expressão comum. Respirei com os lábios entreabertos tentando não

demonstrar espanto ou exclamo. — Não deveria, mas eu o perdoou. — ponderei. — E

tambem não gostei. — eu adicionei tentando não ser rude. — Não pareceu. — seu sorriso se fez perverso com malícia. Franzi a testa em dúvida. — Como assim? — Eu quis dizer que não pareceu... que simplesmente você

pareceu gostar. Ergui meus ombros e caminhei para trás das caixas,

dando de ombros. — Não costumo mentir. — eu disse. — Embora eu não

saiba muito sobre... Os passos dele se aproximaram de mim. — Sobre? — Nã importa agora. — eu queria dizer que não sabia

muito sobre mim e isso incluia o fato de eu não saber se gostava de mentir ou não.

O silêncio insistenmente se estabelecera outra vez e quando parecia que iriamos ficar ali nos encarando pelo resto da noite, vi o seu pé balançar ainda em pé.

Ele perguntou em seguida. — E então? — O que?

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— Como ficamos? — ele questionou agora relaxado. — Como? — tambem não entendi a sua pergunta, mas me

arriquei respondendo. — Como estamos! — falei categoricamente, — Bom... Eu estou com sono e já que você não passa de um... — pensei num termo adequado a situação. — Já que não passa de um idiota inofensivo, acho que posso confiar em fechar os meus olhos sem que eu tenha a minha traqueia dilacerada.

Ele apenas sorriu gentilmente, o que foi estranho. Eu já estava curvada no chão e ele em pé com o corpo quase todo escondido de mim já que as caixas impediam a visão.

— Você... — ele pensou e soltou o ar pelo nariz. — Deixa pra lá.

— Eu o que? — falei olhando seguramente. — Você é muito dramática. Os seus olhos negros cerraram-se me olhando num sorriso. — Dramática? — perguntei num sussurro. Na verdade a

pergunta foi mais para mim do que para ele. Tudo que eu menos precisava naquele momento era ser chamada de dramática, levando em consideração toda a situação esdrúxula que eu estava vivendo.

— Sim! — sua testa enrugou-se. — Porque o espanto? — Você realmente não sabe de nada seu... troglodita. — Então porque você não me conta? — Você seria a última pessoa com quem eu conversaria. —

eu estava deixando escapar uma boa chance de esclarecer tudo aquilo, eu sabia, mas aquele garoto definitivamente tinha o dom de me deixar irritada e como se estivesse lendo os meus pensamentos ele murmurou em seguida.

— Eu mexo tanto com você? — o tom implícito de sedução barata estava evidente.

— Me deixe em paz. — revirei os olhos. — Quero dormir. — disse por fim.

O meu gesto de confiança maior fora aquele. Deitei-me tentando faze-lo parecer invisível para mim. Não que eu

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estivesse interessada nele. Claro que não estava. Ele era bonitinho, mas meu coração estava fechado como se eu gostasse de alguém perdido dentro das minhas memórias.

— Vai dormir assim? — a voz rouca dele me perguntou — No frio?

— Tenho outra opção? — Mas...vai congelar assim. — Tudo bem. O céu é azul, a minha paciência não é das

maiores, você é irritante e Papai Noel não existe. — eu disse — Isso tudo é tão obvio e soa como besteira dizendo assim ao vento não é? — perguntei ironicamente. — Então não precisa ficar dizendo o que eu já sei.

Ele ensaiou uma garlhadada pelo meu momento insano e sentou-se ao chão recostado na parede alinhado comigo.

— Você tem um bom humor. Parece ser legal. — Obrigada, mas eu estou com sono. — menti. — Vou dormir aqui. — ele disse outra coisa obvia tentando

me irritar. — Desde que você esteja bem longe quando eu acordar. —

fui dura e só consegui arrancar duas gargalhadas esnobes dele. Nos calamos rapidamente. Não havia assunto entre nós dois

e nem simpatia. *** O garoto caminhou em direção a porta, onde havia o

emaranhado empilhado de prateleiras. Pude ter certeza quando o cheiro ruim se fizera mais forte. A porta estava aberta, com certeza.

— Pra onde está indo? — Vou dar um jeito no frio. Longos segundos se passaram enquanto ouvi alguns

barulho disfarçados. Um barulho rangedor, depois os seus passos se direcionaram novamente para onde eu estava.

— Aqui. — ele jogou um grande edrodom para minha surpresa.

— O que? Não brinca!

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— Brincar com o que exatamente? — ele se orgulhou. — Onde conseguiu isso? — Segredo. — ele se gabou — Toma. — Jogou um pacote

de Doritos. Suspirei abrindo o pacote. — Obrigada. — Podemos conversar amigavelmente agora? Eu não queria parecer comprada por aquele cobertor

quentinho e acolchoado, no qual eu me entrelacei como se fosse uma segunda pele. Mas o seu gesto me fizera menos arisca.

— Pode ser. — assenti. Ele se abaixou e se encostou nas caixas de madeira ficando

na minha diagonal. Depois de dois longos suspiros, ele abriu a boca, então eu

pude perceber como ele era, claramente. Seus cabelos não eram tão esquisitos como na primeira impressão; eles não eram tão lisos e sim ondulados e volumosos; emitiam um brilho intenso. Seus olhos nem de longe eram grandes, pelo contrário, remetiam a olhos asiáticos, mas não tão fechados e a sua pele era morena com um brilho próprio. Lembrei por alguns segundos da figura que eu fizera de Patch do Hush Hush na minha mente e lembrei de já ter lido esse livro em algum momento da minha vida. O seu jeito fazia apologia de certa forma, então ele perguntou:

— Como você se chama?. Considerei não responder. Algo me dizia que eu

anteriormente não confiava em sair distribuindo o meu simples nome por ai. Enchi a minha boca com um punhado de salgadinhos e consegui um bom tempo antes de responder.

— Virginia. — respondi. Mas como eu me descobri uma péssima mentirosa, eu mesma me entreguei. — Virginia, é... bonito?

Ele me encarou e arqueou uma sobrancelha. Em seguida ergueu uma das mãos.

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— Eu sou Fred. — as suas mãos permaneceram no ar até que eu decidisse tocá-las em resposta. — Prazer.

Senti as suas mãos sobre outra perspectiva. Agora não havia terror e nenhuma onda de medo. Me senti covarde por não confiar tanto nele e tentei me redimir ainda nos comprimentando.

— Menti. — eu admiti. — Me chamo Alicia, agora eu sei disso.

Suas sobrancelhas se juntaram. — Agora? Não sabia antes? Larguei sua mão áspera e apunhalei outra remersa de

salgadinhos. — Não... É tudo tão complicado de explicar que eu seria

capaz de passar a noite inteira fazendo isso e ainda assim você não entenderia.

Fred se ajustou melhor nas caixas como se estivesse se preparando para ouvir.

— Então conte. — ele exigiu. Como se um refluxo forte estivesse me incomodando, eu

me ergui mais ereta e larguei o pacote de Doritos do meu lado me preparando para a longa conversa. Eu vi a sua postura mudar na minha frente de um modo curioso, isso era algo que eu reconhecia facilmente. Mas quem, Fred, me fizera lembrar? Essa resposta incomodou a minha cabeça por um segundo como se a dor estivesse pronta para voltar.

— Acho que perdi a memória. — sorri. — Tenho certeza, na verdade.

— O que? — ele não estava tão relaxado — Como assim? — Perdi a memória, simples. Não lembro de quase nada. — Então quer dizer que você não sabe o que está

acontecendo na cidade? — ele perguntou com um tom de preocupação. — Ou melhor no mundo? — adicionou.

Refleti olhando para ele e percebi como as coisas podiam mudar rapidamente. Há poucos segundos eu estava brigando, a ponto de me despetir da vida, no entanto, agora eu estava ali

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conversando como se fossemos meros amigos. Me perdi nesse pensamento.

— Não. — respondi voltando a minha atenção para ele. — Então você não sabe da invasão? Eu sabia que aquilo tudo não era normal. Estavamos

vivendo como seres humanos primitivos, nos escondendo como se lá fora existissem monstros ferozes ou, levando para um lado mais realista, uma ameaça muito grave, apenas. Eu sabia disso, não era tão ingênua.

— Invasão? — murmurei pensativa. — O que está acontecendo tem alguma coisa a ver com o fim do mundo? Quer dizer, tipo, apocalypse?

Ele sorriu como se eu estivesse contando uma piada. — Desejaria que fosse. — balançou a cabeça algumas

vezes tentando controlar o riso. — Adoraria, na verdade. — Então o que é? — Já assistiu filmes de ficção cientifica? — ele me

preparou. — Consegue lembrar? Puxei na memória alguma coisa, franzindo a testa e vi

várias imagens de filmes do tipo, mas confesso que não eram os meus preferidos. Lembrei de ter visto alguns documentários no Discovery Channel durante alguma madrugada e do meu hábito quase zumbi de não dormir.

Essas memórias eram mais fáceis de se obter por alguma razão.

— Sim! — respondi exclamando. — Lembro de vários, mas isso tem a ver com o que está acontecendo? — fui ingênua, quando deveria ter concluido logo de cara. — Não é?

— Preciso responder? — não senti ironia na voz dele, apenas desânimo.

Então era isso? Esse era o verdadeiro motivo para que a cidade estivesse parciamente destruida em alguns pontos? E tambem de não haver ninguem caminhando, quando na verdade, todos estavam se escondendo com medo deles? Eles — eram os invasores e disso eu não conseguia me lembrar.

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Eram deles que Malcon e Melissa tanto falavam com medo. Talvez Gabriel, o nome que permanecera na minha mente por todo esse tempo, estivesse morto. Como eles tanto temiam.

Eu não podia simplesmente tragar essa história como se ela fosse verdade. Eu não acreditaria nisso tão facilmente. Tudo não podia passar de uma grande piada como se eu estivesse vivendo naquela cidade idiota do Show do Trumam. Lembrei disso no momento estranho em que eu tinha que absorver tudo aquilo. Na verdade eu nem tinha ouvido nada ainda, apenas o início e isso me chocou de tal maneira que eu parei ali refletindo de queixo caido sem acreditar.

— Não. — respondi chocada. — Er... — revirei os meus olhos, tentando fazer o ar entrar nos meus pulmões, embora isso estivesse sendo muito difícil. Inspirei e expirei seguidas vezes enquanto ele me esperava observando o sangue sumir da minha face. Não que estivesse tão nítido assim, mas se ele estivesse muito atento, iria notar com facilidade.

— Está conseguindo lembrar? — a sua voz rouca me perguntou com gentileza.

Eu nem escutei direito. Apenas pressionei os meus olhos, esperando que aquela dor idiota voltasse me fizesse lembrar de tudo como estava acontecendo antes, mas ela não vinha. Droga!

— Não... — fui breve. — Não lembro disso. — Desculpa. — Está se desculpando? — estranhei. — Do que

necessáriamente você está se desculpando? Fred ergueu os ombros no instate em que eu olhei para ele e

me deu a mão direita. Encarei o seu gesto sem maldade e repousei a minha sobre a dele, piscando os olhos.

— Estou me desculpando por ter contado isso assim, sem uma preliminar.

Ofeguei pensativa. Eu estava assustada. Quer dizer, invasão alienigena? Isso era real? Como seria possível? Isso não se

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encaixava na minha mente de forma alguma, então eu vi o quão ridículo, agora sem dúvida, tudo era. Extremamente ridículo.

— Er... Tem certeza disso? — sorri. — Isso não é uma piada?

Seu rosto balançara uma única vez para lá e para cá horizontalmente, seguido de um piscar lento.

— Porque eu brincaria com um assunto tão... — Ridiculo? — era essa a única palavra que passava pela

minha mente. — Exatamente. — Fred apertou a minha mão. — Ridiculo. Esperei procurando uma resposta convincente. — Talvez, — eu parecia ter achado. — porque você esteja

se aproveitando da minha falta de memoria. É isso? Ele sorriu fazendo uma careta. — Eu não seria tão covarde. Com a sua resposta eu me conformei e vi que era verdade.

Ele não estava mentindo. Desvinculei as nossas mãos e pausei pensativa. Fred não se

arriscara em falar mais nada. Ele esperou pacientemente que eu aborvesse as primeiras informações risórias. Quer dizer, eu não precisava lembrar de tudo pra saber que aquilo era ridiculo. Não. Eu não podia acreditar literalmente.

Por hora não .

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CINCO.

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omo aconteceu? — O que? — ele perguntou assustado

quando já estava quase dormindo. Depois de ouvir a primeira revelação, eu me calei tentando

lembrar de tudo, mas algo estava bloqueando a minha memória, claro. Somente nas horas que queremos as coisas, elas não acontecem. Isso não era tão incomum assim, por isso eu quase surtei.

— A invasão. — respondi para ele. Fred se ergueu novamente. Ele estava ali vestido no seu

jeans com um tênis muito novo para o cenário que estávamos vivendo. Observei isso calmamente.

— Bom. — ele se preparou. — Foi estranho. — Estranho? Acho que ele não havia notado, mas a minha pergunta

implicitava ironia. Como ele podia explicar um assunto tão... difícil com uma simples palavra?

— Sim. Na verdade não foi assim da noite para o dia. Encontrei com a mão direita o pacote do salgadinho e

comecei a mastigar alguns. — Como foi então? — exigi. — Estou esperando. Todo aquele ar de ironia humorada dele havia evaporado. O

seu rosto estava sério e comprenetrado. — Er... — Eu nunca fui de assistir telejornal, mas naquela

noite eu assisti. — Fred começara sorrindo. — Lembro dos desaparecimentos estranhos e a onda de medo que se estabeleceu. Ninguem admitia, mas...

— Espera ai. — interrompi lembrando rapidamente de quando cheguei ao hospital com o meu namorado — o Bernardo — depois da briga com a minha irmã Anita. — Você disse desaparecimentos?

Ele nem hesitou. — Sim. — Não sei, mas acho que em alguma das minhas

lembranças, eu vi um grande muro cheio com fotos de

— C

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desaparecidos de vários lugares. — refleti. — Quanto tempo tem isso?

— Quase dois anos. — ele disse de um modo natural. — Dois anos! — exclamei impressionada. Em seguida abri os olhos pelo espasmo. Ele limpou a garganta me chamando a atenção. — Você

não estava desmemoriada? — E eu estou. — Então, — Fred me instigou. — como consegue falar de

coisas como se elas — as lembranças — estivessem presentes na sua mente?

Suspirei. — Eu não te contei tudo. — E eu nem comecei ainda. — ele disse — Quem fala

primeiro então? — Acho melhor eu esclarecer logo como consigo lembrar

de algumas coisas e depois você continua. — me enrolei ao edredom o levando até o meu pescoço e continuei. — Ok?

— Está bem. A escuridão fazia a minha visão turva em alguns

momentos. Talvez agora eu estivesse tensa demais pra aguça-la e tudo era muito obscuro. Fred esperou com paciencia eu começar a falar alguma coisa, enquanto os meus pensamentos seguiram outros rumos.

As lembranças — as poucas — que eu tinha, eram de quando eu estava com o meu pai no acampamento — me reunindo em volta da fogueira —, com a minha irmã e o meu namorado. A briga e a pequena cidade. Repassei tudo isso antes de começar.

Com intensidade, eu limpei a minha garganta para começar a falar:

— Tudo que eu lembro é sim estranho. Posso resumir assim.

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Fred se concertou quando parecia está incomodado. Como se a sua coluna estivesse doendo muito e procurou uma posição melhor para me ouvir. Nesse instante eu me calei.

— Não vai continuar agora? — Sim. — me apressei balançando a cabeça discretamente

— Eu estava sonhando, isso era bom, mas eu acordei do sonho. Não necessáriamente acordei, eu apenas religuei os meus sentidos como se eles estivessem adormecidos por um bom tempo. Meus ouvidos capitavam sons de duas pessoas conversando. Eles se chamavam Malcon e Melissa, aquilo parecia um pesadelo porque eu estava desmemoriada e não lembrava de exatamente nada. Eu não conseguia me mexer, apenas ouvir, como se o meu corpo estivesse inválido.

— Acho que já passei por uma experiencia parecida. — ele não se espantou — Isso é comum.

— É sim. — admiti. — Na hora eu pensei que iria acordar e que tudo não passaria de um pesadelo. — sorri de mim mesma. — Então, depois de muito desespero eu consegui ter a minha primeira lembrança. Ela veio quando eu estava dormindo, o que já era estranho demais, porque eu achava que aquilo era um pesadelo.

Fred se ergueu mais uma vez num movimento de incomodo.

Parei e o observei. — Não se importe comigo. — ele disse. — Pode continuar. — Está bem. — assenti com ele. — Então eu lembrei de

estar acampando com os meu pai, minha irmã e o meu namorado. Não que eu lembre muito sobre eles, é como se eu estivesse me assistindo e as emoções não fossem tão verdadeiras, entende?

— É como se fosse um filme sem qualquer compromisso? — Exato. — concordei — Então depois dessa lembrança,

onde eu vi a orelha da minha irmã sangrar porque o brinco dela foi puxado, — eu editei tentando não entrar em detalhes. — eu acordei exasperada e simplesmente fugi. — ignorei a imagem

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do cara com o olhar perverso apontando a arma estranha para mim. Achei desnecessário.

— Então você fugiu desse lugar? — Sim. Eu fugi, porque simplesmente eu não confiava em

Malcon e Melissa. — Tambem ignorei outro fato de que eu conseguira sentir e até quase ler a mente deles. Mas isso era apenas imaginação, lógico. Reafirmei para mim.

— Estou entendendo agora. — ele não pediu que eu repetisse para o meu alivio.

— Ás coisas foram acontecendo assim. Comecei a ter alguns momentos estranhos de lembranças e no meio delas, eu me vi no hospital e nele havia uma imensa fileira de folhetos com pessoas desaparecidas. — conclui rapidamente. — Foi por isso que me chamou atenção quando você falou sobre pessoas desaparecidas.

— Exato. — sua mão direita estudou o seu queicho com elegancia. — Isso quer dizer que você lembrou de coisas de dois anos atras. — ele disse com toda convicção possível.

— Hum... Você está tão certo disso. — quase sorri. — É que os desaparecimentos não duraram muito tempo.

Quer dizer, foi num intervalo de três meses... A minha postura mudou rapidamente. Eu estava atenta a

cada informação nova que ele me dizia embora as coisas não fluissem muito bem na minha mente. Era como se eu estivesse rejeitando tudo aquilo por não querer acreditar.

— O que esses desaparecimentos significavam? — joguei o saco de Doritos para o lado.

— Não sei. — ele foi honesto. — Alguns dizem que os Aliens sempre estiveram aqui. O que faz sentido porque antes da grande invasão... — Fred respirou confuso.

Notei a sua expressão se fechar como se aquele assunto fosse doloroso demais para se falar. Talvez ele tivesse algum segredo que não quisesse revelar e por isso reagiu de tal forma.

— Está se sentindo bem? — eu disse.

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— Estou sim. — ele suspirou uma vez. — Só estou lembrando do dia que tudo aconteceu. Foi tão rápido. Ou melhor, pra alguem que nunca acreditou nem no Papai Noel, foi duro. Confesso. — houve uma breve pausa. — Os noticiários vinham a dias fazendo coberturas intensas sobre um estranho fenomeno. Ondas de luz que rodeavam o céu no mundo inteiro e isso repercurtiu em todos os lugares. — ele sorriu. — Existia um Senhor que quase sempre dava entrevistas no noticiário local e ele dizia ter a prova de que os Aliens pretendiam invadir o nosso planeta. Lógico. Ele foi ridicularizado, mas ninguem sabia que ele tinha razão.

— Sobre o que ele tinha razão? — fiz uma pergunta obvia. — Ele tinha razão sobre as luzes. Elas eram o prenuncio da

invasão, mas como eu disse, pessoas desapareceram anteriormente, o que na minha opinião tem a ver com a invasão de corpos.

— Invasão de corpos? — franzi a testa. — Então eles invadem os corpos?

Fechei os braços em volta das minhas pernas flexionadas e as apertei com receio.

— Não sei como funciona. Só sei que eles tem aparencia humana e essa é uma boa evidencia. — pensei que ele já havia concluido, mas infelizmente adicionou outra frase insuportavel — Ou você esperaria que um alienigena fosse assim, bonita como você?

Dei de ombros para o comentário fora de hora. — Você já os viu? — Já! — ele adimitiu. — Eles são um exército infeliz.

Usam roupas ridículas e agem como se fossem superiores. Curvei os lábios numa linha fina depois de ouvi-lo cuspir as

palavras. Ainda com o olhar perdido eu perguntei: — Como sabe

disso?

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Fred pareceu incomodado com as perguntas. Parecia claramente que a sua experiencia com os tais invasores não fora muito agradável.

— Er... — ele ensaiou responder com sacrificio, mas eu o interrompi.

Me imaginei na sua situação. Eu particularmente odiaria ser forçada a responder algo que me deixasse incomodada, por isso, pensando por esse lado, eu agi rápidamente na tentativa de evitar um clima pior do que o estabelecido.

— Então, — perguntei antes para mim mesma. — como os primeiros chegaram aqui?

Fred sorriu de um jeito desconcertante. — Não sou o cara mais aconselhado para explicar. —

acrescentou. — Nunca fui o melhor da turma. Falar daquela forma me fez sentir inveja. Eu sabia que a

minha memória não estava toda perdida e que em alguns momentos eu era miraculosamente brindada com elas, mas isso não mudava o fato de que Fred tinha o privilégio de falar das suas lembranças, como quando ele estudava, isso remetia a uma sala de aula cheia de alunos e amigos. Foi humilhante para mim.

— Isso é desimportante agora. — sorri gentilmente tentando disfarçar a minha frustração.

Suas mãos grandes se encontraram e se apertaram entrelaçadas.

— Bom... Eu acho que eles foram se instalando aos poucos. Quer dizer, quem nunca ouviu falar sobre naves, OVNS... — Fred falou lentamente. — Eles começaram aos poucos se instalando em alguns corpos e formando um bom exército. É essa a minha opnião embora alguns discordem.

Nossos olhares se cruzaram por um bom tempo me deixando constrangida. Fred era o tipo de garoto confiável no sentido de amizade, mas em outros sentidos não. Isso ficara cada vez mais claro com as suas cantadas totalmente intempestivas.

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O que era de se estranhar. Tudo bem que para ele aquele assunto era normal, ele tivera um bom tempo para se acostumar com isso e eu tambem, não fosse a falta de memoria inoportuna.

Senti a sua intenção mudada rapidamente e isso me fizera, apressadamente, agir para que eu fizesse uma nova pergunta.

Abri os meus lábios sentindo todo o ar sair por eles e inspirei. — E... — tentei continuar o assunto que não estava, nem de longe, encerrado. — Como aconteceu exatamente a invasão? — reformulei. — Quer dizer, você disse que haviam luzes e um fenômeno estranho ocorrendo...

Ele suspirou de modo cansativo. — Na verdade sempre aconteceram fenômenos do tipo. — admitiu, — Só que simplesmente, as pessoas não compactuavam com esse tipo de bobagem. — Fred estudou os seus pensamentos com uma expressão pensativa. — Em programas sensacionalistas por exemplo, assuntos do tipo sempre estiveram em pauta, ou um “maluco” afirmando já ter visto um Disco Voador; um ser estranho ou dizendo que foi abduzido por um deles.

Ele disse de uma maneira zombeteira. — Você era um dos que não acreditavam então? —

observei. Seus ombros se curvaram. — Nem preciso responder. A afirmação nem precisou ser explícita. Um vento gélido

penetrou no ambiente pela cobertura e sem sentido ou não, pareceu percorrer a minha espinha me fazendo sentir incomodada.

Fred — e seus olhos negros — estava meio perdido na exaustão, mas eu o instiguei a dizer mais. Nada me convencia e eu precisava de mais detalhes, teorias que me fizessem satisfeita.

— Isso tudo é tão... Estranho. — É verdade.

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Fred percorreu os seus olhos até que eles encontrassem os meus num duelo mortal. — Como é estar desmemoriada e... — balançou os ombros. — não saber dessas coisas?

Soltei os ar pelo meu nariz e relaxei os ombros. — É ruim. — disse olhando para o lado. — Quer dizer, só ruim? Eu não queria parecer abobalhada embora naquele instante,

eu estivesse assim. — É péssimo na verdade, até porque as minhas lembranças,

as que eu já consegui recuperar, são muito superficiais e as vezes mortais.

Nós dois nos estudamos como várias outras vezes e sorrimos.

— Eu não desejaria isso pra mim. — ele disse. — Obrigado pela força. — comentei com um duplo

sentido. — Calma. — ele tornou a voz mais aguda. — Não queria

ofende-la. Mudei a minha expressão que se fizera séria e ofendida. — Eu sei que não. — admiti. — Como você acha que perdeu a memória? — perguntou

interessado. Lembrei do momento em que eu acodei naquele lugar

úmido — o que era agradável para mim — e senti uma pontada na cabeça como antes, mas isso foi definitivamente suportável. Fred se fez mais relaxado e tirou o seu tênis ficando apenas de meias.

Um pensamento ridículo passou pela minha cabeça. Quer dizer, onde ele havia conseguido aquele tênis? Porque a preocupação em andar tão bem vestido? Isso ainda existia nesse novo mundo que eu infelizmente ainda vivia?

Guardei essas perguntas para uma outra hora e continuei a conversa.

— Alguma pancada, eu acho. — fui imprecisa. — Devo considerar essa dor insuportável que vem e volta em certos

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momentos, acho que graças a ela eu estou assim. — ergui a mão direita até a minha testa e abafei fechando os dedos.

Os braços de Fred vieram até mim e então eu pude notar o formato da sua roupa. Ela era de grife com certeza, um tecido fino de cor escura que se moldara totalmente ao seu copo, os braços longos de músculos magros se direcionaram até a minha mão.

— Pode ter sido isso sim. — suas mãos ásperas tocaram meus dedos e repousaram neles.

Os olhos negros — como a noite — de Fred tentaram me seduzir.

— O que está fazendo? — fui ingenua. — Nada que você não queira. — ele foi insuportável outra

vez. Em um ato impulsivo, joguei os seu braço ao lugar de

origem e me fiz ofendida, outra vez. — Infantil. — rosnei para ele e dei por fim aquela conversa

embora ainda houvesse muita coisa a ser dita. Eu sabia que precisava da ajuda dele para sobreviver e inclusive encontrar um lugar seguro, porque aquele, totalmente, exposto não era. Eu tambem sabia que algo me dissera que sim — é seguro —, mas não podia ter tanta certeza assim. Qual era o meu sobrenome? Se eu não sabia disso, então eu podia concluir com facilidade que confiar na minha intuição seria trágico.

Fred não pareceu afetado com a minha irritação e segurou as suas mãos com os braços em cima dos joelhos. Uma postura incrivelmente irritante. Seus ombros largos e quase sempre curvados se tornaram retos e eu me incomodei com isso.

— Nós somos adultos. — ele comentou. — Nós dois. — disse por fim dando ênfase e margens de erro a conclusão. Eu nem quis pensar no que ele me propusera.

Não bastasse toda aquela historia mal contada e o fato de eu estar desmemoriada, ele ainda encontrara tempo para irritantes gracinhas e insinuações sexuais. Adultos? Isso ele não era.

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— Você é um pirralho. — cuspi por entre os dentes outra vez.

— Tenho Dezoito. — Fred pareceu orgulhoso disso e de repente fez uma cara de bobo como se estivesse esperando a minha resposta. Será que ele estava tão desconcentrado a ponto de não conseguir lembrar — o simples, mas determinante fato de — que eu estava desmemoriada?

— O que foi? — perguntei só para ter certeza. — E você? Revirei meus olhos. — Acho que disso eu não lembro, ou

você acha que sim? Ele arregalou os olhos como se estivesse surpreso. —

Como pude esquecer! — exclamou batendo a testa num tapinha e fechando os olhos, em seguida sorriu desconcertado. — Eu realmente me distrai, mas acho que você tem cara de Dezessete. — acrescentou como se fosse fazer alguma diferença.

— O que?! — exclamei numa pergunta. O tom de surpresa. Lembrei do meu reflexo no carro, onde eu briguei com a

minha irmã e tambem do meu reflexo no vidro da loja de conveniencia. Aparentemente eu já tinha vinte anos.

— Dezessete ou menos. — adicionou. — Talvez vinte. — fui curta. — É muito pra você. — ele me olhou como se estivesse

examinando. Está bem. — eu disse, mas queria continuar a conversa, não

fosse o fato de que eu estava envergonhada demais e até irritadiça.

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SEIS.

— Está com raiva de mim? — Fred perguntou pela

milésima vez. Me calei por um bom tempo após ouvir aquela proposta

sexual. Isso era algo que eu não esqueceria com facilidade. Tentei não pensar muito nas suas palavras covardes, mas simplesmente não consegui, e dormir tambem estava fora de cogitação.

Fred continuou sentado e visivelmente incomodado com a falta de conforto. Foi então que eu percebi que ele estava sem agasalho algum. Ele esperava a minha resposta, as várias respostas que eu me recusei a dar em troca.

O silêncio era torturante, mas, não muito porque os meus pensamentos eram ferozes e quase sempre indomáveis. Eu o

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encarei e o seu sorriso se abrira remetendo de um modo disfarçado a um cafasjeste. Do tipo que não se importa com o que as pessoas pensam.

— Você está me causando uma péssima impressão. — falei finalmente.

— Tem certeza? — ele perguntou. Fred ergueu-se e levou os seus braços até a cabeça. — Por que não teria? — questionei-o. — Talvez porque você esteja interessada em mim? Encarei-o por um momento, abalada. Ele foi incrivelmente

estupido nesse comentário; Não mais do que nas outras vezes. — Você deveria tentar passar uma impressão melhor. —

não instiguei-o. — Você está querendo dizer que não passei uma boa

impressão? — ele perguntou de um modo preocupado. Isso de alguma maneira importava pra ele?

— A primeira impressão é sempre a que fica. — eu disse. Fred sorriu sussurrante. — Acho que estou ferrado então.

— admitiu. — Porque estaria? — perguntei sem refletir muito sobre

isso. — Acho que você esqueceu que no nosso primeiro

encontro, quase houve sangue e morte. — Fred voltou a ser um garoto inocente outra vez.

Ou quase inocente. Segurei os meus cabelos os enrolando. — Não considerei isso. — adicionei. — O que você considerou então? Pausei pensativa. — Quando você foi gentil comigo? Eu tinha realmente dito aquilo mesmo? Definitivamente eu

estava louca, ainda mais porque o tom usado fora extremamente doce e agradecido como se eu, simpatizasse com Fred. Fugi dele com os meus olhos.

— Fui gentil? — ele perguntou. — Está querendo ouvir de novo? — disse. — Não sou de

repetir.

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Sua expressão estava mudada. — Quando então... — ele sorriu curiosamente. — Me diga

em que momento mais precisamente você me achou gentil. — ele estava querendo, sim, ouvir de novo e deixou bem claro. — Pode ser?

Eu não deveria responder, mas nem pensei nisso; seriamente.

— Quando me deu o edredom e comida. — relembrei. Fred se assustou. — Só por isso? — disse. Seus olhos negros e meio asiáticos

seguiram a expressão da sua testa que se enrugara por algum motivo. Foi estranho.

— Algo de errado no que eu disse? — questionei. — Sim. — ele pensou. — Quer dizer, você não faria isso

por outra pessoa? Você não deveria se impressionar por isso. Fui apenas correto.

As palavras dele me impressionaram mais do que a sua atitude. De repente toda aquela imagem ruim que eu construira dela se quebrara como se uma pedra tivesse atingido um espelho diante dos meus olhos.

A surpresa me fez enxergá-lo de uma maneira menos critica.

— Bom. — enguli o bolo que se formara na minha garganta. — Não pensei que você fosse tão gentil; Dizer isso foi o ato mais gentil.

— Obrigado. Olhei para ele e o seu olhar estava cansado. Seu rosto

visivelmente abalado como se estivesse a muitos dias sem dormir e embora parecesse isso, ele ainda estava ali insistentemente acordado.

— Está cansado. — eu disse. — O que? — tentou se agitar pra demonstrar o contrário.

— Não! Suspirei. — Não foi uma pergunta.

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Fred coçou o olho esquedo com as costas das mãos. — Você tem razão. — admitiu. — Então porque não dorme? — Acho que o meu estomago está me dando trabalho. Então, era isso? Aquele pacote de Doritos que ele me dera

era a sua comida? Porque então ele teria me dado, ainda mais num momento em que nem nos conheciamos? Me senti culpada por isso, talvez não fosse a intenção dele.

— Você me deu a sua comida? — perguntei. Fred sorriu. — Sim. — disse de um jeito desconcertante. — Porque? — respirei. — Bom... Não entendo. — Comprar você? Impressiona-la? Foi exatamente o que eu tinha pensado. Então todo aquele

discurso de bom moço era apenas para me impressionar tambem? Decididamente, ele me confundia de todas as maneiras. Eu não estava nem um pouco propensa a decifrá-lo, quando na verdade eu não estava nem decidida a me decifrar.

— O que você é? — murmurei. Ele franziu a testa. — O que eu sou? — sorriu. — Porque a pergunta? — Simplesmente quero saber se você é um idiota ou algo

parecido. — Huuuhh. Eu gosto de garotas ariscas. Mordi meu lábio inferior cerrando os meus olhos. — Eu odeio garotos convencidos! — Talvez você goste, pode está ai perdido na sua mente. Me desenrolei do edredom e o joguei sem pensar. — Se você foi tão idiota a tal ponto de se deixar com fome

só pra me impressionar, não deixarei que seja idiota a ponto de passar frio por mim. Por que defitivamente eu odeio você.

O edredom caira sobre a sua cabeça. Fred o tirou rapidamente.

— Você sabia que o odio está estritamente ligado ao amor? Apertei os meus silios. — Não me diga. — ironizei.

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Nós calamos e cada vez mais eu tinha certeza do quanto aquele garoto me deixava irritada. Não só por ser convencido, tambem. Como ele conseguia pensar em assuntos sexuais num momento como aquele?

Eu nem mais questionei sobre a veracidade dos fatos. Simplesmente acreditei, até porque não é todo dia que se encontra uma cidade ao avesso por ai e aquela estava interamente invertida. Tambem não está no todo da lista das coisas mais comuns, aquele lugar onde estavamos e se ele — Fred — estava lá se escondendo, só podia me dar a certeza que os Aliens, então, existiam.

Liguei todos os pontos. Tudo fazia sentido claramente. Lembrei de quando eu estava com a minha amiga Katie e

Ed. no prédio a alguns longos metros daqui e tracei meus planos para o dia seguinte e se ao menos eu soubesse que horas eram, então eu vi no braço de Fred, um relógio.

Ele estava ainda acordado, mas agora inteiramente deitado no chão depois do nosso momento gato e rato.

— Então você é tão orgulhosa a ponto de passar frio? — Está roubando as minhas palavras — eu disse. — Está sendo infantil. Umas das coisas que eu não estava sendo era — infantil. — Você que é. — fechei meus olhos. — Pode me dizer que

hroas são. — Tem algum lugar pra ir — Um dia eu terminarei isso...

TEXTO SEM CORREÇÃO....