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1 PROCESSO DE MONOPOLIZAÇÃO JURÍDICA NA BAIXA IDADE MÉDIA PORTUGUESA: D. PEDRO I (1357-1367) SCHIAVINATO, Rodrigo Barbosa (PIC/UEM) José Carlos Gimenez (UEM) INTRODUÇÃO Dentre as características políticas do século XIV, decorreu a unidade de poder em contraste com a diversidade dos costumes. O elemento unificador era a instituição, em que um único conjunto de leis englobaria o poder central, as funções públicas e os costumes. Apesar da Coroa não se opor aos costumes locais, o poder central estava assumindo progressivamente o papel de última instância judicial. (KRISTCH, 2002) Naquele contexto, a justiça foi considerada função do rei, numa época em que as instituições políticas e econômicas estavam em processo de centralização, passando do controle senhorial para o controle da máquina administrativa real. Os soberanos gradualmente passaram a perceber que, além do poder político e econômico, a justiça era uma forma de afirmar e aumentar a autoridade. (STRAYER, 1969) Partindo do geral para o particular, temos no reino de Portugal o reinado de D. Afonso IV, pai de Pedro I e que antecedeu o governo deste último. O período ficou marcado pela progressiva centralização da justiça nas mãos da administração central do reino. (SARAIVA, 1988)

PROCESSO DE MONOPOLIZAÇÃO JURÍDICA NA BAIXA … · conceitos (positivismo conceitual) e um sistema de valores (jusnaturalismo). ... mas o sucesso da ... limitações reais que

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PROCESSO DE MONOPOLIZAÇÃO JURÍDICA NA BAIXA

IDADE MÉDIA PORTUGUESA: D. PEDRO I (1357-1367)

SCHIAVINATO, Rodrigo Barbosa (PIC/UEM)

José Carlos Gimenez (UEM)

INTRODUÇÃO

Dentre as características políticas do século XIV, decorreu a unidade de

poder em contraste com a diversidade dos costumes. O elemento unificador era

a instituição, em que um único conjunto de leis englobaria o poder central, as

funções públicas e os costumes. Apesar da Coroa não se opor aos costumes

locais, o poder central estava assumindo progressivamente o papel de última

instância judicial. (KRISTCH, 2002)

Naquele contexto, a justiça foi considerada função do rei, numa época em

que as instituições políticas e econômicas estavam em processo de centralização,

passando do controle senhorial para o controle da máquina administrativa real.

Os soberanos gradualmente passaram a perceber que, além do poder político e

econômico, a justiça era uma forma de afirmar e aumentar a autoridade.

(STRAYER, 1969)

Partindo do geral para o particular, temos no reino de Portugal o reinado

de D. Afonso IV, pai de Pedro I e que antecedeu o governo deste último. O

período ficou marcado pela progressiva centralização da justiça nas mãos da

administração central do reino. (SARAIVA, 1988)

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O rei D. Pedro I continuou e aperfeiçoou o processo de centralização do

poder jurídico-político. Como representante de uma instituição, o rei deveria

usar o poder a ele concebido para garantir o equilíbrio político da sociedade que

governava, de modo que suas atitudes confirmassem seu papel de árbitro, pois

mesmo suas aptidões pessoais foram consideradas por Fernão Lopes como

quase que sacerdotais. (GUIMARÃES, 2004)

Para Pedro I, as leis deveriam ser mantidas e fiscalizadas, a justiça

deveria ser rápida e as sentenças sempre justas. O rei deveria ser amado e

manter o povo na justiça e no direito. Conhecido como “o justiceiro sem

afeição”, D. Pedro praticava a igualdade no direito e a ninguém perdoava os

erros. Amado pelo povo por suas atitudes enérgicas em relação ao

cumprimento da lei, D. Pedro proporcionava uma imagem de confiança em

relação aos súditos ao revelar a existência de uma instituição preocupada com a

integridade da ordem. Procedendo assim, o povo preferia um rei sádico e cego

na aplicação uniforme da lei a um outro qualquer contemporizador e parcial.

(SOUSA, 1993).

Em teoria, o rei deveria ser o guardião e o defensor da lei, se outros

aplicassem a justiça, apenas na condição de juízes nomeados pelo próprio

monarca. Acontece que na prática, os senhores de terras, ainda detentores de

poder dentro de seus domínios, detinham a função jurisdicional. O processo de

centralização monárquica combateu o poder judicial disperso em diferentes

mãos. (SOUZA, 1993)

O poder judicial era disperso entre o rei, os senhores de terras e senhores

municipais. Essa dispersão era característica dos sistemas políticos feudais, em

que a mistura dos poderes obrigaram os monarcas a lutar pela unificação dos

reinos para melhor concentração de força. (SOUSA, 1993)

Ao analisar os processos de transformações jurídicas em Portugal, em

que os reis vinham tomando medidas para tornar a justiça “pública”, nos

ocorreu de entender o porquê dessas transformações, de como as bases

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materiais (economia, política, cultura) da sociedade portuguesa se estruturaram

para permitir esta centralização da justiça.

Na época de Pedro I, a ordem assentava-se no medo e o poder político

era identificado com o poder de coerção. A justiça era tônica da política interna

do monarca, que ao punir ele mesmo os crimes, cumpria a função que se

esperava de um rei. Este procedimento fez de D. Pedro I a autoridade e a força

com poderes acima dos clérigos e dos nobres. (SOUZA, 1993)

É preciso ressaltar que o conhecimento das leis em Portugal no período

de D.Pedro I não estava disponível para todas as camadas da população. Como

exemplo temos a profunda dificuldade que os reis portugueses da primeira

dinástica encontraram para criar e aplicar novas leis, essas que a população

tentava impedir, pois se chocavam com as tradições populares. (SOUZA, 1993)

REFERENCIAL TEÓRICO

A linha teórica das instituições e da História política foram as correntes a

explicar o tema proposto. Compactuamos com aspectos da inter-relação

humana em setores como o econômico, político e social, pois ao ter como

pressuposto a idéia de História total, analisamos a instituição jurídica articulada

em uma realidade social. (FERNANDES, 2000)

A História política enquanto caminho a ser seguido foi no intuito de

buscar uma problemática bem definida, abordagem proposta por Marc Bloch e

que deixa de se prender aos acontecimentos como fatos isolados, procurando

maior aprofundamento em seu objeto de estudos. (FERNANDES, 2000)

Apesar do recorte cronológico do trabalho se referir ao rei D. Pedro em

particular, maior importância foi auferida ao coletivo do que ao individual, sem

no entanto deixar de fazer de D. Pedro I um dos pólos da pesquisa. Segundo

Armindo Souza em livro organizado por José Mattoso, a abordagem histórica

que ajuda o historiador é a coletiva, a social e não a individual. (SOUZA, 1993)

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Nossa preocupação foi com os resultados da prática jurídica concreta.

Segundo Manuel Hespanha, a história das instituições é mais do que a história

das fontes e mais do que a história das leis. A história das instituições deve ser

feita mediante a “observação” da repetição dos fenômenos jurídicos.

(HESPANHA, 1982)

A concepção historiográfica que entende que a justiça pode ser entendida

como simples construção intelectual separada da realidade social, concebe o

direito como um sistema de normas (positivismo legalista), um sistema de

conceitos (positivismo conceitual) e um sistema de valores (jusnaturalismo).

Ambos os sistemas são considerados superiores à realidade social, delegando

um caráter de perfeição à ordem jurídica. (HESPANHA, 1982)

O governante e os juristas não possuem poder suficiente para a criar a

idéia de direito e nem para fixar esta idéia na sociedade. Apesar, ainda cabe ao

soberano criar a idéia de justiça, mas somente aceitação do meio social. A idéia

de justiça, ao contrário do que concebem os historiadores “legalistas” do direito,

não pode ser posta em prática sem a aceitação da sociedade. (BURDEAU, 2005)

Para a justiça funcionar enquanto instituição é preciso que sua idéia

esteja inserida na sociedade e que o poder jurídico se materialize de forma

impessoal na figura do representante. A idéia de direito significa regras

preestabelecidas de organização da vida em comum e não mera construção de

princípios filosóficos superiores. É verdade que muitas leis são interpretações

de conceitos caracterizados como superiores e universais, mas o sucesso da

prática dessas normas só será alcançado a partir do momento que determinada

lei se tornar uma regra social. Uma regra social, para se tornar regra jurídica,

precisa de uma inteligência que a precise e a formule, uma vontade que a

imponha e uma coerção que a sancione. Porém, apenas quem detém o poder de

fato possui condições de tornar determinada norma uma regra jurídica.

(BURDEAU, 2005)

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(...) para se compreender o que são, para que servem e como funcionam as instituições jurídicas, necessário se torna conhecer os problemas sociais de que elas arrancam, as tensões que à volta delas se geram, o peso relativo dos grupos sociais nelas comprometidos, os valores sociais dominantes (...) É preciso, por outro lado, ter a consciência de que rara é a norma jurídica que resolve uma questão puramente “técnica”; quase todas elas abordam problemas políticos e têm conseqüências também políticas. (HESPANHA, 1982, p.24)

Nesta pesquisa observamos a relativa autonomia da instituição

jurídico/legislativa portuguesa em relação à história social geral. O objetivo da

instituição jurídica é manter a coesão social através da imposição de um

conjunto de regras destinadas a resolver os conflitos entre os indivíduos. A

aplicação da justiça está condicionada pelas instituições jurídicas, portanto, é

necessária a análise autônoma (mesmo que de forma relativa) dessas

instituições. (HESPANHA, 1982)

OBJETIVOS

Este trabalho pesquisou as práticas jurídicas medievais portuguesas no

reinado de D. Pedro I e suas conseqüências políticas na sociedade lusitana. O

reinado de Pedro I foi singular em relação à política jurídica central, em

processo de monopolização e centralização do poder régio em detrimento do

enfraquecimento da nobreza.

Os objetivos consistiram em análises conjunturais com especial atenção

nos estudos das instituições medievais portuguesas. Analisamos a instituição

“justiça” no processo de centralização política que acompanhou o reino de

Portugal. Por outro lado ainda, o estudo pretendeu discutir como a justiça e a

sua aplicação eram apreendidas pelos segmentos da nobreza, do clero e das

camadas mais baixas da sociedade.

Este trabalho pretenderá contribuir com a historiografia existente acerca

do rei D. Pedro I partindo do problema de como a justiça de seu reinado se

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mostrou na prática, mas não se esquecendo de verificar as construções teóricas

do direito medieval que influenciaram as concepções do rei e dos juristas de sua

época.

Com o intuito de mapear a influência da política jurídica do rei D. Pedro

no processo de monopolização e centralização da casa real portuguesa, esta

pesquisa poderá contribuir nos estudos sobre o período singular da história

ibérica que foram os dez anos em que o rei D. Pedro I governou.

METODOLOGIA

A documentação conhecida sobre o período em diálogo com uma

bibliografia atualizada nos ajudou a formular uma síntese sobre a problemática

levantada. Apesar do reinado de Pedro I ter sido relativamente curto (10 anos),

a documentação reunida e publicada deste período não nos impediu de levantar

reflexões a respeito das opções de governo tomadas por este rei. (PIMENTA,

2005)

Segundo Marc Bloch, no estudo da História devemos transformar a fonte

em documento para, em seguida, transformar o documento em problema.

Seguimos os preceitos deste autor em termos de pesquisa, que consistem na

observação, na crítica e na compreensão mediante hipóteses levantadas perante

a observação dos documentos. (BLOCH, 2002)

As fontes analisadas para a elaboração do trabalho compõem-se de

crônicas, documentos de chancelarias e documentos avulsos publicados em

estudos sobre o tema. Destaque para os livros Cortes Portuguesas: Reinado de D.

Pedro I, Chancelarias Portuguesas, Ordenações Afonsinas e Crônica de D. Pedro I,

documentos que reúnem materiais sobre o recorte temporal apresentado na

pesquisa.

De fundamental importância para o tema se encontra uma edição única

das Cortes de D. Pedro. Os capítulos destas cortes retratam queixas e respostas

régias para as Cortes de Elvas de 1361, que segundo Armindo de Souza, fizeram

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refletir os antagonismos de grupos concebidos hierarquicamente, pois as leis e

os privilégios lusos coexistiam de forma contraditória. Nas Cortes, o clero, a

nobreza e o povo demonstraram certos descontentamentos em relação à política

régia. (SOUZA, 1993)

Os documentos apresentados nas Cortes de D. Pedro estão divididos da

seguinte forma: clero: 33 artigos; nobreza: 2 artigos; povo: 90 artigos; capítulos

especiais de Coimbra: 39 artigos; de Évora: 8 artigos; de Lisboa: 4 artigos; de

Montemor-o-velho: 6 artigos; do Porto: 15 artigos; de Silves: 8 artigos; de Torres:

9 artigos. (PIMENTA, 2005)

Deve-se ter o cuidado de compreender que os portadores às Cortes eram

porta-vozes dos indivíduos que votavam nas jurisdições de vereadores e,

portanto, não eram imparciais em suas leituras. A crítica a ser feita a estes

documentos revela que esta imparcialidade de representação está

fundamentada no jogo de interesses que perduraram nas Cortes de Elvas de

1361. (PIMENTA, 2005)

Nas Cortes, nem todos estavam representados. Havia descontentamentos

tanto ao nível do clero e da nobreza como ao nível do povo. Fica evidente a

disparidade entre uma realidade romântica acerca do reinado de Pedro I e as

limitações reais que o monarca teve de enfrentar no campo político e jurídico.

(PIMENTA, 2005)

Na consulta de outra fonte, também de volume único, temos a Chancelaria

de D. Pedro I. É através da chancelaria que conhecemos as respostas que o rei foi

emitindo para resolver as questões concernentes às Cortes, como também

respostas para questões dirigidas do povo ao monarca. (SARAIVA, 1988)

Há uma certa distância entre as reclamações emitidas ao rei pelas Cortes

e as respostas régias, pois inevitavelmente houve distorções entre as queixas

chegadas e os diplomas emitidos (pelo rei ou por quem o rei mandou escrever).

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Carvalho Homem1 dividiu os documentos de forma a facilitar o entendimento

dos assuntos decorridos. (PIMENTA, 2005)

A chancelaria está dividida de forma tipológica, incluindo 14 tópicos.

Para o tema, cabe ressaltar o tópico 10 do grupo tipológico denominado de

Fazenda, que foi a fiscalidade2. Segundo o documento, o monarca cobrou, isentou

ou arrendou direitos que possuía. Este documento é válido nas análises sobre a

relação tributação/centralização que a casa real vinha promovendo no reino

português, sendo mais um instrumento nas políticas jurídicas do reino

português. (PIMENTA, 2005)

O tópico 12 do grupo tipológico Administração Geral, chamado de defesa, é

um documento importante para a análise do processo de centralização e

monopolização da justiça nas “mãos” da casa real controlada pelo rei. Segundo

este documento, foram entregues a alcaides guardas de castelos, mediante

pactos de defesa destes senhores tendo em vista os interesses do rei. Esta

atitude, além de controlar os descontentamentos da nobreza, subordinava esta

classe ao rei. Outro tópico importante do documento foi à autorização sobre

armas de fogo que o rei poderia conceder. (PIMENTA, 2005)

Para finalizar, tem o grupo tipológico denominado justiça, que inclui

sentenças sobre jurisdições e sentenças sobre bens. Ainda no campo jurídico

temos as ordenações, documento em que se distinguem feitos civis e deveres do

rei, servindo para estudos nas relações teóricas e práticas da justiça no reinado

delimitado. As ordenações dão respostas que o povo fez chegar ao monarca.

(PIMENTA, 2005)

Na crônica de Fernão Lopes sobre D. Pedro, fonte narrativa datada de

1434, foram dedicados dois capítulos à temática. O capítulo IV, “da maneira que

el-rei Dom Pedro tinha nos desembargos de sua casa”, e o capítulo V, “De algumas

cousas que el-rei Dom Pedro ordenou por bem de justiça e prol de seu povo”, foram

1 HOMEM, Armando Luís de Carvalho. O Desembargo Régio (1320-1433). Porto, Centro de História da Universidade do Porto/Instituto Nacional de Investigação Científica, 1990. 2 Chancelaria de D. Pedro I, 1984; p. 272 e 400

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importantes para a pesquisa, pois revelam o caráter de “justiceiro” que D. Pedro

assumiu enquanto governante. (LOPES, 1967)

As fontes narrativas tiveram importância nestes estudos. Ao analisar um

documento deste tipo, tivemos o cuidado de levar em consideração os

interesses pessoais de quem os escreveu. Segundo Marcella Lopes Guimarães, a

Crônica de D. Pedro é a fonte narrativa de maior importância para se conhecer o

monarca aqui referido. (GUIMARÃES, 2004)

Para a elaboração das crônicas, Fernão Lopes utilizou como fontes uma

documentação arquivista e dados da tradição popular. O autor constatou que as

boas leis do reinado de D. Pedro I deveriam ter a perspectiva de uma prática

cotidiana, só assim para separar estas das “más leis”, que apenas funcionariam

no papel. (GUIMARÃES, 2004)

Na Crônica, 23% do texto tratam especificamente da justiça. É este um dos

assuntos de maior importância do livro e que se prende exclusivamente ao rei

D. Pedro I. Nestes escritos, Fernão Lopes trabalha com uma discussão acerca

dos casos representativos de atuação do rei, assim como a preocupação que o

monarca tinha em relação às leis. (GUIMARÃES, 2004)

Segundo as crônicas, grande parte da intervenção de Pedro I na justiça

devia-se a questões morais, como regras para casados, amantes e clérigos. Há

também argumentações em relação à pena capital, em que o monarca era a

favor. Os textos relacionados à justiça revelam a preocupação não só em relação

às leis teóricas, mas como essas seriam aplicadas na prática. (GUIMARÃES,

2004)

Somente a análise da aplicação do direito pode nos dar uma imagem

“fiel” das instituições no período medieval, pois a distância entre a justiça

legislada e a praticada era grande no período do rei D. Pedro I. As dificuldades

de comunicação e transporte criavam modalidades “clandestinas” de práticas

contrárias à lei, práticas proibidas mas ainda freqüentes entre a população.

(HESPANHA, 1982)

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Nestas diferenças entre teoria e prática, tomamos cuidados em não

generalizar as intenções jurídicas de D. Pedro I tornando-as como universais.

Importante foi um estudo bibliográfico sobre a realidade social portuguesa para

melhor compreensão das fontes, sempre analisadas de forma crítica.

DESENVOLVIMENTO

Ao estudar o processo de centralização que ocorreu em Portugal na baixa

idade média pelo viés jurídico institucional do rei D. Pedro I e de como a

população portuguesa sentiu na prática a monopolização jurídica por parte da

casa real, começaremos o trabalho elucidando algumas conceitualizações a

respeito da noção de “Estado” que vigorava no período que compreende a

baixa idade média no reino de Portugal.

Na idade média pode-se afirmar que o vínculo político da principal

autoridade detentora do poder e os súditos se estabeleciam por uma noção

concreta de laços pessoais. A pessoa que governava um reino possuía ao mesmo

tempo o exercício e a propriedade do poder. Portanto, falar em “Estado”

medieval é concebê-lo como uma prática em que prevalecia o exercício do poder

político por meio da dependência pessoal. Na idade medieval os laços sociais

individualizados prevaleciam enquanto ordem social. (BURDEAU, 2005)

Diferentemente do que ocorreu na Idade Moderna, a noção de Estado

não se aplica ao período de Pedro I. Segundo Mattoso, no século XIV o Estado

era uma idéia abstrata que não atingia a maior parte da população. Apesar da

nação portuguesa existir de fato, a sua idéia não estava inserida no imaginário

coletivo, de modo que apenas o estrato populacional próximo do poder político

obtinha esta consciência. (SOUSA, 1993)

Aquela ausência de uma vinculação política geral e direta entre o rei, o território do reino e a sua população impediam, portanto, que se falasse, nesta época, de Estado, pois este

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conceito, tal como hoje é entendido, consiste precisamente num vínculo político único e geral, ligando a população de um território a um centro político. (HESPANHA, 1982, p. 108)

Seria inconcebível a justiça do rei D. Pedro I sem um estudo aprofundado

da realidade histórica da sociedade portuguesa do século XIV. Ao passo que a

justiça foi considerada função do rei, deve-se ressaltar as instituições políticas e

econômicas que no contexto da época se solidificavam ao tempo em que se

centralizavam, passando do controle senhorial para o controle da máquina

administrativa real. Os soberanos gradualmente passaram a perceber que, além

do poder político e econômico, a justiça era uma forma de afirmar e aumentar a

autoridade. Por conseguinte, muitos reis passaram a alargar os seus tribunais

para exercer maior controle sobre os senhores feudais. (STRAYER, 1969)

O princípio da justiça se sustenta em normas morais e jurídicas.

Moralmente, a norma indica o que é “justo”, cujo princípio pode ser tanto uma

regra social como uma lei formulada por um legislador. Juridicamente, o

objetivo social exige que a regra da “justiça” seja obedecida. (BURDEAU, 2005)

Na época medieval a justiça “moral” significava acepção de ordem social

e equilíbrio entre grandes e pequenos. O rei justo era o rei que, através do

mecanismo real, promovia a justiça social, zelava pela paz, punia quem

abusasse dos camponeses e garantia o respeito pela propriedade. A justiça era

por excelência a virtude dos reis, em que o retrato do rei ideal reafirmava a

necessidade de que esse fosse justo.

Na idade média havia uma enorme distância entre o direito legislado e o

direito praticado, fato agravado pelas dificuldades de comunicação, transportes,

pela dispersão social do poder e da força e pelas deficiências políticas e

administrativas dos reinos. Ignorar estes fatores e encarar o conceito de justiça

do período de Pedro I como algo superior à realidade social e, portanto,

separado desta, nos remeteria a idéia de justiça do positivismo e do

jusnaturalismo, doutrinas que descrevem a realidade como momentos

estranhos à essência do direito, em que o conceito de justiça seria apenas o

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objeto externo da regulamentação jurídica. Na Idade Média as leis escritas eram

consideradas apenas fontes de direito, não sendo necessariamente as mais

importantes. (HESPANHA, 1982)

Para entender melhor o modo de organização do poder político

medieval, devemos destacar a personalização dos vínculos políticos, em que a

fidelidade pessoal se confundia com a dominação política. O direito não era

caracterizado, como hoje, pela generalização, mas pela individualização.

(HESPANHA, 1982)

Analisando o recorte historiográfico da longa duração do sistema feudal

inicial (séc III ao séc XIV) temos o período de formação da estrutura jurídico-

política. As relações abstratas Estado-cidadão, típicas do mundo antigo,

cederam lugar à relação senhor-vassalo. O direito geral foi substituído pelos

costumes locais e pelas normas jurídicas especiais, sem no entanto perder a

influência do direito romano. O caráter público da autoridade (que conhecemos

nos dias de hoje) se confunde com a propriedade, delegando um caráter de

natureza privada ao poder medieval. (HESPANHA, 1982) O poder judicial era

disperso entre o rei, os senhores de terras e senhores municipais. Essa dispersão

era característica dos sistemas políticos feudais, em que a mistura dos poderes

obrigaram os monarcas a lutar pela unificação dos reinos para melhor

concentração de força. (SOUSA, 1993)

As lutas entre o rei e os senhores davam-se tanto por motivos de

afirmação do poder civil (no caso dos embates contra os senhores eclesiásticos),

como por motivos de autoridade central, em que as instituições estatais

poderiam vigorar dentro dos domínios senhoriais, em vista que os senhores

laicos podiam ser controlados em casos matrimoniais ou em casos de violência

material (guerras). Na época estudada não ocorria ainda uma luta entre Estados

ou nações e sim uma luta entre a casa do rei e senhorios rivais, marcando uma

fase em que a predominância era da “iniciativa privada”, fazendo com que

essas guerras estivessem sujeitas à dinâmica social inerente a uma luta entre

unidades que competiam livremente entre si. Tanto na alta como na baixa Idade

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Média, as relações de dominação entre o rei e a nobreza eram empurradas pela

violência física, pela disputa de terras, poder e domínio. Essas disputas de

poder se configuravam além de questões econômicas, sendo

preponderantemente políticas e jurídicas. (ELIAS, 1990)

A casa real lutava para obter um poder geral que lhe proporcionasse

fazer cumprir um direito comum. Com a centralização da administração, um

código jurídico comum foi sendo estabelecido. Esse direito promulgado possuía

força menor do que o direito consuetudinário, que na época “representava” o

poder de Deus, enquanto que o outro representava o arbítrio do ser humano, ou

seja, leis feitas pelos homens. (ELIAS, 1990)

A política monárquica visava à criação de medidas que tirassem das

mãos da Igreja e da nobreza as funções que cabiam ao monarca e que o

legitimassem, lhe auferindo as autoridades necessárias para o controle das leis e

a aplicação da justiça. A política de legitimação necessita de mecanismos de

poder, como a autoridade, que pode ser considerada a virtude reconhecida a

alguém, pela sociedade, de interpretar e dizer os interesses, caminhos e destinos

dela, sociedade, de modo imperativo, absoluto. (SOUSA, 1993)

Na baixa idade média, as políticas dos reis portugueses vinham em

embates contra o poder da nobreza pela afirmação da autoridade para transferir

os monopólios políticos, jurídicos, sociais e econômicos dos senhores feudais

para a administração central. A coroa passou a exercer seu poder frente às

classes feudais, entre outras coisas, na forma da cobrança de impostos, em que o

aparato jurídico-político deveria fornecer instrumentos que legitimassem esta

função tributária. (HESPANHA, 1982)

Como governante, D. Pedro I apenas cumpriu seu papel de orientação da

vida coletiva, papel que cabia ao rei no período estudado. Como representante

de uma instituição, D. Pedro I deveria usar o poder a ele concebido para

garantir o equilíbrio político da sociedade que governava. Suas tendências

pessoais poderiam influenciar na condução do reino, mas estas estavam

subordinadas às funções que o rei deveria desempenhar.

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O homem que ocupa o centro deve sempre manter o equilíbrio entre

grupos interdependentes que se contrabalançam, independentemente de suas

tendências pessoais. (ELIAS, 1990)

Os governantes podem influenciar a idéia de direito; o conhecimento que têm dos problemas da vida política, o cuidado que devem ter com o bem comum do grupo criam-lhes um dever de esclarecer a opinião pública, de fazê-la compreender a necessidade de certas medidas que, à primeira vista, pareceriam indesejáveis e, assim, rever a idéia de direito aceita. (BURDEAU, 2005, p. 44)

D. Pedro I estava assentado numa estrutura de poder cuja observação

histórica nos fornece as bases de que o rei (governante) possui um poder que

permanece estável, estando este (poder) acima da figura de quem o exerce.

(BURDEAU, 2005) No reino de Portugal, a totalidade do poder não estava

concentrada na pessoa do governante, pois o poder central não deixa de possuir

a própria autonomia, independentemente do uso que o governante faz dela.

O reino de Portugal ainda não possuía uma constituição compreendida

como nos tempos modernos, mesmo assim, o governante só poderia exercer a

autoridade que lhe era delegada, autoridade alicerçada pela instituição central.

Apesar do reino português estar em processo de centralização política, o

soberano deveria estar subordinado à lei, não tendo qualificação para agir senão

na medida em que servisse à instituição. As ordenações legislativas da época

eram o mesmo que o estatuto da instituição criadora de legitimidade, fazendo

com que as vontades dos detentores do poder se subordinassem às leis,

fornecendo ao reino a base estável sem a qual a função governamental ficaria a

mercê dos governantes. (BURDEAU, 2005)

O processo de centralização política do reino de Portugal que garantiu as

bases da política jurídica de D. Pedro nos remete ao ano de 1248, época da

chegada ao poder do rei D Afonso III. Seu reinado foi caracterizado pela

acentuação do processo de transformação do reino em Estado, pois havia muito

tempo que o rei deixava de ser apenas um senhor feudal em meio a tantos

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outros. As máquinas administrativa, fiscal, judicial e legislativa foram

aperfeiçoadas. O rei D. Afonso III orientou seus esforços para a restauração da

estabilidade do reino, de modo que seus principais feitos políticos oscilaram

entre a contenção das agitações sociais, a regularização de determinados

direitos devidos pelo clero e pelos municípios e a organização dos processos

judiciais.

O governo de Afonso III foi marcado por uma abundante produção

legislativa, marcando a edificação de um primeiro ordenamento jurídico-legal.

(HOMEM, 1999) Até este vigente rei a justiça do reino, de caráter privado, sofria

influência da nobreza senhorial. D. Afonso III promoveu mudanças na relação

central com os tribunais locais, em que os súditos da Corte passaram a poder

apelar contra estes exercendo maior contato da “máquina do rei” com a

população local dos senhorios. (FERNANDES, 2000)

A política de fortalecimento da monarquia de D. Afonso III descontentou

setores do clero, pois o processo de centralização política não pôde conceder os

privilégios que este reivindicava, como isenção dos tributos extraordinários

exigidos pelo rei a todas as ordens. As promessas de submissão do reino ao

papa não se verificaram na prática e constantemente se apresentavam queixas

do clero português a Roma. (FERNANDES, 2000)

O rei que sucedeu D. Afonso III foi D. Dinis (1279-1325), que manteve a

política de subordinação do clero ao poder central. Neste processo, em que a

monarquia fortalecida se impunha cada vez mais aos interesses da Igreja, houve

a possibilidade de D. Dinis aperfeiçoar a jurisdição de sua política, cujos

reflexos foram sentidos na prosperidade econômica do reino.

D. Afonso IV, filho de D. Dinis, chegou ao poder em 1325 após uma

guerra civil em Portugal motivada pela sucessão do trono. Os Conselhos,

interessados na volta da justiça, apoiaram o príncipe. As camadas populares

também apoiaram D. Afonso apoderando-se de algumas povoações. O conflito

pela volta da justiça no reino foi um reflexo dos privilégios que o progresso

econômico proporcionou à nobreza. Como a idéia de justo remontava ao

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equilíbrio entre as classes, a população portuguesa viu-se sufocada pelo

fortalecimento aristocrata e aderiu ao príncipe D Afonso IV. A guerra civil

portuguesa excedeu os limites de uma disputa de sucessão para dividir o reino

pelo clamor da justiça social. (SARAIVA, 1988)

O Estado deve estabelecer uma igualdade na justiça, uma igualdade de direitos. No contexto social da época, isso significa que o Estado deve realizar uma igualdade na defesa dos direitos quer da burguesia (comerciantes) ascendente quer da velha nobreza (...) no real poderio deve haver um único poder e uma única justiça, igual para todos. (COELHO, 1967, p.25)

Foi neste reinado que a justiça progressivamente se centralizou nas mãos

da casa real, pois o aumento do número de juristas na Corte absorvidos de um

espírito centralizador produziu uma vasta obra legislativa que teve grande

influência do direito romano. Os juízes nomeados pelo rei aos poucos foram

substituindo os juízes locais nomeados pelos Conselhos, culminando na

definitiva proibição no regimento dos corregedores da justiça privada, passando

para as mãos do rei as práticas jurídicas. (SARAIVA, 1988)

Na prática, a designação dos órgãos jurídicos se mostrou através da

nomeação pelo rei de juristas, legisladores e juízes, que aliados a uma política

de centralização jurídica, permitiram que a autoridade central pudesse

concretizar a monopolização que almejava.

Uma das faces mais importantes da produção cultural, entre os séculos

XII e XIV, foi indubitavelmente a reflexão jurídica. Armados com a disciplina

fornecida pelo redescoberto direito romano, os juristas não se limitaram a

recuperar conceitos. Repensaram o direito costumeiro, que poderia ser chamado

de lei quando aprovado pelo consenso dos poderes do Estado, assim como

também ordenaram e codificaram as normas comuns e construíram respostas

para problemas novos. (KRITSCH, 2002)

A preocupação com a justiça nesta época era o mesmo que igualdade

jurídica, no sentido de igual tratamento entre as elites e as classes populares. As

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principais medidas tomadas no governo de D. Afonso IV foram:

A reforma do modo de actuação parlamentar dos deputados do povo (1331); A reforma da administração da justiça (juízes de fora e corregedores - 1331 e 1332-1340); Medidas inovadoras na organização do desembargo régio (1331-1340); reformas da administração concelhia (cerca de 1340); Repressão de abusos senhoriais (1331, 1334, 1335, 1341 e 1343); Medidas sociolaborais (1349). (SOUSA, 1993, p.487)

No governo de D. Pedro I (1357-1367) a máquina judicial foi

aperfeiçoada. Seu governo foi marcado pela centralização da justiça que se

acentuou no reinado de D. Afonso IV. A política continuou com a escolha dos

juízes pelos Conselhos, bem como a proibição da participação dos clérigos nos

mesmos. No plano municipal, o serviço militar obrigatório passou a ser

financiado com o dinheiro dos nobres. Os cavaleiros-vilãos puderam andar

armados e com seus cavalos por todo o reino sob administração do rei. Na

política pelas liberdades civis, nenhum súdito pôde ser preso sem a confirmação

de sua culpa, coibindo assim ações arbitrárias dos detentores da justiça.

(COELHO, 1967)

Em relação à aristocracia, a política de Pedro I se diferenciou da política

de D. Afonso IV. As medidas de D. Pedro se caracterizaram pelas ações de

ponderação perante os nobres. Tal política de “apaziguamento” com a nobreza

teve como finalidade torná-la cada vez mais dependente do poder central.

D. Pedro I deu continuidade a um conjunto de ordenações de enorme

alcance legislativo em relação ao governo de D. Afonso IV. Ambos os

governantes deram provas de uma eficiente atuação legislativa, em que as

práticas jurídicas foram modernizadas para atingir maior articulação do poder

central com os senhores locais e os Conselhos. (PIMENTA, 2005)

Analisando as medidas de seu reinado, podemos discutir como estes

conceitos se traduziram na prática, pois segundo Jacques Le Goff, houve

progresso das práticas e das instituições judiciárias na baixa idade média, fato

que pode ter influenciado na política portuguesa, apesar da dificuldade em

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estabelecer de forma rígida o quanto o reino de Portugal acompanhou as

mudanças do restante da Europa. (LE GOFF, 1989)

A justiça “pública” estava em estágio avançado no período de D. Pedro I.

Medidas como a adoção do direito romano com as tentativas de tornar os

julgamentos mais rápidos se aliaram ao fato de a “justiça” neste momento estar

sempre buscando almejar a “verdade”. A garantia processual alicerçada em

bases escritas, de forma que as provas documentais se sobressaíssem sobre as

provas testemunhais, foi mais uma evolução observada na estrutura jurídica

portuguesa referente tanto ao reinado de D. Pedro I como aos reinados de D.

Dinis e D. Afonso IV. (CAETANO, 2000)

Os crimes eram julgados na presença do monarca. A imagem que ecoa na

memória historiográfica é a de um rei justiceiro, apoiado pelo povo e que feria

cruelmente os supostos criminosos para lhes arrancar confissões. Segundo

Fernão Lopes: “Pois deste rei achamos escrito que era muito amado de seu povo, por o

manter em direito e justiça, desi boa governança que em seu reino tinha, bem é que

digamos” (LOPES, 1967, p.52)

As crônicas escritas por Fernão Lopes, grande admirador crítico de D.

Pedro I, exaltam a política interna do monarca, destacando a “justiça” e a função

de executor jurídico que este rei exercia. Fernão Lopes estabeleceu uma teoria

do conhecimento racional, em que a justiça foi analisada de forma laica,

revelando certa inspiração nos escritos de Aristóteles. (COELHO, 1967)

No prólogo da obra, o cronista declarou que “a justiça é necessária ao

povo e ao rei, sem ela não há sossego em nenhuma cidade ou reino”. (LOPES,

1967, p.42) Este pensamento revela o pensamento de alma, cabeça e coração do

povo, em que o rei deveria guardar o direito, a verdade, a justiça, a paz e a

concórdia. Para Fernão Lopes, a voz do rei é também vivificante para a lei que

só pode viver por meio dele. O rei deve fazer valer a lei. (GUIMARÃES, 2004)

Baseado nestes princípios, o cronista escreveu as Crônicas de D. Pedro I

em 1434, portanto, após a época em que viveu o soberano. Segundo Fernão

Lopes, D. Pedro I exigiu imparcialidade dos juízes no reino português, como

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também os aconselhou a fugir da cobiça para não cair em corrupção. Em época

marcada por transformações jurídicas, não era difícil de imaginar que alguns

procuradores utilizavam práticas contrárias à política “justa” e em benefício do

povo que o rei D. Pedro I acreditava, pois segundo o cronista, os juízes

“prolongavam os feitos como não deviam” e “levavam de ambas as partes, ajudando um

contra o outro”. (LOPES, 1967, p. 54) Nas crônicas de D. Pedro I, não é possível

desvincular a obra “científica” do autor com suas concepções ideológicas, em

vista que Lopes defendia os interesses do Estado português. No que tange à

justiça de D. Pedro I, escreveu Fernão Lopes:

Amava muito de fazer justiça com direito e assim como quem faz correição andava pelo reino; e visitada uma parte não lhe esquecia de ir ver a outra (...) Foi muito mantedor de suas leis e grande executar das sentenças julgadas (...) cá não achamos enquanto reinou que a nenhum perdoasse morte de alguma pessoa nem que a merecesse por outra guisa, nem lhe mudasse em tal pena por que pudesse escapar a vida. (LOPES, 1967, p.46)

Fato significativo no reinado de Pedro I foram as Cortes de Elvas, em que

discussões sobre a necessidade de se voltar ao direito estabelecido pelo rei D.

Afonso IV nas Cortes de Santarém são restabelecidas, em vista que D. Pedro I

restringiu o poder dos Conselhos. Nas Cortes de Elvas, o que provocou

divergências entre D. Pedro I e os setores envolvidos foi o estabelecimento da

pena capital aos advogados que interferissem nos Conselhos. Essa medida do

rei reforçou seu papel de árbitro da nobreza, exprimindo uma certa resistência à

mentalidade “burguesa” que se formava em Portugal, pois os Conselhos

queriam maior liberdade dos advogados para que aprendessem “ciência”

visando aumentar a produção no campo. (COELHO, 1967)

Lutas de poder entre o rei e parte da nobreza de um lado e as

organizações municipais de outro deram o tom das Cortes de Elvas, que podem

ser encaradas como momentos cruciais no reinado de D. Pedro I, pois serviram

como termômetro no campo interno da alta hierarquia portuguesa. Apesar das

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divergências entre os poderes envolvidos nessas Cortes, foi confirmada a

habilidade de D. Pedro I em manejar com o jogo da política e com o jogo de

poderes que permeiam a governabilidade de um reino, justificando a afirmação

de Fernão Lopes de que nunca houve em Portugal dez anos como aqueles em

que governou D. Pedro. (COELHO, 1967)

A frase de Fernão Lopes pode parecer exagerada, pois Portugal já vinha

em um processo de lutas nobiliárquicas visando à centralização política. As

Cortes de Elvas exprimem um período confuso em que fica difícil determinar o

espaço de atuação entre os poderes locais e centrais.

O povo de nível local que não estava perto do centro político seguia

parcialmente o que a lei mandava. A coerção se dava de maneira virtual, ou

seja, a lei era concebida como “ameaça”. É difícil determinar se a justiça local era

antes de tudo uma síntese do direito consuetudinário aliado às influências da

justiça central controlada pelo rei, pois não está bem delimitada a idéia de que

as apelações que se podiam fazer para o soberano eram um direito ou um dever

concedido à população das classes menos privilegiadas socialmente. (DUARTE,

2004)

O povo se queixava da extrema lentidão da justiça, dos custos para se

obter os serviços jurídicos e da “máfia” dos advogados. D. Dinis e D.Afonso IV

tentaram resolver a situação, porém sem sucesso. Segundo uma ordenação de

D. Afonso IV, os vencedores do pleito saíam prejudicados no final,

comprovando que quem ganhava as causas não era quem tinha razão e sim

quem exercia maior poder, fato que desencoraja os súditos a procurarem a

justiça. (DUARTE, 2004)

O grau de instrução e engajamento político dos súditos é que

estabelecerão a forma de dominação do soberano, pois a idéia de direito não

pode ser posta em prática sem a aceitação do meio social. (BURDEAU, 2005)

Como no período a instrução, a cultura erudita e a conscientização

política não estavam ao alcance da população mais baixa, era pequeno o extrato

social que recorria à justiça proporcionada pelo rei. Muitos não sabiam ler e

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escrever e se apegavam com maior rigores à tradição popular do que às

ordenações jurídicas. As dificuldades de comunicação entre o poder central e os

súditos locais agravavam esta situação. (DUARTE, 2004)

Independentemente das queixas que chegavam à D. Pedro I, este pouco

tinha o que fazer, pois a sociedade portuguesa (como o contexto europeu)

estava divida em ordens moldadas pelas relações de fidelidade. D. Pedro I só

teria condições de governar se acaso obtivesse certos apoios de grupos que

possuíssem o poder. (PIMENTA, 2005)

As relações conflitivas do rei com a nobreza tiveram sua máxima

expressão nas Cortes de 1361. D. Pedro queria manter a relação de dependência

da nobreza em relação ao poder real, concedendo privilégios sem aumentar no

entanto o seu poder, pois os nobres reclamavam da interferência do poder

central em seus domínios, muitas vezes interferindo nas funções que cabiam aos

juízes do rei. (PIMENTA, 2005)

A política de equilíbrio que regia a sociedade encontrou em D. Pedro I

um esforço para afirmar a autoridade do poder régio enquanto força reguladora

dos três poderes. Para impedir o poder da nobreza, o rei impediu a criação de

novas honras e deixou transparecer certa relação de benevolência, em que a

máquina central deixaria de utilizar o poder judicial em terras senhoriais

sempre que precisasse manter o equilíbrio e a dependência dos nobres.

(PIMENTA, 2005)

Portanto, o manejo do rei Pedro I em lidar com as relações de poder da

sociedade portuguesa, sempre com o objetivo final de aumentar o poder central

para monopolizar de fato as práticas judiciárias, tonificaram este curto reinado,

de apenas 10 anos de duração, estes que foram cruciais para a construção do

poder central real, subordinando os diferentes poderes a apenas um núcleo, o

rei, árbitro da sociedade.

CONCLUSÃO

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Estudar os conflitos entre os poderes que vigoravam na época nos faz

ressaltar os pressupostos teóricos que davam suporte ao monarca. Por fim, é

válido analisar o porquê da função real neste momento estar se laicizando e se

centralizando, como é de suma importância analisar a ideologia que dava

suporte a estas práticas régias.

O rei era o mais alto senhor do território português, imbuído de um

direito natural no qual estavam sujeitos todos os súditos. Estes deveriam exercer

seus deveres perante o monarca em troca do pacto da proteção. Os deveres do

rei basicamente eram a chefia militar, a realização da justiça, a proteção da

Igreja e o desenvolvimento do território. (CAETANO, 2000)

A realização da justiça era uma obrigação fundamental da realeza, de tal modo que o rei que a não cumprisse era considerado indigno da função (...) Fazer justiça é um dever de amplo conteúdo que inclui a paz do rei, a proibição de vinganças, a repressão dos malfeitores e o castigo das injustiças. (CAETANO, 2000, p.207)

Este texto pretendeu enfocar o lado institucional das práticas jurídicas

medievais no período demarcado. Foi mais coerente priorizar a conjuntura

política da época do que conceituar sua estrutura. Mas isso também não

significa que o conceito de justiça medieval não tenha tido sua importância, pois

os reis usaram de bases teóricas para legitimar suas práticas.

É válido o estudo que compreende o final da Idade Média, época

marcada pela centralização política e pela mudança para uma mentalidade de

caráter “burguês”. As transformações deste período fizeram refletir por muitos

séculos na Europa e, ainda hoje, não há diferenças significativas nas

demarcações políticas da Península Ibérica em relação ao período

compreendido em nossa pesquisa.

REFERÊNCIAS

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24

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