Processos Grupais e o Plano Impessoal

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA MESTRADO EM PSICOLOGIA

PROCESSOS GRUPAIS E O PLANO IMPESSOAL: A GRUPALIDADE FORA NO GRUPO

Janana Mariano Csar

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Henrique Passos Pereira

Niteri-RJ 2008

Janana Mariano Csar

PROCESSOS GRUPAIS E O PLANO IMPESSOAL: A GRUPALIDADE FORA NO GRUPO

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Psicologia.

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Henrique Passos Pereira

Niteri-RJ 2008 II

Janana Mariano Csar

Processos grupais e o Plano Impessoal: A grupalidade fora no grupo

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Henrique Passos Pereira Universidade Federal Fluminense

_____________________________________________________ Prof. Dr. Andr do Eirado e Silva Universidade Federal Fluminense

______________________________________________________ Prof. Dr. Maria Elizabeth Barros de Barros Universidade Federal do Esprito Santo

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AGRADECIMENTOS

Ao compadre Eduardo, que me acolheu com sua boa orientao e generosidade. Fico admirada e muito agradecida por sua capacidade de espera, de no dizer o que, talvez, j soubesse e eu ainda precisava intuir, permitindo-me tempo, um tempo precioso entre um encontro e outro. E ainda por seu companheirismo, fundamental para que eu entrasse em orientao e para que pudesse construir este trabalho.

A Andr do Eirado que tem me ajudado muito desde os primeiros encontros ainda em Vitria, e que foram to importantes que continuaram a reverberar pelos anos seguintes.

A Regina Benevides pela disponibilidade em nos fazer companhia nesta banca final, tambm por tudo o que pude aprender com suas apostas nas experincias grupais e ainda hoje em seus desdobramentos em outras terras.

A Beth que sempre me acolhe com alegria e com apostas. Presena marcante em sua voz forte, posio afirmativa, seu abrao caloroso. E eu agradeo muito por t-la tido por perto durante a graduao e por poder partilhar deste trabalho que tambm fruto de outros que j fizemos juntas.

A Soninha, amiga to querida, que quanto mais chego perto mais admiro. Agradeo muito pelo contgio da alegria em fazer grupo ainda l nas salas de aula. Agradeo ainda mais por tantos bons momentos juntas. Mesmo que nos prendam uns vinte anos juntas confio que haver sempre muito ainda a compartilhar.

A Luciano por todo amor e cumplicidade.

Aos grupos todos, fundamentais no exerccio desta dissertao. sanga, por ensinar como a prtica da compaixo e da alegria faz surgir sonhos coletivos. Ao grupo de superviso/estgio pelo nascimento conjunto e, sobretudo, pelo acolhimento. Ao grupo de atendimento pela oportunidade preciosa de partilha da vida. Ao nosso interminvel grupo de pesquisa pelas

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apostas coletivas e laos de amizade que nos faziam unidos. A nossa turma de mestrado onde pude fazer maravilhosos amigos.

Aos amigos que no esto em grupo algum, porque atravessam todos eles. E ainda confraria querida que na despedida me presenteou com a primeira passagem Niteri, em sinal de carinho e apoio. A Paula que me deixou compartilhar de uma casa boa e calma nos ltimos meses de trabalho. A Paola, em quem sempre pensava ao escrever, acreditando que era nossa a alegria em encontrar sadas. A Alex, amigo j de tantos anos, que sempre me ligava pra perguntar se estava tudo bem. A Fabio pelo tempo bom que partilhamos, ns que fomos juntos e voltamos com o corao feito de bons encontros, inclusive o nosso.

A minha famlia, que queria sempre saber como tudo andava e quando eu voltaria. Aos meus pais, Aloizio e Nanci e meus irmos Jussara e Julyano por terem me envolvido sempre de muito amor. Muito obrigada!

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RESUMO

Este trabalho problematiza inicialmente a experincia de sofrimento em nossos modos de vida atuais quando vivemos uma experincia de separao entre mundo e sujeito, entre mim e o outro. A viso separativa se fortalece na ignorncia do que nossa condio de existncia, tendo em vista que s existimos com o outro, pois estamos sempre em codependncia. Por isso tomamos como tema de pesquisa os processos grupais, na aposta de que a sua experimentao possa ampliar nossa viso a fim de vivermos a dimenso coletiva, de grupalidade, constituinte de nossas vidas. Fazemos isso na companhia de Foucault, Castaeda, Deleuze, Varela, Guattari, Lewin, e tantos outros autores que nos auxiliaram na feitura da escrita como um exerccio de si. Tentamos habitar a paradoxal experincia da grupalidade como um lado de fora no grupo. O que indica que h no grupo objetivado uma dimenso impessoal e coletiva. Mas, compreendemos ainda que o acesso a este plano processual que anima nossas formas de existncia se faz atravs de uma prtica tica de cuidado consigo, com o outro e com o mundo. O cuidado de si se apresenta como prtica de esvaziamento de um si identitrio e encontro com a alteridade.

Palavras-chave: grupo, coletivo, cuidado de si.

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ABSTRACT

Initially this dissertation problematizes the suffering experience in our current way of life brought by the cleft between the world and the individual, between my-self and the other. This separatist point of view grows strong in the ignorance of what is our existential condition, the fact that we are always in state of co-dependence. Because of that the subject of this research is the group process hoping that experiencing it can broaden our point of view so that we can live the collective dimension which composes our lives. We do that in the company of Foucault, Castaeda, Deleuze, Varela, Guattari, Lewin, and so many other authors whom helped us to write as an exercise of oneselfness. We tried to inhabit the paradoxal experience of groupality as an outsider in the group. This shows that there is in the group an impersonal and collective dimension. But, we understand that to access this processual plane which animates our existential ways is obtained through an ethical exercise taking care of oneself, taking care of the other and the world. Taking care of oneself presents it-self as an exercise of letting go of an identity of oneself and a meeting with the alterity.

Keywords: group, collective, care of oneself.

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O outro voc mesmo em um mundo diferente. Olhe-o com apreciao profunda.Lama Padma Samten

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SUMRIO

INTRODUO: antes, um pouco de fim.......................................................... O QUE ESTAMOS FAZENDO DE NS?........................................................ 1.1 As linhas de produo da vida...................................................................... 1.2 Os quatro inimigos no caminho do guerreiro .............................................. 1.3 Uma aposta nos grupos em meio aos perigos .............................................. 1.4 Modos de subjetivao: uma aposta tica .................................................... 1.4.1 Pequeno parntese (ver e dizer no a mesma coisa): a dimenso do saber..................................................................................................... 1.4.2 Fecha parntese: o entre-lugar de uma no relao: a dimenso do poder.................................................................................................... 1.4.3 Saber e poder... porqu subjetivao? ................................................ 1.5 Os perigos vividos: totalitarismo e privatizao .......................................... 1.6 A sada de um impasse: a dobra do fora ...................................................... 1.6.1 O que estamos fazendo de ns?.......................................................... 2 A GRUPALIDADE COMO DIMENSO RELACIONAL DE NOSSA EXISTNCIA..................................................................................................... 2.1 O cuidado de si e do outro: a constituio de um thos............................... 2.2 Uma forma de olhar : conhecendo o conhecer............................................. 2.3 Prtica de si: o cultivo da ao no mundo ................................................... 2.4 Figuras em frente ao espelho ....................................................................... 3 A GRUPALIDADE COMO UM LADO DE FORA NO GRUPO: UMA RELAO DE COMPLEMENTARIEDADE.................................................. 3.1 Afinal, o que um grupo?............................................................................ 3.2 O grupo em Lewin: uma dinmica que facilita a mudana.......................... 3.2.1 O grupo como um todo dinmico........................................................ 3.2.2 O grupo como facilitador de mudana................................................ 3.3 Guattari e as lutas antitotalitrias.................................................................. 3.3.1Coeficientes de transversalidade nos grupos: ampliao do grau de viso...................................................................................................... 3.4 O grupo so muitos, efeitos da grupalidade................................................. 3.4.1 Como fazer para que uma gota nunca seque?...................................... 3.5 Os grupos que nascem da co-emergncia: algumas cenas........................... 3.5.1 Cena 1 efeito placebo?: um caloroso debate................................. 3.5.2 Cena 2 - meia hora pra cada um, assim fica resolvido..................... 3.5.3 Cena 3 combatentes e aliados........................................................... 3.6 Um presente de infinito valor....................................................................... 3.7 Qual o som que surge de apenas uma das mos?................................... CONSIDERAES FINAIS.............................................................................

11 18 20 25 31 34 36 39 40 42 46 53

56 56 66 76 83

87 89 92 93 98 104 106 109 110 110 110 112 113 114 117 121 IX

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS...............................................................

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INTRODUO: antes, um pouco de fim

Somos cinco amigos, certa vez samos um atrs do outro de uma casa, logo de incio saiu o primeiro e se ps ao lado do porto da rua, depois saiu o segundo, ou melhor: deslizou leve como uma bolinha de mercrio, pela porta, e se colocou no muito distante do primeiro, depois o terceiro, em seguida o quarto, depois o quinto. No fim, estvamos todos formando uma fila, em p. As pessoas voltaram a ateno para ns, apontaram-nos e disseram: Os cinco acabam de sair daquela casa. Desde ento vivemos juntos; seria uma vida pacfica se um sexto no se imiscusse sempre. Ele no nos faz nada, mas nos aborrece, e isso basta: por que que ele se intromete fora onde no querem saber dele? No o conhecemos e no queremos acolh-lo. Ns cinco tambm no nos conhecamos antes e, se quiserem, ainda agora no nos conhecemos um ao outro; mas o que entre ns cinco possvel e tolerado no o com o sexto. Alm do mais somos cinco e no queremos ser seis. E se que esse estar junto constante tem algum sentido, para ns cinco no tem, mas agora j estamos reunidos e vamos ficar assim; no queremos, porm, uma nova unio justamente com base nas nossas experincias. Mas como possvel tornar tudo isso claro ao sexto? Longas explicaes significariam, em nosso crculo, quase uma acolhida, por isso preferimos no explicar nada e no o acolhemos. Por mais que ele tora os lbios, ns o repelimos com o cotovelo; no entanto, por mais que o afastemos, ele volta sempre (Comunidade in KAFKA, 2002: 112-113).

Comunidade no grupo de cinco, grupalidade no grupo. Como seria isso? Este grupelho de cinco que parece estar bem desse jeito, e que um sexto s faria atrapalhar... Parece que independente de ns estamos sempre cercados por outros seres, gentes, animais, plantas... Sem que necessariamente faamos essa escolha estamos nesse mundo e desde ento vivemos juntos. Sabemos que a vida solitria e independente impossvel. Para crescermos e nos desenvolvermos sempre fomos cuidados de alguma maneira, pelo ar que respiramos, pela terra, pelo sol, pelo vento... essa conjugao de foras e interdependncia entre os seres que torna a vida possvel. Mas, parece que isso no basta para nos acreditarmos juntos, para afirmarmos a dimenso de comunidade que nos sustenta. O grupo dos cinco no sabe bem porque esto ou permanecem reunidos, no se empenharam nesse encontro, no desejam se conhecer mais do que o pouco que se conhecem, no vem sentido nessa unio e, no entanto, optam por permanecerem juntos. Kafka nos faz ver um modo de se compartilhar a existncia muito prximo daquele que ns mesmos cultivamos na modernidade. s cegas vivemos juntos quase que sem querer, e ainda assim quando o grupo parece consolidado torna-se difcil abrir-se para mais um. Temos uma experincia de individualidade, de sermos unos e separados uns dos outros, e, ao mesmo tempo, parece impossvel a sustentao dessa suposta unidade, por estamos tambm 11

sempre em relao com outros seres. Como conviver com esse paradoxo, sem transform-lo em dualidade: uno x mltiplo, grupo x grupalidade? Os grupos se produzem nesse paradoxal funcionamento. Se em alguns momentos fecham-se sobre si buscando uma identidade que conforte, um arranjo que parea seguro, produzindo separaes entre grupos e grupos, grupos e indivduos, convivem, ao mesmo tempo, com a boa teimosia de um sexto, que entendemos como espao vazio de identidade dentro do prprio arranjo feito, produzindo e sustentando a impermanncia desses arranjos. que de fato h uma artificialidade nos grupos identitrios, pois no so predestinados s suas formas, no tm essencialidade inerente. So produzidos bem imagem kafkafiana: um desliza feito bolinha de mercrio e se junta a outro, e a outro, e a outro, e assim de repente, meio que sem que se tenha planejado exatamente, as pessoas em volta dizem: os cinco acabam de sair daquela casa, o que equivale a dizer: os cinco so um grupo. E assim o grupo se forma. Essa a artificialidade do grupo, que no existe desde sempre, mas que est sempre a se construir. Porm, podemos dizer ainda que h algo a de essencial, de no artificial, que tem nesse conto a qualidade do mercrio, da leveza desse deslizamento de uns a outros, que compreendemos como a prpria matria que possibilita o encontro, a produo do grupo, e que afirmamos como uma dimenso coletiva da existncia. Neste trabalho tentamos habitar essa paradoxal experincia, a da possibilidade de acessar no grupo essa dimenso de comunidade, de grupalidade, que indica outras maneiras de estar junto dentro das formas j h muito construdas em nossa sociedade. Inventaramos esse outro estar junto? Conseguiramos alcanar a nova frmula de felicidade? No, no bem isso o que constitui nossas apostas. Estar junto algo que sempre se fez nesse mundo. E viver em comunidade nessa direo que apontamos algo que tambm j acontece. Talvez, no seja aquela que receba mais investimentos, mas certamente porque de alguma maneira estamos juntos, que viver continua sendo possvel. Falamos de uma experincia grupal onde um sexto possa ser bem vindo. Mas, no porque esteja distante ou fora do grupo de cinco, mas, exatamente, por constituir o seu lado de fora, que desdobra a unidade ao infinito. Por isso falamos de um plano de grupalidade fora no grupo e no fora do grupo, para marcar essa diferena fundamental, que aponta no um binarismo fora versus dentro, mas a paradoxal experincia de um fora no dentro. Acolhemos este sexto como plano processual nas formas e identidades, que as anima e produz, que as desmancha ao sabor da impermanncia.

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Portanto, no que o grupo de cinco aparentemente bem consolidado precise ser abolido, ao contrrio, na ampliao de nossa viso apreciamos sua construo, seu surgimento e sua transitoriedade. O arranjo bem fechado do grupo produzido no desdobramento de um plano coletivo e impessoal. E se assim podemos dizer que a mais aparente solido, o arranjo mais compacto, guarda uma multiplicidade. que continuamos a acreditar que a prtica da felicidade est no coletivo (Guattari, 1981a). No acesso dimenso coletiva que habita o mundo. E que no pertence a algum estando para alm e aqum dos sujeitos, porque se faz na impessoalidade, na comunidade. quando conseguimos sair um pouco de nosso autocentramento, de nossos gostos e identidades ou ainda quando neles conseguimos acompanhar as linhas processuais de produo. Em nosso quotidiano, na vivncia nos grupos, na experimentao da clnica, percebemos que muito do sofrimento que sentimos tem relao com nosso autocentramento, com a busca e apego por algo que nos d permanncia, com o distanciamento do outro, inclusive do outro em ns, da grupalidade em ns. Acreditamos que esse sexto elemento pode nos ajudar nessa empreitada, j que neste trabalho o tomamos como um lado de fora que nos habita. E que por mais que o repelimos com o cotovelo ele sempre volta, por mais que o afastemos ele no nos deixa. H em ns um lado de fora das identidades construdas, do modo como nos vemos e vemos o outro, das coisas com as quais nos identificamos. Um fora prenhe de multiplicidade que nossa condio de existncia, e que por isso nos inseparvel. Um lado de fora no sofrimento e tambm no contentamento, em nossas convices e certezas, que faz possvel afirmar que cada porta j carrega em si sua chave, cada problema j traz em si sua sada. Trata-se, sobretudo, de uma aposta tico-poltica: a de refletir sobre o que temos feito de ns e na inseparabilidade da ao produzirmo-nos de outros modos, quem sabe, mais amorosos, alegres e solidrios. Acreditamos que viver essa dimenso do comum, de grupalidade, passa pelo acesso a este lado de fora e por cultiv-lo nas relaes conosco, com os outros e com o mundo. Estas so as apostas e aspiraes que movem essa dissertao, e tambm o fio necessrio para compreender o que se passa entre os captulos, o que os une. que de um captulo a outro parece no haver aquela linearidade confortante. No que no tenhamos tentado realiz-la, porm as pginas foram seguindo menos ao nosso planejamento inicial e mais aos acontecimentos que, de fato, possibilitavam a sua construo. Dizem que os melhores planos so aqueles que ainda no esto planejados, temos provado disso. Nos dois anos em que essas pginas esto distribudas as preocupaes e at mesmo as intenes com 13

relao ao texto foram ganhando tons diferentes a partir da descoberta de um livro ainda desconhecido, ou da releitura de um texto que trazia algo antes no visto, das questes ainda no inteiramente traduzveis em palavras que conseguiam s-lo, da vida que movimentava os grupos que habitvamos. E, talvez, seja sobre essa experincia que tentamos falar. O que faz com que ns, humanos, e todos os outros seres possamos viver uma experincia de diferenciao, e, ao mesmo tempo, de profunda conexo, fazendo com que nosso existir esteja sempre relacionado existncia de todos os outros seres? Qual o fio que nos une? O fio da vida, quela impessoal e infinita, que tambm o da liberdade e da alegria genuna. Quando iniciamos esse trabalho, antes mesmo da constituio dessa dissertao, nos perguntvamos como algumas experimentaes grupais poderiam disparar processos to potentes e outras se fazerem em um fechamento produtor de ainda maior sofrimento. Confusamente, pensvamos que no sendo o grupo um passaporte seguro para uma experincia coletiva, o que ento poderia s-lo? Havia a a necessidade de uma anlise das implicaes que nos moviam nos grupos e tambm nas lutas em geral por uma outra educao, sade, infncia, etc. Lutas sempre coletivas, mas vividas tambm como muito rduas, pesadas e s vezes solitrias. Quem sabe por conta do atravessamento dessas questes o primeiro captulo deste texto tenha como acento principal a experincia de um impasse. Impasse diante dessas lutas por um outro mundo e que so constantemente afrontadas por relaes de poder/saber investidas na modernidade em formas de controle sobre a vida. O impasse nos pede uma cambalhota, em Foucault, a dobra da subjetivao. E a entendemos onde mora o impasse. Este no est onde imaginvamos encontr-lo. No so as relaes de poder/saber, no a misria com a qual nos encontramos no CRAS1, no ainda a explorao e descaso com relao aos professores, tampouco as presses e intenso ritmo de trabalho vivido pelos bancrios. Sabamos no incio desse curso que vivamos uma qualidade de impasse, mas no sabamos ainda o quanto dele ignorvamos. O impasse reside na cegueira de nossa viso quando s enxergamos o sofrimento, nas certezas de que ao trabalharmos com a subjetivao j superamos a viso cartesiana, dualista e de crena na

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Aqui citamos alguns trabalhos que realizvamos antes da entrada nesta ps-graduao: o trabalho com comunidades consideradas em vulnerabilidade e/ou risco social atravs do CRAS (Centro de Referncia da Assistncia Social), as pesquisas sobre sade do trabalhador no ensino pblico da Grande Vitria - ES, as experimentaes grupais vividas no sindicato dos bancrios do Esprito Santo.

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realidade das coisas. O impasse est no efeito de paralisao produzido por uma viso que d realidade e solidez aos problemas e sofrimentos. O que quer dizer que a liberdade tambm no reside onde supnhamos, no est em se libertar das condies de explorao, do controle ou da pobreza, viso que por sua vez a torna algo a ser conquistado, sendo relegada a um futuro. O flego que buscamos, portanto, no reside em uma nova estratgia de luta, sequer reside na possibilidade de luta, mas na compreenso de que enquanto a viso do sofrimento que vivemos e com o qual trabalhamos sustentar-se como slido e permanente, estaremos comprometendo nossa liberdade de ao, j presente em ns. Ver e refletir sobre o impasse, como assim o descrevemos, o apego a ns mesmos e ao mundo, um passo importante, mas no o suficiente, porque a compreenso nos d nova motivao, mas ainda no efetiva liberdade, apesar de dela ser efeito. Por isso nos encaminhamos a uma prtica de cuidado de si e do outro, temtica de nosso segundo captulo, a fim de alcanarmos a produo de um mtodo. E a, novamente, novos paradoxos nos acompanham, pois se em algum momento fizemos tanto esforo para o questionamento das disciplinas, da obedincia a mtodos endurecidos, agora usamos de mtodos para trabalhar nossos arraigados funcionamentos. Necessitamos de disciplina, sobriedade e dedicao para trabalharmos nossos corpos j disciplinados, nossos gostos bem definidos, nossos automatismos habituais. Diante dos perigos alertados por dom Juan (CASTAEDA, s/d): o medo, a clareza, o poder e o desgosto (cansao e desesperana), encontramos na experincia greco-romana o cuidado de si, que se desdobra como a constituio de um thos, o cultivo de uma viso aberta e encarnada, que aprendemos com Varela, e uma prtica, exerccios de si a fim de uma transformao de si, para o acesso a uma ao no mais centrada em ns mesmos. Diante de nossos impasses s nos cabe cuidar do cuidado conosco, com o os outros e com o mundo, para no sucumbirmos cegueira, ao cansao, falta de flego e de f. Essa a prtica tico-poltica imprescindvel para o alcance de uma leveza nas lutas, para uma viso mais lcida sobre nossas necessidades e as dos outros, para dispormos de meios de ajuda que no centrem-se em nossas certezas. A ltima parte deste trabalho se fez como tentativa de uma prtica, como um duplo exerccio, o de conversar com autores que parecem dspares, e aqui o dilogo se faz com Lewin em especial, e sua importante proposta grupal, e tambm de compartilhar cenas de uma experimentao grupal que d sustentao a este texto. Preciosos foram os encontros grupais

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nas supervises, orientaes, atendimentos, em sanga, que permitiram compartilhar as questes e viv-las enquanto sobre elas se escrevia. Tentamos, pois, nas formas grupais que a experimentao produzia acolher os funcionamentos identitrios, por vezes, sintomticos, e trabalhar neles, sem lutar contra, sem desqualificar, sem reclamar, tentando fazer da experimentao uma prtica de si, bem como compreender essa generosa oportunidade de estar nos grupos como possibilidade de transformao de modos de lutar que traziam o perigo da clareza e do cansao, para lutas mais leves e menos apegadas, mais prximas do outro, mais abertas ao dilogo, onde a guerra cessa e podemos ento fazer algo por ns, em ns, juntos, porque somente dessa maneira que existimos. Sabemos que nem sempre foi possvel, afinal, so muitos os hbitos arraigados e grande a responsividade diante das situaes, mas isso tambm se constitui como prtica. Ao longo do trabalho vamos compreendendo pois a qualidade deste fio que nos une a todos e que em um funcionamento paradoxal possibilita ao fiar da vida, dimenso informe, processual, sem identidade, sem nome, animar formas, identidades, modos de subjetivao em constante transformao. Dom Juan ensina a Castaeda (1974: 95) em um momento de impasse que acreditar na vida, em nossas tarefas, fcil, mas que para um guerreiro a questo ter de acreditar. Acreditar parece ser mais simples, porque isso o que fazemos de modo mais corriqueiro, com certa facilidade naturalizamos a vida. Mas, ter de acreditar, no o contrrio de acreditar, no descrer, e este o desafio. Um guerreiro como dom Juan sabe que as coisas no so, que no tm inerentemente algo de slido que as sustente, que a sua qualidade a mesma dos sonhos e, ao mesmo tempo, seu desafio ter de acreditar que existem, para que nelas, nas coisas, na vida, possa habitar. Ento ele acredita sabendo abandonar. Entendemos que acreditar demais produz uma crena muito slida que impede ou condiciona o movimento, mas desacreditar tambm no o ponto. O ponto parece ser esta experincia de estar fora no dentro, da grupalidade no grupo, um ponto, ao mesmo tempo, sem localizao fixa. E nele, para seu acesso, precisamos praticar. Os grupos nos parecem ento uma boa oportunidade para experimentar a feitura de ns mesmos na direo do outro, uma boa ocasio para vivermos outras relaes, uma boa prtica para compreendermos que o que quer que faamos de ns mesmos depende da construo conjunta que fazemos com o outro. O que fazemos de ns ainda uma aposta no que podemos fazer juntos. Por ltimo, gostaramos ainda de falar um pouco sobre o efeito dessa prtica que aqui se apresenta na escrita, na prpria experincia da escrita. Foucault nos diz que a escrita um 16

dos elementos, juntamente com a leitura e releitura do texto, de um exerccio de si. preciso sempre temperar a leitura com a escrita, altern-las, de modo que a escrita d corpo, corpus, quilo que a leitura recolheu. A escrita, portanto, assegura a produo de um corpus, que pode se constituir como preceitos para si. escrevendo, precisamente, que assimilamos a prpria coisa na qual se pensa. Ns a ajudamos a implantar-se na alma, a implantar-se no corpo (FOUCAULT, 2006b: 432). Mas, no somente essa a importncia desta prtica: o cultivo de si atravs deste exerccio. Mas, tambm o uso que se pode fazer daquilo que se escreve. Vemos nas palavras de Foucault que a escrita permite a quem escreve assimilar algo em sua prpria alma e ali tlo sempre disposio. Mas este apenas um dos usos, o outro possvel e simultneo, fazlo a servio do outro, para que o que se l, se pensa e se vive esteja tambm disponvel e sirva ao outro. Reside a a importncia da escrita: em uma troca de benefcios, nesta troca malevel de servios da alma em que ajudamos o outro no seu caminho para o bem e para ele prprio (FOUCAULT, 2006b: 433), na exata medida em que fomos tambm beneficiados por outros seres. Chegamos, ento, a este breve incio com uma aspirao: a de que este exerccio de escrita possa ser de algum benefcio para aqueles que o encontrarem tanto quanto foi para ns.

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CAPTULO 1 O QUE ESTAMOS FAZENDO DE NS?Foi mais ou menos dessa maneira, quando achvamos que ningum diria nada, que Elyne precipitou-se a falar, como se quisesse fazer isso antes que desistisse. Olha, eu sou muito tmida, no tenho facilidade para falar. Sofri algumas coisas traumticas nos ltimos tempos, no sei se vou conseguir falar isso no grupo. Queria saber se no seria bom fazer alguns testes, desses que v a personalidade, que eu j ouvi falar. Acho que estou meio sem identidade... at meu nome no sei mais como fala. s vezes me chamam de Elyne, outras vezes Elyne. Acho que o teste ia me ajudar a saber melhor quem eu sou. As palavras de Elayne encontraram muitas outras, que, provocadas, saram do silncio. Era Andria que dizia sentir-se assim tantas vezes! Joo Carlos que nos seus quarenta e poucos anos achava que j devia ser outro homem, estabilizado, responsvel, pai de famlia. Gouveia que no entendia o que sentia, vivia dificuldades no relacionamento com a esposa e as filhas... Elayne, Joo Carlos, Regina, Gouveia... traziam a desterritorializao, a destruio, o desmonte de alguns funcionamentos, algumas formas de vida e ao, que abalados sofreram movimentos de abertura, e que colocavam uma pergunta: Quem sou eu? (MARIANO, 2005: 21).

Ser o que se , voltar ao que j se foi um dia, busca interminvel por um eu perdido. Eu... Eu... Eu... Entendemos que a clnica debrua-se sobre o sofrimento produzido pelas maneiras como vivemos e percebemos o mundo. Dentre as muitas formas de expressar e de viver esses sofrimentos encontramos o quem sou eu?. E como lidar com essa questo que parece se desdobrar cada vez que nela se toca, como um buraco sem fim: De que sou capaz?; O que devo fazer?; O que fao para ser feliz?; O qu eu tenho?; Qual o meu diagnstico?. Mas, quem sabe, possamos ao invs de conjurar essa questo tom-la como pista que nos faz perguntar como ela se torna to importante nos dias de hoje e quais os efeitos dessa necessidade de se saber com segurana o que se . Compreendemos que o quem sou eu? pode nos ajudar a fazer uma modulao para uma outra questo: a de quem somos ns? ou o que estamos fazendo de ns?. A modulao pode ampliar nosso olhar fazendo mudar o foco em torno de cada um de ns para o que estamos construindo sobre ns mesmos e para todos ns. Chamamos ateno para esse ponto que levantamos: o da construo. Quando o foco vive essa mudana percebemos que tambm esse olhar construdo, e assim tanto o que chamamos de eu quanto a prpria prtica clnica pode ser problematizada. 18

Neste trabalho compreendemos a clnica no, exatamente, como uma especialidade, mas como uma experincia. E por isso, ao invs de perguntarmos onde se situa podemos, conforme Passos e Benevides de Barros (2004), perguntar o que pode a clnica? ou o que nela se passa. Entendemos dessa maneira que se h uma localizao para essa experincia sempre no plano de imanncia, de produo da existncia, o que por sua vez continua a deslocaliz-la, tendo em vista vivermos neste plano uma experincia de indiscernibilidade, de inseparabilidade entre mim e o outro, ou seja, de no localizao. Situar a clnica como atividade de consultrio ou de qualquer servio e/ou estabelecimento pois reduzi-la ao que j est objetivado, j dado, ou seja, exatamente, onde por definio, a clnica no conseguiria se realizar, j que sujeitos e objetos parecem bem separados e discernveis, onde os encontros j esto postos e parece no haver nada a ser feito. No que a clnica no possa a se fazer, nas objetivaes. Como tentaremos discutir ao longo deste trabalho, de fato, se h uma especialidade essa, a de trabalhar no com as formas, mas nas formas, alianando-se com o lado de fora nas formas, com seu processo de produo. A clnica, portanto, uma experincia que se faz na imanncia, essa a sua localizao ilimitvel e uma experincia cuja especialidade a de trabalhar nas formas, nos seus ndices ativos, intensificando as aberturas, produzindo-as em muitos momentos, em uma atividade irredutvel.

Forando sempre os seus limites ou operando no limite, a clnica se apresenta como uma experincia do entre-dois que no pode se realizar seno neste plano onde os domnios do eu e do outro, do si e do mundo, do clnico e do no clnico se transversalizam (PASSOS; BENEVIDES DE BARROS, 2004: 279).

A clnica se faz neste plano de indiscernibilidade onde sujeito e objeto so inseparveis. Uma zona ilimitvel, presente nas formas. A clnica trabalha com essa experincia de produo, sendo ela mesma produtora. Trabalha em um plano de encontro, no entre-dois, fazendo-se ela mesma como potencializadora de novos encontros. Portanto, entendemos que o exerccio clnico de olhar e perceber esse eu que atravessa nossas aes, o mesmo exerccio, que Foucault nos ajudar a desenvolver tambm sobre a histria, de compreend-la como produo, ou melhor, como processo instvel, lacunar, descontnuo. A clnica, ela mesma, to instvel e intempestiva quanto a prpria histria, justamente porque essa a matria de que se ocupa, este o plano que a inquieta e a produz, o plano de produo da vida. 19

Estudar neste trabalho sobre os processos grupais passa pela mudana de olhar que afirmamos. Estamos interessados em pensar como o grupo pode nos ajudar a refletir sobre nossas existncias e, ao mesmo tempo, contribuir para que juntos possamos experimentar desde j maneiras de viver mais felizes para todos ns. Pensar sobre o que estamos fazendo de ns pode nos ajudar a deslocar o eu de uma pessoalidade para afirm-lo na sua dimenso pblica. Pode nos apontar o fora de ns mesmos, afirmando nossa existncia como algo que diz respeito a todos ns, e que estamos juntos construindo. Essa a questo, portanto, que move esse captulo, e faz com que perguntemos sobre a produo de ns mesmos.

1.1 As linhas de produo da vida

Somos feitos de linhas, afirmam Deleuze e Guattari (2004: 66). Indivduos, grupos e sociedades so produzidos no entrecruzamento de linhas, que imbricadas trabalham, imanentemente, umas nas outras. Podemos at nos interessar por uma mais que por outra, mas elas esto sempre presentes, coexistem umas s outras e transformam-se mutuamente. A clnica, nessa direo processual que afirmamos, est interessada, exatamente, nessas linhas. Na diferena qualitativa que existe entre elas e que possibilita produzir a vida das mais diversas formas. (...) fazer mapas e traar linhas, marcando suas misturas tanto quanto suas distines (DELEUZE; GUATTARI, 2004: 109), essa a matria a que a esquizo-anlise se dedica, com a qual a clnica trabalha: as linhas que produzem a vida. E quais modos de vida tm nos atravessado? Quais arranjos as linhas tm podido construir? Quais polticas tm norteado a produo da vida? E que outras podemos ainda construir? Trs so as espcies de linhas: linhas de corte, linhas de fissura e linhas de ruptura. Porm, tal maneira de traz-las para a discusso no quer dizer que sigam uma ordem, ou que estejam em posio de importncia diferenciada. Toda produo engaja as trs linhas. As linhas funcionam qual olaria, essa nos parece uma boa imagem, usina de produo, em que um oleiro trabalha com uma matria prima. O mais curioso para ns que tanto nosso oleiro quanto a massa que tem diante de si so feitos da mesma matria inacabada e ilimitvel, novelos e mais novelos de linhas entrelaados. Nosso oleiro pura multiplicidade de foras, que sobre a massa trabalha, que com ela agencia-se. gua, calor, suor, cansao, entusiasmo, presso, as texturas das mos conjugam-se massa, s foras do processo de criao.

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E o trabalho comea, ou nunca termina... Vemos o oleiro manuseando a argila, massa amorfa, rica em linhas de fuga de ilimitvel potncia, que a depender do encontro com as foras em jogo e de como se compem com elas pode desdobrar-se em vrias formas. Mas, medida que o trabalho avana, que o encontro da massa com o oleiro se produz, as linhas flexveis travam suas lutas, e a massa modela o oleiro enquanto este tambm vai tentando dar forma a ela. H momentos na luta em que quase antevemos a forma que a massa pode ganhar, e, ao mesmo tempo, ainda no podemos afirmar inteiramente o que ir advir. ainda e sempre processo, de matria flexvel, que ora se conjuga forma, ganhando contorno, ora, novamente, desmancha-se ao sabor das foras. Mas, agora, depois de muito trabalhar, j nos possvel antecipar... tocamos a textura, os ngulos, vemos a altura, as propores bem definidas, as cores, e entendemos que da massa informe um vaso se forma, destes que podemos colocar gua, arranjar flores e com ele ornamentar a casa. Vemos a a ao de outra espcie de linha, as duras, que retirando os excessos, cortando o desnecessrio, vai produzindo uma forma-vaso, enfim, alcanada. O artefato definitivo? durvel? Pergunta a compradora... Se acompanhamos o vaso em seus usos vemos que o que parece j dado, conformado, nos cega para o que continua a se mover, linhas e mais linhas, das vrias espcies: de ruptura, de fissura, de dureza. Elas no pram de nele produzir arranhes, brechas, quebraduras, colagens, desgaste, e podem at destru-lo por fim. Mas, podem tambm, novamente, recriarem-se conectadas a outras sensibilidades, fazendo do vaso: jarra, panela, pea de jardim... Quem acha que a massa informe no est mais ali, ou que s h a dureza do vaso engana-se, pois a modulao nos mostra que h sempre inmeras foras engajadas possibilitando movimento e transformao. Tambm nossa existncia olaria, em que as trs linhas inscrevem-se e se pem a fabricar, a trabalhar. Voltemos a elas para compreend-las um pouco melhor. H uma linha, portanto, de segmentaridade dura, visvel e consciente, ocupada com o plano da molaridade, das formas constitudas. So linhas de corte e recorte de segmentos em que tudo parece contvel e previsto, o incio e o fim de um segmento, a passagem de um segmento a outro (DELEUZE; GUATTARI, 2004: 67). Somos segmentarizados por todos os lados e em vrias direes. Segmentados de forma binria, atravs de grandes oposies duais: homens e mulheres; pblico e privado; indivduo e grupo. Segmentados linearmente: numa mesma linha reta vivemos processos entrecortados, samos de um para j entrarmos no outro, bem maneira dos programas escolares (creche, pr-escola, primeira srie, segunda, 21

etc.), samos da famlia, vamos escola, da escola vida profissional. Somos segmentados, ainda, circularmente, crculos que se ampliam cada vez mais: minhas ocupaes, as ocupaes de meu bairro, de minha cidade, de meu pas, do mundo... (DELEUZE; GUATTARI, 2004: 84). As linhas duras se aplicam construo dessas segmentaridades, uma espcie de cristalizao existencial, uma configurao mais ou menos estvel, repertrio de jeitos, gestos, procedimentos, figuras que se repetem, como num ritual (ROLNIK, 1989: 27), que nos do a sensao de uma vida bem entendida, de sabermos bem quem somos, do que gostamos, onde estamos, um sentimento de familiaridade e de estar em casa, que funcionam como referncias para nossas aes no mundo. Esse efeito de tranqilidade e segurana torna-se possvel, porque essas linhas trabalham fixando afetos, organizando formas, dando ordem ao mais nfimo caos. Fazendo isso produzem no nvel mais endurecido a impresso de existncia de um sujeito, porque o que aqui est em questo a produo e manuteno de uma srie de hbitos, ritmos e gostos atravs dos quais nos movimentamos, reconhecemos e somos reconhecidos pelas outras pessoas. uma linha que atravessa toda a nossa vida, importante e necessria, que assim como as outras comporta tambm suas armadilhas e perigos. Mas s linhas duras juntam-se sempre linhas flexveis, moleculares, de segmentaes maleveis, que alcanam essa primeira linha liberando quanta de desterritorializao, abrindo micro-fissuras nos segmentos produzidos, buracos nas formaes endurecidas, ampliando os nveis de porosidade e abertura para outras formas de vida, para novas combinaes. Essa linha trabalha, portanto, silenciosamente, agitando e tremendo os segmentos que pareciam to bem feitos, recolocando em questo as decises j tomadas, a vida to bem construda. Atravs de movimentos inconscientes, responsveis pelas mudanas em curso, inapreensveis aos sentidos, a ao das linhas flexveis produzem, quando tudo parecia to certo, a sensao repentina de que algo acontece, mesmo que no saibamos ainda dizer o que , algo se faz em ns, que no conseguimos nomear ainda. como se de repente, subitamente, de um dia para o outro passemos a duvidar daquele amor que havamos declarado ao outro, ou de que aquela escolha teria sido mesmo a melhor a ser feita. O que, muitas vezes, no percebemos que as pontas de dvida, as incertezas, ou um jeito novo de andar, de olhar, j estavam em gestao, h um tempo sendo simulados imperceptivelmente.

De qualquer modo, eis uma linha muito diferente da precedente (...). nessa linha que se define um presente cuja prpria forma a de um algo que

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aconteceu, j passado, por mais prximo que se esteja dele, j que a matria inapreensvel desse algo est inteiramente molecularizada, em velocidades que ultrapassam os limiares ordinrios de percepo (DELEUZE; GUATTARI, 2004: 68).

No quer dizer que seja uma linha melhor que qualquer outra, trata-se apenas de polticas diferentes: macropoltica e micropoltica, forma e virtualidade, que caminham sempre juntas, entrelaadas. A macropoltica a todo tempo mergulha nas guas da molecularidade e esta tem seu curso muitas vezes pontilhado, alinhavado por esta outra. certo que as duas linhas no param de interferir, de reagir uma sobre a outra e de introduzir cada uma na outra uma corrente de maleabilidade ou mesmo um ponto de rigidez (DELEUZE; GUATTARI, 2004: 68). Essa tambm a ambigidade que essa segunda linha porta, pois no h previso, os arranjos dependero das negociaes constantes entre essas linhas, que podem produzir um endurecimento maior nas segmentaes ou podem se abrir para uma intensa desterritorializao. a que vemos ensaiar tambm as movimentaes de nossa terceira linha. Linha de fuga, esta ltima que apresentamos, mas fuga no como algum que se esconde de algo que teme enfrentar. fuga de pura positividade a caminho de outras possibilidades. O mundo foge de si mesmo por essa linha e se desmancha, buscando novos rumos. O que essa linha faz explodir as duas outras sries de linhas, fazendo-se linha abstrata, sem forma, sem segmentos. linha de ruptura, que alcana uma desterritorializao absoluta. Ruptura irrevogvel, sem retorno s antigas referncias. Uma ruptura algo a que no se pode voltar, que irremissvel porque faz com que o passado tenha deixado de existir (DELEUZE; GUATTARI, 2004: 72). como se perdssemos o rosto, as formas, os costumes. como se no fssemos mais os mesmos, como se fssemos ningum. Essa a potncia e tambm o perigo dessa linha: apagar os caminhos para os quais se poderia regressar, traar linhas rompidas, impossveis de serem capturadas como as outras. Como podemos observar as linhas tm uma relao ntima com os conceitos de territrio, desterritorializao e reterritorializao. Parecendo at mesmo cada uma delas ser responsvel por um mais que por outro processo. A noo de territrio, segundo Guattari e Rolnik (2005: 388), muito mais ampla do que os sentidos dados pela etologia, etnologia ou mesmo a geografia.

(...) o territrio pode ser relativo tanto a um espao vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente em casa. O territrio sinnimo de apropriao, de subjetivao fechada sobre si mesma. Ele o

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conjunto de projetos e representaes nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma srie de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaos sociais, culturais, estticos, cognitivos.

Falamos sobre processos de territorializao ao trazermos a discusso sobre as linhas duras. Um territrio fabricado pelas segmentaes, por cortes e recortes, que parecem distintos entre si, mas que, ao mesmo tempo, referenciam-se uns aos outros. Uma segmentao puxa a outra, produzindo um sistema fechado sobre si mesmo, de modo a no perturbar e nem dispersar, e sim produzir uma certa identidade. Porm, o territrio tem a possibilidade tambm de se desarrumar, de se desterritorializar. As falas de Elaine, Gouveia, Joo Carlos, Regina trazem a vivncia desses processos e so atravessadas por confuso e sofrimento. No consigo parar em emprego, no consigo economizar pra ter alguma coisa. Acho que j devia pela minha idade estar vivendo de outro jeito. Tenho trs filhas, uma menina de sete anos e um casal de gmeas de dois anos. O que eu fiz at agora da minha vida? Ser que eu sou s isso, uma mquina de ter filhos?. Hoje me acho muito agressiva. Eu sempre tratei bem a todo mundo, era educada, doce, agora parece que falo as coisas sempre agressiva. No gosto desse jeito de agora. Ser que no tem jeito de voltar a ser como era antes?. Parece que estamos sempre vivendo esses processos, e na clnica tornam-se ainda mais evidentes. Crises geradas pela exploso de territrios, de um jeito de ser me, de uma forma de ser marido, um objetivo no alcanado, uma dvida sobre algo antes to certo, que trazem angstia, desconhecimento, um sem cho, que muitas vezes, podem chegar a produzir paralisao e impotncia. Mas, o desfazimento de territrios, as brechas que neles se fazem podem tambm promover aberturas para a construo de outros jeitos de amar, de se relacionar, de lidar com as expectativas e com a vida. O processo de desterritorializao, podemos dizer, apresenta-se sob duas faces: movimentos de abertura de territrio, engajamento dele em linhas de fuga e at quebra de seu curso e sua destruio (FRANCISCO, 1995: 20), o que nos d duas possibilidades: mudar de territrio, atravs da liberao de quanta de desterritorializao, o que consiste numa mudana de forma, em se (re)territorializar de outra forma. Ou numa outra faceta a deterritorializao pode no assumir forma nenhuma e produzir uma ruptura absoluta provocando a destruio dos territrios. J a reterritorializao, nosso terceiro movimento, consistir, como dissemos, numa reconstruo de formas que sofreram desterritorializao. Mas, aqui importante fazer uma 24

diferenciao entre o movimento de produzir uma nova territorializao, o que significa produzir novos territrios, e o movimento de reterritorializao que, ao contrrio, produz uma sobrecodificao daquele territrio constitudo e abalado pela desterritorializao (OLIVEIRA, 2001: 21). Nossas sociedades modernas tornaram-se muito hbeis no manejo desses processos, investindo muito mais na substituio de territorialidades perdidas por uma

reterritorializao especfica (DELEUZE; GUATTARI, 2004: 90), que na produo de cdigos novos que possibilitariam outras maneiras de existir. essa engenharia que faz com que seja possvel o aproveitamento de cdigos que considerados revolucionrios numa poca servem muito bem, em outro momento, aos lucros e explorao, como a luta das mulheres por valorizao e independncia, que altamente aproveitada nos dias atuais pelas polticas do mercado de trabalho. As linhas de fora esto, pois engajadas e fazem possveis esses processos. s linhas de fuga ligam-se os processos de desterritorializao absoluta; s linhas de fissura, mais maleveis, conjugam-se desterritorializaes que esto sempre sendo compensadas com reterritorializaes, e as linhas molares engajam-se na segmentaridade, produzindo tambm territorializaes e reterritorializaes. Nenhuma dessas linhas , essencialmente, boa ou m. Deleuze e Guattari (2004) nos diro que o estudo dos perigos em cada linha e em seus arranjos que nos daro uma indicao para entender melhor seus movimentos.

1.2 Os quatro inimigos no caminho do guerreiro

Cada linha carrega consigo os perigos inerentes. Nos interessa aqui perceber, principalmente, como alguns deles podem se fazer presentes em nossos modos de vida atuais, alcanando tambm os processos grupais. Para isso, estaremos nesta unidade realizando um recorte especfico desses perigos na experincia de aprendizagem vivida por Carlos Castaeda2 e relatada em muitos dos seus livros. Castaeda, no encontro com Dom Juan, que viria a ser seu futuro mestre, era um estudante de antropologia empenhado nas pesquisas sobre plantas medicinais. Seu interesse2

Castaeda citado em alguns textos produzidos por Deleuze e Guattari, como nos captulos: Como criar para si um corpo sem rgos, e Micropoltica e Segmentaridade, este ltimo que trata do estudo dos perigos em cada linha, ambos encontrados em: Mil Plats 3 capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004. O que nos faz concluir que Castaeda, assim como para ns, constitui-se como um intercessor na obra desses autores. Acreditamos que a tica proposta atravs dos ensinamentos de Dom Juan pode nos ajudar nas anlises sobre os processos grupais.

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comea a mudar no momento em que fisgado por Dom Juan e pelos mistrios do caminho do guerreiro. quando muda os rumos de seus estudos, tornando-se aprendiz de feiticeiro. sob essa perspectiva, a do aprendiz, que Dom Juan alertar Castaeda sobre os perigos existentes no percurso que decide fazer, chamando-os, no entanto, de inimigos para o homem que se coloca nesse caminho. Quatro so eles: o medo, a clareza, o poder e a morte. Faremos ento uma relao de cada um deles com as linhas que estivemos descrevendo at agora. Dom Juan explica Castaeda que quando um homem comea a aprender no tem muita dimenso do que pode encontrar, pois seu propsito falho, sua inteno ainda incerta. Devagar ele comea o aprendizado, e logo fica confuso, desnorteado, porque o que ele aprende no era exatamente o que esperava, o que ele imaginava, e a comea a temer. Cada passo na aprendizagem leva a uma nova tarefa, faz viver algo desconhecido at ento, e nesse momento que o medo comea a crescer. O homem encontra ento seu primeiro inimigo natural. O homem que fisgado pelo Medo, o primeiro dos perigos, teme perder a segurana dos territrios existenciais, das identidades que construiu para si, que fazem com que ele se sinta em casa, que parecem dizer do que ele , que orientam sua ao. Por isso o medo nos impele para a primeira espcie de linha, as linhas duras. Apavorados nos seguramos em nossos territrios procurando por certezas, por algo que diga quem somos, que oriente nossa confuso. Podemos dizer que uma das conseqncias dessa entrega ao medo se aferrar s lgicas binrias e de dicotomizao produzindo um enrijecimento de territrios existenciais, de processos identitrios. Por medida de segurana nos enclausuramos em ns mesmos. Castaeda pergunta a Dom Juan o que se deve fazer diante do medo, como se portar diante desse inimigo.

__ A resposta muito simples. No deve fugir. Deve desafiar o medo, e, despeito dele, deve dar o passo seguinte na aprendizagem, e o seguinte, e seguinte. Deve ter medo, e no entanto no deve parar. esta a regra! E momento chegar em que seu primeiro inimigo recua (...). Aprender no mais uma tarefa aterradora (CASTAEDA, s/d: 90).

a o o

Vencer o medo traz autoconfiana e fortalece o propsito daquele que se coloca nesse caminho. O homem percebe que as identidades nas quais se via, com as quais se identificava, no dizem tudo o que ele , no so, de fato, o que ele pode ser. Para ele torna-se agora possvel embarcar em mudanas que podem trazer outras formas de viver. 26

Mas, quem consegue vencer o Medo e arriscar-se no desconhecido, no no sabido, na flexibilidade, encontra a seu segundo inimigo: a Clareza, uma clareza de esprito que apaga o medo, (...) mas tambm cega (CASTAEDA, s/d: 91). Este o perigo que concerne s linhas flexveis, onde tudo agora mais malevel produz uma viso aparentemente mais ampliada sobre os processos possveis. Essa mesma clareza produz uma arrogncia no aprendizado, uma sensao de que se consegue manejar bem essa transitoriedade, que j se sabe o que ir acontecer, uma falsa impresso de saber sobre processos que no acabam ali, que mal se v a ponta deles.

[A clareza] obriga o homem a nunca duvidar de si. D-lhe a segurana de que ele pode fazer o que bem entender, pois ele v tudo claramente. E ele corajoso, porque claro; e no pra diante de nada, porque claro. Mas, tudo isso um engano (CASTAEDA, s/d: 91).

a armadilha de uma percepo molecular, que revela os buracos existentes na segmentaridade, que faz com que vejamos naquilo que antes nos parecia to certo, to slido, movimentos incertos e paradoxais. E a h o perigo:

Vencemos o medo, abandonamos as margens da segurana, mas entramos num sistema no menos concentrado, no menos organizado, um sistema de pequenas inseguranas, que faz com que cada um encontre seu buraco negro, dispondo de uma clareza sobre seu caso, seu papel e sua misso, mais inquietantes que as certezas da primeira linha (DELEUZE; GUATTARI, 2004: 11).

O inimigo nesta linha produz certezas, valentia e coragem para lidar com processos, com terrenos incertos, menos identitrios. Mas, essa clareza no lucidez, pura soberba, que faz com que se perca a sensibilidade de entender quando esperar e quando avanar, podendo chegar ao ponto de se achar que j se sabe o que possvel saber, e neste caso nada desconhecido, no h mais nada a aprender. Esse no seria tambm um perigoso inimigo com o qual nos encontramos na prtica clnica? Para o terapeuta, que muitas vezes se aventura em acompanhar as linhas de foras, os perigos, inclusive, que residem em seus arranjos, a clareza um inimigo que est sempre a rondar, podendo apresentar-se como uma extremada autoconfiana em um saber sobre o outro e sobre ns mesmos. O perigo esse que Dom Juan nos ajuda a ver: preciso desconfiar de nosso suposto saber sobre os processos que vivemos na clnica. Nossa antecipao aos acontecimentos, nossa precipitao fundados em nosso saber, em nossa suposta clareza sobre 27

a vida, impede-nos de viver a experincia presente desse encontro na clnica, e, fundamentalmente, impede-nos de continuar aprendendo com o outro, conosco e com processo clnico. O homem que vence esse inimigo aquele que desafia sua clareza, usa-a somente para ver e espera com pacincia para agir. Lida com a clareza com cautela, como se ela fosse quase um erro, duvida de que saiba tudo, e, por fim, compreende que sua clareza s um ponto de vista, uma meia verdade, nada mais que isso. Quando o homem vence esse segundo inimigo, no tem mais medo de viver o desconhecido, sabe que qualquer identidade que construa para si mesmo no ser definitiva, e no se confunde com nenhuma delas. Ao mesmo tempo, seu destemor no faz com que ele se apresse ou se arrisque, sua clareza cautelosa. Mas, como est agora numa posio mais confortvel, em que nada o prejudica, em que se sente feliz e realizado pode ser apanhado por seu terceiro inimigo: o poder. Este perigo, o do poder, se faz nas duas linhas: nas duras e nas flexveis, ao mesmo tempo. quando o homem que venceu seus dois ltimos inimigos sente-se poderoso para saltar de uma linha a outra. Ele comanda; comea correndo riscos calculados e termina estabelecendo regras, porque um senhor (CASTAEDA, s/d: 92). Mas, seu poder tem limites. O homem deslumbrado pelo poder percebe que h um mundo de fluxos mutantes que lhe escapa, linhas que no pode controlar, que lhe fogem a todo instante. E esse se torna seu desafio: ao manejar bem as linhas de segmentaridade dura e as flexveis tenta deter tambm as linhas de fuga fixando-as novamente. Na vida a possibilidade de construir outros cdigos capturada de forma a ser reinvestida em processos de sobrecodificao, ou seja, num reinvestimento em cdigos j desgastados, na fixao de territrios que j no so funcionais, que j no trazem alegria e fora e que, no entanto, sofrem reterritorializaes. O perigo aqui o da produo de processos totalitrios, pois o homem vencido por este, que de todos o mais forte dos inimigos, torna-se caprichoso e cruel. Podemos dizer que o homem que se v poderoso est cheio de si mesmo. flexvel, paciente, pode fazer o que quiser, e no entanto apanhado exatamente a: o poder torna-se sua priso. O homem torna-se prisioneiro de si mesmo, j que se confunde com o poder. Acha que o poder o pertence, que a ele obedece, que pode manipul-lo como quiser. Acredita que tem o mundo em suas mos e que maior e mais importante que o prprio caminho de aprendizagem. Nesse sentido, acreditar que se poderoso parece ser mais uma ilusria identidade, um efeito de priso. Dom Juan explica que para vencer ainda este inimigo o homem deve 28

compreender que o poder nunca seu. Deve tratar, pois, o conhecimento adquirido com humildade e lealdade, s assim poder vencer. Temos ainda um quarto perigo. Deleuze e Guattari (2004) o relacionam ao Desgosto e Morte, s linhas de fuga. Os autores nos alertam que seria muito simples reconhecer as linhas de fuga como fontes de criao e mudana. E elas, de fato, tambm o so, porque conectadas a outras foras podem possibilitar construir a vida nas mais diversas direes. Porm, na ausncia de conexes essa linha ganha a possibilidade no de mutao, mas de destruio, de uma direo de abismo e arrazamento. quando ela perde essa capacidade de mudar que se torna mquina de destruio, produzindo linhas de abolio e morte. esse o arranjo das linhas que encontramos no nazismo e no fascismo, a produo de um corpo canceroso, um processo menos totalitrio e mais suicidrio. Aqui no se trata de colmatar as linhas de fuga, de dom-las e fix-las. Mas, de entregar-se a uma linha abstrata, sem rumo, disposta a ir ao abismo, morte. J Dom Juan aponta a velhice como sendo esse ltimo inimigo na jornada do saber. Talvez, possamos dizer que a velhice relaciona-se mais ao desgosto que morte. quando o homem no tem mais receios, no tem mais impacincias de clareza de esprito... um momento em que todo o poder est controlado (CASTAEDA, s/d: 93) e por isso mesmo sente uma irresistvel vontade de descansar, de retirar-se, de entregar-se s foras do abismo e esquecer. Para vencer ainda este inimigo Dom Juan diz que preciso compreender que a aprendizagem nunca tem fim.

Mas o homem comum no faz isso. O mundo nunca mistrio para ele e, quando ele chega a velhice, est convencido de que no tem mais nada porque viver. Um velho no esgotou o mundo. S esgotou o que as pessoas fazem. Mas, em sua estpida confuso, acredita que o mundo no tem mais mistrios para ele (CASTAEDA, 1971: 204).

O homem de conhecimento aquele que sacode seu cansao e enfrenta ainda este ltimo inimigo. Sua vitria est na experincia de que o mundo continua sendo misterioso. Quanto morte, Castaeda aprende com Dom Juan que no se deve tom-la como um inimigo, e sim como o nico oponente valoroso que temos. a morte que nos desafia a viver, tornando a vida uma arena de enfrentamento (CASTAEDA, 1988). E, por isso tambm ela nossa eterna companheira e sbia conselheira. H algo de muito interessante em ver a morte como uma conselheira, e que gostaramos ainda de considerar nesse ponto. De certa forma, todos os perigos/inimigos que 29

estivemos estudando fazem relao com a produo do que somos, nos levando a pensar sobre o modo como vivemos e as identidades nas quais nos movimentamos. Para Dom Juan a morte est sempre a um brao de distncia. Est sempre nos espreitando e far isso at o dia em que vier nos tocar. Mas, porque nos espreita, nos acompanha bem de perto, que pode nos ajudar no enfrentamento dos perigos que vivemos, se tivermos bons ouvidos para escutar seus conselhos. a morte que pode nos trazer lucidez para no sucumbirmos s prises que construmos na vida e a extremada auto-importncia que nos damos a maior parte do tempo. A morte nesse sentido positivada, por que, paradoxalmente, valora e afirma a vida.

A morte a nica conselheira sbia que possumos. Toda vez que sentir, como sente sempre, que est tudo errado e voc est prestes a ser aniquilado, vire-se para sua morte e pergunte se verdade. Ela lhe dir que voc est errado; que nada importa realmente, alm do toque dela. Sua morte lhe dir: Ainda no o toquei (CASTAEDA, 1972: 47).

Nada pode ser mais importante que esse toque e se a morte ainda no o fez h possibilidade de lidar com o medo, o poder, a clareza e a velhice e continuar no aprendizado. Ela nos aconselha sobre nossa viso de imortalidade, diz-nos que somos seres a caminho da morte e que sem essa aceitao nossa vida, nossos afazeres e o mundo em que vivemos so questes ingovernveis. Adverte-nos a no nos entregarmos s nossas mesmices e mesquinharias, a tomar cada coisa que nos acontece como um desafio, a fim de nos tornarmos dignos da vida que vivemos. Ren Schrer (2000), traz a questo da morte, como muito prxima da intensidade com que Castaeda a afirma. A morte como um acontecimento capaz de fazer com que a vida de um indivduo d lugar uma vida impessoal. somente pelo acontecimento (...), que as singularidades se liberam dos limites em que a pessoa individual as mantinha (SHRER, 2000: 23). Esse transe da morte relativo ao ego que desmorona. um ponto limite capaz de detonar singularidades, que no so nem pessoais, nem individuais, mas pr-individuais, prsubjetivas, intensidades e movimentos. O sujeito j no mais uma unidade-identidade, mas envoltura, pele, fronteira: sua interioridade transborda em contato com o exterior (JARDIM, 2004: 4). essa viso da morte como situao-limite, que pode liberar em ns uma vida impessoal. Todos os perigos que vimos fazem relao com nossa suposta pessoalidade, com nossas descries de mundo a partir do eu. O caminho da aprendizagem, portanto, no um 30

acmulo de saber a respeito de ns mesmos, e sim uma jornada de esvaziamento e desconstruo das prises que produzimos em nossas vidas.

1.3 Uma aposta nos grupos em meio aos perigos

Deleuze e Guattari apontam o perigo da morte/desgosto nas linhas de fuga como sendo de todos o mais temido. Porm, percebemos tambm que o terceiro, na configurao de um totalitarismo, um dos inimigos que mais temos enfrentado. Por isso nos perguntamos sobre a composio das linhas no contemporneo3, porque acreditamos que os perigos relacionados ao poder tm nos rondado produzindo regimes de aprisionamento de nossa viso, funcionamentos que tentam manter nossas existncias esvaziadas de mistrio, forjando condies e limitaes para o que podemos aprender, fazendo uma reterritorializao por vaso fechado, por confinamento, no artifcio do vazio (DELEUZE; GUATTARI, 2004: 104). Uma das conseqncias de se viver nessa direo a de que h uma imposio de processos de modelizao, que, cada vez mais, ofertam modos de ser pr-fabricados. Aparentemente, nos so abertas muitas possibilidades de ser e de viver, mas dentro de um campo pr-determinado. O que nos dificultado, de fato, a criao de modos novos de existncia. Expanso da existncia, nisso que consiste a aprendizagem de Castaeda (1971: 145): nosso destino aprender e sermos lanados em novos mundos inconcebveis. Para Dom Juan, o homem tem de desafiar e vencer seus quatro inimigos se quiser tornar-se um homem de conhecimento, sendo este o sentido da batalha. No entanto, apesar de no ser um caminho fcil, um caminho possvel para todos os homens que quiserem percorr-lo. Tratase de um caminho especial em que o homem que adquire essa disposio caminha com liberdade na busca pela conexo com processos de desindividualizao, de perda da forma humana4, a fim de ampliar seu olhar e ao no mundo.

Entendemos por contemporneo algo que no est determinado temporal e/ou espacialmente. O contemporneo uma experincia que segundo Passos e Benevides (2001: 90) convoca a nos deslocar de onde estamos, a pr em questo o que somos e a nos livrar das cadeias causais que nos tornam figuras da histria. O contemporneo , pois, um plano: plano de experimentao onde se constri a experincia do que somos e a possibilidade de seguir variando e construindo outros modos de vida, quem sabe mais alegres e potentes. 4 Vem em: CASTAEDA, C. O segundo crculo do poder. Rio de Janeiro: Nova Era, 2004. Deleuze tambm afirmar a libertao de uma forma-homem, quando diz que () dentro do prprio homem que preciso libertar a vida, pois o prprio homem uma maneira de aprision-la, em: Deleuze, G. Foucault. So Paulo: Brasiliense, 2005, p. 99.

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Lembramos ainda que no so as linhas os perigos, que no so elas nossos inimigos, mas a produo de certas maneiras de viver que seus arranjos podem promover. Podemos nos alianar com elas, no sentido de construir territrios porosos que nos permitam variar sempre, e a variao depende da abertura quilo que pede passagem para a constituio de outras sensibilidades. Segundo Dom Juan, faz parte do caminho do guerreiro romper com a certeza dogmtica de que todos partilhamos, de que a validade de nossas percepes, ou nossa realidade do mundo, no deve ser posta em dvida (CASTAEDA, 1972: 12). Essa atitude, em meio ao totalitarismo, de questionamento do que somos e da realidade que o mundo parece ser nos conecta com a dimenso da produo de ns mesmos e do mundo. Prestarmos ateno a nossos funcionamentos nos ajuda a sair da posio de folha ao sabor do vento: um guerreiro no uma folha merc do vento. Ningum pode empurr-lo; ningum pode obrig-lo a fazer coisas contra si ou contra o que ele acha certo (CASTAEDA, 1972: 121). Diante do peso da vida deve-se conquistar no a leveza de uma pluma indefesa que plaina a merc do destino, mas como dir Calvino (1990: 28), deve-se viver a leveza do pssaro, que essa mesma do guerreiro, associada preciso e determinao, comprometida com a ao. Lidamos, portanto, com as linhas do mundo. s atravs delas, aprendendo a manuse-las e a passear por elas, que se pode alcanar tal leveza. A clnica tambm est preocupada em acompanhar essas linhas, numa experincia que sempre de aprendizagem e experimentao. Em meio s sociedades contemporneas, que tentam de maneira intensiva produzir uma poltica de subjetivao, que toma o indivduo como forma totalitria de existncia, acreditamos que a grupalidade pode se constituir como uma aposta na leveza para se lidar com o peso do mundo, j que pode comportar, em tempos de individualizao, a experimentao de uma dimenso coletiva prpria das linhas. Os processos grupais nos parecem uma experincia rica e oportuna para a cartografia5 das linhas, na proposta de acompanhar seus movimentos e perigos, investindo nas foras disruptoras e construtoras de novas territorialidades. Acreditando que h sempre a possibilidade de arranjos novos a serem experimentados.

Cartografia: diferentemente de um gegrafo, comprometido com as formaes estveis e com a produo de mapas topogrficos, o cartgrafo acompanha a produo de territrios existenciais, em seus movimentos sempre provisrios e de transformao. algum que v a vida enquanto paisagem sempre em processo de mudana. O trabalho da clnica este, o de construir cartografias existenciais, acompanhando os arranjos das linhas (duras, flexveis, de fuga) naquilo que produzem, que atualizam, que dissolvem. Para cartografar preciso funcionar enquanto eremita, no apegado aos lugares fixos, mas sempre aberto a novas viagens, novos funcionamentos e novas paisagens. Sobre esse assunto ver FONSECA, T.M.G.; KIRST, P.G. Cartografias e Devires. A construo do presente. Porto Alegre: Editora da UFRJ, 2003.

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uma aposta nas foras que fogem em ns e que podem ser potencializadas no encontrar, no cuidar, no ouvir, no estar com o outro, e com a experincia desse outrem em ns. No quer dizer que seja simples, pois enfrentamos tambm nos grupos os medos, as clarezas, os poderes e as mortes perigosas. Vivemos um fechamento dos grupos sobre eles mesmos ou uma dificuldade de estar em grupo por se temer as prticas autoritrias e excludentes, que tambm os cercam. Solido e isolamento, inclusive e, principalmente, da grupalidade que habita cada um, que somos cada um de ns. Nos perigos de uma lgica totalizante a forma indivduo se espalha como modo de modelagem seja dos sujeitos, seja dos grupos eles mesmos. Aqui as linhas binarizantes fazem sua hegemonia, opondo indivduos (homem x mulher, criana x adulto, homo x hetero), opondo indivduo e grupo, grupos e grupos. Nesta lgica o sentido imprime-se quer sobre o indivduo dando-lhe a forma de UM, quer sobre o grupo, dando-lhe a forma de TODO (BENEVIDES DE BARROS, s/d: 147). So arranjos de linhas que colmatadas, aprisionadas numa certa forma de funcionamento produzem o grupo como sendo um grande indivduo, um outro Ser, distinto dos indivduos que o compem (totalidade) ou ainda o grupo como soma de individualidades (unidade). E assim, as dicotomias multiplicam-se indivduo x sociedade, indivduo x grupo. O grupo tomado como espao de experimentao, mas no de outras maneiras de estar junto e sim de um reforamento de hbitos de sociabilidade. Pensar o grupo nesta via o transforma em espao de preparao para a vida no socius, aquele que far a passagem do indivduo sociedade, de forma que cada grupelho deva, de certa maneira, fazer da sociedade uma soma de indivduos, fazer do indivduo produto da sociedade. nesse contexto, de aproveitamento e sobrecodificao das prticas grupais, que vemos acontecer um boom do fazer grupo, que movimenta: grupos teraputicos, de diagnstico, de trabalho, grupo em empresas, grupo de auto-ajuda. Mas, estariam essas prticas contribuindo para maneiras de viver menos privatizantes? Estariam comprometidas com o plano do coletivo, plano de diferenciao e multiplicidade?

Com efeito, o termo coletivo deve ser entendido aqui como que no sentido de uma multiplicidade que se desenvolve pra alm do indivduo junto ao socius, assim como aqum da pessoa, junto a intensidades pr-verbais derivando de uma lgica dos afetos mais do que de uma lgica dos conjuntos bem circunscritos (GUATTARI, 1992: 20).

A multiplicidade, apontada por Deleuze e Guattari, distingue-se do mltiplo, no sendo entendida como variedade ou diversidade. O mltiplo, segundo Oliveira (2001: 77-78) 33

est apoiado em um modelo derivado do uno se opondo a ele; j as multiplicidades no supem nenhum modelo, unidade ou totalidade. Existem somente linhas nesse plano de multiplicidade, plano do coletivo. A multiplicidade , portanto, variao nela mesma e comporta processos molares e moleculares: processos de criao de formas, maneiras de existir, que so propriamente processos de criao em vrios nveis; e potencialidades moleculares, virtuais, que excedem e no deixam a multiplicidade cair na diversidade numrica ou na pura molaridade. Nesse sentido, a multiplicidade pe em cena a diferena em constante processo de diferenciao (DELEUZE, 1998). Buscamos, portanto, uma clnica grupal, que possa se dar para alm das dicotomias e modelos, afirmando-se no na verticalidade/indivduo ou na horizontalidade/grupo/sociedade, mas na transversalidade6 onde no seja mais possvel ou necessrio a fixao de fronteiras separando saberes, impondo limites, delimitando o que seja o grupo. Buscamos, ao contrrio, a experimentao do que possa7 o grupo. Mesmo diante de todos os riscos e perigos essa dimenso da grupalidade, do coletivo, nos parece, em nosso tempo, constituir-se como possibilidade de uma tica guerreira, que pode estar engajada na produo de modos de vida singulares. Nossa aposta nas foras da grupalidade, que j existem e que fogem ao grupo totalizado e unificante, possibilitando abertura diferena e variao.

1.4 Modos de subjetivao: uma aposta tica

E quais estratgias podemos construir diante dos perigos da totalizao e da individualizao? Se buscarmos um olhar mais atento para nosso quotidiano veremos que as resistncias j se fazem, e que a prpria vida resiste sua modelizao. E, se mantivermos esse olhar perceberemos ainda a impossibilidade de dizer que sempre fomos os mesmos, ou que a vida sempre se fez da mesma maneira. Nossas linhas flexveis sempre se fazemTransversalidade um conceito proposto por Guattari em meio ao movimento da Psicoterapia Institucional na dcada de 60/70, que estudaremos ainda com mais cuidado neste trabalho. A transversalidade, ou coeficientes de transversalidade, funcionam como graus de abertura e anlise, e conjuram tanto as hierarquias, produtos de uma verticalidade, quanto as totalizaes e igualdades, frutos de uma horizontalidade. Ela tende a se realizar quando uma comunicao mxima se efetua entre os diferentes nveis e sobretudo nos diferentes sentidos (GUATTARI, 1981b: 96). A transversalidade produz um plano comum e heterogneo, onde se faz possvel sair de um si mesmo do indivduo e/ou do grupo para abrir-se a um processo de diferenciao e abertura desses sistemas. 7 Ver: PASSOS, E.; BENEVIDES DE BARROS, R.D. O que pode a clnica? A posio de um problema e de um paradoxo. In: FONSECA, T.M.G.; ENGELMSN, S. (Orgs). Corpo, arte e clnica. Porto Alegre, v. 1, 2004, p. 275-286.6

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presentes, sendo investidas tambm na produo de laos solidrios, de processos coletivos, de apostas na relao com o outro. Pensar o sujeito, para alm de si mesmo, perceber que a prpria vida aponta para a multiplicidade. A identidade mobiliza em um a multiplicidade que caracteriza a subjetividade (OLIVEIRA, 2001: 68). Percebemos em afirmaes como: esse coletivo, a voz do grupo ou no me sinto parte desse grupo, os mecanismos de individualizao. Mas, acreditamos que quando a subjetividade afirma-se como processo, mesmo a unidade e homogeneidade portam ndices ativos da multiplicidade. Por isso afirmamos no sujeito, sua dimenso de subjetividade; no grupo, sua dimenso de grupalidade. Foucault de alguma forma sempre trabalhou com essa dimenso da subjetividade, sempre esteve atento a essa temtica. No entanto, nos seus ltimos trabalhos, principalmente no Uso dos prazeres (FOUCAULT, 1984), que um aprofundamento sobre esse assunto vai se dar, mudando os rumos de suas pesquisas, mas no, exatamente, o sentido das mesmas. Deleuze (2005), na leitura de Foucault, entende que a subjetividade se constitui como uma terceira dimenso em seus estudos, sendo o saber a primeira e o poder a segunda. Dimenses da produo do que somos e de como nos constitumos. Interessava a Foucault, no estudo dessa dimenso terceira, analisar as prticas pelas quais os homens foram levados a prestar ateno a eles prprios, a se decifrar (FOUCAULT, 1984: 11), a proceder historicamente uma constituio de si mesmos como sujeitos. A histria sempre funcionou para Foucault como uma ferramenta de interveno e anlise. Mas, no no sentido de algo que pudesse trazer a verdade sobre o sujeito. H a uma desconfiana das origens, aprendida com Nietzsche, e a afirmao da histria como inveno. No poderia haver, nesse sentido, uma histria que fosse to pessoal a ponto de servir como deciframento do sujeito. A proposta de Foucault (1974: 10) :

Tentar ver como se d, atravs da histria, a constituio de um sujeito que no est dado definitivamente, que no aquilo a partir do que a verdade se d na histria, mas de um sujeito que se constitui no interior mesmo da histria, e que a cada instante fundado e refundado pela histria.

A partir disso, podemos pensar que afirmar o sujeito como um a priori dos acontecimentos seria limitar a potncia da histria, reduzindo-a aos limites de um sujeito, seria ainda reduzir o ser a uns poucos funcionamentos. No entanto, enquanto identidade, interioridade e pessoalidade que a subjetividade, muitas vezes, tem sido afirmada. Queremos 35

compreender, inclusive, quais os efeitos em nossas sociedades modernas dessa reafirmao constante da subjetividade como individualizada, funcionando separada de tudo o mais. Dissemos no incio que Foucault, em seus ltimos trabalhos, dedica-se de forma mais intensiva questo da subjetividade. Durante boa parte de sua vida houve uma grande dedicao em pensar o sujeito na recusa de uma teoria apriorstica, no sentido de pens-lo como algo j dado. Mas, essa dedicao estava em pensar o sujeito a partir do problema do saber e do poder. Seus investimentos possibilitaram explorar uma ontologia histrica dos homens nas relaes com a verdade, que possibilita a constituio de ns mesmos (FOUCAULT, 1997); e pensar uma ontologia histrica dos homens nas relaes com um campo de poder, que nos traz a possibilidade de nos constituirmos como sujeitos capazes de agir sobre outros (FOUCAULT, 1984a; 1987). O que faz, ento, com que Foucault necessite desenvolver em seus ltimos trabalhos a questo da subjetivao? No era desse tema que ele tratava todo o tempo? Aqui abrimos um parntese para entendermos um pouco melhor essa relao entre o saber e o poder. Nossa inteno no a de um aprofundamento nesse estudo, mas de buscar a importncia dessa relao, para pensarmos mais frente a questo da subjetivao na relao com a grupalidade.

1.4.1 Pequeno parntese (ver e dizer no a mesma coisa): a dimenso do saber A dimenso do saber uma preocupao dos primeiros trabalhos de Foucault 8, quando ele comea a perceber que algumas formas de saber como a biologia, a medicina, a psiquiatria, dentre outras, sofriam transformaes to profundas que no pareciam caber dentro de um esquema de desenvolvimento continusta normalmente admitido. As explicaes histricas para tais mudanas no pouco tempo em que aconteciam pareciam de fato no conseguir dar conta da importncia dessas transformaes. Para Foucault pareciam no ser historicamente pertinentes. Foucault (2006a [a]) d o exemplo dessa percepo em uma cincia como a medicina, que at o sculo XVIII tinha um certo discurso e que em 25 a 30 anos transformou-se profundamente, rompendo com proposies ditas verdadeiras que at ento eram formuladas e respeitadas. Foucault explicita que as transformaes se deram nas maneiras de falar e de

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Destacamos como fonte destes estudos em Foucault os livros: Histria da Loucura, As palavras e as coisas e Arqueologia do saber.

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ver e de todo um conjunto de prticas que serviam como aporte medicina. No foram novas descobertas simplesmente, mas a constituio de um novo regime no discurso e no saber.

Como possvel que se tenha em certos momentos e em certas ordens de saber, estas mudanas bruscas, estas precipitaes de evoluo, estas transformaes que no correspondem imagem tranqila e continusta que normalmente se faz? (FOUCAULT, 2006a [a]: 4).

Mas, mesmo nessa questo no o tempo que realmente importa, se foram rpidas ou no, mas a qualidade dessas mudanas. As transformaes apontam para uma modificao nas regras de formao de enunciados que so aceitos como cientificamente verdadeiros. No se trata de uma mudana de contedo ou da forma terica em que so expostos, mas do que rege os enunciados. Os enunciados no so as palavras, frases ou proposies, mas multiplicidades. Cada enunciado no uma estrutura e sim uma multiplicidade (DELEUZE, 2005). O que quer dizer que o enunciado anterior palavra, na medida em que a forma e a produz. Os enunciados remetem a um espao, um meio. esse espao que feito de multiplicidades e que possibilita s enunciaes produzirem frases e proposies. Esse espao Deleuze (2005) na leitura de Foucault distingue em trs fatias. Uma fatia de espao colateral que formado por outros enunciados que fazem parte do mesmo grupo, que se associam no por regras de homogeneidade e sim por regras de variao. Isso quer dizer que a associao entre os enunciados no se d porque se parecem entre si ou tm mesmo sentido ou mesmo contexto. Mas por uma variao inerente aos enunciados que faz com que ora aproximem-se e ora variem novamente e liguem-se a outros enunciados. Uma fatia de espao correlativo, que faz as relaes dos enunciados no mais com outros enunciados mas com seus sujeitos, conceitos e objetos. Os enunciados, por exemplo, implicados na prtica psicolgica remetem a terapeutas, pacientes, etc. A terceira fatia corresponde ao espao complementar, de formaes no-discursivas, que mais tarde sero chamadas de visibilidades. a relao com esse meio no-discursivo que possibilita aos objetos de enunciados aparecerem, ganharem visibilidade. assim que uma famlia de enunciados que diz respeito, por exemplo, ao direito penal, leis e infraes conjuga-se tambm a um meio visvel, priso, que faz ver o crime e o criminoso. O saber tem por objeto as multiplicidades. Segundo Foucault (1997: 206-207) o saber o campo de coordenao e de subordinao dos enunciados em que os conceitos se definem, se aplicam e se transformam. ainda aquilo de que podemos falar em uma prtica 37

discursiva. Na psiquiatria (sc. XIX), por exemplo, o saber o conjunto das condutas, dos desvios, das singularidades que se pode dizer no discurso psiquitrico. tambm o espao em que os sujeitos se apiam para falar dos objetos de que se ocupam em seu discurso. Ao falar, por exemplo, da medicina clssica o sujeito se apropria em seu discurso do conjunto das funes de observao, de registro, de deciso que produzem esse discurso mdico. Novamente, vemos que o que est em questo no exatamente o que falado ou visto, mas todos os acontecimentos que fazem possvel algo ser dito e visto. Nesse plano Foucault destaca, portanto, um regime de luminosidade, (o que visvel, observvel) e formas de enunciados (o que dizvel). As combinaes entre o visvel e o dizvel para cada estrato, cada formao histrica, so prprias de determinadas pocas. Cada estrato se produz em torno do que pode ser dito e visto em cada poca. O plano do saber, portanto constitui formas estratificadas atravs do que pode ser falado e do que pode ser observado. Faz, por exemplo, dizer delinqncia, faz ver priso. O visvel e o dizvel constituem formas, organizando e objetivando a matria. Mas, essa combinao no assim to simples. Definir qual arquelogo o que se pode ver e o que se pode dizer em cada poca no constitui tarefa fcil. J que como vimos os enunciados no so diretamente legveis nas palavras tampouco as visibilidades no que pode ser visto, nas coisas. preciso, portanto, conforme Deleuze (1992:120) pegar as coisas para delas extrair as visibilidades (..), do mesmo modo preciso rachar as palavras ou as frases para delas extrair os enunciados. A expresso rachar as coisas, ou as palavras no significa uma operao de desvelamento do que estaria oculto. No h nada por trs, nada escondido. Em cada poca o saber produz os limites do que pode ser visto e dito. A questo est em que h entre as duas formas do saber uma distncia. No o visvel que faz o que dito e vice-versa. No porque vemos a criana que rouba que dizemos imediatamente menino de rua. Ou ainda, no porque vemos pessoas reunidas que dizemos isso um grupo. No h correspondncia entre as duas formas.

por mais que se diga o que se v, o que se v no se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faa ver o que se est dizendo por imagens, metforas, comparaes, o lugar onde estas resplandecem no aquele que os olhos descortinam (FOUCAULT, 1995: 25).

Ver e dizer no a mesma coisa e, no entanto, agem uma dentro da outra todo o tempo. Mas, como podem ento se relacionar e participar da constituio de um mesmo plano, 38

o do saber? Deleuze nos diz que preciso buscar em outro lugar, fora das formas, a dimenso que tece um no outro, que possibilita um certo encontro. Aqui chegamos ento no ponto inicial de nosso parntese. esse entre-lugar que nos interessa, essa no relao, que possibilita a conexo entre as duas formas do saber e que feita pela dimenso do poder. o poder o elemento informal que habita esse entre-lugar possibilitando e produzindo as relaes entre as duas formas do saber.

1.4.2 Fecha parntese: o entre-lugar de uma no relao: dimenso do poder

Interessava a Foucault (2006a [a]) explicar o aparecimento dos saberes, exatamente, a partir das condies externas de possibilidade de emergncia dos prprios saberes. Como um saber nasce, quais os porqus de sua transformao, e principalmente a quais dispositivos de poder esto ligados. O saber no uma resultante dos acontecimentos, mas situa-se como elemento de um dispositivo de natureza estratgica. O poder relao de foras, e no uma forma. por ser fora, que o poder no pode ser possudo, tampouco localizvel, e que ao mesmo tempo pode se conectar com o saber. Foucault (1987; 2006a [b]) adverte que no se deve analisar o poder como algo intencional, no se deve perguntar quem detm o poder, e o que pretende com ele, mas abord-lo nas prticas reais em que se encontra investido. No se deve achar que o poder algo que sirva a uns e no a outros, como fenmeno de dominao que se exerce uns sobre os outros e pelo qual se deve lutar, j que o poder algo que circula, que funciona em rede. O poder passa pelos indivduos e eles mesmos so efeitos de poder. Se o saber, portanto constitui as formas relativamente rgidas que compem os estratos, por outro lado o poder, feito de relaes mveis e no-estratificadas que atravessam as formas de saber. O poder, portanto, exterior s formas e, ao mesmo tempo, imanente a elas. E esse carter imanente que possibilita que o ajustamento das duas formas tenha correspondncia e ao mesmo tempo varincia a partir de diferentes formaes histricas. A causa imanente Deleuze (2005: 46) nos ajudar a entender como algo que se atualiza em seu efeito e tambm que se diferencia em seu efeito. Causa e efeito coincidem, tm pressuposio recproca. por isso que os efeitos atualizam as relaes de foras, sendo elas mesmas sua causa. Os agenciamentos concretos da fbrica, escola, hospital atualizam as foras em suas relaes, em seus arranjos, produzindo funes, objetivaes (educar, trabalhar, cuidar) e, ao mesmo tempo fazem isso se diferenciando. A multiplicidade das foras s pode atualizar-se na medida em que se diferencia em processos binarizantes. 39

o diferencial das foras no pode integrar-se, a no ser tomando caminhos divergentes repartindo-se em dualismos, seguindo linhas de diferenciao sem as quais tudo ficaria na disperso de uma causa no-efetuada (DELEUZE, 2005: 47).

Vimos no estudo das linhas de foras que as linhas duras se exercem e se atualizam na produo de segmentaes, que podem ser de vrios tipos, e que atravs dessa segmentaridade que uma certa organizao e objetivao da matria difusa e catica se faz possvel, que mundos so criados. , exatamente, nesse movimento de repartio e dualismo que as duas formas do saber podem diferenciar-se, e ao mesmo tempo, imanentemente trabalhar uma na outra.

Temos antes que admitir que o poder produz saber (...); que poder e saber esto diretamente implicados; que no h relao de poder sem constituio correlata de um campo de saber, nem saber que no suponha e no constitua ao mesmo tempo relaes de poder (FOUCAULT, 1987: 30).

So dois plos portanto, dois planos que passam entre si. Um plano virtual das foras diagramatizadas, arranjadas entre si; e um plano atual, da combinao varivel do ver e do dizer, de agenciamentos concretos. Planos que se atravessam fazendo com que ora os agenciamentos se segmentarizem de forma mais endurecida, ora mergulhem nas foras abstratas ganhando flexibilidade e chegando a se confundirem. Ora a escola se faz muito diferente do hospital, da fbrica, ora parecem estenderem-se, aproximando-se em suas funes.

1.4.3 Saber e poder... porqu subjetivao?

Aps esse intervalo talvez possamos voltar a nossa questo inicial. Se Foucault j propunha uma anlise da produo do sujeito a partir do saber e do poder, porque tem ele necessidade de buscar outra linha, de desenvolver ainda a questo da subjetivao? H algo que parece perturbar Foucault, e que, certamente, toca a todos ns, quando, muitas vezes no estudo das relaes de poder sentimos o ar faltar, principalmente, quando nos debruamos sobre nossas sociedades contemporneas e sobre nossa vida de modo geral. Somos tomados por uma sensao de estarmos encurralados nas regras codificadas do saber,

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nas tramas do que dito e visto sobre ns mesmos, e nas regras coercitivas do poder, nas relaes de dominao que se fazem entre ns, uns sobre os outros. Deleuze, em seu estudo sobre Foucault, vai nos falar dessa sensao de asfixia, de se estar preso, desse impasse que parece atingir Foucault. Mas, vai ressaltar que essa sensao no se deveria sua maneira de pensar o poder, mas antes porque ele descobriu o impasse no qual o prprio poder nos coloca, tanto em nossa vida quanto em nosso pensamento, ns que nos chocamos contra ele nas mais nfimas verdades (DELEUZE, 2005: 103). E que impasse seria esse? Deleuze (1992) afirma que no h pensador que no seja atravessado por crises e abalos. O abalo vivido por Foucault parece pedir dele um certo recolhimento a fim de repensar estratgias e perceber outras sadas. Deleuze (2005) vai supor que muitos fatores atingem Foucault produzindo esse impasse: um sentimento de desnimo pelo fracasso na dcada de 70 do movimento das prises; acontecimentos em escala mundial, mal entendidos com relao a seu trabalho, mas talvez o que, principalmente, exija uma parada em meio ao projeto da histria da sexualidade, seja o fato de se sentir preso nas relaes de poder, que provocam uma crise no seu pensamento, mas muito mais em sua vida. Por mais que Foucault aposte nas possibilidades de resistncia parece que o poder est sempre a solap-las, a envolv-las e seqestr-las. Que impasse esse que o prprio poder nos coloca? A questo do poder aparece para Foucault a partir de suas pesquisas sobre a histria da penalidade, quando percebe a produo de uma relao especfica de poder que incide sobre os corpos daqueles que esto enclausurados (FOUCAULT, 1987). Uma tecnologia disciplinar que chama a ateno por no ser exclusiva da priso, podendo ser encontrada tambm nas escolas, hospitais, exrcito e fbricas. Esse poder disciplinar, por sua eficcia produtiva e riqueza estratgica, torna-se muito til no aprimoramento e adestramento do corpo humano. Roberto Machado na introduo do Microfsica do poder (2006a, p. XVI), livro organizado por ele, analisa que a utilizao dessa tecnologia objetiva poltica e economicamente:

tornar os homens fora de trabalho dando-lhes uma utilidade econmica mxima; diminuio de sua capacidade de revolta, de resistncia, de luta, de insurreio contra as ordens do poder, neutralizao dos efeitos de contrapoder, isto , tornar os homens dceis politicamente.

As disciplinas aumentariam, portanto, a fora econmica, diminuindo ao mesmo tempo os perigos polticos. O que est em questo um tipo de relao de poder que incide sobre o corpo, manipulando-o com tcnicas que trabalham tanto na dimenso de espao 41

quanto de tempo. No espao fechado, individualizado, os corpos recebem as marcas da classificao e combinao, alm, claro, da vigilncia. J o tempo objetivado sujeita o