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REVISTA REDAÇÃO PROFESSOR: Lucas Rocha DISCIPLINA: Redação DATA: 18/01/2015 ————————————————————————————————————————————— 1 01

PROFESSOR: Lucas Rocha DISCIPLINA: Redação DATA: … · O homem da outra charge é o comediante francês Dieudonné, autor do gesto da ―quenelle‖, uma espécie de ―banana‖,

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REVISTA REDAÇÃO

PROFESSOR: Lucas Rocha

DISCIPLINA: Redação

DATA: 18/01/2015

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Os cartunistas do Charlie Hebdo estão levando a culpa por seu próprio massacre (KIKO NOGUEIRA)

LUCIANA Genro acerta quando afirma que ―o fascismo islâmico só retroalimenta a xenofobia e o fascismo europeu – no fundo são duas faces da mesma moeda‖. Os que cometem crimes bárbaros em nome da religião, diz ela, ―o fazem pisoteando a crença de milhões de pessoas de diferentes credos‖.

Mais: os corpos dos cartunistas do Charlie Hebdo ainda estão quentes e eles já estão levando a culpa pela própria morte. O líder católico conservador americano Bill Donohue divulgou um comunicado condenando a violência — MAS (sempre tem um ―mas‖) ―nós não devemos tolerar o tipo de atitude que provocou essa reação violenta‖.

De alguma forma, os desenhistas fizeram por merecer. Um sujeito deixou o seguinte comentário num portal. ―Esse jornaleco comunista desrespeitava explicitamente as religiões, perseguia-as, afrontando-as com charges de extremo mau gosto. Uma coisa é liberdade de expressão, outra bem diferente é querer ‗causar‘ para vender mais jornais, e a serviço de uma ideologia que até hoje só trouxe MERDA, e da grossa, à humanidade. Ah, vá! Esses jornalistas mereceram cada bala que receberam.‖

Há quem ache que os profissionais do Charlie pagaram pela política externa da França, seu alinhamento com os EUA, as bombas no Iraque e os maus tratos à comunidade árabe no país. Eles são desumanizados para servir de argumento ao gosto do cliente. Charlie é — sim, porque ele continuará sendo impresso — um semanário de esquerda. Sempre foi antirreligioso. Bate em católicos, no islã, no judaísmo. Em políticos e na polícia. De acordo com o falecido editor Stephane Charbonnier, o Charb, reflete ―todos os componentes do pluralismo esquerdista, até de abstêmios‖.

De acordo com o jornalista inglês baseado na França Hugh Schofield, são parte de uma tradição do país que remete aos pasquins que ridicularizavam Maria Antonieta. A ideia é ser ultrajante e de mau gosto. A publicação foi fundada em 1960, como Hara-Kiri. Foi banido algumas vezes. Em 1970, o presidente francês Charles de Gaulle, velho inimigo, morreu em sua propriedade em Colombey-les-Deux-Églises. Em homenagem a ele, e também a Charlie Brown, o jornal foi rebatizado Charlie. Mau gosto? Provavelmente. No caso do jornal, já era exatamente o que se esperava.

Em Paris, três homens agindo em nome de Alá entraram na redação e fuzilaram a equipe, além de um policial na fuga. Aos olhos dos assassinos, o CH ridicularizava ícones do islamismo e tinham de ser fuzilados. Os matadores obviamente não representam todos os muçulmanos. Mas deram uma enorme força para a islamofobia crescente na Europa. O New York Times publicou o relato de uma sobrevivente chamada Corinne Rey do atentado. Alguns trechos:

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Era por volta das 11h30 e cerca de uma dúzia de jornalistas, incluindo os principais cartunistas do jornal, se juntou a ele [Charb] para a reunião semanal regular para discutir os artigos que apareceriam na próxima edição. O dia deles já tinha sido produtivo: menos de duas horas antes, os editores publicaram um tweet de sua mais recente charge provocadora, um desenho de Abu Bakr al-Baghdadi, o líder do Estado Islâmico, desejando ao seu público um Feliz Ano-Novo e, ―acima de tudo, boa saúde!‖.

Sem que soubessem, uma cena de terror estava transcorrendo à sua porta –uma que chamaria a atenção do mundo e provocaria novos temores por toda a Europa a respeito de um crescente choque de civilizações, entre os radicais islâmicos e o Ocidente.

Corinne Rey, uma cartunista conhecida como Coco, tinha acabado de pegar sua filha pequena na escola e estava digitando um código de segurança para entrar no prédio quando dois homens em trajes pretos, armados com metralhadoras automáticas AK-47, a agarraram e a forçaram brutalmente a abrir a porta.

Empurrada para dentro, Coco disse que se refugiou sob uma mesa enquanto os homens entravam no saguão e seguiam para o balcão da recepção, onde um segurança que trabalhava ali há 15 anos, Frédéric Boisseau, estava sentado.

Segundo uma testemunha citada na imprensa francesa, os assassinos abriram fogo, matando Boisseau e disparando tantas vezes no saguão que algumas pessoas acharam que se tratava da queda de um andaime.

Momentos depois, segundo testemunhas, os homens subiram correndo as escadas, com suas metralhadoras prontas, e seguiram para a sala de reunião. ―Onde está Charb? Onde está Charb?‖, eles gritavam, usando o apelido

amplamente conhecido de Charbonnier. Ao avistarem seu alvo, um homem magro de óculos, os homens miraram e atiraram.

Então, disseram as testemunhas, eles mataram os principais cartunistas do jornal que estavam sentados, paralisados. Depois massacraram quase todas as demais pessoas na sala em uma rajada de fogo. ―Durou cerca de cinco minutos‖, disse Coco, abalada e com medo. ―Eles falavam francês perfeitamente e alegavam ser da Al-Qaeda.‖

Sigolène Vinson, uma free-lancer que decidiu vir naquela manhã para participar da reunião de pauta, achou que seria morta quando um dos homens a abordou.

Em vez disso, ela contou à imprensa francesa, o homem disse: ―Eu não vou matar você, porque você é uma mulher, nós não matamos mulheres, mas você deve se converter ao Islã, ler o Alcorão e se cobrir‖, ela lembrou. ―Depois‖, ela acrescentou, ele partiu gritando, ―Allahu akbar, Allahu akbar!‖ [Alá é grande, Alá é grande].

O tipo de sátira praticada pelo Charlie era propositadamente de mau gosto, obscena, iconoclasta. Só poderia ser publicada ali. A tragédia acabou transformando os criadores em algo que criticavam: mártires.

Depois que o prédio do Charlie Hebdo foi alvo de uma bomba em 2011, Charb disse que a culpa não era dos muçulmanos franceses, mas de ―extremistas idiotas‖. A frase continua atual. Ele deveria abandonar seu ofício por causa de fanáticos? Mudar de ideia? Ninguém deveria ter o direito de se apropriar da tragédia com aqueles artistas para difundir seus próprios dogmas.

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KIKO NOGUEIRA é Diretor-adjunto do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas. Site DIÁRIO DO

CENTRO DO MUNDO (http://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-charlie-hebdo-era-racista/), Janeiro de 2015.

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O Charlie Hebdo era racista? (KIKO NOGUEIRA)

O MUNDO inteiro ganhou, em dois dias, milhões de especialistas instantâneos na história do Charlie Hebdo. Juntamente com o movimento ―Je Suis Charlie‖, veio a negação ―Je Ne Suis Pas Charlie‖ (―Eu Não Sou Charlie‖). No meio deste grupo, surgiu uma onda apressando-se em justificar, de alguma maneira, o massacre dos cartunistas com base no clássico ―quem mandou?‖

Os artistas seriam racistas. Para provar, ilustrações do DH estão sendo compartilhadas. Duas delas estão circulando intensamente entre os campeões desta tese. Uma mostra uma negra como uma macaca. A segunda, um negro com, perdoe meu francês, uma banana no rabo. Há outros desenhos, igualmente pinçados sem critério algum e sem contexto.

A negra é a ministra Christiane Taubira. Em 2013, ela foi chamada de macaca por uma política da direitista Frente Nacional. O Charlie Hebdo fez uma denúncia disso. A bandeirinha no canto esquerdo é uma referência à FN. Não é um endosso. Taubira ficou grata. Pouco depois da tragédia, Taubira deu uma entrevista a uma rádio, em frente ao CH, dizendo que era preciso que os franceses se organizassem para que a próxima edição saísse. ―Nós não podemos admitir que o Charlie Hebdo desapareça‖, afirmou.

O homem da outra charge é o comediante francês Dieudonné, autor do gesto da ―quenelle‖, uma espécie de ―banana‖, imitado por jogadores de futebol como Anelka. Dieudonné é amigo e aliado de Jean Marie Le Pen, fundador da Frente Nacional, de extrema direita, fortemente antiimigração. O humorista tornou-se também revisionista do Holocausto.

A estranha necessidade de enxovalhar a reputação dos jornalistas nasce também da noção de que apenas vítimas perfeitas merecem justiça. O que não é o caso dos criadores do CH — um jornal feito para a polêmica, absolutamente anárquico, ultrajante e eventualmente de mau gosto. Uma leitora francesa deixou um comentário aqui no DCM. Publico alguns trechos:

―Não sei se devo rir ou chorar. Sou francesa e quando estou lendo que ‗tratar como heróis cartunistas alinhados à visão imperial de seu país é e sempre será um erro‘ ou ‗será que ao retratar sempre os árabes com bombas e espadas a revista não estava também estimulando o que existe de pior em seu público?‘ só quero dizer que vocês nunca entenderam as criticas que fazia Charlie Hebdo…

Esse jornal, apoiando a visão imperialista da França na África? Apoiando essas políticas de exclusão dos jovens de origem árabe, que não encontram trabalho na França?

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Mas isso é tudo o que Charlie Hebdo estava denunciando. As caricaturas desrespeitosas tinham o objetivo de denunciar todos esses fenômenos de extremismo religioso, como o terrorismo, que não tem nada a ver com os muçulmanos. (…)

Se vocês não percebem a sátira dos desenhos, ou se vocês não gostam, tudo bem. Mas, por favor, nesse clima duro que a França está atravessando, seria de bom tom não pegar atalhos e espalhar desinformação, ou pior, bobagens, sobre as mensagens políticas do jornal.‖

Em 2013, Stephane Charbonnier, o Charb, falou das acusações de racismo. Charb foi um dos chacinados: ―O Charlie Hebdo está se sentindo decididamente doente. Porque uma mentira inacreditável está sendo dita: o Charlie Hebdo tornou-se um panfleto racista. Estamos quase com vergonha de lembrar que o anti-racismo e uma paixão pela igualdade entre todas as pessoas são e continuam a ser os princípios fundadores do Charlie Hebdo. (…)

Charlie Hebdo é filho de maio de 68, do espírito de liberdade e insolência. O Charlie Hebdo da década de 1970 ajudou a formar o espírito crítico de uma geração. Zombando dos poderes e dos poderosos. Por rir, às vezes escandalosamente, dos males do mundo. E sempre, sempre, sempre defendendo os valores universais do indivíduo.

Por que essa idéia ridícula se espalha como uma doença contagiosa? Somos islamofóbicos, afirmam aqueles que nos difamam. O que significa, em sua própria novilíngua, que somos racistas.

Quarenta anos atrás, era considerado obrigatório zombar da religião. Qualquer um que começou a perceber para onde o mundo estava indo não poderia deixar de criticar o grande poder dos maiores organismos clericais. Mas de acordo com algumas pessoas, na verdade, mais e mais pessoas, atualmente você tem que calar a boca.

O Charlie ainda dedica muitas de suas capas a ilustrações papistas. Mas a religião muçulmana, imposta a inúmeras pessoas em todo o planeta, deve ser de alguma forma poupada. Por que diabos? Qual é a relação, a menos que seja apenas ideológica, entre o fato de ser árabe, por exemplo, e pertencer ao Islã? (…)

Nós nos recusamos a fugir de nossas responsabilidades. Mesmo que isso não seja tão fácil como em 1970, nós vamos continuar a rir dos padres, dos rabinos e dos imãs – quer isso os agrade ou não. Somos minoria nisso? Talvez, mas ainda assim estamos orgulhosos. E aqueles que pensam que o Charlie é racista deveriam, pelo menos, ter a coragem de dizer isso em alto e bom som. Nós saberemos como responder a eles.‖

Abaixo você pode ver a foto de Christiane Taubira em sua visita à sede do Charlie depois do atentado. Parece alguém que foi ―vítima de racismo‖? Alguém diria que ela está mentindo? Há mais humanidade nesta imagem do que em 20 mil especialistas que surgiram em dois dias, prontos a linchar doze desenhistas executados covardemente por fanáticos religiosos.

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A ministra Christiane Taubira chega ao local da chacina em Paris

KIKO NOGUEIRA é Diretor-adjunto do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas. Site DIÁRIO DO CENTRO DO MUNDO (http://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-charlie-hebdo-era-racista/), Janeiro de 2015.

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Autismo coletivo (JOÃO TEIXEIRA)

NO DECORRER deste ano tive a oportunidade de ler, nesta revista e em outras, matérias que discutem os efeitos da internet na vida cotidiana. Ela se tornou um dos temas centrais da Filosofia da Tecnologia, pois nos incita a repensar a relação homem-máquina. Passamos o tempo todo conectados, diante de uma tela, acessando redes sociais e escrevendo mensagens. Pouco importa se estamos estudando, trabalhando ou nos divertindo.

As redes sociais praticamente monopolizaram a internet; o Facebook, o Twitter e o Instagram criaram uma nação digital paralela, com bilhões de habitantes. No entanto, essas imensas redes, que deveriam aproximar as pessoas, criaram um efeito paradoxal nas relações humanas. O aumento da comunicação levou a uma diminuição da intimidade e da empatia. As redes sociais são construídas a partir do cruzamento de olhares. Como se formassem um imenso estádio virtual, por meio delas todos podem se enxergar ao mesmo tempo. Todos passaram a postar imagens de onde estão e do que estão fazendo. A busca pela visibilidade, mesmo que na forma de uma imagem efêmera, é reforçada e medida pelo número de ―curtidas‖, o que leva as pessoas, cada vez mais, a tornarem pública sua atividade cotidiana, submetendo-se, voluntariamente, ao olhar dos outros.

O mundo virtual se impôs como uma espécie de hiper-realidade paralela na qual a vida humana acontece. A experiência imediata é, cada vez mais, desvalorizada e substituída pela vida digital. As relações humanas passaram a ser mediadas pela internet. Como o tempo que passamos nas redes sociais é inversamente proporcional ao convívio humano, quanto mais nos comunicamos virtualmente, mais nos distanciamos do contato real com os outros. Esse é o paradoxo que vivemos atualmente. Uma das consequências devastadoras dessa situação é a perda progressiva do sentido do outro. O isolamento faz com que as pessoas cada vez mais interajam com símbolos ou criaturas cujos corpos estão em lugares desconhecidos. O outro com o qual nos comunicamos através das redes sociais deixa de ser a pessoa em carne e osso e passa a ser uma criatura virtualmente construída, um habitante da hiper-realidade.

Estudos realizados por pesquisadores como Nicholas Carr, Susan Greenfield e Andrew Keen mostram que as crianças que ―nasceram conectadas‖ têm maior probabilidade de desenvolverem transtornos de déficit de atenção, provavelmente pela própria arquitetura da internet, que estimula a dispersão. Passeamos por links que nos convidam a abrir outros e, com muita frequência, chegamos até a esquecer daquilo que motivou uma determinada busca. Nesse processo, nossa atenção é sequestrada. Mas haverá outros tipos de transtorno causados pela dependência em relação às redes sociais? Quais serão as consequências de interagirmos a maior parte do tempo com sujeitos virtuais? Será que a expansão quase epidêmica do autismo em alguns países nórdicos e nos Estados Unidos está relacionada com o aumento do tempo que as pessoas passam conectadas a redes sociais?

Quando nos comunicamos com uma pessoa com a qual nunca houve contato físico, a tendência é representá- -la como um ser virtual, como um produto da nossa imaginação. Por vezes é difícil saber se estamos conversando apenas com avatares. Muitas vezes interagimos com sujeitos construídos pela nossa imaginação. Tudo vai se tornando uma grande simulação: as fotos, a aparência física manipulada e as emoções, que passam a ser relatadas através de símbolos. Será que podemos considerar essas criaturas um outro ou serão elas apenas uma pseudoalteridade fantasiada e construída como

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parte de nós mesmos? Relacionar-se com um outro virtual, com uma pseudoalteridade, significa abrir mão das formas elementares da empatia, desenvolvidas por meio da percepção de movimentos corporais de alguém cujas atitudes escapam de nosso controle. Mas um sujeito virtual está sempre sob nosso controle, pois podemos fazê-lo aparecer e desaparecer quando quisermos, bastando, para isso, ligar ou desligar um computador.

Quais serão os efeitos de interagirmos, cada vez mais, com sujeitos virtuais? A incapacidade de reconhecer uma alteridade, de atribuir-lhe intenções e desejos a partir de nossos próprios sentimentos, pode levar, no limite, ao autismo. Conversaremos apenas com nós mesmos, da mesma maneira que uma menina conversa com sua boneca, fantasiando suas respostas e interrompendo a brincadeira quando quiser. O autismo é um transtorno mental com um espectro amplo de sintomas com várias gradações que, em geral, se manifesta desde a infância. Será que as sociedades digitais estão incentivando comportamentos que, em vários aspectos, se assemelham a alguns sintomas dessa condição?

Nesse caso, teríamos um autismo especial, inteiramente produzido pela cultura, que poderíamos chamar de ciberautismo. Um de seus sintomas parece ser o fato de depositarmos, cada vez mais, nossas expectativas em relação ao futuro nas tecnologias e não nas pessoas que as usam. Ou, como afirma Sherry Turkle, uma pesquisadora do MIT, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts, pelo fato de estarmos todos juntos e sozinhos na internet.

Será que a internet acentuará nossas tendências autistas? Talvez estejamos ingressando na era doautismo coletivo, uma expressão paradoxal, mas não menos significativa, inventada pela minha amiga Maria Eunice Gonzalez, do departamento de Filosofia da UNESP de Marília.

JOÃO FERNANDES TEIXEIRA é PhD pela University of Essex (Inglaterra) e se pós-doutorou com Daniel Dennet nos EUA. É professor titular na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Revista FILOSOFIA, Janeiro de 2015.

A máfia das próteses (CARLOS VITAL TAVARES CORRÊA LIMA)

NOS ÚLTIMOS dez anos, por condutas contrárias aos preceitos éticos que disciplinam as relações dos médicos com a indústria, laboratórios e a farmácia, o Conselho Federal de Medicina (CFM) cassou de 28 médicos o direito de exercer a profissão. Por uma melhor regulamentação dessas relações, o CFM publicou, em 2010, resolução que veda ao médico o direito de exigir um único fornecedor ou marca de órteses, próteses e materiais implantáveis.

Além disso, o CFM solicitou, em 2012, ao Ministério da Saúde e à Agência Nacional de Saúde Suplementar que procurassem fixar os preços dos materiais citados, o que seria exequível por meio de medida provisória ou projeto de lei. O CFM também pleiteou ao Legislativo a instalação de uma CPI para investigação de corrupção no processo de especulação comercial com o ato médico, nas circunstâncias de uso dos materiais já citados.

Apesar dos esforços, o comércio de próteses - ilícito, amoral e sem ética, por meio do aliciamento de médicos feito por distribuidores credenciados pela indústria - prosperou com a participação de administradores, contadores e advogados. Organizados em quadrilhas que se multiplicaram e se espalharam pelo país, promoveram danos individuais e coletivos: risco de morte e sequelas graves e irreversíveis aos pacientes, além de prejuízos aos sistemas de saúde público e privado. Na ausência de publicidade dos custos industriais, da padronização do instrumental acessório para os implantes e de uma regulação de preços como a instituída para medicamentos pela Anvisa, os custos comerciais desses materiais têm absurda variação no país, atingindo o índice de até mais de 1.000%.

Abusos mercantis e a falta de caráter de alguns profissionais criaram espaço para distorções e promoveram indicações desnecessárias de procedimentos dolosos. O Judiciário, desprovido de assessoria médico-pericial própria, indispensável aos magistrados para emissão de decisões em situações de urgência médica, torna-se, muitas vezes, mais uma vítima das armadilhas formadas por aqueles que exploram a dor, o infortúnio e a doença. Após as recentes denúncias em reportagens do programa "Fantástico", da TV Globo, surgiram novas expectativas de medidas eficazes e preventivas por parte do Legislativo e do Executivo, anteriormente já recomendadas pelo CFM.

Porém, trata-se ainda, como imperativo de justiça, de uma rigorosa apuração e julgamento das responsabilidades de todos os envolvidos e de punições exemplares aos culpados, com estrita observação do devido processo legal. Contra a impunidade, opõe-se o princípio tão jurídico quanto civilizado de que a lei é para todos. Não importa se a máfia atua no poder público, na área do petróleo ou medicina. Toda classe profissional encerra em si homens dos quais ela se orgulha e outros que ela renega. A esmagadora maioria dos mais de 400 mil médicos brasileiros não tolera marginais no seio de sua classe.

Apesar das injustiças que lhes são perpetradas e dos obstáculos levantados para suas atividades, os médicos agem com coerência aos seus compromissos vocacionais, preservando a arte e ciência hipocrática, um patrimônio público e universal da humanidade, engajados com entusiasmo na luta por solidariedade, meritocracia e democracia. Por isso, a nossa sociedade não verá a imensa maioria dos médicos brasileiros sob o estigma da insegurança e da suspeição.

CARLOS VITAL TAVARES CORRÊA LIMA, 64, clínico geral, é presidente do Conselho Federal de Medicina. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Janeiro de 2015.

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Sátiras a temas religiosos devem ter limites? NÃO

Quem ri por último ri melhor (GERALD THOMAS)

FUI ilustrador da página de "Opinião" do "New York Times" nos anos 80. Às vezes eu ousava publicar algo que não pegaria bem com um grupo ou outro. Algum radical sempre berrava, mas não passava disso. Respondendo diretamente à pergunta: é claro que não. Quanto mais ácida, melhor a sátira.

A última coisa nesse mundo que preciso é de lição em direitos humanos. Durante seis anos fui voluntário na Anistia Internacional em Londres nos anos 1970 trabalhando pelos exilados políticos brasileiros --não trabalhei só pelos mais conhecidos. Visitei quase todas as prisões brasileiras no final daquela década. Há um pouco mais de um mês, eu estava marchando nas ruas de Nova York, onde moro, protestando contra a decisão da Justiça sobre a morte dos jovens negros Michael Brown, em Ferguson, no Missouri, e Eric Garner, em Staten Island. Fiz o mesmo em 2012 quando Trayvon Martin foi assassinado na Flórida e recentemente deixei flores no memorial a dois policiais mortos no Brooklyn. Como se vê, sou eclético nas minhas homenagens.

Gostaria de ter estado em Paris no domingo (11) na marcha de mais de 3 milhões de pessoas para ser mais um a apostar nessa utópica sociedade livre para caricaturar profetas, papas, políticos e religiosos. Esse é um direito supremo de um sátiro ou humorista em uma democracia. Não serão alguns covardes encapuzados, berrando lemas, ameaçando temas, querendo nos enfiar a lei islâmica goela abaixo que calarão qualquer Redação. Defendo a liberdade de expressão irrestrita, mesmo depois desse trágico evento em que os cartunistas do jornal satírico

"Charlie Hebdo" foram mortos, além de outras pessoas em um mercado kosher, em Paris. Mais da metade da minha família foi assassinada em campos de concentração. Nem por isso deixo de ser fã de Richard Wagner e de encenar suas óperas. Admito sátiras aos cadáveres dos meus parentes. Sou filho da contracultura, pus meus pés na lama de Woodstock e até hoje acredito naqueles valores. "É tanta liberdade que não há mais como provocar", disse Georges Wolinski quando esteve no Rio, em 1993. Wolinski foi assassinado na quarta (7), na Redação do "Charlie Hebdo". Sou de teatro e do teatro. Da farsa ao realismo, da sátira às lagrimas, coloco-me no palco fingindo encenar a mim mesmo, usando atores ou cantores líricos numa tentativa de reinventar o mundo ideal.

Pouco importa se é mesquita, sinagoga, igreja católica, templo evangélico, templo budista. Qualquer pessoa que leva a sério demais o fato de nos satirizarmos, que vá à merda! Ou que se enterre viva. Sou intransigente no que diz respeito à liberdade de expressão de cada um: e sou ainda mais intransigente quando matam em nome de Alá, de Maomé, de Cristo, de comunismo, de nazismo, de fascismo etc. Caricaturar nunca é crime. Caneta e lápis não matam. Exageram, humilham, fazem rir, mas não matam.

Aceito qualquer caricatura a respeito da minha família. Posso ficar incomodado com desenhos de cinzeiros cheios de cinzas com a legenda "aqui dentro há uma pilha de ex-judeus", mas não saio por aí metralhando as pessoas. Quando urram da plateia "judeuzinho, volta para o campo de concentração", como berravam em "Tristão e Isolda", no Theatro Municipal do Rio, em 2003, abaixo as calças e mostro a bunda.

Por responder mostrando a bunda fui processado por evangélicos hipócritas e fanáticos. Mas, um ano depois e muito dinheiro gasto com advogados, fui absolvido. Eu faria tudo de novo, assim como a equipe do "Charlie" está fazendo. Ninguém jamais vai nos calar. Podem nos oprimir por um tempo, podem matar alguns, podem torturar com choques e afogamentos, podem tentar nos massacrar, mas quem ri por último ri melhor.

GERALD THOMAS, 60, é autor e diretor de teatro. É autor de "Arranhando a Superfície" (Cobogó). Jornal FOLHA DE SÃO

PAULO, Janeiro de 2015.

Sátiras a temas religiosos devem ter limites? SIM

A empatia como limite (FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO)

EM NOSSA cultura, o debate sobre a liberdade para satirizar envolve um paradoxo. A história mostrou que legislações que censuram ou reduzam a liberdade de expressão acabam indo contra a autonomia das pessoas e a democracia. A convivência em sociedades plurais, que buscam a igualdade e a democracia, mostrou a necessidade de normas que garantam o respeito ao diferente, procurando eliminar ou reduzir discursos que exacerbem o preconceito e a exclusão.

O problema se agrava com a pressão da disputa por audiência e sucesso, que leva articulistas, artistas e chargistas a chocar sempre mais para ganhar mais público. Nossa posição nesse jogo, depende frequentemente de estarmos entre os que riem da sátira ou os que são objeto do riso alheio. No caso da sátira religiosa, outros fatores se apresentam. O poder hegemônico e a moral tradicional costumam se valer das religiões mais importantes para sua autolegitimação. Muitos religiosos dirão que essas são alianças espúrias, que adulteram e instrumentalizam a mensagem original. Mas elas realmente existem.

Soa estranho que religiões possam necessitar das mesmas atenções que minorias. Aliás, parece que o discurso religioso é quase sempre uma ameaça às minorias --apesar de ser muitas vezes uma defesa para algumas delas. Assim, um

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chargista pode se considerar um defensor do livre pensamento quer esteja ridicularizando poderosos e perigosos detentores do poder econômico e político, quer esteja ridicularizando as crenças de pessoas simples e muito mais frágeis do que ele na hierarquia social.

Além disso, não se percebe que ironizar as convicções de alguém pode ser tão virulento quanto ironizar seu tipo físico ou suas opções sexuais. Talvez porque pensemos em nossas ideias como mercadorias descartáveis, e não como convicções que mostram a dignidade de uma vida. Existem leis que, em teoria, defendem a dignidade dos cidadãos e das organizações, protegendo-os de difamações, injúrias e outros ataques. Não seria com restrições legais à sátira que resolveríamos os problemas, quer das religiões, quer de outros injustamente satirizados.

Mas é desejável e factível que haja um estabelecimento de limites razoavelmente consensuais sobre o que e como satirizar. "Razoavelmente" porque, como diz o ditado, toda uniformidade é burra - além de irrealizável - e esse consenso deve ser um ideal de convivência a ser construído, e não uma distopia obscurantista. Esses limites não podem nascer de regras negociadas entre poderosos. Também não podem ser estabelecidas fora das próprias comunidades de autores nem se tornarem um pacto ditado pelo poder ou uma autocensura determinada pelo medo. Para serem eficientes e preservarem a liberdade de todos, esses limites devem nascer de uma verdadeira empatia entre diferentes. Devem nascer também da capacidade de nos deixarmos tocar pelo mistério do outro, entrever e compartilhar dentro do possível as dores, anseios, frustações, valores e realizações daquele que é diferente de nós.

É preciso compreender e nos deixarmos fascinar pelo fato de que somos feitos do mesmo barro, ainda que nossas formas sejam tão diversas. O respeito que nasce da tolerância deve ser superado pela compreensão que nasce da empatia. A empatia como limite não nos privará das sátiras ao poder, da força do riso para desvelar nossas incongruências e hipocrisias. Mas nos ajudará a conviver melhor, a respeitar o fraco e a descobrir caminhos de diálogo.

FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO, 57, sociólogo, é coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Janeiro de 2015.

Você é realmente Charlie? (RAFINHA BASTOS)

"Je suis Charlie". Você é Charlie? É mesmo? Então me diga uma coisa: onde estava você quando eu tive meu DVD "A Arte do Insulto" censurado, em 2012? E quando perdi processos judiciais? Quando 300 pessoas picharam frases de ódio e destruíram a porta do meu bar, onde você estava?

Onde você estava quando eu perdi papéis no cinema? E quando eu deixei de ter programas na televisão? O que você era quando eu tentava falar sobre liberdade de expressão, mas era tachado de arrogante, prepotente e babaca? Onde você estava? Eu senti falta de você. Agora que você se manifestou em prol da liberdade de expressão, deixa eu te contar uma coisa. O que eu vivi foi um momento muito confuso. Quatro piadas minhas foram colocadas fora de contexto e isso quase afundou a minha carreira. Tudo isso ocorreu por um simples motivo: eu não pedi desculpas.

E sabe por que eu não me desculpei? Porque acredito que o humorista deve ser livre para arriscar, questionar e provocar. Se eu pedisse desculpas por cada tentativa, em dois meses eu estaria domesticado. Nunca mais eu te surpreenderia. Diria somente aquilo que você queria ouvir. Eu seria querido, amado e totalmente infeliz. Naquela época - em 2011 -, ninguém estava disposto a conversar comigo sobre a tal liberdade de expressão. Todos só queriam saber quanto dinheiro eu estava perdendo, o que eu achava do "CQC", se eu convidaria a cantora Wanessa Camargo para ir ao meu programa e blá-blá-blá. Cheguei a ir ao "Roda Viva", da TV Cultura, para debater o tema e até lá a conversa se resumiu a essas curiosidades bobas. Foi desesperador.

Quase quatro anos depois, colegas franceses do jornal satírico "Charlie Hebdo" são cruelmente assassinados dentro da Redação do semanário. Eles acreditavam que eram livres para provocar. Agora estou vendo você com essa camiseta com os dizeres "Je suis Charlie" (eu sou Charlie, em francês). Que legal. Você chegou tarde, mas ainda chegou a tempo. Se eu tivesse levado um tiro na cabeça, talvez você tivesse aparecido antes, mas, tudo bem, o que importa é que você veio. Saiba que durante um bom tempo o que eu mais ouvi foi: "Rafinha, o problema das piadas que te deram dor de cabeça é que elas não foram engraçadas. Simples".

Primeiro: É um crime analisar um texto feito para o palco com base em uma transcrição no papel. É como ler o roteiro de um filme pornográfico. Na reportagem tendenciosa do jornal, a sua leitura não vai reconhecer "timing", muito menos a ironia do humorista. Segundo: As piadas ruins e boas nascem absolutamente do mesmo lugar. Nascem da experimentação. Do risco. Para chegar a uma piada boa é obrigatório passar por algumas ruins. Esse é o processo. Um comediante com medo de errar é como um jogador de futebol com medo de chutar a bola. É o fim.

Para os cartunistas do "Charlie Hebdo" a palavra "medo" não fazia parte do vocabulário. Foram provocadores que não deixaram nem que o risco da morte os calasse. Foram loucos que lutaram pela liberdade de expressão até as últimas consequências. Suas mortes provocaram uma discussão mundial e permitiram que algumas pessoas entendessem melhor o que eu venho tentando dizer há, pelo menos, quatro anos. Seja bem-vindo de volta. Eu estava com saudades.

RAFAEL BASTOS HOCSMAN, o Rafinha Bastos, 38, é humorista e jornalista. Apresenta o programa "Agora É Tarde", da Band. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Janeiro de 2015.

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A opção pela convivência (ARLENE CLEMESHA)

A DIFAMAÇÃO é um subterfúgio comum àqueles que buscam minar a credibilidade de certo pensamento sem se dar ao trabalho de rebatê-lo com argumentos. Lamentavelmente, foi o uso desse recurso que acabou por contaminar as palavras de Demétrio Magnoli publicadas nesta Folha no artigo "Raqqa, aqui" (10/1, "Poder").

Esse colunista selecionou sete palavras de uma entrevista de 35 minutos que concedi ao vivo, logo após o atentado ao jornal satírico "Charlie Hebdo", amputando-as do seu contexto, a fim de atribuir à apresentação que fiz de todo um contexto histórico a manifestação de uma infundada e absurda "adesão à lógica jihadista". Atacou ainda, com o mesmo destempero, inominados departamentos da academia, chamando-os de "lata de lixo do pensamento".

O massacre da semana passada em Paris - assim como tantos outros, tributários de deturpadas doutrinas políticas ou religiosas - é prova suficiente de que o uso da força destinado a cercear a liberdade de manifestação do pensamento é inadmissível, seja qual for o contexto ou pretexto. Nada pode relativizar esse princípio. A liberdade de expressão não veda a crítica a qualquer pensamento nem impede que sejam feitas ressalvas quanto à conveniência ou oportunidade de determinada manifestação prejudicial à convivência entre os que pensam diferente, por mais que manifestar continue sendo um direito de seu autor.

Objeções dessa ordem são ainda mais justificáveis em contextos nos quais grupos minoritários são inferiorizados e marginalizados por uma elaboração teórico-ideológica, também chamada de "orientalista", que acumula um longo histórico, associado a mais de 150 anos de colonialismo europeu. Para conciliar as liberdades de manifestação do pensamento e religiosa - e para combater o próprio terrorismo -, parece-me essencial que os muçulmanos, pelos seus próprios meios de gestão da religião, impeçam que grupos diminutos, e nada representativos, usem-na como fundamento para cometer atrocidades.

O exercício da crítica e a livre manifestação do pensamento estão presentes nas origens do islã, seja entre filósofos, seja na prática do "ijtihad" - o esforço racional independente na interpretação de textos sagrados à luz das necessidades da época. É oportuno lembrar também que não há qualquer pena para a blasfêmia no Corão, indicando-se apenas a necessidade de afastamento (não se sentar à mesa). Não só por esses precedentes, penso que os muçulmanos são os mais aptos - se não os únicos - a eliminar o fundamentalismo gestado no seio de sua cultura ou, ao menos, a impedir que alguns poucos membros fomentem o terrorismo em nome da religião praticada por 1,5 bilhão de pessoas.

A opção pela convivência e a crença de que o combate ao terrorismo depende de ações conduzidas internamente por lideranças muçulmanas vem sendo explícita ou implicitamente adotadas por vários intelectuais e personalidades nos últimos dias. Não decorre daí, contudo, qualquer relativização no julgamento do recente atentado.

É por essas razões que repudio veementemente a atitude de Demétrio Magnoli. Espero que esse senhor evolua para um ser capaz de compreender que existem, sim, alternativas em prol de uma convivência melhor - alternativas essas muito mais propensas a exaurir o terreno do fundamentalismo do que a destilar o ódio, como esse que escorre da sua pena.

ARLENE E. CLEMESHA, 42, professora de história árabe da USP, é autora de "Palestina 48-08 - 60 Anos de Desenraizamento e Desapropriação" (DEFC), de "Marxismo e Judaísmo" (Boitempo Editorial/Xamã), entre outros livros. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Janeiro de 2015.

Quem é Charlie? (LUIZ FELIPE PONDÉ)

VOU DIZER isso de forma direta: os protestos contra o massacre em Paris são típicos de nosso mundo bobo, onde o debate público tem a mesma consistência que a Coca-Cola. Dizer "Eu sou Charlie" numa camiseta ou cartaz é uma piada diante da tragédia, mas agrada a sensibilidade "pseudo" que domina a "critica social" contemporânea, que usa máscaras de personagens revolucionários do cinema (do péssimo filme "V de Vingança") como se fosse coisa séria.

Quer protestar contra o massacre? Faça camisetas com charges semelhantes às que levaram os cartunistas franceses à morte. Tá com medo? Claro. Antes, uma palavrinha mais dedicada aos inteligentinhos e críticos de Facebook: qualquer pessoa minimante inteligente e sem muita má fé sabe que a maioria esmagadora dos seguidores de Alá é gente comum, que trabalha, tem filhos e se vira como pode para viver, como a maioria de nós. E que, portanto, nada tem a ver com grupos fanáticos do tipo que, aparentemente, matou os cartunistas franceses.

Sim, hoje em dia, num mundo no qual o debate público é dominado pela babaquice inteligentinha, sempre temos que deixar claro que não partilhamos dos fetiches sociológicos típicos do debate herdeiro do blablá-blá da luta de classes e do "oppression studies" (estudos sobre a opressão, em português). Dito isso, vamos ao que importa. Os grupos fundamentalistas islâmicos acham o Ocidente um lixo. Quem negar isso é mentiroso ou simplesmente ignorante. Odeiam nosso consumo, nosso culto ao "voto", nossas liberdades, nossas mulheres (para eles, são umas vagabundas), nossos homens (para eles, somos uns frouxos), nossas músicas, como no passado odiavam os cristãos.

Esse ódio à "Europa" está claro em muita literatura boa sobre isso, apesar da historiografia marxista ter quase destruído a história como pesquisa de fontes (que é a história em si, não?). O historiador marxista hoje é, basicamente, um preguiçoso que vive de metafísica hegeliana barata. Uma das marcas desses malucos (os terroristas) é querer refazer o caminho das Cruzadas e das guerras do Mediterrâneo entre o Império Otomano e a cristandade de então, no século 16.

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Sobre isso, o excelente livro "Impérios do Mar - A Batalha Final Entre Cristãos e Muçulmanos pelo Controle do Mediterrâneo", de Roger Crowley (ed. Três Estrelas, 456 págs., R$ 59,90), é um banho de erudição com uma escrita simples e direta. Olha só isso: "Eu sou o raio do céu. Minha vingança não será apaziguada até que eu tenha matado o último de vocês e escravizado suas mulheres, suas filhas e seus filhos."

Parece a fala de um dos terroristas na França ou de um dos caras do Estado Islâmico? Mas não é. Trata-se de uma mensagem deixada por Hizir, um dos irmãos Barbarossa, em 1514, num cavalo em Minorca, pouco antes da invasão que foi um dos inúmeros massacres de cristãos realizados pelos otomanos. Os cristãos também massacraram muçulmanos aos montes. Basta ler a obra de Crowley e você verá que o imaginário desses terroristas está cozido em fatos históricos concretos.

Eles se acham herdeiros do islamismo medieval e moderno em luta contra o "ocidente infiel". Nada a ver com o blablablá dos males do capitalismo. Claro que os racistas europeus vão usar o que aconteceu para endossar sua babaquice xenófoba. Esses terroristas só atrapalham os próprios muçulmanos em seu dia a dia. Mas, para além dessas obviedades (os inteligentinhos adoram obviedades), uma coisa me chamou a atenção: os protestos, os de rua, os da mídia, os das camisetas e dos "bottons".

Fazer uma faixa dizendo "not afraid" (sem medo, em tradução livre) significa pouco diante do que aconteceu como forma de resposta à violência. A moçada deveria encher as redes sociais não apenas com charges e manifestações de lamento e de luto (também são importantes), mas sim com charges e manifestações que de fato mostrassem a esses terroristas que não temos medo deles. Quais? Você sabe bem quais. Onde está o humor irreverente que tira sarro de Jesus? Por que não se pode ser irreverente com o Islã? Medo?

A verdade é que temos medo deles. Porque, como bem disse um jihadista afegão a um repórter do jornal britânico "The Telegraph" : "Os americanos amam Pepsi, nós amamos a morte".

LUIZ FELIPE PONDÉ é filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel

Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, 'Contra um mundo melhor' (Ed. LeYa). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Janeiro de 2015.

Por que eu sou Charlie (CONTARDO CALLIGARIS)

QUERIA estar na grande marcha de Paris no domingo passado. Cogitei seriamente pular num avião sexta à noite, de Nova York; mas não deu. Nunca gostei de reuniões de massa, nem nos anos 1960. Mas, sem saber bem por quê, pensava que não estar nas manifestações destes dias seria um pouco perder o "trem da história" (justamente nos anos 1960, a gente acreditava que esse trem existia).

De qualquer forma, melhor assim. Estive no pequeno "rally" de sábado, na Washington Square, em Nova York (por volta de mil pessoas). Foi menos empolgante do que seria a maré humana na Place de la République e, por isso mesmo, pôde ser um momento de reflexão. Cantei a "Marseillaise" mais vezes numa tarde do que nos últimos 30 ou 40 anos de minha vida, descobrindo que 1) me lembrava de todas as palavras, 2) meu ouvido musical só piorou com os anos.

Cantei como homenagem à França ferida e como hino das ideias que a França encarna para mim, ou seja, não apenas as grandes ideias das luzes do século 18, mas também (se não sobretudo) ideias mais antigas e aparentemente menos nobres: as da tradição libertina e pornográfica e as do espírito gozador da revolta da Fronda (o estilingue) do século 17. Na Washington Square, chamamos os nomes das vítimas, Charb, Cabu, Wolinski... Não tinha trazido comigo o cartaz que muitos levavam, "Je suis Charlie", em várias línguas. Mas tinha um lápis Palomino Blackwing, que ficou na minha mão, apontado para o céu, o tempo inteiro. Caneta, lápis, hidrocor erguidos eram o jeito de dizer que ninguém pararia de escrever ou desenhar livremente.

Na mesma veia, de vez em quando surgia um coro: "Não temos medo" - sobretudo na boca das inúmeras crianças. Era um conforto que houvesse tantas crianças - as crianças europeias e americanas vão (são levadas) para cada tipo de manifestação política, mesmo potencialmente perigosa. Como disse uma vez meu pai, ir a uma manifestação pode ser perigoso para uma criança, mas não ir seria muito mais perigoso para seu futuro e para seu espírito.

Por que eu estava lá? Não sou mais leitor de "Charlie Hebdo" há tempos. E nunca fui um assíduo. Isso era provavelmente o caso da maioria naquela tarde. O que nos reunia, então? Um gosto pela sátira? Uma convicção política? Era uma reunião a favor do casamento gay? Por ou contra a descriminalização do aborto ou da maconha? Por ou contra a corrupção? A favor da democracia direta? Nada disso. A princípio, não tínhamos nada em comum, nada que fosse para todos os manifestantes um valor compartilhado.

Nada em comum - salvo o atentado contra "Charlie Hebdo". E "Charlie Hebdo" é o quê? Escutei de tudo nestes dias, até alguns (que nunca leram a revista) dizendo que é uma publicação islamofóbica. "Charlie Hebdo" é uma publicação cretinofóbica, porque acha cretino qualquer um que adira a uma crença sem a capacidade de rir dela e de si mesmo enquanto crente. Por isso, seria exato dizer que, para "Charlie Hebdo", nada é sagrado.

Por isso, o espírito de "Charlie" tem a vida difícil diante da sedução dos fundamentalismos, que vendem certezas e sentido pelas nossas ruas. Agora, será que "Charlie" peca e cansa por sua descrença generalizada? Suprema acusação: será que "Charlie" é cínico?

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Eu mesmo talvez dissesse que sim, até a reunião da Washington Square --que não era uma reunião de cínicos. Ao contrário, era a reunião dos que acham que nada é sagrado para todos, SALVO o princípio de que nada deve ser sagrado para todos. O que não é pouca coisa. Talvez, no futuro, o atentado a "Charlie Hebdo" faça história por ser o momento em que a gente começou a entender que o que nos define não é a ausência de valores absolutos, mas é, sim, um valor específico: a recusa de que valores sejam aceitos e reconhecidos como absolutos.

Alguns dizem que sem valores absolutos e intocáveis em comum não há sociedade possível. Pois bem, há uma sociedade possível, constituída ao redor do valor absoluto seguinte: não há valores absolutos para todos. Agora sei por que fui à manifestação. Ela foi a prova (efêmera, claro) de que é possível se reunir para dizer que só nos reúne a convicção de que, para se reunir, não é preciso que a gente compartilhe uma certeza absoluta. Corrijo: para se reunir, é MELHOR que a gente NÃO compartilhe uma certeza absoluta.

CONTARDO CALLIGARIS é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Janeiro de 2015.

O grande romance do século 21 (GREGORIO DUVIVIER)

PRECISO escrever o grande romance do século 21. Mas estou casado e minha vida é uma delícia. Bebemos vinho toda noite e suco verde toda manhã. Ninguém escreve o grande romance do século 21 com essa vida mansa. É preciso um pouco de instabilidade pra se escrever o grande romance do século 21.

Estou separado e morando num motel da Lapa. Difícil escrever o grande romance do século 21 ao som de um bloco de maracatu que se confunde com o show da Anitta na Fundição Progresso enquanto na sua janela um mendigo canta o hino do Flamengo. O colchão tem sanguessugas do tamanho de um polegar e eu devo respeito às baratas porque elas chegaram aqui antes de mim. Durante a noite, alguém levou o laptop. Difícil escrever o grande romance do século 21 no bloco de notas do celular. É preciso um pouquinho de conforto para se escrever o grande romance do século 21.

Estou num flat no Leblon. Ar-condicionado split, lençol banda larga e internet de mil fios. Baixo filmografias e discografias completas num piscar de olhos. Aliás, é só o que eu faço. Difícil escrever o grande romance do século 21 com uma conexão boa dessas. Eu preciso de um pouco de isolamento. Já entendi o que falta: leitura. Para escrever o grande romance do século 21, é preciso, no mínimo, ter lido o grande romance do século 20.

Estou há um ano tentando ler o grande romance do século 20 e não passei da página 23. O livro é dificílimo de ler - se eu não consigo nem ler o grande romance do século 20 como é que eu quero escrever o grande romance do século 21? Talvez o grande romance do século 21 precise ser um livro difícil, ainda mais difícil que o do século 20. Talvez os grandes-romances-do-século sejam iguais às fases de videogame: cada século tem que ter um grande-romance mais difícil que o do século anterior. Tenho que voltar atrás nos séculos.

Muito bom esse grande romance do século 19. Ficou ainda mais difícil escrever alguma coisa depois de ler um negócio tão bom. Agora estragou tudo. Eu não tinha é que ter lido nada. O que eu preciso agora é desler o que eu já li e só viver, que isso já basta: o grande romance do século 21 é uma coisa que acontece naturalmente.

Não aconteceu. Vivi uma vida e não bastou. Morreu o século 21 e eu não escrevi sequer um romance, quanto mais o grande romance do século 21. Mas vivi uma vida longa e moro na praia. Não sei se vivi a grande vida do século 21, mas corto um coco como ninguém. Essa praia, esse céu, essa água de coco... Não sei, não, mas acho que essa é a grande água de coco do século 21.

GREGÓRIO DUVIVIER é ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Janeiro de 2015.

Drogas, traficantes e maledicência (MALU FONTES)

MACHETAR. Quando um veículo de comunicação pega um assunto e resolve, com ele, carregar nas tintas numa manchete, quase sempre o faz com a intenção de turbinar a notícia, torná-la maior que o fato. No jargão jornalístico, essa estratégia é traduzida por manchetar, ou seja, dar à notícia uma manchete mais forte para causar no leitor um desejo maior de leitura, quase sempre deixando o sujeito da notícia em lençóis piores do que aqueles em que, de fato, se meteu.

Um exemplo clássico de manchetagem nessa semana foi uma declaração da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), ex-secretária nacional de Direitos Humanos. Diante do vai e vem de notícias sobre para onde viriam as cinzas do traficante brasileiro Marco Archer, condenado à pena de morte e fuzilado no último sábado na Indonésia por ter, há 10 anos, entrado naquele país traficando 13,5 quilos de cocaína, Rosário fez um post em seu Twitter dizendo não en tender a celeuma do destino das cinzas, lembrando que o sujeito era um traficante, não um herói. Com a postagem, em uníssono, os veículos de comunicação manchetaram: ―Ex-ministra de direitos humanos diz que Archer não era herói, mas traficante‖.

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Em jornalismo, nenhuma palavra é usada de graça nem à toa e se tem coisa que não sobrevive numa redação de jornal, TV, site ou rádio é inocência. Burrice há e sobrevive que é uma beleza, mas a inocência é sempre devorada pelos dentes escancarados da maledicência dos coleguinhas.

O fato é que o verbo dizer, associado a uma ex-ministra de direitos humanos, diante de um episódio de execução por condenação de um brasileiro à pena de morte, sendo chamado por essa ministra de traficante e tendo, também por ela, ressaltada a sua não condição de herói, soa, até para os anencéfalos, como uma declaração insensível de Rosário. Mas como perguntar não ofende, Marco Archer, por acaso, não era traficante e somente traficante ao longo de toda a sua vida? Era herói? Então, quem disse que ele era traficante foi a ex-ministra? Lembrar, ressaltar, enfatizar, reiterar e trocentos outros verbos declaratórios do tipo são muito mais tradutores do que a deputada disse do que o verbo dizer. No contexto, o verbo dizer soa acusatório, algo como se fosse uma acusação feita por ela.

Há debates e controvérsias morais, éticas, religiosas e legais diante da pena de morte. Mas só a demência intelectual é capaz de ter dúvida do que faz alguém ser nomeado ou não como traficante. Sobre Archer, não foi Maria do Rosário que o adjetivou. No jornalismo, e na vida, é preciso dar nome às coisas. Archer, durante toda a sua vida, inteirinha, não foi outra coisa senão traficante. Palavras dele. Para quem não conhece sua trajetória, fica como sugestão o perfil dele escrito pelo jornalista Renan Antunes, que o entrevistou em 4 dias diferentes na prisão, na Indonésia.

Portanto, nada justifica o barulho feito na imprensa repercutindo o fato de Maria do Rosário tê-lo nominado de traficante e ressaltado que não se trata de um herói para tanto blá-blá-blá sobre para onde iriam suas cinzas. O destino do pó que restou de Archer diz respeito somente à família.

Outras notícias top na semana sobre drogas relacionadas a brasileiros além-mar foram a do outro brasileiro no corredor da morte indonésio também por tráfico e a dos dois irmãos catarinenses bem nascidos que encenaram uma pulp fiction nos balneários mexicanos de Cancún e Playa del Carmen. Lá, se entupiram de drogas ao ponto de terem entrado numa paranoia de que estavam sendo perseguidos pela máfia russa e pela polícia mexicana mancomunada. A versão da paranoia na imprensa: brasileiro morre jogado de prédio em Cancún e irmão está desaparecido. A verdade: um se jogou, alucinado numa bad trip causada por todo o tipo de drogas sintéticas e o outro, tão fora do real quanto, fugiu das alucinações dois dias seguidos após a morte do irmão. Drogas e classe média são a receita ideal para manchetar.

MALU FONTES é Doutora em Cultura pela UFBA, jornalista e professora de Jornalismo da mesma Universidade. Jornal CORREIO, Março de 2014.

A difícil escolha do melhor hospital (CRISTIANE SEGATTO)

Até quando o Ministério da Saúde vai negar aos brasileiros o direito à informação sobre os indicadores de qualidade das instituições de saúde?

NO INÍCIO de cada semana, tenho uma única certeza: até o final dela, algum leitor ou colega pedirá a indicação de um bom médico ou de um bom hospital. Não me surpreendo quando vários pedidos surgem no mesmo dia. Acontece com todo jornalista da área de saúde.

Tento ajudar da melhor maneira possível, mas lamento não poder me guiar por parâmetros objetivos. A escolha de médicos sempre será subjetiva, mas é inadmissível que a seleção de hospitais também seja. Até quando o Ministério da Saúde vai negar aos brasileiros o direito à informação sobre os indicadores de segurança e desempenho dos hospitais? Podemos escolher hotéis e restaurantes a partir de critérios técnicos, mas somos impedidos de comparar as diferentes instituições de saúde.

Qual é o índice de infecção do hospital A? E as taxas de complicação do B? Qual é a sobrevida de quem faz uma cirurgia cardíaca ou um transplante aqui ou ali? Esses dados existem - pelo menos no grupo de hospitais privados que passam por longos processos de avaliação internacional para receber selos de qualidade. As informações seguem guardadas a sete chaves. Ainda que um hospital divulgue um ou outro parâmetro (em geral, o mais favorável a ele), o cliente não pode comparar as diferentes instituições.

Meu sonho de consumo é um ranking. Uma ferramenta que me permita escolher o melhor hospital a partir de critérios que realmente façam diferença quando o assunto é saúde. Enquanto essas informações não se tornarem públicas, os pacientes continuarão a escolher hospital da forma mais idiota que existe: pela decisão (muitas vezes, mal informada) das celebridades, pelo piso de mármore e pela decoração elegante.

Saúde é o mais precioso dos bens. Não pode ser delegada a qualquer um. Há coisas que os hospitais não contam, como revelamos nesta reportagem de capa e nesta outra coluna. Os brasileiros precisam acordar para isso e exigir o respeito ao seu poder de decisão. ―De forma geral, os pacientes ainda são muito passivos‖, diz Antonio Lira, superintendente técnico-hospitalar do Sírio-Libanês, em São Paulo. ―Precisamos educar a população para que ela nos vigie mais e nos ajude a melhorar aquilo que não vai bem.‖

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Não sonho com algo impossível. Nos Estados Unidos, o governo criou um site para ajudar a população a avaliar os indicadores de segurança e qualidade de 3.300 hospitais. O cidadão seleciona hospitais de interesse em determinada região e o sistema fornece gráficos com a comparação das instituições com base em indicadores como ―complicações cirúrgicas‖, ―óbitos‖, ―reinternações‖ e ―infecção hospitalar‖.

Enquanto as autoridades brasileiras não atendem a essa necessidade, cabe aos hospitais levar a sério o discurso da transparência. O Sírio-Libanês é um dos que passaram a divulgar alguns indicadores importantes, mesmo quando eles são desfavoráveis à instituição. Ao acessar o site, o cliente pode ver o desempenho do hospital em relação a metas internas de qualidade e em relação aos índices recomendados internacionalmente. Fica sabendo, por exemplo, que o índice de infecção hospitalar piorou ligeiramente no ano passado em relação a 2013.

―Não dá para brincar de ser transparente e mostrar só o que é favorável à instituição‖, afirma Lira. Segundo ele, os fatores que levaram ao aumento dos casos de infecção hospitalar estão sendo investigados. ―Talvez isso tenha ocorrido porque recebemos mais pacientes já infectados com bactérias resistentes aos medicamentos‖. Se um hospital disser que tem índice zero de infecção ou de erros cirúrgicos ou de medicação, fuja dele correndo. É mentira - ou a instituição não está registrando e investigando as ocorrências.

Por mais zeloso que um hospital seja, erros acontecem. Um paciente do Sírio-Libanês procurou a instituição para fazer um checkup. Um tumor inicial no rim foi descoberto e a cirurgia, agendada. Lira conta que todo o ritual de cuidados preconizados pelo hospital para garantir uma cirurgia segura foi realizado. Quando abriu o paciente e olhou o rim, um cirurgião dos mais experientes não observou lesão alguma. Pediu para ver a imagem do exame e, surpreso, notou que o tumor era no outro rim – o esquerdo.

O que deu errado? O cirurgião havia se guiado pelo laudo do radiologista (e não pela imagem) para fazer o corte. Só que o laudo estava errado. Por que o radiologista errou? Mais um caso de falha induzida pela alta tecnologia... O software sofisticado permitia ao radiologista rodar a imagem do exame na tela para observar o órgão em detalhes antes de escrever o laudo. O radiologista rodou a imagem e saiu da sala. Quando voltou, esqueceu que havia feito a inversão e escreveu o laudo como se o tumor fosse no rim direito – exatamente como o enxergava na tela do computador. Um pequeno deslize que expôs o paciente a um risco desnecessário e o hospital, a um enorme constrangimento.

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O resultado: o corte foi fechado e o paciente voltou para o quarto. A equipe, orientada por Lira, explicou a falha ao cliente e assumiu o erro. O caso levou à mudança do software e à adoção de uma dupla conferência da imagem e do laudo antes das cirurgias. Um mês depois, a operação no rim certo foi feita no próprio hospital. O paciente se recuperou e, a convite de Lira, contou sua história publicamente num congresso de tecnologia e cuidados hospitalares.

―Precisamos falar sobre nossos erros para nunca esquecermos que somos falíveis‖, diz Lira. ―A questão não é tentar ser infalível. Todo mundo erra. A questão é como devemos agir depois de uma falha‖. Ouvir isso de um médico que ocupa um alto cargo na gestão de um dos maiores hospitais privados do país é sinal de uma louvável mudança cultural. Muito mais ainda precisa acontecer nas instituições de saúde para que a transparência deixe de ser apenas um discurso conveniente.

CRISTIANE SEGATTO é Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 17 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais e internacionais de jornalismo. Revista ÉPOCA, Janeiro de

2015.

O reinado do inglês nas faculdades da Holanda (VINCENT DOUMAYROU)

―Somos ridículos‖, clamava em 10 de abril de 2013 Geneviève Fioraso, secretária de Estado francesa do Ensino Superior e da Pesquisa: nossas universidades não oferecem ―cursos suficientes em inglês‖. Desde o início dos anos 1990, a Holanda recomenda o

uso da língua de Shakespeare nos cursos superiores.

EM 1989, o trabalhista Jo Ritzen, ministro da Educação da Holanda, declarou que as universidades deviam oferecer mais cursos em inglês. O clima de escândalo criado pela ideia desse atentado à cultura do país foi tal que o Parlamento aprovou uma lei tornando o holandês língua oficial de ensino.

O que na época afligiu a opinião pública hoje virou em grande parte realidade. O uso do inglês tornou-se majoritário nos mestrados universitários – os de maior prestígio –, levando a Holanda ao primeiro lugar na Europa não anglófona em número de cursos oferecidos nesse idioma. Os mais numerosos são os mestrados em Biologia, Engenharia e Economia.

Fatores diversos explicam essa evolução: economia muito aberta e uma língua de origem germânica bastante próxima do inglês, compartilhada apenas com a Bélgica flamenga, o que torna pouco realista uma política de expansão da influência internacional. O inglês já é amplamente difundido no país, que ocupa o terceiro lugar nesse quesito, segundo a empresa Education First, em um universo de sessenta países analisados. Legalmente, o holandês não dispõe de estatuto

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constitucional; a lei de 8 de outubro de 1992 fez dele língua oficial de ensino, mas as derrogações previstas acabam esvaziando seu princípio. Reinado da aproximação

Essa opção permitiria transmitir uma ciência ―internacional por definição‖, defendem os apologistas do todo-poderoso inglês.1 Os seres humanos nunca dispuseram de um idioma tão mundialmente difundido – ―Isso se formos um tanto condescendentes a respeito do que se entende por inglês‖, esclarece o jornalista Christopher Caldwell.2

Na verdade, a promoção da língua de Shakespeare reflete principalmente a competição entre as universidades no interior de uma economia do conhecimento que ―se caracteriza pela comercialização em escala mundial dos produtos da pesquisa e do ensino‖.3 A Declaração de Bolonha, de 19 de junho de 1999, prevê a criação de um espaço europeu de ensino superior – ao estilo do que fez o Caso Bosman, de 1995, para os jogadores de futebol. ―A educação tornou-se um produto de exportação‖, confirma Luc Soete, reitor da Universidade de Maastricht. Nesse contexto, os aparelhos universitários veem nas línguas nacionais um obstáculo à mobilidade estudantil, assim como as barreiras aduaneiras para as mercadorias. Desse modo, a anglicização torna-se a ferramenta linguística do mercantilismo universitário.

Diversos cientistas franceses acreditam que ―a vitalidade da produção intelectual [...] da Holanda, que não aplica nenhuma restrição linguística, é testemunha de que sua cultura não se arruinou pela abertura ao inglês‖.4 Eles consideram essa política um exemplo a ser seguido na França. Mas, mesmo na Holanda, o Onderwijsraad (Conselho de Educação), organismo oficial, recomenda que as universidades justifiquem melhor sua política linguística, a fim de cuidar da perpetuação da língua e cultura holandesas, além de garantir que as partes envolvidas dominem o nível de inglês apropriado.5 Essas recomendações soam como uma crítica da política adotada, sugerindo que ela apresenta falhas.

A decisão da Holanda permitiu que ela melhorasse um pouco sua atratividade. Entre 2000 e 2009, o contingente de estudantes recebido aumentou de 0,7% para 1,2% do total mundial de jovens estudando no exterior.6 No entanto, deve-se observar que, em 2012, 38% deles vinham de um mesmo país, a Alemanha.

A Universidade de Maastricht encarna bem essa internacionalização paradoxal, limitada ao entorno e que não contribui em nada para aumentar a influência da Holanda. Todos os cursos são ministrados em inglês, com exceção de direito holandês e parte do curso de Medicina. Com 47% de estudantes estrangeiros, ela se orgulha de ser ―a universidade mais internacional da Holanda‖. Mas na verdade deveria dizer que é a universidade mais ―inter-regional‖: os alemães constituem três quartos de seus efetivos estrangeiros, seguidos pelos belgas e pelos britânicos.

Silke vem de Aix-la-Chapelle, cidade a menos de uma hora de estrada. ―As relações com os professores são menos acadêmicas do que na Alemanha‖, avalia o estudante. Mas aí termina seu interesse pelo país que o acolhe: ―Eu fiz aulas de holandês, mas desisti‖. ―Os cursos de holandês são gratuitos no primeiro ano, com grande sucesso‖, detalha Peter Wilms van Kersbergen, chefe do Language Centre. Dos 7,5 mil estudantes estrangeiros, porém, apenas oitocentos frequentam o curso, que não é levado em consideração na avaliação final. No final de sua estadia no país, muitos não são capazes de pedir a conta do restaurante em holandês. Essa situação de extraterritorialidade linguística limita claramente a abertura à cultura do país de acolhimento, virtude presumida do intercâmbio estudantil.

Nove das doze principais nacionalidades estrangeiras representadas fazem parte da União Europeia. A Bulgária envia duas vezes mais jovens à Holanda que à Índia. O único membro dos Brics fortemente representado é a China, com 8% do contingente de estudantes estrangeiros. Mais que o incremento de uma influência diante do mundo emergente, a anglicização traduz aqui o estatuto de um idioma cada vez mais hegemônico nas relações internas à Europa – e contradiz o objetivo de multilinguismo proclamado pela União Europeia.

Além disso, artigo publicado pelo NRC Handelsblad descreve o inglês dos professores como aceitável, mas aproximativo. Seu título brinca com um erro: ―How do you underbuild that?‖. A palavra underbuild, desconhecida nesse contexto no mundo anglo-saxão, é um arremedo do holandês onderbouwen, que significa sustentar.7 Esse tipo de formulação inexata abunda, provocando imprecisões de fundo. A expressão torna-se menos espontânea, como indica Jaap Dronkers, sociólogo da educação de Maastricht: ―Meu inglês não é ruim, mas, quando tratava com pesquisadores, eu não tinha a sutileza necessária para nos entendermos‖. Estudos feitos na Suécia mostram que os alunos dão mais atenção à compreensão literal quando o curso é ministrado em inglês em vez de sueco, o que embota seu espírito crítico.8

O inglês funcional, como qualquer língua franca, revela-se útil para interações superficiais – por exemplo, quando um garçom de Antália descreve a vista do mar como ―very nice‖ (muito bonita) –, mas encontra seus limites no contexto do ensino universitário, uma função intelectual superior que mobiliza plenamente as capacidades da língua, pois raramente chegamos ao mesmo nível de nuance e precisão em um idioma aprendido que em língua materna. Essa lei de ferro da competência linguística confirma-se até mesmo em países cuja competência no inglês é considerada excelente. Assim, um observador britânico descreve o tédio provocado pela insipidez de conferências em globish,9 ainda que pronunciadas por um europeu do Norte.10

Os efeitos também poderiam ser prejudiciais para o holandês, num contexto em que muitos observadores preocupam-se com uma deterioração de seu bom uso. É o que vemos quando um estagiário de comunicação admite ―conhecer as regras de ortografia, mas, como sempre precisa escrever em inglês na faculdade, elas ficam meio em segundo plano‖.

Outro perigo é o da ―perda de domínio‖: situação em que os outros idiomas não permitiriam mais expressar alguns conceitos científicos. A perda de domínio é acompanhada de uma perda de prestígio, em seguida de uma perda de

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substância, reduzindo o uso da linguagem ―à casa, ao jardim e à cozinha‖.11 A diversidade cultural não ganha nada com isso. Dronkers teme ―uma situação de diglossia, na qual coabitam duas línguas dotadas de status sociais desiguais‖. Desse modo, o professor discute com seu assistente em holandês, mas lhe escreve e-mails em inglês, pois assim ele pode encaminhá-los a terceiros. O holandês vai pouco a pouco sendo reduzido a relações informais, como um patoá.

A despeito dessas preocupações legítimas, a primazia do inglês não é hoje uma ameaça à existência do holandês. Em compensação, ela prejudica gravemente o estudo de outras línguas estrangeiras. De acordo com Ludo Beheydt, professor da Universidade de Leuven, ―o conhecimento de outras línguas que não o inglês tornou-se tão pequeno que não podemos pedir aos alunos que leiam sequer um artigo em francês ou alemão‖.12 E isso não se limita às universidades holandesas. Segundo uma pesquisa encomendada pela Comissão Europeia, entre os habitantes da União Europeia que se julgam capazes de conversar em uma língua estrangeira, 38% mencionam o inglês. Entre 2005 e 2012, os outros idiomas citados recuaram: o alemão passou de 14% para 11%; o francês, de 14% para 12%; e o russo, de 6% para 5%. Apenas o espanhol aumentou: de 6% para 7%.13 No Reino Unido, o estudo de línguas estrangeiras na escola diminui pouco a pouco.

O contraexemplo escandinavo

Esse empobrecimento torna-se aberrante quando atinge idiomas próximos, como os da Escandinávia, onde está em via de extinção o costume de as pessoas dialogarem cada uma em sua própria língua. Bodil Aurstad ensina norueguês na Suécia e constata que a facilidade para avançar e a proximidade dos países motivam os alunos, que ―em algumas semanas [...] já demonstram um bom entendimento, escrito e oral‖.14 A compreensão pan-nórdica facilitou a abertura cultural, a descrição das realidades escandinavas e a construção de um espaço de boa aliança – fruto linguístico da União de Kalmar, tratado que em 1397 uniu Dinamarca, Suécia e Noruega.

―As instituições escolhem o inglês no piloto automático, porque querem se destacar como atores de nível internacional‖, explica uma revista holandesa. ―As universidades [...] temem ver-se relegadas a um nível provincial, caso sejam destinadas apenas ao mercado interno.‖15 A anglicização facilita a conformidade com as redes globais de pesquisa e aumenta o sentimento de pertencer a uma elite do conhecimento global, móvel e ―globishfona‖. Em um contexto de declínio da cultura clássica, o domínio de um inglês ainda que sumário torna-se critério fundamental de distinção cultural. Não é por acaso que a tirada da secretária de Estado de Ensino Superior, Geneviève Fioraso – sem cursos em inglês, ―estaremos reduzidos a cinco pessoas discutindo Proust em torno de uma mesa‖16–, despreza as belas letras.

Em 1921, Mahatma Gandhi levantou-se contra a superstition daqueles que, na Índia, viam no inglês o único vetor de modernidade.17 Talvez ele não soubesse que um dia seria preciso travar essa luta em escala mundial.

1 François Héran, “L’anglais hors-la-loi?” [O inglês fora da lei?], Populations et Sociétés, n.501, Ined, Paris, jun. 2013. 2 Christopher Caldwell, “The French are right to resist global English” [Os franceses têm razão em resistir ao inglês global], Financial Times, Londres, 17 fev. 2012. 3 Claude Truchot, “L’enseignement supérieur en anglais véhiculaire: la qualité en question” [Ensino superior em inglês veicular: a qualidade em questão], 21 nov. 2010. Disponível em: . 4 Coletivo, “L’anglais a sa place à l’université française” [O inglês tem seu lugar na universidade francesa], Le Monde, Paris, 26 abr. 2013. 5 “Weloverwogen gebruik van Engels in het hoger onderwijs”, Onderwijsraad, Haia, 2011. 6 Estatísticas da Nuffic, organização holandesa para a cooperação internacional no ensino superior. Disponível em: . 7 Marlies Hagers, “How do you underbuild that?”, NRC Handelsblad, Roterdã, 7 mar. 2009. 8 Hedda Söderlundh e Patrik Hadenius, “Engelskan stör lärandet”, Forskning & Framsteg, Estocolmo, 1º dez. 2006. 9 De global english, ou inglês de aeroporto, versão empobrecida do inglês utilizada por falantes de outra língua materna. 10 Simon Kuper, “Why proper English rules OK” [Por que as regras do bom inglês vão bem], Financial Times, Londres, 8 out. 2010. 11 Jaap van Maarle, professor de Amsterdã, em Nederlands in hoger onderwijs & wetenschap?, Academia Press, Gante, 2010. 12 Ludo Beheydt, “L’apprentissage des langues étrangères aux Pays-Bas et en Belgique” [A aprendizagem de línguas estrangeiras na Holanda e na Bélgica], Septentrion 2012-2, Ons Erfdeel, Rekkem, 2012. 13 “Les européens et leurs langues” [Os europeus e suas línguas], relatório da Comissão Europeia, Bruxelas, jun. 2012. 14 Bodil Aurstad, “Des langues semblables, simplement différentes. Enseigner le norvégien en Suède” [Línguas semelhantes, apenas diferentes. Ensinar norueguês na Suécia], Études de Linguistique Appliquée, n.136, Klincksieck, Paris, 2004. 15 Yvonne van de Meent, “Onderzoek ontkracht mythe rond verengelsing HO”, Transfer, Haia, fev. 2012. 16 Citado por Serge Halimi, “Contre la langue unique” [Contra a língua única], Le Monde Diplomatique, Paris, jun. 2013. 17 Pavan K. Varma, Devenir indien[Tornar-se indiano], Actes Sud, Arles, 2011, p.82.

VINCENT DOUMAYROU é jornalista, é autor do livro La fracture ferroviaire [A fratura ferroviária], L‘Atelier, Ivry-sur-Seine, 2007. Ilustração: Samuel Casal. Jornal LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL, Janeiro de 2015.

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David Baker: "Acho que estamos esquecendo de tratar as pessoas com respeito" (LUCIANO RIBEIRO)

Falamos com o professor da School Of Life sobre excesso de informação, Facebook e boas histórias

A THE SCHOOL OF LIFE é um daqueles lugares que a gente gostaria de ter conhecido antes. Eles oferecem ideias, sugestões, desafios e questionamentos para vivermos uma vida melhor. Admiramos bastante o trabalho deles e ficamos bastante lisonjeados quando, por ocasião do curso Intensivo que eles estão oferecendo em São Paulo, entre os dias 23 a 27 de janeiro, pudemos falar com alguns dos professores da Escola. Formulamos quatro perguntas específicas para cada um deles e também mais quatro para todos responderem. Vamos soltando durante a semana, para quem quiser acompanhar.

Hoje, vamos começar com David Baker, um dos professores mais Seniors da The School of Life. Ele é Jornalista e escritor distinto, coach e consultor, baseado em Londres. Ele foi um dos fundadores e editores da Wired e escreve regularmente para algumas das mais reconhecidas publicações do mundo como: Financial Times, The Guardian, Wallpaper, The Independent, Wired, The Face, entre outros.

1. O mote da TSOL é "Good ideas for everyday life" (Boas ideias para a vida cotidiana, em tradução livre). Boas ideias, das quais já estamos cheios, são suficientes para realmente transformarmos nossa vida?

Há boas ideias e boas ideias. Na The School Of Life, nós tentamos manter as coisas práticas. Isso não significa que não possamos sonhar – longe disso: algumas das melhores ideias da vida vêm de imaginar onde nós queremos estar, quanto queremos viver e então lidr com os passos que precisamos dar para chegar lá em um determinado tempo. De fato, se há uma coisa que conecta todos os programas da escola é essa ideia: a de que podemos viver uma vida que é mais autêntica pra nós e que podemos chegar lá aprendendo como assumir menores riscos que nos custem quase nada se derem errado, mas nos entreguem grandes recompensas se eles nos levarem na direção certa.

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2. Acreditamos que um dos grandes males atuais do mundo é o excesso de informação. E o volume produzido cresce assustadoramente. Diante disso, como desenvolver critérios efetivos para não perdermos tempo de vida e navegar melhor em meio a montanhas de conteúdo e distração?

É tentados querer saber toda a informação do mundo por que agora ela está lá, acessível aos nossos dedos. E a internet está crescendo em uma velocidade impressionante agora. No final do ano passado, o Google indexou cerca de 200TB de dados na internet, mas isso é provavelmente apenas 0.004% da informação que está por aí. Nós subimos cerca de 16 anos de vídeo para a internet todos os dias, por exemplo. Obviamente, ninguém pode se manter atualizado com tudo isso, mas muitas pessoas tentam, insistentemente checando Twitter, Facebook, Snapchat e Instagram, procurando por mais e mais informação. A questão não é se conseguimos ou não, mas se realmente queremos isso. Ao invés de ter a internet empurrando para nós informação 24 horas por dia, que tal retomar o controle e apenas buscar a informação que queremos quando realmente precisamos? Eu tentei usar o Facebook por um certo tempo e para ser honesto, eu fiquei um tanto intimidado por toda essa informação chegando até mim, então eu saí de novo e não senti muito a perda. Ao invés disso, quando eu quero saber do que está acontecendo no mundo, eu checo as notícias e quando eu quero saber o que está acontecendo com meus amigos, eu ligo e marco de sairmos para beber algo.

3. Quais os seus critérios práticos e pessoais para definir onde deposita seu tempo e atenção atualmente?

Eu gosto de ter tempo de lazer e tempo para pensar. Isso pra mim, à parte de passar tempo com amigos, é o uso mais importante do meu tempo. Como o neurocientista David Eagleman já mostrou, o cérebro funciona melhor quando ele reflete silenciosamente sobre algo, longe do nosso pensamento consciente. Agora, por exemplo, eu estou na Bahia, passando meu tempo cochilando na praia. Mas é impressionante o qual afiado seu pensamento fica quando você deixa sua mente relaxar dessa forma. Eu venho pra casa no final da tarde para escrever e é impressionante como tudo vem muito mais fácil do que quando a sua mente está ocupada.

4. Seguindo o tema do excesso de informação, notamos também que as pessoas sofrem cada vez mais da escassez de atenção. Estão sem tempo, glorificam a ideia de estarem ocupadas, estão distraídas e parecem cada vez menos dispostas a se engajar com atividades que exijam longo período de concentração, foco e criticidade (como ler livros e artigos mais longos na web).

Deve ser a minha idade, mas eu acho realmente difícil ler longos artigos na web. De alguma forma, a tela é pouco amigável e os seus olhos e mente ficam cansados. Além disso, há todas aquelas distrações – não só na página em si, mas em saber que há toda a rede mundial de computadores apenas a um clique de ser explorada, sem falar em Candy Crush Saga ou Angry Birds. Quando começamos a Wired no Reino Unido, muitas pessoas se perguntaram por que estávamos produzindo uma versão impressa, mas o fato é que ela se tornou imensamente popular. Nós temos artigos de 4000, até 5000 palavras, e é muito mais confortável e satisfatório lê-los no papel. Não há distrações em uma revista e você pode até mesmo deixa-la no banheiro – o que é mais do que pode ser feito com um iPad.

5. Seguindo a tendência, vemos também cada vez mais iniciativas direcionadas para essa cultura disléxica, desatenta. Como se valesse mais à pena sacrificar a mensagem para garantir que as pessoas a leiam. O que você pensa sobre essa cultura da distração, David?

Não há um jeito de garantir que as pessoas vão ler o que você tem a dizer, exceto contar uma boa história. Desde o surgimento do Homo Sapiens, nós tentamos manter a nossa espécie alerta e engajada por meio de boas histórias: deuses são histórias, assim como impérios, mesmo o capitalismo é uma história na qual todos acreditamos, permitindo-nos trocar pedaços de papel inúteis por bens reais que podem ser exibidos nas nossas casas. Mas às vezes, histórias tomam tempo para ser absorvidas e os curtos fragmentos de informação nos quais o mundo digital é muito bom podem ser bastante insatisfatórios, sendo esse o porque, eu acho, de nós os esquecermos tão rápido. Nós temos uma escolha: pensar em poucas coisas profundamente ou muitas superficialmente. É nossa responsabilidade decidir qual preferimos.

5. O que você demorou anos para aprender sobre seu trabalho e agora pode resumir em poucas palavras?

Seja uma boa companhia, orgulhe-se do que você faz, e as pessoas sempre vão ter prazer em trabalhar com você.

6. O que você demorou anos para aprender sobre a vida e gostaria que alguém tivesse te contado décadas atrás?

Nada. Eu não acho que seria útil que pessoas do nosso futuro nos dissessem como viver as nossas vidas. Primeiro, nós não os ouviríamos e depois, eles estariam falando sobre a vida deles, não as nossas. Viver é sobre assumir riscos e cometer erros e enquanto nos parabenizarmos quando as coisas forem bem e refletirmos quando não, vamos crescer como bons seres humanos.

7. Em sua visão, qual tema específico temos negligenciado e deveríamos dedicar mais de nossas conversas e atenção, como sociedade?

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Acho que estamos esquecendo de tratar as pessoas com respeito. Eu não digo por que eles estão velhos ou mais sábios (ou, apenas às vezes, ambos) mas por que eles são diferentes de nós e os valores e motivaçõe que eles têm devem ser diferentes dos nossos. Levou um certo tempo até eu perceber que o que é bom pra mim pode não ser bom pra todo mundo. Mas agora eu entendo isso melhor. Eu acho (espero) que eu esteja tratando os outros de um jeito melhor.

8. Se pudesse recomendar uma só produção cultural (livro, filme, site…) para que a comunidade do PapodeHomem conheça em 2015, qual seria?

Leiam "Sapiens" de Yuval Noah Harari – uma história da humanidade de abrir os olhos, fascinante e fácil de ler.

LUCIANO RIBEIRO escreve para o webmagazinhe Papo de Homem (http://www.papodehomem.com.br). Janeiro de 2015.