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PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA SOCIAIS PPGCS UFRN PAULO VICTOR FÉLIX DE AZEVEDO A CIDADE COMO UM LIVRO ABERTO: caligrafias urbanas nas ruas de Natal/RN Natal 2018

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA SOCIAIS PPGCS … · 2019. 1. 30. · Art", specifically the segments - graffiti and pixo -, in the city of Natal. Based on the proposal to

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PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA SOCIAIS – PPGCS UFRN

PAULO VICTOR FÉLIX DE AZEVEDO

A CIDADE COMO UM LIVRO ABERTO: caligrafias urbanas nas ruas de Natal/RN

Natal

2018

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Azevedo, Paulo Victor Félix de. A cidade como um livro aberto: caligrafias urbanas nas ruasde Natal/RN / Paulo Victor Félix de Azevedo. - 2018. 129 f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grandedo Norte, Centro de Ciências Humanas Letras e Artes CCHLA,Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais. Natal, RN, 2018. Orientadora: Prof. Dra. Norma Missae Takeuti.

1. Sociologia urbana - Dissertação. 2. Paisagem urbana -Dissertação. 3. Graffiti - Dissertação. I. Takeuti, NormaMissae. II. Título.

RN/UF/BCZM CDU 316.334.56(813.2)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRNSistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Central Zila Mamede

Elaborado por MARJORIE ROSIELLE SILVA DO AMARAL - CRB-CRB-15/352

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PAULO VICTOR FÉLIX DE AZEVEDO

A CIDADE COMO UM LIVRO ABERTO: caligrafias urbanas nas ruas de Natal/RN

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, submetida à

banca examinadora como parte dos requisitos para

obtenção do título de mestre em Ciências Sociais.

Orientador (a): Profa. Dra. Norma Missae Takeuti.

Natal

2018

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PAULO VICTOR FÉLIX DE AZEVEDO

A CIDADE COMO UM LIVRO ABERTO: caligrafias urbanas nas ruas de Natal/RN

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, submetida

à banca examinadora como parte dos requisitos para

obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.

Orientador(a): Profa. Dra. Norma Missae Takeuti.

Aprovado em ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

________________________________________

Profa. Norma Missae Takeuti

Presidente – Orientadora

________________________________________

Profa. Roselene Cássia de Alencar

Membro Examinador Externo – Universidade Federal da Bahia

________________________________________

Prof. Fagner Torres de França

Membro Examinador Interno – Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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Dedico este trabalho a meus pais, Paulo e Márcia, a minha

companheira, Nayara, ao meu filho Kauã Serafim e a toda

minha família, que sempre me apoiaram e me

incentivaram para que eu chegasse a esta etapa de minha

vida. Dedico à vida e a todos com quem já compartilhei

bons momentos, aos caminhos sinuosos e aos desafios,

visto que sem as adversidades não teríamos a

possibilidade de crescer e aprender com nossos erros, pois

é assim, com o tempo e a experiência, que se exercita a

resiliência e que se desenvolve a sabedoria.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a minha professora orientadora Norma Takeuti, que me motivou a escrever

o trabalho, acreditou e acompanhou o processo de crescimento e florescimento da minha

escrita, sempre na perspectiva de produzir um conhecimento científico arejado, que

articulasse os conceitos com a experiência da pesquisa, revelando a construção de uma obra

genuinamente criativa e vigorosa.

Aos colegas universitários, com quem compartilhei vivências fundamentais para o

crescimento intelectual, dentro e fora das salas de aula, bem como nas localidades que já

tive oportunidade de visitar por meio da apresentação do meu trabalho. Sou grato por todas

as oportunidades que pude alcançar mediante o âmbito acadêmico.

Agradeço a todos os companheiros e amigos escritores urbanos, com os quais pude

vivenciar emocionantes momentos, desde pinturas efêmeras a painéis extensos, em

inusitadas situações. Nessas aventuras, tão enriquecedoras para a narrativa da pesquisa, foi

possível conhecer distintas personas, uma vez que, diferente do tradicional artista visual de

ateliê, na rua estamos em diálogo direto com as pessoas, em situações que ora somos

elogiados, ora somos confrontados. Toda essa experiência me faz acreditar fortemente no

poder da arte como ferramenta política de transformação da sociedade, através do

aprendizado com o próximo, respeitando diferenças, e exercitando a liberdade, buscando um

equilíbrio ideal entre temperança e rebeldia.

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RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo investigar a cidade contemporânea a partir do fenômeno

da “Arte Urbana”, especificamente os segmentos - graffiti e pixo -, na cidade de Natal. Tendo

como base a proposta de pensar “a cidade como um livro aberto”, para articular os conceitos

teóricos com a experimentação artística na qual se insere o pesquisador, a superfície da

cidade é pensada nesse contexto como material de análise científica ao mesmo tempo que

densa descrição narrativa. Para tal finalidade, são explorados três conceitos principais; o de

literatura menor (DELEUZE; GUATTARI, 1977); a partilha do sensível (RANCIÈRE,

2005); e heterotopia (FOUCAULT, 2013). Nesse sentido, a pesquisa encadeia o exercício

intelectual com a sensibilidade poética, para perceber e pensar as escritas citadinas. Sendo

assim, o trabalho tem como propósito evidenciar as narrativas enunciadas por essas práticas,

questionando como elas ressignificam o espaço urbano de modo estético e político, na

medida em que desafiam a arquitetura da cidade. Portanto, compõe-se uma cartografia da

cidade de Natal, pensando como as expressões citadinas se articulam com o mobiliário

urbano, a partir das fotografias registradas pelo pesquisador e a experiência empírica e

etnográfica urbana.

Palavras-chave: Cidade. Graffiti. Pixo. Literatura menor.

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ABSTRACT

This dissertation aims to investigate the contemporary city from the phenomenon of "Urban

Art", specifically the segments - graffiti and pixo -, in the city of Natal. Based on the proposal

to think "the city as an open book", to articulate the theoretical concepts with the artistic

experimentation in which the researcher is inserted, the surface of the city is thought in this

context as material of scientific analysis while dense narrative description. For this purpose,

three main concepts are explored; or of minor literature (DELEUZE, GUATTARI, 1977);

the sharing of the sensitive (RANCIÈRE, 2005); and heterotopia (Foucault, 2013). In this

sense, the research chains the intellectual exercise with the poetic sensibility, to perceive

and to think the urban writings. Thus, the purpose of the work is to highlight the narratives

enunciated by these practices, questioning how they re-signify urban space in aesthetic and

political terms, insofar as they challenge the architecture of the city.

Key-words: City. Graffiti. Pixo. Minor literature.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Poesia urbana “Pazciência”. Neópolis/novembro, 2016. .................................. 19

Figura 2 – Assinatura “Pazciência”, Avenida Abel Cabral/dezembro, 2016. .................... 20

Figura 3 – Diagrama “A cidade como um livro aberto”. .................................................... 21

Figura 4 – Avenida Roberto Freire, instalações abandonadas, “LPE, GTS, RBO, LKS e

outros”. Capim Macio/fevereiro, 2017. .............................................................................. 29

Figura 5 – Pilastra embaixo do viaduto do Baldo, “INFLUENCIA”. Baldo/fevereiro, 2017.

............................................................................................................................................. 30

Figura 6 – Avenida Abel Cabral, lagoa de captação, “RASTA, BONES”. Nova

Parnamirim/março, 2017..................................................................................................... 31

Figura 7 – Margens da BR 101, instalações abandonadas, “LKS, VLZ, NYAH”.

Neópolis/março, 2017. ........................................................................................................ 32

Figura 8 – Margens da Rodovia BR 101, verso de outdoor “SNAIK, MAGO, FERA, VEP”.

Capim Macio/março, 2017.................................................................................................. 34

Figura 9 – Corredores do setor de aulas II, “NYAH”. UFRN/abril, 2017. ......................... 35

Figura 10 – Rua Carmindo Quadros, carro abandonado, “VAN, PAZ”. Nova

Parnamirim/novembro, 2016. ............................................................................................. 36

Figura 11 – de A à Z, alfabeto caligrafia urbana por Everson Menor. janeiro, 2016. ........ 42

Figura 12 – Blackbooks – cadernos de esboço/desenho. .................................................... 43

Figura 13 – Caligrafia Urbana “Menor e FB”. Nova Parnamirim/janeiro, 2016. ............... 44

Figura 14 – Outdoor vandalizado “Pazciência”. Nova Parnamirim/outubro, 2017. ........... 45

Figura 15 – Espaço abandonado Monte Belo. Margem da BR-101/janeiro, 2017. ............ 46

Figura 16 – Espaço abandonado Monte Belo. Margem da BR-101/janeiro, 2017. ............ 47

Figura 17 – Lagoa de captação Nova Parnamirim, “STOMP, ARBUS” letra e personagem.

Nova Parnamirim/outubro, 2017. ....................................................................................... 48

Figura 18 – Ruínas à margem da BR 101/setembro, 2017. ................................................ 49

Figura 19 – Passarela Potilândia. BR-101/outubro, 2016. .................................................. 50

Figura 20 – Pixo atropelando publicidade “elafantxe”, Av. Roberto Freire / fevereiro, 2017.

............................................................................................................................................. 51

Figura 21– “Elafantxe” pixo pictórico, marginal da BR-101 /outubro, 2016. .................... 51

Figura 22 – Graffiti rosto de letras por “Sheep”. Bloco I do Setor de aulas II.

UFRN/fevereiro, 2016. ....................................................................................................... 53

Figura 23 – “Pazciência x Mal”. Passo da Pátria/setembro, 2017. ..................................... 54

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Figura 24 – Fábrica abandonada. Marginal da BR-101/agosto, 2017. ............................... 56

Figura 25 – Bairro do Alecrim, Natal/RN, “Gapix”. Alecrim/outubro, 2017. ................... 59

Figura 26 – Galpão abandonado letreiro “Pazciência 122”, Nova Parnamirim, Rua Aníbal

Brandão. /janeiro, 2016. ...................................................................................................... 65

Figura 27 – Sequência de xarpi. Nova Descoberta/julho, 2017. ......................................... 72

Figura 28 – Sequência de xarpi. Mirassol/agosto, 2017. .................................................... 73

Figura 29 – Recortes duas assinaturas de xarpi solo. UFRN/outubro, 2017. ..................... 73

Figura 30 – Letreiro “Loukos”. Baldo com Av. Prudente de Morais/março, 2017. ........... 75

Figura 31 – Letreiro “LPE e OCE”. Neópolis/junho, 2017. ............................................... 75

Figura 32 – Edifício Abandonado. Cidade Alta/novembro, 2017. ..................................... 76

Figura 33 – Grapixo “BDL”. Capim Macio/outubro, 2017. ............................................... 77

Figura 34 – Grapixo “LPE”. Capim Macio/outubro, 2017. ................................................ 77

Figura 35 – Letreiro “NEURA”. Cidade da Esperança/dezembro, 2017. .......................... 78

Figura 36 – Buraco da Catita, BOMB “Felix”. Ribeira/novembro, 2016........................... 79

Figura 37 – BOMB “Paz”. Av. Roberto Freire/janeiro, 2017. ........................................... 80

Figura 38 – BOMB “OsLoucos”. Nova Parnamirim/outubro, 2017. ................................. 80

Figura 39 – BOMB “Aisha e Curio”. Av. Xavantes, Satélite/novembro, 2017. ................ 81

Figura 40 – Peça “Bones”. Passo da Pátria/setembro, 2017. .............................................. 82

Figura 41 – Peça “Grab”. Neópolis/outubro, 2017. ............................................................ 83

Figura 42 – Letra “Hades”. Potilândia/novembro, 2014. .................................................... 84

Figura 43 – Letra “Hugh”. Potilândia/dezembro, 2014. ..................................................... 84

Figura 44 – Letra “Osmo”. Potilândia/dezembro, 2014. .................................................... 84

Figura 45 – Graffiti 3D “Hugh”. Vila de Ponta Negra/fevereiro, 2016. ............................. 85

Figura 46 – Graffiti 3D “Hugh”. Neópolis/março, 2016. ................................................... 86

Figura 47 – Sopa de letras o processo. Av. Deodoro da Fonseca/julho, 2017. ................... 87

Figura 48 – Sopa de letras, registro “o antes e o depois”. Av. Deodoro da Fonseca/julho,

2017..................................................................................................................................... 89

Figura 49 – Sopa de letras Pixo. Av. Deodoro da Fonseca/julho, 2017. ............................ 90

Figura 50 – Sopa de Letras “o processo”. Av. Prudente de Morais/novembro, 2017. ....... 92

Figura 51 – Sopa de letras finalizada. Av. Prudente de Morais/novembro, 2017. ............. 93

Figura 52 – Terceira Sopa de Letras. Av. Bernardo Vieira/fevereiro, 2018. ...................... 95

Figura 53 – Terceira Sopa de Letras. Av. Bernardo Vieira/fevereiro, 2018. ...................... 96

Figura 54 – Supermercado Bom Preço abandonado, Av. Roberto Freire. /setembro, 2013.

........................................................................................................................................... 102

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Figura 55 – Supermercado abandonado, letreiro “Pedurso”, Av. Roberto Freire /setembro,

2013................................................................................................................................... 103

Figura 56 – Supermercado abandonado, “Binho Duarte”, Av. Roberto Freire / setembro,

2013................................................................................................................................... 104

Figura 57 – Ruínas do Supermercado Bom Preço abandonado, “Mal”, Av. Roberto Freire

/setembro, 2013. ................................................................................................................ 105

Figura 58 – Estacionamento abandonado Bom Preço. /maio, 2014. ................................ 106

Figura 59 – Área externa do Supermercado Bom Preço, Rua Professor Adolfo Ramires

/julho, 2014. ...................................................................................................................... 107

Figura 60 – Fachada da frente Supermercado Bom Preço abandonado, Av. Roberto Freire

/julho, 2014. ...................................................................................................................... 107

Figura 61– “Presépio de Natal” processo de pintura. Av. Prudente de Moraes /abril, 2013.

........................................................................................................................................... 109

Figura 62 – Processos coletivos de pintura nas galerias abandonadas, Av. Prudente de

Moraes /maio, 2013. ......................................................................................................... 110

Figura 63 – Galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes /outubro, 2017. .................. 112

Figura 64 – Galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes /outubro, 2017. .................. 112

Figura 65 – Galerias abandonadas., Av. Prudente de Moraes / outubro, 2017. ................ 112

Figura 66 – Galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes / outubro, 2017. ................. 113

Figura 67 – Galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes /outubro, 2017. .................. 113

Figura 68 – Galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes/ abril, 2018 ........................ 113

Figura 69 – A cidade como um livro aberto “esboço”, Av. Prudente de Moraes. /março,

2018................................................................................................................................... 117

Figura 70 – A cidade como um livro aberto, processo “cores”, Av. Prudente de Moraes

/março, 2018. .................................................................................................................... 117

Figura 71 A cidade como um livro aberto, processo "detalhamento", Av. Prudente de Moraes

/ março de 2018 ................................................................................................................. 118

Figura 72 Obra finalizda registro, Av. Prudente de Moraes / abril 2018.......................... 118

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 12

1.1 CAMINHOS DA PESQUISA................................................................................. 16

2 CALIGRAFIA URBANA: dentro da rua e fora da língua ............................... 23

2.1 POR UMA NOÇÃO DE “CALIGRAFIA URBANA” .......................................... 23

2.2 LITERATURA MENOR: fora do território oficial da língua ................................ 37

2.3 ESCRITURA NA RUA: comunicação e linguagem visual .................................... 55

3 DAS RELAÇÕES QUE SE COMPARTEM NA ESCRITA ............................ 64

3.1 DO INDIVIDUAL AS RELAÇÕES ESTÉTICAS E POLÍTICAS ....................... 64

3.2 ESTILOS ................................................................................................................. 69

3.2.1 Xarpi (piXar) .......................................................................................................... 72

3.2.2 Letreiro (Lettering) ................................................................................................ 74

3.2.3 Grapixo ................................................................................................................... 76

3.2.4 Bombardeio (bomb) ............................................................................................... 78

3.2.5 Peça mestre (Masterpiece)..................................................................................... 81

3.2.6 Estilo selvagem (Wildstyle) .................................................................................... 83

3.2.7 Letras 3D ............................................................................................................... 84

3.3 SOPA DE LETRAS – UM ENCONTRO ENTRE ESCRITORES ........................ 86

4 RUÍNAS CITADINAS .......................................................................................... 98

4.1 NARRATIVAS URBANAS ................................................................................... 98

4.2 DESTROÇOS DE UM SUPERMERCADO ABANDONADO .......................... 101

4.3 O ELEFANTE BRANCO SE TORNA COLORIDO ........................................... 108

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: lampejos de cor em meio ao cinza .................. 119

REFERÊNCIAS .................................................................................................. 127

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1 INTRODUÇÃO

“As paredes são páginas,

alguns desenham,

outros escrevem,

bem fazem os que se atrevem,

a se arriscar, por gestos incertos,

porém que ao certo.

Despertam,

diversos universos1...”

Este estudo é dedicado a compreender a cidade contemporânea a partir da

investigação de uma forma de expressão em evidência – a “arte urbana”2. Refiro-me a uma

forma de linguagem visual na qual se “inscrevem” e se “escrevem” imagens e textos na

superfície da cidade; e, por linguagem, entende-se como um sistema de elementos gráficos

dispostos em certa composição. Aqui, no caso, a arte na rua realizada em contexto urbano.

Pensar a cidade contemporânea é certamente uma tarefa desafiadora, um exercício laborioso,

o qual a sociologia não pode deixar de se empenhar, sendo este um campo de infindáveis

possibilidades. Devendo-se, então, definir em primeiro lugar de qual ponto de

partida...pretende-se começar, para assim situar nossa percepção acerca da cidade

Durante o texto, quando me referir a “arte urbana” ou “arte na rua”, faço questão de

deixar claro que estarei tratando dos segmentos específicos – graffiti3 e pixo4 – considerando

que ambos são manifestações de semelhante natureza. E, mesmo considerando suas

diferenças, observo que seria impossível para este trabalho de dissertação pensá-los de forma

dissociada da relação pela qual partilham no habitar da cidade. A esse propósito, utilizarei o

conceito de literatura menor (DELEUZE; GUATTARI, 1977) para dar fundamento ao

conteúdo desta escrita que se escreve diretamente na cidade, onde os escritores são autores

ativos de uma “obra literária”, sem muitas regras gramaticais e ortográficas previamente

estabelecidas, um tipo de literatura não convencional, capaz de compelir a mudar a

perspectiva de como enxergamos a cidade. Para esse fim, somos convidados a ler a cidade

1 Poesia composta em colaboração dos artistas “Pazciência” e “Alguém?”. 2 A expressão arte urbana ou streetart se refere a um movimento de fazer artístico que foi gradativamente se espalhando

pelas cidades e compreende várias modalidades desde as expressões mais visuais que tratamos neste trabalho como o

graffiti e o pixo, até outras formas como estátuas vivas, malabarismo, teatro, performance instalações, por exemplo. De

maneira geral, é possível considerar como arte urbana todo tipo de expressão criativa que se faz no espaço coletivo em

contexto urbano. Esta, por sua vez, deve ser considerada enquanto uma prática social, segundo Vera Pallamin (2000, p.

13), enquanto “um modo de construção social dos espaços públicos, uma via de produção simbólica da cidade, expondo e

mediando suas conflitantes relações sociais.” 3 Utilizaremos a grafia graffiti em vez de grafite para respeitar o modo como é escrito por seus praticantes, e também

devido à raiz etimológica da palavra que será trazida para discussão mais adiante. 4 Utilizaremos a grafia pixo e pixação, em respeito ao modo como é escrito por seus praticantes, em vez de picho e pichação,

como se escreve de acordo com a regra ortográfica da língua portuguesa.

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de um modo diferente a começar pelas expressões que chamaremos adiante de“caligrafias

urbanas”.

Dessa maneira, foi eleito, portanto, o título de “A cidade como um livro aberto”, para

definir este estudo, focado em compreender essas narrativas citadinas, considerando que as

análises científica e teórica compartilham o espaço de reflexão com a experimentação escrita

dentro da cidade. Para deixar mais claro, durante o desenvolvimento da pesquisa, considero

que me situo em ambos os lados da investigação, tanto como pesquisador que coleta dados

e descreve narrativas, quanto como objeto de estudo, no sentido de que também sou um

escritor urbano, compositor de caligrafias, que risca e se arrisca (polissemia da expressão

“riscar” que exploraremos mais adiante) dentro da cidade, experimentando as possibilidades

dessa forma de habitá-la. De tal maneira, distingue-se qualquer noção equivocada de que

existe uma fronteira sólida entre pesquisador e objeto de pesquisa, quando há, na verdade,

uma relação de continuidade e de contiguidade.

As inquietações, ao estudar esses tipos de literaturas menores5, surgem, ainda em

tempos de graduação6, quando me permiti explorar esse universo enquanto “escritor de rua”.

Naquele tempo, não tinha sequer muita experiência, apenas alguns poucos conhecidos que

também realizavam essa prática, um caderno de rascunhos no bolso, algumas poucas tintas

e bastante disposição para arriscar e riscar; ousei, então, experimentar essa sensação e as

zonas de intensidade que poderia proporcionar. Até os dias de hoje, essa prática compõe a

minha existência social; melhor dizendo, ela se articula com outros exercícios de minha

existência, como o exercício intelectual-acadêmico.

Encontro-me, portanto, entre a prática científica da construção da dissertação e a

composição artística da escrita na rua. É certo que ambas essas práticas me proporcionaram

amplas experiências, para fora da minha cidade e até do meu país, mas, ao mesmo tempo,

elas nunca se anulam, certamente se complementam. Por exemplo, em diversos eventos

acadêmicos que participei e apresentei algum fragmento desta pesquisa, também fui, em

paralelo, compor escritos e pinturas nas cidades que visitei, como parte da investigação.

Logo, dessa experiência pude apreender muitos conteúdos e compartilhar, tanto com outros

pesquisadores, como com outros escritores urbanos, discussões que alargassem a percepção

dessa prática nas cidades.

5 “Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas aquilo a que uma minoria faz em uma língua maior” (DELEUZE,

GUATTARI, 1977, p 25). É nesse sentido que observamos os grafismos citadinos como a manifestação de uma literatura

menor, que utiliza a cidade como suporte para escrita de sua obra. 6 Graduação em Ciências Sociais (2010 – 2015), pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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Percebi, nesse momento, que ainda que eu recortasse o meu objeto de pesquisa, o

recorte espacial físico não me parecia tão acentuado quanto às conexões articuladas por

ambas as escritas – acadêmica e urbana – que promoveram intercâmbios de experiência e

laços de amizades. Nesse sentido, é possível dizer que esta pesquisa se estende para além de

seu espaço circunscrito: a minha vivência. Ainda que essas práticas tenham ampliado meus

horizontes para além da minha própria cidade, depois de bastante reflexão, notei que, grosso

modo, as caligrafias urbanas são formas de expressão que se manifestava em todas as

grandes cidades do mundo, o que, em alguma medida, pode considerá-las como uma prática

global. Afinal, acabei por decidir, para fins desse estudo, considerar principalmente a sua

prática local. Estabeleci, portanto, que o palco desta dissertação, enquanto um recorte

espacial, deveria ser a cidade de Natal, o qual se tornava criterioso por ser em um local onde

presenciei e compartilhei diversas experimentações. Estas, por sua vez, lançaram-me dentro

do universo desta pesquisa, pois se tratava da cidade que foi meu ponto de partida. Assim,

para a razão deste estudo específico, todas as imagens se resumem a registros realizados em

Natal (e sua região metropolitana7), Rio Grande do Norte.

Após definido o recorte espacial da pesquisa, reitero os motivos que me fizeram tratar

o graffiti e o pixo dentro da caligrafia urbana como duas faces da mesma moeda. Seria

possível dedicar-me a cada um deles separadamente, no entanto, deixaria uma lacuna no

estudo de uma questão que não poderia passar despercebida, “perderíamos um ponto

fundamental da reflexão: a comunhão subterrânea que eles possuem, tanto na história da

prática como nas interdependências processuais para interferirem na cidade” (FRANCO,

2009, p. 20). Franco (2009), como um dos estudiosos pioneiros sobre as questões que

envolvessem o graffiti e o pixo no Brasil, já notava que para a discussão do campo interno

as duas práticas – graffiti e pixo – foram se distinguindo formalmente, pois, embora as duas

permanecessem ilegais, a repressão caiu com mais força sobre a pixação, em razão de sua

radicalidade estética mais agressiva e de afrontamento, já o graffiti obteve maior aceitação

por parte da sociedade devido a seu aspecto decorativo e ornamental, portando uma estética

mais admissível aos olhos de uma parcela expressiva da sociedade. Ainda assim, podemos

presumir que grande parte dos escritores transitam entre essas duas linguagens, uma vez que

ambas têm origem da mesma matriz, ainda que alguns escritores se identifiquem mais com

uma prática do que com outra.

7 A região metropolitana de Natal, conhecida como grande Natal, é formada pela capital Potiguar e reúne mais quatorze

municípios do estado do Rio Grande do Norte: Parnamirim, São Gonçalo do Amarante, Macaíba, Extremoz, Ceará-Mirim,

Ielmo Marinho, Maxaranguape, Monte Alegre, Nísia Floresta, São José de Mipibú, Vera Cruz, Arês e Goianinha.

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Quando nos perguntamos quem são esses escritores, indivíduos ativos no exercício

de uma prática que se inscreve na superfície da cidade, a caligrafia urbana, certamente

encontraremos algumas contradições. É sabido que essas práticas – graffiti e pixo –

compõem modos de vida associados a uma determinada juventude contemporânea. Ainda

que este não seja o foco da investigação, os jovens comparecem, em grande maioria quando

comparados a outras categorias geracionais, enquanto indivíduos escritores de rua lançando-

se em experimentações sociais que podem se inscrever no próprio fluxo da vida urbana para

participar de sua transformação. Nesse sentido, não se pertence a um grupo, bem como não

se adere a uma dada experimentação, de maneira estática; a cidade assim como os indivíduos

que praticam escrita urbana estão em movimento, pois, o que está em jogo é o fluxo de

transições e não uma categoria sólida de identidade.

No que concerne à pixação, a maior parte dos praticantes é oriunda de bairros

periféricos, o que não significa isso ser uma regra restritiva de acesso à prática. Já no graffiti,

para além de jovens da periferia, nota-se uma maior incidência de pessoas financeiramente

mais favorecidas, inclusive em razão de essa prática exigir um maior investimento monetário

(cada lata de spray custa em média de vinte reais por unidade); logo, é necessária uma

quantidade maior e mais diversificada de material, do que para realizar o pixo. Com relação

ao gênero de escritores, a maioria dos praticantes são homens, contudo, também existe uma

participação enérgica das mulheres, as quais inclusive reivindicam seu espaço enfatizando a

presença feminina no interior desse espaço majoritariamente masculino. Entretanto, se essas

observações são feitas para efeito de contextualização do leitor, elas não serão o eixo central

da pesquisa, esta, por sua vez, dedica-se mais especificamente a discorrer sobre a construção

de tal prática no espaço urbano, explorando o campo das inventividades e composições que

trazem à tal prática maior notoriedade e visibilidade – seja ela positiva seja, até mesmo,

negativa – no seio das cidades contemporâneas.

Em virtude de termos a superfície urbana como campo de investigação, esta pesquisa

é em sua maior parte registrada e examinada nas ruas da cidade. Levo em conta que a rua é

constituída de um espaço heterogêneo, de modo que não se pode ambicionar, em uma

pesquisa, abranger a totalidade; no entanto, irei delimitar (no sentido de construir) um espaço

circunscrito, no qual me coloco, existo e pratico a linguagem da caligrafia urbana e a partir

do qual experimento, observo e descrevo esse agir mediante uma linguagem etnográfica e

de registros visuais.

Desde então, o objetivo deste trabalho é o de evidenciar as formas de manifestar, por

meio da escrita dentro da cidade, a ideia de uma “‘cidade como livro aberto”, ao ponto que

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possamos ter as ferramentas conceituais aliadas à sensibilidade poética a fim de poder ler

essas narrativas. Sendo assim, a questão norteadora central da pesquisa é “em que medida a

caligrafia urbana é capaz de desafiar a arquitetura da cidade, enquanto ressignifica o espaço

urbano por intermédio de sua própria estética e política de existir?”. Por ora, já uma grande

questão para um trabalho de dissertação.

1.1 CAMINHOS DA PESQUISA

Ao me deparar com o problema da pesquisa, surgiu uma tarefa imprescindível de se

pensar: a ponderação reflexiva em como proceder, no sentido de desenvolver um raciocínio

lógico para pensar e compreender essas práticas inseridas ao contexto urbano. No entanto,

questionei-me como o raciocínio lógico poderia ser suficiente em um tipo de pesquisa que

pretende captar sensibilidades artísticas e estéticas, as quais atravessam também o agir do

pesquisador. Como alguém que pertence à academia científica e atua diretamente em uma

prática artística, mediante a finalidade de alicerçar uma narrativa discursiva que equilibre

razão e sensibilidade.

Nesse momento, atentei para o texto de um autor que contribuiu para o pensar do

caminho da pesquisa. Robert Nisbet (2000), em sua a obra A sociologia como uma forma de

arte, disserta acerca das contribuições da sociologia para o pensamento moderno. Nesse

intuito, ele traz a convicção de que os maiores avanços da disciplina se dão por meio de

processos que a mesma partilha com a arte, isto é, “sejam quais forem as diferenças entre

ciência e arte, é o que elas têm em comum o que mais importa para a descoberta e a

criatividade” (NISBET, 2000, p. 112). Pois, de acordo com o pensador, não se necessita ir

muito além da renascença para notarmos que a arte e a ciência podem ser concebidas como

manifestações diferentes de uma mesma forma de consciência criativa. Sendo arte e ciência

a princípio indissociáveis, houve um momento de cisão, relacionada à Revolução Industrial

no final do século XIX, quando “gradualmente espalhou-se a ideia de que a ciência,

diferentemente da arte, flui através dos mesmos canais metódicos e sistemáticos que os

negócios ou do direito ou da medicina. (NISBET, 2000, p. 115)”.

Nessa época, a ciência passava a contaminar-se de um “narcisismo metodológico”,

o qual se apegava fortemente a uma rigorosa observância aos procedimentos. Com o passar

do tempo, consolidou-se a ilusão de que enquanto a ciência se preocupava em pensar a

realidade, a arte tratava de nada mais que o ornamental, o decorativo e o estético. O que

passa é que essa desleal noção cria certa confusão, em sua capacidade de ser prejudicial

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tanto para a arte como para a ciência, isto é, nas palavras de Nisbet (2000, p. 120), “muitos

sociólogos têm assumido que, porque o pensamento científico é, por definição, racional e

lógico em sua expressão, seus caminhos psicológicos devem ser, portanto, limitados a

processos estritamente empíricos e lógicos”.

O que se deve reconsiderar é que, para se chegar a um determinado resultado dentro

de uma pesquisa científica, o nosso pensamento não deve operar apenas por vias racionais,

ou seja, quando reflete e chega a um insight8, por exemplo, o cientista passa pelo mesmo

momento de imaginação criativa, digamos pela inspiração do mesmo modo que o artista.

Diante disso, postula-se que não se pode deixar o pensamento científico correr o risco de se

afundar em uma metodologia estritamente racionalista, passando então a praticar um modo

científico arejado, que se abra espaço para uma aliança equilibrada entre a intuição, a arte e

a poesia. É esse o sentido de se equiparar o fazer sociológico como uma forma de fazer arte.

Tal reflexão me motivou a pensar a composição da escrita deste trabalho como uma

relação entre os estímulos provenientes da arte e da sociologia. Sendo assim, para este fim

metodológico, durante a escrita, o recurso da metáfora é utilizado como grande aliado na

descrição das narrativas da cidade. Desse modo, pensamos “a cidade como um livro aberto”

ou “o graffiti e o pixo como uma tatuagem na pele da cidade” como figuras imagéticas as

quais podemos associar na mente através do recurso da metáfora.

O pensamento humano, em geral, é inconcebível sem um certo grau de utilização

da metáfora. Cada vez que identificamos uma coisa com outra – normalmente uma

mais bem reconhecida na natureza que a outra – estamos recorrendo à metáfora.

“A mente é uma máquina”; “nosso deus é uma poderosa fortaleza”; “as sociedades

são organismos”; todos esses são exemplos de construções de metáforas. A

metáfora não é um simples recurso gramatical, uma mera figura de retórica, isto

é, isso não constitui sua plenitude. A metáfora é uma via de conhecimento, uma

das mais antigas, profundamente enraizada e quase indispensável conhecida forma

de saber na história do pensamento humano9. (NISBET, 1979, p. 55)

Esse modo de pensar, levou a um caminho epistemológico instigante, no sentido de

pensar a metodologia de escrita da dissertação por meio de uma linguagem mais fluida, que

levasse em conta tanto o arcabouço teórico que sustenta a argumentação lógica do trabalho,

quanto a flexibilidade da narrativa, assim como fazem os cronistas e contadores de estórias.

Dentro dessa perspectiva, um segundo autor me pareceu pertinente na perspectiva de um

equilíbrio de diálogo entre arte e ciência. Edgar Morin (2005), em uma obra intitulada Amor,

poesia, sabedoria, observa a existência de dois tipos de linguagem durante toda a história:

8 Acontecimento cognitivo associado a uma repentina capacidade de discernimento, que pode ser descrita como uma

espécie de epifania. Uma clareza súbita da mente, no intelecto do indivíduo; iluminação, estalo, luz. 9 Tradução da versão espanhola em La sociologia como uma forma de arte (NISBET, 1979, p. 55).

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“uma, racional, empírica, prática, técnica; outra, simbólica, mítica, mágica. A primeira tende

a precisar, denotar, definir, apoia-se sobre a lógica e ensaia objetivar o que ela mesma

expressa. A segunda utiliza mais a conotação, a analogia, a metáfora.” (MORIN, 2005, p.

35). Essas duas linguagens são concebidas respectivamente enquanto prosaica e poética

podem estar justapostas, misturadas ou separadas; de qualquer modo, as duas coexistem no

tecido da vida. Em meu ponto de vista, a linguagem prosaica é análoga à científica, enquanto

a linguagem poética é análoga à artística.

Nesta dissertação, a escrita se configura enquanto um diálogo entre o prosaico e o

poético, escapando diversas vezes da narrativa exclusivamente racionalista. A partir do

momento em que penso a metáfora “a cidade como um livro aberto”, é possível

imaginarmos, do ponto de vista racional, sua arquitetura como um grande colosso de

concreto e metal, os prédios como dentes que saem da boca do asfalto até o céu, as ruas e

viadutos como linhas que cortam e organizam racionalmente a cidade; já a poesia que se

encontra nas narrativas da escrita urbana, escaladores com latas de spray gravando seus

nomes em locais mais inusitados; assim como a “flor que nasce do asfalto10”, análogo à

natureza que rompe o concreto, se movimenta pelas rupturas do cimento e não cessa de

surgir com ímpeto, assim é também a escrita, seja regada por motivações seja cortada como

uma erva daninha, ela não cessa de brotar e de se espalhar selvagemente.

Mediante as experimentações da escrita na rua, encontrei-me em uma vereda

bifurcada a qual metaforicamente denominei “diálogo de risco” – essa expressão remete a

um movimento de bifurcação com sentido ambíguo: de um lado, movimentos de riscar, de

rabiscar, de marcar uma superfície ou de inscrever um pensamento; de outro lado, o de se

arriscar, correr riscos, de desenvolver atividades perigosas ou desestabilizantes. Desse

modo, a experimentação como escritor me colocou em um lugar onde a escrita se entremeia

ao risco da invenção poética enquanto trava contato com a escrita acadêmica, que, por sua

vez, opera uma predominância da linguagem racional.

É nessa relação entre as escritas que, quando me coloco no trabalho de campo, na

rua, desloco-me do pesquisador científico e me refaço no escritor urbano. Enquanto

pesquisador acadêmico assino sob meu nome de batismo Paulo Azevedo, já na rua, transfiro-

10 “Uma flor nasceu na rua! Passem longe, bondes, ônibus, rio de aço e tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia,

rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu. É feia. Mas é flor. Furou

o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio” trecho da poesia “A flor e a náusea”, de Carlos Drummond de Andrade. OLYMPIO,

José, 1978, p.14).

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me para uma figura de heteronímia11, assinando como “Pazciência”, cuja assinatura não é

apenas uma espécie de pseudônimo, é uma personalidade que se expressa na rua enquanto

escrita, é a junção das ideias de paz e ciência com a ideia de paciência na composição,

formando uma nova palavra, uma produção de sentido íntima, por meio da qual convido o

leitor a refletir.

É nas ruas que me desfiguro da linguagem racional acadêmica e me lanço em uma

experimentação poética e política, na composição de versos, imagens, e até na afirmação da

minha própria assinatura, encarando-me em uma relação com a cidade capaz de transformar

a vivência urbana, seja de modo mais externo e objetivo grifando as superfícies, seja até de

modo mais interno e subjetivo sugerindo novas ideias a possíveis leitores. A minha

experiência enquanto escritor me conduziu então a pensar que as narrativas do graffiti e do

pixo se inscrevem tanto na cidade como no fluxo de vida de quem as experimenta, deixando

por hora essa seguinte reflexão.

Figura 1 – Poesia urbana “Pazciência”. Neópolis/novembro, 2016.

No verso em um parque da cidade, temos o escrito “a vida é uma poesia escrita nos

gestos do cotidiano”, assinada por mim enquanto Pazciência. É assim que a relação entre o

artista e o pesquisador se articula se fazendo na rua, retornando ao texto acadêmico enquanto

reflexão de uma experimentação escrita, fruto de um diálogo entre – o prosaico e o poético

– com isso podemos considerar ambas as práticas entrelaçadas.

Logo abaixo, trago mais um de meus registros pessoais, a declaração de meu nome

firmado nas ruas, em uma placa nada convencional feita de um pneu velho, não sei quem é

11 Heteronímia no sentido de um autor de uma obra quando o escritor não assina seu nome real, mas cria uma personalidade

real que as assina. No caso de Fernando pessoa, por exemplo, criou vários heterônimos, cada um com sua individualidade,

como Alberto Caeiro, Àlvaro de Campos, Bernardo Soares e Ricardo Reis, todas criações suas.

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autor da obra (a placa no caso), mas ali enxerguei uma bela superfície, que ilustra o que é

essa obra literária citadina, a experimentação atravessada de inventividades possibilidades e

surpresas. Assim é o compor na rua. Ao lado também, no registro, minha bicicleta, meio de

transporte útil (e favorito) para sair a escrever e registrar nas ruas, aliada de muitas

intervenções e, decerto, também uma das responsáveis por minha percepção peculiar da

cidade.

Figura 2 – Assinatura “Pazciência”, Avenida Abel Cabral/dezembro, 2016.

Enfim, é desse espaço circunscrito de experimentação da cidade que lanço mão das

categorias e conceitos científicos que compõem este trabalho, ponderando como se associa

a prática da caligrafia urbana em relação à ideia de pensar a cidade como um livro aberto.

Originalmente, o termo utilizado para os praticantes da caligrafia urbana remete à

palavra em inglês writer12. Todavia, será preciso reconsiderar certas categorias para

proceder a esta investigação, em vez do termo writers, ou a nomenclatura

grafiteiros/pixadores, como uma definição identitária, optei por denominar os indivíduos

praticantes da caligrafia urbana como escritores; e, nesse sentido, os escritores são também

calígrafos, na medida em que reinventam as letras escrevem narrativas e pintam suas

composições na superfície da cidade. Podemos desde já nos referir aos autores dessa

literatura citadina como escritores/calígrafos, apesar de não ter a intenção de traçar seus

perfis, pois o presente estudo é dedicado a entender o processo dessa escrita urbana.

Logo abaixo, trago a imagem de um diagrama criado com a intenção de articular o

principal referencial teórico utilizado durante a pesquisa.

12 Writer, do inglês “escritor”, é o termo utilizado para se referir aos praticantes de graffiti, em seus variados estilos.

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Figura 3 – Diagrama “A cidade como um livro aberto”.

Construí esse diagrama como uma ferramenta que operasse uma articulação entre os

principais conceitos trabalhados no texto, de modo com que eles se articulem para

fundamento do exercício teórico intelectual.

Esse diagrama pode ser comparado à simulação do exercício de um círculo

cromático13, os três conceitos do eixo superior: literatura menor, (DELEUZE; GUATTARI,

1977); partilha do sensível (RANCIÈRE, 2005) e heterotopia (FOUCAULT, 2013) atuam

como matizes análogas, dialogam entre si, no sentido de que são conceitos científicos de

embasamento teórico conceitual, sustentam a argumentação lógica do trabalho e servem

como ferramentas para se articularem com as noções exploradas. Já o eixo inferior:

experimentação social, estética e política e lugar comum são noções que funcionam como

matizes análogas entre si e estão em relação aos conceitos como elementos complementares,

por exemplo: a noção de experimentação social se articula de forma complementar com o

conceito de literatura menor; a noção de estética e política se complementa ao conceito de

partilha do sensível, e a ideia de lugar comum se articula diretamente com o conceito de

heterotopia. Todos esses três conceitos e três noções se articulam uns com os outros e serão

explorados e explanados durante o desenvolvimento do texto.

Na percepção do olho humano, a soma de todas as cores é igual ao branco, a luz

visível. Já no nosso diagrama, o título “a cidade como livro aberto” é a soma de todos os

conceitos e noções, a luz visível que orienta a escrita, tanto a acadêmica como a urbana e a

poética. Esta dissertação apresenta a articulação da minha experimentação enquanto

13 O círculo cromático é uma representação simplificada das cores percebidas pelo olho humano. É um instrumento

utilizado para orientar composições de ilustrações coloridas, um guia no qual pode-se rapidamente identificar elementos

análogos, complementares e outras possíveis combinações harmônicas.

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escritor/calígrafo e o ofício do pesquisador acadêmico; assim, se encadeiam o artista e o

intelectual em uma descrição narrativa acerca da caligrafia urbana na cidade contemporânea.

Aqui, mais especificamente, em relação às experiências registradas nas ruas de Natal.

Quero elucidar que a ideia de literatura menor é um conceito chave que constitui o

eixo desta dissertação, a transversaliza de ponta a ponta. Sendo assim, estarei explorando-o

durante o desenvolvimento dos três capítulos adiante.

O primeiro capítulo: em um primeiro momento, ensaio sobre a noção de caligrafia

urbana, pensando a luz de outros tipos de caligrafia, como a caligrafia oriental, para assim

elencar a prática da escrita no contexto citadino; em um segundo momento, articulo a

primeira noção fundamental da literatura menor (DELEUZE, GUATTARI, 1977), a

desterritorialização da língua e trago exemplos que ilustram isso; em um terceiro momento,

articula-se a condição possível de comunicação na cidade.

No segundo capítulo, unimos a segunda noção fundamental da literatura menor

(DELEUZE, GUATTARI, 1977) à ideia da escrita como uma passagem do individual ao

imediato político, de modo que essa noção se articule com o conceito de partilha do sensível

(RANCIÈRE, 2005); para então entendermos melhor a relação entre estética e política

dessas práticas conhecendo melhor alguns de seus principais estilos.

No terceiro capítulo, introduzimos o conceito de heterotopia (FOUCAULT, 2013)

para pensar os espaços em comum partilhados pela caligrafia urbana. Desse modo, articula-

se com a terceira noção fundamental de uma literatura menor (DELEUZE, GUATTARI,

1977); tudo adquire um valor coletivo, a literatura torna-se um agenciamento coletivo de

enunciação. Assim, trazendo para a discussão, narrativas de dois espaços diferentes na

cidade de Natal, ruínas a céu aberto que se tornaram palco de inusitadas manifestações

urbanas.

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2 CALIGRAFIA URBANA: dentro da rua e fora da língua

Dizem as paredes/3

Em Montevidéu, no bairro Braço Oriental:

Estamos aqui sentados, vendo como matam os nossos

sonhos.

E, no cais na frente do porto de Buceo, em Montevidéu:

Bagre velho: não se pode viver com medo a vida inteira.

Em letras vermelhas, ao longo de um quarteirão inteiro da

avenida Cólon, em Quito:

E se nos juntarmos para dar um chute nesta grande bolha

cinzenta?

Eduardo Galeano

2.1 POR UMA NOÇÃO DE “CALIGRAFIA URBANA”

Escrever sobre a prática da caligrafia é, antes de tudo, instigar o exercício de uma

investigação acerca do ato caligráfico. Nesse sentido, pode-se entender por caligrafia uma

prática histórica que fundamenta as bases da criação do nosso alfabeto contemporâneo. A

palavra caligrafia deriva de origem grega, kalli “beleza” e graphe “escrita”, pode ser

traduzida ao pé da letra como arte da escrita bela, é entendida como uma arte visual atrelada

a toda a construção e transformação da história da escrita das sociedades. Podemos pensar

essa prática a partir de todo um interlúdio histórico pelo qual a arte da caligrafia atravessa,

remetendo desde a caligrafia oriental, como a caligrafia árabe, chinesa e japonesa, a história

da caligrafia ocidental greco-romana a latina, até uma reinvenção que presenciamos hoje,

dentro das cidades, por meio do que aqui me refiro enquanto caligrafia urbana, a qual irei

esclarecer sobre o que se trata durante o progresso do texto.

Portanto, a intenção desses escritos introdutórios sobre a caligrafia não é reconstruir

a narrativa histórica da prática da caligrafia e da escrita através dos tempos, mas, sim, utilizar

esse repertório como base para lançar mão de uma nova perspectiva acerca da caligrafia, ou

seja, desejo trazer o ofício do calígrafo para o mundo contemporâneo, alinhado à vivência

urbana que eu mesmo experimento enquanto autor de escritas caligráficas e também autor

de uma pesquisa de dissertação de mestrado na área das ciências humanas e sociais,

especificamente em Sociologia. Nesse cenário, ambas as práticas são retratadas no processo

de escrita e na sua composição.

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Minha experimentação social, inserido nos contextos citadinos que envolvem a

prática da arte urbana, levou-me a um rumo da pesquisa no qual comecei a perceber as

manifestações urbanas popularmente conhecidas como graffiti e pixo14. Essas práticas

configuram-se como faces de uma caligrafia alternativa aos moldes tradicionais em que

somos ensinados, e por meio desse trajeto fui conduzido a pensar a superfície da cidade

como um grimório15, um grande “livro aberto”, em que essas escritas se inscrevem e habitam

os espaços, implicando desdobramentos, os quais alguns vamos examinar durante esta

dissertação.

Dentro de um campo investigativo acerca da linguagem visual do graffiti e do pixo,

proponho, como já mencionado, pensar a metáfora da cidade como um livro aberto, em

outras palavras, significa pensar a paisagem visual da cidade enquanto um espaço onde se

escrevem estórias. A partir de um sentido conotativo, a cidade passa a ser uma “obra

literária” atravessada de palavras e imagens. Para tanto, este texto trabalha a partir da noção

de literatura menor (DELEUZE; GUATARRI, 1977, p. 25) para conceber a caligrafia e a

escrita dentro da cidade como expressão visual, e, assim, observarmos o seu procedimento.

Segundo os autores, a “literatura menor não é de uma língua menor, mas antes a que uma

minoria faz em uma língua maior16” (DELEUZE; GUATARRI, 1977, p. 25). Ao

transpormos, pois, essa premissa para o contexto em que esta pesquisa é realizada, supondo

que na cidade circula preponderantemente a língua maior – como a publicidade, os sinais de

tráfego dentre outras linguagens estabelecidas e oficiais – sabemos que, todavia, coabitam

outras linguagens que se constituem línguas menores, as quais seriam expressões próprias

de minorias, por exemplo: imaginemos um ônibus enquanto transporte público, cuja

numeração específica indica seu trajeto dentro da cidade, isso é a língua maior; no entanto,

nesse mesmo ônibus, quantos dos seus assentos não estão rasurados por alguns dos

passageiros que habitam esse espaço durante o percurso em que o ônibus circula na cidade?

14 Pixação e graffiti se diferenciam exclusivamente no Brasil. Pixo, tinta na parede ou pixação, ato de pixar, pode ser

classificada como uma espécie de graffiti com o uso de menos recursos, monocromático esteticamente atribuído a letras.

Já o graffiti, no Brasil, pode ser classificado pela necessidade maior de recursos, letras e imagens multicromáticas. Em

outros continentes como América do Norte e Europa, o graffiti etimologicamente compreende os dois estilos estéticos

(GITAHY, 1999, p. 19). 15 A palavra grimório vem do francês antigo grammaire, da mesma raiz que a palavra “gramática”. Isso se deve ao fato de,

na metade final da Idade Média, as gramáticas de latim serem guardadas em escolas e universidades controladas pela Igreja

– e, para maioria iletrada, livros não eclesiásticos eram suspeitos de conter magia. Gramática denota um livro de instruções

básicas, contendo a descrição de combinações de símbolos e como combiná-los, de modo a criar frases lógicas. Um

grimório, por sua vez, seria a descrição de combinação de símbolos mágicos e de como combiná-los de forma adequada,

dentro de um sistema de magia. 16 Por “língua maior”, refiro-me a uma linguagem oficial que habita o espaço urbano como, por exemplo, outdoors,

sinalização de trânsito, nominação de rua, fachadas de empresas e instituições.

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Rabiscos que variam desde vulgos, mensagens diretas ou subliminares, frases chulas a

declarações de amor. Isso é o que uma minoria faz em uma língua maior.

Esses termos – maior e menor – não se referem precisamente a grandezas de

tamanho; mas sim a posicionamentos sociais divergentes como, por exemplo, aquilo que é

“legítimo” ou “marginal”, “correto” ou “incorreto”. Essa linguagem menor pode ser

compreendida, nesses termos, como a estética que nos referimos do graffiti e do pixo, por

meio de uma reinvenção da caligrafia e do alfabeto oficial.

Divergências e semelhanças à parte, o graffiti e o pixo são ambos produzidos por

uma mesma figura, o escritor/calígrafo urbano, e é esse o agente responsável pela

interlocução do conceito de literatura menor, esse personagem representa a “minoria que

faz em uma língua maior” e é nesse contexto que a literatura se personifica como escrita e

como caligrafia, abrindo o caminho epistemológico no qual iremos percorrer. Durante esta

dissertação, levarei em conta os contrastes existentes entre estas práticas – graffiti e o pixo

– embora para fins metodológicos, supõe-se ambas como manifestações de uma mesma

prática: a caligrafia urbana.

Para tal finalidade, considero estar pensando as noções históricas da caligrafia

trazendo luz à perspectiva inicial na qual se concebe a cidade como uma “obra literária”

escrita na superfície de seus poros, por calígrafos e escritores urbanos, orientados pelas

expressões visuais conhecidas como graffiti e pixo.

O graffiti, de origem etimológica grafito, significa “marcar uma superfície com o

grafite” e é uma expressão visual que existe desde os tempos paleolíticos nas paredes das

cavernas até os muros da antiga cidade de Pompeia. Essa mesma expressão sofre uma

reinvenção, de forma mais intensiva e extensa, em meados dos anos 1970, como uma

linguagem visual atribuída ao gênero do hip-hop17, que se expandiu por vários continentes

do planeta e continua se transformando até os dias atuais.

O pixo, ou pixação, é oriundo do mesmo gênero do graffiti, existindo igualmente no

tempo histórico enquanto prática caligráfica. É no Brasil que se diferenciam os dois gêneros

da expressão. Uma razão as distingue brevemente: o pixo de natureza monocromática é fruto

de uma relação com a matéria, tendo em vista o preço elevado do material de graffiti, não

era possível, para maioria dos escritores, munir-se de sprays e muitas cores; assim, mesmo

na precariedade, investiu-se fortemente no pixo como uma forma mais acessível que o

17 Hip-Hop: gênero musical e estilo de vida iniciado em 1970, pelas comunidades jamaicanas, latinas e afro-americanas da

cidade de Nova Iorque. Reinventada e popularizada, no Brasil, durante a década de 1980, e difundida enquanto gênero

musical, moda e estilo de vida. O hip-hop consiste em quatro elementos: rap (letra), bboy (dança), dj (música), graffiti

(visual).

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graffiti de intervir e deixar seu nome na cidade. Na teoria, o pixo poderia ser equivalente ao

que se denomina o termo “tag”18 como um gênero estilístico de graffiti rápido e simplificado.

Em sua obra Pixação: a arte em cima do muro, o autor Luiz Nascimento comenta sobre esse

momento histórico:

Antes do movimento Pixo (sic), em outros países não havia uma palavra para

designar pichador, a palavra graffiti definia tanto o que conhecemos como grafite

quanto o que conhecemos por pichação [sic]. E ambas as artes são consideradas

crimes, não havendo diferenciação entre elas do ponto de vista das autoridades.

Apenas em meados de 2012 e 2013, começa a surgir o termo taggers para definir

pichador em congressos acadêmicos e eventos de arte, mesmo assim para as

autoridades, creio que nada mudou. (NASCIMENTO, 2015, p. 28).

Em outros continentes, o graffiti assume ambos os gêneros; porém, especificamente

no Brasil, onde se deu a invenção do termo pixar, este se popularizou entre os seus

praticantes com o uso da letra “x” de forma intencional, ao substituir a palavra como se

escreve na regra gramatical pichação. Nesse sentido, o pixo, ou a prática da pixação, já

desafia as autoridades desde a concepção de sua raiz etimológica.

Considerando essa nuance, pode-se dizer que ambas as práticas – graffiti e pixo – são

bifurcações de um mesmo caminho; trabalharei com a hipótese de que ambas atuam como

uma caligrafia alternativa; um dispositivo “composto por linhas de natureza diferente...

dentre elas linhas de força” (DELEUZE, 1996, p. 1), como dissertarei mais adiante, no

ensejo de compreensão da escrita que constrói uma literatura menor.

E no dispositivo, as linhas não delimitam ou envolvem sistemas homogêneos por

sua própria conta, como o objeto o sujeito e a linguagem, etc., mas seguem

direções, traçam processos que estão sempre em desequilíbrio, e que ora se

aproximam ora se afastam uma das outras. Qualquer linha pode ser quebrada –

está sujeita a variações de direção – e pode ser bifurcada, em forma de forquilha

– está submetida a derivações (DELEUZE, 1996, p. 1).

A caligrafia é um sistema de caracteres, formado por linhas, um dispositivo de

produção de sentido. Na caligrafia, as linhas estão agregadas à formação de enunciados,

estes, uma vez produzidos pelos escritores, são dispostos a regimes de enunciação, sobre

isso Deleuze (1996, p. 1) atenta:

Porque os enunciados, por sua vez, remetem para as linhas de enunciação sobre as

quais se distribuem posições diferenciais dos seus elementos. E as curvas são por

elas próprias enunciadas, é por que as enunciações são curvas que distribuem

variáveis, e, assim, uma ciência, num dado momento, ou um gênero literário, ou um

estado de direito, ou um movimento social, são definidos precisamente pelos

18 Tag nos termos do graffiti significa assinatura, o ato de assinar sendo uma abreviação do nome do escritor escrito em

uma caligrafia particular, marca que identifica alguém e não pode ser facilmente copiada, similar ao que compreendemos

como rubrica em termos formais.

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regimes de enunciação a que dão origem. Não são nem sujeitos nem objetos, mas

regimes que é necessário definir pelo visível e pelo enunciável, com suas

derivações, as suas transformações, as suas mutações. E em cada dispositivo as

linhas atravessam limiares em função dos quais são estéticas, científicas, políticas,

etc.

Expandir a noção sobre caligrafia pela revisitação de certos conceitos básicos é, sem

dúvida, uma maneira de ampliarmos a compreensão de um fenômeno social urbano

contemporâneo, qual seja, a proliferação de caligrafia (do graffiti e do pixo), minimamente

consideradas estranhas, que habitam e florescem na epiderme citadina em uma situação de

confronto contínuo contra o cinza do concreto.

Para esse exercício, trazemos a autora Aida Ramezá Hanania (1997), que escreve

acerca do universo da caligrafia árabe a partir da visão de um artista contemporâneo, Hassan

Massoudy19, para quem, o oficio da escrita coloca “com e contra” a caligrafia, pois, mesmo

que fundado nas bases do tradicionalismo milenar da arte caligráfica árabe, o artista se

insurge contra a forma disciplinada da tradição. Trazendo a letra e a palavra de forma, às

vezes, incompreensível pelo emaranhado de traços, o calígrafo encontra-se dividido: de um

lado imerso nas raízes do oriente e de outro modelado pelo modernismo do ocidente.

A autora investiga a arte da caligrafia árabe, tendo dois aspectos como ponto de

partida: a caligrafia enquanto escrita, a informação contida nas palavras; e, enquanto arte, a

estética resultante de seu ordenamento. A partir desse ponto de vista, podemos perceber

alguns paralelos entre a arte da caligrafia árabe e a caligrafia – do graffiti e do pixo – urbana.

Ainda sobre a caligrafia árabe a autora comenta que:

Habitualmente, a informação pode ser ofuscada pelos seus efeitos estéticos, mas,

ainda assim, a Caligrafia é uma linguagem. A primeira percepção, ao olhar uma

caligrafia é, sem dúvida, a do aspecto plástico; depois, ocorre a do sentido.

(HANANIA, 1997, p.75).

19 Hassan Massoudy nasceu em 1944, em Najef, no sul do Iraque. Ele cresceu em meio ao calor escaldante do deserto, em

uma sociedade iraquiana tradicional caracterizada por fortes crenças religiosas, um alto senso de solidariedade e uma

vontade de encontros festivos. Como jovem, nessa cidade onde todas as imagens eram proibidas, ele cumpriu sua paixão

pela arte fazendo desenhos e caligrafias ao investir toda sua energia para obter papel e pigmentos. Em 1961, partiu para

Bagdá e começou a trabalhar como aprendiz de vários calígrafos. Ele visitou exposições de arte moderna que o fascinaram

e, a partir de então, começou a sonhar em estudar arte. Os acontecimentos políticos que se desenrolaram e a ditadura

resultante o impediram de fazê-lo. Ele finalmente deixou o Iraque para a França em 1969, libertado do regime de opressão,

mas com o coração partido. Chegou à “Ecole des Beaux-Arts”, de Paris, onde trabalhou pela primeira vez na pintura

figurativa. Mas ele não parou completamente de caligrafia; para pagar seus estudos, estava fazendo manchetes em caligrafia

para revistas árabes. Ao longo dos anos, a caligrafia entrou progressivamente na sua pintura figurativa e, eventualmente,

tomou seu lugar. Em 1972, criou o show “Arabesque” com o ator Guy Jacquet, juntou-se alguns anos depois pelo músico

Fawzy Al Aiedy. O Arabesque foi uma performance pública combinando música e poesia, juntamente com caligrafias

sendo realizadas e projetadas em uma tela grande. Eles fizeram muitas performances em toda a França e Europa durante

um período de treze anos. Ao longo dos anos, trouxe mais espontaneidade em seu gesto e uma maneira mais instantânea

para ele se expressar. Essa experiência marcou uma mudança definitiva no trabalho de Hassan. Fonte:

http://www.massoudy.net/

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Estaria então o escritor urbano contemporâneo em relação de semelhança com o

calígrafo árabe? Em certa medida, sim. Assim como a caligrafia árabe, a caligrafia urbana

partilha de uma dimensão plástica e de uma dimensão de sentido, ambos habitam a escrita

em sua gestualidade. Para o calígrafo urbano, por exemplo, as letras operam uma

plasticidade que dialoga com a arquitetura da cidade, e, nela, também reside um sentido

semântico que está no registro de seu nome por meio do desejo de disseminar sua marca na

cidade. Já para o calígrafo árabe, nas palavras de Massoudy, durante a obra de Hanania

(1997, p. 76), “a caligrafia não é só a fixação de um texto, mas também uma composição

abstrata que exprime uma concepção de mundo”, tal frase pode se aplicar à caligrafia do

escritor urbano, seus traços, nem sempre compreendidos, fazem parte de uma composição

singular de um modo de experimentar a cidade partilhada entre os seus pares calígrafos

urbanos.

Do ponto de vista do calígrafo urbano, essas duas dimensões, plástica e sentido,

descrevem: a primeira, sobre a estética, a agilidade e o esmero que a escrita é executada,

ainda que o corpo da letra e da palavra seja por muitas vezes ilegível para um espectador

não iniciado, ela conserva em seu fundamento uma base estrutural, é necessário construir

sua base para reinventá-la, trata-se de uma pré-estrutura, fluxo e forma de modo que as letras

se encaixem formando uma bela composição visual para os olhos do artista; na segunda

dimensão, o sentido recorre à criação da referência da situação, uma relação com o espaço

e o tempo, o momento vivido da escrita em que se marca não só a superfície da cidade, mas

um passo de um percurso. Vou esmiuçar melhor essas duas dimensões no segundo capítulo,

no qual tratarei das questões estéticas e políticas da escrita.

Do ponto de vista ocidental, a mensagem da arte da caligrafia oriental árabe possui

conteúdo puramente visual, enquanto que a caligrafia urbana é encarada como poluição

visual pelo segmento mais conservador da sociedade. No entanto, para os calígrafos e

iniciados, em ambos os casos – árabe e urbano – a caligrafia está assentada na realidade,

construída pelo signo abstrato a partir de uma relação de pertencimento e de emoção do

calígrafo e sua composição.

Adbelbir Khatibi (1995), autor do livro O esplendor da caligrafia islâmica, faz um

estudo profundo e detalhado da arte da caligrafia árabe, situando-a historicamente, bem

como temas e estilos, ao longo de sua obra. Em uma de suas passagens, menciona a

mensagem da caligrafia artística como símbolo da civilização, em que diz:

Caligrafia é a arte das linhas gráficas; reestrutura-se em cima de uma visualização

da linguagem e sua topografia. Nesse sentido, a caligrafia na linguagem arábica é

construída em um simples princípio espacial: o alfabeto arábico é escrito pela

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interação de uma linha base horizontal e as linhas verticais de suas consoantes. É

lido da direita para esquerda, com a adição de vogais, diacríticas e rotações as

quais são posicionadas várias vezes acima e abaixo da linha base. A originalidade

de sua forma escrita, que em alguns aspectos não tem igual, é criada pela

arquitetura e pelo ritmo das letras: aqui reconhecemos a força do “arabesco” como

uma forma plástica. (KHATIBI, 1995, p. 6)20

Assim como na caligrafia árabe, a caligrafia urbana é regida por princípios espaciais,

e balanceada pela sua relação com a arquitetura da cidade com o ritmo das letras, com a

diferença que sua leitura é (geralmente, ou seja, nem sempre) baseada no padrão ocidental

da esquerda para direita. Para ilustrar esse ponto de vista, vamos analisar uma sequência de

quatro registros da paisagem urbana: transitando letras que caminham no interstício da

paisagem urbana, entre graffiti e pixo.

Figura 4 – Avenida Roberto Freire, instalações abandonadas, “LPE, GTS, RBO, LKS e outros”. Capim Macio/fevereiro,

2017.

Na imagem acima, pode-se observar a cena de uma paisagem urbana, onde um

edifício abandonado tornou-se palco de diferentes manifestações visuais urbanas. Dentre

elas, darei ênfase ao jogo de letras no canto superior direito da arquitetura, um exemplo de

caligrafia urbana, uma sequência de pixos em forma de arabescos “LPE, GTS, RBO, LKS”

de leitura difícil para não iniciados. Percebe-se que existe uma base horizontal que atravessa

toda a sequência de letras, as quais possuem um parâmetro vertical seguindo um padrão,

possuem também um ritmo e cadência no espaçamento de uma letra para outra, além de

marcação de dois pontos que separam cada palavra, atuando como uma diagramação visual

do letreiro. Ainda, esse trabalho foi realizado com rolo de espuma e látex, percebido pela

textura que a tinta deixou na parede; além disso, posso supor que o uso de um cabo extensor

20 Minha tradução, texto original em inglês. The splendour of islamic calligraphy. Thames & Hudson ltd, London, 1995.

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foi feito para alcançar tamanha altura sem o uso de uma escada. Por meio dessa imagem,

podemos perceber que a caligrafia urbana não é do domínio apenas de um ato de transgressão

e de apropriação do espaço; ela se dedica a expressar uma linguagem visual própria, que

possui ritmos e intensidades singulares.

A caligrafia urbana se inspira na rua e nos ritmos da arquitetura, por exemplo: a

verticalidade dos edifícios construídos como estacas retangulares mirando do chão para o

céu compõe uma forma recorrente da cidade. Com ênfase nos obstáculos verticais da cidade,

temos a próxima imagem de um graffiti pintado sob o viaduto do Baldo (Natal/RN). Essa

segunda imagem se assemelha à arquitetura retangular dos prédios da cidade formando a

composição de uma palavra:

Figura 5 – Pilastra embaixo do viaduto do Baldo, “INFLUENCIA”. Baldo/fevereiro, 2017.

Na teoria, essa imagem se distancia do pixo pelo uso de mais recursos como três

cores: azul, amarelo e preto; contudo, representa um graffiti que, na prática, foi feito

ilegalmente, assim como na pixação; essa é uma das razões por que se torna tão difícil

delimitar uma fronteira objetiva entre o graffiti e o pixo. De qualquer modo, se tomarmos as

duas últimas análises de imagem, a Figura 1 e a Figura 2, podemos observar símbolos

caligráficos que se referem às letras: na imagem acima está escrito “influencia”, que sinaliza

a assinatura do autor, num estilo de letras retangulares que se assemelham a edifícios

citadinos de formas retangulares e ritmos verticais. Devido ao escorrido no fundo da obra,

percebemos que o trabalho foi quase todo feito com tinta látex e rolo de espuma, em virtude

do preço exorbitante de tintas spray no Brasil; sendo assim, os artistas desenvolvem técnicas

alternativas para baratear o custo do material de execução.

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Figura 6 – Avenida Abel Cabral, lagoa de captação, “RASTA, BONES”. Nova Parnamirim/março, 2017.

Na terceira imagem, apresentamos o registro de imagem que se aproxima mais ainda

da estética do graffiti e que ainda mantém a base da caligrafia urbana, baseada em letras,

dois nomes em base preta e contorno branco, nos quais observamos vários elementos da

linguagem visual como volume, profundidade e luz, em uma escrita solta “Rasta; Bones”,

sinalizando a assinatura de dois autores. A composição das duas palavras é produzida em

um painel em que toda a parede foi pintada, o que demanda tempo, isso a configura como

uma peça de graffiti produzida com mais esmero diferente da veloz e fugaz pixação. Essa

produção foi realizada no entorno de uma lagoa de captação próxima à avenida Abel Cabral,

no bairro de Nova Parnamirim, o espaço é público ligado à Prefeitura do município

Parnamirim-RN, ainda assim, é produzido sem autorização formal e de forma independente.

Como não existe fiscalização, ele se tornou um parque de diversões para diferentes escritores

se expressarem e exercitarem seus trabalhos, podendo criar suas composições com calma e

elaboração, sem quase nenhum risco de serem abordados pela polícia.

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Figura 7 – Margens da BR 101, instalações abandonadas, “LKS, VLZ, NYAH”. Neópolis/março, 201721.

A quarta imagem faz referência a uma caligrafia que representa o pixo, assinado na

esquina de um terreno baldio próximo à BR 101 na cidade de Natal/RN. Essa pixação

certamente foi ato de alto risco, por se situar em uma avenida bastante movimentada; disso

surge a questão da velocidade – uma elaboração sintetizada que resulta na maior rapidez de

execução da caligrafia. O escritor nesse momento não pode se dar ao luxo de fazer com

calma, a adrenalina bate no momento e o tempo de execução é uma questão crucial entre o

ser pego ou não. Na formulação estética do letreiro, apreendemos o escrito “LKS, VLZ”,

que sinaliza um autor, e “NYAH”, sinalizando outro autor, em letras verticalizadas as quais

se assemelham bastante a um estilo caligráfico que se tornou famoso na cidade de São Paulo,

mais conhecido como “Tag Reto”. Tal estilo consiste em uma relação verticalizada entre o

pixo e a arquitetura dos prédios da cidade, de forma que com um risco as letras venham

ocupar visualmente toda a parede de cima a baixo.

Lassala (2012), pesquisador que investigou o movimento “Pixo” na cidade de São

Paulo, comenta em sua tese o porquê do uso do nome “pixação e não pichação”. A seguir

algumas considerações suas acerca desse estilo:

O tag reto foi difundido pelos pixadores de São Paulo e é mais do que uma

assinatura, já se tornou um estilo caligráfico. É usado para padronizar o logotipo

dos pixadores e surgiu como elemento diferenciador de grupos que buscavam

desenhos próprios para as letras. Esse estilo é caracterizado por letras retas,

alongadas e pontiagudas pintadas com tinta spray ou rolo de tinta; letras que

procuram ocupar o maior espaço possível no suporte. (LASSALA, 2012, p. 63).

21 Adendo, o registro da fotografia foi feito em 2017; contudo, ao observar com cuidado à direita da letra “S”, nota-se o

número “16”, que é um indicativo temporal de registro do ano em que a caligrafia foi realizada – 2016.

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Se de alguma maneira podemos pensar a caligrafia urbana traçando paralelos como

princípios da caligrafia árabe, como a base horizontal e verticalidade das letras, por exemplo,

também podemos pensar a criação artística na caligrafia japonesa, nesse exercício de

ampliação de nossa compreensão acerca das manifestações citadinas do graffiti e o pixo.

Nesse contexto, o brasileiro Rafael Miyashiro (2009) elaborou sua dissertação de

mestrado baseado no ato da criação artística na caligrafia japonesa. Orientado pela relação

com sua família de origem japonesa, foi buscar referência para o tema por meio de uma

técnica conhecida no Brasil como “shodô”, que resumidamente significa a partir de seus

caracteres “sho” (書 ideograma para escrita), caligrafia artística; e “dô” (道 ideograma para

caminho), no método da caligrafia. O pesquisador disserta em sua investigação que o Japão

tem um forte laço com a tradição escrita chinesa, mas, ao mesmo tempo, está aberta a

repensar o seu modo de ver, olhar e fazer, a caligrafia flerta com o abstrato.

Segundo Miyashiro (2009, p. 4), “a experiência do momento presente, o dinamismo

e a relação com o espaço”, são aspectos importantes dentro da criação artística na caligrafia

japonesa, vejamos o que o autor quer dizer com esses aspectos para que possamos comparar

com a caligrafia urbana.

A caligrafia japonesa valoriza o momento presente no seu fazer, mais do que a

busca pela forma perfeita e bem-acabada. O registro da escrita no papel acaba

sendo o retrato de um intervalo vivido, e, como na vida, não há volta. Para fazê-

lo, é necessária uma entrega total. Um coração disperso, certamente, não será

capaz de escrever um trabalho de caligrafia bem feito, o que significa que o

calígrafo deve estar num processo de aprimoramento contínuo, a fim de se

disciplinar e aprender. É através dessa prática constante que o calígrafo cria uma

relação dinâmica, não apenas com os materiais, mas também consigo, com sua

própria escrita e com todo ao seu redor (sic). (MIYASHIRO, 2009, p. 4;6).

Essa citação transmite um pensamento capaz de ser aplicado ao pensar a caligrafia

urbana, com a diferença de que o registro da escrita além do papel também é o concreto, o

tijolo, o metal, o azulejo; aliás, não só a parede; mas também a cidade como um todo faz

parte do suporte. Tanto para o calígrafo urbano como para o calígrafo oriental, o registro de

sua obra é um retrato de um momento vivido, ele conduz o escritor a uma zona de

intensidade em que cada ato de escrita é único, e no qual o calígrafo não se apega tanto a

uma forma perfeita, mas sim ao ato de escrever em si, pois este está em constante processo.

A seguir, apresento mais três registros fotográficos de caligrafias urbanas realizadas

em suportes diferenciados, para ilustrar essa dinâmica enfatizando os aspectos da criação na

caligrafia:

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Figura 8 – Margens da Rodovia BR 101, verso de outdoor “SNAIK, MAGO, FERA, VEP”. Capim Macio/março, 2017.

No primeiro registro, o suporte utilizado foi o verso de uma placa de outdoor, o fundo

preto serviu de inspiração para os escritores que usaram uma tinta spray branca, o que gera

grande destaque de contraste na tela. O mais impressionante, tanto para o leitor que não está

habituado ao universo, quanto para mim que experimento essa realidade em certa medida, é

a capacidade de escalada dos escritores. Devido ao relevo da placa e a textura da tinta na

superfície, suponho que essa caligrafia foi feita com spray e sem uso de nenhuma ferramenta

como cabo extensor, os escritores literalmente escalaram os postes de suporte do outdoor, e

arriscando-se devido à altura; talvez, movidos pela adrenalina, talvez pelo desafio ou, quem

sabe, apenas pelo desejo; de qualquer modo, seus nomes estão estampados em um local de

difícil acesso tanto para ser realizado como para ser removido. Três calígrafos, “Snaik,

Mago, Fera,” por meio dessa escrita, não apenas se apropriam da cidade como suporte, mas

também registram um intervalo vivido de um momento de intensidade e criação. Nesse

sentido, enfatizo os aspectos da criação artística retratados por Miyashiro (2009), a

“experiência do momento presente, o dinamismo e a relação com o espaço”, se pensarmos

do ponto de vista dos escritores urbanos, certamente, para os autores da obra, essa peça

representa um momento vivido de intensidade.

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Figura 9 – Corredores do setor de aulas II, “NYAH”. UFRN/abril, 2017.

No segundo registro fotográfico, um pixo em uma mureta de pedra nos corredores da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em uma continuidade da linha em

uma assinatura que transita entre letra e imagem, o calígrafo, NYAH, expressa sua

individualidade por meio de um arabesco plástico que atravessa verticalmente a pilastra de

pedra como se sua letra fosse um emaranhado de uma mesma linha. A propósito, Miyashiro

(2009) aborda a caligrafia oriental a partir do elemento visual da linha, estabelecendo uma

relação entre linha/caligrafia e vida.

[...] a crença de que o caractere escrito é uma imagem “corporificada” sugere que

alguma coisa do comportamento do artista pode ser observada na forma como o

meio captura a qualidade do movimento – as linhas sugerem muito sobre o ato

físico da escrita, já que a tinta e o pincel são influenciados por variações na força,

velocidade e respiração. (MIYASHIRO, 2009, p. 66).

Assim como na relação entre o calígrafo oriental e sua ferramenta pincel, entre o

calígrafo urbano e a tinta spray ou rolinho existe uma linha que conecta sujeito e objeto

eliminando suas fronteiras, só existe o momento presente na escrita; essa linha de conexão

que sai da mão para o suporte é influenciada pelos mesmos fatores como velocidade,

distância e pressão. De acordo com Miyashiro (2009, p. 11), compreender o ato da caligrafia

como um todo conduz ao pensar a ideia de um “ato dinâmico, formado de conexões, espaços

e tempos, que deixam vestígios e marcas sensíveis e etéreas”, por meio do qual o corpo

conecta todos os elementos da caligrafia.

Para o calígrafo urbano, a tinta é uma extensão do seu corpo conduzida pelo braço

que atua como compasso, sua coluna é a régua que como um elevador transporta o traço do

ponto mais alto de seu alcance até o mais baixo; quando esse calígrafo escreve seu nome,

ele não apenas marca sua existência, ao pensar a cidade como um espaço de disputa

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territorial, de enfrentamento a uma não permissão de grafar as paredes, mas ele experimenta

o rabisco como um momento vivo, ou seja, o sentimento vivido é intransponível da

experiência ao relato; o registro escrito nos fornece apenas vestígios de sua passagem e de

um trajeto que podem ser captados como pistas para os nativos na arte da caligrafia menor.

Ainda convém lembrar que a caligrafia se faz do anônimo para um certo segmento social

para amenizar a repressão das autoridades; contudo, por outro lado, ela busca na potência de

criação uma capacidade de ser reconhecida entre seus pares, não naquilo que certamente se

vê – a caligrafia em si – mas uma língua menor.

Se por literatura menor entendemos as práticas de algo que uma minoria faz dentro

de uma língua maior, podemos analisar tais escritas ilegíveis aos leigos, como nuances de

uma língua reinventada pelos nativos da prática caligráfica. Nesses termos, pensa-se o elo

entre a caligrafia – graffiti e pixo – e a literatura menor reside justamente naquilo que vemos,

mas também no sentido oculto daquilo que não nos é visível a olho nu.

Figura 10 – Rua Carmindo Quadros, carro abandonado, “VAN, PAZ”. Nova Parnamirim/novembro, 2016.

No terceiro registro, o suporte utilizado para a intervenção caligráfica foi um carro

abandonado e enferrujado, essa escrita foi realizada por mim com o uso de duas latas de

spray, um cromo (prateado) para preenchimento e outra preta para contorno de linhas. O

suporte – quando o encontrei em meio ao meu trajeto, do meu caminho para casa – na minha

percepção, pareceu-me um belo convite para uma expressão de criação artística. Ora, se por

um lado a caligrafia urbana se apropria da cidade de forma não autorizada; por outra, essa

apropriação é capaz de reerguer ruínas, digo no sentido de que o carro, lataria velha, por

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exemplo, foi revitalizado pela pintura, não apenas como objeto estético, mas também como

objeto de sentido; ao menos para mim, enquanto calígrafo esse momento de intervalo vivido

opera como uma ressignificação não apenas do suporte, mas do espaço que habita e do tempo

que experimenta.

2.2 LITERATURA MENOR: fora do território oficial da língua

Nesse momento da dissertação, trago à pertinência e importância de um dos

conceitos fundamentais relacionados à literatura menor, com a qual já assimilamos

anteriormente a caligrafia urbana: conceito de desterritorialização da língua. Nesse

sentido,segundo os autores Deleuze e Guattari (1977, p. 25), toda língua é modificada por

um forte coeficiente de desterritorialização. A título de exemplo, tem-se o caso de Kafka

junto aos judeus na cidade de Praga, em que a divisão entre o tcheco e o alemão impunha-

se na impossibilidade de escrever em outra língua que não fosse o alemão, marcando “o

alemão de Praga como uma língua desterritorializada, própria a estranhos usos menores

(cf., em outro contexto atual, o que os negros podem fazer com o inglês)” (DELEUZE,

GUATARRI, 1977, p. 26). De alguma maneira, o que acontece com o tcheco e o alemão em

Praga é similar ao que acontece com a língua catalã e o espanhol na península Ibérica, ou

com o inglês na Jamaica. Pode-se entender a escrita, ainda que elencada em níveis estruturais

de organização, como uma prática menor. Sob esse ponto, saliento a discussão incitada pelos

autores “o que é uma literatura marginal, popular ou proletária?” (DELEUZE, GUATARRI,

1977, p. 29).

Trabalharei durante esta dissertação com a hipótese de que a caligrafia urbana é uma

manifestação que pode ser compreendida como expressão de uma literatura marginal e

popular, sob a acepção da literatura como uma forma de expressão artística.

Uma parcela expressiva da sociedade condena esse tipo de prática vendo-a inclusive

como um “crime”, em nenhuma hipótese considerando-a uma prática artística, mesmo

porque toda a referência classificatória do que seja arte ou não arte passa pelos critérios da

arte canônica, como diria Takeuti22. Essa prática estaria mais próxima de uma produção

artística periférica, como Takeuti (2010) reitera em seu artigo, Refazendo a margem pela

arte e política, é preciso esclarecer o sentido do termo periferia.

O termo periferia passou a ser apropriado pelos próprios moradores, principalmente

os jovens – instigados pelos ativistas culturais que geralmente atuam em bairros

22 Orientadora desta dissertação.

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onde fixam sua moradia-, na medida em que nele encontram a expressão de seu

sentimento de pertencimento a uma “comunidade” a qual não se reduz mais aos seus

limites geográficos (“lá onde residem”) e passa a ser vivenciada como uma vasta

rede de pessoas ou coletivos que possuem experiências comuns na adversidade, mas

também na solidariedade, nas bordas do sistema capitalista. (TAKEUTI, 2010,

p.15)

Visto que a importância da experimentação social dos escritores enquanto

intermediadores da literatura na arquitetura citadina não corresponde a um caráter

classificatório de subjugar “o que é arte” do que “não é arte”, pois como reiteramos neste

trabalho “a essência da arte não reside nas propriedades que apresenta, mas em seu

processo de geração” (SHUSTERMAN, R. 1998, p. 25). Assim sendo, entre teoria e prática

é difícil delinear claramente o que é arte. As questões sobre arte na rua remetem a

Shusterman (1998), em uma reflexão sobre a oposição entre arte popular e arte erudita em

conteúdo estético, a partir do argumento de Morris Weitz, o qual teria proposto, em 1955,

uma solução radical para as fracassadas definições essencialistas da arte, quando indicava:

A arte é um conceito intrinsecamente aberto e mutável, um campo que se orgulha

de sua originalidade, novidade inovação. Mesmo que pudéssemos descobrir um

conjunto de condições determinantes que englobassem todas as obras de arte, isso

não garantiria que a arte futura se conformaria a esses limites. Na verdade, temos

todas razões para supor o contrário. Em suma, o “o caráter extremamente

expansivo e instável da arte” torna sua definição “logicamente impossível”.

(SHUSTERMAN, 1998, p. 25).

Ao julgar sob esse ponto de vista, a caligrafia urbana enquanto arte abandona a

hegemonia das galerias e passa a habitar a cidade enquanto um movimento vivo de ocupação

das ruas transformadas em galerias abertas. Contudo, julgar esse tipo de manifestação

enquanto status de arte, ou não, arte popular23, não é cabível, esse ensejo não é o foco da

pesquisa.

Nesse momento, a percepção acerca da experimentação social, a qual se submetem

os escritores, se esta qualifica-se enquanto arte ou não, é uma questão aberta, como um

parêntese que contribui à compreensão da metáfora da cidade enquanto um livro aberto.

Retomando o carro-chefe da discussão deste capítulo, temos, portanto, a noção de

desterritorialização da língua, que estrutura o conceito de literatura menor sob o qual

fundamenta-se a pesquisa acerca da caligrafia urbana. A literatura estaria, portanto, apta a

23 Sobre essa questão, remetemos ao artigo Refazendo a margem pela arte e política (TAKEUTI, 2010) no qual há uma

discussão sobre a (i)legitimidade social da “arte popular” (em contraposição à “arte erudita”) e defesa da “estética popular”,

sob o esteio do pensamento crítico do Filósofo americano Richard Shusterman (1998), o qual mostra que “na raiz da

condenação da primeira [arte popular] está, portanto, a representação de que só é legítima arte aquilo que se produz no

campo das artes maiores associadas inegavelmente a privilégios de classe. Nesse sentido, o termo “estética” [só seria]

adequado exclusivamente às artes maiores, como se a noção de estética popular fosse uma contradição de termos”

(SHUSTERMAN, 1998, p.103 apud TAKEUTI, 2010, p. 16).

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desencadear um efeito comunicativo dentro de práticas menores? Um potencial inventivo

de criação? Um desempenho político?

Inscrito em minha perspectiva enquanto escritor, a caligrafia urbana se manifesta

enquanto palavra escrita, que toma forma no território da cidade é a mesma que se torna

linha de fuga24 para fora do território físico, se desterritorializa – enquanto graffiti e pixo –

e abraça um universo semântico dos escritores, uma zona de intensidade na qual esses

“códigos urbanos” transpõem a característica de um simples rabisco na parede e se

codificam enquanto expressões de presenças nítidas de escritores menores. Entendo essa

desterritorialização como um movimento que se apropria da língua maior para dar novos

significados à linguagem, tal como é utilizada nos escritos que aqui trato, afinal:

Quantas pessoas hoje vivem em uma língua que não é delas? Ou então nem mesmo

conhecem mais a delas, ou ainda não conhecem, e conhecem mal a língua maior

da qual são obrigadas a servir? Problema dos imigrados, e sobretudo de seus

filhos. Problema das minorias. Problema de uma literatura menor, mas também

para nós todos: como arrancar de sua própria língua uma literatura menor, capaz

de escavar a língua e fazê-la seguir por uma linha revolucionária sóbria?

(DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 30).

Afim de nos familiarizarmos do conceito de desterritorialização, sugiro pensar no

âmbito da escrita literária. Antes de estreitar a relação entre a escrita literária e a caligrafia

urbana, é interessante trazermos como exemplo três obras literárias do gênero “distopia” –

que se trata de uma antítese à utopia como lugar ideal – que auxiliam a percepção sobre o

tema.

Por distopia entendemos o seguinte: uma palavra utilizada pela primeira vez por John

Stuart Mill em 1868, na câmara dos comuns ingleses, conceitua-se como um lugar ruim em

oposição à ideia de utopia enquanto uma descrição imaginativa de uma sociedade ideal,

baseada em justiça e bem-estar coletivo. refiro-me a questão da distopia, como um gênero

literário que retrata regimes sociais velados a uma suposta assepsia de bem-estar social, mas

que se trata, na verdade, de uma advertência, ou sátira, a regimes de governo opressivos e

totalitários; expressos mediante uma narrativa literária. A este fim, a distopia seria uma

utopia que não deu certo, uma sociedade ideal que fracassou. Portanto, as obras literatas e

sua relação com a língua escrita auxiliam a compreensão da noção de desterritorialização

articulada pelo conceito de literatura menor.

24 Remetemos à noção de desterritorialização aplicada à escrita menor, vale dizer que a linha de fuga é a ponte que opera

uma ruptura entre a grafia e a arquitetura da cidade: “a linha de fuga marca, ao mesmo tempo: a realidade de um número

de dimensões finitas que a multiplicidade preenche efetivamente; a impossibilidade de toda dimensão suplementar, sem

que a multiplicidade se transforme segundo esta linha”. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 16).

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Para trazer, ainda, uma maior clareza ao conceito de literatura menor, sugiro pensar

autores literatos, como Anthony Burgess (2004), que escreveu em 1962 o livro “A laranja

mecânica”, o qual retrata uma distopia social, marcada por uma narrativa violenta sobre

juventude e delinquência juvenil na cidade de Londres; o que interessa nessa obra é a

linguagem que o autor escreve; Burgess busca nas gírias ciganas e em expressões eslavas

uma base para criação de um vocabulário que ele intitulou como “Nadsat”; esse vocabulário

não é um idioma, mas sim um conjunto de gírias que formam uma espécie de comunicação

semicerrada. O Nadsat pode ser entendido como uma mistura entre a língua russa

desterritorializada e atravessada por uma linguagem coloquial da classe operária britânica

da época em que foi elaborada; é, pois, nesse sentido, que uma língua menor se faz dentro

da obra literária de Burgess.

Outro bom exemplo de uma língua menor é a obra literária “Admirável mundo

novo”, do escritor inglês Aldous Huxley (2014), publicada pela primeira vez em 1932; a

obra retrata também uma distopia social que se passa em Londres 632 D.F. (“depois de Ford”

no livro); na escrita literária o autor retrata um mundo de uma sociedade civilizada e

extremamente científica, dividida em castas, na qual as emoções são suprimidas por uma

substância chamada “soma” distribuída pelo Estado. O autor construiu a obra em cima de

todo um repertório linguístico variado e de muitas referências, nomes de personalidades

históricas como Marx; Freud; Ford; Malthus; Bonaparte; Shakespeare; e Darwin são citados

no livro como personagens que morreram antes dos eventos que precedem a obra; as castas

sociais são baseadas no alfabeto grego – Alfa; Beta; Gama; Delta; e Ípsilon; podemos tirar

como lição reflexiva o manejo da obra literária que desterritorializa a língua oficial – Marx

de filósofo político a profeta, e Freud de psicanalista a guru social, por exemplo – e

reinventa-se através de uma linguagem sensível e menor como obra literária que reverbera

até hoje em outros eixos da sociedade. Em 1979, no Brasil, em plena ditadura militar, o

artista Zé Ramalho compôs e musicou a letra de uma canção intitulada “Admirável gado

novo”, que faz referência a obra de Huxley, e retrata, por meio da metáfora e da licença

poética, a ideia dos seres humanos como alienados, que não pensam nem refletem sobre os

fatos. Mais recentemente a cantora baiana Pitty, em 2003, também fez uma releitura da obra

intitulando “Admirável chip novo” para escrever uma narrativa de uma canção de protesto

contra um sistema excessivamente mecanizado. Esse breve paralelo conduz a pensar em

alguns efeitos repercussivos da literatura menor de Huxley nos seus leitores.

O terceiro exemplo literato aqui trazido é a obra “1984”, do escritor George Orwell

(2009), escrita e publicado pela primeira vez em 1949. O enredo se passa geograficamente

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nas ilhas da Grã-Bretanha, em um continente chamado Oceania, que é o conjunto de outros

continentes que foram conquistados após uma guerra nuclear; um mundo onde há

manipulação histórica e pública dos registros; e uma vigilância onipresente se faz presente.

Dentro da obra, é possível captar uma linguagem desterritorializada, chamada “Novafala”,

ou “Novilíngua”; no entanto, no contexto da trama literária essa linguagem representa um

idioma estabelecido pelo governo de um regime político totalitário, uma forma de reinventar

as palavras de modo que sejam reduzidas ao oposto de seu significado, por meio de um

mantra emitido pela máxima “Guerra é paz, Liberdade é escravidão, Ignorância é força”.

Na literatura, as utopias geralmente são compreendidas como o caminho ideal –

ainda que inviável – a ser seguido pela sociedade; já no gênero distopia a narrativa parte da

ideia de que a utopia já foi alcançada, porém, os problemas contemporâneos são mascarados

sutilmente, na maioria das vezes por meio de uma falsa moral. Resumindo as três obras,

ambas retratam experiências singulares de realidades distintas, mas que partilham em

comum um certo coeficiente de desterritorialização da língua, reiterando os termos de

Deleuze e Guatarri (1977).

Retomando o nosso fio condutor teórico, “vale dizer que ‘menor’ não qualifica mais

certas literaturas, mas as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que

chamamos de grande ou estabelecida” (DELEUZE, GUATARRI, 1977, p. 28). Dada essa

breve reflexão acerca da literatura, aponta-se a noção de desterritorialização como a

entendemos, em relação à língua, uma trama de linhas de fuga, pelas quais os caminhos da

língua se dissipam, no pixo ou no graffiti, as linhas das letras orientadas por um ordenamento

ao mesmo tempo em que escapam do padrão, reinventam-se, na criação das versões menores

de si mesmas.

Para ilustrar essa noção de linha de fuga, utilizarei a metáfora da “bicicleta” como

uma analogia em paralelo. Entendo que na cidade, por exemplo, o tráfego é um sistema que

coordena e organiza a lógica do trânsito, rodovias, veículos, pedestres, semáforos; o

automóvel desempenha um papel destacado dentro da mobilidade urbana visto que as

próprias ruas são organizadas a favor de suas regras de locomoção; a bicicleta por sua vez,

é um veículo menor de mobilidade ágil, enquanto os automóveis se engarrafam em horários

de pico do trânsito, a bicicleta escapa com a possibilidade de criar novas rotas e linhas de

fugas dentro do sistema de tráfego, se desterritorializa do espaço designado ao automóvel

por excelência, nem pedestre nem motor, a bicicleta por sua vez é capaz de traçar

movimentos as margens da vias até retomar sua rota.

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A bicicleta desempenha um papel menor em relação ao tráfego de automóveis nas

rodovias como sistema maior de mobilidade urbana, por exemplo. Assim como a bicicleta

enquanto veículo que desterritorializa o tráfego, a letra riscada – enquanto pixo e graffiti –

se desterritorializa da gramática oficial, ela traça em suas linhas espaços e tempos que

escapam da regra e fogem dos padrões, ainda que mantenham uma base que a possa

identificar como caractere, como veremos a seguir ao exemplo de um “alfabeto menor”.

Figura 11 – de A à Z, alfabeto caligrafia urbana por Everson Menor. janeiro, 2016.

O letreiro acima é um alfabeto versado em uma estética da caligrafia urbana,

elaborado pelo escritor Everson Menor, seu vulgo “menor” por ventura se sintoniza com a

ideia de literatura menor, casualmente, “menor” também é o apelido que se dá, dentro de

uma linguagem coloquial, para jovens abaixo da maioridade dos 18 (dezoito) anos de idade

com um sentido conotativo de marginalidade.

A ilustração de uma gramática visual serve para recordar que a caligrafia urbana não

começa e termina na rua, existe um trabalho árduo e estudo contínuo para aperfeiçoar esse

ofício. A criação de uma gramática visual própria vem por meio do estudo de outras

referências, como as de outros escritores, imagens que circulam na cidade, em revistas ou

ainda na internet, transformam-se em matéria visual e funcionam como um banco de dados.

Para efeitos ilustrativos, o uso da ordem alfabética facilita nossa compreensão cognitiva,

todavia, usados como palavras soltas na superfície da cidade não é garantida sua

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legibilidade. Os alfabetos de graffiti e pixo estão sujeitos a constantes reinvenções, podendo,

portanto, servir sempre de referência, mas nunca como regra.

O léxico do graffiti excede, em muito, o tempo e o espaço de comunicação na

parede. As imagens do graffiti nascem muito antes de alcançarem visibilidade na

rua. Existe toda uma biografia das imagens que é desconhecida de muitos e não

se anuncia ao olhar de quem observa repentinamente os graffitis na cidade. A

linguagem tem de ser assimilada, deve ser convenientemente dominada, antes de

poder ser exibida. O graffiti tem um tempo de aprendizagem que é marcado por

um trabalho doméstico insistente, na melhoria do tag, no ensaio e correção dos

erros de composição visual. (CAMPOS, 2010, p. 262).

Ricardo Campos (2010), nesse trecho de sua obra, ressalta a importância do

blackbook25 como um utensílio importante para o escritor, sem dúvidas, é através dessa

ferramenta que se desenvolve e aprimora o que aqui nos referimos como literatura menor, é

o seu berço de criação. O livro negro é, em outras palavras, o que chamamos anteriormente

de grimório, e é, por excelência, o espaço de onde a literatura menor primeiramente se

desterritorializa, para alcançar em outro momento a arquitetura da urbe. A caligrafia urbana

passa a ser uma experiência de desterritorialização, tanto para quem a produz, da ideia para

o papel, do papel para a parede, como para aqueles que a observam como um movimento

que desloca a paisagem e cria rupturas na arquitetura.

Figura 12 – Blackbooks – cadernos de esboço/desenho.

25 Do inglês blackbook (livro negro), ou sketchbook (caderno de rascunhos), funciona como um livro pessoal similar a um

diário, em que se desenham/escrevem esboços, projetos e ideias. Nesse sentido, o blackbook possui a funcionalidade de

um acervo pessoal no qual se elaboram criações, experimentações e ensaios.

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No registro acima trago a imagem de alguns de meus blackbooks pessoais, com

desenhos meus, registros pessoais, esboços e projetos, mas também alguns de outros

escritores que conheci no longo de minha trajetória e que me deixaram de lembrança

registros de suas tag’s assinaturas assim como eu fiz o mesmo em seus respectivos

blackbooks, muitas vezes como uma troca que registra um intervalo de tempo vivido e uma

conexão realizada.

Em todo caso, os blackbooks são ferramentas indispensáveis para a maioria dos

escritores. Eles funcionam não apenas como um diário de bordo ou um caderno de campo

que serve a um antropólogo, mas também servem tanto como uma lista de exercício como

um passatempo. Neles se inscrevem o espaço para a escrita e o desenho como uma

capacidade inventiva, por onde o escritor solta a mão no traço e explora sua personalidade

e forma própria de escrever, eles são o ponto de partida para o escritor, são referências

essenciais que inspiram o ofício de escrever nas ruas. Assim como no ensaio do roteiro de

uma peça, a rua é o palco de um trabalho elaborado nos bastidores do blackbook. Ele é para

a literatura menor o espaço inicial de onde a caligrafia se desterritorializa e então alcança

um novo território dentro da cidade.

Figura 13 – Caligrafia Urbana “Menor e FB”. Nova Parnamirim/janeiro, 2016.

Na figura acima, por exemplo, a literatura menor se expressa no escrito caligráfico

de dois escritores “Menor e FB”, podemos classificar enquanto um pixo esteticamente

elaborado e desenvolvido, com perceptíveis noções de linha, espaçamento e simetria; por

exemplo, a arquitetura em tijolos auxilia como uma régua na execução da composição; é

possível perceber que não se trata de uma simples rasura, feita sem sentido algum, apenas

no intuito de poluir o muro. A escrita incita o desejo e este, por sua vez, instiga o escritor a

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prosseguir desenvolvendo a sua caligrafia. É bem isso que fornece as características que

pontuamos antes: a da experimentação social na cidade, que se entremeia de atitudes de

resistência a um poder que insiste em codificar os espaços urbanos. Inclusive, é por esta e

específica razão que optamos escrever “pixo”, em respeito à atribuição que é denominada

pelos próprios escritores praticantes, e não “pichação”, tal como a correção ortográfica coage

a seguir a regra gramatical; nesse aspecto, a literatura menor reconduz a uma linha de fuga

– no sentido em que escapa uma grafia legível ou ortográfica e reinventa-se em uma versão

subjetiva e inventiva – da linguagem oficial.

Atento que a caligrafia urbana ainda que baseada no abecedário formal ocidental,

distancia-se de sua terra natal e opera sua desterritorialização por meio da forma em uma

reinvenção da composição caligráfica. A letra escapa, foge da régua e do padrão

estabelecido, ela se destrói enquanto caractere gramatical e ressuscita enquanto um desenho,

grafia e movimento, este, por sua vez, opera em um retorno a uma nova base, reconstituindo-

se um padrão ainda que alternativo “via de regra, com efeito, a língua compensa sua

desterritorialização por uma reterritorialização do sentido. Deixando de ser órgão de um

sentido, torna-se instrumento do Sentido.” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 31).

A operação de desterritorialização que opera uma via de reterritorialização pode

ser pensada a partir das noções anteriores observadas na arte da caligrafia, ao entender que

o veículo de sentido se refere ao intervalo vivido no momento da escrita, a esse dinamismo

e relação com espaço que marca não apenas o suporte citadino, mas também a vivência dos

calígrafos, permitindo que construam suas trajetórias, seus gêneros e estilos próprios os

quais constituem os modos em que elaboram suas letras em seus próprios termos.

Figura 14 – Outdoor vandalizado “Pazciência”. Nova Parnamirim/outubro, 2017.

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No registro visual acima, temos uma escrita elaborada por mim enquanto escritor de

rua, “Pazciência” enquanto meu heterônimo e assinatura que escrevo nas ruas, estilizada em

uma estética que remete ao Tag Reto que falamos anteriormente. Na imagem, o suporte que

estava branco foi desterritorializado pela escrita e reterritorializado em uma operação de

sentido, em que me aproprio do espaço antes estabelecido para uma linguagem maior e

oficial como a dos cartazes de painéis publicitários (outdoors) e ressignifico esse espaço

como uma tela na qual posso firmar meu nome, minha caligrafia, meu estilo, ainda que por

um efeito de tempo bastante curto e efêmero, o que interessa no momento é o intervalo

vivido e o registro que eterniza o momento para via de minha trajetória pessoal. A execução

dessa caligrafia foi realizada com tinta azul, um rolo de espuma e um cabo extensor para

alcançar a altura mais elevada. Dentro da minha perspectiva, essa era uma ótima tela que

estava “pedindo” por uma intervenção, como sabia que não iria durar bastante, não se tratava

de fazer um trabalho com esmero e elaboração, contudo, de um trabalho fugaz no qual a

caligrafia ocupa-se na placa de ponta a ponta; e essa foi a intenção inicial, para atingir um

espaço de grande visibilidade ainda que por pouco tempo.

Esse exemplo segue para ilustrar uma linha de fuga dos padrões da linguagem oficial

na medida em que subverte o sentido e desafia a arquitetura da cidade. Doravante conduzo

a pesquisa no intuito de reafirmar essas hipóteses.

Figura 15 – Espaço abandonado Monte Belo. Margem da BR-101/janeiro, 2017.

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Figura 16 – Espaço abandonado Monte Belo. Margem da BR-101/janeiro, 2017.

Nas duas fotografias acima, observamos o registro de duas faces de um mesmo

espaço abandonado, destaco as assinaturas “LPE e LKS”, observe em ambas o ritmo e a

frequência com que a parte inferior dos caracteres “L, E, e K” obedecem uma certa forma

que se repete criando um tipo de padrão, revelando o calígrafo em sua potência de

desenvolvimento da sua própria fonte por exemplo.

Examinando os registros fotográficos e a partir da minha condição de

experimentação de rua enquanto escritor urbano, posso afirmar que pintura e poesia

compõem a criação e a execução da caligrafia. Nesse sentido é que este trabalho dissertativo

buscou a relação entre imagem e escrita para estabelecer as relações entre graffiti e pixo,

ambos fundados na base da letra, caligrafia e escrita, em uma perspectiva mais próxima do

abstrato; ao mesmo tempo, elas abrem a possibilidade para a composição da imagem e do

figurativo.

Para dar conta dessa elucubração, trago algumas reflexões de Bianca Kondo (2012)

em seu trabalho Caligrafia entre arte e design, em que o desenho e a escrita são provenientes

de um mesmo propósito: ambas foram criadas de uma necessidade fundamental de

armazenar informação para comunicar, e independentemente da forma da escritura, a prática

da escrita se inicia a partir do desenho. A autora recorre ao pensador Vilém Flusser para

afirmar que a luta entre o texto e imagem é dialética “embora textos expliquem imagens a

fim de rasgá-las, imagens são capazes de ilustrar textos, a fim de remagicizá-los. Graças à

tal dialética, imaginação e conceituação que mutuamente se negam, vão mutuamente se

reforçando” (FLUSSER, 1985, p. 8). Tal concepção ajuda a melhor explicitar a relação

mútua entre o graffiti e o pixo, na qual ambos são gêneros de uma mesma caligrafia estilística

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que remete à urbe. O argumento do pensador vem trazer maior consistência a um método de

análise de fotografias a partir de narrativas e experiências, uma vez que as fotografias não

falam por si só, nelas estariam contidas experiências e histórias que jamais podem ser

traduzidas ao pé da letra; mas bem elaboradas na esperança de que a narrativa construída

por cima delas seja satisfatória tanto para o escritor quanto para o leitor.

Ilustrarei a seguir registros fotográficos de graffiti e de pixo, a relação entre imagem

e escrita explícita, por meio da mescla de imagens pictóricas26 e letras, que dialogam em

reciprocidade, elucidando a caligrafia urbana enquanto um entrelaçamento entre imagem e

escrita.

Figura 17 – Lagoa de captação Nova Parnamirim, “STOMP, ARBUS” letra e personagem. Nova Parnamirim/outubro,

2017.

Na imagem acima, observamos o registro de uma composição mais próxima do

graffiti pelo uso de várias cores; entretanto, assim como o pixo que cobre de forma não

autorizada uma publicidade de uma academia, esta, por sua vez, pode também ter sido feita

de forma ilegal, mas esse não é o foco da discussão. A razão desse registro é elucidar a

relação entre escrita e imagem, por meio das letras e personagens, “Stomp e Arbus”, cada

qual assina sua caligrafia junto com seus personagens. Para observadores mais assíduos, os

próprios personagens são também são a assinatura dos artistas, que usufruem não apenas do

estilo de letras, mas também de seus personagens figurativos para marcar suas existências

dentro da cidade. O trabalho realizado em conjunto usa o mesmo esquema de cores tanto

para as letras como para os personagens pictóricos.

26 Pictórico diz respeito à pintura, ou que se assemelha à pintura, representado visualmente por imagens. Na escrita de

sinais, libras, por exemplo, as letras são representadas por símbolos pictóricos das mãos em diferentes posições para

representar determinadas letras ou palavras; elementos pictóricos.

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No próximo registro mostrarei uma ocasião na qual a letra e o personagem

literalmente partilham o mesmo espaço.

Figura 18 – Ruínas à margem da BR 101/setembro, 2017.

Na imagem acima podemos observar na parte superior da estrutura arquitetônica o

nome “OSMO” escrito duas vezes, que apesar de certa similitude divergem em alguns

aspectos. Na do lado esquerdo, a cor de base e o fundo são, ambas, escuras e frias, sendo

que a linha de contorno apresenta uma continuidade com poucas interrupções; já, no lado

direito, além da base e do fundo serem cores claras e quentes, a linha de contorno é bem

mais abrupta com várias quebras como vírgulas e triângulos ao decorrer da linha. Nas duas,

no início e no fim da palavra, a letra “O” se transforma em um rosto de palhaço caricato,

que representa a letra na leitura, mas também representa um rosto pitoresco. O trabalho

aparenta ter sido realizado com escada para alcançar uma altura mais elevada.

Assim, a caligrafia urbana se apresenta como imagem e escrita, destacando-se que,

formada por caracteres, a escrita remete a um jogo de imagens que podem ter sentido

discursivo ou pictórico, pois, “independente do sistema de escritura (logográfico, silábico,

alfabético), a prática da escrita inicialmente era feita com desenhos, percorrendo caminhos

e processos de transformação até a abstração” (KONDO, 2012, p. 9). Esse exemplo serve

para salientar a reciprocidade na relação imagem-escrita na expressão da caligrafia urbana,

ambas as linguagens pictográficas27 (imagem escritura) e o uso de palavras explícitas se

27 Escritura pictográfica remete ao período neolítico, no qual o ser humano utilizava de desenhos para representar a escrita

gravada em pedras. “Registros em nós e entalhes podem invocar categorias, números ou lembretes. No entanto, nenhum

transmite particularidades como qualidades ou características. Só imagens podem fazê-lo. A necessidade de transmitir uma

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reforçam entre si, criando um sistema de escritura singular e estilístico de uma espécie de

tipografia urbana.

Figura 19 – Passarela Potilândia. BR-101/outubro, 2016.

No terceiro registro, a pilastra de uma passarela com a inserção de duas assinaturas

“BOLADO e OSMO”, a caligrafia se aproxima mais do pixo enquanto estética e utilização

de menos recursos (apenas uma lata de spray). Em primeiro lugar, detalhe para a letra “A”

invertida do nome bolado, identificável apenas para os iniciados, a palavra se torna ilegível

a leigos no assunto; em segundo lugar, observando a imagem pictórica, mais abaixo aparenta

ser apenas uma “face” com sorriso cortado, mas observando com muita atenção, o rosto é

formado pela decomposição da palavra “OSMO”: o primeiro “O” é o círculo maior da face,

o “S” é formado pelo triângulo de cima que lembra um chapéu e contorna a letra “O”, o olho

esquerdo simboliza a letra “M”, que significa “mais”, e o olho direito representa a última

letra “O”, formando assim o signo “OSMO”, que quer dizer “OS Mais Odiados” na

concepção do escritor. Eu mesmo duvidaria de tal hipótese se não tivesse sido o próprio

caligrafo “Osmo” quem tivesse me contado isso, durante um encontro casual. Sem dúvida,

essa iconografia composta por letras parece ser muito complexa, ao mesmo tempo em que,

quando desvendada, revela uma grande simplicidade.

Já na próxima figura abaixo temos uma tag assinada com uma caligrafia de pixo bem

legível semelhante a uma letra cursiva minúscula, geralmente aprendida na escola, com

atenção pode se ler assinado “elefantxe” e ao mesmo tempo observar uma intencionalidade

transformar a caligrafia em uma imagem pictórica de um elefante. Esse exemplo corrobora

variedade maior de informação pontual, além das citadas, registrando com um ou mais símbolos pictóricos – isso é

pictografia. (FISCHER, 2009, p. 19).

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a ideia de que letra e imagem não estão dissociados, eles se complementam e remetem um

ao outro, a escritora que firma essa tag foi reinventando sua assinatura ao longo de sua

trajetória e podemos dizer que esse continua sendo uma tag em processo.

Figura 20 – Pixo atropelando publicidade “elafantxe”, Av. Roberto Freire / fevereiro, 2017.

A seguir abaixo temos o registro da mesma escritora que assina “elafantxe” em um

pixo mais antigo, no qual riscava apenas a imagem pictórica de um elefante. Comparando

as duas fotos e registros, podemos observar um pouco da transformação da escrita em

relação a uma trajetória do escritor e seu próprio processo de formação e elaboração da sua

assinatura.

Figura 21– “Elafantxe” pixo pictórico, marginal da BR-101 /outubro, 2016.

Mediante esse exemplo, é possível perceber que, em um primeiro momento, o que

era a imagem singular e icônica de um elefante passa a se desenvolver, e o escritor a executa

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tanto como escrita quanto como desenho, uma imagem visual mista que é ao mesmo tempo

pictográfica e tipográfica28.

Por meio das leituras de Deleuze e Guattari (1977), em Kafka por uma literatura

menor, a ideia de uma caligrafia urbana surge a partir do princípio de pensar a possibilidade

de uma escrita menor incorporada na cidade. Pensar a cidade metropolitana como um livro

aberto; a caligrafia urbana enquanto um veículo dotado de plenos potenciais a serem

explorados, no seio da própria cidade; isto é, ainda que a letra e a imagem expressem o “grito

abafado na parede” de uma minoria, inscrito na superfície arquitetônica da cidade,

permanece subterrânea uma potência a aflorar como um desejo de falar e pensar

transgredindo o espaço comum da rua. A caligrafia e as letras são o fundamento de uma

comunicação visual e de símbolos que possuem um sentido palpável para aqueles que estão

mergulhados nesse universo. A caligrafia urbana pode ser compreendida como uma

interrogação na comunicação visual da cidade.

É nesse sentido que entendemos essa manifestação como uma forma de literatura

menor, não no sentido diminutivo como já foi alertado. Literatura menor como literatura

marginal, uma órfã de língua mãe, híbrida, mestiça, fora de um léxico oficial e gramatical.

Para dar entendimento ao procedimento de expressão das escritas, “levamos em conta o

conteúdo e as formas”, como defendem Deleuze e Guattari (1977, p. 25), de modo que essas

práticas passam por uma reinvenção da língua, produzindo novos conteúdos e formas. Por

ora, o propósito deste primeiro capítulo é fornecer ao leitor ferramentas úteis para

“alfabetizar” o ponto de vista da leitura de uma literatura menor dentro da cidade à qual nos

referimos enquanto caligrafia urbana.

A cidade tem bastante a oferecer para aquele que se permite experimentar seu

potencial comunicativo, no que se refere aos usos menores, a expressão de uma literatura

menor ganha vida através de suas manifestações na tessitura urbana; todo um universo de

signos e interditos entre a palavra e a imagem se misturam, em um espaço em que não se

pode delinear regras fixas de composição, o que existe é uma paisagem em constante

movimento de mudança repleta de uma linguagem verbal e pictórica mista.

Nesse seguimento, o foco deste momento do texto é trazer argumentos que sustentem

a noção de desterritorialização e como ela se aplica à linguagem urbana, fora do território

28 A tipografia (do grego typos – “forma” – e graphein “escrita”) é a arte e o processo de criação na composição e impressão

de um teto, física ou digitalmente. A tipografia tem sua origem principal nas primeiras impressões com tipos gráficos

(letras em relevos confeccionadas em madeira, barro ou ferro). Na maioria dos casos, uma composição tipográfica deve

ser especialmente legível e visualmente envolvente, sem desconsiderar o contexto em que é lido e os objetivos da sua

publicação. Fonte: Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Tipografia>. Acesso em: 12 fev. 2018.

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oficial da língua, a caligrafia citadina está sujeita à manipulação dos escritores que

reorganizam as linhas e traços trazendo novos sentidos e direções que as letras percorrem.

Como observaremos na figura abaixo, a pintura de uma personagem feita de letras, um

graffiti com uma estética que remete aos pôsteres de bandas da contracultura29 dos anos

1960 e 1970, que consiste em uma tipografia voltada para o contexto da época com temas

florais, orgânicos, sensuais e psicodélicos que transformavam o texto em imagens quase

ilegíveis e não diagramadas intencionalmente. Assim como a letra conduz a imagem, esta

nos devolve a letra, a pintura como uma linguagem visual que observamos não está apenas

na ordem do ornamental, ela também é dotada de saberes e referências.

Figura 22 – Graffiti rosto de letras por “Sheep”. Bloco I do Setor de aulas II. UFRN/fevereiro, 2016.

A arte na rua, a tinta na parede, qualquer que seja o seu estilo, revela a intervenção

nua e crua no muro através de uma base central, a letra. As letras são o princípio que elabora

a caligrafia, e a caligrafia por sua vez é um tipo de desenho. Sabemos que, atualmente no

Brasil, a escrita à mão possui certo valor adormecido, ainda que precariamente praticado nas

escolas, na carteira de identidade, e nos registros de cartórios, a escrita manual parece ser

29 “A rebeldia dos jovens, o uso de drogas, os cabelos compridos e as roupas coloridas, a contracultura dos anos 60 e

posteriormente a diversidade dos anos 70 acabaram por influenciar todo o mundo das artes. O psicodelismo foi um dos

principais movimentos da época, tendo início em 1967, quando ocorreu uma série de manifestações e protestos em vários

países como Estados Unidos, Cuba, Inglaterra, França, Brasil. Se o mundo da música serviu como uma voz para essa

geração que lutava por mudanças, suas manifestações gráficas construíram a visualidade desta década. O movimento

psicodélico, o estilo punk e grunge na tipografia, refletiam graficamente o que as ruas diziam. A famosa contracultura dos

aos 60 e 70 alavancou as criações de capas de discos e pôsteres deste período, trazendo uma linguagem que pretendia

romper com todos os padrões impostos pelo modernismo”. (COLETIVO HERMÉTICOS, 2016).

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paulatinamente substituída pela tecnologia de fontes digitais e biometria. A caligrafia de rua,

por sua vez, se reinventa a cada prática menor, valoriza a escrita à mão, a expressão da arte

enquanto linguagem não verbal, o “fazer na hora” em escrever, nas mais variantes condições

e emoções que afloram a pele. A caligrafia é um sistema de caracteres que faz da escrita um

desenho, formado por símbolos no qual o raciocínio visual toma forma para construir da

letra uma marca autêntica, identificável principalmente por aqueles que realizam a escrita,

cheia de significado, e de signos sensíveis que são partilhados enquanto possibilidades de

reconhecimento visual. E ao, mesmo tempo, uma linguagem, que acima de tudo, está repleta

de códigos herméticos, sobre os quais, “quem não pertence ao meio certamente não hesitará

em duvidar da capacidade comunicativa de tais rabiscos” (CAMPOS, 2010, p. 85).

Figura 23 – “Pazciência x Mal”. Passo da Pátria/setembro, 2017.

Encerro este momento com mais um registro visual de minha autoria na parte da

caligrafia, a tag “Pazciência” nesse momento se alonga horizontalmente para ocupar grande

parte do campo visual do muro e interage com o personagem do canto direito. Nesse registro,

o diálogo com a arquitetura e a caligrafia se demonstra através de um eixo horizontal na

elaboração da escrita de modo que se alongue para melhor ocupar espaço no muro de ponta

a ponta. Doravante, passamos ao terceiro momento do primeiro capítulo, que traz à tona,

com ênfase, o aspecto comunicativo da caligrafia urbana enquanto uma manifestação da

literatura menor dentro da cidade.

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2.3 ESCRITURA NA RUA: comunicação e linguagem visual

Arte urbana, ou arte na rua é um fenômeno aparentemente recente, porém com raízes

mais profundas30, que se manifestam utilizando a cidade como suporte. Procurei durante a

fundamentação deste estudo, investigar os modos de comunicação e elementos dessa

linguagem visual no espaço urbano, por meio das práticas sociais conhecidas popularmente

como graffiti e pixo; tais práticas podem ser consideradas como manifestações de culturas

juvenis (CAMPOS,2010, p. 25) quando se referem a um conjunto de valores e modos de

vida de certos grupos que se expressam e vivem na cidade. Porém, não atribuímos aqui o

sentido identitário proposto por Campos (2010). Nossa opção recai na observação da

polifonia comunicacional31, tal como nos alerta Canevacci (1993), para entender esses

processos como um cenário em que escritores de rua transitam e vivenciam

suas experiências comunicacionais, por meio de uma linguagem de tintas e códigos.

Nos termos de Canevacci (1993), uma cidade polifônica “se refere aos mutantes

processos de comunicação visual”. O que aqui denominamos comunidade visual é a

expressão de um dialeto urbano que ganha vida através das impressões no tecido da cidade,

um universo cultural interdito entre a palavra e a imagem, onde não há regras

preestabelecidas de composição, o que existe é uma linguagem verbal e pictórica mista.

30 “A pichação [sic] não é exclusividade das sociedades atuais. Ao contrário, as paredes das cidades antigas eram tão

pichadas quanto as de hoje, ou muito mais. Havia de tudo nessas pichações. A julgar pelas paredes de Pompeia, cidade

vitimada pela erupção do vulcão Vesúvio em 24 de agosto de 79 d.C., e por isso preservada, predominavam xingamentos,

cartazes eleitorais, anúncios, poesias, praticamente tudo se escrevia nas paredes. Já na idade média, época em que a

Inquisição perseguia e castigava as bruxas, cobrindo-as com uma substância betuminosa chamada piche, os padres

pichavam as paredes dos conventos de outras ordens que não lhes eram simpáticas”. (GITAHY, 1999 p. 20). 31 Ao falar em polifonia comunicacional remetemos a ideia da obra “A cidade polifônica – significa que a cidade em geral

e a comunicação urbana em particular comparam-se a um coro que canta com uma multiplicidade de vozes autônomas que

se cruzam, relacionam-se, sobrepõe-se umas às outras, isolam-se ou contrastam; e também designa uma determinada

escolha metodológica de ‘dar voz a muitas vozes’, experimentando assim um enfoque polifônico com o qual se pode

representar o mesmo objeto – justamente a comunicação urbana. A polifonia está no objeto e no método”. (CANEVACCI,

1993 p. 17).

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Figura 24 – Fábrica abandonada. Marginal da BR-101/agosto, 2017.

Na figura acima, apresentamos um registro visual de uma paisagem urbana, a fábrica

abandonada em alguma medida expressa o significado do termo polifonia comunicacional.

No mesmo espaço, habita na linha horizontal de baixo uma pintura publicitaria e informativa

(ALUGA-SE); e na linha horizontal superior na altura do teto, uma fileira sequencial de

pichações em látex branco, feitas de cima para baixo por escritores escaladores. Certamente,

a noção de polifonia comunicacional compreende uma multiplicidade de vozes maior no

espaço urbano. A ruína do edifício abandonado por si só já revela a brevidade dos fenômenos

da cidade, um espaço deteriorado como o da fotografia sugere que já passou por esse espaço

não apenas os escritores, mas talvez moradores de rua, ou ainda os trabalhadores que

operavam enquanto o prédio que um dia foi ativo. Pensar a partir de uma perspectiva

polifônica compreende experimentar, sendo assim:

Compreender uma cidade significa colher fragmentos. E lançar entre eles

estranhas pontes, por intermédio das quais seja possível encontrar uma pluralidade

de significados. Ou de encruzilhadas herméticas. As cidades sempre se

comunicaram com os palácios do poder público e com as residências particulares,

com os monumentos e com o tráfego, com a organização do espaço e com simples

lojas. Estamos, entretanto, habituados a procurar comumente numa cidade

somente sua riqueza artística, comercial ou industrial. (CANEVACCI, 1993, p.

35).

Sob essa perspectiva de uma cidade e seus mutantes processos comunicativos,

podemos pensar a cidade moderna como uma selva de pedra, um grande construto,

alimentado por pessoas e máquinas, que se relacionam e comunicam em um processo

contínuo e inacabado. Essa imagem pode ser traduzida como uma grande poesia visual: a

rua como um espaço heterogêneo, uma floresta urbana de aço e concreto, onde os cipós

seriam os fios de telefone que conectam os postes, nossas casas as cavernas, abrigos e

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aldeias, e a luz do computador seria o fogo que inclusive nos auxilia escrever o texto em

construção nesse exato momento. Um espaço de base cinza, manchado de cores escondidas

de muitas nuances que tem como tessitura de sua trama um grande livro aberto, repleto de

escrituras de diversos códigos, linguagens e registros de acontecimentos, sob o ponto de

vista da caligrafia urbana a cidade é sua tela. E nessa percepção, enxergar a cidade com

outros olhos, nos quais se articulam, a relação entre escritor e pesquisador, que investiga e

compõe simultaneamente a linguagem das ruas. Assim, recorrer ao recurso da metáfora é de

basilar importância para a compreensão da pesquisa, como já comentamos anteriormente na

esteira do pensamento de Nisbet (1979), a partir do qual pode-se fazer um breve parêntese

sobre essa questão.

É fácil para os posivistas rejeitarem a metáfora como um substituto do raciocínio

racional ou científico porque é <acientífica>, porque é algo pertencente às zonas

encantadas da vida, como a arte, a religião e o mito. Mas a partir da metáfora,

surgem alguns dos principais temas da ciência e filosofia ocidentais, assim como a

arte. Eu vou mencionar apenas três, mas eles serão suficientes para dar uma ideia

da vastidão da influência da metáfora. Trata-se de crescimento, genealogia e

mecanismo. Considere o primeiro. Somente no mundo orgânico das plantas e dos

animais pode literalmente e claramente contemplar o crescimento: o

desenvolvimento da semente, através de fases ordenadas e regulares, de estágios

que estão contidos na semente desde o início. Crescimento é mudança, sim, mas

quando nos referimos à mudança como manifestação de crescimento na esfera

social, estamos falando metaforicamente. Poucas perspectivas, poucos tópicos

foram mais vitais no pensamento ocidental do que este de crescimento e

desenvolvimento, que é um produto conceitual da metáfora. (NISBET, 1979, p. 55).

Esse é um dos auxílios que o recurso da metáfora nos traz para pensar

sociologicamente. É nesse sentido que dizíamos que Nisbet, traz uma compreensão

perspicaz da sociologia como uma forma de arte; é nisso, a meu ver, um grande apoio a um

fazer científico mais arejado.

A escrita, é um modo de armazenar informação e se comunicar, fazendo-o através

de ferramentas. Assim como o lápis, o computador e a máquina de datilografia; podemos

compreender o pincel, o rolo de espuma e a lata de spray; todos como veículos capazes de

mobilizar potências criativas da escrita. Na imagem abaixo, pontuo um registro inventivo

que retrata fragmento de um momento vivenciado em um grande mural coletivo de

intervenção na rua, intitulado “painel das cores”. O evento “OnArea Natal StreetArt”32

acompanhado e registrado em tempo real de produção de intervenção no espaço urbano, é

um graffiti coletivo de aproximadamente 800m².

32 Evento de graffiti realizado na cidade de Natal em 2015, reportagem na íntegra disponível em:

<http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/a-painel-de-coresa-na-av-do-contorno/326289>. Acesso em: 26 out. 2017.

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Figura 15 – OnArea Natal streetart painel das cores 2015. Registro por Yanna Medeiros. Av. do Contorno/outubro, 2015.

Fonte: Disponível em: <https://conexoeshibridas.wordpress.com/2015/10/15/cobertura-fotografica-do-onarea/>. Acesso

em: 28 out. /2017.

A imagem, certamente poética, foi um registro produzido com um efeito de câmera

que mostra em 360º o que acontecia na avenida, um fundo preto, várias letras e personagens

sendo pintados, andaimes, escadas, pessoas sentadas na calçada, a vegetação das árvores por

cima, enfim, uma efervescência registrada em fotografia. Corrobora a ideia de que artistas

inauguram uma política através da arte, manifestando na rua um domínio do conteúdo de

suas ideias, assim pautando em movimento, os traços, riscos e formas que passam a guiar as

experimentações, entre linhas e fronteiras ou entre o legal e o ilegal. Essa linguagem menor,

por assim dizer, é orientada pelos mesmos elementos da linguagem visual que estamos

acostumados, linha, superfície, volume, luz e cor; no entanto, eles não obedecem às mesmas

regras ortográficas ou gramaticais para as quais fomos ensinados na escola. Ainda que não

sejam sempre compreensíveis, essas escritas permitem conexões e ocupam a cidade

portando uma consciência espacial do campo visual que tomam conta e avançam.

A escrita da arte urbana se movimenta e alimenta a cidade de linguagem, de

comunicação e de uma polifonia de vozes, possíveis de serem vistas, ouvidas ou

experimentadas. Esses elementos da linguagem visual configuram-se enquanto uma

linguagem dotada de capacidade artística de fazer acontecer sua comunicação, em um

determinado espaço e tempo, conforme Ostrower (1998, p. 204):

A linguagem visual se estrutura a partir de cinco elementos básicos, que

constituem, por assim dizer, os vocábulos formais: linha, superfície, volume, luz

e cor. Com eles se estruturam todas as imagens de arte, de todas as épocas e

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culturas. Em si, isoladamente, estes elementos nada representam, nada designam

ou significam. E neste nível, tampouco se define uma “identidade”. Eles apenas

contém certas potencialidades de configurar um determinado padrão de espaço e

tempo.

Pensando a partir desse autor, no pixo podemos observar como elemento mais forte

e nítido a linha, articulando ritmos e intensidades em direções que desafiam a arquitetura da

cidade. Esse vocábulo se expressa fortemente como uma direção no espaço. Seguindo a

mesma orientação ao pensarmos o graffiti, podemos notar mais fortemente a presença dos

outros elementos: a superfície é o elemento que traz a dimensão de altura e largura de uma

peça; o volume por sua vez traz consigo a percepção de uma terceira dimensão, o espaço

físico da profundidade simulada; a luz se constitui pelo papel de contraste entre o claro e

escuro, se a profundidade leva a percepção de uma peça para dentro a luz traz essa percepção

para fora; e o derradeiro elemento: a cor, capaz de articular diferentes relações com a

percepção da emoção, como alegria, raiva, calma, ou sensualidade.

Todavia não é nosso foco explorar uma discussão mais profunda desses elementos

da linguagem visual. Tratamos, portanto, de pontuá-los e de ter em mente a nitidez de sua

presença no campo de estudo, não os alijando de sentido na composição da linguagem visual

urbana contemporânea.

Figura 25 – Bairro do Alecrim, Natal/RN, “Gapix”. Alecrim/outubro, 2017.

Na imagem acima, pode ser observado ao centro uma imagem com o escrito

“alecrim” em homenagem a um antigo bairro da cidade de Natal, a letra verde faz uma

referência à cor que simboliza o bairro e atua em contraste à cor vermelha de fundo que é

complementar ao verde, em ambas as margens do muro (esquerda e direita) letras escritas

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de preto carregam mensagens de uma tag, assinado “Gapix”, o escritor responsável pela

obra, e “abra sua mente antes de abrir a boca”, com um tom de crítica social acerca de uma

polêmica33 que passava na cidade de Natal, durante o ocorrido de uma possível demolição

no bairro que colocava em embate representantes populares e a prefeitura da cidade.

Na assertiva de compreender a cidade contemporânea a partir dessas manifestações

como expressões de uma polifonia comunicacional, devemos nos perguntar em que medida

essas linguagens se comunicam com a cidade e com os seus praticantes, até que ponto existe

uma claridade na comunicação visual urbana? Nesse sentido, compartilho da noção de

comunicação trabalhada pelo pensador Ciro Marcondes (2004, p. 10) defensor da tese de

que ainda que vivamos num século tão estimulado e tão incentivado a comunicar, “não nos

comunicamos ou de que nos comunicamos, em verdade, muito pouco e em raras ocasiões”.

Na realidade, o que entendemos por comunicação não se trata de uma operação lógica

concisa e fechada de acordo com o autor.

Comunicação é antes um processo, um acontecimento, um encontro feliz, o

momento mágico entre duas intencionalidades, que se produz no “atrito dos

corpos” (se tomarmos palavras, músicas, ideias também como corpos); ela vem

da criação de um ambiente comum em que os dois lados participam e extraem de

sua participação algo novo, inesperado, que não estava em nenhum deles, e que

altera o estatuto anterior de ambos, apesar de as diferenças individuais se

manterem. Ela não funde duas pessoas numa só, pois é impossível que o outro me

veja a partir do meu interior, mas é o fato de ambos participarem de um mesmo e

único mundo no qual entram e neles também entra. (MARCONDES, 2004, p.15).

Partindo dessa percepção do conceito de comunicação e aplicando-o à nossa

argumentação teórica acerca da caligrafia urbana, observa-se que essa linguagem visual que

se manifesta no seio da cidade não se comporta de forma neutra, ela vibra intensidades e

reverbera suas frequências em outros possíveis indivíduos que se permitem afetar, em sua

maioria outros escritores, e não apenas estes, mas todos os que transitam no ambiente urbano

em alguma medida, podem ser ou não afetados por essa linguagem.

Considero, portanto, que falar sobre a caligrafia urbana empreende não apenas o seu

potencial de desterritorialização como vinha argumentando, mas também comporta pensar

as apreensões estéticas e políticas de sua existência, como virei a dissertar a seguir. Então

poderia dizer que a comunicação entre a cidade e a arte urbana não está fechada, ela pode se

comportar como uma conexão efêmera que acontece nas entrelinhas das formas de habitar

a cidade, ela é um encontro entre leitor e escritor que se afetam e pode ser tanto

33 Embate entre os comerciantes do Alecrim e a Prefeitura. Disponível em:

<https://www.novonoticias.com/cotidiano/prefeitura-vai-comecar-retirada-de-camelos-do-alecrim-dia-7-de-outubro>.

Acesso em: 24 set. 2017.

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compreendida como algo que se reconhece como belo na cidade, sob o ponto de vista dos

escritores e simpatizantes, ou algo que se reconhece enquanto o que se considere infame.

Assim as múltiplas vozes que se manifestam nas paredes da cidade de fato se

comunicam. Todavia, Marcondes (2004) nos alerta em sua tese que na verdade a

comunicação quase nunca acontece, esse é um problema de compartilhamento que se dá por

muitas vezes na dificuldade em transmitir e interpretar a informação, em que se há uma

ilusão da comunicação, ainda assim, pode-se dizer que são poucos os momentos que a

comunicação efetivamente ocorre, e sob certas circunstâncias:

[...] há certas circunstâncias humanas em que de fato ocorre a comunicação. São

situações muito particulares, mas plenas de significação: a experiência da criança,

a do diálogo, a do aprendizado, e, em alguns casos, a da paixão. Além disso, a

comunicação efetiva-se, de fato, por procedimentos indiretos, paralelos, mesmo

subterrâneos. (MARCONDES, 2004, p. 14).

Levando em consideração o nosso contexto teórico aplicado à prática dessa

manifestação urbana na cidade, o que se percebe é que no caso do graffiti e do pixo, ambos

são produzidos com o sentido de comunicar. Nesse intuito, dentro de uma cidade onde a

linguagem hegemônica é a das mídias, publicidades e telejornais, a caligrafia urbana ocupa

o espaço ofuscado, diga-se de passagem marginal, como uma forma de se apropriar da

condição de comunicação, transformando as ruas em galerias a céu aberto – ainda que não

seja visto desse modo por todos –, permitindo que pessoas comuns se comuniquem através

de suas ideias, ferramentas e disposição de se arriscar e ousar a riscar os espaços urbanos.

Podemos considerar que, na sociedade contemporânea, o graffiti é mais tragável

enquanto uma manifestação artística que se justifica, enquanto o pixo é visto como uma

prática de vandalismo desprezível. E, o que pude captar através de minha própria implicação

na prática de pintar e escrever nas ruas me fez chegar a duas conclusões. Constatei que

quando se está munido de várias latas de spray coloridas e os transeuntes questionam se o

que estou fazendo é autorizado. Então, eu lhes respondo: ”o que eu estou fazendo é graffiti,

vai ficar colorido e bem legal” e em resposta recebo uma reação positiva em relação ao que

estava pintando; contudo, quando se está na rua com algumas poucas, ou uma única lata de

spray negro, grande maioria dos transeuntes questionam o porquê daquela atitude e se eu

não tenho vergonha na cara de estar fazendo aquilo, isso quando a reação não é pior.

Levando em conta essas duas constatações, entendo que são acepções genéricas clivadas em

minha própria experimentação, e, nesse sentido, percebo que o graffiti se comunica com um

público mais amplo para além dos escritores como uma possível categoria de arte, enquanto

o pixo se comunica com um circuito mais fechado dos próprios escritores como uma

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categoria de vandalismo. Aquém de julgar essas práticas a partir de um ponto de vista

dualista de certo e errado nosso exercício teórico é entender como ocorre o procedimento

dessa forma de comunicação e expressão que acontece no seio das cidades contemporâneas

em geral.

Escrita e inscrita entre as paredes da cidade, a comunicação visual urbana é cor, é

textura, arte, intervenção, crime, protesto, provocação ou até denúncia; é, em todas as

instâncias, uma linguagem urbana capaz de criar um diálogo fértil de investigação entre os

habitantes da cidade, levantando questões como: a quem pertence a cidade? As histórias –

do pixo e do graffiti –entrelaçam-se, recriam-se, assumem sempre novas formas e matizes.

Os muros são o suporte de histórias e memórias de uma metrópole; essa linguagem surge da

necessidade de expressão de uma mensagem que caminha em cores por ruas cinza, e nos

provoca a olhar para a cidade enquanto um livro aberto.

Seria então a caligrafia urbana além da própria linguagem uma forma de expressar e

comunicar existências dentro da cidade, ela se desterritorializa da linguagem oficial,

articula-se a partir de elementos da linguagem visual, e se manifesta como um acontecimento

vivo na cidade. Alerto para o conceito de comunicação trabalhado por Marcondes (2004, p.

15) de que a comunicação “não é algo estável, fixo, consistente; por isso não há uma chave

que nos diga o que a coisa significa, quer dizer, representa. A comunicação é antes um

processo”.

Dentro desse contexto pensamos que a dinâmica urbana reforça uma prática

comunicativa cuja escrita é – está – em movimento. Ainda que tentemos capturar ou

classificar essa escrita para satisfazer um desejo científico de análise, ela não cessa de se

transformar e se reinventar. Isto se dá em razão do que pode ser explicado através de uma

metáfora, a superfície ‘pele’ da cidade está sempre se renovando, ou seja, escritos e pinturas

têm um tempo de vida útil indeterminável, eles podem durar anos, décadas, horas, ou apenas

minutos, não há como calcular concisamente a duração de um graffiti ou pixo, apenas supor

e prever, e isso configura essa manifestação como uma forma existência efêmera. Contudo,

apesar de efêmera, o graffiti e o pixo são práticas amplamente disseminadas, depois de

escrita uma parede ainda que coberta de tinta para ocultar uma dessas manifestações, corre

o risco de em qualquer momento retornar a ser riscado, assim se dá em todo resto da cidade,

formando, portanto, o ciclo de uma escrita em movimento que percorre a cidade em diversos

lugares.

Justamente por estar fora de um léxico visual e oficial, como evidenciado pela noção

de literatura menor que vem sendo desenvolvida ao longo do texto, é que chegamos a

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melhor enxergar as dimensões, estéticas e políticas, dessa prática comunicativa, e esse será

o eixo do segundo capítulo. O foco do nosso olhar (da pesquisa) deve colocar-se nos

pequenos poros da cidade, nos espaços onde não se costuma ver; pois, é aí que se encontra

a riqueza da descrição sociológica.

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3 DAS RELAÇÕES QUE SE COMPARTEM NA ESCRITA

“O grafite está para o texto assim como o grito está para a voz”

Paulo Leminski

3.1 DO INDIVIDUAL AS RELAÇÕES ESTÉTICAS E POLÍTICAS

Até o momento, esboçamos a ideia do que viria a ser uma caligrafia urbana, e como

ela compõe a ideia de pensar a cidade como um livro aberto, a partir dessa noção, pensa-se

essa prática como o escopo de manifestações expressas por uma literatura menor que se

inscreve na pele da cidade. Vamos então convidar ao leitor a pensar as atribuições estéticas

e políticas dessa manifestação urbana, e em que medida elas formam um espaço em comum

acessível para iniciados sob um ponto de vista do escritor. Seguindo a lógica de que esse

conhecimento traga referências que permitam compreender essa prática a partir do ponto de

vista de leitores não iniciados.

Tendo como norte teórico da dissertação o conceito de literatura menor; e na medida

que o mesmo transversaliza o texto, trago neste capítulo uma exploração mais ampla do

segundo aspecto que o caracteriza este conceito alicerce da pesquisa:

A segunda característica das literaturas menores é que nelas tudo é político. Nas

“grandes” literaturas, ao contrário, o caso individual (familiar, conjugal, etc.)

tende a ir ao encontro de outros casos não menos individuais, servindo o meio

social como ambiente e fundo. A literatura menor é totalmente diferente; seu

espaço exíguo faz com que cada caso individual seja imediatamente ligado a

política. O caso individual torna se então mais necessário, indispensável,

aumentado ao microscópio, na medida em que uma outra história se agita nele.

(DELEUZE; GUATARRI, 1977, p. 26).

Essa característica se fundamenta no princípio de que a literatura menor implica

“uma ramificação do individual ao político imediato” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p.

25). Tratamos, portanto, ao longo desse capítulo, de ilustrar tal premissa, a partir de

exemplos da caligrafia urbana, em seu potencial de criação e de expressão no espaço urbano,

trazendo implicações e amostras das formas e conteúdos resultantes desse processo.

A cidade também é uma arena de disputas políticas e simbólicas concretas, a

caligrafia urbana nesse sentido desafia as regras e a arquitetura da cidade, por um desejo de

manifestar a vida e a existência, e essas práticas conflitam na cidade com outras mídias; tais

como as pinturas publicitárias e cartazes de shows, apesar de esse ser um aspecto que não

abordaremos no estudo. Apoiamo-nos, neles, para pensar a construção da relação estética e

política dessas escrituras.

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Por meio de uma linguagem bastante hermética de signos artesanais e grafias

impenetráveis, de uma intensidade notória, não tem como não perceber a presença do graffiti

e do pixo na cidade – independentemente de julgado como crime ou arte – como ato imediato

político na medida em que o ato de pintar na rua desperta diferentes reações, que vão do

prestígio ao repúdio.

Na figura abaixo, ilustro, a partir de minha experimentação, um exemplo que faz jus

a afirmação de que a caligrafia urbana desafia a arquitetura na cidade. No registro

observamos a paisagem de um estabelecimento abandonado que se tornou um galpão vazio

apenas com restos de materiais de construções e nada habitado. Para mim enquanto escritor

aquele se tornou um espaço frutífero para experimentar o risco do fazer, sua faixada branca

e limpa se tornou minha tela, que coloca em evidência minha assinatura em grande

visibilidade e altura. É nesse sentido que a caligrafia urbana desafia a arquitetura, ela

reinventa espaços, colunas, fachadas, janelas aparentemente obsoletas, criando uma camada

de sentido inscrita pela tinta que comunica um intervalo de tempo vivido para seu autor, mas

também uma possibilidade em aberto para um leitor. Não mais apenas arquitetura, a

superfície se torna a página de uma história escrita em um livro aberto que chamamos cidade,

é de tal modo minha assinatura, um recorte de espaço e tempo de um algo maior em comum

compartilhado pelos escritores como dissertarei a seguir.

Figura 26 – Galpão abandonado letreiro “Pazciência 122”, Nova Parnamirim, Rua Aníbal Brandão. /janeiro, 2016.

Essa reflexão se articula no desenvolvimento da dissertação, com uma noção que nos

é cara para pensar a dimensão estética e política da caligrafia urbana, a noção cunhada por

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Rancière (2005) traduzida como a partilha do sensível. Esse conceito me parece pertinente

para pensar as manifestações artísticas que acontecem na cidade, no segmento do graffiti e

do pixo, podemos utilizá-la no intuito de apreender e compreender que enquanto os

escritores partilham suas excentricidades34 em algum momento eles se encaixam em um

espaço em comum, que compartilham e vivenciam, afetando e sendo afetados por outrem

na medida em que se desdobram na prática da caligrafia urbana. De acordo com Rancière:

Denomino a partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao

mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele se definem

lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo

tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos

lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que

determina propriamente a maneira como um comum se presta à sua participação

e como uns e outros tomam parte nessa partilha. (RANCIÈRE, 2005, p. 15).

Por exemplo, a partir do nosso fio condutor teórico, ao tomar a cidade como um

espaço heterogêneo onde uma polifonia de vozes se expressa, podemos nos referir à

caligrafia urbana com uma expressão na qual os seus escritores, ainda que um grupo não

coeso e não homogêneo, compõem recortes em comum, eles experimentam a cidade em um

âmbito de intensidade onde uns e outros tomam parte em uma partilha. Cada escritor é autor

de uma parte exclusiva, e ‘a cidade como um livro aberto’ é esse comum partilhado.

Essa experiência pode ser compreendida como um jogo político, a partir de

Rancière, pensar ‘a cidade como um livro aberto’ torna-se um espaço onde as escritas se

encaixam na superfície urbana formando um fragmentado mosaico visual, traçado por

expressões de escritores que partilham a colaboração da escrita de uma “obra literária” maior

e mais ampla, a cidade. Seria, portanto, na ideia de partilha do sensível, o que é o “comum”

aos escritores, as vias urbanas como um espaço onde se exerce a atividade da caligrafia.

A partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em função

daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce. Assim, ter

esta ou aquela “ocupação” define as competências ou incompetências para o

comum. Define o fato de ser ou não visível num espaço comum, dotado de uma

palavra comum etc. Existe, portanto, na base da política, uma “estética” que não

tem nada a ver com a “estetização das massas”, de que falava Benjamin. É um

recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído

que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma

de experiência. (RANCIÈRE, 2005, p. 16).

34 Excentricidade no sentido literal é um adjetivo que significa aquele que se afasta do centro. Excêntrico é um

indivíduo fora do habitual, do que é comum, aquele que tem seus próprios modos, com características fora dos

padrões sociais vigentes. Nesse sentido, estamos pensando excentricidades como características atribuídas a

pessoas que se encontram na margem da sociedade, fora do centro.

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Escrever na cidade seria nesse sentido uma forma de existir, de vivenciar a cidade, e

experimentar os seus possíveis, isto é, a caligrafia urbana, portanto, um veículo que faz da

escrita visível. De acordo com Rancière, o próprio filósofo Platão destaca “dois grandes

modelos, duas grandes formas de existência e de efetividade sensível da palavra: o teatro e

a escrita” (RANCIÈRE, 2005, p.17). Segundo esse raciocínio a superfície dos signos

“pintados”, a escrita, pode ser considerada como “forma de partilha do sensível estruturando

a maneira pela qual as artes podem ser percebidas como artes e como formas de inscrição

de sentido da comunidade” (RANCIÈRE, 2005, p.18). Embora Platão não seja um pensador

fundamental para essa dissertação, como o é para o autor, Rancière reitera o potencial de

uma “politicidade sensível” atribuída a uma partilha estética de circulação da letra, “essas

políticas seguem sua lógica própria e repropõem seus serviços em épocas e contextos muito

diferentes” (RANCIÈRE, 2005, p. 20).

Pensando em termos no nosso contexto atual e específico da cidade contemporânea,

podemos conceber a caligrafia urbana como uma manifestação que dota de sentido uma certa

comunidade tipográfica, que partilha o comum através da circulação da letra. A letra fruto

de uma escrita não oficial que escapa do território linguagem gramatical, se desterritorializa,

como afirma a primeira característica da literatura menor – explicitada no primeiro capítulo

– e por sua vez transcorre, do desejo individual numa implicação de um imediato político,

como afirma a segunda característica do conceito de literatura menor, que será o cerne de

nossa exploração deste segundo capítulo.

Por esse ângulo, associamos à segunda noção fundamental implicada pela literatura

menor – do individual ao imediato político – com o conceito de partilha do sensível,

destacando novamente as duas questões centrais: a partilha do sensível é um conjunto em

comum, mas também a separação do que cada um desse conjunto faz individualmente. É

nesse momento então que podemos pensar as relações que se estabelecem dentro da escrita

à pensar a figura de uma comunidade tipográfica de – calígrafos, leitores e escritores- que

se encontram atrelados pela circulação das letras na cidade. Pensar as relações entre estética

e política nesses termos é atribuir uma análise de suas formas de visibilidade e sua

disposição, como se organizam entre si e em relação a sociedade, apesar de não ser possível

pensar de modo definitivo, Ranciére de algum modo já alertava sobre essa questão.

A partir daí pode-se pensar as intervenções políticas dos artistas, desde as formas

literárias românticas do deciframento da sociedade até os modos contemporâneos

e de instalação, passando pela poética simbolista do sonho ou a supressão dadaísta

ou construtivista da arte. A partir daí podem ser colocadas em questão diversas

histórias imaginárias da “modernidade” artística e dos vãos debates sobre a

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autonomia da arte ou sua submissão política. As artes nunca emprestam às

manobras de dominação ou de emancipação mais do que lhe podem emprestar, ou

seja, muito simplesmente, o que têm em comum com elas: posições e movimentos

dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível. E a autonomia

de que podem gozar ou a subversão que podem se atribuir repousam sobre a

mesma base. (RANCIÈRE, 2005, p. 20).

Sabemos até o momento que a relação entre estética e política que pensamos está

ligada ao lugar de visibilidade dessas práticas, no sentido do lugar que ocupam, do tempo e

do espaço em que a atividade se exerce, no que diz respeito ao comum aos termos de

Rancière. Sobre o lugar que ocupam de tempo e espaço, reitero aspectos da criação

caligráfica retratados por Miyashiro (2009) sobre a relação da experiência do momento

presente, o dinamismo e a relação com o espaço, a dinâmica da escrita nas ruas e sua

politicidade sensível ligada à vivência do escritor que experimenta zonas de intensidade

indescritíveis sentidas por aqueles que expõem seus corpos aos riscos e riscam a superfície

da cidade.

Acerca da visibilidade podemos dizer que tais práticas ainda que resultantes de

pulsões individuais reverberam em desdobramentos políticos que desafiam as formas legais

do regime de visibilidade citadino, diferentemente de mídias que obedecem a regras

burocráticas (não que todas as mídias o façam), isto é, os escritores disseminam seus nomes

e letras na cidade a partir de seus próprios julgamentos. Mais adiante refletiremos sobre

alguns desses critérios.

Existe uma obra complementar de Rancière que embasa ainda mais essa

argumentação, em Políticas da escrita o autor afirma que o conceito de escrita é político

porque está sujeito a um desdobramento e uma disjunção essencial:

Escrever é o ato que, aparentemente não pode ser realizado sem significar, ao

mesmo tempo, aquilo que se realiza: uma relação da mão que traça as linhas ou

signos com o corpo que ela prolonga; desse corpo com a alma que o anima e com

outros corpos com os quais ele forma uma comunidade; dessa comunidade com

sua própria alma. [...] o ato de escrever é uma maneira de ocupar o sensível e de

dar sentido a essa ocupação. Não porque a escrita é o instrumento do poder ou a

via real do saber, em primeiro lugar, que ela é coisa política. Ela é coisa política

porque seu gesto pertence à constituição estética da comunidade e se presta, acima

de tudo, alegorizar essa constituição. (RANCIÉRE, 1995, p. 7).

De fato, quando falava em escrita, Rancière não tratava em sua obra de uma análise

da caligrafia urbana, muito provavelmente esse não era um objeto de estudo recorrente, mas

de fato a sua obra escrita tem um efeito de desdobramento que nos permite hoje pensar a

pertinência do trabalho para entender essa manifestação presente nas cidades

contemporâneas. A relação entre o escritor e a mão que traça as linhas e signos com o corpo

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e os prolonga para a superfície urbana, e desde então implica alcançar outros possíveis,

desdobramentos que afetam outrem no cotidiano. Ainda que o sentido da escrita seja um

impulso egoísta de ver o próprio nome estampado nas alturas; ou ainda, uma cobiça por ser

o escritor a ter mais nomes espalhados na cidade; vingar de alguém que atropelou uma

assinatura sua; produzir um grande painel coletivo; expressar um sentimento de revolta,

indignação, desabafo; recitar uma poesia. O fato é que na união ou no conflito os escritores

partilham um fazer político estético que modifica a cidade em uma mistura de imagens,

letras e tintas.

A caligrafia urbana está nesse entrelaçamento da letra, da imagem e da tinta. No

intuito de respaldar essa afirmação, apresento ao leitor alguns recursos para compreender os

principais estilos e acepções estéticas das práticas de graffiti e pixo. Alerto ainda que

obviamente nem tudo dentre esse grande escopo da caligrafia urbana pode ser classificado

e encaixado dentro de uma taxonomia. Os estilos classificam, portanto, formatos categóricos

que utilizamos para compreender essas práticas e trazer mais objetividade na nossa

compreensão.

É possível perceber que graffiti e pixo partilham dois lados de uma mesma moeda,

mas ainda assim, podemos notar que ainda existem certas fronteiras, ainda que borradas, que

distinguem as práticas. Não se trata apenas da acepção social que do julgamento que outrem

faz, sobre ser ou não ser arte, a acepção estética de ambas diferem em alguns aspectos, no

pixo, por exemplo, existe um uso frequente da monocromia, e das formas de linhas fortes e

marcantes; no graffiti por sua vez, há a predominância do uso de um leque maior de cores.

3.2 ESTILOS

O entendimento da noção de estilo é fundamental para aprimorar nossa investigação

do caráter estético e político dessas práticas, tendo em vista que os estilos são formas de ver

e pensar que dão o devido enfoque e conteúdo para o estudo de um tema específico. Se

tomarmos a caligrafia urbana como nosso tema, e, agora, pensando na questão dos temas e

estilos, podemos pensar com Nisbet (1979) – a partir de sua obra já reiteradamente aqui

referida – em sua argumentação, sobre o conceito de estilo o qual nos ajuda a compreender

a história, contexto e época em que se produz determinado trabalho. Sendo assim, a questão

do estilo dentro da caligrafia urbana está ligada diretamente a um tempo e lugar, a sociedade

contemporânea e a vida urbana.

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De acordo com Nisbet (1979, p. 49), “todo historiador ou crítico de arte competente

tem a capacidade para reconhecer na obra de um artista individual, ainda que seja anônimo,

o estilo, que pode se enquadrar normalmente dentro da época e período em que trabalhou o

artista” Transpassando essa reflexão para o nosso contexto de pesquisa, devo sugerir que

compreender os estilos de caligrafia urbana tragam clareza para entender tão conturbadas

fronteiras entre essas práticas – graffiti e pixo – que em certa medida podem ser visualizadas

como dois lados da mesma moeda.

Antes de adentrar diretamente aos estilos específicos, trago uma pertinente

observação colocada pelos colegas e pesquisadores Kuschnir e Azevedo (2015), que em suas

empreitadas para estudar o pixo na cidade do Rio de Janeiro, destacam alguns critérios de

disseminação dessa prática, afim de afinar a nossa percepção, das quais compartilho a

pertinência de suas afirmações seja pela leitura teórica como pela experiência empírica. Para

atribuir valor a um nome, evidencia-se primeiramente o domínio de execução da letra, pelo

seu escritor/calígrafo, além dessa primeira atribuição destaca-se que “os principais critérios

em jogo são o destaque visual, a durabilidade da tag, a sua distribuição pela cidade e a

dificuldade de acesso ao local pichado” (KUSCHNIR; AZEVEDO, 2015, p. 115). Os

autores destacam essas quatro categorias de análise da caligrafia urbana – especificamente

do pixo no Rio de Janeiro –, as quais devemos considerá-las como aliadas, mas não regras

definitivas para estudos da caligrafia urbana. Considera-se assim critérios para análise dos

estilos ao longo do texto; destaque visual, durabilidade, distribuição e dificuldade.

Acerca dos estilos, grande parte desse repertório tem referências a nomes em inglês

oriundos do graffiti disseminado nos anos 1970 em Nova York em bairros como o Bronx.

Contudo, reitero que esses estilos que podem ser entendidos como globais, se reinventam a

cada momento, no caso do Brasil, essas práticas caligráficas literalmente cometem o ato

antropofágico35 ao se reinventarem em seus próprios termos locais, o que podemos

compreender com ajuda da pesquisadora Suely Rolnik como uma antropofagia dos trópicos.

Antropofagia é justamente a afirmação irreverente da mistura que não respeita

qualquer espécie de hierarquia cultural a priori, já que para este modo de produção

de cultura todos os repertórios são potencialmente equivalentes enquanto

fornecedores de recursos para produzir sentido. (ROLNIK, 1998, p. 6).

35Antropofágico é o ato literal de comer uma ou várias partes de um ser humano em um contexto mágico e

cerimonial. No brasil o termo originou um movimento artístico na década de 1920, o movimento antropofágico,

fundado e teorizado por artistas como Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Raul Bopp. A base do

movimento antropofágico era de assimilar, ruminar, deglutir, conhecimentos de outras culturas, ao invés de

copiar, no intuito de incentivar uma produção de traços nacionais.

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Os escritores geralmente criam e compõem suas caligrafias baseados em referências

de escritores mais antigos, ou pesquisas realizadas em mídias como revistas e a internet.

Assim como no mundo da música ou dos esportes, o mundo dos escritores urbanos está

pleno de ídolos e nomes reconhecidos seja a nível regional, nacional ou internacional. Em

alguma medida os escritores desejam obter uma certa notoriedade de seus pares, de modo

que eles se espelham e se influenciam a partir de figuras que admiram, ainda que essa prática

preze por uma relação de anonimato com as autoridades, assim, os escritores desejam ter

seus nomes reconhecidos e prestigiados por membros de sua “comunidade”.

As assinaturas geralmente se referem à primeira pessoa no singular ou à primeira

pessoa no plural; a si próprio enquanto escritor (assinado um apelido por exemplo), ou a seu

coletivo ou crew36. Esses grupos, ou crews, funcionam como uma associação em que os

escritores se atribuem e se referenciam, alguns a chamam de grife, em analogia ao que no

mundo da moda se refere a uma espécie de “marca, rótulo, ou logotipo” que identifica um

determinado criador, estilista ou empresa. Entretanto, uma crew, ou grife, não é um grupo

estático, na verdade esses grupos possuem uma certa flexibilidade em que entram e saem

membros que o compõe de acordo com o passar do tempo e a disponibilidade de cada um

em permanecer assinando e enaltecendo o nome do grupo. Essas equipes são como uma rede

de contatos de maior afinidade nas quais os escritores convidam uns aos outros para saírem

juntos em missões de pintura, e afins.

Durante o percurso do conhecimento dos principais estilos, devemos atentar que o

fato de um escritor praticar um determinado estilo não o impede de praticar outro, os estilos

não são exclusivos, eles apenas definem caminhos possíveis a se seguir. Isso significa dizer

que a literatura menor não é completamente desprovida de padrões, existe em alguma

medida certas orientações que inclinam um determinado escritor para um tipo de estilo e não

para outra, contudo, isso não o impede de praticar mais de um estilo, ou de mudar seu próprio

estilo com o passar do tempo.

Ao conhecer os principais estilos da caligrafia urbana encontraremos elementos que

distinguem as estéticas do graffiti e do pixo, e seus pontos de intercessão. Aqui iremos

observar diferenças e semelhanças, como a relação que compõe práticas de pixo como mais

rápidas e furtivas, e práticas de graffiti como produções mais lentas e elaboradas, inclusive

exemplos que se encontram meio termos entre essas estéticas de escrita.

36 Crew é uma referência a uma equipe de escritores que se dedicam a assinar um nome coletivo que “representa” uma

união entre eles.

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3.2.1 Xarpi (piXar)

Esse é um dos estilos de tag (assinatura) mais disseminados de pixo, esse estilo

conquistou sua notoriedade no estado do Rio de Janeiro, esse estilo se difunde, em Natal por

exemplo, é uma prática comum a uma ampla gama de escritores. Conhecido como “xarpi”

vem do termo “pixar” pronunciado com as sílabas de invertidas, de modo que dificulte sua

compreensão. Para os escritores do xarpi, a estética do traçado dessa caligrafia tem um

sentido lógico de se escrever um nome curto e bastante embaralhado de forma que deixa de

ser um nome em e se tornando um signo. Como um símbolo que se repete, assim como um

hieróglifo37 em uma escritura egípcia, ou um kanji38 em uma escritura oriental, o xarpi não

representa uma letra ou um conjunto de letras, mas sim o símbolo pelo qual podemos

reconhecer e identificar um determinado escritor; ainda que por muitas vezes não se consiga

decifrar exatamente quais letras estão escritas. Essa natureza do xarpi, reforça a relação entre

imagem e escrita, uma vez que a escrita se desterritorializa enquanto conjunto de caracteres,

se reterritorializando enquanto uma imagem icônica da assinatura do escritor.

O estilo da ênfase em letras emaranhadas, atravessadas umas nas outras de modo que

dificulte sua legibilidade (de modo similar ao que conhecemos como rubrica), e

normalmente, seguidas de uma ou mais caudas – traços que dão um certo sentido de direção

para ocupação visual do espaço – e podem ser encontrados na cidade como assinaturas soltas

e individuais, mas também como sequências (chamadas agendas pelos escritores) de vários

xarpis consecutivos de um mesmo escritor ou de vários.

Figura 27 – Sequência de xarpi. Nova Descoberta/julho, 2017.

37 Unidade ideográfica do sistema de escritura egípcio antigo, aparece em inscrições de monumentos. Sinônimo de uma

escrita difícil de decifrar. 38 Sistema de ideogramas da língua japonesa adquiridos a partir de caracteres chineses.

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Figura 28 – Sequência de xarpi. Mirassol/agosto, 2017.

Figura 29 – Recortes duas assinaturas de xarpi solo. UFRN/outubro, 2017.

Nas duas primeiras figuras temos uma sequência de quatro xarpis em cada imagem.

Cada xarpi é representado por uma assinatura, tag, signo, que não se pode ler ao certo com

precisão, todavia, se observarmos atentamente podemos notar que na primeira e segunda

figura, um xarpi se repete, a última assinatura da esquerda para direita em ambas as fotos,

não conseguimos ler e saber o nome do escritor ao certo, porém é bastante perceptível que

se trata da mesma assinatura. Já na segunda imagem podemos observar que a mesma

assinatura se repete na terceira imagem observa-se a tag como pertencente ao mesmo

escritor ainda que não tenhamos certeza o que reside dentro do escrito.

Acerca dos critérios aliados para compreender essa prática, vamos falar sobre o

critério de durabilidade, nas três imagens, três tipos diferentes de superfície são utilizados

como suporte, na primeira imagem, uma parede chapiscada, diferente de uma superfície lisa,

dificulta a possibilidade de remoção do spray e das assinaturas; na segunda imagem, a chapa

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de ferro como suporte tem uma arquitetura estriada que dificilmente será coberta de forma

uniforme, contudo por ser removível, pode ser mudada de lugar ou apenas virada para

dentro, de forma que as assinaturas fiquem escondidas; na terceira imagem, as pastilhas de

azulejos são definitivamente o suporte de maior durabilidade, pois não se pode remover

facilmente a tinta sem comprometer a pintura dos azulejos, nem se pode facilmente pintar

toda a parede, de forma que provavelmente a assinatura permanecerá naquele lugar por

muito tempo.

3.2.2 Letreiro (Lettering)

O letreiro é uma forma estilística associada principalmente ao pixo, é uma forma de

tag (assinatura) que, embora tenha caracteres bastante diferentes do grafismo de um alfabeto

convencional, tem uma legibilidade muito mais palpável no sentido em que as letras estão

separadas por um mesmo espaçamento orientadas por um certo padrão de organização

espacial no campo visual da imagem. Na figura abaixo por exemplo, temos um letreiro

escrito “Loukos” com letras de elementos aparentemente legíveis, o número “17” identifica

o ano de realização registrado pelo autor da escrita, e a sua direita um caractere em forma

de triangulo de letras emboladas que se assemelha ao xarpi que vimos anteriormente. Mais

uma vez atento para o uso da arquitetura de tijolos como uma régua, que permite auxiliar ao

escritor um bom alinhamento do letreiro, de forma que ao olhar de longe notamos melhor

essa linha tênue formada pelos tijolos se assemelha as pautas de um caderno de caligrafia

que funcionam como guias. Esse tipo de letreiro se destaca pela durabilidade da superfície

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e pela sua grande disseminação na cidade (basta uma circulação atenta pela cidade de Natal,

e podemos observar diversos letreiros “LOUKOS”).

Figura 30 – Letreiro “Loukos”. Baldo com Av. Prudente de Morais/março, 2017.

Diferentemente do xarpi, que é um entrecruzamento de letras que dificulta a leitura,

o letreiro possui a forte característica de apresentar seus dígitos bem destacados um do outro,

o que, contudo, não impede a estilização do mesmo. Na próxima figura abaixo, dois letreiros

de 3 letras cada “LPE” e “OCE”, pela diferença da caligrafia podemos supor que dois

escritores fizeram este muro juntos, e com mais atenção nota-se uma boa sincronia entre

ambos, ao observar pelo alinhamento entre as letras de cada e uma boa centralização das

letras em relação ao muro. Podemos destacar o critério da durabilidade no sentido de que,

apesar de ser um muro liso (mais fácil de ser pintado por uma cobertura), supõe-se que um

muro de cimento queimado é um tipo de superfície que não se dá bastante atenção ao ponto

de ser pintada, por vezes ou terreno baldio, por exemplo.

Figura 31 – Letreiro “LPE e OCE”. Neópolis/junho, 2017.

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Na nossa terceira imagem registro, podemos observar um edifício pleno de marcas

de caligrafias urbanas em toda a imagem, contudo nos concentremos no letreiro na altura

mais elevada do edifício onde está escrito “GTS, LKS, CRS 2x17”. Nesse caso o letreiro

além de destacar visualmente as assinaturas que podem ser vistas desde muito distância,

saliento o fato de que a altura nesse caso não é um mero capricho dos escritores, mas um

desafio. De acordo com nossos critérios aliados, a dificuldade é um fator de forte

importância na decisão da superfície a ser grifada pelo escritor, o topo de qualquer edifício,

mesmo que abandonado, é um local de difícil acesso, também evidenciando o critério de

destaque visual, colocando em cena uma grande visibilidade do nome.

Figura 32 – Edifício Abandonado. Cidade Alta/novembro, 2017.

3.2.3 Grapixo

O grapixo é digamos, uma intercessão entre a estética atribuída ao graffiti e o pixo,

e, portanto, uma categoria bastante controversa, alguns dizem que é um estado de transição

ou evolução entre as duas estéticas, mas isso iria supor um quadro de superioridade e

inferioridade e esse não é o nosso intuito. Contudo a clareza da compreensão dessa estética

está em notar elementos de ambas as práticas, o grapixo traz uma semelhança grande com o

letreiro que vimos anteriormente, com a ressalva que ele é esteticamente mais elaborado em

termos de cores e dimensões, nota-se aí a maior proximidade ao graffiti, quando se atribuem

características que resultam em volume nas letras, e ao mesmo tempo uma proximidade com

o letreiro, que vimos anteriormente, das letras do pixo, em uma versão que exige mais

dedicação e empenho o que resulta em um maior tempo de execução.

Nossas duas primeiras figuras são registros de um mesmo mural, onde se inscrevem

os grupos “BDL” e “LPE”, ambos grapixos fazem referência a duas crews “Bonde Dos

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Loucos” e “Loucos Escaladores e Pixadores”. A escritura foi realizada em um muro de pedra

e nota-se bastante destaque visual para o escrito, de forma que ocupa toda a altura vertical

do muro e se estende amplamente de forma horizontal, isso faz com que possa ser visto de

uma distância grande. Podemos destacar o critério da durabilidade, a parede de tijolos, assim

como o critério do destaque visual, devido visibilidade visto uma grande ocupação da

superfície do muro.

Figura 33 – Grapixo “BDL”. Capim Macio/outubro, 2017.

Figura 34 – Grapixo “LPE”. Capim Macio/outubro, 2017.

No terceiro registro de grapixo que apresentamos, o grapixo escrito “Neura”

acompanhado de uma mensagem “RN bem-vindo ao caos”. O estilo desse grapixo se

assemelha bastante ao letreiro, com uma singela diferença que a tinta preta simula apenas a

sombra, assumindo uma ilusão de que a própria parede é a pintura da base da letra. Esse

escrito desafia escrachadamente as autoridades ao ser realizado em um estabelecimento da

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polícia, como enfatiza um tom de ironia e crítica social39. Destacamos o critério da

dificuldade, pois, mesmo em um período de greve, o desafio de riscar um posto policial pode

ser considerado elevado grau de risco.

Figura 35 – Letreiro “NEURA”. Cidade da Esperança/dezembro, 2017.

3.2.4 Bombardeio (bomb)

Também pode ser considerado um meio termo entre a estética do graffiti e da

pixação. Está relacionado a um gênero de graffiti que remete a uma prática executada em

alta velocidade, o ato de bombardear a cidade. Para garantir uma execução fugaz geralmente

as “bombas” são desenhadas como formas simples e arredondadas, tornando a leitura uma

forma reduzida e abstrata.

Sobre sua prática, se exige bastante gestualidade, no intuito de realizar um ágil

“bombardeio” na cidade; no exemplo abaixo o escritor munido de três latas de spray realiza

o seguinte procedimento; primeiro a lata verde abre as letras e preenche a superfície sem

necessidade de uma cobertura homogênea, com grande velocidade, segundo a lata preta

contorna as letras e lança uma pequena noção de sombra pra esquerda, terceiro a lata de tom

avermelhado é lançada por fora criando um “subcontorno” que recorta por fora do contorno

reto criando um aspecto que lembra a ideia de um adesivo, e quarto por último o escritor

volta com a lata preta assinando uma tag em xarpi no meio da segunda e terceira letra do

bomb. O critério que destacamos nessa prática é a disseminação, devido a simplicidade das

39 No período em que o escrito foi realizado as forças policias do Estado do Rio Grande do Norte estavam em greve devido

à falta de pagamento dos salários pelo Estado.

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formas, o estilo de caligrafia bomb pode ser feito de modo rápido e repetidas vezes em um

curto prazo de tempo.

Figura 36 – Buraco da Catita, BOMB “Felix”. Ribeira/novembro, 2016.

Geralmente os bombs são feitos em avenidas de grande fluxo e movimento (o que

não faz disso uma regra), e por isso necessitam ser rápidos, para evitar que os escritores

sejam pegos no flagra, pois como já alertamos essa prática ainda é considerada como ilegal,

e nem sempre bem aceita socialmente. De tal forma o ato de bombardear a cidade acontece

nesses locais de grande fluxo com o objetivo de alcançar visibilidade e destaque pela

quantidade de escritos que se espalha na cidade.

No registro abaixo, temos um bomb realizado por mim enquanto escritor, apreende-

se o escrito “Paz” facilitando a execução com uma quantidade menor de letras, o

procedimento foi realizado apenas com tinta látex, responsável inclusive pelo efeito

escorrido que fica abaixo das letras, e duas latas de spray uma para contorno, e outra para

luz. Esse bombardeio foi em particular foi o registro da primeira pintura do ano de 2017,

marcado pelo encontro com um amigo que vinha da cidade de Recife e estava passando

alguns dias em Natal, daí saímos juntos para uma missão de bombardeio na cidade. O critério

que se sobressai nesse momento é a disseminação, como evidenciamos anteriormente, mas

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também o destaque visual, por se tratar de uma avenida de grande fluxo de movimento, o

que destaca a possibilidade de ser visto por muitos transeuntes.

Figura 37 – BOMB “Paz”. Av. Roberto Freire/janeiro, 2017.

Na terceira imagem temos também um bomb, porém nesse caso ainda mais rápido

que o anterior; pode-se apreender o escrito “os loucos”, faz referência a uma crew, apenas

contornado de forma rápida para que ocupe um grande campo visual consumindo pouca

tinta. Na imagem nota-se ao fundo a presença de muitos pixos antigos nos quais em teoria o

bomb veio e os atropelou, no sentido de passou por cima, isso pode ou não, incitar uma

situação de conflito entre os escritores que estavam no muro anteriormente, entretanto existe

uma certa política entre os escritores que permite o ‘passar por cima’ quando se avisa

previamente, ou então quando a pintura anterior já está bastante desgastada pelo tempo, o

que é o caso. Aqui podemos destacar o critério da disseminação, esse estilo apenas de linha

contornada pode ser repetido inúmeras vezes em pouco tempo e diversos lugares.

Figura 38 – BOMB “OsLoucos”. Nova Parnamirim/outubro, 2017.

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O quarto bomb é o registro de dois escritores “Aisha e Curio” ambas letras foram

pintadas com látex para parede, percebido pelo efeito opaco da tinta na parede, além do

bombardeio de seus nomes, o registro também mostra uma frase de protesto escrita por um

dos escritores “toda mulher é senhora de si” que representa uma frase de empoderamento

feminino. Suponho que pelo menos um dos dois escritores é mulher, e escreve a mensagem

no desejo de expressar seus pensamentos em relação a uma crítica da mulher enquanto

pessoa submissa, o que é inadmissível no tempo em que vivemos e é reiterado no escrito.

Aqui, destacamos o critério do destaque visual, dada também a execução em uma avenida

de grande fluxo de carros, o escrito se encontra na passagem de muitos.

Figura 39 – BOMB “Aisha e Curio”. Av. Xavantes, Satélite/novembro, 2017.

3.2.5 Peça mestre (Masterpiece)

Nesse estilo podemos considerar uma estética predominante do graffiti, como ele é

concebido com muitas cores, vários tons, sombra e luz, e o máximo de técnica possível, é

bastante aceito na opinião comum enquanto arte, geralmente pode demorar um dia inteiro

ou mais, dependendo do tamanho. É considerado pelos escritores como uma peça de

produção artística onde se passa bastante tempo compondo para refinar detalhes e fazer uma

boa execução, devido a demanda maior de tempo para executar esse tipo de pintura

costuma-se buscar espaços autorizados por moradores, espaços em ruínas ou lugares com

movimento razoável como praças e parques, buscam de preferência situações onde a polícia

dificilmente irá abordar para impedir a pintura. Inclusive, muitas vezes os escritores voltam

ao local depois para conseguir um bom registro.

Em nosso primeiro registro temos o escrito “Bones” acompanhado de um

personagem, esse painel possui características de produção que demandam normalmente

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mais de um dia para ser completamente finalizado. A pintura simula a superfície de um

vagão de trem, que faz referência a uma história recente do graffiti, em que desde os anos

70 se pintavam as ‘carruagens’ dos trens para que os nomes literalmente viajassem toda a

cidade para serem vistos por outrem, detalhe para outras partes do painel que podemos ver

várias tags de outros escritores como se tivessem sido pixadas na superfície do trem,

enquanto a peça principal ocupa a maior parte do destaque visual do muro. A partir desse

registro, podemos destacar o critério da dificuldade, mas não no mesmo sentido visto

anteriormente, dificuldade de acessibilidade ao local da escritura, agora distinguimos a

dificuldade de acordo com o nível técnico de execução da peça, no sentido da complexidade

de execução.

Figura 40 – Peça “Bones”. Passo da Pátria/setembro, 2017.

Já no segundo registro, temos o escrito “Grab” pintado inteiramente com spray, pode

se notar que nesse estilo de letra há uma palpável legibilidade do escrito (ao menos para

iniciados) e destaca-se a presença de várias setas que apontam para diversas direções. Sobre

a peça realizada em questão, posso destacar a minha presença no momento de execução de

tal ato, o escritor “Grab” em particular é um amigo que passava as férias na cidade de Natal,

o mesmo é brasileiro, mas naturalizado norte americano, morador da cidade de Miami, e traz

em seu estilo fortes traços do graffiti norte americano por sua vivência. Nos conhecemos

através da rua, enquanto eu e outros colegas produzíamos uma peça, quando o mesmo nos

viu pintando e nos abordou contando sua história, logo firmamos uma amizade através da

pintura. Sobre essa peça podemos destacar o critério da dificuldade, julgando a partir da

qualidade técnica, ao invés do difícil acesso, como também é possível falar sobre o destaque

visual da peça, em relação a sua grande proporção para com o muro.

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Figura 41 – Peça “Grab”. Neópolis/outubro, 2017.

3.2.6 Estilo selvagem (Wildstyle)

Esse estilo se assemelha bastante ao anterior pelo fato de ser uma letra bastante

elaborada, e sua diferença é basicamente o grau de entrelaçamento das letras, se na “peça”

ainda havia alguma possibilidade de leitura, no wildstyle esse grau de legibilidade se torna

quase nenhum, a letra é esteticamente construída com a intenção de entrelaçar seus

caracteres de forma que se pareça apenas uma única estrutura e não elementos distintos,

“letras” que formam uma palavra. Pode-se inferir que o wildstyle apresenta uma semelhança

ao xarpi, devido ao entrelaçamento de seus caracteres, contudo a diferenças se destacam

pelo tempo de execução, levando em consideração que esse estilo demanda uma quantidade

de tempo de execução bem maior, o que eleva sua complexidade.

A seguir, trago três exemplos de wildstyle, ambos compostos no mesmo mural,

trazem o uso de paletas de cores similares, mas contendo três diferentes abordagens do

mesmo estilo. Nas três abordagens é possível destacarmos tanto o nível de dificuldade de

execução da peça, e o destaque visual do tamanho das letras.

Na primeira figura, o escrito “Hades” a estética da escrita se compõe por um

entrelaçado das letras onde as mesmas se fecham entre si, um fundo preto é usado de forma

com que toda a letra pareça apenas uma só massa de cor.

Na segunda figura, temos o escrito “Hugh” onde a estética da escrita mostra algumas

formas mais soltas que se assemelham a pontas soltas para várias direções.

Já a terceira figura, temos o escrito “Osmo”, que já vimos em alguns registros

anteriores, mas nesse caso na forma de uma letra em estilo selvagem, com sombras, luzes e

degrades, semelhantes as outras, e com características de traços bastante afiados onde não

se entende bem onde começa e onde termina cada caractere de letra.

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Figura 42 – Letra “Hades”. Potilândia/novembro, 2014.

Figura 43 – Letra “Hugh”. Potilândia/dezembro, 2014.

Figura 44 – Letra “Osmo”. Potilândia/dezembro, 2014.

3.2.7 Letras 3D

Esse estilo de letra como o próprio nome diz põe em ênfase a percepção das três

dimensões; largura, altura e profundidade, dentro desse ramo estilístico as letras são

desenhadas de forma que criem a ilusão de formas sólidas e se exige uma percepção de

perspectiva bastante apurada. No primeiro registro, o escritor “Hugh” construiu um belo

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painel artístico, na pintura de sua letra e um plano de fundo ilustrado a imagem de uma

cidade despejando vários poluentes no ar, o painel foi construído com a temática ‘poluição’

da qual o escritor inclusive gravou o processo, editou o vídeo e publicou na internet40. Esse

tipo de produção de letra 3D é parecido com o estilo masterpiece e wildsyle no sentido que

demanda bastante tempo de execução, esse tipo de letra é uma produção minuciosa e que

requer bastante técnica, entretanto o que a diferencia é seu modo de execução. Nesse estilo

de alto contraste de sombra e luz, as formas geométricas tomam uma dimensão de modo que

não chegamos a enxergar linhas de contorno por exemplo.

As letras possuem um certo entrelaçamento, assim como vimos nos outros estilos,

mas conserva-se, em certa medida, sua legibilidade, sendo sua base o desejo de simular os

efeitos profundidade de forma que crie uma sensação de que as letras estão literalmente

“saindo” da parede. Assim como nos outros registros, em que a estética predominante é a do

graffiti com várias cores (em contraposição ao pixo, geralmente monocromático),

observarmos ao critério de dificuldade sob os aspectos técnicos da pintura como mais

presentes, e o critério de destaque visual, pois nessas ocasiões as letras são pintadas em

grandes proporções.

Figura 45 – Graffiti 3D “Hugh”. Vila de Ponta Negra/fevereiro, 2016.

No segundo registro, temos uma nova letra escrita pelo calígrafo “Hugh”, dessa vez,

em uma nova paleta de cor (rosa e cinza) em fundo branco destacado por uma linha diagonal

violeta por trás do centro da letra. O objetivo principal desse estilo é criar uma ilusão de

ótica, ou seja, temos uma pintura feita em uma superfície bidimensional, que quando olhada

de um determinado ângulo e ponto de vista, tem se a percepção de que a imagem se torna

tridimensional.

40 Vídeo no youtube – palavra-chave “Hugh poluição”.

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=j51U2UmQAb0>. Acesso em: 20 fev. 2018.

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Figura 46 – Graffiti 3D “Hugh”. Neópolis/março, 2016.

Agora que conhecemos um pouco sobre os principais estilos da caligrafia urbana,

trago um exemplo explícito que ilustra a noção de partilha do sensível em sua via de

execução, uma efervescência da partilha de conteúdo entre escritores popularmente

conhecida como sopa de letras. É a partir desse ponto de vista que discutimos a caligrafia a

partir de suas relações estéticas e políticas, ao que podem ser atribuídas para o que durante

o texto denominamos dimensões plásticas e de sentido, respectivamente; dimensão plástica

em relação a como se molda, adapta a diferentes estilos e pode ser manipulada, uma relação

estética da forma da letra; dimensão de sentido em relação a como ela se conecta com a

cidade, traz fragmentos de histórias, memórias e referências (como ilustrei acerca de meus

próprios processos), ela se desdobra do que chamamos do individual ao político imediato.

3.3 SOPA DE LETRAS – UM ENCONTRO ENTRE ESCRITORES

A sopa de letras não se configura exatamente como um estilo em si, mas como um

encontro entre estilos, essa ação consiste na pintura de um painel coletivo quase

exclusivamente dedicado as letras, nela cabem bombs, pixos, grapixos geralmente se dá

prioridade a peças que possam ser realizadas em um intervalo médio de tempo, como uma

tarde de boa luz por exemplo, para não haver necessidade de que a pintura se estenda por

mais de um dia. Para pensar esse encontro, a celebração, pela escrita, pintura, e a caligrafia,

devemos raciocinar que a sopa de letras age como uma efervescência entre escritores

urbanos, ela é um acontecimento da escrita ocupando uma dimensão coletiva de

compartilhamento da superfície da cidade.

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A sopa de letras é um encontro entre escritores ocupando um determinado

espaço/tempo enquanto um ato de comemoração, aonde escrevem seus nomes e dos grupos

que participam (suas crews) em um grande painel coletivo. Normalmente combina-se um

dia prévio um local de encontro onde já se têm em mente possíveis “alvos”, geralmente

espaços relativamente abandonados sob os quais se torna mais justificável a intervenção aos

olhos das autoridades. Um dos motivos do encontro é a tomada da ideia de que

individualmente uma intervenção urbana, independentemente de sua natureza, pode ser mais

facilmente coibida pela polícia, no entanto em um grupo extenso, cria-se uma impressão de

maior legitimidade, para quem observa de fora, assim como uma coesão mais firme da ação,

para quem participa de dentro. Assim, a intervenção se torna uma guinada política que

imediatamente se manifesta no corpo da cidade em forma de letra e tinta, aí está a potência

criativa do ato da escrita na cidade.

Se munem de escadas, varas, rolos, pinceis, sprays e baldes de tinta com o objetivo

em comum de fechar um grande muro em uma breve reunião. Retratarei a seguir minha

participação, na hora de articular e pintar em três reuniões de “sopa de letras”, nas quais

narro parte do processo de construção desses murais.

Na figura abaixo temos o registro do processo de pintura da primeira sopa de letras.

Essa experimentação foi pioneira na cidade de natal, de modo que foi a primeira vez em que

um grupo extenso de escritores se reuniu para realizar um painel com a temática apenas da

caligrafia, não que nunca tenham acontecido outros encontros ou mutirões de pinturas, o que

diferencia esse momento é a dedicação a focar no objetivo da sopa de letras, construir um

painel exclusivo dedicado aos estilos da caligrafia urbana.

Figura 47 – Sopa de letras o processo. Av. Deodoro da Fonseca/julho, 2017.

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O primeiro episódio foi realizado na avenida Deodoro da Fonseca, em julho de 2017.

Há algum tempo, eu e mais alguns outros escritores conspiramos sobre realizar essa

experiência conhecida como “sopa de letras” que já era praticada em outros estados, mas

pela qual conhecia-se mais através da internet, mas ainda não havia sido feita em Natal. Foi

então que se instigou a ideia fazer esse grande painel coletivo, o muro já se sondava há

alguns dias como um alvo em potencial, devido a sua localização em uma avenida de grande

movimento, e, devido a seu caráter ocioso, no sentido de que do outro lado do muro havia

um terreno baldio e abandonado, esse cenário configurava o espaço como um ótimo alvo em

potencial para o ataque da sopa de letras ao muro.

Foi então que se marcou uma data para o encontro, e ampliamos o convite via redes

de sociais como facebook e whatsapp. Na ocasião em que o mural foi construído, eu mesmo

levei de casa uma escada para facilitar a pintura do muro de cima a baixo, para mim, a

execução do painel não era apenas um mais um mural, mas se configurava também como

um momento enriquecedor da pesquisa, naquele momento o conceito de partilha do sensível

se articulava imediatamente do campo da teoria para a prática. “O mural se tornava ao

mesmo tempo um comum partilhado e partes exclusivas”. (RANCIÉRE, 2003, p. 15).

O painel foi construído de modo com o qual o muro foi sendo preenchido de baixo

para cima, vários escritores pintavam uma sequência de letras na linha que seus braços

alcançavam, enquanto outros iam revezando a escada, de modo que aos poucos a parede ia

sendo paulatinamente preenchida por aglomerados de letras. Enquanto ia se compondo,

apareciam conhecidos e agregados, muitas conversas, pessoas realizando registros

fotográficos, trocando ideias, formava-se não um simples encontro, mas uma verdadeira

conferência, fazendo com que quem olhasse de fora do quadro, o “evento” nem sequer seria

comparada a uma ação “ilegal” (em termos jurídicos de ausência de autorização), aliás,

muitas pessoas passavam elogiando a ação. Logo abaixo temos o registro fotográfico do

espaço em “antes e depois”, é por essa razão que, no “antes” defino o espaço como ocioso,

no sentido da ocupação visual, e no “depois” podemos conceber o espaço como revitalizado

pela pintura.

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Figura 48 – Sopa de letras, registro “o antes e o depois”. Av. Deodoro da Fonseca/julho, 2017.

Diferente de um artista tradicional que pinta em seu ateliê esse acontecimento da

“sopa de letras” permite um diálogo direto com as pessoas que transitam por aquele trecho.

Alguns admiram, enquanto outros questionam, no geral as pessoas têm uma boa recepção

dessa atividade. A mobilização de muitas pessoas e muitas cores em um só painel parece

endossar a legitimidade da caligrafia urbana, mesmo que essa seja feita sem uma autorização

formal.

No registro abaixo temos uma sopa de letras que se realizou em paralelo à primeira

no muro ao lado, mas foi toda preenchida com uma estética mais próxima da pixação (xarpis

e letreiros), levando em conta que, essa ação se compõe bem mais rápido que a primeira, em

questão de tempo e complexidade. Na composição do registro abaixo, a estética das letras é

mais facilmente associada ao vandalismo, uma vez que o recurso monocromático das tintas

difere da primeira sopa a ser formada. Podemos perceber que geralmente o graffiti é mais

elaborado e devagar, enquanto o pixo é cru, fugaz e furtivo, mas essas acepções não colocam

essas práticas em patamares de comparação de melhor ou pior, nem reduz a complexidade

de cada estética, na verdade elas evidenciam o entendimento de suas dimensões estéticas e

políticas, suas facetas e características próprias.

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Figura 49 – Sopa de letras Pixo. Av. Deodoro da Fonseca/julho, 2017.

Visto tudo que já foi apresentado até ao momento, é possível conceber essa prática

da sopa de letras como uma manifestação autêntica que corrobora para tese da cidade como

um livro aberto, o fenômeno que nominamos de caligrafia urbana se confecciona como um

tipo de literatura menor que faz, das superfícies citadinas, página escritas.

Ora, em certo momento da obra Políticas da escrita, Rancière levanta a questão da

ambiguidade na literatura, uma vez nem todos tinham acesso às letras, em que ocasião essa

prática atravessou uma passagem de um saber dos letrados para uma arte.

No século VIII, como se sabe, a literatura não era a arte dos escritores, era o saber

dos letrados, aquilo que lhes permitia apreciar as belas-letras. Estas, por seu lado,

eram artes bem definidas, a poesia e a eloquência. Uma e outra se dividiam em

gêneros determinados segundo variáveis específicas: o assunto que tratavam, os

sentimentos que tentavam provocar, os modos de composição e métrica que

utilizavam. Gêneros e subgêneros punham em prática saberes precisos

correspondentes as três grandes atividades usadas na construção da obra: a inventio,

que determinava os assuntos, a dispositio, que organizava as partes do poema ou

discurso, a elocutio, que dava aos caracteres e aos episódios o tom e os

complementos que convinham à dignidade do gênero ao mesmo tempo que à

especificidade do assunto. (RANCIÈRE, 1995, p. 25).

Deve se levar em consideração que na situação da caligrafia urbana, podemos

empregá-la no sentido de um gênero, enquanto que seus estilos, e o acontecimento da sopa

de letras, como subgêneros, que põem em prática saberes específicos difusos dos modelos

clássicos da literatura do século VIII. Mais adiante, Rancière esclarece.

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Regras técnicas indicavam os meios de produzir efeitos expressivos específicos.

Regras de gosto permitiam julgar quais efeitos deviam ou não ser produzidos. As

aulas de literatura do século dezoito ensinavam o letrado a apreciar as obras a partir

desses saberes e dessas normas. (RANCIÈRE, 1995, p. 25).

É nítido o fato de que, ao tratar de períodos históricos diferentes, encontraremos

diferentes formas de abordar os assuntos da literatura, de organizar a disposição das letras e

de construção das obras. Sob essa afirmação, é válido dizer que desde que haja literatura,

haverá certos saberes e normas, então, ainda que não sejam nitidamente definidas, as

composições da caligrafia urbana – graffiti e pixo –, possuem certas regras técnicas (vide

seus estilos), e algumas regras de gosto, é isso que configura sua estética como belo para

seus praticantes.

Retomando a narrativa do processo de articulação das sopas de letras, vamos ao

segundo encontro. A segunda sopa de letras se originou como efeito da repercussão da

primeira experimentação, instigados pela efervescência do primeiro encontro, diversos

escritores da cidade incentivaram que essa prática deveria se tornar itinerante, e que

acontecesse pelo menos uma vez a cada trimestre. O resultado do primeiro painel motivou

o interesse de uma gama maior de escritores, o que por si só ampliou mais ainda o convite

para uma nova ação pontual da sopa de letras.

Novamente marcado um encontro no centro da cidade, praça cívica de Natal, na

ocasião muitos escritores que nem sequer se conheciam compareceram, eu mesmo que fui

um dos articuladores do convite, notei várias caras novas desde o último encontro.

Combinou-se o horário de concentração as doze horas, e a saída as treze horas, do local do

encontro partimos para a avenida Prudente de Morais. Nesse dia o ímpeto pela pintura estava

tão grande que a parte majoritária do grupo se deslocou em direção a primeira parede

acessível localizada nas adjacências. Encontramos, um ótimo suporte em uma casa

abandonada de esquina, o espaço não havia sido previamente pensado, foi escolhido

espontaneamente, diferente da primeira sopa, pois, já tínhamos uma certa noção que

naquelas redondezas haviam muitos locais em potencial para ação. Escolhemos então, um

local onde havia alguns cartazes publicitários (os quais, assim como a caligrafia urbana, são

feitos ilegalmente), os arrancamos, no sentido da disputa por espaço, e pintamos por cima.

Na figura abaixo, uma fotografia do processo da sopa de letras em seu início, a escada

já sendo utilizada para marcar os lugares mais altos, e a maioria já compondo na linha de

baixo. Nota-se dessa vez um número ainda maior de participantes do que o registro da

primeira sopa de letras.

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Figura 50 – Sopa de Letras “o processo”. Av. Prudente de Morais/novembro, 2017.

Esse segundo encontro, foi todo realizado em um intervalo médio de cinco horas,

entre pintura e conversas, não foi muito articulado no sentido do esquema da disposição das

letras no espaço, o que contava mais naquele momento era o desejo de ocupar os espaços

sem necessariamente uma lógica previa de organização.

Na figura abaixo pode se ver o registro da segunda sopa em conclusão. O espaço foi

preenchido de forma intuitiva de acordo com a disponibilidade de escadas e varas

extensoras, enquanto havia espaço, o muro ia sendo preenchido por letras de tamanhos

maiores e menores intercalados.

Uma literatura citadina escrita a muitas mãos, todos os casos individuais se agitam e

se tornam políticos de modo que acabam por adquirir um valor coletivo. Quando Kafka

indica as finalidades de uma literatura menor, somos conduzidos a compreendê-la não

apenas como casos individuais, mas como um programa político “o que no seio das grandes

literaturas ocorre embaixo do edifício, aqui ocorre em plena luz; o que lá provoca um

tumulto passageiro, aqui não provoca nada menos do que uma sentença de vida ou morte”

(DELEUZE; GUATTARI, 1977 p. 26). Pode-se conceber, portanto, que a caligrafia urbana

se configura enquanto uma literatura menor, escrita a céu aberto, quando os seus autores,

se lançam em uma escrita que a cada traço desafia o risco de terminar com seu lugar ao sol,

ter seu nome conquistado na superfície da cidade, ou talvez, um lugar no banco dos réus,

devido à não autorização formal da prática.

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Figura 51 – Sopa de letras finalizada. Av. Prudente de Morais/novembro, 2017.

E se ainda resta alguma dúvida da expressão da caligrafia urbana enquanto literatura,

recorremos à discussão de Ranciére, que enaltece a ambiguidade da palavra literatura,

reforçando uma possibilidade de compreender numa mesma noção essas artes e saberes da

língua.

A literatura torna-se precisamente nomeável como a atividade específica daqueles

que escrevem no momento em que a “herança” desvanece. Ela não é aquilo que

sucede as belas-letras, porém aquilo que as suprime. Há literatura quando os gêneros

através dos quais ela se conhece como tal são precisamente os dois gêneros fora do

gênero: a poesia lírica, situada à margem da grande poesia – épica e dramática –, e

o romance, situado à margem da eloquência. Foi a partir deles que a revolução

romântica se pensou, que a literatura pôde se colocar como uma experiência e uma

prática autônoma da linguagem. Foi assim que ela se definiu como uma capacidade

própria: o estilo, essa “maneira absoluta de ver as coisas” (Flaubert) que se desliga

da subordinação da elocutio. A literatura veio assim a se dar como um modo próprio

do discurso, até mesmo um modo de vida próprio, a realização de um dever

específico para com a língua, onde ética e estilística se confundem. (RANCIÈRE,

1995, p. 25).

Nesse sentido, podemos entender que assim como na literatura do séc. VIII, a qual

se refere Rancière, a caligrafia urbana da contemporaneidade, enquanto uma literatura

menor citadina, produz um certo discurso sobre si. Um discurso explicitamente visual,

baseado em caracteres estilizados, mas também um modo de vida, que possui seus deveres

para com sua língua, uma ética e estilística que se confundem, ora vista como vandalismo,

ora como uma ocupação criativa do espaço urbano. É sob esta perspectiva que definimos a

caligrafia urbana como uma expressão inventiva que transforma a cidade em um livro aberto,

enquanto uma experiência, mas também como uma prática autônoma da linguagem, do

modo como entendemos a literatura com o auxílio teórico de Rancière.

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“Literatura” é um desses nomes flutuantes que resistem à redução nominalista, um

desses conceitos transversais que têm a propriedade de desmanchar as relações

estáveis entre os nomes, ideias e coisas e, junto com elas, as delimitações

organizadas entre as artes, os saberes ou os modos do discurso. “Literatura” pertence

a essa delimitação e a essa guerra da escrita onde se fazem e se desfazem as relações

entre a ordem do discurso e a ordem dos estados. (RANCIÈRE, 1995, p. 27).

Portanto, é fundamental a compreensão da literatura como um conceito transversal,

por esse ângulo, temos a literatura menor como o nosso conceito chave que se articula

durante todo o desenvolvimento dissertativo da discussão. Assim damos seguimento a

narrativa dessas experimentações, no que confere a caligrafia urbana, a execução da sopa de

letras em suas facetas estéticas e políticas na medida que os escritores fabricam sua

expressão na cidade.

No terceiro encontro de “sopa de letras”, a atividade foi articulada repentinamente,

em fevereiro do ano de 2018, alguns dias antes do feriado do carnaval, dessa vez o

combinado era pegar um muro “ocioso” numa das avenidas de maior movimento comercial

de Natal, a avenida Bernardo Viera. No dia do ocorrido, ninguém havia levado escadas,

estavam todos pintando a primeira linha de altura do muro, pois devido à falta de uma

articulação prévia, não tínhamos as ferramentas suficientes para conseguir fechar todo o

muro de cima a baixo.

Foi então que o que antes denominei um discurso explicitamente visual se articulou

enquanto um discurso de solidariedade em favor aquele encontro. Como estávamos em uma

avenida de intenso movimento urbano e comercial, do outro lado da rua vários trabalhadores

de comércios observavam o acontecimento. Rapidamente nos articulamos com

trabalhadores das lojas explicando o que estávamos fazendo e pedindo, de modo informal,

que nos emprestassem escadas para conseguirmos pintar o muro todo.

Eu mesmo expliquei a seguinte situação “esse é um encontro que chamamos sopa de

letras, que reúne vários escritores artistas da cidade, no intuito de ocupar visualmente as

paredes da cidade, normalmente buscamos espaços com boa visibilidade e que estejam

disponíveis para receber a pintura, já realizamos em outros lugares da cidade, e esse trabalho

é realizado partindo da ideia de que uma cidade colorida é uma cidade menos violenta, uma

cidade mais interessante de se viver e experimentar”. Foi desse modo, em um linguajar mais

coloquial, que apelei pelo apoio das pessoas nas proximidades.

Após averiguar algumas lojas do outro lado da rua, conseguimos emprestadas duas

escadas e oito peças de andaime, além do apoio motivacional, fornecimento de água para

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beber e todo respaldo positivo da ação, o que no geral foi bastante frutífero. Inclusive, foi

nesse terceiro encontro que pela primeira vez, o dono do muro apareceu, nos indagando o

porquê de estarmos fazendo aquilo.

Diante disso dois homens subitamente apareceram questionando nossa ação, um

deles, o mais jovem bastante irritado, esbravejava dizendo que iria chamar a polícia pois não

tínhamos autorização para pintar ali, o outro, com uma aparência mais a madura, aguardava

o que tínhamos a dizer. Nesse momento, o discurso que comentei estava afiado na ponta da

língua, e assim como dialoguei, com os apoiadores das nossas escadas e andaimes, assumi

o papel de articulador da anuência do muro, sob a justificativa de que aquele espaço

recorrentemente era pixado sem autorização, e acabava sendo prejuízo para ele ter que estar

sempre realizando a manutenção do muro, e com o painel das letras ele poderia ficar mais

sossegado pois isso garantiria um eventual respeito e preservação do muro. O dono após me

ouvir, pediu que o outro homem mais jovem se acalmasse, pois ele iria permitir a pintura do

muro, sob apenas uma condição, deveríamos escrever no muro que a sua loja comercial

(M&M Autopeças) apoiava a arte e a cultura.

Tenho para mim que a condição foi bastante razoável, e aceitamos sem problema.

Diante desse ocorrido, tenho por assimilar que esse tipo de eventualidade, é que torna

diferencial o ato de pintar na rua, o diálogo direto que se mantem com as pessoas que passam,

não apenas um fazer por fazer, mas uma troca que acontece no seio da urbanidade. Na figura

abaixo trazemos o registro do processo do mural, alguns escritores pintando com andaimes

e escadas o progresso do mural.

Figura 52 – Terceira Sopa de Letras. Av. Bernardo Vieira/fevereiro, 2018.

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Mais abaixo, trago o último registro desta seção, o painel da terceira sopa de letras

finalizado. Nesse terceiro encontro da sopa de letras, foi incentivada a tentativa de organizar

o esquema de disposição das letras no muro, de modo que os primeiros a chegaram

esquadrinharam o muro, o dividindo em formas geométricas retangulares. Observando com

cuidado podemos perceber que essa intenção funcionou para os primeiros nomes da primeira

e segunda linha horizontal de letras, de baixo para cima, mas, não foi possível seguir o

mesmo padrão até terceira e última linha mais alta do muro.

Figura 53 – Terceira Sopa de Letras. Av. Bernardo Vieira/fevereiro, 2018.

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Isso me leva a crer, que ainda que na caligrafia urbana, existam possíveis regras ou

orientações de estilo, numa composição real no ato em que se compõe na rua, essas certezas

são frágeis, as coisas na maioria das vezes não saem como combinado. Em outras palavras,

a situação de estar na rua impõe sempre inúmeros imprevistos. Tais afirmações suscitam

inquietações sobre a dimensão plástica e de sentido da caligrafia que atentamos

anteriormente; é possível pensar a dimensão plástica como orientada pelos estilos, as

‘regras’ e possibilidades estéticas que as letras estão sujeitas a conduzir os escritores, isso

os motiva a compor de um determinado jeito ou de outro; já a dimensão de sentido, é

prontamente mais política, no que se refere as ações e atitudes, seja de escrever de forma

autorizada, ou de forma mais vândala, o que também remete as decisões e motivações que

os escritores se respaldam para manter o desejo vivo de continuar escrevendo na rua.

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4 RUÍNAS CITADINAS

“Escrever deve ser uma necessidade, como o mar precisa

das tempestades - é a isto que eu chamo respirar.”

Anaïs Nin

4.1 NARRATIVAS URBANAS

Ao chegar nesta etapa final da pesquisa, já foi percorrido um longo caminho,

desenvolvemos previamente a noção da caligrafia urbana, e conhecemos algumas facetas

dos estilos de escrita citadinos, observando alguns conteúdos e expressões, e inclusive,

investigando tanto a dimensão de sentido como dimensão plástica dessas práticas, como se

relacionam dentro de seus aspectos estéticos e políticos, como se conectam e como se

desenham, tudo isso orientado pelo nosso referencial teórico central (explicado pelo

diagrama presente na introdução), e alguns autores auxiliares.

Todo esse trâmite foi realizado para corroborar com a ideia fundadora da pesquisa

de pensar “a cidade como um livro aberto”. Sendo assim, este último momento da

dissertação traz para a nossa discussão a terceira característica de uma literatura menor

(DELEUZE; GUATTTARI, 1977), o agenciamento coletivo de enunciação; em que tudo

que se compõe ganha valor coletivo, em articulação com uma outra ideia chave, o conceito

de heterotopia (FOUCAULT, 2013), como um espaço de exercício da diferença, o que nas

palavras de Foucault seria “um espaço capaz de justapor em um lugar real vários espaços

que normalmente seriam ou deveriam ser incompatíveis” (FOUCAULT, 2013, p. 25).

Em primeiro lugar, deve-se esclarecer em que sentido trabalhamos o conceito de

heterotopia, os primeiros escritos sobre o que Foucault chamou de uma ciência dos espaços

outros, ou uma heterotopologia, que foram proferidos em uma conferência no Círculo de

Estudos Arquitetônicos, na Tunísia em 1967, mas que foi apenas em 1984 publicado pela

primeira vez com o título de “Outros Espaços”. Em 2013, duas conferências radiofônicas

proferidas por Foucault, “O corpo utópico” e “As heterotopias”, dão resultado àpublicação

de um livro41 que aqui se torna uma das principais bases para pensar essa noção.

41 No posfácio do livro, escrito por Daniel Defert, é questionada a falta de exploração desse conceito articulado por

Foucault, desde seu proferimento até sua primeira publicação. Segundo Defert, poderíamos interpretar essa lacuna de 1967-

1984 como uma história da não recepção do conceito “as noções de recepção e de não recepção ofereceriam um crivo de

análise suficientemente fino par demarcar uma série de transformações tanto dos discursos estéticos, epistemológicos e

políticos dos arquitetos e urbanistas nestes mesmo vinte anos, quanto da problemática do espaço nos escritos de Foucault?”

(FOUCAULT, 2013, p. 34).

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Devido à amplitude da relação entre linguagem e espaço, devemos restringir nossa

investigação a pensar a noção de heterotopia combinada à literatura menor, para apurar a

percepção da caligrafia urbana habitando a cidade. Foi decidido então, para análise desse

estudo, considerar as ruínas, como espaços heterotópicos tratados nesse capítulo. Elegi duas

ruínas urbanas na cidade de natal, as quais irei narrar e explicar em episódios separados,

como se associam enquanto heterotopias, ou, contraespaços, na medida que se articulam a

terceira noção fundamental – agenciamento coletivo de enunciação – para compreendermos

a literatura menor.

Pensar essas narrativas citadinas através do espaço físico das ruínas, pondera a

reflexão de que nesses locais, devido ao abandono e a falta de fiscalização ou controle de

qualquer tipo, proliferam-se manifestações manuscritas à tinta, além de outras presenças

possíveis. As ruínas como veremos a adiante, são espaços propícios ao exercício da escrita,

da pintura estimulando os processos criativos que inspiram a arte urbana, nesses espaços

podemos encontrar as mais inusitadas e imprevisíveis expressões.

Em relação à heterotopia encontrada no espaço das ruínas, podemos perceber esses

locais como lugares totalmente à margem, aonde estruturas deterioradas são um convite

aberto para ocupação. Os escritores fazem da cidade um espaço outro, uma heterotopia, no

sentido que a arquitetura não é somente o espaço físico, mas também uma superfície de

expressão de uma literatura menor, ou seja, do que uma minoria faz dentro de uma língua

maior, e no caso das ruínas suas condições de abandono a transformam numa heterotopia

de desvio por excelência.

[…] as heterotopias de crise somem e são substituídas por heterotopias de desvio:

isto significa que os lugares que a sociedade dispõe em suas margens, nas paragens

vazias que a rodeiam, são antes reservados aos indivíduos cujo comportamento é

desviante relativamente à média ou à norma exigida. (FOUCAULT, 2013 p. 22).

As ruínas, podem ser concebidas como heterotopias de desvio, partindo da

deterioração da arquitetura, aos destroços espalhados pelo chão, dos vestígios do que um dia

já foram, são lugares marcados pela incerteza do que está por vir. Durante as narrativas sobre

esses espaços poderemos pensar como a arquitetura se transforma num contraespaço de

habitação das práticas da caligrafia urbana. A ruína não é apenas um espaço físico, mas

torna-se também um espaço circunscrito, capaz de produzir sentido para o escritor, utiliza-

se da sua superfície para agenciar a prática da escrita, para fazer ver e fazer viver o seu nome

que se dissemina na cidade.

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Quanto à terceira característica da literatura menor – agenciamento coletivo de

enunciação – é uma que noção indica que os conteúdos da caligrafia urbana possuem um

valor coletivo, isto é, a cidade em si, pode ser compreendida como uma obra escrita por

várias mãos, de modo que cada escritor não produz apenas uma obra em si, mas o fragmento

de uma obra maior, a cidade.

A terceira característica é que nela tudo adquire um valor coletivo. Com efeito,

precisamente porque os talentos não abundam em uma literatura menor, as

condições não são dados de uma enunciação individuada, que seria a de tal ou tal

“mestre”, e poderia estar separada da enunciação coletiva. De modo que esse estado

da raridade dos talentos na verdade é benéfico, e permite conceber outra coisa que

não uma literatura dos mestres: o que o escritor sozinho diz, já constitui uma ação

comum, e o que ele diz ou faz, é necessariamente político, ainda que os outros não

estejam de acordo. (DELEUZE, GUATTARI, 1977, p. 27).

Como vimos anteriormente, na literatura menor, a atitude individual de cada escritor

se ramifica em um ato político imediato, e, na medida em que se articula a um comum

compartilhado (como evidenciado pela partilha do sensível), as escritas citadinas que

denominamos caligrafias urbanas atuam como um agenciamento coletivo de enunciação que

se inscreve na superfície da cidade. Sendo assim,

[…] é a literatura que se encontra encarregada positivamente desse papel e dessa

função de enunciação coletiva, e mesmo revolucionária: é a literatura que produz

uma solidariedade ativa, apesar do ceticismo; e se o escritor está a margem ou

afastado de sua frágil comunidade, essa situação o coloca ainda mais em condição

de exprimir uma outra comunidade potencial, de forjar os meios de uma outra

consciência e de uma outra sensibilidade. (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 27).

Se a literatura menor é capaz de fabricar uma nova consciência, ou sensibilidade, que

seja possível de ser compartilhada entre uma comunidade de escritores e leitores, são

espaços como as ruínas que se tornam tesouros da investigação da escrita citadina. Iniciamos

então, a descrição das narrativas, imersa na minha experimentação enquanto um dos

escritores, desses espaços heterotopicos que se situam no “interstício das palavras, espessura

de suas narrativas” (FOUCAULT, 2013 p. 19), mas ao mesmo tempo ocupam um lugar real

“utopias que têm um tempo determinado, um tempo que podemos fixar e medir conforme o

calendário de todos os dias”.

É nesses termos que enviesamos a pesquisa articulando os referenciais teóricos, e os

explorando durante a narrativa, para reafirmar, como as práticas de escrita citadinas

desafiam a arquitetura da cidade, se reinventando e modificando o espaço urbano.

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Dedico-me neste capítulo, em reunir registros de dois episódios de ruínas a céu aberto

na cidade de Natal, sabendo que existem várias ruínas interessantes de se investigar, escolhi

apenas essas duas em função de um recorte mais delimitado e coeso, para articular os

conceitos teóricos com a argumentação escrita e poder explorar bem a narrativa dos espaços.

4.2 DESTROÇOS DE UM SUPERMERCADO ABANDONADO

Nosso primeiro episódio narrativo tem como palco as ruínas de um supermercado

abandonado, localizado na avenida Roberto Freire, no bairro de capim macio da cidade de

Natal, o Supermercado Bom Preço, por motivos que não são bastante claros, entrou em

falência e foi abandonado. O estabelecimento permaneceu em ruínas em um intervalo de

tempo de aproximadamente, meados de 2013 até meados de 2017, quando o espaço foi

reformado e inaugurado como uma franquia de materiais de construção, o qual nome não

vem ao caso. É importante estabelecer o recorte do tempo em que essas ruínas estiveram

presentes, pois “ocorre que as heterotopias são frequentemente ligadas a recortes singulares

do tempo.” (FOUCAULT, 2013 p. 25).

No ano de 2013, certo tempo após o supermercado ter sido fechado, eu e alguns

conhecidos, levantamos a possibilidade de entrar no terreno para pintarmos juntos, apesar

de certo receio, combinamos e em pouco tempo realizamos o primeiro encontro dentro

daquela ruína abandonada, esperávamos que lá dentro houvessem várias superfícies

interessantes para explorar, e quando chegamos lá pela primeira vez foi ainda mais

surpreendente. O supermercado que estava abandonado, além de não contar com nenhuma

segurança, contava com grande parte do mobiliário da loja ainda dentro do estabelecimento,

ficamos chocados quando percebemos que itens como, caixas registradoras, corredores

frigoríficos, escadas de estoquistas, e até extintores de incêndio ainda estavam lá. Tivemos

a impressão de que o espaço tinha realmente sido abandonado com urgência, e os donos

levado apenas o que deu tempo de levar.

O chão estava bastante sujo com muitos estilhaços de vidro quebrado, e em alguns

lugares excrementos humanos, parte dos equipamentos danificados, e destroços do que havia

sobrado espalhado por todo galpão. Revelando uma situação de abandono e a possibilidade

aberta para de qualquer um que desejasse adentrar naquele espaço.

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Na figura abaixo, um registro de quando eu e outros escritores estivemos nessas

ruínas pela primeira vez. Normalmente quando um grupo se junta para compor

coletivamente, todos pintam juntos em um mesmo mural, mas naquela ocasião, devido a

amplitude do espaço, e, até o momento a falta exploração do mesmo, cada um saiu

desbravando e pintando em um local diferente.

Figura 54 – Supermercado Bom Preço abandonado, Av. Roberto Freire. /setembro, 2013.

A vastidão do galpão na imagem fala por si só, o supermercado que literalmente foi

abandonado, ainda contava com parte de suas grandes estruturas físicas, apesar da aparente

desocupação ampla do espaço. Desde o eminente abandono, as ruínas do Bom Preço foram

transformando-se, aos poucos, num espaço, ou melhor, contraespaço, de um habitar distinto,

pensamos, que a noção trabalhada por Foucault, de heterotopia, vem alargar a análise, na

qual as pinturas urbanas seriam pensadas como unidades espaço-temporais expressas na

superfície da arquitetura.

Esses espaços-tempos tem em comum serem lugares onde estou e não estou, como

o espelho ou o cemitério; onde sou outro como na casa de tolerância, na colônia de

férias ou na festa, carnavalizações da existência ordinária. Eles ritualizam cortes,

limiares, desvios e os localizam. [...] Estes contraespaços, porém, são

interpenetrados por todos os outros espaços que eles contestam: o espelho onde não

estou reflete o contexto onde estou, o cemitério é planejado como a cidade, há

reverberação dos espaços, uns nos outros, e, contudo, descontinuidades e rupturas.

Há enfim, como que um eterno retorno desses rituais espaço-temporais e, se não a

universalização das mesmas formas, ao menos uma universalidade de sua

existência. Eles são apreendidos em uma sincronia e diacronia específicas que

fazem deles um sistema significante entre os sistemas da arquitetura. Não refletem

a estrutura social nem a da produção, não são um sistema sócio-histórico nem uma

ideologia, mas rupturas da vida ordinária, imaginários, representações polifônicas

da vida, da morte, do amor, de Éros e Tánatos. (FOUCAULT, 2013 p. 37).

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Dessa maneira, podemos apreender sobre a caligrafia urbana que ela implica em uma

ruptura da vida ordinária, criando uma relação dinâmica com o espaço, pautado por relações

políticas e estéticas, assim como uma dimensão plástica e de sentido. A pintura, a escrita,

tem um poder de fazer o seu autor ao mesmo tempo estar e não estar, existir e escapar, em

um contraespaço, que se expressa na arquitetura dos mobiliários urbanos.

O desafio à arquitetura é também um diálogo por suas formas: a linha, por exemplo,

é uma qualidade expressiva única no tempo e espaço, ela evidencia não apenas o nome

escrito, bem como expressa a idiossincrasia42 do escritor e da circunstância do momento em

que foi escrita. Isso quer dizer que se a arquitetura apresenta uma peculiaridade, ela vai se

expressar de algum modo na disposição da caligrafia. Segundo Ostrower (1983, p. 31), “as

linhas são como palavras ou gestos, ocupam um espaço-tempo, assim não se repetem da

mesma forma, são únicas, têm timbre, cadência e emoção”.

Na figura abaixo, temos a paisagem visual de dentro do galpão, o lugar onde

eventualmente no supermercado se dispõe os “frios”, uma estante frigorífica, se tornou a

tela, onde cada placa de metal resguarda o espaço reservado para um caractere do letreiro

“Pedurso”, escrito de uma ponta a outra. Interessante observar o estado de ruína, nos cacos

esfacelados no chão do lugar.

Figura 55 – Supermercado abandonado, letreiro “Pedurso”, Av. Roberto Freire /setembro, 2013.

42 Idiossincrasia, no sentido de uma condição ou característica extremamente peculiar de um indivíduo.

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Na próxima figura, temos uma imagem mais pictográfica, de uma caveira, com uma

faca na mão como quem toca um instrumento similar a um violino, de capa negra como uma

ceifeira da morte, e ao fundo a paisagem das caixas registradoras do supermercado. A

imagem fala bastante, apesar de o único escrito que podemos apreender é a assinatura do

artista “Binho Duarte”. A paisagem na fotografia, dialoga com a pintura dando um ar

tenebroso de um cenário apocalítico43 de destruição e morte, fazendo com que a pintura em

si, se manifeste enquanto vida e inventividade da construção de uma narrativa possível.

Figura 56 – Supermercado abandonado, “Binho Duarte”, Av. Roberto Freire / setembro, 2013.

Seguindo a próxima figura, temos o registro de um trabalho pictórico, realizado pelo

escritor “Mal”, na imagem, a figura de um palhaço que faz uma espécie de alusão à franquia

“McDonalds”, chutando uma bola da “Nike”, um “cocktail molotov” na mão, acompanhado

do título “Brasil 2014”, que faz uma referência a “Copa do mundo”, em um tom de crítica

social.

43 Cenários apocalípticos ou pós-apocalípticos são um tema comum da ficção cientifica, onde a humanidade sucumbiu a

alguma forma de colapso social. Em termos leigos é sinônimo de um processo de extinção da humanidade.

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Figura 57 – Ruínas do Supermercado Bom Preço abandonado, “Mal”, Av. Roberto Freire /setembro, 2013.

Nesse sentido, as imagens falam fora do léxico comum da escrita, elas refazem o

percurso lógico de sentido, por exemplo, no registro anterior, a referência a aspectos

icnográficos de empresas famosas toma um outro rumo, ao invés de enaltecer, como a

publicidade, a imagem está para depreciar, escapando pela tangente, operando numa

desterritorialização da língua, a dando outros usos, e utilizando a imagem como uma

enunciação de um outro campo político

Ainda que maior, uma língua é suscetível de um uso intensivo que a faz correr

seguindo linhas de fuga criadoras, e que, por mais lento, por mais precavido que

seja, forma dessa vez uma desterritorialização absoluta. Quanta invenção, e não

somente léxica, o léxico pouco conta, mas sóbria invenção sintática.” (DELEUZE,

GUATARRI, 1977, p.41).

Desse modo, a caligrafia urbana adquire uma invenção sintática diferenciada – por

sintática me refiro à sintaxe, o estudo das palavras enquanto constituintes de uma frase, ou

seja, na caligrafia urbana, os elementos não obedecem as mesmas funções gramaticas da

língua maior – os elementos que a constituem, são dispostos de letras e imagens que se

intercalam, se colocam em posições não convencionais, elas escapam, através de linhas de

fugas criadoras, se desterritorializam, ao mesmo tempo em que reinventam os vocábulos de

uma língua maior, ao seu próprio modo de fazer em vias alternativas. De maneira que o

enunciado adquire um valor coletivo, que é compartilhado por outrem inseridos no contexto

da arte urbana.

Na figura abaixo, temos um graffiti estilo wildstyle, realizado pelo escritor “Felix”,

realizado na entrada da área de subsolo do estacionamento, o escrito se reflete na água

acumulada na parte inferior, criando um efeito visual de espelho no registro fotográfico.

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É válido lembrar que as instalações físicas se tornaram não apenas o suporte para as

escritas citadinas, além dessas manifestações as heterotopias abrem espaço para outras

apropriações. Por exemplo, indivíduos em situação de rua chegaram a usar o lugar como

abrigo, assim como skatistas utilizavam espaços, como o do estacionamento, como uma

pista de obstáculos para praticar, assim como projetos fotográficos chegaram a utilizar o

espaço para ensaios com uma ambientação diferenciada, além de outros possíveis que não

chegaram a meu conhecimento.

Figura 58 – Estacionamento abandonado Bom Preço. /maio, 2014.

Na próxima figura, temos a imagem da área exterior do Bom Preço, na figura, a

produção artística de um mural, composto pela “FDM crew”, assinada pelos escritores

“Hugh, Fb, Pok e Hades” (vide a legenda, feita pelos próprios escritores, no canto superior

direito), o painel se destaca pela presença de estilos pictóricos e caligráficos, podemos

descreve-lo como: no centro da imagem, um pássaro, com vários ovos, e em cada ponta do

painel um estilo de letra, a esquerda em “3D” e à direita em wildstyle.

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Figura 59 – Área externa do Supermercado Bom Preço, Rua Professor Adolfo Ramires /julho, 2014.

Nosso último registro do supermercado abandonado Bom Preço, é uma visão de seu

pátio externo, de frente para avenida Roberto Freire, o espaço ocioso do estacionamento

ocupado, a fachada do edifício repleta de letreiros de pixos, e a vegetação rasteira do mato

tomando conta de grande parte da entrada.

Na medida em que foi sendo ocupado, o estabelecimento foi entrando em estado de

declínio, e suas instalações se tornaram um “playground” para escritores urbanos, durante

aproximadamente 4 anos. Aos poucos, medidas foram sendo tomadas, até que em 2015 todas

possíveis entradas foram fechadas com cimento, deixando inacessível o espaço interno, até

chegar ao ponto de o terreno ser arrendado e reformado, até dissipar essa heterotopia da

ruína que foi, e transformar-se em uma loja comercial de material de construções, em

meados de 2017.

Esse tipo de recorte singular do tempo serve para situar heterotopias pontuais na

cidade, contudo, nos traz a reflexão de que, continuamente, esses tipos de espaço surgem e

se extinguem.

Figura 60 – Fachada da frente Supermercado Bom Preço abandonado, Av. Roberto Freire /julho, 2014.

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4.3 O ELEFANTE BRANCO SE TORNA COLORIDO

O nosso segundo episódio acerca das ruínas citadinas, tem como palco uma obra

arquitetônica do famoso arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer. O monumento que ficou

conhecido popularmente como “Presépio de Natal”, foi idealizado por membros da

Academia Potiguar de Letras44, e foi inaugurado no ano de 2006, nele constava um painel

artístico assinado pelo artista plástico potiguar Dorian Gray Caldas45.O projeto custou cerca

de R$ 1,7 milhão aos cofres públicos46, mas depois de construído, não chegou a ser

efetivamente utilizável, e logo caiu no esquecimento.

Desde sua inauguração o espaço ficou subutilizado, no sentido institucional de

governabilidade, foi nesses termos que o chamei de “Elefante Branco”, expressão utilizada

para se referir a obras públicas sem utilidade. Jogado às traças, o “Presépio de Natal”

permaneceu inerte, acumulando lixo e resíduos, sua arquitetura foi construída com a

intenção de ser um ponto de cultura e lazer que atendesse a população, por exemplo, o local

possui galerias com espaço para seis lojas, uma lanchonete e uma área administrativa; dois

banheiros públicos, estacionamento e jardim; uma praça de cerca de 3.200 metros

quadrados.

Após sua inauguração o lugar não teve utilização específica, a obra do artista Dorian

Gray, foi retirada para preservação em 2012, ao menos o que restou da composição; em 2013

foi anunciado que o espaço se tornaria um “Centro Cultural Banco do Brasil”, o projeto não

chegou a ser efetivado; em 2016, o Governo do Estado, lançou um projeto para reforma do

lugar, para ser transformado em uma secretaria combinada com um espaço de prática de

esportes, no entanto até meados de 2018 (ano em que essa pesquisa foi concluída) o projeto

ainda não saiu do papel e o “Presépio de Natal” continua em estado de descaso.

Todavia, o nosso objetivo nesse estudo, não se trata de fazer uma crítica (mesmo

assim, não deixamos de denunciar a situação) detalhada a gestão de políticas públicas do

Estado. Na verdade, o foco deste capítulo é mostrar como nesse intervalo de tempo, o espaço

vem sendo reinventado, se transformando pelo viés da prática daqueles que o vivenciam,

mesmo em condições adversas. Sob à luz de Foucault, podemos conceber o espaço do

44 Um grupo de intelectuais, tendo à frente Luís da Câmara Cascudo, fundou, em 1936, a Academia Norte-rio-grandense

de Letras, com sede em Natal. Disponível em: <www.anrl.com.br>. Acesso em: 03 mar. 2018. 45 Dorian Gray Caldas (1930-2017) foi um artista plástico e ensaísta brasileiro, atuou como assessor da secretaria estadual

da cultura do Rio Grande do Norte (1967-1968) e da Fundação José Augusto (1974) e foi diretor do Teatro Alberto

Maranhão (1967-1968). Fonte: Wikipédia. 46 Fonte: Disponível em: <http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2012/12/obras-de-oscar-niemeyer-sofrem-

depredacao-e-abandono-em-natal.html >. Acesso em: 03 mar. 2018

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“Presépio” como um contraespaço; considerando o contexto que “estamos em uma época

onde o espaço se oferece a nós sob a forma de relações de posicionamentos” (FOUCAULT,

1984 p. 413), é nesse jogo de posicionamentos que, a heterotopia se caracteriza por entre

essa relação do espaço que é abandonado, com o contraespaço da reinveinção, assim ela é

capaz de justapor espaços que normalmente são incompatíveis.

A época atual seria talvez de preferência a época do espaço. Nós vivemos na época

da simultaneidade: nós vivemos na época da justaposição, do próximo e do

longínquo, do lado-a-lado e do disperso. Estamos em um momento em que o mundo

se experimenta, acredito, menos como uma grande via que se desenvolveria através

dos tempos do que como uma rede que religa pontos. (FOUCAULT, 1984, p. 411).

Seria então pertinente dizer que nessa época da simultaneidade que vivemos; o

abandono do espaço pelas autoridades legais, acontece concomitante, a apropriação por

outrem, no caso os escritores urbanos, dos suportes abandonados. Na figura abaixo, podemos

visualizar um registro do ano de 2013, no qual se iniciavam algumas pinturas no espaço

abandonado da arquitetura de Niemeyer.

Figura 61– “Presépio de Natal” processo de pintura. Av. Prudente de Moraes /abril, 2013.

Aos poucos a obra arquitetônica de Niemeyer foi sendo tomada pelas tintas e escritas,

sem nenhum crivo de curadoria ou autorização, nesse período os frequentadores daquele

espaço se resumiam aos escritores, moradores em situação de rua, skatistas e patinadores,

além de alguns alunos de autoescola que utilizavam o espaço para aulas de direção. O lugar

foi ganhando novos nomes, no lugar de “Presépio de Natal”, alguns chamavam de

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“Presepada47 de Natal”, outros se referiam ao espaço como “Barcelona48”, e outros se

referem ao lugar como “DED” sigla que faz referência a um ginásio de esportes que fica

bem próximo. De toda maneira, as práticas destinadas ao espaço iam se expandindo, e logo

as escritas citadinas iam tomando conta de toda arquitetura do lugar. Na próxima figura

abaixo, temos o registro das galerias sendo pintadas simultaneamente, em um encontro de

escritores (similar a sopa de letras, mas sem o foco nas letras), pintando em equipes de

afinidade em cada galeria, criando composições inventivas e inusitadas, com a intenção de

explorar seus próprios repertórios gráficos.

Figura 62 – Processos coletivos de pintura nas galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes /maio, 2013.

Uma questão pertinente de ser levantada durante esses processos de pintura

coletivos, é que embora ainda que para os autores da obra, a individualidade de seus traços

e estilos sejam importantes para si próprios, a arte urbana lhes traz a possibilidade de compor

em conjunto, no sentido de que muitas vezes não se sabe ao certo onde acaba a obra de um

autor e começa a de outro. É nessa perspectiva que articulamos a terceira característica da

literatura menor, o agenciamento coletivo de enunciação, na acepção de que não existem

sujeitos claramente definidos dentro da caligrafia urbana, o que existe são os enunciados

distintos, e produzidos por diferentes idiossincrasias.

Não há sujeito, há apenas agenciamentos coletivos de enunciação – e a literatura

exprime esses agenciamentos, nas condições onde eles não são dados para fora, e

47 Presepada faz referência a uma situação extravagante ou bizarra, um espetáculo ridículo, como o caso do abandono das

instalações de alto custo do dinheiro público. É sinônimo de escândalo, fanfarronice, confusão, algazarra, palhaçada e

bagunça. 48 Barcelona é uma cidade na Espanha, conhecida no final da década de 90 como local ideal para os skatistas por causa das

ruas quase sempre planas, calçadas largas, e escadas de granito. Disponível em: <http://www.brechando.com/2016/09/por-

que-tambem-chamam-o-presepio-de-natal-de-barcelona/>. Acesso em: 03 mar. 2018.

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onde eles existem apenas como potências diabólicas futuras ou como forças

revolucionárias a serem construídas. (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 28).

Depois desse episódio em 2013, o presépio de Natal voltou a ser pintado de branco,

quando o Governo do Rio Grande do Norte, aliado à Prefeitura do Natal, anunciou que iria

reformar o espaço. No entanto, apenas as paredes foram pintadas, como forma de suprimir

as expressões citadinas consideradas desviantes, e nenhuma reforma pontual foi realizada,

fazendo com que as pinturas voltassem a aparecer na superfície arquitetônica abandonada.

Podemos pensar de forma metafórica, que assim como a natureza, ao exemplo das ervas

daninhas que crescem incessantes mesmo quando cortados, as escritas citadinas, ressurgem

na cidade, não importam quantas vezes sejam coibidas ou pintadas.

As imagens se entrecruzam com as palavras, de modo que se dissolvem os autores e

restam apenas os enunciados. “A linguagem deixa de ser representativa para tender a seus

extremos ou seus limites” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 36). Nessa acepção é que,

durante a pesquisa não nos detivemos em tentar desvendar ou representar uma significação

rígida dessas práticas de escrita citadina, ao invés, nos concentramos em investigar as

potências inventivas do ato de escrever, apresentando diferentes possibilidades, dentro de

um mesmo contexto urbano.

Nas próximas figuras, trazemos os registros “renovados” das galerias do espaço,

durante o ano de 2017. Mesmo uma vez pintadas de branco, as paredes foram novamente

pintadas com painéis, dizeres, personagens, e estilos distintos. As paisagens das partes

internas das galerias estão sobrepostas de marcas de vários autores, graffitis e pixos, que se

sobrepõem de forma desordenada, é nesse sentido que, reitero, não existir mais sujeito,

somente enunciados.

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Figura 63 – Galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes /outubro, 2017.

Figura 64 – Galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes /outubro, 2017.

Figura 65 – Galerias abandonadas., Av. Prudente de Moraes / outubro, 2017.

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Figura 66 – Galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes / outubro, 2017.

Figura 67 – Galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes /outubro, 2017.

Figura 68 – Galerias abandonadas, Av. Prudente de Moraes/ abril, 2018

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Nas imagens anteriores é possível observar diferentes, manifestações, alguns desses

traços estão mais passíveis de serem reconhecidos, mesmo que imersos em composições

caóticas, contudo, como foi dito, não nos interessa nesse momento, assinalar que lançou mão

de cada traço. De modo que as composições que se inscrevem na cidade, a priori são feitas

por autores individuais, mas, à medida em que elas vão se encaixando tecem um arranjo

coletivo maior, que por sua vez tem a capacidade de gerar um novo enunciado, que por si

só, não pertence a um sujeito individual, e sim a cidade como um “obra escrita”.

Mas de qualquer maneira que essa relação seja concebida, não acreditamos que o

enunciado possa ser reportado a um sujeito, desdobrado ou não, clivado ou não.

Voltemos ao problema da produção de novos enunciados; ao problema da literatura

dita menor, já que esta, como a vimos, está na situação exemplar de produzir

enunciados novos. (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 121).

Pelo viés da escrita, cada escritor como indivíduo, profere um discurso visual que se

perpetua na rua, ao ser “a enunciação literária mais individual é um caso particular de

enunciação coletiva” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 122). Nesses termos, a riqueza da

heterotopia das ruínas se origina nos interstícios, quer dizer, nos pequenos espaços entre as

partes de um todo ou entre duas coisas contíguas, entre o que é visto na escrita e o que não

se pode mensurar, há uma ruptura entre o escritor e o escrito capaz de articular um ruído que

poderá ser absorvido por um novo espectador, apreendendo um novo significado. Acerca da

característica que compreende o agenciamento coletivo de enunciação os autores advertem.

E não basta dizer que o agenciamento produz o enunciado, tal como faria um sujeito;

ele é em si mesmo agenciamento de enunciação em um processo que não dá lugar

a um sujeito qualquer determinável, mas que permite tanto mais marcar a natureza

e a função dos enunciados, já que estes só existem como engrenagens desse

agenciamento (não como efeitos nem produtos). (DELEUZE; GUATTARI, 1977,

p. 122).

Mais adiante, reforçam.

[…]um agenciamento tem pontas de desterritorialização; ou, o que dá no mesmo,

que ele tem sempre uma linha de fuga, pela qual ele mesmo foge, e faz passar suas

enunciações ou suas expressões que se desarticulam, não menos que seus conteúdos

que se deformam ou se metamorfoseiam. (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 125).

Por essa razão, não faz sentido nos limitar aos autores, mas sim reparar quais

enunciados são produzidos, e como eles se articulam e desarticulam, para produzir sentido,

ocupando visualmente o espaço, mas também afetando outrem; seja uma comunidade

semicerrada de escritores, seus “pares”, ou ainda seus “dispares”, um público amplo e

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incerto, que pode em algum momento ser instigado pelo enunciado produzido pela caligrafia

urbana.

Ao exemplo da obra de Kafka, é inútil perguntar “quem é K?”, pois que, “K não é

um sujeito, mas uma função geral que se prolifera sobre ela mesma, e que não cessa de se

segmentarizar, e de correr em todos os segmentos” (DELEUZE, GUATTARI, 1977, p.122).

De modo comparativo, durante a pesquisa, eu me coloco enquanto autor de várias

composições escritas, no entanto, o que interessa, para o estudo em si, sobre “Pazciência”,

não é a pergunta “quem é?”, mas sim “o que está inferindo?”, uma vez que o sujeito não tem

tanta importância quanto o enunciado escrito, na medida em que a escrita é capaz de desvelar

diferentes reações.

Essa acepção não tem a intenção de ignorar a autoria do escritor urbano, pelo

contrário, ele é o personagem que conduz a trama da escrita citadina, mas o faz em coautoria

com outros, que atravessam semelhantes vivências na cidade, e se desfazem na escrita, para

fazer seu nome na cidade, partilham experiências sensíveis, transferem do individual ao

imediato ações com potência de reverberar, política e esteticamente, na vida dentro do

contexto urbano.

Ainda sobre a literatura menor, os autores defendem que “é sempre nas condições

coletivas, mas de minoria, nas condições de literatura e de política ‘menores’, mesmo, que

cada um de nós tenha que descobrir em si mesmo sua minoria íntima seu deserto íntimo

(DELEUZE, GUATTARI, 1977, p. 125). Talvez a razão de ter trazido para análise as ruínas

tenha sido justamente por acreditar que esses espaços heterotópicos sejam verdadeiros oásis,

para os escritores, na descoberta de seus próprios desertos íntimos no âmbito da escrita e da

literatura menor.

Então, ao ponto que articulamos o agenciamento coletivo de enunciação com o

conceito de heterotopia, é possível considerar a importância do espaço para o estudo da

prática escrita na superfície da cidade. É através dessa relação de entrecruzamento entre

escrita e experiência que se evidencia a riqueza da narrativa em aliança ao exercício

intelectual que está proposto. Assim, pensar a cidade não como um conglomerado de

estruturas cinzentas, mas como um espaço onde vivemos, afinal como reitera Foucault, em

análise.

Não vivemos em um espaço neutro, plano. Nós não vivemos, morremos ou amamos

no retângulo de uma folha de papel. Nós vivemos, morremos e amamos num espaço

enquadrado, recortado, matizado, com zonas claras e escuras, diferenças de níveis,

degraus de escadas, cheias, corcovas, regiões duras e outras friáveis, penetráveis,

porosas. Há regiões de passagem: ruas, trens, metrô; regiões do transitório: cafés,

cinemas, praias, hotéis e as regiões fechadas do repouso e do lar. Ora, entre todos

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esses lugares que se distinguem uns dos outros, há os que são absolutamente

diferentes: lugares que se opõem a todos os outros, destinados, de certo modo, a

apagá-los, neutralizá-los ou purifica-los. São como que contraespaços.

(FOUCAULT, 2013 p. 19).

Como último registro desta etapa, elaborei uma obra registrada dentro de uma

narrativa visual que corrobora com a ideia central do texto “a cidade como um livro aberto”.

Assim, com a intenção de reforçar os argumentos através da sensibilidade da poesia em

aliança ao recurso visual da fotografia do processo do painel, realizado no espaço

heterotopia situada nas paragens da arquitetura de Niemeyer.

No primeiro passo, o rascunho da peça, traços sobrepostos e posicionamento tudo

com apenas uma cor. No segundo passo, as cores, contrastes, volumes e luzes que dão maior

dimensão a peça. No terceiro passo, o detalhamento da composição, efeitos e pormenores.

No quarto e último passo, a peça finalizada, em toda sua elaboração. Essa ilustração final

foi realizada no sentido de reforçar a metáfora visual da cidade como um livro aberto.

Portanto, essa obra convida a pensar a linguagem da caligrafia urbana como um

modo de habitar a cidade. Através da ilustração pontua-se para a importância de se ampliar

a percepção sobre a cidade, afinal não vivemos em uma folha em branco, nem sequer em

um bloco cinza de concreto. Por onde quer que se caminhe na cidade é possível observar

traços e presenças distintas, que revelam em alguma medida a presença das pessoas que

escrevem e se manifestação, com ou sem autorização, ilustrando suas existências no seio da

cidade. O que torna a pesquisa ainda mais instigante é pensar a relação entre escrever e viver,

desse modo inserido ao contexto urbano, permitindo a qualquer um interessado experimentar

a condição de leitor e/ou escritor da grande galeria a céu aberto, o livro de narrativas que

aqui chamamos de cidade.

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Figura 69 – A cidade como um livro aberto “esboço”, Av. Prudente de Moraes. /março, 2018.

Figura 70 – A cidade como um livro aberto, processo “cores”, Av. Prudente de Moraes /março, 2018.

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Figura 71 A cidade como um livro aberto, processo "detalhamento", Av. Prudente de Moraes / março de 2018

Figura 72 Obra finalizda registro, Av. Prudente de Moraes / abril 2018

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: lampejos de cor em meio ao cinza

“Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta

continuarei a escrever.”

Clarice Linspector

Diante de tudo que foi exposto, é possível enxergar com maior amplitude o fenômeno

da arte urbana, no contexto da cidade de Natal, inclusive pensando que, semelhantes formas,

ainda que, com diferentes conteúdos, podem ser encontradas em outros contextos urbanos.

Sabemos que manifestações como o graffiti e o pixo, são formas de expressão recorrentes

nos cenários das grandes cidades, e ainda que sejam coibidas, são expressões que não

cessarão de surgir.

Embora haja polêmica em torno da ilegalidade da prática, vimos que por um lado a

estética do graffiti tem sido melhor aceita pela sociedade, enquanto a estética do pixo tem

sido notada como vandalismo, ainda que ambas se situem em uma fronteira turva, na qual

às vezes é obvio a distinção, mas outras vezes é dúbia a diferença, por questões

circunstanciais, ou seja, cada caso é um caso. O fato é que, para além do bem e do mal, essas

práticas estão presentes nos grandes centros urbanos, e elas comunicam uma forma de

existir, ainda que não seja completamente inteligível para grande parte da sociedade, logo

se expressam de forma estética e política. E nessa acepção, para além da obviedade, o

confronto ao muro limpo, essas práticas também têm a capacidade de afetar o modo como

vivenciamos a cidade, elas indagam, suscitam e questionam novos enunciados possíveis,

tanto por um viés físico como intelectual, elas modificam o espaço urbano.

Penso que esses escritores se aventuram na cidade, atravessando lugares esquecidos

e despercebidos, mas também zonas de grande fluxo e visibilidade. Através dessas

experiências revelam nuances de uma alternativa forma de experimentar a cidade, a escrita

citadina compõe um modo singular de conhecer, através não apenas da imagem e da palavra,

mas para as narrativas que se escondem para além do que os olhos são capazes de enxergar.

Recapitulando os três aspectos principais da literatura menor (DELEUZE,

GUATTARI, 1977) temos: em primeiro lugar, a desterritorialização, como uma

característica da escrita citadina capaz de transpor o território físico; em segundo lugar, a

ramificação do individual ao político imediato, ou seja os escritores, ainda motivados por

pulsões individuais, realizam na escrita o encontro com um ato de consequências políticas

imediatas, que se reverbera na superfície da cidade, e é capaz de se desdobrar em uma

infinidade de possibilidades; e em terceiro lugar, o agenciamento coletivo de enunciação,

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que corrobora para que ainda que inúmeras individuais expressões, em um campo mais

abrangente ganham significado coletivo, mesmo que não coeso, cada peça escrita contribui

para composição de um quadro maior, que o chamamos de a cidade como um livro aberto,

o qual pode ser lido a partir de distintos pontos de vista.

Ainda sobre os principais referenciais teóricos o conceito da partilha do sensível

(RANCIÈRE, 2005) evidencia as relações estéticas e políticas que se repartem na cidade, de

modo que cada escritor é que contribui na formação desse arranjo maior. Já o conceito de

heterotopia (FOUCAULT, 2013), orienta pensar a capacidade que esses escritos têm de

ressignificar os espaços, e fazer deles espaços de exercício da diferença, desafiando a

arquitetura de forma nítida, transformando a superfície citadina em suporte para produção

de novos enunciados.

Vale ainda mencionar que essa escrita se difunde pelas cidades do mundo, sob este

escopo, a arte urbana, em um sentido mais generalizado é considerada uma prática global,

mas que se reinventa nas práticas locais. Ainda que tangida por diferentes estéticas, a

produção artística utilizando a cidade como suporte de expressão é geral, e cada vez mais é

produzido conhecimento acerca desse conteúdo afim de melhor compreendê-lo. Para além

das pesquisas acadêmicas e científicas, é listado aqui algumas importantes publicações que

ampliam o horizonte do pensamento sobre a arte urbana, abrindo o convite ao leitor de

buscar as referências.

No livro de Nicholas Ganz, o Graffiti World: Street Art from Five Continents49, traz

um apanhado de como a arte das ruas se apresenta pelo mundo atravessando a América,

Ásia, África, Europa e Oceania. Em outra obra, Graffiti Woman50, também de Nicholas

Ganz, o autor produz uma coletânea enciclopédica de artistas internacionais focada na

produção artística das mulheres no graffiti, dando ênfase a presença da mulher artista, em

um universo onde uma ampla maioria é composta de artistas homens.

A obra Graffiti Argentina51, de Maximilino Ruiz, por exemplo, o autor traz um

apanhado sobre a história política da prática no país, mapeando produções desde os anos

49Graffiti World: Street Art from Five Continents (2010) - na versão em português Mundo Grafite: Arte Urbana

nos cinco continentes-, organizado por Nicholas Ganz, a obra oferece uma visão sobre a arte urbana e a

explosão criativa que a caracterizou por pelo menos os últimos 35 anos. O livro conduz o leitor numa aventura

por cinco continentes do globo. Apresentando mais de 2.000 imagens de obras e de mais de 180 artistas

internacionais, o autor combina suas experiências diretas com os depoimentos dos próprios artistas. 50 'Graffiti Woman (2006), organizado por Nicholas Ganz, celebra a ascensão de grafiteiros e artistas de rua,

mostrando o trabalho de mais de 125 mulheres, desde as que estão no topo do jogo, como a Lady Pink de Nova

York e o Mickey de Amsterdã, até uma galáxia de estrelas em ascensão. Acompanhado de citações dos próprios

artistas e apresentado pelo artista americano Swoon e a autora Nancy Macdonald. 51 Graffiti Argentina (2008), é uma colaboração do cineasta argentino Maximiliano Ruiz, e dos designers

gráficos Pauline Aubry, Damien E. Regazzoni, e Jorge Cordoba. A empolgante história visual que eles

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1990, inclusive relatando articulações com artistas brasileiros, pinturas políticas, e parte de

um universo para além das paredes do graffiti no país.

O livro Graffiti Brasil52, por exemplo, é um material produzido em colaboração

estrangeiros e brasileiros, fascinados pela criatividade das expressões urbanas brasileiras, a

obra documenta diversos estilos de graffiti e pixo e faz um apanhado de artistas urbanos,

focado na cidade de São Paulo.

O livro A Arte Urbana do Nordeste do Brasil53, por sua vez, é uma síntese em forma

de catálogo de diversos artistas nos nove estados da região nordeste, surgido de uma

necessidade de documentar, registrar e divulgar a produção de arte urbana nessa localidade

do país tradicionalmente menos privilegiada que as regiões centro-sudeste.

O livro Por Trás dos Muros: horizontes sociais do graffiti54, é uma publicação

voltada para a dimensão de inserção social dos jovens que praticam o graffiti, trazendo uma

perspectiva dessa prática como uma ferramenta de transformação de vida. A obra é de

responsabilidade do projeto Quixote55, constrói uma narrativa onde múltiplas vozes se

revezam, no intuito de incentivar o olhar sobre o graffiti e seus autores, convidando o leitor

a ampliar a percepção do ambiente urbano.

Além de tais produções bibliográficas fora do âmbito acadêmico, a arte urbana,

também é produzida com diferentes finalidades no mundo todo, como ao exemplo temos a

compilaram é complementada por entrevistas com artistas sobre a primeira eflorescência do graffiti na década

de 1990; sobre o movimento nos últimos anos; no uso subterrâneo de tags, grafite de trem e imagens políticas;

e nos esboços e desenhos que vieram da rua para influenciar a cultura visual do país. Mais de 500 fotografias

coloridas. 52 Graffiti Brasil (2010), é uma colaboração de; Tristan Manco, escritor, designer e diretor de arte da Inglaterra;

o coletivo Lost Art, é formado pelos fotógrafos brasileiros Ignácio Aronovich e Louise Chin; e Caleb Neelon,

que é artista e escritor de graffiti em Boston, Estados Unidos. O livro é um apanhado de mais de 300 fotografias,

que atravessam desde artistas amplamente reconhecidos como ‘Os Gemeos’ até o impacto visual das agressivas

manifestações do pixo, com o foco na cidade de São Paulo, mas passando por grandes capitais como Rio de

Janeiro, Recife, Olinda, Belo Horizonte e Porto Alegre. 53 A Arte Urbana no Nordeste do Brasil (2013), é uma coletânea organizada pelo produtor e artista visual

Narcélio Grud. A publicação foi realizada com apoio do BNDES, Banco do Nordeste e Governo Federal, e

serve como obra documental e portifólio de mais de 90 artistas do Nordeste do Brasil. O lançamento do livro

culminou com a realização do 1º Festival Concreto, evento internacional de arte urbana, sediado na

cidade de Fortaleza, Ceará em 2013. 54 Por Trás dos Muros: horizontes sociais do graffiti (2008), é organizado por Graziela Bedoian e Kátia

Menezes, e “revela as inspirações de jovens que encontraram no spray e no látex instrumentos para ir além:

algumas possibilidades concretas para a re-interpretação de realidades sociais e oportunidades singulares para

o florescimento de talentos. Rostos dispersos na multidão de São Paulo resgatam, no espaço entre-páginas, a

diversidade do espaço público – um legado adormecido pelo vai-e-vem frenético das grandes cidades. Um

sono que, às vezes, é interrompido, por pouco tempo, por poucos metros, pelas explosões de ccores e formas,

por novos alfabetos que nos clamam a prestar mais atenção em quem somos” (texto de Kátia Menezes, 2008). 55 O projeto Quixote é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), sem fins lucrativos,

ligada ao Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). O projeto Quixote

aposta na arte, na educação e na saúde como formas de aproximação e vínculo com jovens, promovendo

oficinas artísticas e adotando estratégias clínicas e sociais, onde criatividade, afeto e expressão caminhão junto.

Fonte: http://www.projetoquixote.org.br

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comunidade de Palmitas, no distrito de Pachuca, onde foi pintado o maior macromural56 já

visto no mundo, em uma parceiria entre o governo do México e o coletivo de artistas Germen

Crew, as fachadas de mais de inúmeras casas se transformaram em um só painel que ganhou

destaque por seu impacto social. Ou ainda, a cidade de Valparaíso, no Chile, que

transformou a arte urbana em um atrativo para seus visitantes, que fomenta o mercado

turístico na região.

Mais intrigante ainda é pensar, que a arte urbana, existe até em países devastados

pela guerra, como é o caso do Afeganistão57, uma região marcada pelo fundamentalismo

islâmico, tem parte de sua opressão rebatida pela voz de artistas como Marina Suliman e

Shamsia Hassani, mulheres e grafiteiras, espalham cor e protesto pelas ruas destruídas por

bombas. O exemplo, serve para salientar, que a arte urbana abarca amplos universos.

É importante também frisar que como essa prática vem ganhando grande destaque

por todo mundo, sua difusão chega a afetar amplas dimensões da sociedade, modificando

seu modo de ser feito conforme a situação. Uma vez que, em seu primórdio a prática preze

pela liberdade, criatividade e o exercício da diferença, a mesma também está sujeita a

apropriações mercadológicas, atualmente, existe uma ampla indústria que se adequa as

exigências do mercado de consumo e produz, todo tipo de produto com o rótulo da arte

urbana. Para além disso, uma nova categoria da arte urbana, de modo refinado conhecido

como Graffiti Fine Art58, se utiliza da linguagem oriunda das ruas para habitar as galerias,

por exemplo. Enfim, nesse momento, a discussão não se trata de legitimar ou deslegitimar

determinada forma de expressão, seja nas ruas, nos comércios, ou galerias, trata-se pois, de

instigar a percepção visual da cidade, alertando que existem diferentes acepções dessa

manifestação, trazendo à tona exemplos e contradições que põe em atrito predefinições sobre

a prática da arte urbana, e essa é uma das grandes motivações da pesquisa.

56 “Os artistas tiveram a missão de pintar 209 casas, sendo vinte mil metros quadrados de fachadas, para criar

um imenso arco-íris. A ação não teve somente um impacto visual pelas cores e formas, mas as 452 famílias

que ali moram, cerca de 1808 pessoas já estão começando a sentir a diferença no dia a dia, inclusive pelo índice

de violência entre jovens que diminuiu drasticamente.” http://misturaurbana.com/2015/08/artistas-urbanos-

pintam-uma-comunidade-inteira-mexico/ Acesso em: 22 abr. 2018 57“Muros e imóveis destruídos por bombas ganham cores, desenhos e frases. A opressão contra a mulher é

rebatida no deslizar do rolo de tinta e no encontro do spray com a parede. No Afeganistão, país marcado por

conflitos, intervenção, guerra e extremismo religioso, duas mulheres utilizam o graffiti e a arte como

ferramenta de luta e liberdade.” https://catracalivre.com.br/geral/criatividade/indicacao/no-afeganistao-

grafiteiras-apagam-sinais-da-guerra-e-violencia-com-tinta-e-spray/ Acesso em: 22 abr. 2018 58 “Em um mundo onde a semântica importa, os grafiteiros ao redor do mundo se perguntam o que exatamente

é o ‘Graffiti Fine Art‘. Afinal, uma vez que o graffiti deixa as ruas e vai para dentro das galerias e museu,

pode ser considerado graffiti?” http://misturaurbana.com/2013/06/graffiti-fine-art-o-documentario/ Acesso

em: 22 abr. 2018.

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Em função do foco dessa pesquisa, volto a salientar a investigação sobre a

manifestação dessa prática na cidade de Natal, Rio Grande do Norte. O que é certo, acerca

dos nossos objetivos, é que a narrativa mostra que a caligrafia urbana, a pintura e escrita

citadina, desafia a arquitetura em função que ela transpõe, não apenas o muro, mas o azulejo,

o tijolo, a placa de metal, aliás a cidade como um todo é um possível suporte para inusitadas

e inventivas formas de se apropriar, e a escrita é o conteúdo que se carrega e se dissemina

na pelas ruas. Vimos durante a pesquisa excêntricas ocupações visuais de espaços urbanos,

que vão desde telhados de prédios abandonados, placas de ‘outdoors’, pilastras de tijolo,

pneus, carros velhos, tapumes de ferro, entre outros. Essas escritas citadinas se manifestam

de diferentes modos inventivos, criativos e inusitados.

Procedendo a ideia de que a literatura menor é aquilo que uma minoria faz em uma

língua maior, podemos conceber a língua maior como o espetáculo das grandes luzes da

cidade, e a comunicação em massa, publicidade e outdoors, na medida em que a caligrafia

urbana seria, em oposição, equivalente às luzes dos vaga-lumes, que são aquelas que só

podem ser vistas na escuridão, na ausência de luz, nas margens.

Proponho pensar essa sugestão como um último recurso metafórico, a luz de Didi

Huberman (2011), na obra “a sobrevivência dos vaga-lumes”, o autor traz a imagem dos

vaga-lumes, em comparação da experiência de Pier Pasolini em 1975, em uma crítica a

situação política de seu tempo59, mesmo com a derrocada do fascismo em 1940, e Mussolini

executado, um terror ainda mais profundo se instaurava na Itália.

Pasolini evoca a imagem poética dos vaga-lumes para falar sobre esse processo

histórico de seu país, na qual uma ditadura consumista tomava conta dos valores do povo

italiano, o cineasta defendia o poder específico do povo e das culturas populares, para

reconhecer nelas uma capacidade de resistência histórica e política, a sobrevivência dos

vaga-lumes. Cogita-se pensar que os vaga-lumes teriam desaparecido, mas na procura de

seus sinais intermitentes, Didi-Huberman levanta a questão.

Mas como os vaga-lumes desapareceram ou “redesapareceram”? É somente aos

olhos que eles “desaparecem pura e simplesmente”. Seria bem mais justo dizer que

eles “se vão”, pura e simplesmente. Que eles “desaparecem” apenas na medida em

que o espectador renuncia a segui-los. Eles desaparecem de sua vista porque o

59 “Em 1º de fevereiro de 1975 – ou seja, trinta e quatro anos, contados dia a dia, ou melhor, noite por noite, após sua bela

carta sobre a aparição dos vaga-lumes, e nove meses exatamente antes de ser selvagemente assassinado, na madrugada,

numa praia em Ostia –, Pasolini publicava o Corriere della Sera, um artigo sobre a situação política de seu tempo. O texto

se intitulava “O vazio do poder na Itália”, mas será retomado nos Escritos Corsários com o título que se tornou famoso de

“O artigo dos vaga-lumes”. Ora, trata-se sobretudo, se posso dizer, do artigo da morte dos vaga-lumes, na Itália, os vaga-

lumes desapareceram, esses sinais humanos da inocência aniquilados pela noite – ou pela luz “feroz” dos projetores – do

fascismo triunfante.” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 25).

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espectador fica no seu lugar que não é mais o melhor lugar para vê-los. (DIDI-

HUBERMAN, 2011, p. 47).

A respeito dos vaga-lumes, é possível dizer que “eles estão, na ordem do dia, talvez

mesmo no centro de nossos modernos questionamentos científicos” (DIDI-HUBERMAN,

2011, p. 51), ainda mesmo tentando, disseca-los não nos ajude a compreendê-los, como

reitera mais adiante.

Seria criminoso e estúpido colocar os vaga-lumes sob um projetor acreditando assim

melhor observá-los. Assim como não serve de nada estudá-los, previamente mortos,

alfinetados sobre uma mesa de entomologista ou observados como coisas muito

antigas presas no âmbar há milhões de anos. Para conhecer os vaga-lumes, é preciso

observá-los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio

da noite, ainda que essa noite seja varrida por alguns ferozes projetores. Ainda que

por pouco tempo. Ainda que por pouca coisa a ser vista: é preciso cerca de cinco

mil vaga-lumes para produzir uma luz equivalente à de uma única vela. Assim como

existe uma literatura menor – como bem o mostraram Gilles Deleuze e Félix

Guattari a respeito de Kafka -, haveria uma luz menor possuindo os mesmos

aspectos filosóficos: “um forte coeficiente de desterritorialização”; “tudo ali é

político”; “tudo adquire um valor coletivo”, de modo que tudo ali fala do povo e das

“condições revolucionárias” imanentes à sua própria marginalização. (DIDI-

HUBERMAN, 2011, p. 52).

A figura metafórica dos vaga-lumes simboliza a experiência poético visual da

intermitência de luz, ou seja, de um intervalo de tempo irregular, entre cessar e recomeçar.

Ora, se os vaga-lumes podem ser compreendidos como luzes menores: desterritorializadas,

políticas e coletivas, possuem os mesmos aspectos filosóficos de uma literatura menor,

poderíamos trazer a analogia dos vaga-lumes aos escritores urbanos. Os escritores urbanos,

equivalem a lampejos de cor intermitentes, como pirilampos de tinta desenhando suas

formas de vida e resistência no mobiliário urbano, reitero, é nesse movimento as práticas

escritas urbanas desafiam a arquitetura citadina.

Não estamos aqui a propor um critério de julgamento de valor, para tais práticas,

dizendo as positivas ou negativas para a sociedade. Ora, uma vez que elas existem, o que

nos interessa é investigar de que modo se compõe, o que as impulsiona a continuar existindo,

intermitentemente, embora uma parcela da sociedade as condene, e incentive a coibição,

elas não cessam de se proliferar, seja em um graffiti elaborado, ou em um pixo violento,

enquanto houverem superfícies passíveis de serem riscadas, elas serão telas, não importa de

qual cor, para os escritores. A essa razão temos a analogia ao modo de se propagar dos vaga-

lumes, a dança das luzes que é vista na penumbra.

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[…] o fato de que a dança dos vaga-lumes se efetua justamente no meio das trevas.

E que nada mais é do que uma dança do desejo formando uma comunidade. [...] nos

vaga-lumes trata-se, antes de tudo, de uma exibição sexual. Os vaga-lumes não se

iluminam para iluminar um mundo que gostariam de “ver melhor”, não. (DIDI-

HUBERMAN, 2011, p. 55).

Fazendo uma alusão a exibição sexual dos vaga-lumes, em comparação ao caso da

caligrafia urbana, assim como os pirilampos não se iluminam para iluminar um mundo que

gostariam de “ver melhor”, não se trata de enxergar essa prática escrita de modo fanático

como uma forma de revolucionar o mundo através da pintura. Na verdade, a pesquisa

discorre no fato de perceber no processo, os inúmeros desejos que motivam essa prática, seja

de modo poético no intuito de contribuir com a cidade, ou seja o desejo egoísta de perpetuar

seu nome e vandalizar a cidade, ambos coexistem. Nos vaga-lumes, a exibição sexual é o

que viabiliza parte de sua reprodução, assim como na escrita citadina o desejo pelo risco,

pelo ato de fazer e a motivação que a impulsiona, é o que forja uma comunidade, ainda que

não seja a intenção inicial.

Seria assim possível, pensar à luz da experiência dos vaga-lumes, os escritores

urbanos como esses lampejos de cor e resistência, de um modo de vida não usual, que está

relacionado a uma reinvenção do fazer político.

Trata-se nada mais nada menos, efetivamente, de repensar nosso próprio “princípio

esperança” através do modo como o Outrora encontra o Agora para formar um

clarão, um brilho, uma constelação onde se libera alguma forma para nosso próprio

Futuro. Ainda que beirando o chão, ainda que emitindo uma luz bem fraca, ainda

que se deslocando lentamente, não desenham os vaga-lumes, rigorosamente

falando, uma tal constelação? Afirmar isso a partir do minúsculo exemplo dos vaga-

lumes é afirmar que em nosso modo de imaginar jaz fundamentalmente uma

condição para nosso modo de fazer política. A imaginação é política, eis o que

precisa ser levado em consideração. (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 60).

Se os centros urbanos exteriorizam o cinza, os edifícios, viadutos e rodovias,

expondo o ônus da arquitetura citadina, os escritores são como os vaga-lumes, suas ações e

atitudes são como lampejos de luz, colocando cor em paisagens acinzentadas, em graus e

escalas diferentes, mas de toda forma, pintando e modificando a cidade.

Sugiro, portanto, pensar um adensamento desse estudo, cada vez mais inserido em

minha própria experimentação escrita na rua, alinhada à articulação da escrita com a

vivência, um estudo cujo nome poderia se chamar, aliás já se chama Escrevivências. Sobre

a ideia de escreviver, pode-se dizer que, é um conceito em via de formação, pensando a

escrita como uma pedra bruta, a ser lapidada conforme o esmero do trabalho que desenvolve-

se sobre prática de escrever; e viver por sua vez, alinhado a essa perspectiva da escrita, está

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conciliado ao ato de vivenciar e registrar as experiências através da escrita, seja pelo suporte

de um diário, de um artigo, resenha, ou pelo pixo e graffiti no muro, todos esses meios em

si, implicam num registro do momento vivido, com suas respectivas distinções.

Essa investigação ofereceria um escopo cada vez mais consistente de análise das

escritas citadinas, na qual se construiria uma cartografia aliada a uma auto-etnografia, da

experimentação vivida de inserção no contexto da caligrafia urbana, capacitando, portanto,

desenvolver ainda mais no campo da teoria e prática, o equilíbrio da pesquisa intelectual

com a vivência artística.

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