Upload
others
View
3
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
“MULHER QUE FAZ HISTÓRIA, BUSCANDO A SUA GLÓRIA”: A IDENTIDADE FEMININA NO RAP “MÃE SOLO” DE CLANDESTINA
Érica Alessandra Paiva Rosa (UEM)
Resumo
Este trabalho visa discutir a construção identitária da mulher e o conceito de família a partir da produção artística feminina. Ancorado em um arcabouço teórico relacionado à literatura, à produção artística, ao movimento Hip Hop e aos estudos de identidade, o trabalho propõe uma leitura do poema do RAP “Mãe Solo” de Clandestina, lançado em Maringá (PR) em 2017. Tal RAP tematiza as dificuldades vivenciadas por mulheres que criam seus filhos sozinhas e questiona a “imagem de mulher” imposta socialmente. A proposta de análise aponta para um percurso de construção identitária que inicia como “resistência” e resulta em “projeto”, de acordo com a dinâmica das identidades discutidas por Castells (1999), além disso, a representação de família apresentada pelo RAP contesta o padrão legitimado. Desse modo, “Mãe Solo” colabora para uma educação emancipadora das mulheres, visto que busca a transformação da estrutura social na qual elas se encontram. Palavras-chave: RAP; Literatura; Identidade; Mulher; Família. Introdução
A arte sempre atuou como um meio de representação dos sujeitos,
abrangendo a expressão de sentimentos, a tematização de urgências e, muitas
vezes, o enfrentamento a padrões estabelecidos socialmente. A produção artística
colabora, assim, para a mobilização social em um contexto em que as pessoas
(re)agem, (des)constroem sentidos e se (re)definem por meio dela, o que a torna um
interessante meio de investigação sobre a construção de identidades. Nessa
conjuntura, o Hip Hop se destaca como um forte movimento estético, político e
cultural de enfrentamento às exclusões por meio da produção artística. Conforme
indicado por Hall (2003), no momento pós-colonial, os movimentos transversais e
transculturais surgem de diferentes formas e perturbam as relações estabelecidas
de dominação e resistência, eles reposicionam e deslocam a diferença. Em um
cenário em que o Hip Hop toma a identidade cultural como um instrumento de luta
para mostrar como seus membros querem ser representados, o RAP e as outras
manifestações artísticas são ferramentas no processo de contestação do poder
instituído e do projeto identitário hegemônico por ele proposto. Ao criarem suas
letras poéticas, os/as rappers “atribuem a si próprios o papel de transmitirem
carências, denúncias, necessidades, revoltas e informações [buscando] fazer um
discurso dentro de um vocabulário acessível com o intuito de informar e ampliar a
consciência da sociedade” (SOUZA; FIALHO; ARALDI, 2005, p. 21).
O objetivo deste trabalho é, portanto, verificar como o RAP “Mãe Solo”,
composto e gravado por Clandestina, apresenta o conceito de família a partir da
tematização da perspectiva da mulher e constrói a identidade dessa última.
Mulher que faz história, buscando a sua glória
Com mais de 20 anos de existência em Maringá (PR), o Hip Hop apresenta
uma pluralidade de produções artísticas dentre as quais notou-se pouca participação
feminina na cena do RAP nos anos iniciais desse movimento (ROSA; ANSELMO,
2018). Entretanto, a atuação das mulheres nesse meio vem crescendo
acentuadamente nesta década, tanto com trabalhos solo quanto integrando grupos
de RAP, alguns nomes de rappers de Maringá e região são: Lubs, Pig, JRM, Íz,
Yasmin, B.O., Tay, Girassol, Natkym e Clandestina. A existência de agrupamentos
femininos, como o coletivo E.L.A.H.S (Encontro Livre das Amantes do Hip Hop e
Skateboard), tem colaborado para essa mudança de cenário ao proporcionarem
espaços de ocupação feminina em setores considerados predominantemente
masculinos através da realização de eventos, oficinas e outras atividades. Nesses
agrupamentos, as mulheres se articulam para fomentar o trabalho umas das outras
e a divulgação dos mesmos.
O RAP “Mãe Solo” foi lançado em 2017 pela Casa de Pau Records, um
projeto de gravação de RAPs autorais realizado em Maringá. O intuito do projeto era
ser uma plataforma para a expansão da cultura do RAP da região norte do Paraná,
para isso ele apresentou em seu canal do Youtube o audiovisual de vinte faixas
gravadas ao longo 2017 com artistas novos da região, sendo cinco faixas de rappers
mulheres e outras duas gravadas com participações femininas.
“Mãe Solo” versa sobre as angústias, dificuldades e preconceitos vivenciados
por mulheres que criam seus filhos sozinhas, como também apresenta um discurso
questionador da “imagem de mulher” legitimada na atualidade: “Sociedade patriarcal
joga o peso nas costas/ Julgam que é derrota/ Padronizam o ideal de vitória/
Esposa, mãe, submissa, devota” (CLANDESTINA, 2017). Desse modo, o RAP
contesta a “identidade legitimadora” que, segundo Castells (1999, p. 24), é
“introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e
racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais”.
A imagem de família composta exclusivamente por mãe e filhos projeta uma
denúncia ao abandono realizado pelos homens, tanto do papel de companheiro da
mulher que se torna mãe – “Ser mãe solo poucos aguentariam,/ mas não foi algo
que elas optariam/ Se soubessem o vazio/ De encarar o mundo frio/ Sem o apoio
escolhido” (CLANDESTINA, 2017) –, quanto do papel de pai – “E o pai?/ É a
pergunta que fica/ Fácil escolher ficar de saída/ Viajar, pagar miséria de pensão/
Quando nem ajudam com um tostão/ Não dá carinho pra criar, nem atenção”
(CLANDESTINA, 2017). Nesse sentido, o RAP problematiza a ausência da figura
masculina na vida da mulher e dos filhos, como também denuncia o pensamento
machista sobre o dever de criação desses: “Estado civil é diferente de maternal/
pode ser casada ou solteira que ainda não recebe o seu valor real/ Acham que é um
dom feminino, natural/ assumir sozinha a responsabilidade de um casal”
(CLANDESTINA, 2017). Os preconceitos presentes no mercado de trabalho com
relação à maternidade também são abordados pelo RAP: “Se o patrão souber da
maternidade/ não te contratam em nenhum canto da cidade/ se a bebê tiver doente,
trabalhe sorridente/ porque não é um problema que a empresa sente”
(CLANDESTINA, 2017). Assim, tanto a ausência da figura masculina quanto o
pensamento patriarcal reproduzido pela sociedade colaboram para a produção de
desigualdades e exclusão social vivenciadas pelas mulheres que se encontram em
posições desvalorizadas pela lógica da dominação, por isso constroem “trincheiras
de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam
as instituições da sociedade” (CASTELLS, 1999, p. 24), como exposto no trecho a
seguir: “A força de uma mãe que resiste/ Nos ensina o flow para além do beat/
Enfrentar qualquer barreira sem tremelique/ Por mais difícil que possa parecer/
Sempre ‘tamo’ pra crer que vamos vencer [...]” (CLANDESTINA, 2017).
O RAP constrói, assim, um discurso de valorização das mulheres a partir das
imagens de força e de coragem: “A vida é um jogo, então chega de derrota/ Mulher
que faz história, buscando a sua glória/ Nada vai impedir a gente de lutar/
Acreditando em nós em primeiro lugar” (CLANDESTINA, 2017). O fato de
Clandestina utilizar o RAP como instrumento para materializar seu posicionamento
faz com que o processo de construção identitária da mulher expresso nesse poema,
vá da identidade de resistência para a identidade de projeto, já que por meio de sua
própria produção cultural a rapper constrói uma nova identidade “capaz de redefinir
sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a
estrutura social” (CASTELLS, 1999, p. 24). A rapper atua, justamente, em prol da
conscientização das mulheres e da sociedade como um todo para que os
preconceitos e estereótipos atribuídos a elas sejam desconstruídos e suas posições
sociais sejam redefinidas.
Considerações finais
A representação de família apresentada pelo RAP contesta o padrão familiar
legitimado e valorizado pela sociedade brasileira. Desse modo, o RAP atua como
um instrumento de denúncia do abandono masculino, do preconceito às mulheres e
das desigualdades provocadas pela reprodução social dessas situações. Ao ser uma
mídia que aborda tais questões e projeta um percurso de construção identitária que
inicia com a identidade de resistência e resulta na identidade de projeto, o RAP “Mãe
Solo” colabora para uma educação emancipadora das mulheres, principalmente das
mulheres jovens que consomem mais facilmente tal gênero. Referências
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade: A era da economia, sociedade e cultura. Vol 2. São Paulo: Paz e Terra, 1999. CLANDESTINA. Mãe Solo. Maringá: Casa de Pau Records, 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=biVEVYL6cz4>. Acesso em: 25 mar. 2019. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Unesco, 2003.
ROSA, Érica. A. P.; ANSELMO, Beatriz M. A cena do Hip Hop em Maringá e região metropolitana: A construção identitária da mulher rapper em “Voz de Mina”. In: Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos e Literários, 5., 2018, Maringá. Anais... Políticas públicas, ética, internacionalização e pesquisa: discursos, práticas e desafios, Maringá, 2018. p. 383-395. SOUZA, J.; FIALHO, V.; ARALDI, J. Hip hop: da rua para a escola. Porto Alegre: Sulina, 2005.