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  1 Projeções imaginárias do sujeito- F o lha : uma análise discursiva das marcas de auto e correferência nos editoriais da F o lha d e S.Pa ulo aos 90 anos  1  OLIVEIRA, Cândida de (Mestre em Jornalismo)  2  Universidade Federal de Santa Catarina/SC Resumo: O artigo apresenta uma análise dos editoriais publicados na  Fol ha de S.P aul o em 2011, ano que marca o nonagésimo aniversário do jornal, a fim de demonstrar como as marcas de auto e correferência funcionam no discurso jornalístico conferindo um dizer sobre o próprio sujeito que enuncia. Para tanto, ancora-se nos  pre ssu pos tos da te ori a do Jo rna lis mo e da Análi se do Dis cur so (AD ) fra nce sa . Con sidera-se que o dis cu rso  jor nal íst ico da Fol ha deriva de uma formação discursiva específica: a formação discursiva da grande imprensa  bra sil eir a (FDG IB) ; e é prof eri do po r um su jei to en unc ia dor disti nt o: o su jei to-  Fol ha, cuja imagem projetada no discurso é a de um lugar-social multifacetado. A partir da análise, verificam-se cinco imagens    da tradição, de mediadora autorizada (por ela mesma), de agente de denúncia, de protetora dos interesses dos cidadãos e de lugar da verdade    a partir das quais o sujeito-  Fo lh a enuncia. Tais imagens se intercalam, sustentando o funcionamento discursivo do sujeito-  Fo lh a, interpondo aí o poder de dizer e se fazer sujeito de uma ou de outra forma. Palavras-chave:  Fol ha de S. Pa ul o; auto e correferência; discurso jornalístico; análise do discurso; editoriais Introdução O trabalho apresenta uma análise dos editoriais publicados na  Fo lh a de S. Pa ul o 3  em 2011, ano que marca o nonagésimo aniversário do jornal, a fim de demonstrar como as marcas de auto e correferência funcionam no discurso jornalístico conferindo um dizer sobre o próprio sujeito que enuncia. Para tanto, ancora-se nos pressupostos da teoria do Jornalismo e da Análise do Discurso (AD) francesa, a partir das contribuições de Pêcheux (1997; 2010).  4  A autorreferência vem sendo considerada, em vários estudos, como uma nova estratégia discursiva pela qual o jornalismo tece novos padrões de confiabilidade e credibilidade. Fausto  Ne to ( 20 06 , 2 00 8) , po r e xe mp lo , a fir ma tra ta -s e d e u ma da s tr an sf or ma çõ es qu e i nc id em so br e os “modos de dizer” do jornalismo e seu próprio lugar interpretativo. A ênfase recai, portanto, sobre o lugar discursivo que o jornalismo cria para si, como modo de reforçar sua legitimidade 1 Trabalho apresentado no G T História da Mídia Impressa, do 10º En contro Naci onal d e His tória da Mídia, 20 15. 2 Graduada em Comunicação Social, Habilitação Jornalismo, pela Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul    UNIJUÍ/RS; Mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina    UFSC/SC. Endereço eletrônico: [email protected] 3 Neste trabalho, o nome do jornal será substituído somente por   Folha. Quando precedido de sujeito (sujeito-  Fol ha ) faz referência ao sujeito que enuncia em nome do jornal. Em negrito ( Folha)  representa as marcas discursivas de como o jornal é denominado nos editoriais. 4 Os editoriais analisados constituem o corpus  de uma pesquisa mais ampla, sendo apresentada aqui somente  pa rte de st a an ál is e co m um a s ín te se dos pri nc ip ai s resu lt ad os so br e o tema em qu es o. V er Oli ve ir a (2 01 2) .

Projeções imaginárias do sujeito-Folha

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Uma análise discursiva das marcas de auto e correferência nos editoriais da Folha de S.Paulo aos 90 anos. Trabalho apresentado ALCAR 2015.

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    Projees imaginrias do sujeito-Folha:

    uma anlise discursiva das marcas de auto e correferncia

    nos editoriais da Folha de S.Paulo aos 90 anos 1

    OLIVEIRA, Cndida de (Mestre em Jornalismo) 2

    Universidade Federal de Santa Catarina/SC

    Resumo: O artigo apresenta uma anlise dos editoriais publicados na Folha de S.Paulo em 2011, ano que marca o

    nonagsimo aniversrio do jornal, a fim de demonstrar como as marcas de auto e correferncia funcionam no

    discurso jornalstico conferindo um dizer sobre o prprio sujeito que enuncia. Para tanto, ancora-se nos

    pressupostos da teoria do Jornalismo e da Anlise do Discurso (AD) francesa. Considera-se que o discurso

    jornalstico da Folha deriva de uma formao discursiva especfica: a formao discursiva da grande imprensa

    brasileira (FDGIB); e proferido por um sujeito enunciador distinto: o sujeito-Folha, cuja imagem projetada no

    discurso a de um lugar-social multifacetado. A partir da anlise, verificam-se cinco imagens da tradio, de mediadora autorizada (por ela mesma), de agente de denncia, de protetora dos interesses dos cidados e de lugar da

    verdade a partir das quais o sujeito-Folha enuncia. Tais imagens se intercalam, sustentando o funcionamento discursivo do sujeito-Folha, interpondo a o poder de dizer e se fazer sujeito de uma ou de outra forma.

    Palavras-chave: Folha de S.Paulo; auto e correferncia; discurso jornalstico; anlise do discurso; editoriais

    Introduo

    O trabalho apresenta uma anlise dos editoriais publicados na Folha de S.Paulo3 em

    2011, ano que marca o nonagsimo aniversrio do jornal, a fim de demonstrar como as marcas

    de auto e correferncia funcionam no discurso jornalstico conferindo um dizer sobre o prprio

    sujeito que enuncia. Para tanto, ancora-se nos pressupostos da teoria do Jornalismo e da Anlise

    do Discurso (AD) francesa, a partir das contribuies de Pcheux (1997; 2010). 4

    A autorreferncia vem sendo considerada, em vrios estudos, como uma nova estratgia

    discursiva pela qual o jornalismo tece novos padres de confiabilidade e credibilidade. Fausto

    Neto (2006, 2008), por exemplo, afirma trata-se de uma das transformaes que incidem sobre

    os modos de dizer do jornalismo e seu prprio lugar interpretativo. A nfase recai, portanto,

    sobre o lugar discursivo que o jornalismo cria para si, como modo de reforar sua legitimidade

    1 Trabalho apresentado no GT Histria da Mdia Impressa, do 10 Encontro Nacional de Histria da Mdia, 2015.

    2 Graduada em Comunicao Social, Habilitao Jornalismo, pela Universidade do Noroeste do Estado do Rio

    Grande do Sul UNIJU/RS; Mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC/SC. Endereo eletrnico: [email protected]

    3 Neste trabalho, o nome do jornal ser substitudo somente por Folha. Quando precedido de sujeito (sujeito-

    Folha) faz referncia ao sujeito que enuncia em nome do jornal. Em negrito (Folha) representa as marcas discursivas

    de como o jornal denominado nos editoriais.

    4 Os editoriais analisados constituem o corpus de uma pesquisa mais ampla, sendo apresentada aqui somente

    parte desta anlise com uma sntese dos principais resultados sobre o tema em questo. Ver Oliveira (2012).

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    de intrprete da realidade.5

    Mas h tambm a correferncia que, correspondendo a propriedade que tm duas

    palavras ou sequncias de se referirem ao mesmo referente, segundo proposto por Charaudeau

    e Maingueneau (2006, p. 142), pode indicar expresses que remetem para o prprio jornal e

    suas prticas. Neste trabalho, observam-se as marcas de auto e correferncia identificadas como

    formas pelas quais o jornal denomina a si prprio e realidade que envolve suas prticas, seu

    fazer jornalstico.

    Esse dizer sobre si tomado aqui em relao s noo de formaes imaginrias e de

    formao discursiva (FD) inter-relacionadas6. Assim, considera-se que o discurso jornalstico da

    Folha deriva de uma FD especfica: a formao discursiva da grande imprensa brasileira

    (FDGIB); e proferido por um sujeito enunciador distinto: o sujeito-Folha, cuja imagem

    projetada no discurso a do lugar-social que este sujeito imagina ocupar na sociedade e

    apontam para a posio-sujeito que este assume no interior do dizer. 7

    Deste modo, na sequncia do texto, caracteriza-se a FDGIB (apresentada aqui como

    uma construo terico-metodolgica utilizada para entender como funciona o discurso da

    Folha) e aborda-se a instaurao, no interior desta FD, da posio-sujeito a partir da qual o

    sujeito-Folha enuncia. Em seguida, apresenta-se uma anlise das projees imaginrias do

    sujeito-Folha aos 90 anos, enquanto lugar-social no qual ele imaginariamente se inscreve,

    considerando-se as marcas de auto e correferncia identificadas nos editoriais.

    5 Para Fausto Neto (2006), as estratgias de autorreferncia ganham formas atravs de indicaes diversas, desde

    aquelas sobre as quais a cultura jornalstica imagina serem seus fundamentos (calcados nas ideologias jornalsticas) at outras nas quais se misturam a especificidade do jornalismo com formas de natureza mercadolgica.

    6 concepo de discurso como efeito de sentido entre locutores, produzido a partir de determinadas condies de produo que o sustentam (PECHEUX, 2010), articulam-se as noes de formaes imaginrias como aquelas que colocam em evidncia os protagonistas do discurso e o referente e de formao discursiva (FD), possibilitando-se assim estudar as condies de produo levando em conta a exterioridade e as determinaes

    histricas que caracterizam o processo discursivo. A noo de FD nasce em Foucault (2008) e ressignificada por

    Pcheux (1997) como sendo uma estrutura de dizer histrica e ideologicamente determinada, onde o sujeito est em

    relao com o discurso e a ideologia a partir de uma posio, um lugar estabelecido pela estrutura de uma dada

    formao social. A FD, determinada pelo interdiscurso (conjunto do dizvel historicamente definido, espao do j-dito

    e a dizer), organiza o discurso determinando o que pode e deve ser dito, e tambm o que no pode e no deve ser dito.

    7 Pcheux (1997) observa que todo discurso supe acionar lugares de fala nos quais os sujeitos participantes do

    processo discursivo sero representados. Esse lugar, que social, representa a prpria subjetividade, sendo marcada

    pela historicidade, pela ideologia e atravessada pelo inconsciente (PCHEUX; FUCHS, 2010). O lugar-social,

    portanto, refere-se projeo imaginria que o sujeito faz de si, e no deve ser tomado como uma suposta

    concretude, pois o sujeito sempre atravessado por desigualdades e contradies. A posio-sujeito, por sua vez,

    representa o sujeito discursivamente. Assim, as formaes imaginrias comportam imagens dos lugares-sociais dos

    interlocutores do discurso, nas quais os sujeitos imaginariamente se inscrevem, mas apontam para posies-sujeito

    assumidas no interior do dizer. So as posies-sujeito que fazem o discurso significar, levando em conta o contexto

    scio histrico e a exterioridade.

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    1 A constituio da formao discursiva da grande imprensa brasileira (FDGIB)

    Entende-se por FDGIB uma estrutura de dizer especfica que abriga saberes

    mobilizados por jornais ligados s grandes corporaes de mdia do pas, e que so

    representativos tanto da instituio jornalstica8 quanto do sistema econmico capitalista

    neoliberal, ambos mecanismos estruturantes que regulam as atividades dessas corporaes.

    Conforme Resende (2007, p. 85), a grande imprensa brasileira consolida-se regulada pela

    tendncia poltica burguesa de oposicionismo ao governo associada tendncia neoliberal que

    tem o mercado como um agente que define como se deve falar nos jornais (grifos do autor).9

    Entretanto, a grande imprensa brasileira tambm marcada por um forte trao

    autoritrio, pois carrega em seu cerne um modelo inserido desde o perodo colonial, em que

    jornais eram geridos como uma propriedade familiar em linhas de censura e autocensura.10 Isso

    ajudou a consolidar a cultura autoritria e acrtica (KUCINSKI, 1998) que marca o jornalismo

    brasileiro e dificulta a atuao dos jornalistas at hoje, revelando que os interesses da empresa

    jornalstica nem sempre so condizentes com a instituio que ela representa.

    Todavia, apesar das crticas, os jornais que compem a grande imprensa brasileira ainda

    so considerados de referncia para o jornalismo praticado no Brasil.11 Observa-se ainda que a

    imprensa brasileira teve importante papel na luta pela democracia no Brasil, tanto no perodo da

    Primeira Repblica (1889-1930) quanto no perodo de redemocratizao. Por outro lado, a

    grande imprensa apoiou a ditadura militar (1964-1985) (ROMANCINI; LAGO, 2007;

    KUCINCKI, 1998). Para Fonseca (2011), justamente nesses perodos os grandes jornais

    manifestaram uma baixa propenso ou mesmo uma reao contrria no que diz respeito a

    debates sociais importantes. Aliado aos movimentos de modernizao e oligopolizao, que

    ocorreram aps a redemocratizao, tais posicionamentos revelam o interesse dos jornais de

    tentar manter o status quo de grande imprensa, de privilegiar os interesses da empresa 8 O estatuto de instituio do jornalismo deriva de todo um processo social e histrico que o legitima e o autoriza

    a apresentar-se como intrprete da realidade. Esse estatuto est ligado existncia de toda uma ideologia jornalstica

    (TRAQUINA, 2005) e de um fazer-saber especfico que permitem o reconhecimento pblico do jornalismo

    enquanto instituio representativa do interesse pblico e do direito informao (SOUZA, 2008).

    9 As regras de formao que caracterizam a FDGIB se constituem a partir do surgimento e reconfiguraes da

    grande imprensa brasileira, processo que remonta ao incio sculo XX, quando os jornais passam da fase artesanal

    industrial, impelidos a seguir uma lgica de mercado regulada por demandas tcnicas e operacionais que impem um

    discurso mais formatado, baseado em preceitos como verdade e objetividade (RESENDE, 2007).

    10 Conforme Mariani (2003) e Resende (2007), traos dos primeiros jornais (Correio Brasiliense e Gazeta do Rio

    de Janeiro) contriburam para a instaurao de certo pudor no discurso jornalstico.

    11 Em grande medida, porque persiste certa homogeneizao nas prticas jornalsticas dos grandes jornais, o que

    provoca um certo apagamento da viso burguesa e mascara a ideologia neoliberal que subjaz nas publicaes.

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    enquanto organizao privada e capitalista.

    Todavia, a grande imprensa brasileira no homognea, visto que composta por

    distintos veculos jornalsticos. Assim, a FDGIB agrega em seu interior posies-sujeito

    distintas, as quais so ocupadas pelos sujeitos que enunciam o discurso jornalstico desses

    grandes veculos. Em relao ao jornalismo dirio e impresso, uma das posies-sujeito que

    mais se destacam no interior da FDGIB a que sustenta o discurso jornalstico da Folha.

    1.1 A instaurao da posio do sujeito-Folha no interior da FDGIB

    A posio-sujeito que sustenta o discurso jornalstico da Folha instaura-se no interior da

    FDGIB quando fundado o jornal Folha da Noite, em 1921, por iniciativa de Olival Costa,

    Pedro Cunha e um grupo de jornalistas egressos do jornal O Estado de S. Paulo. Eles tinham

    como objetivo atender a um pblico leitor mais amplo e de classes menos favorecidas, como os

    operrios, embora isso acabe no ocorrendo.12

    Essa instaurao representa uma fragmentao da forma-sujeito da FDGIB e um

    questionamento dos saberes caractersticos dela13. A tomada de posio do grupo de jornalistas

    dispostos a construir um novo jornal voltado para um outro pblico que no o atendido pelo O

    Estado de S.Paulo contesta os saberes que determinavam o modo de fazer jornalismo na grande

    imprensa da poca. Assim, abre-se espao no interior da FDGIB para a instaurao de uma

    nova posio-sujeito que provoca uma reconfigurao dos saberes da referida FD, e vai se

    relacionar de forma tensa/divergente com outra posio-sujeito inscrita no interior da FDGIB

    a ocupada pelo jornal O Estado de S. Paulo. 14

    Entretanto, essa nova posio-sujeito ocupada pelo sujeito-Folha reconfigura-se vrias

    vezes. Desde sua fundao at hoje, a Folha passou por vrios grupos diferentes de

    empresrios15 e vrias foram as alteraes em sua poltica editorial, especialmente aps o

    12 Um boneco-smbolo o personagem Juca-Pato chegou a ser criado para identificar o segmento social que a Folha tinha pretenso de representar: o povo operrio. Porm traduzia mais a imagem da classe mdia baixa que

    emergia em So Paulo na poca e que o jornal acabaria por atender.

    13 A forma-sujeito corresponde ao sujeito histrico (ou universal) da FD. Articulada ao interdiscurso e por ele

    determinada, ela permite ao sujeito identificar-se com a FD. A forma-sujeito representa o ideal de homogeneidade

    dos saberes que caracterizam a FD e regula o que a FD determinada como vlido no discurso que a representa.

    14 Essa nova posio-sujeito significa uma nova forma de enunciar sentidos no seio da FDGIB: saberes que at

    ento estavam silenciados na FDGIB e recalcados no interdiscurso so reescritos na cena discursiva.

    15 Jos Nabantino Ramos adquiriu os jornais em 1945 e criou, em 1949, a Folha da Tarde. Em 1960, integrou os

    trs dirios num s passando a denomin-lo Folha de S.Paulo, o qual adquirido por Octavio Frias de Oliveira e

    Carlos Caldeira em 1962.

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    processo de modernizao tecnolgica do jornal viabilizado durante parte do perodo ditatorial

    (1968-1974). Em maio de 1978 criado o Conselho Editorial e formalmente elaborado o

    primeiro documento que sinaliza a construo de um novo projeto editorial para o jornal. 16 O

    discurso do jornal passa a ser delineado por uma tendncia editorial que exige cada vez mais

    qualidade tcnica e informativa na produo do jornal. (LINS DA SILVA, 2005).

    Vrias outras mudanas ocorreram no projeto editorial da Folha, construdo a partir de

    1980.17 Com o movimento das Diretas-j, em 1984, e sob a influncia do marketing, a Folha

    efetiva um realimento poltico, uma reorganizao de saberes e uma reconfigurao da posio-

    sujeito assumida pelo sujeito-Folha, o que permite ao jornal ocupar um lugar de liderana e

    destaque no cenrio nacional ao longo dos anos de 1980: os demais jornais brasileiros comeam

    a se apropriar de caractersticas que antes eram exclusivas da Folha.18

    A ideologia jornalstica que caracteriza o lugar-social no qual o sujeito-Folha se

    inscreve, baseada nos princpios de pluralidade, crtica e apartidarismo, importada do modelo

    norte-americano, mas tambm marcada pelo vis mercadolgico. 19 Esses e outros princpios

    incorporados posteriormente, como a noo de servio pblico, de didatismo, e a necessidade

    de se obter informaes exclusivas, inditas e de impacto, contribuem para dar legitimidade ao

    discurso jornalstico da Folha.

    16 Na gesto de Octvio Frias pai, a poltica editorial de Nabantino mantida, pois a tarefa era enfrentar as

    dificuldades econmicas e conflitos polticos e sociais emergentes no perodo, marcado pelo golpe militar em 1964. A

    Folha, assim como a maioria dos grandes jornais, decide apoiar a ditadura tendo em vista o modelo de

    desenvolvimento que os militares propunham e que favorecia o crescimento da imprensa (ROMANCINI; LAGO,

    2007). Aps 1974 que os dirigentes voltam-se linha editorial do jornal a fim de moldar uma poltica editorial

    prpria, mas devido priso do jornalista Loureno Diafria, em 1977, isso s se efetiva a partir de 1978.

    17 Para Lins da Silva (2005, p. 76), o Projeto Folha tal como conhecido hoje comea a tomar forma em 1981, quando circula um documento intitulado A Folha e Alguns Passos Que Preciso Dar. 18 A Folha de S.Paulo v, no processo de abertura democrtica, uma chance de reorganizar seu discurso.

    Conforme Lins da Silva (2005, p. 103), um ms aps a votao das Diretas-J, o Projeto Folha reestruturado, consolidando princpios editoriais do jornal com questes tcnicas e organizacionais. O documento (...) intitulado A Folha depois das Diretas-j seria o mais importante de todo o processo de definio do projeto. Ele a matriz, a partir da qual os documentos seguintes sero apenas verses atualizadas. J, para Kucinski (1998), o que se seguiu foi uma rejeio do projeto editorial anteriormente traado por Cludio Abramo, cuja diretriz era apresentar a Folha

    como um espao de pluralidade opinativa e instituir alianas com a sociedade. Para o autor, o marketing inverteu a

    lgica do jornalismo: a Folha passou a no falar mais em nome do interesse pblico, mas em nome do interesse de

    seu leitorado com vistas a atingir seus prprios interesses.

    19 Lins da Silva (2005, p. 128) reconhece que no h nada de revolucionrio no que o projeto prope. Ao contrrio, pode-se dizer que a Folha retoma e revigora no Brasil princpios elementares de sustentao ideolgica do

    jornalismo norte-americano, reforando a chamada ideologia burguesa do jornalismo. O pluralismo e o apartidarismo so necessrios no porque eles representam uma objetividade eticamente desejvel nem porque eles

    signifiquem que o jornal capaz de representar o real sem deformaes, mas apenas porque o pblico que consome o

    jornal composto por pessoas com diferentes vises de mundo (...). A lgica no tica nem poltica. apenas

    mercadolgica (LINS DA SILVA, 2005, p. 130).

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    O Projeto Folha representa, assim, um marco de institucionalizao de uma lgica

    empresarial mais ampla e de profissionalizao jornalstica para o mercado de jornais no Brasil.

    Porm, diferentemente do modelo norte-americano, dissimula a objetividade inscrevendo-se na

    lgica de mercado. este posicionamento que orienta o tom do discurso da Folha, chegando

    a ser intimista (BERGER, 1998) na forma como trata os assuntos e temas que aborda.

    Entretanto, desse cenrio de reconfiguraes do Projeto Folha que a Folha foi

    constituindo um certo saber sobre o fazer jornal, instaurando uma posio-sujeito slida no

    interior da FDGIB. Esse saber se manifesta e se materializa nas edies do jornal, na forma

    como os temas so apresentados em cadernos, com traos visuais especficos, indicando a

    existncia de uma arquitetura prpria construda pela Folha e tambm a existncia de um

    pblico distinto.20 As reformulaes e referncias ao projeto editorial (e grfico) funcionam

    como mecanismos de autoafirmao e consagrao da posio do sujeito-Folha, sendo tambm

    o que o distingue a Folha dos demais grandes jornais da imprensa brasileira. Nesse processo,

    importa compreender como a imagem desse sujeito construdo discursivamente no jornal.

    2 O lugar-social do sujeito-Folha aos 90 anos a partir dos editoriais

    Nos editoriais, o sujeito-Folha enuncia sobre si, projetando uma imagem discursiva

    sobre o que a Folha, sobre o lugar-social que ela imagina ocupar. Trabalha-se aqui com a

    noo de formaes imaginrias, trabalhada na Anlise do Discurso (AD)21. Nesse sentido,

    reitera-se que no se trata de entender o que o sujeito-Folha diz, mas sim acompanhar o

    processo discursivo em pauta para compreender como esse discurso, ao funcionar de uma

    maneira e no de outra, produz efeitos de sentidos indicadores do lugar-social a partir do qual

    este sujeito enuncia, e da posio-sujeito na qual o sujeito-Folha assume no interior do dizer.

    Dito de outro modo, o imaginrio que o sujeito-Folha faz de si mesmo indica a posio-

    20 A posio-sujeito representa discursivamente o lugar-social institucional do sujeito-Folha e as marcas

    discursivas que a caracterizam aparecem em todo o corpo do jornal, desde a primeira at a ltima, por meio de

    marcas que remetem ao projeto editorial e ao jornal. A forma de organizar os assuntos e temticas que aborda, seja no

    formato e organizao dos cadernos, na diviso dos temas ou gneros jornalsticos; as cores, o design e as imagens,

    todos esses elementos so pensados visando atingir o leitor e ajudam a configurar a imagem da Folha enquanto uma

    instituio jornalstica legtima.

    21 Segundo a AD, as formaes imaginrias tm a ver com o processo de interpelao do sujeito, pela ideologia e

    pelo inconsciente. Assim, considera-se que a imagem projetada no discurso no resulta de estratgias previamente

    estabelecidas pelo sujeito, com intenes ou suposta concretude de lugares sociais. Deve-se pensar o lugar como um

    imaginrio sobre ele, uma projeo que remete, por sua vez, posio-sujeito inscrita em uma FD com a qual o

    sujeito se identifica.

  • 7

    sujeito que ele assume ao enunciar e remete ao lugar-social construdo discursivamente a partir

    do qual a Folha realiza sua prtica discursiva. Interessa, portanto, compreender a construo

    discursiva de um imaginrio para o sujeito-Folha. A anlise apresentada a seguir tem incio com

    a identificao de certa regularidade que aponta um modo de funcionamento do discurso. Essa

    regularidade se d no nvel de organizao da estrutura lingustica e se refere s marcas de auto

    e correferncia enquanto mecanismos que acionam a projeo imaginria do sujeito-Folha.

    Neste recorte, a autorreferncia marca grande parte das sequncias discursivas (SDs)

    que o compem, designando o sujeito do discurso da Folha a partir de seu nome prprio

    abreviado e em negrito (Folha), representando a forma utilizada pelo prprio jornal para se

    referir a ele mesmo, conforme orienta seu Manual de Redao (FSP, 2007, p. 70). As marcas de

    correferncia so representadas por termos como jornal, peridico, publicao, pronomes

    demonstrativos este, esta etc.

    O olhar deslocado ento para os vocbulos ou expresses que se fazem presentes no

    discurso atribuindo valores ou avaliaes sobre o jornal e suas prticas. A partir disso, foram

    estabelecidos cinco blocos de SDs que, uma vez analisadas, permitiram identificar um

    imaginrio multifacetado, constitudo por 5 imagens diferentes. Para fins de exemplificao,

    apresentado neste trabalho apenas um quadro sntese com as principais marcas discursivas

    identificadas nas 34 SDs que foram analisadas de modo individualizado. Vejamos:

    Imagem Principais marcas Descrio do imaginrio

    BL

    OC

    O 1

    :

    Tra

    di

    o

    renovar compromisso editorial bsico; jornalismo crtico, pluralista e partidrio;

    projeto editorial; aniversrio de 90 anos; tradicionalmente

    Compromisso; Confiana; Forte;

    Consolidado; Tradio

    bom jornal; informaes corretas; orientao por critrios; foco em problemas; Bom jornal

    autocrtica; desconforto; jornalismo crtico; retificao/erramos; no advoga em causa

    prpria

    Seriedade/Maturidade/

    Responsvel; Lder

    autonomia; no depende de publicidade governamental; jornalismo livre; interpelao

    jornalstica de agentes pblicos; apontar erros, cobrar compromissos, revelar

    irregularidades; fiscalizar autoridades; apartidarismo

    Autonomia; Quarto Poder;

    Jornalismo livre; Jornalismo

    neutro/imparcial

    leitor que acompanha transformaes; inovao; mudana; leitor com diversas

    inclinaes; ponto de vista da Folha

    Prximo ao leitor/ Representante

    do leitor; Formadora de opinio

    BL

    OC

    O 2

    :

    Med

    iadora

    au

    tori

    zada

    esta Folha defende/defendeu; J se defendeu neste espao; este jornal defendeu; saudado

    pela Folha; esta Folha j se manifestou mais de uma vez contra; como esta Folha tem

    defendido

    Defensora de causas; Mediadora;

    Intercede apontando direes

    como afirmaram ontem em artigo neste jornal, porm Centralizadora

    o jornal lembrava; no editorial j reconhecia; divulgado neste final de semana Reiteradora de rumos

    pesquisa Datafolha; Informaes srias e legtimas

    BL

    OC

    O 3

    :

    Agen

    te d

    e

    den

    n

    cia

    revelado por esta Folha em junho; testemunhada por reportagem; registros revelam;

    como mostrou reportagem na Folha; esta Folha revelou num primeiro momento; na

    ltima sexta o jornal noticiou; como revelou a/esta Folha; a Folha mostrou

    Testemunha dos fatos;

    Revelao; Expe/mostra

    denncia; esquema irregular; pior escndalo; suspeitas, indevido, se no ilcito; confusa,

    se no suspeita; no se trata de levantar suspeitas, mas; pontos obscuros; verdade

    A Folha no apenas revela, ele

    denuncia em nome da verdade

    disse; negou; confirmou; entrevista por escrito; citaes entre aspas Afirmao baseada em Provas

  • 8

    BL

    OC

    O 4

    :

    Pro

    teto

    ra d

    os

    inte

    ress

    es d

    os

    cidados

    contribuinte brasileiro; dinheiro pblico; constituio;

    um anseio evidente da opinio pblica; cidado; direito de conhecer; interesses do

    consumidor; o consumidor sabe; acesso livre; acesso pblico; oficialmente assegurado;

    direito dos cidados

    Interesses dos cidados/

    Contribuintes/ Consumidores;

    Direito informao;

    Interesse pblico

    s no deu certo porque foi flagrada e exposta por esta Folha; agora se sabe, graas

    reportagem da Folha; a pedido do jornal; aps iniciativa desta Folha

    Protagonista; Influente = em

    favor do cidado; Articulador

    BL

    OC

    O 5

    :

    Lugar

    da

    ver

    dade

    como constatou reportagem da Folha; comprova levantamento feito pela Folha; o fato

    constatado em reportagem desta Folha; reportagem da Folha traz constatao

    preocupante; os dados tabulados por esta Folha confirmam o que j se intua;

    Verificao in loco; Autenticao

    Lugar do bvio; Objetividade

    a realidade flagrada em reportagem nesta Folha, mais uma prova o que se constata;

    fatos incontestes; a crena foi atropelada pelos fatos; os fatos desmentem idealizaes Certeza dos fatos; Objetividade

    Quadro-Sntese O imaginrio do sujeito-Folha atravs da auto e correferncia Fonte: Oliveira (2012, p. 195-196).

    BLOCO 1: a Folha da tradio. Essa imagem construda discursivamente pela

    reiterao dos princpios editoriais que norteiam a publicao, remetendo para o lugar da

    organizao jornalstica que tem no compromisso o elo para representar a relao com a

    sociedade brasileira e com seu leitorado. Elementos j-ditos so mobilizados pelo trabalho da

    memria discursiva22, indicando um lugar historicamente constitudo e legitimado pela sua

    trajetria que convocada cena discursiva pela aluso do dizer ao aniversrio de 90 anos do

    jornal. Essa relao de sentidos projeta a imagem de um jornal consolidado, pois detentor de um

    projeto editorial slido, de princpios um jornalismo crtico, pluralista e apartidrio que j

    so bsicos prtica jornalstica que realiza. 23

    Alm disso, projetado o imaginrio do que seja um bom jornal: aquele que, alm de

    publicar informaes corretas, possui critrio que o permite assim ser. A correferncia

    Folha pelo uso da expresso deste jornal retoma o enunciado anterior pela repetio,

    associando ao sujeito o sentido de bom jornal, qualificando-o. Ou seja, a prpria Folha se

    autodenomina como sendo bom jornal. O critrio para ser bom jornal, no dizer da Folha,

    focalizar problemas coletivos e fiscalizar a atuao dos agentes pblicos. Entretanto, os

    enunciados que dizem da necessidade de fiscalizar... e disso decorrer a atitude de permanente

    interpelao jornalstica das autoridades, faz emergir no discurso sentidos derivados da

    concepo de jornalismo como Quarto Poder, que tem como funo proteger a sociedade de

    22 A noo de memria discursiva um dos constructos tericos da AD. Armazenada no nvel do interdiscurso,

    ela contm tudo aquilo que j foi dito e faz irromper no fio do discurso (intradiscurso) palavras e expresses que j

    foram ditas, retomando-as, repetindo-as, refutando-as ou ressignificando-as, dependendo do contexto em que o

    discurso proferido.

    23 A Folha defende o apartidarismo no sentido de rechaar todo alinhamento com partidos polticos, grupos econmicos ou correntes de opinio, retomando o jornal como contraposio ao poder partidrio e ideolgico. Essa idealizao, construda discursiva e historicamente como se fosse possvel uma prtica jornalstica neutra e imparcial,

    mantida pela posio de pretensa iseno/objetividade assumida pela Folha.

  • 9

    eventuais abusos de autoridades dos demais poderes do Estado Democrtico de Direito. Assim,

    a folha se apresenta como vigilante do exerccio de poder.

    H tambm um esforo para construo da imagem da Folha como um lugar que

    abriga o controverso na antecipao imaginria da sociedade como lugar de multiplicidade.

    Entretanto, o enunciado de abrigar diversidade e opinies contraditrias resvala para seu

    prprio ponto de vista, reduzindo o espao do contraditrio no jornal, o que, por outro lado,

    indica-o como formador de opinio. O mesmo movimento discursivo de

    deslizamento/substituio acontece quando da imagem da sociedade passa-se para o leitor

    (leitorado). A imagem de ser um lugar de pluralidade reivindicada pelo jornal aparece pela

    busca de proximidade com o leitor, motivado pelo objetivo de atender as demandas que lhe

    chegam deste. Verifica-se assim que a pluralidade que o jornal diz defender restrita aos

    interesses do leitorado do jornal e do prprio jornal.

    Nas sequncias deste primeiro bloco, o imaginrio do sujeito-Folha projetado a partir

    do trabalho de memria que faz emergir no fio do discurso concepes de jornalismo que foram

    sendo constitudas ao longo da criao e implementao e das reconfiguraes do Projeto

    Folha, isto , a partir das reconfiguraes discursivas desse sujeito, em consonncia com a

    posio de aderncia ao discurso jurdico, sob o qual se constitui historicamente o prprio

    discurso jornalstico. Desta forma, a imagem discursiva da Folha, construda nos editoriais a

    partir a reiterao do projeto editorial e valores que diz defender, diz de um lugar de fala

    baseado na tradio: um lugar consolidado, forte, de seriedade, de autonomia, um bom jornal,

    de proximidade para com o leitor, de representao do leitor, um lugar de confiana, enfim. Essa

    a imagem da tradio, do lugar-social construdo discursivamente para o sujeito-Folha.

    BLOCO 2: a Folha mediador autorizado. No conjunto de sequncias discursivas

    deste bloco, a presena das expresses esta Folha defende/defendeu, j se defendeu, neste

    espao, esta Folha tem defendido cria uma regularidade no dizer do jornal que parece,

    inicialmente, construir uma imagem da Folha como defensora de causas.24 A reiterao do

    posicionamento ou ponto de vista por ela defendido a mostra como interessada em

    determinadas questes que aborda e julga ser importante manifestar sua posio. Quando a

    Folha manifesta seu ponto de vista, posicionando-se, ela demarca seu lugar de mediao, de

    24 As causas referem-se aos diferentes assuntos tratados que esto inseridos em uma pauta mais abrangente, representando temas sociais que, se no interessam a toda sociedade, so de interesse de grande parcela desta.

  • 10

    negociao entre os que se identificam com esse ponto de vista trazido cena e os que no se

    identificam. Porm, ao colocar em cena seu posicionamento, pela reiterao do que diz

    defender, ela d visibilidade somente a determinados atores sociais.

    Reivindicando a legitimidade da instituio jornalstica atravs de mecanismos que

    dizem da organizao neste/este jornal, esta Folha e outras expresses que fazem

    referncia aos espaos de opinio (neste espao) , a Folha se apresenta como mediadora

    autorizada a fazer a representao de alguns posicionamentos e no de outros, delimitando o

    mbito do poltico. Provoca-se um efeito de fechamento do espao onde so dispostas essas

    foras sociais, fazendo prevalecer uma ou outra representao que se mostra ento como

    construo de realidade distinta da representao de outros. O feito de sentido desse arranjo

    de foras, pelas condies de produo discursiva, resulta na legitimao da prpria Folha

    como locutor autorizado, fortalecendo a posio-sujeito na qual se inscreve.

    A intertextualidade, muito presente nos editoriais medida que a Folha remete seu dizer

    para outros materiais jornalsticos veiculados no interior do jornal, tambm uma forma de

    mostrar que a Folha embasa seu posicionamento. Faz assim um duplo movimento, retomando o

    j-dito e reforando-o, reiterando seu prprio posicionamento como um rumo, uma direo a ser

    tomada em relao ao assunto pelo qual intercede. Tais efeitos vo apontando para um lugar que

    autentica/autoriza a si mesmo a enunciar do modo como enuncia, corroborando para a imagem

    de mediadora autorizada.

    Observa-se com isso o efeito de unidade discursiva da posio assumida pela Folha no

    interior do dizer. Ou seja, nos editoriais, constri-se um efeito de homogeneidade para a Folha e

    consequemente para o discurso que produzido no jornal. Assim, se uma voz no condizente

    com a posio do sujeito do discurso jornalstico da Folha emerge em outros espaos da

    publicao, nos editoriais trabalhada uma reorientao desta voz em favor da voz unssona da

    Folha. Isso mostra que nos editoriais s h espao para uma opinio a do jornal. O imaginrio

    da Folha, nos editoriais, ento permeado pela centralizao.

    BLOCO 3: a Folha agente de denncia. Novamente possvel encontrar, no conjunto

    de sequncias discursivas analisadas, uma rede discursiva de formulaes que instaura uma rede

    dispersa de repetibilidade, envolvendo diferentes expresses que funcionam como uma mesma

    famlia parafrstica revelado por esta Folha, testemunhada pela reportagem da Folha,

    esta Folha revelou, num primeiro momento, o jornal noticiou, como revelou a/esta

  • 11

    Folha, esta Folha mostrou. Os sentidos gerados por essa rede discursiva constroem a

    imagem da Folha como um agente que, em seu papel de testemunha dos fatos, mostra, revela os

    pontos obscuros de fatos denominados esquemas, atos ilcitos, geradores de

    escndalos. Observa-se que outras expresses tambm fazem parte desta famlia parafrstica

    e, desse modo, emergem no dizer apontando para um lugar assumido pelo sujeito do discurso

    que tem como desejo, ao dizer que revela irregularidades e denuncia malfeitos de

    governantes e autoridades pblicas, instituir verdades a respeito do que julga ser uma conduta

    tica na poltica25.

    Algumas marcas especficas, como o uso da locuo adversativa mas, por exemplo,

    funcionam como uma negao do dito anterior, reconduzindo a assertiva na mesma direo que

    inicialmente negada. Da mesma forma, o uso da expresso se no, resignificando o dito

    anterior, age antecipando e guiando a um pr-julgamento a respeito do assunto abordado. Os

    efeitos de sentido gerados por tais operadores discursivos permitem identificar a posio-sujeito

    assumida no interior do dizer. Por isso, neste bloco, a imagem da Folha de agente de denncia,

    apesar de afirmar que no faz denncia (FSP, 2007).

    A narrativa construda em discurso relatado marcado, identificado pelo uso das aspas,

    e do discurso relatado indireto, sinalizado por formas como o termo disse (AUTHIER-

    REVUZ, 2004), caracterizam o espao delimitado para a fala do outro, demonstrando o esforo

    em se distinguir declaraes que no so do jornal, o que nos conduz a pensar na tentativa

    (ilusria) de construo da homogeneidade de seu dizer. O discurso relatado marcado funciona

    no discurso da Folha como um discurso de prova, que vem dar autenticidade narrativa, o que

    caracterstica do prprio discurso jornalstico, visto que se apoia no que dito pelo outro.26

    BLOCO 4: a Folha protetora de interesses do cidado. Neste bloco de sequncias

    discursivas, diferentes expresses formam uma cadeia parafrstica discursiva que produz como

    efeito de sentido a exaltao das aes/prticas jornalsticas da Folha em relao aos interesses

    25 Esta conduta tica sugerida pelo que a Folha discursiviza como sendo a prtica social atravs da qual se

    exerce um cargo de poder, seja ligado a instituies poltico-partidrias, a estruturas governamentais e do judicirio, a

    entidades sociais representativas ou, ainda, ligadas a outras atividades sociais diversas.

    26 Authier-Revuz (2004) explica que a marca explcita da heterogeneidade no discurso delimita e circunscreve o

    lugar do outro, como que para afirmar que o outro no est em todos os lugares. Sobretudo, ao instituir a diferena do outro, esse gesto reivindica ao restante desse discurso uma certa homogeneidade, remetendo o dizer para o domnio do sujeito-falante que colocado como o prprio dono de seu dizer. Designando o lugar do outro

    atravs dessas marcas que o sujeito se empenha em fortalecer o estatuto do um da aparente unicidade da lngua, do discurso, do sentido ainda que ilusria, pois a heterogeneidade constitutiva de todo discurso.

  • 12

    dos cidados, designados pelo prprio termo e por outros como contribuintes e consumidores.

    No gesto de interpretao do sujeito desse discurso projetado discursivamente um imaginrio

    sobre o quo influente e articulador o trabalho realizado pelo jornal, no sentido de promover

    eventos que supe atender aos interesses desses cidados. Tais formulaes produzem como

    efeitos de sentido a ideia de que o trabalho jornalstico da Folha nico e exclusivo, e que as

    informaes se tornam pblicas somente porque ela toma iniciativa.

    Por outro lado, o dizer projeta uma imagem que diz do papel da Folha enquanto

    protagonista na defesa dos interesses do cidado. A meno Constituio retoma sentidos que

    so relacionados aos direitos de cidadania. Em nome da opinio pblica, a Folha fala em defesa

    dos interesses dos contribuintes. Posiciona-se a favor dos consumidores, reivindicando para si o

    lugar de protetora e porta-voz destes. A Folha apresenta-se como principal protagonista atuando

    em defesa dos interesses do contribuinte brasileiro. Ela refora essa imagem de protagonismo,

    destacando a atuao/o papel do jornal em tornar pblicas, fazer-saber informaes que antes

    estavam ocultas, mas que sendo pblicas podem contribuir para a precauo dos cidados em

    relao ao tema tratado. A Folha assume tambm o lugar de articulista, agente de iniciativa, que

    influencia e tem poder de interveno para garantir o acesso pblico de informaes

    confidenciais, evocando aqui o valor do interesse pblico. Esse dizer inclinado a elogiar o

    prprio veculo jornalstico e sua atuao no espao social constri uma imagem do sujeito

    como protetor dos interesses do cidado. Essa imagem ajuda a sustentar a funo enunciativa de

    porta-voz que seu dizer pretensamente assume.27

    BLOCO 5: a Folha lugar da verdade. Observando-se o conjunto das marcas

    discursivas referentes s SDs desse bloco, identifica-se outra famlia de vocbulos que

    formulam uma cadeia de parfrases mobilizada para designar o trabalho jornalstico da Folha.

    Em todas as SDs analisadas pelo menos um destes verbos confirmar, constatar, comprovar

    se faz presente atravs de cognatos fazendo emergir vrios sentidos que se intercalam e

    sobrepem em relao ao que est sendo dito. Tais designaes contribuem para dar

    autenticidade ao que est sendo dito, reforando a Folha como uma instituio jornalstica que

    se baseia no princpios da objetividade e da verdade. Constri-se, assim, uma imagem de

    empresa jornalstica com um determinado modo de fazer jornalismo que lhe d legitimidade

    27 A funo de porta-voz nos editoriais da Folha analisada de forma especfica em Oliveira (2012), visto que se

    trata de um funcionamento especfico do sujeito-Folha que remete um outro lugar-social (de cidado) que, no

    entanto, este sujeito no tem legitimidade para ocupar.

  • 13

    para poder dizer o que diz. O funcionamento discursivo provocado por tais termos produz como

    efeito uma certa estabilidade e firmeza ao dizer, remetendo a um lugar de certeza, que busca

    pretensamente estabelecer a verdade dos fatos.

    Em alguns editoriais, o efeito de pretensa objetividade emerge de forma explcita.

    Projeta-se no discurso o imaginrio de quem tem domnio e convico a respeito do que est

    sendo falado, um lugar que no contribui para a construo de evidncias, mas capaz de dar a

    conhecer, por meio de investigao jornalstica, o que se apresenta como bvio ou o que j

    era previsto, o que j se intua. A notcia revestida assim de um carter de obviedade, j que os

    fatos so denominados como incontestes, como aquilo que desmente as idealizaes. Nessa

    perspectiva, possvel afirmar que a Folha enuncia no de um lugar que busca ser o mais

    objetivo possvel (FSP, 2007, p. 46), mas de uma posio que, buscando a objetividade,

    determina a verdade dos fatos.

    Tais caractersticas, enquanto elementos constitutivos do dizer jornalstico, fazem parte

    de um imaginrio que prprio deste discurso e est presente na imprensa, de uma forma ou de

    outra, em todo e qualquer jornal de referncia. No discurso jornalstico da Folha, essa marca

    produz como efeito de sentido, a ideia de que os fatos falam por si e imprensa s cabe report-

    los. Os efeitos de objetividade gerado pela imagem do sujeito-Folha como lugar da verdade so,

    mais precisamente, o de evidncia da visibilidade dos fatos e de literalidade associados

    iluso de informatividade (MARIANI, 1998, p. 63). So eles que contribuem para reforar a

    imagem do jornal como sendo uma legtima organizao jornalstica que tem como funo

    desambiguizar o mundo (id ibidem), pois nunca pode haver um fato diferente do que foi

    relatado. Contudo, uma imagem que trabalha no sentido de apagar a posio-sujeito que o

    enunciador desse discurso assume ao enunciar.28

    Consideraes Finais

    A partir das SDs analisadas, verifica-se que o sujeito-Folha apresenta-se ancorado em 5

    imagens da tradio, de mediadora autorizada (por ela mesma), de agente de denncia, de

    protetora dos interesses dos cidados e de lugar da verdade. H uma preponderncia de

    regularidades discursivas que remetem s imagens do sujeito como agente de denncia e como

    28 De acordo com Solosky (1999) a marca da objetividade serve para desviar a ateno para o fato de que o

    jornalismo realiza uma abordagem poltica e ideolgica, ajudando a cristalizar assim a viso de que a lealdade do

    leitor e o controle monopolstico do mercado baseiam-se na eficcia da cobertura jornalstica que o jornal realiza.

  • 14

    protetor dos interesses dos cidados, ou seja, como aquela que influencia o debate pblico, que

    fiscaliza aes de governantes e agentes polticos como se estivesse frente dos trs poderes,

    que aponta e expe cena pblica as irregularidades que violam uma tica poltica que parece

    estar no seu horizonte. Por outro lado, o lugar de mediadora autorizada por si mesmo e lugar da

    verdade revelam outras faces para esse sujeito.

    A primeira imagem da tradio corresponde imagem a partir da qual a Folha

    deseja ser vista. Neste caso, observa-se a imagem do sujeito-Folha discursivamente alinhada

    existncia do projeto editorial, demarcando assim junto ao pblico e demais interlocutores o

    lugar institucional do jornal. Assim, nos editoriais, as formas de dizer do sujeito-Folha reforam

    um saber-dizer e um fazer-saber especfico capaz de levar o leitor a confiar no ponto de vista

    que apresentado para compreenso dos acontecimentos. Esse dizer exibe para o pblico a voz

    institucional que reafirma crenas em torno da profisso, fazendo emergir no fio do discurso o

    valor da tradio. A autoridade e a legitimidade so conferidas assim ao profissional ou veculo

    de jornalismo, servindo como um sustentculo para a credibilidade do mesmo. Nesse processo,

    portanto, a Folha se autopromove e garante sua legitimidade.

    As demais imagens, construdas na iluso de transparncia das palavras, representam

    imagens que se relacionam com a primeira de forma tensa, ora afirmando-a, ora contradizendo-

    a, mostrando como de fato esse sujeito se configura, isto , como realmente . Essas imagens se

    intercalam, sustentando o funcionamento discursivo do sujeito-Folha, fazendo interpe-se a o

    poder de dizer e se fazer sujeito, de uma ou de outra forma.

    Referncias AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva: elementos para uma abordagem do outro no discurso. In: AUTHIER-REVUZ, J. Entre a transparncia e a opacidade. Um estudo do enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p.11-80. BERGER, C. Campos em confronto: a terra e o texto. Porto Alegre: Ed. da Universidade, 1998. CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionrio de Anlise do Discurso. 3 ed. So Paulo: Contexto, 2012. [Verbete: Correferncia, p.142-143]. FAUSTO NETO, A. Notas sobre as estratgias de celebrao e consagrao do jornalismo. Estudos em Jornalismo e Mdia, Ano V, n. 1, p. 109-121, jan/jun 2008.

    ______. Mutaes nos Discursos Jornalsticos: Da construo da realidade a realidade da

    construo. In: INTERCOM 2006 Congresso Brasileiro de Cincias Da Comunicao:

  • 15

    Estado e Comunicao, 29, Braslia, 04 a 09 de setembro de 2006. Anais do... So Paulo:

    Intercom, 2006. FSP FOLHA DE S.PAULO. Manual da Redao. 12 edio. So Paulo: Publifolha, 2007. FONSECA, F. Mdia, poder e democracia: teoria e prxis dos meios de comunicao. Revista Brasileira Cincia Poltica. 2011, n.6, p. 41-69. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2008. KUCINSKI, B. Rosebud, o jornalismo torturado da Folha de S.Paulo. In: KUCINSKI, B. A sndrome da antena parablica: tica no jornalismo brasileiro. So Paulo: Editora Fundao Perseu Abramo, 1998 (b). p. 71-79. LINS DA SILVA, C. E. Mil dias: seis mil dias depois. 2 ed. So Paulo: Publifolha, 2005. MARIANI, B. PCB e a imprensa: os comunistas no imaginrio dos jornais (1922-1989). So Paulo: Revan, Unicamp, 1998. ______. Os primrdios da imprensa no Brasil. In: ORLANDI, E. P. (org.) Discurso fundador: a formao do pas e a construo da identidade nacional. 3 ed. Campinas: Pontes, 2003. p. 31-42. OLIVEIRA, C. Credibilidade no discurso jornalstico: tradio e autoridade nos editoriais da Folha de S.Paulo no marco de seus 90 anos. Dissertao. Orientador: Rogrio Christofoletti. Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Ps-graduao em Jornalismo. 257 p. Florianpolis: UFSC, 2012. PCHEUX, M.; FUCHS, C. A propsito da anlise automtica do discurso: atualizao e perspectivas (1975). In: GADET, F.; HAK, T. (orgs). Por uma anlise automtica do discurso. Uma introduo obra de Michel Pcheux. 4 ed. Campinas, SP: Editora UNICAMP, 2010. pp. 159-250. ______. Semntica e discurso: uma crtica afirmao do bvio. Traduo Eni P. Orlandi et al. 3 ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997. RESENDE, F. O discurso jornalstico contemporneo: entre o velamento e a produo das diferenas. Revista Galxia, So Paulo, n. 14, p. 81-93, dez. 2007. ROMANCINI, R.; LAGO, C. Histria do Jornalismo no Brasil. Florianpolis: Insular, 2007. SOLOSKI, J. O jornalismo e o profissionalismo: alguns constrangimentos no trabalho jornalstico. In: TRAQUINA, N. (org.). Jornalismo: questes, teorias e estrias. 2 ed. Traduo Lus Manuel Dionsio. Lisboa, Portugal: Vega, 1999. p. 91-100. SOUSA, J. P. Uma histria breve do jornalismo no ocidente. In: SOUSA, J. P. (org.) Jornalismo: histria, teoria e metodologia. Porto: UFP, 2008. P. 12-98. TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo: porque as notcias so como so. V. I. 2 ed. Florianpolis: Insular, 2005.