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Projeto Alimentos-Temperos Do Som

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Projeto Alimentos-Temperos do Som1

Gislene Natera Azor [email protected]

Resumo: O presente artigo é um breve relato de uma experiência em uma escola particular, na qual a música acontece como disciplina curricular da Educação Infantil ao 5º ano do Ensino Fundamental. A proposta de trabalho implantada pela escola foi o tema “Alimentos” e a educação musical propôs diferentes possibilidades de expressão para que a música fosse capaz de sensibilizar o ser humano, aproveitando a sua criatividade, percepção do mundo, sociabilidade e articulação dos elementos fundamentais da linguagem. Essa experiência instigou a busca de estudos na literatura científica sobre o “fazer musical” e possíveis parcerias. Concluí que o “fazer musical” precisa ser compreendido e vivenciado por especialistas e colegas profissionais criando assim “parcerias”, oportunizando a educação musical ser respeitada como linguagem.

Atuo em uma escola particular na cidade de Florianópolis que teve como tema o projeto

“Alimentos”, devido sua preocupação com os tipos e excessivas repetições de alimentos

consumidos na hora do lanche. Os professores começaram questionando seus alunos sobre o que

eram alimentos saudáveis ou não. Depois desta conscientização ficou o desafio de mudanças,

onde elas próprias criaram e criam até hoje seus cardápios para o lanche coletivo.

É no mínimo curioso, perceber o envolvimento das crianças em alguns projetos. Como

poderia a educação musical envolver-se em um projeto já existente, tornando-se um fator de

verdadeira conscientização?

Nessa escola, o projeto “Alimentos” foi desenvolvido com crianças da Educação Infantil

e Ensino Fundamental. Vou relatar a experiência com a Educação Infantil, que diferentemente do

Ensino Fundamental, as crianças são acompanhadas de suas professoras na aula de música.

Na hora do intervalo, as crianças ficavam reunidas ao ar livre com seus colegas e

professora de classe lanchando, experimentando e tentando convencer alguns amigos a comer

coisas “um tanto diferentes” em razão do horário. O lanche consistia de frutas, suco natural e

batata cozida com sal, batata-doce, ovo de codorna, sopa, pinhão, pão sírio com brócolis, cenoura,

tomatinho, dependendo o dia.

Ao perceber a cumplicidade e envolvimento das crianças no projeto, perguntava-me:

Como colaborar e integrar a linguagem musical dentro deste projeto? “É bastante importante que

o professor, além de construir o conhecimento musical que embasa a sua ação pedagógica, tenha

a oportunidade de repensar a sua prática para a realidade e o contexto de seus alunos”. (BEYER2,

2003, P. 111).

1 Trabalho apresentado na X Encontro Regional da ABEM- Sul. Blumenau- SC: UFMB, 2007. 2 BEYER, E. Reflexões sobre as práticas musicais na Educação Infantil, In: Ensino de Música: propostas para pensar e agir em sala de aula.

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A música é reconhecida nas várias funções sociais como expressão emocional;

divertimento; comunicação; validação de rituais religiosos; contribuição para a continuidade e

estabilidade da cultura; contribuição para a integração da sociedade entre outros, e seus

benefícios são estudados por psicólogos, psiquiatras, musicoterapeutas e educadores musicais.

Benefícios psicológicos: A música é uma forma de comunicação de afeto entre os seres humanos. Basta observar como os bebês aparentam compreender as mensagens emocionais contidas nas melodias entoadas pelos seus pais. Benefícios fisiológicos: A música aparenta ter um efeito calmante no ser humano. Basta observar tantas culturas usarem, ainda que de maneira intuitiva, canções de ninar por tantas gerações. Benefícios Culturais: As experiências musicais traduzem elementos da nossa cultura, daquilo que fomos, somos e seremos. A exposição a músicas de outras culturas também podem servir para ampliar o universo sonoro. Benefícios auditivo-educacionais: As experiências musicais educam o ouvido e enriquecem a percepção dos sons, podendo dar uma base musical aos futuros ouvintes, executantes e/ou criadores musicais. Benefícios estético-musicais: A música tem valor em si, já que possui códigos estéticos, auditivos e psicológicos próprios. Aprender a apreciar a boa música, seja ela de qual gênero for, é também desenvolver um senso estético-musical. (ILARI3, 2006, p. 271-302)

Além de atender os diferentes aspectos do desenvolvimento humano (físico, mental,

social, emocional e espiritual) poderia a música exercer sua importância na escola como “agente

facilitador e integrador” do processo educacional?

Iniciei a pesquisa musical com o tema “Alimentos” que abrangeu parlendas, domínio

público, canções folclóricas, infantis e músicas populares brasileiras, que falavam sobre

alimentos.

Júlia Hummes4(2004) cita a preocupação de Swanwick em focalizar as funções da

música buscando uma transformação cultural e não apenas de reprodução, salientando que : “Os

professores de música têm também que perguntar a si mesmos se eles estão preocupados

principalmente em resposta cultural, ou se eles estão buscando algo mais abrangente e aberto”

(SWANWICK, 1997).

Certamente é agradável, às vezes, ter música funcionando como fundo para outras atividades ou dirigidas por essas atividades. Mas em educação musical a principal meta é, certamente, trazer a conversação musical do fundo de nossa consciência para o primeiro plano. [...] Os professores perderiam estudantes, caso se comprometessem somente com os tímidos e culturalmente limitados elementos da lista Merriam, embora isso seja parte do que é feito. O foco educacional tem, acima de tudo, de estar nos verdadeiros processos do fazer musical. Somente então é possível dar sentido ao contexto, seja histórico, social, biográfico, acústico ou outro. (SWANWICK, 2003, p. 50)

3 ILARI, B. S.- Desenvolvimento cognitivo-musical no primeiro ano de vida, In: Em busca da mente musical: ensaios sobre processos em música- da percepção à produção. Curitiba: Ed.da UFPR, 2006; p. 271-302. 4 HUMMES. J. M.- Por que é importante o ensino de música? Considerações sobre as funções da música na

sociedade e na escola, Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 11, p.20.

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Como havia uma preocupação da música não funcionar neste momento como fundo deste

projeto, iniciei uma reflexão sobre “fazer musical” buscando teorias para criar e justificar minhas

práticas na escola.

O fazer musical requer muito de nós, e nós buscamos aqueles desafios que requerem os nossos melhores esforços [...] o fazer musical envolve a escuta, a visão e a reação emotiva de indícios que dizem respeito aos objetos musicais. Múltiplos modos de experiência oferecem múltiplas oportunidades para que os desafios possam aumentar, garantindo que o estado de fluxo seja mantido. (CUSTODERO, 2006, p. 381, 385)

Estava na hora de arriscar e “aprender” com meus alunos. “Aprender...é o modo como os

indivíduos constroem modelos mentais dos universos que os cercam (inclusive universos

musicais), e que lhes permitem mover-se, planejar e expandir seu conhecimento e sua

compreensão”.(HARGREAVES; ZIMMERMAN5, 2006, p. 250-251).

Sugeri que todas as classes ouvissem o repertório pesquisado escolhendo uma canção

para ser trabalhada. Canções folclóricas e canções infantis foram as principais opções dos alunos,

sugerindo a grande proximidade das crianças com estes gêneros.

“Nos textos das cantigas e acalantos encontra-se a tendência ao privilégio da representação. A presença do diálogo e da história contada por um terceiro reforça este aspecto, provavelmente pela sua empatia com a criança e pela fácil assimilação das idéias principais por parte da mesma” (GONZALES, 2005, p.196).

Confirmando assim alguns dados científicos fornecidos em Hargreaves & Zimmerman6,

foi observado em aula, que em primeiro lugar, as crianças captavam as palavras, depois a forma

rítmica e em seguida o contorno melódico.

Acabei optando por promover as diversas e sempre ricas possibilidades de expressão

musical: criação coletiva, sugestões individuais, escolhas de instrumentos, experiências e

conhecimentos já adquiridos, releitura de obras, assuntos de interesse, desafios rítmicos e

melódicos, entre outros, para que a música fosse capaz de sensibilizar o ser humano, abrindo

canais para maior aproveitamento da sua criatividade, percepção do mundo e sociabilidade

(criar, executar e ouvir música, compreendendo e articulando, gradualmente, os elementos

fundamentais da linguagem musical).

Para instigar de forma prática as possibilidades de arranjos, assim que cada grupo

escolhia sua música, eu questionava as crianças sobre o que falava a música, que som poderia

manifestar esta sensação, quais as formas que eles conheciam para tocar aquela música e

oportunizei vários instrumentos (tradicionais ou de efeitos) pessoais para serem usados durante o

5 HARGREAVES,D; ZIMMERMAN, M.- Teorias do desenvolvimento da aprendizagem musical, in: Em busca da mente musical, Ilari,.B.S.(org) 6 Idibem, p.257.

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processo. Procuramos brincar de várias formas diferentes, para que o grupo tivesse certeza do

arranjo que mais gostava.

Neste momento a parceria entre colegas profissionais foi realçada. Durante o

desenvolvimento do trabalho musical, a Educação Infantil teve através de suas professoras de

classe, a oportunidade do “amadurecimento”. As professoras unidocentes juntamente com seus

alunos, ouviam, cantavam, lembravam e até brincavam com algumas sugestões de arranjos em

outras atividades durante a semana. Esta parceria entre nós, não só facilitou o trabalho musical,

mas possibilitou o “encontro verdadeiro de interesse” das crianças, onde se percebe até hoje, o

prazer das crianças em cantar e tocar aquela música escolhida em anos anteriores. “O trabalho

conjunto de generalista e especialista poderá ampliar as ações e as competências musicais na

escola, viabilizando uma educação musical continuada, presente no currículo escolar de forma

significativa na formação da criança”. (FIGUEIREDO, 2001, p.36)

As escolhas das músicas e instrumentações das mesmas seguiram uma ordem natural do

desenvolvimento infantil. O Infantil I e II matutino e vespertino escolheram parlendas e músicas

folclóricas: Salada, saladinha; Alecrim Dourado; 1,2 feijão com arroz e macaco pisa o milho.

Nas suas ações optaram pelo “efeito sonoro”, nipes diferentes e pulsação. O Infantil II

vespertino, constituído de crianças um pouco mais velhas ou maduras, o interesse continuou pela

música folclórica: bate manjolo, porém, com o desafio de se tocar a melodia nos xilofones e

metalofones. O Infantil III matutino escolheu realizar a “história da pipoca” que contem uma

criação coletiva sobre a sonorização do “fazer a pipoca” e a música “Pipoca” (Palavra Cantada).

O Infantil III vespertino optou pela música popular: Sopa- Adriana Calcanhoto, fazendo uma

releitura da obra.

Seguindo este processo natural de escolhas o Ensino Fundamental decidiu por músicas do

repertório infantil e músicas populares, destacando-se o arranjo da música “Sopa”- Sandra Peres

e o Coral Infantil que se caracterizava pela presença de crianças de 05 a 10 anos escolheu um

cânone: Chá e “Pé de Nabo”-Sandra Peres/Luiz Tatit, que virou o hino do projeto. Assim surgiu

a elaboração do CD “Temperos do Som”, registrando o processo de musicalização em suas

diferentes fases.

Gravar em estúdio trouxe para as crianças uma experiência totalmente inovadora e o

reconhecimento da importância do silêncio, dos nipes, da sincronia e da cumplicidade com o

grupo. Para as professoras o valor das parcerias e a valorização da música como linguagem. Já

para os pais, ficou evidente a oportunidade que seus filhos tiveram em “criar musicalmente” e

serem preparados para novos desafios. Os objetivos e conteúdos deste trabalho são até hoje,

enfatizados pelos pais e pelas professoras unidocentes, via coordenação. Consegui enfatizar o

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potencial transformador da música e o seu papel educativo e Santos7 (2005) fortaleceu com dados

científicos minhas ações musicais:

Educar significa preparar as crianças para a vida adulta; ensina-las a se comportar e a escolher o tipo de gente que desejam ser. O resto é informação e se pode aprender de um jeito muito simples. Para tocar bem música, você precisa estabelecer um equilíbrio entre cabeça, coração e estômago. E, se um dos três não está presente ou está presente demais, você não pode usá-lo. Existe alguma coisa melhor que a música mostrar a uma criança como é ser humano?(BARENBOIM; SAID, 2003, p.40-41).

Foi enriquecedor compartilhar com os alunos as diferentes maneiras de lidar com os

elementos da linguagem musical, em que a intuição, o conhecimento específico, a liberdade, e o

domínio de regras convivem em contextos que enfatizam um ou outro aspecto em sintonia com a

convivência e maturidade não só musical dos alunos. Assim, reafirmo o pensamento do grande

educador musical, Edgar Willens8 : “Pode-se viver sem a música, mas com ela, vive-se bem

melhor”.

Proponho que os educadores musicais procurem se arriscar em novas práticas

apresentando trabalhos criativos com fundamentações teóricas, “re-apresentando” assim, a

música no meio escolar. “A aula deve possibilitar ao aluno sair da posição de simples

consumidor passivo e se tornar um produtor e um transmissor”. (SOUZA, 1998, p.65).

Arroyo9 (2002) cita:

O fazer musical e o senso de musicalidade das pessoas são resultados da interação interpessoal com ao menos três conjuntos de variáveis: sons ordenados simbolicamente, instituições sociais e uma seleção de capacidades cognitivas e sensório-motoras disponíveis do corpo humano” (BLACKING, 1992, p. 305).

Concluí que o projeto ultrapassou suas barreiras, transcendeu suas funções e benefícios e oportunizou múltiplos modos de experiência e oportunidades, cumprindo seu principal objetivo que era o “fazer musical” e a busca de “parcerias”.

Referências:

ARROYO, M. – Mundos Musicais locais e educação musical. Em pauta, v. 13, n. 20, junho 2002. BEYER, E. – O formal e o informal na Educação Musical: O caso da Educação Infantil. IV Encontro Regional da ABEM Sul, I Encontro do Laboratório de Ensino de Música/LEM-CE-UFSM, p. 45-52, Anais... Santa Maria-Rio Grande do Sul, maio de 2001.

7 SANTOS, M.A.C. - Educação musical na escola e nos projetos comunitários e sociais, p. 12. 8 Edgar Willems- Educador belga que desenvolveu todo o seu trabalho de educação musical na Suíça. O centro da sua metodologia é o desenvolvimento auditivo de forma ampla, acreditando que feita de forma adequada, favorece o desenvolvimento da personalidade do indivíduo. 9 ARROYO. M. – Mundos Musicais, locais e educação musical, p. 102.

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