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14 Unidade II A família vista pela psicologia jurídica: do pátrio poder aos laços amorosos contemporâneos A família que acabamos de conhecer nos conteúdos anteriores, sobretudo pela teoria psicanalítica de Sigmund Freud, que elabora o Complexo de Édipo como sendo a chave de compreensão da psique e que desenvolve uma topologia de acordo com a qual encontramos a lei como uma das instâncias do inconsciente (o superego), tem seu correlato no antigo Código Civil brasileiro de 1916. Nele, o pai aparece como a figura dominante da família, a ele cabe o pátrio poder. Contrário à concepção que hoje temos de família, a família tradicional regrada pelo antigo Código Civil é uma família nuclear. Impensável uma família que não seja composta por pai, mãe e filhos! Impensável essa família não ser constituída pelo casamento. Na lógica patriarcal da antiga legislação civil, o pátrio poder constituía na família uma hierarquia a partir da figura do pai. O homem é o chefe da sociedade conjugal. A mulher casada é relativamente incapaz. A separação do casal não era possível e, quando ocorria, investigava-se a culpa pelo fracasso do casamento. Além disso, desconfia-se da capacidade de as mulheres criarem os filhos homens. A guarda do filho varão, a partir dos 6 anos de idade, ficava com o pai. Estamos, portanto, diante de um código moral assimétrico sexual, que, durante o século XX, vai perdendo suas feições. Depois das duas grandes guerras, em toda parte do mundo, mulheres assumem postos de comando. No lugar dos homens (não podemos esquecer que muitos morreram nas guerras), o Estado faz a função do provedor, função essa que se expressa no direito social. Com a emancipação feminina, a invenção de meios anticoncepcionais mais seguros, as mulheres tornam-se mais independentes e encaram com mais facilidade uma possível separação do casamento. O divórcio implica um afastamento de pais e filhos. Novas formas de convívio familiar dão lugar à família nuclear e, consequentemente, o Complexo de Édipo deixou de ser a chave de compreensão do inconsciente. A Constituição Federal de 1988 dá conta dessas mudanças, quando desenha no artigo 226 e seguintes a nova família que está sob a proteção da Lei. A família contemporânea pode ser biparental, constituída por casamento ou união estável; para muitos, heterossexual ou homossexual, uma vez que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável homossexual. A Constituição reconhece também a família monoparental, aquela constituída por um dos pais e seu(s) filho(s). Com isso, a Lei brasileira permite a constituição e reconstituição livre da família, não mais obrigada a seguir um único modelo previsto em lei. Diante disso, o pátrio poder cede também a uma forma mais igualitária de gerir a família: o poder familiar. O Código Civil de 2002, que entrou em vigor em 2003, pressupõe a igualdade dos cônjuges. Prevê a dissolução da sociedade conjugal no caso da impossibilidade de comunhão de vida. Além disso, prevê, apesar da separação do casal, a manutenção do vínculo de pais e filhos pela guarda compartilhada. Esse vínculo é caro ao legislador, uma vez que os filhos têm o direito de convivência familiar. Por essas Unidade II

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A família vista pela psicologia jurídica: do pátrio poder aos laços amorosos contemporâneos

A família que acabamos de conhecer nos conteúdos anteriores, sobretudo pela teoria psicanalítica de Sigmund Freud, que elabora o Complexo de Édipo como sendo a chave de compreensão da psique e que desenvolve uma topologia de acordo com a qual encontramos a lei como uma das instâncias do inconsciente (o superego), tem seu correlato no antigo Código Civil brasileiro de 1916. Nele, o pai aparece como a figura dominante da família, a ele cabe o pátrio poder. Contrário à concepção que hoje temos de família, a família tradicional regrada pelo antigo Código Civil é uma família nuclear. Impensável uma família que não seja composta por pai, mãe e filhos! Impensável essa família não ser constituída pelo casamento. Na lógica patriarcal da antiga legislação civil, o pátrio poder constituía na família uma hierarquia a partir da figura do pai. O homem é o chefe da sociedade conjugal. A mulher casada é relativamente incapaz. A separação do casal não era possível e, quando ocorria, investigava-se a culpa pelo fracasso do casamento. Além disso, desconfia-se da capacidade de as mulheres criarem os filhos homens. A guarda do filho varão, a partir dos 6 anos de idade, ficava com o pai. Estamos, portanto, diante de um código moral assimétrico sexual, que, durante o século XX, vai perdendo suas feições.

Depois das duas grandes guerras, em toda parte do mundo, mulheres assumem postos de comando. No lugar dos homens (não podemos esquecer que muitos morreram nas guerras), o Estado faz a função do provedor, função essa que se expressa no direito social. Com a emancipação feminina, a invenção de meios anticoncepcionais mais seguros, as mulheres tornam-se mais independentes e encaram com mais facilidade uma possível separação do casamento. O divórcio implica um afastamento de pais e filhos. Novas formas de convívio familiar dão lugar à família nuclear e, consequentemente, o Complexo de Édipo deixou de ser a chave de compreensão do inconsciente. A Constituição Federal de 1988 dá conta dessas mudanças, quando desenha no artigo 226 e seguintes a nova família que está sob a proteção da Lei. A família contemporânea pode ser biparental, constituída por casamento ou união estável; para muitos, heterossexual ou homossexual, uma vez que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável homossexual.

A Constituição reconhece também a família monoparental, aquela constituída por um dos pais e seu(s) filho(s). Com isso, a Lei brasileira permite a constituição e reconstituição livre da família, não mais obrigada a seguir um único modelo previsto em lei.

Diante disso, o pátrio poder cede também a uma forma mais igualitária de gerir a família: o poder familiar. O Código Civil de 2002, que entrou em vigor em 2003, pressupõe a igualdade dos cônjuges. Prevê a dissolução da sociedade conjugal no caso da impossibilidade de comunhão de vida. Além disso, prevê, apesar da separação do casal, a manutenção do vínculo de pais e filhos pela guarda compartilhada. Esse vínculo é caro ao legislador, uma vez que os filhos têm o direito de convivência familiar. Por essas

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e outras razões, a Alienação Parental, o ato de afastar o filho do pai ou da mãe, foi proibida por lei e foi dada à Justiça a possibilidade de intervenção nos casos em que ela ocorre.

Referências bibliográficas:

BRANDÃO, E. P.; GONÇALVES, H. S. Psicologia Jurídica. Rio de Janeiro: Nau, 2004, p. 51.

FORBES, Jorge. Inconsciente e responsabilidade: psicanálise do Século XXI. São Paulo: Manole, 2012. Cap. 6.2.

Do menor ao jovem cidadão: a criança, o adolescente e sua família na Lei

Como já foi visto, as teorias predominantes na psicologia concordam em um ponto: o ser humano é um ser cultural. Por isso, a lei e a cultura são formadoras do sujeito. Consequentemente, a infância deve ser vista no contexto cultural.

A infância na lei: menor como objeto de direito

Se a infância é uma construção cultural, ser criança é diferente de uma época para outra, como a constituição e a estrutura da família também variam com o tempo, como vimos. Só há uma infância no Direito a partir da modernidade e da industrialização. Antes disso, as crianças eram tratadas como pequenos adultos. Marca dessa descoberta de infância é o Health and Moral of Aprentices Act, de 1802, que proíbe o trabalho infantil e preconiza o aprendizado.

A visão da família do início do século XX, no Brasil, com seu modelo patriarcal e moralizante, forma ideia sobre a infância, quando estabelece a diferença entre a “normalidade” e a “anormalidade” da situação irregular no Código de Menores (de 1927 e de 1979). No Código de Menores, a criança em situação irregular é tida como um objeto de direito. Segundo esse código, cabe ao Estado fazer com que os menores e as famílias que não obedecem ao padrão da família estabelecida pelo Código Civil da época se enquadrem nesse padrão higienista de uma família normal.

A criança cidadã na Convenção dos Direitos da Criança

Hoje, parece óbvio o fato de a criança ser uma cidadã. Não há “menores” a serem tutelados e administrados por “maiores”, mas seres humanos que nascem cidadãos. A cidadania é, por assim dizer, o presente de boas-vindas que a sociedade prepara para os recém-nascidos. Não resta dúvida para determinar o início da infância no nascimento. A questão é como a lei define a infância e a adolescência, já que, hoje, não há clareza sobre o assunto, já que a adolescência é “esticada” até a idade madura.

Pela Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas, criança é “todo ser humano com menos de 18 anos de idade, a não ser que em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”. Em seu preâmbulo, a Convenção sobre os Direitos da Criança sublinha a importância da dignidade e dos direitos iguais e inalienáveis de “todos os membros da família humana”. Com isso, já deixa entender que a criança cresce em uma família “como grupo

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fundamental da sociedade e ambiente natural para o crescimento e o bem-estar de todos os seus membros, e em particular das crianças”. Cabe aos pais, aos demais membros da família ampliada ou à comunidade a responsabilidade de “proporcionar à criança instrução e orientação adequadas e acordes com a evolução de sua capacidade, no exercício dos direitos reconhecidos” (art. 5º). A família e, no sentido mais amplo, a comunidade têm, portanto, uma dupla função: a de inserir a criança na cultura e a de defender seus direitos, uma vez que a criança está limitada na capacidade do exercício de seus direitos.

No topo do elenco dos direitos fundamentais está o direito à vida (art. 6º), que implica a responsabilidade do Estado de não somente garantir a sobrevivência, como também o desenvolvimento da criança. Vida humana é, portanto, mais do que vida no sentido biológico. Implica, por lei, a inserção da criança na cultura. Assim, a Convenção da ONU garante à criança um nome e uma nacionalidade, em outras palavras, uma identidade, no sentido jurídico e psíquico. Essa identidade está estreitamente ligada à família e ao direito de “conhecer os pais e ser cuidada por eles” (art. 7º). O Estado é obrigado, pelo art. 8º, a preservar a identidade, a nacionalidade, o nome e as relações familiares da criança e do adolescente com suas leis e políticas públicas.

Por outro lado, a criança tem, hoje, o direito de formular seus próprios pontos de vista. Deve ser ouvida em todos os assuntos que lhe dizem respeito (art. 12). Liberdade de expressão, de crença, de associação, de reunião pacífica, inviolabilidade de seu lar, de sua correspondência e de sua honra constam do rol de direitos tanto quanto a proteção contra violência, assistência, saúde, lazer e educação.

A Convenção enfatiza, em seu art. 29, o exercício dos direitos culturais, sobretudo o direito à educação.1 É importante apontar para alguns aspectos desse artigo. Em primeiro lugar, reflete a ideia do desenvolvimento da personalidade na infância e adolescência. Diferencia dos conceitos de “aptidões” e de “capacidade mental” o conceito de “personalidade”. A finalidade da educação é de “imbuir respeito” aos direitos humanos, aos seus pais e aos valores culturais de seu país e de civilizações diferentes da sua. Se, por um lado, o respeito aos pais remonta à lei desde os tempos bíblicos, o respeito aos valores culturais nacionais é exigido desde a modernidade, o respeito aos valores de pessoas e civilizações diferentes reflete um dever moral considerado essencial para a convivência na sociedade contemporânea globalizada. Trata-se de um dever moral, uma vez que a Convenção lança um ideal a ser seguido pelo Estado, pela família e sociedade e pelos próprios jovens.

1 “Art. 29. Os Estados Partes reconhecem que a educação deverá estar orientada no sentido de:a) Desenvolver a personalidade, as aptidões e a capacidade mental e física da criança em todo seu potencial;b) Imbuir na criança o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, bem como aos princípios

consagrados na Carta das Nações Unidas;c) Imbuir na criança o respeito aos seus pais, à sua própria identidade cultural, ao seu idioma e seus valores, aos

valores nacionais do país que reside, aos do eventual país de origem, e aos das civilizações diferentes da sua;d) Preparar a criança para assumir uma vida responsável numa sociedade livre, com espírito de compreensão, paz,

tolerância, igualdade de sexos e amizade entre todos os povos, grupos étnicos, nacionais e religiosos, e pessoas de origem indígena;

e) Imbuir na criança o respeito ao meio ambiente.”

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Jovens em conflito com a lei têm, no art. 40, os direitos e as garantias processuais assegurados aos adultos acusados de ter cometido delitos: a presunção da inocência e o direito do contrário, entre outros. Vale destacar o item 3 do artigo, que recomenda à legislação nacional levar em consideração: “a) [...] idade mínima antes da qual se presumirá que a criança não tem capacidade para infringir as leis penais; b) a adoção [...] de medidas para tratar dessas crianças sem recorrer a procedimentos judiciais, [...]” Dever do Estado é, portanto, disponibilizar um conjunto de instituições e programas alternativos às penas sofridas pelos adultos. Medidas para o tratamento das crianças e dos adolescentes “fora da lei” decorrem, portanto, do exercício dos direitos humanos que visam sua “dignidade humana”, como quer a lei internacional.

O Estatuto da Criança e do Adolescente

O ECA, consequência e regulamento dos artigos 226 ss da Constituição Federal de 1988, estende sobre a criança e o adolescente uma verdadeira rede de proteção que tem como núcleo a família e a rede familiar, passa pela comunidade, representada pelas organizações não governamentais, pela sociedade que se faz representar nos conselhos tutelares, até o Estado que ampara os direitos dos jovens pela administração pública e pela Justiça da Infância e da Juventude.

Criado e promulgado quase que concomitantemente com a Convenção da ONU, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) traz mudanças paradigmáticas no trato de crianças e adolescentes que “gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana” (art. 3, do ECA). Merecem a atenção da família, da comunidade, da sociedade e do Estado, enfim, sua “proteção integral” (art. 1º, do ECA).

A ideia da função repressiva, punitiva e discriminatória do Estado cede, portanto, a outra, a da dignidade e da cidadania da criança e do adolescente. Quando o jovem entra em conflito com a lei, quem merece proteção é a criança ou o adolescente. Diferentemente da Convenção da ONU, o Estatuto faz a distinção entre a criança, “a pessoa até doze anos de idade incompletos” e o adolescente, pessoa “entre doze e dezoito anos de idade” (art. 2º, do ECA). As medidas protetivas no art. 101 do estatuto são aplicadas às crianças em situação de risco. O risco é descrito no art. 98 como sendo ameaça ou violação dos direitos reconhecidos no próprio estatuto. A ameaça pode partir da sociedade e do Estado, dos pais ou responsáveis ou, ainda, da “própria conduta” da criança e do adolescente.

Quando a criança ou o adolescente entram em conflito com a lei, são aplicadas as medidas socioeducativas, previstas no art. 112. Essas medidas que já têm o sabor amargo de penalidades quando o próprio adolescente se colocar em uma situação de risco. A criança, obviamente, pode cometer delitos. No entanto, presume-se que a criança não sabe o que faz, enquanto o adolescente tem capacidade para saber, mas não o discernimento pleno “para entender o caráter ilícito do fato e governar a própria conduta”.2 Se ele passa, aos 18 anos, a entender ou não o caráter ilícito é uma questão que, até para a Justiça, não está clara. Não há como estabelecer um critério genérico para diferenciar se um jovem é

2 AMARANTE, Napoleão, X. do. Comentário do art. 104 do Estatuto da Criança e do Adolescente. In: CURY, Munyr (Org.). Estatuto da Criança e do Adolescente: Comentários jurídicos e sociais. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 499.

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imputável ou não.3 O ECA prevê, portanto, para jovens infratores da lei até 18 anos, a possibilidade de “requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial” (inciso V) e da “inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente” (inciso IV, do art. 101, do ECA). Em casos excepcionais, essas medidas podem ser aplicadas a jovens de até 21 anos (parágrafo único do art. 2º).

Educação em vez de punição, tratamento em vez de disciplina, assim determina a lei. Aparentemente inaugurou novas práticas de a Justiça lidar com crianças e adolescentes infratores da lei. Mas, no cotidiano, a mudança da lei, por si só, não implica mudanças de postura dos envolvidos. “Há, particularmente, uma alteração do discurso, que busca corrigir uma discriminação, que, por essa via, se fazia das crianças em condições de pobreza, abandono e infração, quer eram invariavelmente referidas como menores, sob vigência do Código (de Menores). No entanto, o que se pode notar é que há algo de absurdamente resistente no plano dos discursos e práticas concretas, que insiste em permanecer.”4

Lei, violência contra a mulher e as questões de gênero

Maria da Penha é o nome de uma lei que traz uma série de medidas para não só punir, como impedir que aconteçam agressões contra mulheres cometidas pelos próprios companheiros. Por que esse nome de mulher? Maria da Penha é uma senhora que estudou, formou-se na universidade e casou-se com um professor universitário. Como para muitas mulheres, o casamento tornou-se um pesadelo. Maria da Penha era agredida pelo marido, que tentou por duas vezes matá-la. Mas, à diferença da maioria das vítimas de agressões no âmbito doméstico, Maria da Penha lutou para conseguir que, em 2006, fosse promulgada a lei que não só pune mais severamente os crimes cometidos no lar, como também procura fazer com que esses crimes não sejam facilitados, ou não aconteçam.

Para abordar a questão da violência contra a mulher é importante esclarecer o uso de dois conceitos por estudos sociológicos e antropológicos: sexo e gênero. Do ponto de vista da biologia (e, consequentemente, da medicina), a distinção entre homens e mulheres se faz a partir da determinação do sexo. Para a biologia, os órgãos sexuais são determinantes para dizer se alguém nasce menino ou menina. Já a sociologia e a antropologia, que têm como objeto de estudo a sociedade e a cultura humanas, empregam o conceito de gênero, uma vez que o que ser homem ou mulher é uma construção cultural. As fitas rosa ou azuis no berço de um bebê são exemplo dessa construção a partir da cultura que faz de um ser humano um homem ou uma mulher.

As mais diversas propostas da psicologia reconhecem a diferença biológica e cultural entre homens e mulheres. Assim o faz, por exemplo, a proposta psicanalítica lacaniana, que analisa as diferentes “posições discursivas” entre homens e mulheres. Isso quer dizer, em outras palavras, que homens e

3 AMARANTE, Napoleão, X. do. Comentário do art. 104 do Estatuto da Criança e do Adolescente. In: CURY, Munyr (Org.). Estatuto da Criança e do Adolescente: Comentários jurídicos e sociais. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 501.

4 GUIRADO, Marlene. Em instituições para adolescentes em conflito com a lei, o que pode a nossa vã psicologia? In: GONÇALVES, Hebe Signorini; BRANDÃO, Eduardo Ponte. Psicologia Jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: NAU, 2004, p. 263.

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mulheres pensam, falam e agem de maneira diferente. Nesse contexto, é importante dizer que o jeito de ser masculino ainda é muito predominante nas mais diversas culturas, inclusive na nossa. Ainda valorizam o pai como orientador da linguagem. Para dar um exemplo: corriqueiramente dizemos “o juiz”, “o presidente”, “o patrão” para marcar posições de poder como posições masculinas, nem que sejam ocupadas por mulheres.

À posição masculina na linguagem não escapam nem homens nem mulheres. Quem vai negar que o pai é importante para nortear o filho? Quem vai negar a importância da ordem para a convivência em sociedade? Quem pode descartar o uso da razão e da lógica para a ciência e o conhecimento em geral? Nem homens, nem mulheres.

No entanto, há traços no jeito de ser das mulheres que escapam do jeito de ser masculino. As mulheres prezam a diferença, a emoção, a mística. No entanto, o que as mulheres prezam é historicamente descartado como sendo “loucura”, “bruxaria”, “sem valor”. Por que isso é importante saber? Porque o jeito feminino de ser assusta e pode ser uma das mais diversas razões da agressão contra mulheres. Na lógica masculina, lógica essa que exige do homem o sacrifício da satisfação junto à mãe (para lembrarmos do Complexo de Édipo masculino), o homem procura, ainda que na fantasia, aquilo que crê ter perdido, quando foi separado da mãe: o objeto do seu desejo, a mulher. Nesse sentido, no sentido da sexualidade masculina, a mulher é um objeto. É só passar numa banca de revistas e ler o conteúdo das revistas masculinas e femininas. Pois as mulheres, por outro lado, oferecem-se como objetos do desejo masculino. Essa relação entre procurar um objeto e ser um objeto do desejo não é natural, é cultural. No entanto, há um problema: o belo objeto do desejo pode tornar-se desejo, o reverso do objeto do desejo, pode tornar-se, enfim, descartável.

Os homens e as mulheres podem aceitar essas diferenças culturais e superar as divergências na maneira de ser de cada um pelo amor. Ou não.

Infelizmente, a insatisfação e a estranheza de um em relação ao outro pode gerar angústia e violência. A mulher, antes lindo objeto de satisfação, vira dejeto. Mas, como mesmo “mulher objeto” não se deixa dominar completamente, instaura-se uma relação entre o casal que “mescla de violência, sedução, afeto, presentes, arrependimento”5. Juntam-se a esses dados subjetivos a dependência econômica da mulher e a legitimação social do “crime em defesa da honra”. Mas, em decorrência principalmente das questões afetivas envolvidas, o casal entra num círculo vicioso de discussão, agressão, queixa na delegacia, arrependimento, sedução e retirada da queixa para, depois de algum tempo, retomar o ciclo.

A Lei nº 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, trata de qualquer agressão contra a mulher, não somente a física. Uma agressão verbal pode ser violência psicológica. Uma relação sexual indesejada pode ser qualificada como violência sexual, deixar a mulher sem recursos, violência patrimonial, e assim por diante. Se uma mulher se encontra nessa situação, a Justiça deve tomar medidas para, principalmente, afastar a mulher de seu parceiro agressor. Finalmente, em qualquer hipótese de agressão contra a mulher,

5 MORGADO, R. Mulheres em situação de violência doméstica: limites e possibilidades de enfrentamento. In: BRANDÃO, E.; GONÇALVES, H. Psicologia jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: Nau, 2004, p. 315.

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a lei garante, entre outras medidas, o atendimento por equipe multidisciplinar que possa oferecer um tratamento. Finalidade é retirar a mulher não do lar, mas da posição de vítima, do dejeto, na qual ela mesma se coloca, para que ela possa tornar-se sujeito de sua própria ação.

Referência bibliográfica:

MORGADO, R. Mulheres em situação de violência doméstica: limites e possibilidades de enfrentamento. In: BRANDÃO, E.; GONÇALVES, H. Psicologia jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: Nau, 2004.

Psicologia jurídica na execução penal

De início, cabe indagar: o que é crime? Pois o conceito de crime, de criminoso, de pena e de prisão varia no tempo e no espaço. Em outras palavras: o que foi crime outrora, hoje não é mais. Penas foram aplicadas e abolidas. Novas penas são aplicadas para novos crimes. O tema merece, portanto, uma abordagem crítica, tal como foi realizada, por exemplo, pelo psicólogo e filósofo francês Michel Foucault, cuja obra influenciou as reflexões contemporâneas sobre o sistema prisional. Resumindo essas reflexões, podemos dizer que a prisão, a principal pena aplicada aos que cometem crimes aos olhos da sociedade, é um poderoso meio de marginalização daquilo das chamadas “classes perigosas”.

Quais são essas classes perigosas? Ao fim da Idade Média europeia, com a nascente sociedade do trabalho, começou-se a valorizar quem trabalhasse. Nem sempre foi assim. Durante toda Antiguidade e boa parte da Idade Média, o trabalho era desvalorizado, era o próprio castigo, como lembra a própria palavra trabalho, cuja raiz latina é tripalium, o tridente, instrumento de tortura. Com a valorização do trabalho, há, consequentemente, a marginalização da vagabundagem. Os pobres, soltos no mundo, são recolhidos em casas de pobres, onde aprendem a obedecer à disciplina do trabalho. Assim, operários, mulheres, vagabundos e criminosos são indiscriminadamente recolhidos, cadastrados e tratados para fazerem funcionar as primeiras fábricas na França.6

Vistas por essa ótica, as classes marginalizadas são aquelas nas quais não se pode confiar e sobre as quais se quer adquirir o controle social. Essa desconfiança foi, no Brasil, dirigida aos escravos negros, presos por sua condição de serem objetos de compra e venda. Sendo estranhos, “assombravam” a vida da elite. É interessante fazer aqui um parêntese e mencionar um ensaio de Sigmund Freud, O estranho, no qual descreve a mescla entre angústia e atração que o estranho nos provoca e que “aprisionamos” pelo recalque no inconsciente. Seria a prisão uma forma de “recalque” de contradições, conflitos não resolvidos pela sociedade? Hoje, os criminosos que mais preocupam a sociedade no Brasil são os traficantes. Verdadeiras guerras travam-se entre o Estado e os traficantes de drogas ilícitas.

Mas não somente as classes consideradas perigosas mudam ao longo da história e dependendo do lugar. Há também mudanças no tipo de pena para os que são considerados criminosos. Visam ao corpo na sociedade feudal, na qual preferencialmente se aplicava o suplício e a pena de morte. Visam à liberdade na sociedade industrial e os bens na sociedade pós-moderna que, muitas vezes, substitui a pena privativa de liberdade por severas multas.

6 PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres, prisioneiros. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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Como já foi visto, a pena privativa de liberdade nasce junto às outras instituições, tal como a fábrica, que visam à disciplina. Para Michel Foucault, têm como metáfora o chamado Panópticum de Bentham. Nele, as pessoas estão num campo de visibilidades. Podem ser vistas e controladas sem ver quem as controla. Com isso, espera-se, introjetam a disciplina que as fazem funcionar adequadamente na sociedade moderna, que tem como valor moral central o trabalho produtivo.

A falta de disciplina é perigosa. Vai à contramão da sociedade burguesa. Assim, com a burguesia nasce também o conceito de delinquente. Delinquente não é somente o cidadão criminoso que lesa um direito de outro cidadão, mas aquele que se revolta contra a ordem do Estado. Não somente a vítima tem um direito de ver seu agressor sendo punido. A própria sociedade tem interesse na reclusão do ator. Essa serve, na concepção moderna, para vigiar, isolar, controlar e educar o detento que deve ser futuramente reintegrado à sociedade.

A prisão serve, portanto, como uma tecnologia corretiva a partir de uma questão subjetiva: personalidade do preso. A partir de um diagnóstico do preso, é estabelecida sua terapêutica e o prognóstico para sua ressocialização bem-sucedida. Na Lei de Execução Penal brasileira, esse processo está na mão da Comissão Técnica de Classificação (CTC). Médicos, psicólogos e assistentes sociais emitem laudos que permitem diagnosticar o preso e prognosticar se ele tem condições de futuramente reintegrar-se na sociedade.

A atuação dos profissionais que compõem a CTC encontra críticas. Quais critérios se adotam para fazer o diagnóstico? Quais para fazer o prognóstico? Será que os juízes responsáveis pela execução penal simplesmente avalizam os laudos técnicos? Como o “tratamento penal” leva em conta possíveis causas subjetivas do crime: conflitos pessoais e familiares, problemas econômicos e sociais?

Hoje estão em discussão as possibilidades de como o preso pode ser respeitado como sujeito de direito. Apesar de a Lei de Execução Penal não prever um direito do preso à assistência psicológica, possibilidades de tratamento individual, subjetivo e consentido, são preconizadas.7 Para a psicanálise contemporânea, há como responsabilizar, em vez de culpar por um tratamento não genérico, mas singular, que visa a uma mudança de postura. Nesse tratamento, o inconsciente deixa de ser justificativa para o crime. O tratamento aposta na possibilidade de o ser humano mudar de vida, de encontrar saídas não pelo crime, mas pela criatividade transformadora do mundo.

Referências bibliográficas:

KOLKER, Tânia. A atuação dos psicólogos no sistema penal. In: BRANDÃO, E. P.; GONÇALVES, H. S. Psicologia Jurídica. Rio de Janeiro: Nau, 2004.

FORBES, Jorge. Inconsciente e responsabilidade: psicanálise do Século XXI. São Paulo: Manole, 2012. Cap. 2.

7 CARVALHO, Salo de. O papel da perícia psicológica na execução penal. In: BRANDÃO, E. P.; GONÇALVES, H. S. Psicologia Jurídica. Rio de Janeiro: Nau, 2004.

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