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PSICOSSOCIOLOGIA André Lévy André Nicolaï Eugène Enriquez Jean Dubost análise social e intervenção Marília Novais da Mata Machado - Eliana de Moura Castro José Newton Garcia de Araújo - Sonia Roedel (orgs.)

Psicossociologia análise social e intervenção

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PSICOSSOCIOLOGIA

PS

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IA-análise

socialeintervenção

-AndréLévy,André

Nicolaï,EugèneEnriquez,Jean

Dubost

André LévyAndré Nicolaï

Eugène EnriquezJean Dubost

análise social e intervenção

Este livro é de interesse paraos estudiosos das Ciências Hu-manas e Sociais em geral, tantopara os que se dedicam à refle-xão teórica, quanto para os quepraticam a Psicologia, a Sociolo-gia, a Economia, a Psicanálise, aEducação, o Direito, a Adminis-tração e a Política. Nele, psicólo-gos, sociólogos e um economis-ta interrogam suas áreas especí-ficas e, sobretudo, a "transdisci-plina" que os congrega, a Psicos-sociologia.

É apresentado, no livro, o es-boço de uma teoria original dosocius, da organização e do fun-cionamento social, feita a partirda análise social. Essa construçãoteórica foi inspirada e se funda-mentou em práticas sociais rea-lizadas em situações concretas,reais: a "intervenção psicossocio-lógica", dispositivo de consulta epesquisa, cuja história é aqui re-vista e avaliada. A reflexão foifortemente influenciada pela Psi-canálise, mas também pelo pen-samento filosófico que apontapara as representações imaginá-rias do social e, recentemente,pela sociologia da ação. Comoconseqüência, aproximou-se doconhecimento da natureza dovínculo que congrega os indiví-duos, de um saber a respeitodas mudanças e rupturas da di-nâmica social e da descobertado processo de criação institucio-nal; teoria e prática foram estrei-tamente unidas; mitos, ideologias,

sagrados e certezas, relações depoder e de autoridade foramanalisados.

Os autores, organizadores ecolaboradoras estão ligados porum acordo de cooperação fran-co-brasileiro. Os franceses –Jean Dubost, Eugène Enriquez,André Lévy e André Nicolaï –são nomes consagrados em seupaís. Seus textos foram selecio-nados, apresentados e comen-tados por psicossociólogos bra-sileiros – Marília Novais da MataMachado, Sonia Roedel, JoséNewton Garcia de Araújo, Elia-na de Moura Castro, TeresaCristina Carreteiro e Regina D.B. de Barros.

Marília Novais da MataMachado é doutora emPsicologia Social epesquisadora do LAPIP-FUNREI/FAPEMIG.

Eliana de Moura Castroé doutora em Psicanálise eprofessora aposentada daUFMG.

José Newton Garciade Araújo é doutor emPsicologia Social e Clínicae professor da PUC Minas.

Sonia Roedel é mestreem Psicologia Social eprofessora da UFMG.

“Quais são os problemas realmente essenciais, na atu-

alidade? Aos olhos do psicossociólogo, os mais impor-

tantes entre eles parecem ser o crescimento do indivi-

dualismo, os ‘intemináveis adolescentes’, o triunfo da

racionalidade experimental, a busca desenfreada pelo

êxito econômico e financeiro e, finalmente, o recru-

descimento do ‘narcisismo das pequenas diferenças’

que acarreta as disputas inevitáveis entre as nações, et-

nias, grupos religiosos etc. É certo que a Psicossociolo-

gia não tem poder para tratar dessas questões no âm-

bito da sociedade global, mas ela pode auxiliar os ato-

res e os autores sociais ou os sujeitos que querem ino-

var e criar novas modalidades sociais”.

Marília Novais da Mata Machado - Eliana de Moura CastroJosé Newton Garcia de Araújo - Sonia Roedel (orgs.)

www.autenticaeditora.com.br0800 2831322

9 7 8 8 5 7 5 2 6 0 2 2 7

ISBN 978-85-7526-022-7

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PsicossociologiaAnálise social e intervenção

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André LévyAndré Nicolaï

Eugène EnriquezJean Dubost

ORGANIZADORES

Marília Novais da Mata MachadoEliana de Moura Castro

José Newton Garcia de AraújoSonia Roedel

COLABORADORAS:Regina D.B. de Barros

Teresa Cristina Carreteiro

Belo Horizonte2001

PsicossociologiaAnálise social e intervenção

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CapaJairo Alvarenga Lage

Editoração eletrônicaWaldênia Alvarenga Santos Ataide

Revisão de textosErick Ramalho

Editora responsávelRejane Dias

2001

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora.Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, sejapor meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica,

sem a autorização prévia da editora.

Autêntica EditoraRua Januária, 437 – Floresta

31110-060 – Belo Horizonte – MGPABX: (55 31) 3423 3022

TELEVENDAS: 0800-2831322www.autenticaeditora.com.br

e-mail: [email protected]

Copyright © 2001 by Os Organizadores

Primeira edição publicada pelaEditora Vozes (Petrópolis/RJ), em 1994.

P974 Psicossociologia; análise social e intervenção /André Lévy et al.; organizado e traduzido porMarília Novais da Mata Machado et al. – BeloHorizonte: Autêntica, 2001.264p.

ISBN 85-7526-022-7

1.Psicologia social. 2. Levy, André. 3. Machado,Marília Novais da Mata. I. Título.

CDU 316.6

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SUMÁRIO

PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO

Marília Novais da Mata Machado, Eliana de Moura Castro,José Newton Garcia de Araújo e Sonia Roedel........................................... 07

PREFÁCIO

Marília Novais da Mata Machado e Sonia Roedel...................................... 09

Parte I – Análise socialAnálise socialAnálise socialAnálise socialAnálise socialANÁLISE SOCIAL E SUBJETIVIDADE

Eliana de Moura Castro e José Newton Garcia de Araújo............................ 17

O PAPEL DO SUJEITO HUMANO NA DINÂMICA SOCIAL

Eugène Enriquez.......................................................................................... 27

A INTERIORIDADE ESTÁ ACABANDO?Eugène Enriquez.......................................................................................... 45

O VÍNCULO GRUPAL

Eugène Enriquez.......................................................................................... 61

O FANATISMO RELIGIOSO E POLÍTICO

Eugène Enriquez.......................................................................................... 75

CONJUNÇÃO, NA EMPRESA, DE UM PROJETO PESSOAL E FAMILIAR, COM

A HISTÓRIA DE UMA REGIÃO: O PROCESSO DE CRIAÇÃO INSTITUCIONAL

André Lévy................................................................................................... 91

Parte II – – – – – A psicossociologia em exameA psicossociologia em exameA psicossociologia em exameA psicossociologia em exameA psicossociologia em examePSICOSSOCIOLOGIA EM EXAME

Teresa Cristina Carreteiro............................................................................. 107

A PSICOSSOCIOLOGIA: CRISE OU RENOVAÇÃO?André Lévy................................................................................................... 109

A MUDANÇA: ESSE OBSCURO OBJETO DO DESEJO

André Lévy................................................................................................... 121

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

RUPTURAS, MUTAÇÕES E COMPLEXIFICAÇÃO EM ECONOMIA

André Nicolaï............................................................................................... 133

IDENTIFICAÇÕES EXPERIMENTAIS E INOVAÇÕES SOCIAIS

André Nicolaï............................................................................................... 143

Parte III – Intervenção psicossociológicaIntervenção psicossociológicaIntervenção psicossociológicaIntervenção psicossociológicaIntervenção psicossociológicaINTERVENÇÃO PSICOSSOCIOLÓGICA

Regina D. Benevides de Barros..................................................................... 165

NOTAS SOBRE A ORIGEM E EVOLUÇÃO DE UMA

PRÁTICA DE INTERVENÇÃO PSICOSSOCIOLÓGICA

Jean Dubost................................................................................................... 171

INTERVENÇÃO COMO PROCESSO

André Lévy................................................................................................... 185

DA FORMAÇÃO E DA INTERVENÇÃO PSICOSSOCIOLÓGICAS

Eugène Enriquez........................................................................................... 211

AS ORIGENS TÉCNICAS DA INTERVENÇÃO

PSICOSSOCIOLÓGICA E ALGUMAS QUESTÕES ATUAIS

Jean Dubost.................................................................................................. 237

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PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO

É com grande satisfação que vemos este livro chegar à sua segundaedição. A coletânea de textos que o compõem interroga e constrói a psi-cossociologia, esta transdisciplina simultaneamente teórica e prática, hoje,bem conhecida e divulgada no Brasil.

Desde a primeira edição, o campo da psicossociologia cresceu. A suaperspectiva clínica ganhou espaço, principalmente em suas vertentes so-ciológica e psicossocial. A psicanálise seguiu sendo uma das principaisteorias inspiradoras, mas novas e originais elaborações teóricas foram de-senvolvidas. À metodologia de intervenções/pesquisas, cada vez mais uti-lizada, juntou-se o levantamento e análise de histórias de vida, esclarece-doras dos processos de criação do social. O fortalecimento do CIRFIP –Centro Internacional de Pesquisa, Formação e Intervenção Psicossocioló-gica – acompanhou todo esse vigor teórico, prático e metodológico.

Por tudo isso, este livro, fruto do trabalho de psicólogos, sociólogos eum economista, tornou-se ainda mais importante, pois apresenta justa-mente os fundamentos e a história dessa disciplina que se fortalece: esbo-ça uma teoria do socius, da organização e do funcionamento social, feita àpartir de análises sociais de práticas realizadas em situações concretas,reais, por meio da “intervenção psicossociológica”, dispositivo de con-sulta e pesquisa, cuja história é nele revista e avaliada.

Assim, tal como no momento da primeira edição, o livro continuasendo de interesse para os estudiosos das ciências humanas e sociais emgeral, tanto para os que se dedicam à reflexão teórica, quanto para os quepraticam a psicologia, a sociologia, a economia, a psicanálise, a educa-ção, o direito, a administração e a política.

Junho de 2001

Os organizadores

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A Psicossociologia é uma vertente da Psicologia Social. Seu campo ébem delimitado: é o dos grupos, das organizações e das comunidades,considerados como conjuntos concretos que mediam a vida pessoal dosindivíduos e são por esses criados, geridos e transformados. Portanto, ascondutas concretas dos indivíduos, grupos, organizações e comunida-des, no quadro da vida cotidiana, são o objeto de pesquisa, reflexão eanálise dessa disciplina.

A ênfase à concretitude foi o divisor de águas que estabeleceu a especi-ficidade da Psicossociologia frente à Psicologia Social e que se refletiu nadiversificação das metodologias inicialmente utilizadas: enquanto a Psico-logia Social, freqüentemente através de experimentos, dedicou-se ao estudode sujeitos abstratos, isto é, dissociados de seu papel social real de sujeitosconcretos, a Psicossociologia interessou-se pelo estudo de sujeitos em situ-ações cotidianas, em seus grupos, organizações e comunidades, empre-gando para tanto, inicialmente, a metodologia de pesquisa-ação.

A partir dos anos 50, os psicossociólogos criaram a intervenção psicos-sociológica, relação de colaboração na qual os problemas são prioritárioscom relação aos métodos. Em conseqüência, abandonaram totalmenteuma certa prática de pesquisa-ação que estudava grupos artificiais e,igualmente, excluíram os métodos nos quais as decisões eram tomadasde maneira unilateral pelo pesquisador. Passaram a se preocupar, emespecial, com as instâncias de mudança, nas quais o psicossociólogotinha o papel de um pesquisador-interventor, respondendo a uma de-manda e adotando uma posição de analista. Por meio dessa abordagem,o pesquisador-prático, por sua presença, fez aparecerem certos proble-mas, permitiu que um novo tipo de discurso fosse enunciado, que condu-tas, até então desconhecidas, se revelassem. Atuando diretamente na vidados grupos, ele teve acesso aos processos conscientes e inconscientes queaí atuavam e às condutas lingüísticas que as pessoas realizavam.

PREFÁCIO

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

Entretanto, se foi esse vínculo estreito entre pesquisa e ação que ca-racterizou a Psicossociologia dos anos 50, 60 e 70, hoje ela se renova,adquire um sabor de novidade, retirando sua originalidade sobretudo desua construção teórica. A partir da análise social instaurada com a inter-venção psicossociológica, é formulada uma teoria, sempre inacabada, dosocius, da organização e do funcionamento social. Paulatinamente, che-ga-se ao conhecimento e à explicação da natureza do vínculo que congre-ga os indivíduos, de onde e como surge a dinâmica social, com suasmudanças e rupturas, e do processo de criação institucional. Teoria eprática se confundem nessa tarefa, pois a teorização é fruto da reflexãoque, a partir de eventos da vida cotidiana e de intervenções psicossocioló-gicas, torna visível a presença do sujeito social.

Ora, contra esse pano de fundo, pouco a pouco tecido, a Psicosso-ciologia redescobre sujeitos pulsionais, fortemente movidos por sentimen-tos ambivalentes de amor e ódio, mobilizados por ilusões e crenças, dis-putando tanto mais com seu semelhante quanto mais iguais figurem ser,idealizando e buscando destruir seus chefes, irmãos apenas no complôcontra os que são representados como diferentes. Reencontra indivíduosque caem facilmente no fanatismo, no “narcisismo das pequenas dife-renças” (FREUD), na crença exacerbada em valores estimados comotranscendentes, buscando certezas através das quais vão abrandar seussentimentos de desamparo e impotência. Porém, encontra também su-jeitos capazes de saírem desse “imaginário enganoso”, nos termos de E.ENRIQUEZ, e serem criadores da história, aptos a um “imagináriomotor”, sujeitos que, por um ato de decisão, que é também um ato depalavra, são capazes de realizar “esse obscuro objeto do desejo”, amudança social (A. LÉVY), sujeitos que são verdadeiros autores e ato-res, mesmo que involuntariamente, de transformações nos sistemassociais (A. NICOLAÏ), sujeitos capazes de serem autônomos, podendose tornar os principais agentes de suas próprias evoluções e das deseus grupos e organizações (J. DUBOST).

Ao lado do reconhecimento de uma ordem social marcada pela lutade todos contra todos, do trabalho da pulsão de morte, dos desejos deonipotência e dominação, foi possível também constatar o trabalho dapulsão de vida, da sublimação e de um imaginário que facilitariam asolidariedade entre os homens.

É essa trajetória teórica que se pretende apresentar neste livro, noqual um convite à análise e à reflexão é repetido em cada texto, já sendoa priori evidente que a opacidade do social não será eliminada, que aanálise talvez pouco abale uma instituição que se imagina estável, que

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o exame minucioso de todo grupo, toda organização e toda comunida-de pode ser indefinidamente continuado. Mas nada impede a reflexãoe a análise a respeito dos valores, normas e formas de pensar o mundoque orientam os diversos atores sociais, a respeito das suas representa-ções historicamente constituídas, de seus desejos de afirmação narcísi-ca e de reconhecimento, de suas fantasias de onipotência, de suas de-mandas de amor e proteção. Assim, nestas páginas, são analisados mitostão diferentes como o da sociedade transparente, o da qualidade total eo do corpo passível de ser eternamente jovem; são analisadas novasideologias, assim como novos sagrados e certezas, relações de poder eautoridade, práticas de intervenção mitificadas; é analisada, enfim, acondição de construção da vida social, o desenvolvimento de um pro-cesso organizacional.

Para essa reflexão “desmistificadora e desmitificadora” (E. ENRI-QUEZ) não se lança mão apenas da Psicanálise, mas também de outrasreferências. Assim, o pensamento filosófico de C. CASTORIADIS, apon-tando para as representações imaginárias do social e para questões refe-rentes à autonomia e à heteronomia, está presente em quase todos ostextos, assim como, aqui e ali, os conceitos recentemente formulados nasciências “duras”, como sistemas dinâmicos, autopoieses, estruturas dissi-pativas, auto-organização e complexificação a partir do ruído. Os textossão permeados pela Sociologia da Ação de A. TOURAINE que, conside-rando a sociedade como um conjunto hierarquizado de sistemas de ação,convida a nomear e a analisar novas práticas sociais e novas formas deação coletiva, formadoras das sociedades atuais e futuras, e ressalta asmudanças preparadas por grupos pertencentes a movimentos sociais.Essa teoria fundamenta inclusive a crítica a uma Sociologia abstrata, quepensa em termos de sistemas e de modos de produção, formuladora degrandes quadros teóricos mas, entretanto, distanciada das situações con-cretas reais onde se dão os fatos sociais.

Os autores – Jean DUBOST, Eugène ENRIQUEZ, André LÉVY e AndréNICOLAÏ –, nomes consagrados na França mas ainda pouco conhecidosdos leitores brasileiros, são apresentados nesse livro por Marília N. daMATA-MACHADO, Sonia ROEDEL, José Newton G. de ARAÚJO, Elianade Moura CASTRO, Teresa Cristina CARRETEIRO e Regina D. B. deBARROS. O que reúne essa equipe é seu interesse pela área das CiênciasHumanas e a perspectiva transdisciplinar com a qual abordam nãoapenas suas disciplinas específicas – Psicologia Social (R. BARROS, T.CARRETEIRO, J. DUBOST, A. LÉVY, M. MATA-MACHADO), Psicolo-gia Clínica (J. ARAÚJO, E. CASTRO, S. ROEDEL), Sociologia, Política,

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

Direito (E. ENRIQUEZ) e Economia (A. NICOLAÏ) – mas, especialmente,a disciplina que os congrega, a Psicossociologia. Além desse território depesquisa, todos esses intelectuais têm em comum o fato de trabalharemem universidades – Universidade de Paris VII (E. ENRIQUEZ), Paris X(J. DUBOST, A. NICOLAÏ), Paris XIII (A. LÉVY), FUNREI – Fundação deEnsino Superior de São João del Rei (S. ROEDEL), UFF – UniversidadeFederal Fluminense (R. BARROS, T. CARRETEIRO), UFMG – Universi-dade Federal de Minas Gerais (J. ARAÚJO, E. CASTRO, M. MATA-MACHADO); a maior parte dos brasileiros tem o título de doutor poruniversidades francesas (Paris VII: J. ARAÚJO, T. CARRETEIRO – Psi-cologia Clínica – e E. CASTRO – Psicanálise; Paris XIII: M. MATA-MA-CHADO – Psicologia Social). Os membros dessa equipe estão formal-mente ligados através de convênio de intercâmbio científico patrocinado,no Brasil, pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal deEnsino Superior) e, na França, pelo COFECUB (Comité Françaisd’Evaluation de la Coopération Universitaire avec le Brésil).

Inicialmente, a seleção dos artigos aqui apresentados foi feita porM. MATA-MACHADO e S. ROEDEL, a partir do exame de uma centenade textos, muitos dos quais trazidos pela equipe francesa, em função domencionado convênio. Foi feita uma primeira escolha de 14 artigos queseriam distribuídos em quatro partes. Essa primeira proposta, estudadatanto pela equipe francesa quanto pela brasileira (que compreende outrosmembros além dos organizadores e colaboradores), sofreu modificações,resultando em treze textos, distribuídos em três partes, mantidos entre-tanto os critérios da primeira seleção, feita em novembro de 1991:

- Foram escolhidos, primeiramente, textos recentes, cobrindo questõesatuais, mostrando a situação da evolução do pensamento teórico dos auto-res. Assim, mais da metade dos artigos apresentados neste livro foi publi-cada depois de 1989: “O papel do sujeito humano na dinâmica social” – E.ENRIQUEZ, 1991; “A interioridade está acabando? – E. ENRIQUEZ, 1989;“O fanatismo religioso e político” – E. ENRIQUEZ, 1990-1; “A Psicossoci-ologia: crise ou renovação? – A. LÉVY, 1990; “identificações experimentaise inovações sociais” – A. NICOLAÏ, 1990-1. Dois deles eram inéditos nomomento da seleção: “Conjunção, na empresa, de um projeto pessoal efamiliar, com a história de uma região: o processo de criação institucional”– A. LÉVY (mimeogr.); “Rupturas, mutações e complexificação em econo-mia” – A. NICOLAÏ (mimeogr.).

- Em segundo lugar, julgou-se indispensável incluir dois textos – “Ovínculo grupal” (E. ENRIQUEZ) e “A mudança: esse obscuro objeto do

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desejo” (A. LÉVY) – uma vez que marcam um ponto de transição teórica naforma de conceber, respectivamente, o grupo e a questão da mudança.

- Em terceiro lugar, optou-se por uma seqüência de textos de caráterhistórico, alguns mostrando a evolução do pensamento psicossociológico(“A respeito da formação e da intervenção psicossociológicas” – E. EN-RIQUEZ, 1976; “Notas sobre a origem e evolução de uma prática deintervenção psicossociológica” – J. DUBOST, 1980; “Intervenção comoprocesso” – A. LÉVY, 1980) e um texto que faz uma retrospectiva dessepensamento, contrapondo as origens a temas recentes (“As origenstécnicas da intervenção psicossociológica e algumas questões atuais” –J. DUBOST, 1987).

Esses artigos foram organizados em três grupos que correspondemàs três partes do livro. A primeira – Análise Social – apresenta a constru-ção teórica feita na disciplina. A segunda – Psicossociologia em Exame –é uma avaliação crítica da evolução da área e, finalmente, a terceira –Intervenção Psicossociológica –, além de ser uma parte de retrospectivahistórica, apresenta a intervenção, esse dispositivo de consulta e pesquisaque fundamentou e inspirou a construção teórica.

Todas as traduções foram feitas por professores universitários oupor estudiosos ligados, em maior ou menor grau, à Psicossociologia eà Psicanálise. Seus nomes aparecem, em cada texto, na primeira notade rodapé. As traduções foram revistas por J. ARAÚJO, E. CASTRO eM. MATA-MACHADO.

Buscou-se uma certa uniformização. Por exemplo, o termo lien socialfoi traduzido por “vínculo social”, mantendo-se a tradução utilizadapor T. CARRETEIRO e J. NASCIUTTI para o livro de E. ENRIQUEZ: Dahorda ao Estado. Psicanálise do vínculo social, editado por Jorge Zahar.

Mais de uma dificuldade de tradução, certamente refletindo postu-ras teóricas diferentes, foi objeto de discussão e comparação. Por exem-plo, a palavra forclusion tem aparecido em português como “foraclusão”,“forclusão” ou “preclusão”; a última tradução foi preferida, por estardicionarizada (Novo Dicionário Aurélio) e por permitir, através da análi-se etimológica, a apreensão de seu sentido original. Outro exemplo: paraa palavra fantasme (fantasia ou fantasma, de acordo com a tradução por-tuguesa do Vocabulário de Psicanálise de LAPLANCHE e PONTALIS),preferiu-se “fantasia”; a possível confusão com a fantasia carnavalesca sóauxilia a aproximação com esse mundo imaginário, de atividades e produ-ções criadoras, algumas aterrorizantes; contudo, mantiveram-se termoscomo “fantasmático”. Utilizou-se a palavra “narcíseo”, para designar

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“relativo a narciso”, seguindo o Novo Dicionário Aurélio ou “narcísico” e“narcisista”, seguindo o fluxo corrente das traduções de textos psicanalíti-cos, a critério do tradutor. Finalmente, para a palavra enquête, não se utili-zou uma tradução uniforme: empregou-se “pesquisa” na maior parte dasvezes; quando a referência era obviamente a um “levantamento de dados”,expressão bastante usada em português, essa foi a escolha; entretanto, apalavra investigation, na expressão méthodes d’investigation, foi igualmentetraduzida por “pesquisa”.

Agradecemos a colaboração de José Walter Albinati SILVA, nossoprimeiro leitor, que procedeu a uma cuidadosa revisão final.

Marília Novais da Mata MachadoSonia Roedel

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Análise socialAnálise socialAnálise socialAnálise socialAnálise socialParte I

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

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A leitura dos artigos que compõem a primeira parte deste livro noscoloca em contato com alguns temas de rara atualidade. Cabe, no entan-to, a cada leitor se deter naquelas questões que lhe parecerem mais in-quietantes, seja porque elas demandam um exercício novo de reflexão,seja porque elas põem a nu alguns ranços de nossas posições teóricasou da “visão de mundo” que inspira o conjunto de nossas práticascotidianas.

Ao apresentar tais artigos, corremos o risco de enfatizar arbitraria-mente apenas alguns de seus conteúdos. Mas não poderia ser diferente,visto que todo leitor recebe, preenche ou interpreta, à sua maneira, aquiloque lhe cai nas mãos.1 Pois bem, vamos selecionar três questões para asquais dirigimos nossos comentários. A primeira delas diz respeito a umadiscussão sobre o sujeito, no enfoque psicossociológico. A segunda dis-cute alguns fenômenos (a intolerância, por exemplo) situados na gêneseda violência que permeia a “afetividade coletiva”. A terceira se volta so-bre o esquecido e fascinante tema da interioridade, marcando suas espe-cificidades na articulação entre o psicológico e o social.....2

O sujeito que não “morreu”O sujeito que não “morreu”O sujeito que não “morreu”O sujeito que não “morreu”O sujeito que não “morreu”

A. LÉVY e E. ENRIQUEZ abordam o tema do sujeito sob um ponto devista que nos ajuda a compreender melhor o lugar onde eles situam aPsicossociologia. Eles descartam, desde o início, a idéia de um “eu”, vistocomo uma unidade da consciência ou do psiquismo, funcionando inde-pendentemente dos sistemas ideológicos ou de outras “sobredetermina-ções” que falam por aquele que fala.

No entanto, não se trata também de simplesmente “matar” o sujeito,como quiseram algumas correntes das ciências humanas. ENRIQUEZ con-fessa sua antiga “irritação” com o sucesso das teses sustentadas princi-palmente pelos discípulos de FOUCAULT (sobre a morte do sujeito) e

ANÁLISE SOCIAL E SUBJETIVIDADE

Eliana de Moura Castro

José Newton Garcia de Araújo

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

ALTHUSSER (sobre a história como um processo sem sujeito). A esserespeito, convém observar que, mesmo na França, a polêmica suscitadapor tais teses estaria há muito “esfriada”. E, já na virada dos anos setenta,a chamada “sociologia do cotidiano”, por exemplo, se interrogava direta-mente sobre “o sujeito individual, suas relações próximas e regulares, e nãomais sobre os grandes dispositivos sociais...”.3 Seria incorreto dizer queesse “reaparecimento” do sujeito se deu mais lenta ou tardiamente, entrenós, principalmente em algumas vanguardas intelectuais e políticas? Háalgum tempo, um sociólogo ligado à formação de lideranças sindicais emMinas Gerais, nos disse que os anos mais recentes dessa formação (ele sereferia já aos anos noventa) poderiam se caracterizar, entre outras coi-sas, como um período de redescoberta do indivíduo ou da subjetivida-de.4 Então: até que ponto essas “vanguardas” só permitiam que se no-meassem as “estruturas” ou o “determinismo absoluto dos processossociais”, situando todo o resto – especialmente o sujeito – apenas naesteira de seus efeitos? E até que ponto – valho-me de outra observaçãode ENRIQUEZ – seria privilégio do pensamento “de direita” encarar ahistória sob o ângulo da ação individual, notadamente aquela dos “gran-des homens”? Em outras palavras: como explicar o incontestável “cultoda personalidade”, em relação a homens como LENIN ou MAO? Comoexplicar a exaltação “individual” de alguns heróis marxistas, no desenro-lar da história da revolução?5

Já num outro campo, o da Psicanálise, as discussões sobre o descen-tramento ou a “subversão” do sujeito, notadamente através da teoria la-caniana, não estariam restritas, nas décadas anteriores, apenas a umaoutra elite? Não seria apenas recentemente, no momento da grande divul-gação da Psicanálise no Brasil, que distinções do tipo “sujeito falado” e“sujeito falante” foram “popularizadas” no ensino universitário ou nointerior das instituições de formação psicanalítica, só então deixando delado toda uma tradição discursiva, ligada a uma prática clínica, maispróxima de uma self-psychology?

Pois bem, nos artigos aqui apresentados, os autores caminham numadireção que, no conjunto das discussões sobre o sujeito, nos parece emparte negligenciada. Não se trata nem de matá-lo nem de ressuscitá-locomo uma entidade absolutamente autônoma.6 Isso é claro para os auto-res. No texto de A. LÉVY, por exemplo, vemos que o “indivíduo” é, antesde tudo, um ponto de passagem, um átomo talvez, dentro de uma histó-ria regional e de um sistema complexo que envolve a terra, a família, oofício ou o produto. Assim, a empresa-família é anterior ao sujeito, ela é

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um projeto de seus antepassados, do qual alguém como o dirigente éapenas um prolongamento. ENRIQUEZ retoma essa posição, através danoção (via CASTORIADIS) de heteronomia: todo indivíduo só existe oufunciona “no interior de um contexto social dado, de uma cultura parti-cular que desenvolve suas ‘significações imaginárias específicas e quedita em parte sua conduta’”. Ele destaca ainda, através de FREUD, aquestão das identificações múltiplas: não sabemos, “no momento emque falamos, quem está falando e por que falamos dessa maneira”, já que“somos uma pluralidade de pessoas psíquicas” ou que o eu é um terrenopor onde transitam múltiplos “visitantes”. Daí também o estilhaçamentoda “bela unidade do indivíduo”, daí a ilusão da identidade pessoal.

Mas qual seria a contribuição maior desses autores? De um lado,aquela de afirmar que o indivíduo só é parcialmente heterônomo, poisele tem sempre uma “parcela de originalidade e autonomia”, além dedesempenhar, “às vezes sem sabê-lo, um papel essencial nas transfor-mações sociais”. Desse modo, os processos sociais “nunca regulamcompletamente a conduta individual, sempre imprevisível.” De outrolado, os autores colocam em destaque um aspecto específico da cons-tituição do sujeito, isto é, sua constituição “plural” ou coletiva. Essadimensão “grupal” da subjetividade merece atenção especial. Ela éaqui veiculada através de expressões como “narcisismo das pequenasdiferenças”, narcisismo grupal, narcisismo social, identidade coleti-va, espírito de empresa, fanatismo de empresa etc. A. LÉVY nos lem-bra, por exemplo, que a história de uma empresa revela um trabalhopsíquico individual mas sobretudo coletivo, ele alude tanto a um ima-ginário cultural quanto a um “projeto de família” ou a um narcisismo“regional” das pequenas diferenças.

Importante ainda, segundo os autores, é sabermos distinguir osfenômenos ligados a essa concepção de sujeito coletivo e os fenômenosoriundos da onda de individualismo – um fenômeno sem dúvida coleti-vo –, mas que reenvia, antes de mais nada, a um processo de massifica-ção que acaba justamente por ameaçar o sujeito. ENRIQUEZ apontaaqui a diferença entre as noções de indivíduo e sujeito. O primeiro é aque-le que se agarra, num crescente alienar-se, a identificações coletivasrígidas ou a um coletivo totalitário, só sabendo repetir ou reproduzir ofuncionamento social. Assim sendo, a onda do individualismo acaba-ria por suprimir o sujeito, pois este, “mesmo aceitando as determinações queo fizeram tal como ele é”, tenta introduzir uma mudança de si mesmo,tenta transformar “o mundo, as relações sociais, as significações dasações”; enfim, é alguém capaz de produzir uma certa “anormalidade”7

em relação aos padrões sociais.

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As “referências duras” ouAs “referências duras” ouAs “referências duras” ouAs “referências duras” ouAs “referências duras” ouas sementes da violência grupalas sementes da violência grupalas sementes da violência grupalas sementes da violência grupalas sementes da violência grupal

Passemos agora à segunda questão, que se refere a um núcleo defenômenos essencialmente coletivos, presentes ora nos grupos nascentese minoritários, ora nos grupos que já se impuseram em uma dada culturaou sociedade, mas que tentam ainda se expandir. Falamos da ocorrênciacada vez maior – inclusive no Brasil – de episódios de intolerância, xenofo-bia, fanatismo e outras manifestações daquilo que ENRIQUEZ denomina“referências duras e estabilizadas”. E aí o vínculo grupal se exterioriza emforma de violência: ódio ao exterior, amor (ou cumplicidade?) mútuo,sentimento de “sermos portadores” da verdade etc. A isso se ajunta aobservação – importante e oportuna – de que o estofo da afetividade gru-pal não é a racionalidade (afinal, estamos falando de mecanismos in-conscientes), mas sim os processos de idealização, ilusão e crença. Assim, ogrupo se atribui uma aura de excepcionalidade, além de poupar todainterrogação sobre o valor ou o sentido de seu projeto (seja esse projetopolítico, religioso, esportivo, científico ou outro qualquer). O que os seusmembros fazem é incontestável para eles mesmos, pois sua ação – presu-mem – tem a marca do sagrado. Conseqüências imediatas: toda alterida-de (outros grupos, outras idéias, outras propostas políticas, religiosas,científicas etc.) deve ser eliminada, pois ela se torna uma ameaça. O gruponão suporta nenhuma outra verdade, além da sua. E aí florescem as con-dutas totalitárias e massificadas, como a intolerância e o fanatismo.

A essa altura, cabem algumas observações. A primeira: é importan-te considerarmos que o recrudescimento das ideologias nazistas e deum racismo generalizado não são um privilégio da Europa Central, comose tinha notícia até pouco tempo.8 Essas “ideologias petrificadas” sãotambém assunto de fartos noticiários na mídia brasileira. Basta lembrar,como um fenômeno “periférico”, mas exemplar, que os skinheads já têmseus representantes no Brasil. Esses musculosos jovens de cabeça ras-pada já se tornaram, em diversos momentos, objeto do noticiário nacio-nal: querem garantir um “futuro glorioso” para o nosso país, tentandoeliminar dele os negros, os judeus e... árida novidade, os nordestinos.Mas as ideologias petrificadas acabam gerando suas réplicas ou o seuavesso. Assim, algum tempo após as notícias, no início de 1993, sobre osskinheads verde-amarelos a imprensa também informou sobre a existên-cia de um grupo denominado Nação Islã,9 composto por militantes islâmi-cos negros que, “céticos quanto à eficiência do Estado”10 se armam contra“as violências cometidas pelos carecas e pela polícia contra negros...”

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Aliás, é também no bojo da xenofobia que vemos aparecer um movimen-to separatista, no Sul do Brasil. Enfim, o espectro do Integralismo estános revisitando e o racismo reaparece com suas múltiplas caras, sejamelas brancas ou negras.

Muitos outros exemplos poderiam ser levantados. Vale lembrar asinvestidas do fanatismo religioso, tão presente nas igrejas evangélicas ecatólicas (o movimento “carismático” arremeda, às vezes, os rituais “emo-cionais” dos programas de auditório das tevês brasileiras, infantilizandoos “fiéis”, num clima onde toda crítica está ausente, onde o ritual é bana-lizado e seu simbolismo empobrecido). Dessa mesma linha “fanático-religiosa”, não escapam setores conhecidos de nossos partidos políticos,principalmente aqueles que se atribuem uma identidade ideológica. E,em níveis talvez menos contundentes, poderíamos nos referir também anarcisismos e intolerâncias em diversas outras “cenas coletivas”, onde a evo-cação dos termos “nós” ou “nosso(a)” teria efeitos de um regulador sociale de um redutor das angústias individuais:11 nossa saga familiar, nossotime de futebol, nossa igrejinha teórica e/ou acadêmica, nossa “seita” decomedores vegetarianos, nosso grupo body-building, nosso partido de di-reita ou de esquerda etc.

Gostaríamos de lembrar, rapidamente, uma questão mencionadamais de uma vez tanto por LÉVY quanto por ENRIQUEZ: em todo projetogrupal, seja num grupo intolerante, seja num grupo democrático, cadasujeito está perseguindo, isolada e coletivamente, a eterna questão dosentido. Em outras palavras, a ação grupal deve cobrir um vazio, ela deveser doadora de sentido, livrando o indivíduo e o grupo de um “desespero”impossível de suportar. Digamos isso de outra maneira: se o inconsciente“desconhece” o tempo e a morte, ele desconhece também, por analogia, ovazio do sentido de qualquer projeto e de qualquer ação. Não são portan-to de modo nenhum insensatas as teorias que assimilam a vida grupal àidéia de um sonho12 (ANZIEU) ou à idéia de um círculo fechado (FONTA-NA)13 onde não haja “brecha” alguma, onde se perenizem as vivências deeternidade e de totalidade. O que se torna problemático, nesse movimentode fechar-se em si mesmo, é que o grupo passa a não suportar a alteridadee sua “busca de sentido”; resvala necessariamente para a intolerância.

Interioridade – metáfora espacialInterioridade – metáfora espacialInterioridade – metáfora espacialInterioridade – metáfora espacialInterioridade – metáfora espacial

A terceira questão que nos propomos a comentar aqui diz respeito àinterioridade, noção de origem literária e filosófica, mas empregada fre-qüentemente no campo da Psicologia. Poderíamos, já de início, contraporas noções de sujeito e interioridade, a fim de refletir sobre o sentido e o estatuto

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dessa última. Escapando às problemáticas da morte do sujeito e da sua divi-são, a interioridade possibilita uma outra abordagem da inserção do singu-lar no social e do choque das forças em conflito, na esfera psicossocial.

ENRIQUEZ define a interioridade como sendo “o sentimento que umapessoa experimenta de ter uma vida interior, íntima, onde ninguém tem odireito de penetrar, a não ser por arrombamento, o sentimento de possuirum dentro que carrega sofrimento, alegria, questionamentos, interroga-ções e que, para ela, é ‘uma terra estrangeira’”. Se esse sentimento nemsempre existiu, ele existe atualmente e está, segundo o autor, ameaçadode extinção, vítima de ataques, tanto por parte dos empresários quantodos fanáticos religiosos.

A interioridade remete, quase que imediatamente, à alternativa inte-rior x exterior. E embora não possa ser tomada como sinônimo de interior,é numa relação espacial que ela se inscreve. Toda representação da inte-rioridade se desenvolve numa especialização. Aliás, parece haver umatendência, que não é recente, em se pensar espacialmente, o que nos per-mitiria mesmo aludir a uma hegemonia do espaço.

A questão do espaço, na Filosofia antiga, foi discutida em termos docheio, em oposição ao vazio: trata-se, num certo sentido, de uma discussãoparalela àquela entre ser e não-ser. PARMÓNIDES não admite que sepossa falar do não-ser, da mesma forma como nega que se possa falar dovazio. Só o ser existe e ele é cheio. Talvez seja, pois, interessante lembrarque a interioridade é muitas vezes dolorosamente percebida como umasensação de vazio interior.

A interioridade, por ser da ordem da especialização, parece trans-cender o tempo ou estar menos sujeita à dimensão temporal. Por outrolado, ela seria mais facilmente sentida e intuída do que tematizada. Mascabe principalmente destacar que ela não se afigura como um conceitoque inclua o inconsciente.

BERGSON, filósofo que centra sua reflexão na dimensão temporal,mostra que a apreensão de nós mesmos é condicionada por uma organi-zação onde domina a especialização. Para ele, os dados imediatos daconsciência são pura qualidade, mas a inteligência tende a espacializar oque é fluxo qualitativo, o que é pura duração.14 O espaço da percepção é oconjunto de movimentos virtuais, sendo que a intuição do homem é sem-pre virtualidade motora ou apreensão espacial. A compreensão da interi-oridade é, pois, condicionada pela especialização (e aqui a crítica ber-gsoniana procede, pois o que é essencialmente da ordem do qualitativo édificilmente apreendido como tal).

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A grande dificuldade na apreensão da interioridade é a passagem dointerior para o exterior, e essa questão tem a ver necessariamente com ocorpo. ENRIQUEZ aborda o processo de idealização do corpo. O dina-mismo e a eficiência profissional são buscados através do treinamentocorporal. Um corpo dinâmico (isto é, bonito, enérgico e jovem) é garantiade sucesso individual. Dito de outro modo, o que se vê por fora é umreflexo do interior. O culto exagerado do corpo, que pode ser descrito comoum narcisismo de morte, aponta para uma relação direta entre dentro e fora(narcisismo de morte, porque especular, refletindo a si mesmo).

Nessa relação de passagem do exterior para o interior, temos de falarnos órgãos dos sentidos. A percepção do espaço remete à visão, meio dese situar no mundo, diferenciando o interno do externo. O aparelho per-ceptivo se situa no limite dentro-fora; capta os estímulos exteriores e tam-bém os internos, sendo os orifícios os lugares privilegiados de troca como exterior. O conceito de eu-pele de ANZIEU15 chama a atenção para essasuperfície – a pele – que faz a demarcação do dentro e do fora, sendo aomesmo tempo o container e o meio de comunicação com o outro. Limite esuperfície privilegiada de estimulações, a pele se liga à formação do eu.Pode-se dizer que o sentido de interioridade reside sobretudo na noção dereceptáculo de riquezas ou monstruosidades que a pessoa percebe deforma mais ou menos clara.

Existe, diz FREUD,16 um escudo protetor que defende o organismocontra estímulos externos, só permitindo a percepção de pequenas quanti-dades. Já os estímulos provindos do interior chegam sem redução, pois oorganismo não dispõe de proteção nesse sentido. A conseqüência dessasituação é uma tendência a tratar o que vem de dentro como se se originassedo exterior. Assim, o recalque nada mais é do que a fuga de uma ameaçainterna, segundo o modelo adotado em relação ao perigo externo.

Há, na época atual, saturada de comunicação, quase que uma obses-são em relação ao próprio território, ao que marca a diferença, isto é, aidentidade própria, separada.

É interessante notar que a criança exprime a relação com o objetoprimeiramente por identificação: eu sou o objeto. O ter é ulterior; depoisda perda do objeto, ela é capaz de dizer: eu tenho, isto é, eu não sou.

As idéias de permanência, unidade e similaridade, denotadas pelotermo identidade, foram abaladas pela Psicanálise, pois o conceito de in-consciente vem perturbar profundamente o caráter unitário do psiquismo.A interioridade define o sujeito de um ponto de vista espacial: o interior édiferente do exterior. Já a identidade marca a diferença, considerando o

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conteúdo que constitui o sujeito, naquilo em que ele é diferente do outro. Porisso, a interioridade é mais palpável (quase que literalmente).

É por seu cunho espacial que a interioridade comporta um caráterestável e estático. E o mais importante, já dissemos, é que ela remete à vidaconsciente e não ao inconsciente. O espaço de dentro é o lugar ao mesmotempo da certeza de si próprio e do seu lado desconhecido, do outro queeu sou. Essa dimensão do inatingível e do secreto constitui a interiorida-de. O oculto, isto é, o profundo – e aqui a referência espacial é clara –marca a individualidade.

Assim, por ser essencialmente espacial, a interioridade considerada,quer como sentimento pessoal, quer como conceito psicológico, é certa-mente desprovida de energia ou, em outros termos, é passiva, só poden-do, pois, oferecer uma resistência passiva. Dessa passividade podemosinferir o caráter estático da interioridade e isso faz ressaltar o papel dasforças sociais que a agridem. Uma tal instância parece estar realmente àmercê dos ataques perpetrados por uma sociedade cruel; e como bemcaptou ENRIQUEZ, é no cenário da espacialidade que essa ameaça serealiza. As propostas absolutizantes, feitas pela religião, pela empresa oupela sociedade, se tornam assim mais claras, porque confrontadas à inte-rioridade (e não à identidade, ao eu e muito menos ao sujeito). A imposi-ção de um padrão idealizante de comportamento e de pensamento impli-ca uma “profunda” agressão à intimidade da pessoa. Em outras palavras,a imagem do dentro carnal corresponde a uma imagem do dentro espiri-tual, isto é, à concepção de uma interioridade psíquica que está sujeita atodas as investidas externas.

Finalmente, pelo fato de que ela aparece sobretudo como uma regiãoespacial metafórica, resta-nos reafirmar que a noção de interioridade com-porta certa ambivalência teórica: de uma lado, o fato de ser uma noçãoconstruída a partir da espacialidade faz dela uma metáfora limitada dopsiquismo; de outro lado, o seu manejo “espacial” apresenta vantagens deapreensibilidade, no campo da argumentação psicossociológica.

Notas1 Humberto ECO, em sua obra Lector in Fabula (trad. francesa Grasset, 1985) nos

aponta essa singularidade do lugar do leitor. Ele diz, entre outras coisas, que todotexto é um tecido de espaços em branco, com interstícios a serem preenchidos peloleitor. Afinal, nenhuma leitura é um ato neutro.

2 Esta última questão foi elaborada por Eliana de Moura CASTRO, enquanto as duasprimeiras ficaram a cargo de José Newton G. ARAÚJO.

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3 Cf. BALANDIER, G. “Essai d’identification du quotidien”. In: Cahiers Internationaux deSociologie, 1983, vol. LXXIV, p. 5-12. BALANDIER comenta (e esse artigo é de 1983)que o mais importante da multiplicidade de pesquisas sobre a vida cotidiana é queesse “movimento recente... fez reaparecer o sujeito, face às estruturas e aos sistemas”.

4 Conseqüentemente, nessa mudança, concedeu-se também lugar à vida privada enão apenas às “grandes causas” trabalhista e revolucionária.

5 P. SELLIER (cf: Le mythe du héros. Paris: Bordas, 1970, p. 29-31) afirma que, na Biblio-teca Nacional de Paris, uma boa metade dos livros consagrados a heróis são livrosrussos e posteriores à Revolução de 1917. Lembremos, mais perto de nós, o culto àfigura de GUEVARA, que incontestavelmente “sustentou a fé” de várias gerações,na América Latina e mesmo na Europa.

6 Alain RENAUT (cf: L’ère de l’individu. Paris: Gallimard, 1989) chama nossa atençãopara uma simplificação das discussões sobre a idéia de sujeito, “como se todo uso danoção de subjetividade devesse inevitavelmente aludir a um sujeito inteiramentetransparente a si mesmo, soberano, senhor de si e do universo e como se, por issomesmo, a incontestável condenação desta figura do sujeito devesse se traduzir peloabandono puro e simples de qualquer referência à subjetividade” (op. cit., p. 13).

7 O autor evoca J. McDOUGALL (cf: Plaidoyer pour une certaine anormalité. Paris:Gallimard, 1978) para quem a normalidade seria “uma carência que atinge a vidafantasmática e que afasta o sujeito dele mesmo”.

8 Não vem ao caso evocar aqui a ameaça do racismo na Europa do Leste, principal-mente após as recentes eleições da Rússia, nas quais o Sr. JIRINOWSKI saiu vito-rioso. De outro lado, não esqueçamos também a intolerância no interior dassociedades muçulmanas, empenhadas numa guerra dita religiosa e que leva aosextremos o endurecimento ideológico grupal.

9 Cf. reportagem da revista Isto É, de 28/04/93, p. 50-53.10 Essa mesma revista, em seu número de 1º/12/93, publica uma reportagem intitu-

lada “Quarto Reich – nazismo no ar”. A matéria se refere a uma empresa gaúcha,uma editora de propaganda nazista, vendendo livros e vídeos pelo Brasil afora. Seuobjetivo é uma “revisão” da história do nazismo, visando negar os massacrescometidos pelo Terceiro Reich (entre outras coisas, o dono dessa editora diz queo massacre dos judeus teria sido uma “montagem da mídia”). Observaçãosemelhante já fora feita, alguns anos atrás, por Jean-Marie LE PEN, líder daextrema-direita francesa. Para ele, a questão dos fornos crematórios nos camposde concentração, além de serem historicamente contestáveis, não passavam de“mero detalhe”.

11 P. ANSART vê a ideologia como um sistema simbólico que favorece a regulaçãosocial, à medida em que estrutura as economias psíquicas e funciona como umaparelho redutor de angústia, como um instrumento terapêutico, em nívelindividual. A adesão a uma ideologia leva o indivíduo a um mundo de trocas com ooutro, encontrando aí as condições de gratificação narcísica. (Cf: ANSART, P. “Dis-cours politique et réduction de l’angoisse”. In: Bulletin de Psychologie. Paris, n. 322, tomoXXIX, 1975-1976, p. 445-449).

12 Cf: ANZIEU, D. Le groupe et l’inconscient: l’imaginaire groupal. Paris: Dunod, 1984.13 Esse autor comenta que os termos nó e círculo, inferidos da etimologia do termo e da

elucidação do conceito de grupo, desembocam na idéia central de uma conexo fecha-da. Assim, em seus níveis mais profundos, a vida grupal seria experimentada como

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infinita e atemporal, semelhante à vivência intra-uterina. (Cf: FONTANA (A) et al.El tiempo y los grupos. Buenos Aires: Editorial Vancu, 1977, p. 68, ss.)

14 Cf: BERGSON, H. Essai sur les données immédiates de la conscience. 120 ed. Paris: PUF,1967.

15 ANZIEU, D. Le moi-peau. Paris: Dunod, 1985.16 Entre outras alusões a essa questão, ver: FREUD, S. Além do princípio do prazer

(1920). Rio de Janeiro: Imago, 1976, XVIII vol. da edição Standard das ObrasCompletas de Sigmund Freud, p. 42.

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O tema que abordarei tem retido minha atenção há vários anos.2 Arazão é simples: como muitos outros autores, fiquei irritado com o suces-so das teses sobre a morte do sujeito (desenvolvidas por discípulos dog-máticos de Michel FOUCAULT) e com as teses sobre a história como pro-cesso sem sujeito (L. ALTHUSSER). De minha parte, pareceu-me sempreaberrante fazer desaparecer o indivíduo humano do movimento da histó-ria, pois, em maior ou menor grau, ele participa da dinâmica de umadeterminada sociedade, como psique, como lugar de condutas significa-tivas e como ser em interação contínua com outros, em grupos e organiza-ções. Fazer desaparecer o indivíduo ou o sujeito (voltarei mais tarde àdistinção que é possível fazer entre esses dois termos), sob o pretexto deque o pensamento “de direita” só tinha encarado a história sob o ângulo daação dos grandes homens, pareceu-me o sinal do triunfo de teorias queenaltecem, mesmo sem dizê-lo, um determinismo absoluto dos processossociais. Seguindo essas abordagens, o indivíduo só pode endossar con-dutas enunciadas como legítimas por sua nação, sua classe ou sua raça.O indivíduo torna-se, assim, um ser falado, um ser agido; ele nunca é umser falante nem um autor de seus atos.

É contra essa tendência reducionista, que nega a interrogação de D.LAGACHE, segundo a qual “o papel das personalidades individuais nahistória não pode ser descartado a priori”, que decidi me manifestar.

No momento atual, meu propósito é susceptível de ser consideradocomo modismo. As grandes determinações sociais estão enterradas (semdúvida um pouco precipitadamente demais) e, ao invés, só se fala doindivíduo, do sujeito, do aumento do individualismo. No entanto, não éporque esse tema voltou violentamente que vou abandoná-lo. Com efeito,por um lado, fui um dos primeiros a abordá-lo e não tenho nenhumarazão para me desdizer; por outro lado, a argumentação que proponho seafasta da que tem sido habitualmente apresentada.

O PAPEL DO SUJEITO HUMANO NA DINÂMICA SOCIAL1

Eugène Enriquez

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Para ir diretamente ao cerne do assunto, gostaria de partir de umaconsideração trivial: todo indivíduo nasce em uma sociedade que ins-taurou, em parte voluntariamente, em parte inconscientemente, umacultura. Em outras palavras, é impossível analisar a conduta de umindivíduo sem referi-la à conduta dos outros para com ele, conduta es-truturada social e culturalmente. Nessas condições, para retomar a ter-minologia de C. CASTORIADIS, todo indivíduo é fundamentalmenteheterônomo, isto é, ele só existe e só pode funcionar no interior de umsocial dado, de uma cultura particular que desenvolve suas “significa-ções imaginárias” (CASTORIADIS)3 específicas e que lhe dita, em parte,sua conduta. Nessas condições, é preciso pressupor, logicamente, a an-terioridade dos processos sociais, já que nascemos sempre em um gru-po, em uma etnia, em uma classe, em uma nação etc.

Essa emergência acontece, além disso, numa sociedade que é, elaprópria, heterônima, já que ela não se pensa como sendo o produto daação histórica e da atividade psíquica de seus membros, mas como estan-do submetida a um Sagrado Transcendente, que pode tomar a forma detotens, de antepassados e de Deuses, ou de um Deus único, que lhe deudireito à existência. Uma tal sociedade heterônima tem, portanto, tendên-cia a só produzir indivíduos heterônimos, conformados a seus votos e aseus ideais. Não é necessário, no entanto, ir muito longe nesse sentido, ouseríamos constrangidos a nos alinhar à tese que quero combater: a dodeterminismo social que traz, ao mesmo tempo, o esvaziamento da histó-ria (já que a história tem um sentido predeterminado, quer seja por Deus– BOSSUET, BURKE, DE MAISTRE –, quer pelo desenvolvimento dasforças produtivas – MARX, LENIN) e o do papel do indivíduo em umprocesso que se desenvolve segundo uma lógica implacável. De fato, associedades nunca são totalmente heterônimas. Elas crêem em seus Deu-ses e em seus mitos, mas só até certo ponto (Paul VEYNE4 teve razão aoperguntar se os gregos acreditavam em seus mitos). Freqüentemente, elassouberam mantê-los “à maior distância possível”,5 a fim de que eles de-sempenhassem seu papel de garantia das vidas psíquica e social, masdeixassem também, a cada homem, “a possibilidade de saber que alhures,num lugar-tela, se projetam os desejos mais insatisfeitos e ficar seguro deque esse alhures não virá invadir o aqui da vida cotidiana”.6

Só quando os religiosos cedem ao desejo de instaurar um Estadoteocrático, que pode exigir o sacrifício de seus membros pela causa queencarna, é que a distância não pode mais ser mantida e que é possívelsituar a sociedade completamente (ou quase completamente, porque todasociedade comporta falhas, zonas inexploradas, portadoras de

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mudanças possíveis) do lado da heteronomia. Notemos que as socieda-des modernas, desde a Renascença e, sobretudo, desde a RevoluçãoFrancesa, souberam deixar sua parte ao religioso sem lhe atribuir umaautoridade essencial sobre as consciências nem um papel central naorganização. Elas se tornaram, mesmo sem percebê-lo, cada vez maisfundadoras delas mesmas e afastaram um pouco seu aspecto heterôni-mo e, em certos casos, fanático.7

Quanto ao indivíduo humano, ele também só é parcialmente heterô-nimo. Embora exista, em toda sociedade, um discurso dominante, essediscurso é modulado diferentemente pelos diversos grupos e classes quecompõem essa sociedade e, às vezes, até mesmo se choca, não a um con-tra-discurso organizado mas, como dizem FRITSCH e PASSERON, cho-ca-se a condutas que se referem a outros valores e hábitos, ignorandosoberanamente a ideologia dominante. Além disso, não se pode esquecerque o discurso, por mais totalitário que seja, não reina totalmente sobre asconsciências e os inconscientes e que ele provoca fenômenos de rejeição,a médio ou a longo prazo. É claro que conseqüências danosas podemdecorrer de tal discurso. Mas, como FREUD aponta:

não parece que se possa levar o homem, seja lá por que modo, atrocar sua natureza pela de um térmita; ele sempre estará incli-nado a defender seu direito à liberdade individual, contra a von-tade da massa.8

Enfim, devemos nos lembrar que cada indivíduo é um desvio emrelação a todos os outros, na medida em que sua psique se estruturaprogressivamente, apoiando-se nas funções corporais, em pessoas e gru-pos sempre diferentes. Deve-se, portanto, concluir que o indivíduo maisheterônimo (mais conformado aos imperativos sociais) está sempre emcondições de demonstrar, como evocava FREUD, uma “parcela de origi-nalidade e de autonomia”.

Acrescentarei ainda que o indivíduo desempenha sempre, de maneirainvisível, pelo menos de imediato e, às vezes, sem sabê-lo, um papel essen-cial nas transformações sociais. O que escreve CASTORIADIS a respeitodo nascimento do capitalismo esclarece esse ponto:

Centenas de burgueses, visitados ou não pelo espírito de Calvi-no e pela idéia de ascese intramundana, se põem a acumularriquezas. Milhares de artesãos arruinados e de camponeses esfa-imados encontram-se disponíveis para entrar nas fábricas. Al-guém inventa uma máquina a vapor, outro um novo tear. Fi-lósofos e físicos tentam pensar o universo como uma grandemáquina e buscam encontrar suas leis. Reis continuam a se

O papel do sujeito humano na dinâmica social

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subordinar e a debilitar a nobreza e criam instituições nacionais.Todos os indivíduos e grupos em questão perseguem fins quelhes são próprios. Ninguém visa à totalidade social enquantotal. No entanto, o resultado – o capitalismo – é de uma ordemcompletamente diferente.9

Assim, se os processos psicogenéticos pressupõem, então, os proces-sos sociais, como sublinha CASTORIADIS, estes últimos nunca regulamcompletamente a conduta individual, sempre imprevisível, ainda maisporque não são desprovidos de ambigüidade, de ambivalência e de con-tradição (salvo no caso da “horda primitiva” ou de uma sociedade queerigiu um Estado total, dominando os homens pelo terror e pela opressãointeriorizados).

Tendo argumentado que a heteronomia completa não pode existir,fico mais à vontade para me distinguir de uma certa tendência do pensa-mento contemporâneo, relativa ao papel do indivíduo e do primado doindividualismo. Poderei também precisar as diferenças que estabeleçoentre indivíduo e sujeito (mesmo observando que essas diferenças podemser de natureza ou simplesmente de grau).

De fato, a individualização, objeto de tantas preocupações, é, maisfreqüentemente, apenas um elemento do processo de massificação. Secada um deve manifestar sua singularidade, deve fazê-lo porque todos osoutros estão submetidos à mesma injunção. Um diretor de pessoal deuma grande empresa dizia recentemente a seus gerentes: “Todos vocêsdevem se tornar criativos”. Assim, cada um deve ser criativo à sua manei-ra, mas a criatividade torna-se uma norma irrefutável. E esse diretor con-tinuava: “Quero ver vocês todos como uma única cabeça”. O conformis-mo está diretamente implicado em uma tal concepção do individualismo.Assim, em nossa época, não é bom fazer parte dos que não são combaten-tes, “matadores frios”, vencedores que querem ir até o fim, que gostam detomar iniciativa e gostam do risco, que estão prontos a se “exaurir” pelotriunfo da equipe, do seu serviço, da sua organização. Uma nova éticapuritana se organiza: o vencedor deve experimentar uma ascese, deve sesacrificar (sacrificar sua vida, seu tempo, sua família) pela organizaçãoda qual ele veste a camisa. Ele deve gozar com essa renúncia, pois não hátarefa mais elevada do que desempenhar a missão que lhe foi confiada.Nessa ética, o elemento esportivo predomina, porque o homem de suces-so não é o homem nobre nem o virtuoso, mas é o homem da performancemensurável, performance sempre a recomeçar, a vitória nunca sendo defini-tiva. Ao contrário, ela pode ser bem efêmera. O winner sempre pode setornar o looser. Max WEBER não se enganava quando escrevia: “Quando

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o exercício do dever profissional não pode ser ligado a valores espirituaise culturais mais elevados, o indivíduo renuncia, em geral, a justificá-lo”.Nos Estados Unidos, onde seu paroxismo predomina, a busca da rique-za, desvestida de seu sentido ético-religioso, tende, hoje em dia, a se asso-ciar a paixões puramente agonísticas, o que lhe confere, na maioria dasvezes, características de um esporte.10

Assim, quando se fala do indivíduo, tem-se no pensamento um in-divíduo conformado, que deve funcionar segundo comportamentos queagradem à sociedade. Esse movimento de conformismo não fascina so-mente os indivíduos que trabalham na indústria e no comércio. Tem re-percussões e impacto profundo em todos os membros da sociedade, pelopróprio fato da empresa ter conseguido vender sua paixão pela eficáciaao conjunto do corpo social e, assim, ter exportado seus valores para forade seu campo restrito. Todos os indivíduos devem ter agora o espírito deempresa, quer se trate de pessoas que trabalhem na empresa, nas univer-sidades, nos hospitais. A adesão à “cultura da empresa” torna-se dogma;o “culto da empresa”, um novo ritual.

É particularmente perturbador o fato de que esse movimento nãoapenas invade todos os campos da vida social, mas que, além disso, nãose restringe a pessoas susceptíveis de obter satisfações tangíveis, finan-ceiras ou de prestígio, ou ainda, posições de poder. Ele atinge, igualmen-te, os que W. REICH, naquele tempo, designava por “zé-ninguém”,11 osque tendem a se tornar transmissores dos ideais da sociedade. REICHmostrava que o “zé-ninguém” admirava tanto os que ele acreditava se-rem grandes, aqueles a quem chamamos vencedores, que ele se desfaziade sua capacidade de liberdade e de produção de idéias, para depositarseu destino nas mãos dos outros, algumas vezes mostrando-se mais “re-alista que o rei”. O “zé-ninguém” está sempre, igualmente, na primeirafila para aplaudir os grandes e dar consistência a todos os movimentosautoritários de tipo mais ou menos fascistizante. Como escreve REICH:

O grande homem sabe quando e em quê ele é “zé-ninguém”. O “zé-ninguém” ignora que ele é “zé-ninguém” e tem medo de ter cons-ciência disso. Ele dissimula sua pequenez e sua estreiteza de espíri-to por trás de sonhos de força e de grandeza, atrás da força e dagrandeza de outros homens. Orgulha-se dos grandes chefes de guer-ra, mas não se orgulha de si mesmo. Admira o pensamento que elenão concebeu, em vez de admirar o que ele concebeu.12

Por isso é que ele pode propagar a “peste” emocional, a renúncia aopensamento como prazer de representação ininterrupta e processo desti-nado a todos os homens.

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O processo de individualização, favorecendo a singularidade namassificação buscada e aceita por grandes, médios ou pequenos homens,é, então, a condição de produção e de representação de indivíduos que sesituam mais na heteronomia do que na autonomia.

Resta-me, depois de descrever esse fenômeno, agora bem conhecido,tentar interpretá-lo e demarcar sua abrangência. Só com essa condiçãoserá possível refletir sobre o que constitui o surgimento do sujeito.

Esses indivíduos heterônimos (levando-se em conta que a heterono-mia total não existe nesse mundo) precisam, para existirem, idealizar asociedade e os ideais que ela propõe. Em outras palavras, eles funcionam(mais do que vivem) sob a égide da doença do ideal. Quanto mais os ideaissão necessários à constituição do sujeito, pois lhe fornecem uma base e opoder de escolher entre ações legitimadas pela sociedade – ou por suaspróprias exigências pessoais –, tanto mais a doença do ideal (a idealiza-ção) desempenha um papel fundamental na edificação de uma sociedadee de indivíduos heterônimos. Por que a idealização desempenha um pa-pel tão importante?

Porque ela nos tranqüiliza profundamente: uma sociedade idealiza-da, apresentando-se como objeto maravilhoso, é a melhor garantia denossa estabilidade psíquica. Ela transmite uma mensagem de serenida-de: a ordem social existe e nos preserva de toda interrogação fundamentala seu respeito (especialmente sobre o caos originário, sempre ameaçador);o mundo criado não é contestável, a sociedade dá um sentido preestabe-lecido a nossas diversas ações e nos indica, portanto, o que devemos fazere como seremos recompensados. A idealização permite a cada um sentir-se parte interessada no devir social e ser liberto de seu desamparo origi-nal, evocado por FREUD no Futuro de uma Ilusão, angústia de estar semproteção e ser abandonado, rejeitado pelas autoridades tutelares que as-sumem o papel de pais benevolentes. Além disso, ela lisonjeia nosso pró-prio narcisismo. Se adoramos chefes que encarnam ideais fortes ou so-ciedades aparelhadas de virtudes admiráveis, nós próprios nos tornamosadmiráveis. Miramo-nos no espelho que nos é estendido pelo próprioobjeto de nossa admiração.

A idealização é, assim, o mecanismo central que permite a toda socie-dade instaurar-se e manter-se e a todo indivíduo viver como um membroessencial desse conjunto, correndo um mínimo possível de riscos. É porisso que o indivíduo pode aceitar recalcar seus desejos, reprimir suas pul-sões, aderir profundamente às injunções sociais e, às vezes, ser um agenteativo desses processos de recalque, de repressão e de adesão. Ele troca sualiberdade pela segurança de manter seu narcisismo individual, apoiado

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pelo narcisismo grupal ou social (pois cada grupo ou cada sociedadequer formar um “nós” indissociável).

É necessário precisar esse último ponto. Vivemos em sociedadesnas quais, de fato, os ideais são múltiplos, contraditórios, nas quais,dificilmente, eles suscitam a aceitação ou a identificação. Vivemos umdéficit de ideais transcendentes, enquanto o século XIX nos tinha dadocomo ideal o progresso infinito do espírito humano em sua vontade dedomínio científico do mundo. De fato, estamos divididos e angustiados.Perdemos progressivamente nossos marcos identificatórios. É o momen-to em que as identidades pessoais começam a deteriorar e as sociedadestentam redefinir identidades coletivas fortes, mesmo se os ideais que elastêm a nos propor são, freqüentemente, ideais vazios e desprovidos desentido. (Com efeito, que sentido pode ter ganhar por ganhar, produzirpor produzir, consumir por consumir?)

Ora, a tentativa de refazer identidades coletivas fortes, provocandoa idealização (quando as causas a defender e os projetos a realizar nãosão evidentes), está cheia de perigos. A identidade coletiva, o narcisis-mo social, tem como futuro possível a xenofobia, o racismo, o fanatismo.G. DEVEREUX expressa-o muito bem:

O ato de formular e de assumir uma identidade coletiva maciçae dominante – e isso, qualquer que seja essa identidade – consti-tui o primeiro passo para a renúncia ‘definitiva’ à identidadereal. Se somos apenas um espartano, um capitalista, um proletá-rio, um budista, estamos perto de não ser absolutamente nada e,portanto, de simplesmente não ser.13

Reencontrar a coesão, graças a identidades coletivas fortes, é se voltarao grupo de pertinência, ao nosso “nós”, é imputar os problemas ao outro,sem se dar conta de que, através desse processo, nós próprios nos dissolve-mos enquanto portadores de uma identidade irredutível à dos outros. Érecusar (como já apontei anteriormente) o fato de que somos o produto deidentificações múltiplas, de que podemos ter marcos identificatórios mutá-veis ao longo de nossa vida e de que, graças a esse jogo identificatório,podemos escapar à pré-formação desejada pela sociedade e não nos tornarindivíduos totalmente heterônimos.

A identidade coletiva favorece ainda, como mostrou FREUD,14 o “nar-cisismo das pequenas diferenças”, que tem como efeito “unir uns aosoutros, pelos vínculos do amor [e eu mencionaria os da fascinação, dasedução ou da obrigação], uma massa maior de homens, com a únicacondição de restarem ainda outros de fora para serem alvos de ataques”.

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Esse “narcisismo” permite “uma satisfação cômoda do instinto agressi-vo e através dela a coesão da comunidade se torna mais fácil para seusmembros”. Não podemos, no entanto, esquecer que esse “narcisismo gru-pal” pode até chegar ao racismo exacerbado e, daí, ao fanatismo religiosoe político que permite a indivíduos de uma cultura não suportarem omenor desvio da parte de outros que compartilham a mesma cultura.Com efeito, quanto mais uma cultura se quer unificada, mais intoleranteela se torna e mais ela deseja a morte dos outros ou, ao menos, a suaconversão. Ela é animada pelo ódio e por uma alucinação coletiva, naqual se forja uma imagem dos estrangeiros (ou dos desviantes) como per-seguidores onipotentes e, portanto, seres a eliminar. O indivíduo que ade-re sem falha a esse tipo de cultura só pode se sacrificar por ela e compor-tar-se de forma heterônima. Vê-se, portanto, que, quanto mais a identidadecoletiva existe, menos o questionamento é possível e menos os indivíduospodem tentar aceder à autonomia.

O indivíduo individualizado (e não individuado, a individuação estan-do do lado da constituição do sujeito), o indivíduo singular, preso namassificação obtida pelo apego às identidades coletivas, não pode serconsiderado como sujeito humano. Tal indivíduo só sabe repetir, repro-duzir, recriar o funcionamento social tal como ele é (salvo a reserva já feita– mas sobre a qual faço questão de insistir – de que um tal indivíduo,totalmente pré-formado e definido pela sociedade, sempre tem em si mes-mo os recursos para se libertar das malhas do social).

A essa figura do indivíduo individualizado opõe-se seu inverso: afigura do sujeito. O sujeito humano é aquele que tenta sair tanto da clausurasocial quanto da clausura psíquica, bem como da tranqüilização narcísica,para se abrir ao mundo e para tentar transformá-lo. Quando digo que osujeito transforma o mundo, as relações sociais, as significações das ações,não quero identificá-lo ao grande homem que tem uma visão globalizan-te, que visa à transformação da totalidade enquanto tal. Quero simples-mente dizer que cada um, aceitando as determinações que o fizeram talcomo é, tem como projeto voluntário, nos lugares da vida cotidiana, emsua vida de trabalho, em suas relações sociais de todos os dias, tentarintroduzir uma mudança em si mesmo e nos outros, por mínima que seja,a respeito de qualquer tipo de problema.

O sujeito é um ser criativo. Para definir criatividade, o melhor é citarWINNICOTT:15

A pulsão criativa pode ser vista em si mesma; bem entendido,ela é indispensável ao artista que deve fazer obra de arte, masela está igualmente presente em cada um de nós – bebê, criança,

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adolescente, adulto ou velho – que pousa um olhar surpresoem tudo o que vê; ela está presente em quem faz, voluntaria-mente, qualquer coisa – seja uma lambuzada com seus excre-mentos, seja um choro intencionalmente prolongado para sabo-rear sua musicalidade. Essa pulsão criativa aparece tanto na vidacotidiana da criança retardada, que sente prazer em respirar,quanto na inspiração do arquiteto que, de repente, sabe o quequer construir e pensa então nos materiais que poderá utilizar, afim de que sua pulsão criativa tome forma e figura, e que omundo possa testemunhá-la.

A referência a WINNICOTT significa que não me interesso particu-larmente pela vontade que os grandes homens têm de transformar todasas variáveis do mundo (uma tal preocupação é a de um espírito “elitis-ta”); levo a sério, em compensação, a vontade de cada um de fazer mudaras coisas (pequenas e grandes) e o desejo de criar, aqui e agora, uma novida-de irredutível. Os artistas não se enganaram a esse respeito.HUNDERTWASSER declara a seus alunos:

Se vieram para aprender, é ainda pior, porque vão aprendercoisas que não lhes são próprias, que não correspondem a vocêse que estragarão suas vidas. A única maneira de se encontraremenquanto artistas é através de sua própria ação criadora16 e issopode ser feito somente em suas casas, não na escola!.

Paul KLEE escreve:

O que quero ensinar a meus alunos não é a forma fechada, imo-bilizada; é a formação, a gestação, o nascimento, o primeiromovimento indistinto da matéria, antes que ela se fixe em natu-reza morta... Quanto mais longe mergulha o olhar do artista,mais seu horizonte se alarga do presente ao passado. E mais seimprime, em lugar de uma imagem da natureza, aquela únicaque conta – a criação enquanto gênese.

Marcel DESCHAMP exclama: “Alarguei a maneira de respirar” e o poetaVictor SEGALEN, em seus Conselhos a um viajante, assim se expressa:

Evita escolher um lugar de asilo... chegarás, meu amigo, não aocharco das alegrias imortais, mas aos remansos cheios de em-briaguez do grande rio diversidade.

O sujeito é, portanto, um ser capaz, ao mesmo tempo sapiens, demens(objeto da hybris), ludens e viator, homem portanto de sabedoria e loucura,do jogo e da vagabundagem, respirando a plenos pulmões um ar salubre,dando “um sentido mais puro às palavras da tribo” (MALLARMÉ), inte-ressando-se mais pela germinação das coisas do que pelos resultados

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tangíveis, inebriado pela diversidade da vida e capaz de percebê-la; por-tanto, homem que sabe desposar suas contradições e fazer de seus confli-tos, de seus medos, de suas metamorfoses a própria condição de sua vida,sem dominar o caminho que toma nem as conseqüências exatas de seusatos; homem apto a recolocar em jogo sua vida e a correr riscos.

Foi por isso que chamei esse sujeito de criador da história.17 Porém, épreciso parar um momento, porque uma armadilha nos espera aqui: ocriador de história, em particular o grande homem, freqüentemente é ape-nas um “indivíduo individualizado”, preso na ganga dos ideais, mesmose tem a aparência de um sujeito que teve uma influência primordial nadinâmica social.

Os grandes homens correspondem efetivamente à definição de pesso-as que querem criar coisas voluntariamente. No entanto, estão presos à fanta-sia do dominação total que os leva a negar a alteridade do outro (e, aliás, asua própria alteridade). Michel SERRES, a esse respeito, propõe uma visãototalmente negativa:

Não digo: há loucos perigosos no poder e um só bastaria. Masdigo: no poder só há loucos perigosos. Todos jogam o mesmojogo e escondem da humanidade que eles preparam sua mortesem acasos, cientificamente.18

Essa visão é radical e não posso compartilhar inteiramente dela. Oque não impede que ela tenha uma parte de verdade. Com efeito, entre osgrandes homens, pode-se identificar os megalômanos ocupando umaposição paranóica, os manipuladores ocupando uma posição perversa,os sedutores ocupando uma posição histérica. Caracterizemos rapida-mente esses três tipos. O megalômano, um pouco paranóico, sente-se elei-to por Deus, pela natureza, para realizar uma missão salvadora, paralavar o mundo de sua sujeira, fazendo-o tomar consciência de sua culpa-bilidade, assegurando-lhe a redenção, recriando-o apenas pela palavra einstalando-se num imaginário enganoso (no qual tudo se torna possível).Assim, há o exemplo – estudado por FREUD19 – do presidente WoodrowWILSON, identificado a seu pai, pastor presbiteriano que lhe havia reser-vado o papel de salvador do mundo. WILSON acreditava-se eleito porDeus (seu pai encarnando a palavra divina) para propor, depois da guer-ra de 1914-1918, os fundamentos de uma paz geral e definitiva entre asdiferentes nações em guerra. Sabe-se o que aconteceu com esse projetograndioso: o desmembramento do império austro-húngaro deu à Alema-nha a hegemonia da Europa Central e foi um dos fatores da segunda guerramundial. Essa desagregação da Europa Central tem ainda, atualmente,

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efeitos devastadores (aumento dos nacionalismos e do anti-semitismo).“Eis as conseqüências dos atos ‘virtuosos’ daquele que se tomava comoo Jeová dos Hebreus”, segundo FREUD e BULLITT,20 do homem quedeclarava, durante a campanha para a sua eleição à presidência dosEstados Unidos, a um de seus detratores:

Lembre-se de que Deus quis que eu fosse presidente dos EstadosUnidos e que nem você nem nenhum mortal pode impedi-lo.21

Assim também HITLER, caso bem conhecido e, ao mesmo tempo,complexo demais para ser evocado em poucas linhas, quis fazer do ale-mão o povo eleito e, para isso, deveria fazer desaparecer o outro povo quese considerava objeto da eleição divina, o povo judeu. Poder-se-iam citarmuitos outros nomes; basta o de STALIN, obcecado com a força pela for-ça, inventando complôs, incapaz de viver sem inimigos e fazendo seupovo pagar pelo fruto de seu delírio paranóico.

Quanto ao manipulador perverso, esse está, por sua vez, possuídopela fantasia do domínio total dos seres e das coisas, crê falar a lingua-gem da verdade, reduz as relações humanas a relações de objetos, sóconsidera o mundo sob o ângulo econômico. LENIN, que não tinha inte-resse algum pelos outros, que queria dobrar o mundo à sua vontade, quetomou o poder contra os mencheviques, graças a um golpe de força (por-que o perverso não ama o real e, ao contrário, denega a realidade), queestava pronto a utilizar qualquer meio para chegar a seus fins, é um bomexemplo desses chefes perversos; a um nível mais irrisório, os tecnocra-tas, recém-saídos das grandes escolas, quiseram dobrar o mundo a seusmodelos e a suas equações.

O sedutor histérico é o novo tipo de grande homem em voga. Ele vê omundo como um grande teatro e tem o papel de escrever a peça maispersuasiva, de assegurar a mise-en-scène mais ao gosto da mídia e de ser oator com melhor desempenho. O teatro é também para ele um terreno deesportes, como já indiquei anteriormente. Ele é histérico na medida emque erotiza o conjunto das relações sociais, onde gosta da performance porela mesma (ela dá satisfação a seu eu grandioso, que toma a si mesmo porideal), só pensa em termos de estratégia, tem gosto pelo instantâneo, peloacontecimento (Bernard TAPIE declara: sou um ser dos acontecimentos).O surpreendente é que esse homem não se reivindique capacidades ca-rismáticas excepcionais, como WILSON ou HITLER, ou capacidades ma-nipulatórias, nem uma força de pensamento e de ação, como LENIN: aocontrário, ele se proíbe de ser excepcional. Sua mensagem é simples: “Souadmirável porque o quis e qualquer um de vocês pode se tornar admirável,

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se fizer como eu, se tiver tanta coragem quanto eu”. O grande patrãoitaliano C. de BENEDETTI exprime muito bem essa posição:

Na Itália, meus aliados (...) são as pessoas comuns, porque sou, aseus olhos, uma demonstração do possível (...). Se elas tomaremum grande patrão italiano, AGNELLI por exemplo, não podemsonhar em se tornar AGNELLI. AGNELLI a gente nasce, não setorna. Em contrapartida, é possível tornar-se DE BENEDETTI, hámilhares de empresários na Itália que podem querer isso e espe-rá-lo. Partem de uma situação similar à minha e o tempo neces-sário para isso não parece uma duração mítica, mas uma duraçãorealista.

Pode-se compreender o sucesso de um tal modelo, pois ele prome-te a qualquer um, com a condição de ser corajoso, poder ser um verda-deiro chefe de empresa (e o que é mais glorioso atualmente que chegara esse lugar?).

Poderia acrescentar à minha panóplia de “caracteres” os antigos bu-rocratas obsessivos que fizeram sua carreira à sombra de grandes homens(os apparatchiki) e que um dia se tornam uma mistura de manipuladores-perversos e de sedutores-histéricos, como GORBATCHEV. Mas uma talevolução e uma tal mistura de estilo é ainda muito nova para ser descrita eexplicada de maneira rigorosa. Tentarei em outra ocasião.

Em todo caso, se os megalômanos-paranóicos podem parecer maisou menos “doidos” segundo a concepção de Michel SERRES, os outrosescapam a essa denominação. Eles se apresentam, ao contrário, comoindivíduos perfeitamente normais. Mas, talvez, de uma normalidade es-magadora. M. CHIRAC declarou um dia: “Eu não sonho, não tenho dúvi-das morais”. Podemos nos perguntar se essa falta de fantasia não é umpouco perigosa para quem fala e para aqueles a quem ele se dirige. Apsicanalista Joyce McDOUGALL22 caracteriza essas pessoas como “ca-racteriais de tipo normal”. Ela descreve a seu respeito:

O caracterial de tipo normal criou para si uma carapaça que oprotege de todo despertar de seus conflitos neuróticos e psicó-ticos. Ele respeita as idéias recebidas como respeita as regrasda sociedade e não as transgride jamais, nem mesmo na imagi-nação. O sabor da madeleine não desencadeia nada nele e ele nãoperderá seu tempo em busca do tempo perdido. Mesmo assim,ele perdeu alguma coisa. Essa normalidade é uma carência queatinge a vida fantasmática e que afasta o sujeito dele mesmo.

Em outras palavras, um indivíduo sem fantasias, sem interrogação,sem dúvida, um sujeito encarapaçado (segundo o termo de McDOUGALL)

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ou encouraçado (segundo a terminologia de REICH) está afastado delemesmo e, mais ainda, dos outros. Pode-se então perguntar se essa hiper-normalidade lhe permite ser sensível à surpresa, ao inusitado, a perceberas coisas e os seres sob outro ângulo, criar seja lá que novidade for.

Teríamos, assim, nas duas extremidades: os loucos de poder e oshiper-normais. Eles têm uma influência social inegável, pois exprimemem voz alta o pensamento banalizado e dão satisfação aos desejos recal-cados. São mesmo os mais numerosos entre as pessoas que ocupam postos deresponsabilidade. Mas não são verdadeiros criadores de história, no sentidoque dou a esse termo, pois falta a ambos, conforme McDOUGALL, “umacerta anormalidade” (uns pecam pelo excesso, outros pela falta) que lhespermitiria “manter os olhos ávidos da infância” (McDOUGALL) e tervontade “de tudo questionar, de tudo desarrumar, de tudo realizar”(McDOUGALL). São desprovidos da aptidão à transgressão. Não confiamna “imaginação radical” (CASTORIADIS) que jaz em todo ser humano. E,assim, só sabem repetir, reproduzir. São portadores da pulsão de morte,tanto em sua forma violenta como em sua forma sedutora.

A noção de sujeito torna-se precisa: não é apenas alguém que traz umprojeto voluntário, é também um ser que atinge “um certo grau de anor-malidade” e que está em condições de interrogá-lo, de se lançar no desco-nhecido, de ter – segundo o termo de FREUD – “uma alma de conquista-dor”, mesmo se nada descobre, mesmo se não provoca mais que um leveimpacto sobre o movimento do mundo. É também um homem que de-monstra consistência. S. MOSCOVICI, a partir de trabalhos de PsicologiaSocial Experimental que desenvolveu com C. FAUCHEUX, insiste sobreessa noção, “que significa, por um lado, o caráter irrevogável de sua esco-lha e, por outro, a recusa de compromisso sobre o essencial.23 Em certosentido, o sujeito é um homem movido por uma idéia fixa, como FREUDquando enunciava: “A Psicanálise é a minha causa”. Vê-se bem aqui adiferença entre consistência e coerência. Um ser coerente tem uma perso-nalidade compacta, sem falhas. Corre pela vida como em uma auto-estra-da. Ele não tem projeto, a não ser o de continuar a fazer funcionar asociedade tal como ela é. Um ser consistente pode ter dúvidas, tomarcaminhos transversais, recolocar em questão algumas de suas idéias (comoFREUD ou MARX, remanejando continuamente suas análises e suas teo-rias). Mas ele conserva o mesmo projeto, que é um verdadeiro projeto exis-tencial: permitir a tomada de consciência, fazer advir o sujeito individual,em FREUD; favorecer a tomada de consciência de situações reais, fazer ad-vir o sujeito coletivo, em MARX. Se o sujeito evolui, ele o faz em sua linha,em sua linhagem, na tradição da qual é herdeiro e que enriquece e deforma.

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Mas essa consistência deve ser perceptível e deve poder provocar rea-ções e discussões. MOSCOVICI, igualmente, acrescenta que um tal sujeitodeve “optar por uma posição clara, visível e, em seguida, criar e sustentarum conflito com a maioria, lá onde a maioria é tentada a evitá-lo.”

O sujeito não é homem de comprometimentos. Ao mesmo tempo, éuma pessoa capaz de criar redes de alianças, pois sabe que se ele seencontrar sozinho, se outros não podem se identificar a ele e com suacausa, só poderá fracassar (não é à toa que a criação da Associação Inter-nacional de Psicanálise pode tranqüilizar FREUD e que a criação da 1a

Internacional era ardentemente desejada por MARX). A idéia fixa nãoimpede a astúcia (no sentido da Mètis dos gregos) e o aproveitamento daoportunidade, quando ela se apresenta. ARISTÓTELES dizia que o ho-mem de gênio deveria saber utilizar o Kairos, a ocasião. Aqui não se tratade manipulação, porque o sujeito deve estar cheio de furor (de hybris),deve ser capaz de sair dele mesmo (ek-stase), para fazer triunfar suasidéias. ARISTÓTELES já o sabia e o mostra muito bem no “problematrinta”, recentemente republicado. Consistência e furor, consistência eastúcia andam juntas. Nem MARX nem FREUD foram pessoas boazi-nhas; no entanto, souberam conciliar furor, consistência e astúcia, o quenão é nada fácil.

Uma outra característica do sujeito é a de viver como um “exota”,segundo a expressão de V. SEGALEN. Para SEGALEN, o exota é aqueleque tem a percepção do diverso e o poder de conceber outro, sendo assimaquele que olha o mundo como se o visse pela primeira vez. Ele é, portanto,o homem pronto a ser tomado pela surpresa e pelo inusitado, como tambéma provocá-los. Está muito próximo do que BLANCHOT evoca a respeito dohomem votado ao exílio, à dispersão. BLANCHOT escreve:

há uma verdade do exílio, há uma vocação do exílio” e essavocação “é a dispersão, porque a dispersão, da mesma formaque apela para uma estadia sem lugar, da mesma forma querenega toda relação fixa entre a força e um indivíduo, um grupoou um Estado, delimita também, diante da exigência do todo,uma outra exigência e, finalmente, interdita a tentação da Uni-dade-Identidade.24

O “exota”, o exilado, não pode jamais estar colado a uma organiza-ção, a um Estado, a uma identidade coletiva. É possível ser um “exota” nasua própria sociedade, sentir-se à margem mesmo se a sociedade desejasua integração. O que é interessante, no momento atual, é que, em vistados movimentos de migração que se intensificam, serão vistos cada vezmais “exotas” reais, isto é, pessoas vindas de outros países, provenientes

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de outras culturas, pessoas que, assim, necessariamente, pousarão umolhar novo e surpreso sobre a sociedade que os acolhe e que, quer queiramou não, questioná-la-ão e a influenciarão, do mesmo modo que serão in-fluenciados por ela.

Os “exotas”, entretanto, não ficarão presos no processo de idealiza-ção. Estarão, ao contrário, presos na necessidade de sublimação, como os“exotas” indígenas que teriam escolhido esse destino.

Serei breve sobre o processo de sublimação, sobre o qual discorrivárias vezes em textos recentes.25 Deixarei de lado o aspecto indispensá-vel da atividade de sublimação na formação do vínculo social, na medidaem que é evidente, agora, que nenhuma sociedade poderia ter sido funda-da se os homens não pudessem ter passado do prazer sexual direto aoprazer da representação e da imaginação, se eles não pudessem ter passa-do da satisfação das pulsões egoístas àquelas obtidas pelo agenciamentode pulsões altruístas, valorizadas socialmente.

Parece-me mais importante observar que a sublimação implica noreconhecimento, por cada um, de sua própria estranheza, da estranhe-za dos outros e no desejo de propor, sem vontade de dominação, aoconjunto dos indivíduos com os quais se vive, uma investigação con-junta e partilhada. Sublimar é aceitar sua parte de estranheza, de con-tradição, de remorsos, de metamorfose ou de êxtase. O fato de poder seinterrogar sobre si mesmo, de se descobrir estrangeiro para consigomesmo (porque o ser humano se constitui na clivagem), permite consi-derar o outro como menos estranho e mais semelhante a si mesmo.Assim, o outro (ou a coisa) não é mais um ser a dominar, a domar, pornossa atividade intelectual ou física, mas alguém com quem se podetentar manter relações de reciprocidade, relações que podem se mos-trar difíceis, conflituosas se necessário, mas que tendem a ser as maissimétricas possíveis.

A sublimação não impede o ideal, mas ela luta contra a doença doideal. O sujeito é então aquele que aceita se recolocar em questão, serquestionado, ele não tem necessidade de ligações que lhe sirvamsimplesmente de apoio para existir. De fato, sublimar é difícil, porque éviver ao mesmo tempo como ser completo (homo sapiens, homo demens,susceptível de ser atravessado por afetos que não controla, que o põem emestado de desordem, sem saber se poderá aceder a uma nova ordem, homoludens e homo viator, como evoquei precedentemente) e como ser clivado,dividido, mantendo-se em pé diante da angústia provocada pela ausên-cia dos Deuses e pela possibilidade de que o outro não seja um apoio, masse revele adversário implacável. A sublimação implica, igualmente, na

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aceitação da tradição, da filiação, da dívida que temos para com os quenos precederam e para com as gerações futuras. Se a dívida não é reco-nhecida, se o homem cede à tentação de auto-engendramento, estará tal-vez em condições de se tornar um grande homem. Ele deixará apenasruínas atrás de si. Para engendrar novidades e a vida, é preciso admitirainda a violência mortífera que atua na fantasia de auto-engendramento.Sublimar é, portanto, estar consigo mesmo, com os outros, com seus paise com seus filhos, em uma relação na qual a vida palpita, vida cheia deangústia e de alegria, de possível morte e de transfiguração.

Essas pessoas que não cedem às ilusões, que vivem com os outros,não numa interrogação permanente, mas numa interrogação suficiente,colocam-se então numa história coletiva, sabendo que seu lugar nuncaestará totalmente assegurado, sentindo-se e querendo-se, em parte, inte-gradas, em parte, exiladas. São talvez elas que provocam as rupturasmais fundamentais, a possibilidade de um caminho para a instauraçãode sociedades de sujeitos mais autônomos, mesmo quando elas não osabem e mesmo quando pensam que são apenas “zé-ninguém”, sem pro-jeto voluntário verdadeiramente constituído (em tal caso, é a realizaçãode uma vida guiada por suas próprias exigências e pelo reconhecimentodo vínculo social que forma o projeto).

Essas pessoas, definitivamente, comportam-se como verdadeiros he-róis. Utilizo o termo no sentido que lhe deu FREUD: o herói, aquele queteve a coragem “de sair da formação coletiva”. Essas pessoas souberamcolocar seus ideais, reconhecer a alteridade do outro, reconhecer-se a simesmas. (O caminho para o outro passa pelo caminho para si). Esse hero-ísmo é um heroísmo partilhável. Basta que cada um queira tentar ser elemesmo com os outros. Então, o mundo será composto mais por sujeitosautônomos do que por indivíduos “individualizados” e a dinâmica socialserá o produto do confronto de homens livres e responsáveis.

Para concluir meu intento, é evidente que as condições colocadaspara atingir a plena autonomia indicam que sua ocorrência é fraca. Émais fácil deixar-se guiar que conduzir sua própria vida, mais fácil imitarque inventar, mais fácil idealizar que sublimar. Mas uma outra constata-ção é necessária: da mesma maneira que o indivíduo totalmente heterôni-mo não existe, como mostrei na primeira parte de minha exposição, osujeito inteiramente autônomo também não existe. Simplesmente porqueo homem é clivado, contraditório, mistura inextricável de pulsão de vidae de morte, capaz do melhor e do pior, freqüentemente obcecado pelopoder, pelo prestígio e sentindo um desejo de segurança narcísica e, tam-bém, porque as sociedades precisam, para se manter, de um mínimo de

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Notas1 Traduzido de ENRIQUEZ, Eugène. “Le rôle du sujet humain dans la dynamique sociale”.

Revue Européenne des Sciences Sociales. Tomo XXIX, 89, 1991, p. 75-89, por SoniaRoedel.

2 Cf. meu texto “Individu, création et histoire”. In: Connexions, n. 44, E.P.I., 1984, e ocapítulo de minha tese Pouvoir et lien social, Paris: Gallimard, 1980, intitulado “Opapel da conduta do indivíduo”.

3 CASTORIADIS, C. L’institution imaginaire de la société. Paris: Seuil, 1975.4 VEYNE, P. Les Grecs ont-ils cru a leurs mythes? Paris: Seuil, 1975.5 ENRIQUEZ, E. “Le mythe ou la communauté inchangée”. L’esprit du temps, n. 11, Ed.

de Minuit, 1986.6 Ibidem.7 Esse ponto será retomado mais adiante neste texto.8 FREUD, S. Malaise dans la civilisation (1929). Paris: PUF., 1970.9 CASTORIADIS, C., op. cit.10 WEBER, M. L’éthique protestante et l’esprit du capitalisme. Paris: Plon, 1964.

O papel do sujeito humano na dinâmica social

ilusões e de crenças, de disfarces e de hipocrisia. Cada um de nós é, defato, em certos momentos, mais um indivíduo pronto a aderir, incapaz dese colocar questões, pedindo amarras fortes, cedendo à idealização (dosDeuses, do Estado ou de um outro ser humano – caso contrário, a paixãonão seria desse mundo) e, em outros, um sujeito mais autônomo, em con-dições de questionar o mundo e a si mesmo e de procurar, tateando, seupróprio caminho. Portanto, a idéia de uma sociedade e de um sujeitotendo acedido à autonomia se dilui. O que permanece, em compensação,é a possibilidade de cada sociedade e de cada pessoa entrever a dificulda-de do caminho e de, às vezes, arriscar-se por ele. Tanto quanto é impossí-vel chegar à verdade, é impossível atingir a autonomia. Nem por isso abusca da verdade e da autonomia devem terminar. Saber que persegui-mos um fim impossível nos chama, simplesmente, para um pouco demodéstia, de humor e de ironia, em relação a nós mesmos e a nossaspossibilidades de influência. Talvez seja ao atingir a consciência de nos-sas impossibilidades que cheguemos, mais freqüentemente, a nos condu-zir de maneira autônoma e a não nos deixar prender nas ilusões que osocial difunde e das quais o ser humano é particularmente ávido. Se, àsvezes, os heróis ficam cansados, em outros momentos, podem se reerguere nos surpreender. Aceitemos o augúrio e trabalhemos cotidianamentepara fazer da “vida imediata” (ELUARD) mais um lugar de surpresas doque um lugar de repetição morna.

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11 REICH, W. Écoute, petit homme.(1948). Trad. franc. Paris: Payot, 1973.12 REICH, W. op. cit.13 DEVEREUX, G. Ethnopsychanalyse complémentariste. Paris: Flammarion, 1975.14 FREUD, S., op. cit.15 WINNICOTT, D. W. Jeu et réalité. Paris: Gallimard, 1975.16 Sublinhado por mim.17 ENRIQUEZ, E. Individu, création et histoire, op. cit.18 SERRES, M. “La thanatocracie”. Critique, março 1973.19 FREUD, S. e BULLITT, W. Le président T. W. WILSON. Nova trad. Paris: Payot,

1990.20 FREUD, S. e BULLITT, W., op. cit.21 FREUD, S. e BULLITT, W., op cit.22 McDOUGALL, J. Plaidoyer pour une certaine anormalité. Paris: Gallimard, 1978.23 MOSCOVICI, S. Psychologie des minorités actives. Paris: PUF., 1979.24 BLANCHOT, M. L’entretien infini. Paris: Gallimard, 1970.25 Citemos simplesmente o último texto publicado: Idéalisation et sublimation. Psycho-

logie Clinique, n. 3, 1990.

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O sentimento que uma pessoa experimenta de ter uma vida interior,íntima, onde ninguém tem o direito de penetrar, a não ser por arromba-mento, o sentimento de possuir um dentro que carrega sofrimento, ale-gria, questionamentos, interrogações e que, para ela, é “uma terra estran-geira”, nem sempre existiu. J. P. VERNANT, particularmente, sublinhouaté que ponto um homem grego podia se conceber como um indivíduo,um sujeito, mas não como um eu autônomo que pudesse “esconder umacoisa em suas entranhas”, segundo a palavra de Aquiles.

A vida interior obteve o direito à existência durante os séculos III e IV,quando o homem começou a tecer relações especiais com o divino e, porisso, teve de viver uma experiência de si e não apenas uma “preocupaçãoconsigo” (M. FOUCAULT, 1984). No século XVIII, século das luzes, quan-do foi dito que cada homem possui em si próprio os princípios da razão, foienunciado, simultaneamente, que o homem é também um ser de paixões ede afetos, atravessado por ventos tumultuosos (“Venez, orages désirés!”), umser que deve fazer seu exame de consciência, escrever confissões comoROUSSEAU ou manter um diário íntimo como AMIEL. Nem todos se sujei-tam a essa tarefa, mas isso não impede que nasçam, simultaneamente, ohomem plenamente racional e o homem totalmente emocional. Antes demais nada, todo homem possui, ao mesmo tempo, um cérebro e um coraçãoque ele deve sondar para se compreender e, assim, melhor guiar sua condu-ta. Nunca se insistirá bastante sobre a ligação íntima entre “paixões e inte-resses”, entre Aufklärung e o Sturm und Drang. É porque cada homem tem“dúvidas morais” e persegue a conquista de si mesmo que pode se tornar,também, um conquistador do mundo.2

Parece que essa centralização em uma interioridade (que favoreceigualmente a exteriorização) está se tornando objeto de numerosas inves-tidas por parte dos empresários, por um lado, e por parte dos fanáticosreligiosos, por outro.

A INTERIORIDADE ESTÁ ACABANDO?1

Eugène Enriquez

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Posso apenas indicar uma pista que mereceria ser explorada maissistematicamente. Minha contribuição será, então, escrita num estilo la-pidar que poderá chocar, mas que deveria também ter a vantagem deprovocar vivas discussões.

A proposição é a seguinte:

A renovação do individualismo tempor fim suprimir o sujeito e a vida interior.....

O que é o indivíduo de quem todo mundo fala, senão uma pessoa(ouso utilizar somente esse termo) “de geometria variável” (J. L. SER-VAN-SCHREIBER), capaz de se adaptar a todas as situações, de fazercalar em si suas “dúvidas morais”, de considerar os problemas em suafrieza, dando, assim, no sentido sadiano do termo, mostras de “apatia”?Quem é dado como exemplo é o guerreiro ou o esportista, o homem capazde ultrapassar seus limites, de ter modos de “comunicação afirmativa”,de ficar obcecado apenas pela “excelência” e que deve, portanto, parafazê-lo, conformar-se à nova ideologia do “matador frio”, do vencedor, docombatente, desembaraçado de compromissos, de sonhos e de interroga-ções. Os indivíduos com um “falso self” (WINNICOTT) ou, sobretudo,com personalidades “as if” (H. DEUTSCH) serão particularmente apreci-ados. Os outros serão suspeitos de se colocar problemas demais e, sobre-tudo, de colocá-los, em demasia, aos outros.

Para obter tais resultados, é necessárioque essas pessoas sejam movidaspor um processo de idealização.

A cultura de empresa ou de organização, ao propor, aos que delaparticipam, seus valores e seu processo de socialização, seu imaginárioenganoso – que tem como objetivo englobar todos na fantasmagoria co-mum proposta pelos dirigentes da organização – e seu sistema de símbo-los – que fornece um sentido prévio a cada ação dos indivíduos –, temcomo finalidade prendê-los totalmente nas malhas que ela tece. Se o indi-víduo se identifica com a organização, se só pensa através dela, se aidealiza a ponto de sacrificar sua vida privada às metas que ela perse-gue, sejam quais forem, ele entrará, então, sem o saber (e de consciênciatranqüila), num sistema totalitário que se tornou para ele o Sagrado

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transcendente legitimador de sua existência. Sabe-se muito bem, desdeDURKHEIM e FREUD, que uma sociedade não pode existir sem religião,pois essa fornece a cada ser a garantia de não viver no puro arbitrário,concedendo-lhe um sistema de significações que o tranqüiliza e o fazagir. A empresa (ou qualquer outra organização) quer, atualmente, en-carnar a “instituição divina”. O sagrado laicizado dá ao indivíduo osentimento de se transcender, através de um projeto a concretizar, umideal a realizar, uma causa a defender. Promete-lhe alcançar um estadonão conflitante da psique, uma plenitude que o protege de qualquertrabalho de luto, de perda e de sofrimento. Então, o indivíduo pode seconsiderar como um herói dos tempos modernos, inscrevendo-se nomito coletivo da organização. As empresas americanas e japonesas demelhor desempenho funcionam dessa maneira e é sob esse regime quecomeçam a viver as empresas européias, presas na miragem do além-Atlântico ou do além-Pacífico.

Mas os valores gerenciais podem não ser suficientes para responderao déficit de identificações característico de nosso sistema social e ao mal-estar dele resultante. O “fanatismo de empresa” pode parecer relativa-mente irrisório para alguns. É por isso que as antigas religiões voltam sobos seus aspectos mais extremos, mais próximos do integrismo. Basta terem mente: a renovação do Islã, triunfante em sua versão “chiita” (e nãonos esqueçamos que, no mundo medieval, a famosa seita dos “Assassi-nos” era a forma mais aguda do ismaelismo, esse último sendo apenasum avatar do chiismo3); o renovar de uma igreja dogmática, segura deestar em seus direitos, pronta a punir os blasfemadores, a voltar aos valo-res da família patriarcal e a se pronunciar contra a contracepção e o abor-to (disso são testemunhos exemplares o sucesso de Monsenhor Lefèbvrena França, a importância dos movimentos Communione e Liberazione naItália, o papel central desempenhado pelo Opus Dei na Itália e na Espa-nha); o despertar de um integrismo judeu que se traduz pela multiplica-ção das yeshiva (escolas judaicas) na França e pelo papel dos partidosreligiosos em Israel. Essa volta do religioso não visa a nenhuma sublima-ção, mas, ao contrário, exige a idealização. Ela nos força a admitir quemuitos indivíduos precisam de “referências duras e estabilizadas” parasolidificar sua psique e ter o sentimento de fazer parte do povo eleito,injustamente martirizado, que parte à conquista do mundo (ou de umaparte do mundo), em nome da verdadeira fé.

E, quando as igrejas não são suficientemente atraentes, gurus, xa-mãs, pais-de-santo estão prontos a substitui-las. Eles também exigem acrença e anunciam a proibição de pensar livremente.

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Certamente, todas as religiões, em seus aspectos “idealizados” (nobom sentido do termo), proferem a necessidade de cada qual descobrir adivindade em seu “foro íntimo”, de ser capaz de penitência e de vivertanto o sofrimento como a alegria. Mas as religiões, em seu lado excessivo– as seitas – não se preocupam de forma alguma com a vida interiorespecífica dos diversos sujeitos. Elas querem proceder à intrusão na psi-que para destruí-la ou, pelo menos, submetê-la a ídolos não contestáveis.“Perinde ac cadaver”4 continua sendo a palavra de ordem, cuja meta é ahomogeneização do “interior”. O fanatismo bane o pensamento e a pa-lavra criadora. Reserva para si mesmo seu uso e monopólio. Voltareiadiante aos métodos empregados. Mas basta saber que o indivíduo quenão se dá conta desse controle sobre sua interioridade pode estar prontoa todos os atos, mesmo os mais repreensíveis, porque são vividos por elecomo atos socialmente valorizados pela organização à qual ele adere e,portanto, como a expressão da graça que lhe cabe. O fanatismo político,que aqui apenas menciono, persegue as mesmas metas e comporta osmesmos efeitos.

Quando esse processo de idealização nãopode se ligar a um objeto maravilhoso exterior,

pode encontrar seu ponto de ancoragem num objetomaravilhoso interior: o corpo do indivíduo.

É nesse sentido que é preciso compreender a nova ênfase ao corpo,desenvolvida pela publicidade e por certos “psicólogos” nesses últimosanos. As técnicas de body-building, a aeróbica, o jogging, as diversas técni-cas que têm por objetivo dar a cada qual um corpo flexível, esbelto, conti-nuamente desejável, as medicinas naturais, as ginásticas suaves, a ex-pressão corporal, o “grito primal”, o desenvolvimento do esporte de massa,competitivo ou não (por exemplo, as maratonas de Paris ou de NovaYork), os estágios off limits, os seminários de sobrevivência têm todospor meta nos dizer que o corpo real (e não o corpo fantasmático, faladoe falante, sofredor, animado) é o nosso bem mais precioso. “Estar bemem sua pele”, “tornar-se saudável”, afastar a dor, provar a si mesmo eaos outros que o cuidado do corpo é um cuidado vital testemunhamnossas capacidades, nossa juventude e nos fazem acreditar em nossaimortalidade. Resulta daí uma equação simples: corpo dinâmico = ener-gia física = energia psíquica = aptidão ao sucesso individual = aptidão àutilidade social.

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Essa equação é mais atraente ainda porque está ao alcance de qual-quer um. Basta querer. Quer se tenha nascido rico ou pobre, quer se tenhaatingido um status social elevado ou subalterno, cada um pode ser capazde atingir o gozo mais absoluto. Basta que seja capaz de amar suficiente-mente a si próprio. O narcisismo mais total está na ordem do dia. Aconte-ce que esse narcisismo só pode ser um “narcisismo de morte” (A. GREEN,1983), porque o “narcisismo de vida” é busca de verdade, confronto como sofrimento, interrogação do ser, processo de ligação com os outros. Nonarcisismo de morte, cada qual se mira em seu próprio espelho, que lhedevolve uma imagem idealizada de si mesmo, na qual fatalmente se perderá.

Os métodos para conseguir sacralizar oure-sacralizar a organização, a esfera religiosa ou

política e o corpo são “irracionais”em sua essência,na medida em que não se trata, de fato, de criar

uma cultura, mas de edificar novos cultos.

É no momento mesmo em que no mundo se enaltece a eficácia, “apaixão pela excelência”, a “qualidade total”, a busca do “erro zero”, si-nais de uma fantasia de domínio total, de uma vontade infantil raivosa deonipotência, que se desenvolvem as técnicas mais aberrantes. A explica-ção é simples: todos os métodos de formação, de evolução pessoal ougrupal, de intervenção psicossociológica ou institucional, nas organiza-ções sociais, reconhecem que o indivíduo é um ator preso numa históriacoletiva, na qual ele tem que desempenhar um papel social, membro deum conjunto que tem suas coerções, suas regras de jogo e seu espaço deliberdade. Por outro lado, reconhecem que a mudança é o produto demudanças ao mesmo tempo individual, grupal e coletiva, mudança sem-pre difícil pois traz, necessariamente, novos questionamentos e transfor-mações nas relações de poder ou, ao menos, de autoridade. Elas anunci-am, assim, que o indivíduo, para se tornar um sujeito falante e atuante,deve poder se interrogar sobre si mesmo e sobre as estruturas de trabalhonas quais se encontra.

Ora, o paradigma individualista não quer nem mudança socialnem mudança individual profunda. Os próprios indivíduos, únicosresponsáveis (se eles fracassam, o erro não cabe à organização nem aotipo de direção), embora alienados no mais profundo de sua psique, aponto de “correrem” atrás de sua alienação e a buscarem sempre mais,devem encontrar as melhores soluções para os problemas que lhes são

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colocados, no quadro de normas extremamente fortes (quando não dedogmas), perfeitamente interiorizadas. É por essa razão que a seleção e apromoção de tais indivíduos serão particularmente severas. Por isso, éimpossível recorrer a métodos minimamente científicos, pois esses sódariam resultados aproximados como a própria vida. Assim, para a sele-ção de dirigentes, faz-se apelo a leitores de tarô, a astrólogos, a “numeró-logos” ou a provas como “andar sobre brasas”. Pede-se a “gurus” ou a“xamãs” que “reenergizem” a empresa, instalam-se os diretores em “gran-des caixas” para lhes insuflar uma nova energia, pede-se a eles que sal-tem de grandes alturas, com os pés amarrados a um elástico, a fim dedesenvolverem sua autoconfiança, faz-se com que pratiquem artes marci-ais para que se sintam como samurais. Não é preciso continuar essa enu-meração de “técnicas” (recorre-se mesmo ao vodu) para compreender quea vontade de eficácia a qualquer preço (essa podendo emanar das empre-sas ou de outras organizações – os fanáticos religiosos também têm seusmétodos para provocar o torpor e o entusiasmo) está acompanhada, ne-cessariamente, não do desenvolvimento da racionalidade, como a sim-ples lógica o exigiria, mas, ao contrário, do aumento dos métodos maisbizarros, únicos a prometerem resultados tangíveis. A finalidade dessesmétodos é evidente: a adesão, a implicação, a mobilização total de todos,quer dizer, uma psique sem conflitos, uma psique a serviço da organiza-ção; sejamos claros: a uniformização da psique (isto é, a possibilidade detodos enfrentarem uma certa complexidade e de demonstrarem capacida-des criadoras não previstas e não programáveis). O reconhecimento dapsique como força operante tem, portanto, como resultado a sua destrui-ção ou, pelo menos, a sua submissão, freqüentemente com seu consenti-mento e com sua satisfação.

A conseqüência desses métodos ea criação de uma identidade compacta.

O mal-estar existente nas identificações (e que se expressa pelodesenvolvimento da toxicomania, pela multiplicação de indivíduos “emcrise de identidade”, de pessoas que não se sentem bem consigo mes-mas, pessoas sem rumo ou submetidas a estresses contraditórios) pro-voca, em reação, na sociedade, nas organizações e nos indivíduos, aedificação de processos identificatórios que têm como meta favorecer asegurança narcísica e fornecer certezas e orientações precisas de vida.Cada “conjunto humano”, para viver e se desenvolver, tem por certonecessidade de sentir que não é um simples aglomerado mais ou menos

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feliz de vários fluxos de intensidades e de entroncamentos diversos eque, através dessas diversas experiências, em diferentes lugares e commúltiplas pessoas, ele é capaz de ser um “Si”, quer dizer, de ser um sujeitoque tem uma história, que se liga a uma tradição, que participa de umamemória coletiva, que constrói e reconstrói seu passado à luz dessa me-mória e que está apto a elaborar projetos para o futuro. Cada um sente,portanto, a necessidade de ter uma certa identidade.

Mas, se examinarmos mais de perto essa noção, ela revela caracterís-ticas um pouco suspeitas. Caso se retome a análise de A. GREEN (1985),constata-se que a identidade remete a três idéias essenciais: (a) idéia depermanência através do tempo, de referências seguras, em uma palavra, deconstância: (b) idéia de objeto separado, animado por uma coesão totalizan-te tendo, portanto, uma unidade; (c) idéia de similaridade (toda identidadepermite identificar o outro, isto é, permite que se possa situá-lo em umaclasse, em um gênero, em uma espécie).

Ora, essas três idéias são abaladas pela investigação psicanalítica:

a- A constância não existe. Os indivíduos evoluem, transformam-se deacordo com a maneira pela qual são capazes de negociar suas contra-dições e seus conflitos. Além disso, de acordo com a idade e responsa-bilidades que têm de assumir, ou o status social a que chegaram, elessão solicitados por situações sociais diferentes ou confrontados a elas.Cada um de nós teve oportunidade (com a condição de aceitar sua“interioridade”) de se perguntar: mas qual é a relação entre o que soue essa pessoa que tem o mesmo nome que eu e que teve oito anos, ouvinte anos? BARTHES, em Barthes par lui même (1975) e em La chambreclaire (1980), escreveu belíssimas páginas, nas quais mostrou esse es-tranhamento: sou eu mesmo aquele que essa velha foto me devolve? E,evocando o decorrer do tempo: não penso mais, não vivo mais, nãocreio mais como esse ser que leva meu nome.

Tal experiência é comum e não mereceria que nela me detivesse,por minha vez, caso ela não permitisse colocar em termos tempo-rais a questão das identificações múltiplas instantâneas, tal comofoi colocada por FREUD em “Psicologia de grupo e análise doego”. FREUD escreveu:

cada indivíduo é uma parte componente de numerosos grupos,acha-se ligado por vínculos de identificação em muitos sentidose construiu seu ideal de eu segundo os modelos mais variados.Cada indivíduo, portanto, partilha de numerosas mentes gru-pais – as de sua raça, classe, credo, nacionalidade etc. – podendo

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também elevar-se sobre elas, na medida em que possui um frag-mento de independência e originalidade.5

Certamente, FREUD não deixa de lado a dimensão temporal nes-sa frase, em particular quando enuncia que o indivíduo “cons-truiu seu ideal de eu segundo os modelos mais variados”, poistoda construção, por definição, necessita do trabalho do tempo.Mas ele insiste, no entanto, mais na divisão ou mesmo na rupturaàs quais todos estão submetidos a cada instante de sua vida. Senão esquecermos que o processo identificatório está em ação du-rante toda a vida e que ele é o único que permite ao indivíduocontinuar vivo, portanto capaz de se afirmar diferentemente decomo o fez no passado, então é possível questionar, em sua pure-za, a idéia de permanência e de constância. Nunca sabemos demaneira precisa, no momento em que falamos, quem está falandoe por que falamos dessa maneira.

b- A idéia de unidade parece ainda menos sólida. Sabemos: que somoscompostos de uma “pluralidade de pessoas psíquicas” (o isso, o euetc.) que visam, cada uma, a sua própria finalidade; que processos declivagem, de preclusão e de denegação estão operando em nós; que oinconsciente tem um papel enorme em nossa maneira de viver e queele não está submetido aos mesmos processos do nosso eu consciente,o qual não pode ser considerado como o sujeito da enunciação e daação. Eu é um outro, já dizia RIMBAUD. Se, além disso, admitimosque pode haver em nós “visitantes do eu” (A. de MIJOLLA, 1982),“criptas” tanto mais incrustadas quanto mais são o fruto de um silên-cio (N. ABRAHAM e M. TOROK, 1976), então, a esperança de umabela unidade do indivíduo se estilhaça.

c- Quanto ao reconhecimento do mesmo, implica que eu seja capazde responder à questão “quem sou eu?”, de reconhecer em mimminha parte conhecida e minha parte estranha (“os caminhos mis-teriosos vão para o interior”, escrevia ARNIM) e de decidir quemposso reconhecer como um outro eu-mesmo, quando sei tão poucoo que sou.

Assim, a identidade pessoal (não evoco aqui os enormes proble-mas colocados pela identidade cultural) é, sob certos aspectos, ilu-sória. No entanto, não podemos abandonar essa idéia, a menos queacreditemos sermos apenas uma série de máscaras e, assim, cairmosna irresponsabilidade. Precisamos, então, admitir, com WINNICOTT(1966), que, a partir de um estado não integrado, tentamos continua-mente criar um “si” que evolui, mas que mantém um certo grau de

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coerência. Porém, a sociedade contemporânea não precisa de umatal concepção que implica, para o indivíduo, a interrogação, a dúvi-da, o remorso, o trabalho sobre si, a aceitação dos processos de cliva-gem, da “inquietante estranheza” e, sobretudo, a possibilidade detomada de consciência de suas falhas, de suas faltas, de seus dese-jos. Os duros golpes da Psicanálise contra a noção de identidadecoerente e unificada e a favor de uma reflexão sobre as identificaçõessó podem irritá-la profundamente. O que nossa sociedade reclama,assim como as instituições e organizações que a compõem, é a exis-tência de indivíduos que saibam estabelecer uma distinção nítidaentre eles mesmos e os outros, que sejam capazes de adaptar o mun-do à sua vontade, escolhendo as máscaras sociais que precisam,segundo as circunstâncias (como o Zellig de Woody ALLEN) e que,adotando estratégias flexíveis e sabendo utilizar os atalhos, estejamem condições de chegar aonde sua ambição (ou a ambição de suaorganização) os impele a ir. São, portanto, indivíduos com uma “iden-tidade compacta” (forjo esse termo a partir da fórmula de IBSEN, tãoapreciada por FREUD, de “maioria compacta”, contra a qual os quequerem ser sujeitos de sua história só podem se opor), mesmo se sãoaptos a demonstrar “teatralidade histérica”, portanto sedução, e aadotar as estratégias racionais que se mostrem as mais lucrativas(identidade compacta e possibilidade de utilizar identidades múlti-plas não são, portanto, contraditórias, muito pelo contrário).

O ódio inconsciente de si é projetadosobre os outros, donde um

desenvolvimento da xenofobia e do racismo.

Em cada indivíduo existe um ódio inconsciente de si, como tambémum amor consciente por si. Esse ódio contra partes de si mesmo mal inte-gradas, problemáticas, trazendo “temor e tremor”, é mais facilmente pro-jetado sobre os outros quando o indivíduo deve dar provas de seu caráterinteiriço, de um narcisismo a toda prova, de suas capacidades de comuni-cação e de persuasão, de sua centralização no sucesso de seu trabalho. Osoutros, quaisquer que sejam, e tanto mais porque se parecem conosco,podem ser o objeto no qual nos livramos do que nos assombra e nos divi-de. Apenas um exemplo: numa grande empresa, os diretores participamde um grupo. Um deles explicita suas dúvidas, é ouvido um momento, oque o leva a evocar elementos de sua vida pessoal que nunca tinha

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revelado. Nesse momento, é interrompido por um de seus colegas, filhode um grande industrial, que lhe diz, em substância: “Não continue,não quero saber nada de seus problemas porque, se você continua, sereiobrigado a falar disso a meu pai e, diante dessas revelações, não somentevocê não poderá pretender ficar na empresa dele, mas ele dará um jeito delhe fechar todas as portas. Domine-se, seja de novo como nós; esquecereio que você disse e você poderá ter o lugar que sua competência merece”.O “homem com problemas” aprendeu a lição. Ele se tornaria o fraco, aquelede quem se debocha e que seria eliminado brutalmente. Pediu desculpaspor seu momento de fraqueza e, desde então, comportou-se como o seupróprio grupo de “pares” desejava. Pôde obter o posto desejado. Nuncamais abriu seu “foro íntimo” a ninguém, nem mesmo à sua esposa, vindada boa burguesia. Apenas, ele tem úlceras constantes.

Esse exemplo (que, naturalmente, não se compara à intensidade dasformas extremas de xenofobia ou de racismo) testemunha a capacidadedos indivíduos de utilizar as falhas dos outros para preenchê-las com suaspróprias faltas, que detestam. Esse ódio inconsciente de si vai ser tão forteque os indivíduos não poderão se representar como causa de si próprios(eles são apenas os porta-vozes de normas fortemente interiorizadas queforam edificadas pela “maioria compacta”). Ora, quando os indivíduosestão nessa situação, como mostrou Micheline ENRIQUEZ (1984), por umprocesso de contra-investimento, são aprisionados em fantasias de “renas-cimento e de auto-engendramento de tonalidade megalomaníaca”. Alémdisso, experimentam um “ódio visceral de tudo que pode se apresentarcomo causa de si” (M. ENRIQUEZ, 1984, p. 270). Um indivíduo que refle-te sobre si mesmo e, em termos mais gerais, um grupo que tem uma culturaprópria, comportamentos dinâmicos mas não conformistas, serão sus-ceptíveis de levar os indivíduos com identidade compacta a transforma-rem o ódio de si no ódio do outro. Com efeito, o indivíduo que demonstrareflexividade ou um grupo minoritário são causas de si mesmos. Escolhe-ram ser o que tinham vontade de ser e o mostram de forma visível. Transfor-mam o mundo no qual estão, simplesmente por se comportarem como “exo-tas” (V. SEGALEN), quer dizer, como seres que percebem o diverso e quetêm “o poder de conceber o outro” (SEGALEN, reedição de 1986, p. 36).Nessas condições, eles insultam o narcisismo individual e grupal de todosos que, tendo uma identidade compacta, formam uma nova maioria com-pacta; eles questionam sua identidade, seu simbólico, seu imaginárioenganoso. Eles lhes mostram até que ponto estão enclausurados, até queponto evitam-se a si mesmos, até que ponto estão presos na apatia (SADE).

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Lembremo-nos de que, para SADE, o verdadeiro libertino deve conhe-cer “o repouso das paixões”, “o embotamento da sensibilidade” que olevará a cometer com “fleuma” todos os atos os mais criminosos, sememoção, “com essa apatia que permite às paixões se encobrirem”. “Apa-gar, destruir toda possibilidade de ser tocado” (M. ENRIQUEZ), tal é oser apático que é movido não somente pelo processo de contra-investi-mento anteriormente assinalado, como igualmente por um processode desinvestimento letal que visa, como escreve P. AULAIGNER, “à des-truição da atividade de ligação e de articulação de sentido”. Compre-ende-se, então, que todos aqueles que buscam articular sentidos, todasas “minorias ativas”, todos os “exotas”, todos os “marginais”, todos os“estrangeiros” que devem conseguir se situar, por si próprios, nummundo a priori hostil ou indiferente, possam se tornar objeto de ódioou, pelo menos, de desprezo por parte de todos os que vivem na certe-za e não na “perturbação de pensar” (TOCQUEVILLE, 1835, reediçãode 1961, p. 103-104). O “matador frio”, o homem dinâmico, guerreiro esedutor, pode se transformar tranqüilamente em verdadeiro matador.Quem não se amolda deve ser liquidado. Como dizia um chefe de em-presa, a propósito de “cortar gorduras”: não se deve temer “cortar aovivo”, “fazer correr sangue”. Sente-se sempre mais puro quando foipossível fazer correr sangue impuro. Sente-se tanto mais admirávelquanto mais foi possível fazer desaparecer tudo o que não pode serincluído no ideal e que se encontra, assim, “em demasia”. De um ladoestão os vencedores; do outro, os “parasitas” (mãos-de-obra excedentes,norte-africanos que “roubam o trabalho dos outros”, no dizer dos racis-tas, pessoas que se comprazem em refletir sobre sua ação etc... só podemser consideradas como “parasitas” que a sociedade deve excluir ou, pelomenos, colocar em lugares criados especialmente para eles).

É interessante constatar que qualquer um pode se tornar um pa-rasita, um piolho a ser eliminado. Basta ouvir certos discursos ou no-tar certos atos referentes a toxicômanos, soropositivos e, ainda mais,doentes de AIDS, para nos darmos conta da violência da possibilidadede exclusão que pode atingir todos os que não são “sadios”, quer di-zer, os que não se assemelham aos indivíduos que, em seu corpo comoem seu espírito, se evitam a si próprios, dando a impressão de só seocuparem de si mesmos.

Assiste-se a passagem de uma civilização daculpabilidade a uma civilização da vergonha.

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Ruth BENEDICT, em O crisântemo e a espada (1946), um estudo so-bre a sociedade japonesa, chamou a atenção para uma diferença essen-cial entre as sociedades ocidentais e a sociedade japonesa. Essa últimaseria uma cultura da vergonha, enquanto aquelas seriam uma culturada culpabilidade. Essa distinção é, sem dúvida, demarcada demais e aculpabilidade da criança japonesa com relação à sua mãe foi evidencia-da por outros autores. Da mesma forma, seria exagerado dizer que nos-sas sociedades não são mais guiadas pelo sentimento de culpa, mas pelavergonha. No entanto, é mesmo a uma tal passagem (certamente inaca-bada) que estamos assistindo. Uma civilização da culpabilidade só épossível se existe um sentimento de culpa, quer o ato culpável tenhasido perpetrado ou não. Ela supõe, portanto, a luta, no interior de si, daagressividade, da inveja e do amor, além do reconhecimento dessa luta;ela só pode se desenvolver “no universo da falta”. Ora, falta e sentimen-to de culpa requerem um interesse pelos vínculos que nos ligam a nósmesmos, aos outros, ao cosmos e ao infinito (que esse último seja cha-mado de Deus ou outro nome) além de uma aceitação da articulação dodesejo e da proibição.

Uma civilização da vergonha é completamente diferente. Todo ato re-preensível, seja ele qual for, pode ser perpetrado. Basta que não seja desco-berto. Se ele for conhecido, a vergonha se abate sobre o autor da ação. Tudoestá no ato e em sua visibilidade. Se um ato corajoso – ou, simplesmente, umato que atesta o dinamismo do indivíduo – é realizado, é preciso que sejaconhecido por todos, a fim de que o indivíduo possa ser recompensadosegundo seu mérito. Insiste-se também na necessidade de “volta da co-ragem” (J. L. SERVAN-SCHREIBER, 1988), na demonstração das capa-cidades de ascese e de enfrentar riscos (andar sobre brasas, escalar umparedão com as mãos nuas, voar em asa delta etc.). Mas, infeliz de quemtrapacear, fracassar, tiver medo diante de todo mundo (pois essas con-dutas acontecem em grupo ou sob o olhar das mídias). Ele será perse-guido pela vergonha de não ter conseguido, em condições normais, iralém de seus limites. A vergonha não toca o indivíduo em sua intimida-de, mas o toca em seu ser social, em sua aparência.

Assim, vemos proliferar, em nível esportivo (mas tudo não está sendocada vez mais medido pelo padrão esportivo?), as práticas que permi-tem ganhar, utilizando-se produtos proibidos. O esportista que vencenessas condições não se sente de forma alguma culpado, ele se tornaráobjeto de vergonha (por exemplo, Ben JOHNSON nos Jogos Olímpicos)quando provas esmagadoras caírem sobre ele. Se não for descoberto, ahonra e o dinheiro serão seus sem que, por isso, se sinta culpável.

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Só dei exemplos esportivos. Mas o estudo do mundo dos “negócios”(por exemplo, a lavagem dos narco-dólares, as notas frias, o desenvolvimen-to da corrupção nas esferas da sociedade que haviam sido preservadas atéagora) mostraria ainda melhor a que ponto se pode tramar, nas sombras, atosdos mais contrários à moral comum, sem culpabilidade. Quanto mais viver-mos no mundo do fazer e da aparência, mais a civilização da vergonha seimporá e a culpabilidade ligada à interioridade desaparecerá.

Esse movimento de desaparecimento da interioridade não é inelutável.

Não se deveria pensar, lendo as reflexões precedentes, que o jogo estáfeito. Porém, um outro artigo seria necessário para mostrar como a interiori-dade resiste e porque penso que a nossa época, privilegiando a aparência,acabará como todas as que tentaram suprimir o sujeito humano.

Direi simplesmente: (a) que o corpo resiste e que as mais variadassomatizações expressam até que ponto, quando não é possível falar-se asi mesmo, o corpo se encarrega de fazê-lo; (b) que os fracos ideais propos-tos à identificação já provocaram formas de rejeição; (c) que os ideaisfortes, necessários à vida humana, podem ser criados sem que daí de-corra, necessariamente, o fanatismo, uma vez que se pode negociar idea-lização e sublimação (movimentos pelos direitos humanos, contra o ra-cismo, contra a pobreza etc. nascem a cada dia sob nossos olhos e, apesarde suas imperfeições – normais, felizmente -, podem mobilizar grupos aserviço de uma ética); (d) que o pensamento mágico prevalecente hojeem dia (estamos à beira da “onipotência das idéias”, semelhantes nissoaos povos mais arcaicos), enunciando que é possível tornar os indiví-duos mais performáticos, os seres mais unidos e as organizações maisdinâmicas, com um único passe de mágica, já começa a ser profunda-mente criticado; (e) que a psicologização exagerada dos problemas (osucesso depende apenas da vontade do indivíduo de superar os obstá-culos) tende a fazer desaparecer tanto o sujeito humano quanto o grupoe a organização nos quais ele atua. Essa psicologização (ligada ao cres-cimento da civilização da vergonha) que tende a tornar impossível umaPsicossociologia Clínica encontra seus limites no número de excluídosque ela produz.

Com efeito, são suspeitos, postos de lado, senão mesmo “margina-lizados” todos os sujeitos que não são obcecados pelo sucesso social,pelo jogo de aparências, que não têm o gosto pelo efêmero ou por uma

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cultura de relações sociais valorizadas e mutantes, que resistem à ade-são maciça a uma organização ou a uma instituição “fanatizadas”, quedesejam uma vida regida por uma ética e que buscam um ideal sem cair,por isso, na doença da idealidade. Mais ainda, encontram-se na mesmasituação todos os que, aceitando as regras do novo jogo, são esquecidosou eliminados por responderem insatisfatoriamente (ou por não maisrespondem) aos critérios de “excelência”, à obrigação da performancesempre a ser renovada (diretores que tiveram aposentaria antecipadaou que foram demitidos, trabalhadores incapazes de se readaptar, jo-vens sem qualificação e que têm como horizonte o desemprego, a delin-qüência, a droga, assim como as pessoas às quais se pede uma qualifica-ção maior, sem lhes dar uma retribuição mais adequada (como asenfermeiras, os ferroviários, os animadores socioculturais etc.).

Esses “excluídos”, esses “esquecidos” da sociedade, começam a se fa-zer perguntas. Sem dúvida, eles ainda as fazem “na exterioridade”, em ter-mos de necessidades a serem satisfeitas imediatamente (demanda de criaçãode empregos, de indústrias, de espaços, de crédito, além das reivindicaçõesrelativas ao reajuste do salário ou à valorização digna de seus esforços). Elesnão se dão conta, necessariamente, da força de seus desejos reprimidos ourecalcados nem da própria realidade de seus desejos. Podem pensar queesses serão satisfeitos se a sociedade ou a organização cederem à sua deman-da explícita. Na realidade, sentem freqüentemente que suas exigências sãode uma outra ordem (desejo de reconhecimento, de afirmação ou de identifi-cação, busca de identidade, reconforto narcísico) e que o caminho para obtê-lo passa obrigatoriamente pela interrogação, pelo sofrimento, pela alegria,assim como pela capacidade de sublimação.

Mas eles não podem ainda ter uma representação clara do que, velada-mente, governa seus discursos e seus atos. Entretanto, apenas o fato defazerem perguntas “na exterioridade” e de começarem a experimentar aangústia permite-nos esperar que eles possam um dia se por à prova, seindagar sobre a necessidade de dar ao psíquico (esse “inquebrantável nú-cleo da noite”, para retomar a expressão de BRETON) a parte que lhe édevida em todos os processos de transformação. Nesse momento, as per-guntas, com sua carga enigmática, poderão, sem dúvida, ser tratadas “nainterioridade”. Esses sujeitos, entretanto, deverão se precaver, evitando oCharybde da exterioridade, para não caírem na Scylla de uma interiorida-de tal como foi definida por Thomas MANN – qualidade suprema do ho-mem alemão que leva ao abandono do mundo objetivo e político6 –, poissabem bem a que aberrações tal concepção pode levar. Sendo assim, mesmose a interioridade, tal como tentei delineá-la, não desapareceu e não está

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Notas1 Traduzido de ENRIQUEZ, Eugène. “Vers la fin de l’intériorité?” Psychologie Clinique,

1989-2, p. 61-76, por Sonia Roedel.2 Grandes escritores alemães, tão diversos quanto GOETHE, NOVALIS e KLEIST

testemunham esse movimento de ligação entre razão e paixão. GOETHE, espíritoracional e humanista por excelência, descreve “os sofrimentos do jovem Werther” einicia, assim, involuntariamente, o romantismo, o gosto pelo mórbido, pela emoção,contribuindo para a onda de suicídios que pontua o princípio do século XIX. NOVA-LIS, seu oposto, o homem dos Hinos à noite, da poetização do universo, do culto doinconsciente e dos instintos, deseja escrever (e redige em parte) uma Enciclopédia.Quanto a KLEIST, sem dúvida o mais apaixonado dos românticos e que sancionasua vida por um suicídio, nunca se contenta de por ordem na vida e de dizer que éimpossível viver sem “um projeto de existência”. Cf. sobre KLEIST: E. ENRIQUEZ.Entre la marionnette et Dieu.Topique, 34, 1985, p. 89-112.

3 Cf. ENRIQUEZ, E. “Immuable et changeante illusion: l’illusion nécessaire”. Topique, 37,1962, p. 135.

4 Como um cadáver (em latim no original). Segundo o Larousse, “expressão pela qual Sto.Inácio de Loyola, em suas constituições, prescreve aos jesuítas a disciplina e a obediênciaa seus superiores, reserva feita dos casos nos quais a consciência proíbe”. (N. da T.).

5 FREUD, S. “Psicologia de Grupo e Análise do Ego” (1921). Edição Standard Brasileira dasObras Completas de Sigmund Freud..... Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XVIII, p. 163. (N. da T.).

6 Thomas MANN escreveu: “A interioridade, a Bildung do homem alemão, é a absor-ção em si ou introspeção; é uma consciência cultural individualista; é a inquietaçãocom o cuidado, com a formação, com o aprofundamento do eu puro ou, em termosreligiosos, da salvação e da justificação da vida pura; é, então, um subjetivismoespiritual apreciador da autobiografia e da confissão, na qual o mundo objetivo, omundo político, é sentido como profano e abandonado com indiferença pois, comodiz Lutero, ‘essa ordem exterior não tem importância’”. Considérations d’un apoliti-que, citado por L. DUMONT. Individualisme apolitique. In: Sur l’individu. Paris:Seuil, 1987, p. 38-53.

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perto de desaparecer (como atestam a volta dos registros íntimos, as auto-biografias, os “diários de bordo”, com suas difusões amplas), é necessárioter consciência de que a sociedade atual criou relações sociais suficientespara permitir aos homens evitarem a si mesmos e aos outros e, assim, nãose confrontarem com o problema crucial da existência: o da alteridade dosoutros e o da sua própria alteridade.

Referências

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São numerosos os estudos sobre os mecanismos ou processos de gru-pos já constituídos, que têm uma história (mesmo que limitada a algumashoras, como os grupos de seminários ditos de dinâmica de grupo) e quetentam formar para si um futuro. São mais raras, no entanto, as análisesdos grupos em estado nascente. Ora, esse problema é capital, pois pode-se,sem dúvida, fazer constatações e descrições finas da vida dos grupos, masnão se está à altura de compreender, enquanto não for possível responderàs questões que se seguem, a base sobre a qual são elaborados os princípiosque presidem à instauração de todo grupo e que permanecem decisivos aolongo de sua história: O que favorece o vínculo grupal? Por que indivíduosse reúnem e chegam a funcionar como uma comunidade? O que permitediferençar um simples amontoado de sujeitos de um grupo consciente desua existência e de seus valores?

Eu gostaria, então, neste texto, de levantar algumas hipóteses referentesaos elementos em jogo na formação dos grupos e na perenidade de sua ação.

O primeiro ponto que vou salientar – e que apresenta, à primeiravista, um caráter de evidência – é a necessidade de um projeto comum.

O projeto comumO projeto comumO projeto comumO projeto comumO projeto comum

Um grupo só se constitui em torno de uma ação a realizar, de um projetoou de uma tarefa a cumprir. Todos sabem e reconhecem isso. O que parece, noentanto, menos evidente são as implicações e as conseqüências de tal axioma.

Um projeto comum significa, de início, que o grupo possui um siste-ma de valores suficientemente interiorizado pelo conjunto de seus mem-bros, o que permite dar ao projeto suas características dinâmicas (fazê-lopassar do estágio de simples plano ao estágio da realização).

Vamos um pouco adiante. Tal sistema de valores, para existir, devese apoiar em alguma (ou mais de uma) representação coletiva, em umimaginário social comum. Por imaginário social entendo que só podemos

O VÍNCULO GRUPAL1

Eugène Enriquez

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agir quando temos uma certa maneira de nos representar aquilo quesomos, aquilo que queremos vir a ser, aquilo que queremos fazer eem que tipo de sociedade ou organização desejamos intervir. Paraserem operantes, tais representações devem não só ser intelectual-mente pensadas, mas afetivamente sentidas. Não se trata unicamen-te de querer coletivamente; trata-se de sentir coletivamente, de expe-rimentar a mesma necessidade de transformar um sonho ou umafantasia em realidade cotidiana e de se munir dos meios adequados paraconseguir isso.

Mas esse sentimento, motor de nossa conduta, só pode emergir eter força de lei quando ligado a um sistema de idealização de nós mes-mos e de nossa ação. Somente um projeto tido como objeto ideal e so-mente nós mesmos tidos como seres idealizados (mais puros, mais belosque os outros) podem ser elementos suficientemente mobilizadores parafazer-nos sair da apatia ou da simples expressão de nossa boa vontade.

Todo grupo funciona à base da idealização, da ilusão e da crença. Aidealização está presente na elaboração de um projeto comum, pois elaé o elemento que dá consistência, vigor e “aura” excepcional, tanto aoprojeto quanto a nós mesmos que, a nossos próprios olhos, nos fortifi-camos (reforçando simultaneamente o eu ideal e o ideal do eu), cor-rendo esse risco intelectual e social, tentando nos situar a uma alturaque nos parecia antes inatingível. A ilusão deixa igualmente sua marca.Ela é um dispositivo simbólico que permite a canalização de nossosdesejos, que nos poupa toda interrogação sobre o valor desses desejose que fornece uma solução pronta para os possíveis conflitos entre es-ses.2 Se FREUD criticou tanto a ilusão religiosa é porque, nela, ele via oprotótipo de uma Weltanschauung que tinha a pretensão de dizer a ver-dade sobre a verdade e de incluir o indivíduo, com uma força particu-larmente viva, em um sistema de pensamento e em um sistema socialque lhe tiravam toda possibilidade de pensar por si mesmo e de “tra-balhar” as Condições e as conseqüências de seus comportamentos. Ora,para que um projeto comum possa verdadeiramente nos mobilizar, cons-ciente e inconscientemente, é necessário que, num grau maior ou menor,ele se apresente sob um aspecto religioso, sagrado, inatacável: assim, elepode nos atrair, nos inspirar, nos fazer sair de nossa cotidianidade e nosunir aos outros que partilham da mesma ilusão. Da ilusão à crença, a pas-sagem é rápida. Um dispositivo simbólico que funciona encobrindo todadúvida, todo trabalho de interrogação sobre si, transforma-se logo em umsistema de crença. Pois o ato de crer permite a certeza e elimina a questãoda verdade. Um grupo que queira fazer alguma coisa deve acreditar nela

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(deve, pois, eliminar toda inquietação relativa aos fundamentos do quequer realizar), a fim de poder arregimentar toda a sua energia para osucesso de seu projeto.

É verdade que algumas distinções finas se impõem aqui. Assim, ide-alização, ilusão e crença não funcionam de maneira maciça. A crença deum militante político revolucionário não é assimilável à crença de umpesquisador no objeto de sua ciência, pois esse não pode escamotear aquestão da verdade. Mas isso não impede que esses três elementos este-jam presentes, de maneira mais ou menos forte, na formação de todo gru-po. Embora um grupo, existente há muito tempo, possa perder parte desuas ilusões, deixando de considerar o que faz como visando ao idealmais elevado ao qual pode aspirar e deve se referir, o mesmo não se passacom um grupo no momento de se instituir, pois esse não pode se estrutu-rar se algum desses três elementos vier a faltar. Idealização, ilusão e cren-ça levam-nos à noção de causa a defender. FREUD já pensava que a Psica-nálise, para se desenvolver, deveria ser defendida como uma causa, àqual se agarraria com todas as fibras de seu ser (certos psicanalistas atuaisnão hesitaram em chamar sua escola de Escola da Causa Freudiana, assi-milando, abusivamente sem dúvida, suas práticas à da Psicanálise comoum todo). Todo militante político pensa do mesmo jeito. Crê que deve sercapaz de se sacrificar pela causa que o motiva (a nação, a revolução etc.).Todo membro de um grupo é, em certa medida, o porta-voz e o guardiãode “alguma coisa” que o ultrapassa e que legitima sua ação e sua vida (osprimeiros psicossociólogos na França diziam, bem à vontade, que elesexerciam o militantismo psicossociológico). Todo membro de um gruposente-se investido de uma missão (mesmo se ele mesmo se designou essamissão) à qual deve consagrar seu tempo e sua vitalidade. Causa a defen-der, missão a cumprir, sacrifício da própria vida (às vezes no sentido preci-so do termo: em certos países, o militante político arrisca, verdadeiramen-te, sua vida), todos esses termos têm uma ressonância religiosa. E isso nãoacontece gratuitamente. Eles assinalam que o projeto pertence a um mun-do transcendental e sagrado que assegura a seu portador a certeza deestar com a verdade e de ser tanto mais admirável quanto mais brilhantefor o projeto. Para que um grupo se cristalize e crie seus meios de ação, épreciso que se refira a um grande propósito que lhe garanta sua onipotên-cia e que encubra, consequentemente, toda a dúvida sobre os limites deseu poder, sobre a possibilidade de sua impotência. A causa pode sersublime ou irrisória, grandiosa ou pueril, esse não é o problema. Suapresença é indispensável e as modalidades de seu aparecimento são con-tingentes e arbitrárias.

O vínculo grupal

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Um grupo minoritárioUm grupo minoritárioUm grupo minoritárioUm grupo minoritárioUm grupo minoritário

Se o grupo tem uma causa a defender e a promover, isso significaque ele se pensa, se representa e quer se definir como uma minoria atuante.A maioria não tem jamais uma causa a defender; a causa que ela repre-senta já triunfou anteriormente, faz parte do bem comum ou se tornoumesmo um lugar comum. (Pensemos na afirmação da liberdade de todocidadão no momento do sobressalto revolucionário de 1789 e no empo-brecimento desse termo, utilizado nos dias de hoje por todos os partidospolíticos, sem exceção, mesmo pelos mais sedentos de combatê-la). Amaioria tem por objetivo o de bem gerir o patrimônio coletivo e manteruma ideologia favorável à ordem social que ela instituiu. A maioria nãotem jamais um grande propósito; ela só tem interesses a conservar e umaorganização a consolidar.

Só um grupo minoritário (como os psicanalistas – e FREUD em pri-meiro lugar –, os primeiros psicossociólogos e numerosos outros exem-plos), isto é, um grupo que tem a comunicar uma mensagem nova, a procla-mar uma visão nova do mundo (ou, mais modestamente, de uma profissãoou de uma disciplina), a manifestar uma conduta desviante em relação àsnormas da instituição ou da sociedade, pode ser capaz de se arriscar parafazer triunfar o que presidiu sua fundação. As idéias novas, nós o sabe-mos, são o feito de um número muito pequeno de pessoas, algumas vezesde uma só3 , lutando contra o que IBSEN já denominara “a maioria com-pacta”, encarnação da ordem estabelecida e das idéias esclerosadas eenrijecidas. Essas pessoas sabem que, geralmente, têm poucas chances deserem bem sucedidas e as mais conscientes pressentem que, no caso desucesso, são sobretudo os seus discípulos e seguidores que ganharãocom esse avanço. Pouco importa. “A dissidência de um só” (retomandoa bela expressão de MOSCOVICI4 sobre SOLZHENITSYN) pode, pro-gressivamente, se tornar a dissidência de muitos, propagar-se como umamancha de óleo e, talvez mesmo, triunfar. IBSEN acreditava nos que diziamque “é a minoria que tem sempre razão”. Eu serei menos afirmativo, masdirei que, caso uma minoria, um dia, queira triunfar, ela deve, imperativa-mente, acreditar que está com a razão. Do contrário, sua luta não teráalma nem razão de ser.

Toda minoria tem, pois, vocação majoritária: mas, antes de chegar aseus fins, ela deve primeiro, para se reforçar, atingir o grau de adesão quepermite aos indivíduos se sentirem, antes de tudo e contra tudo, membrosdo grupo. Para isso, só existe um caminho: o do complô contra os valoresinstituídos, o da conjuração tramada no segredo e assegurada pela fé

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jurada (juramento que faz de todos os membros do grupo ao mesmotempo cúmplices e irmãos), visando não à contestação da ordem exis-tente, mas à sua transgressão. A contestação, com efeito, tem por objeti-vo questionar o sistema vigente, desmistificando-o e desmitificando-o,explicitando o implícito dos comportamentos, tornando claro o “não-dito” e o “não-pensado” da ordem social. Ela não visa a propor outracoisa, novas maneiras de ser ou de se conduzir. A transgressão, aocontrário, não somente interroga de maneira virulenta as instituiçõese as condutas estabelecidas, mas propõe novas idéias, maneiras ino-vadoras de ser. A Psicanálise, por exemplo, não tentou apenas desar-ticular a antiga ordem psiquiátrica e a visão organicista da doençamental, mas enunciou uma nova teoria da psique e uma concepção dacura que coloca os fenômenos transferenciais e contratransferenciaisentre o psicanalista e seu paciente no próprio centro da cura. Assimfazendo, a transgressão diz não apenas que o saber antigo é obsoleto,mas que um novo saber apareceu, que as práticas sociais e as repre-sentações coletivas não apenas não têm mais eficácia, mas tambémque práticas sociais novas são possíveis e que representações coleti-vas renovadas devem guiar a ação.

Tal transgressão só pode ocorrer pela expressão de uma certa violên-cia. Não se ataca a antiga ordem com um debate cortês, mas pela luta. Lutaempreendida em nome da verdade e da pureza, contra um exterior percebi-do como tão obscuro, tirânico e conservador que se quer derrubá-lo. Poucoimporta que o ambiente seja menos repressivo do que se pensa, que asidéias tradicionais tenham um fundo de verdade. Para que a vitória sejapossível, é preciso se definir pela intransigência e pela intolerância, serclaro como a neve e se sentir irmão dos outros transgressores.

Todo o dispositivo contra o qual se luta é percebido como fortementehierarquizado. E na maior parte das vezes ele o é, pois se funda em insti-tuições sólidas, na cristalização de desejos passados e de poderes estabe-lecidos. Toda instituição, enquanto elemento da regulação social, visan-do à repetição, ao idêntico e à reprodução das relações sociais é, sobcertos aspectos, sintoma do trabalho da pulsão de morte (compulsão àrepetição, vista como pulsão agressiva). Ela é o que impede a tomada deconsciência das relações sociais reais e das relações humanas autênticas;ela é, enfim, a sedimentação das relações de poder e das estratégias que,no passado, deram certo.

Assim, o grupo vai tentar destruir as instituições. Como essas repre-sentam a ordem paterna, o falo triunfante ou a mãe arcaica devoradora, ogrupo só pode lhes opor a ordem fraterna e igualitária.

O vínculo grupal

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

FREUD compreendeu isso bem. Não há complô verdadeiro, a nãoser entre irmãos. FREUD, aliás, viu mais longe: ele se deu conta de que éo complô que torna os indivíduos, a priori estranhos ou rivais entre si,irmãos uns dos outros.

Se nem todo grupo tem que matar o pai da horda, todo grupo, nãoobstante, deve criar um acontecimento irreversível, mediado por uma vi-olência que substituirá a violência instituída e insuportável aos novosirmãos, violência fundadora de um novo mundo, permitindo-lhes formarentre si uma verdadeira comunidade.

É o ódio ao exterior que vai favorecer o amor fraterno e fazer circular ofluxo libidinal que permite a passagem dos sentimentos egoístas aos senti-mentos altruístas. Sem essa vontade de destruição, sem esses sentimentosde serem perseguidos pelos detentores da ordem antiga, seria impossívelaos indivíduos reunidos trabalharem juntos ou se amarem, isto é, mante-rem essa confiança recíproca que não apenas os transforma em membrosde um grupo, identificados uns aos outros (tendo trocado sua diferença esua provável rivalidade por um amor mútuo e maior semelhança), mastambém favorece a emergência de um narcisismo grupal e evita todo confli-to interno. Ódio ao exterior, amor mútuo, amor ao grupo enquanto grupo,sentimento de serem irmãos e de formarem uma comunidade de iguais,sentimento de serem minoritários e portadores da verdade, são essas ascondições de constituição do vínculo grupal.

O desejo e a identificaçãoO desejo e a identificaçãoO desejo e a identificaçãoO desejo e a identificaçãoO desejo e a identificação

O grupo assim formado vai se encontrar diante de um problema estru-tural que tentará tratar continuamente, porém sem sucesso. Esse problemaé o do conflito entre o desejo e a identificação ou, em outras palavras, entreo reconhecimento do desejo e o desejo de reconhecimento.

O reconhecimento do desejo

Em um grupo, cada sujeito procura exprimir seus desejos e fazercom que os outros os considerem. Ele quer se fazer amado pelo que é ou,ao menos, não ser rejeitado, conquistar prestígio ou uma certa posiçãosocial e quer realizar o que sente como se fosse a própria essência deseu ser. Se ele faz parte do grupo, não é só porque quer realizar umprojeto coletivo, mas sobretudo porque pensa que é com essas pessoase não com outras, graças a esse imaginário comum e não a outro, quepode chegar a tornar seu desejo reconhecido em sua originalidade eem sua especificidade, tornar seus sonhos reais, fazer-se aceito em sua

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diferença irredutível, em seu ser insubstituível. Cada sujeito tentaráentão amealhar os outros nas redes de seus próprios desejos, manifestarno real suas fantasias de onipotência e denegar a castração que é vivida,nesse caso, como ameaça real e não como elemento da ordem simbólica.

O desejo de reconhecimento ou a identificação

Mas, em um grupo, o sujeito não quer apenas expressar seu própriodesejo; quer, igualmente, ser reconhecido como um de seus membros.Aliás, se não o desejasse, não poderia ter sido aceito por seus semelhan-tes, não teria podido fazer parte da conjuração, estar a par do “segredo”(um grupo em estado nascente é sempre, em maior ou menor grau, umasociedade secreta com seu ritual e seu código). Para que os diversosmembros do grupo se reconheçam entre si, para que possam se amar,não devem ser muito diferentes uns dos outros. Mais ainda – e aquitambém FREUD nos abre o caminho –, eles devem se identificar uns aosoutros, colocando um mesmo objeto de amor (a causa) no lugar de seuideal do eu. Assim, eles se tornarão semelhantes, formarão um verdadeirocorpo social e não um aglomerado de indivíduos. Essa semelhança bus-cada, essa igualdade insensata (mesmo quando um sujeito se destaca, eleapenas é o irmão mais velho e mais experiente) pode resultar na formaçãode indivíduos uniformes, homogêneos, inventores de normas rígidas eprofundamente interiorizadas, às quais cada um deverá se submeter. Parase dar conta de até que ponto uma ideologia vivida conjuntamente podedar lugar a uma linguagem hermética e a condutas normalizadas, bastapensar no aspecto estereotipado das atitudes de certos psicossociólogosnão diretivos ou de psicanalistas “lacanianos”.

De todo jeito, cada sujeito (e cada grupo) será enredado nesse conflitoestrutural entre o reconhecimento do desejo e o desejo de reconhecimento.Assim sendo, cada grupo terá a tendência a resolver o problema esco-lhendo uma dessas duas direções.

O grupo, querendo formar uma comunidade, um corpo social com-pleto, pode caminhar ou na direção de se tornar massamassamassamassamassa ou na direção dadiferenciaçãodiferenciaçãodiferenciaçãodiferenciaçãodiferenciação.

A A A A A MASSAMASSAMASSAMASSAMASSA

Num tal caso, é o desejo de reconhecimento que predomina.

O grupo não tolera a diversidade de condutas e de pensamentos. Oúnico problema é a mais estrita identificação. Tal perspectiva comportacinco séries de conseqüências:

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1- A falta de diferenças provoca, progressivamente, a degradaçãoda reflexão e da inventividade, a falta de inovação e, sem que seperceba, o emprego de uma linguagem de clichês e de uma “ideo-logia de granito” (Cl. LEFORT).5

2- O grupo completo vai progressivamente se autonomizar e suplantarseus membros. Assim como, a partir de MARX, sabemos que as mer-cadorias criadas pelo homem acabam por revestir o aspecto de “se-res independentes em comunicação com os homens e entre si” e portomar a “forma fantástica de uma relação de coisas entre si”, sabe-mos agora que toda criação humana acaba por se desligar de seuscriadores, tomando as características de um corpo todo-poderoso,capaz de nos devorar ou de nos englobar totalmente e ao qual deve-mos necessariamente obediência e submissão. Estamos, então, facea um grupo “sorvedouro, abismo, sem-fundo”,6 de um grupo ondedominarão as imagens arcaicas e no qual os comportamentos serãode tipo pré-edipiano.

3- A compacidade do corpo formado vai, com efeito, despertar asfantasias mais arcaicas – medos de fragmentação, angústias deexplosão, de devoração e de destruição – que são apanágio detodo grupo, mas que, em tal caso (como no do indivíduo perfeita-mente couraçado que vive uma angústia insuportável de brechas),tomam um vigor particular. Ocorrerão comportamentos regressi-vos, de tipo defensivo: suspeita mútua, delação, sentimento deum meio hostil, tentativa de destruição do outro ou de autodes-truição do grupo, crédito a rumores e às palavras mais aberran-tes, influência, no grupo, de indivíduos os mais emocionais, se-não os mais perturbados, predomínio de fenômenos afetivos nastomadas de decisão.

4- A semelhança pode, igualmente, desenvolver condutas que, à pri-meira vista, não parecem defensivas. Ao contrário, o grupo tem osentimento de euforia por se constituir como massa, por ser o maisforte e o mais belo. Aliás, foi antecipando a emergência desse sen-timento que a comunidade se dirigiu para essa via. Cada qual seperde na construção do eu ideal do grupo, pensando dar satisfa-ção ao seu próprio eu ideal. O grupo se torna objeto de todos osinvestimentos, narcisismo individual e narcisismo de grupo coin-cidem. Nenhum conflito intra-individual ou inter-individual pa-rece possível. O grupo, portador da “verdade” (!), avança cego,coberto de certezas. Que ele se guarde da desilusão, que será parti-cularmente dura de suportar.

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5- Se, por acaso, alguns membros do grupo suportam mal essasituação de massa, chegando ao abandono de toda identidadepessoal, serão excluídos do grupo, como frouxos ou traidores. Seaceitaram durante longo tempo o processo de uniformização, en-contrarão as maiores dificuldades para se reinventar uma novaidentidade e para não reagirem simplesmente como “homens deressentimento”.

A A A A A DIFERENCIAÇÃODIFERENCIAÇÃODIFERENCIAÇÃODIFERENCIAÇÃODIFERENCIAÇÃO

Certos grupos admitem, em seu interior, uma diferenciação dos in-divíduos e uma variedade dos desejos expressos. Se não se trata de ques-tionar o projeto comum, a concepção que tais grupos têm desse projetonão apresenta nenhum aspecto monolítico. Todo mundo, ao contrário,acreditará que um projeto tem tanto mais chance de ser pertinente, eficaze de suscitar adesão ou mesmo entusiasmos, quanto mais ele se apresen-tar como o resultado de discussões finas, de negociações rigorosas, deargumentações contraditórias. Os membros do grupo são, então, irmãosem sua capacidade própria de pensar e de agir, cada qual reconhece acompetência do outro (ou de um outro subgrupo) em domínios específi-cos que utilizam abordagens e técnicas adequadas (assim, em um centrode jovens inadaptados, a administração, os educadores, o psicólogo e opsiquiatra poderão trabalhar em conjunto e não um contra o outro). Atolerância existe, mesmo se as posições de cada um são defendidas comclareza e determinação.

No entanto, como a cooperação idílica não existe mas, ao contrário,todo mundo concorda com a idéia de que a cooperação nasce da expres-são e do tratamento de conflitos, é possível e mesmo provável que o grupoviva momentos de desacordos e tensões que podem mesmo atingir, emcertos momentos, “níveis insuportáveis” (FREUD). Teme-se mesmo que ogrupo se desagregue em subgrupos ou em partidos, cada qual acreditandodeter a verdade, orgulhoso de suas prerrogativas e seguro de estar no bomcaminho. A aceitação do conflito institucional como modo normal de regu-lação do grupo pode acarretar, então, uma maximização das contradiçõese pode orientar a maior parte da energia do grupo para a resolução dessesconflitos. Em tal caso, o grupo acabará por esquecer o seu projeto e passa-rá a maior parte de seu tempo tentando analisar e compreender o que sepassa. A vontade operatória desaparecerá para dar lugar a uma expres-são afetiva superabundante. O grupo se centrará em si mesmo. No limite,ele esquecerá os objetivos que deve perseguir. (Assim, em um semináriopara diretores de um centro de jovens inadaptados, tive a surpresa de

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constatar que esses diretores tratavam apenas de problemas da orga-nização de seus centros, de suas relações com o conselho de adminis-tração e da amplitude de seus poderes. Nesse caso, as grandes ausen-tes de seus discursos eram as crianças de quem se encarregavam.Entretanto, enquanto professor, eu deveria ter ficado menos surpreso.É raro ouvir professores falarem de estudantes; é freqüente, ao contrá-rio, vê-los reclamar da perda de tempo ocasionada por eles). Quando ogrupo não consegue resolver seus problemas, será tentado a achar umbode expiatório. Essa vítima pode ser alguém que não é de modo al-gum responsável pela situação atual ou a pessoa que se revela maisfrágil e, por isso, a única que o grupo pode sacrificar levianamente noaltar de seus problemas, pois ninguém tem medo de fazê-lo e cadaqual pode exteriorizar sua agressividade, com toda impunidade e semtemer medidas de retaliação.

Para não chegar a esse ponto, os grupos que admitem a diferenciaçãoe que querem se gerir de maneira democrática, acabam por reconhecer emum de seus membros um poder que vem de sua experiência, uma influên-cia que vem do domínio das idéias, investindo-o então como chefe capazde encarnar a vontade e os desejos do grupo. Esse, assim transformado, setorna um grupo edipiano, no qual a referência ao novo pai e a seus ideaisse tornará o elemento essencial que permite a identificação mútua e acoesão do conjunto. Um super-eu coletivo surgirá e o chefe será seu porta-voz e seu guardião. O que em política se chamou “culto da personalida-de” ou, nos países ocidentais, “personalização do poder”, e no domínioda Psicossociologia conhecemos como liderança, encontra aqui sua ra-zão de ser e seu campo de aplicação. Em qualquer caso, os processos degrupo girarão em torno da pessoa central, aquela que é considerada comotendo e sendo o falo.

Fenômenos regressivos do tipo submissão, repetição da palavra domestre, crença cega no caráter de verdade daquilo que ele disse, rivalida-de entre os discípulos para serem o eleito do mestre, tentativas escusas defazê-lo cair de seu pedestal, novos complôs para tentar tomar o seu lugarou para ridicularizar seus atos, tudo isso corre o risco de aflorar e demonopolizar uma grande parte das capacidades do grupo.

A paranóia nos gruposA paranóia nos gruposA paranóia nos gruposA paranóia nos gruposA paranóia nos grupos

De acordo com cada caso, os grupos serão então do tipo pré-edipianoou do tipo edipiano, insistirão na uniformidade ou na diferenciação (omomento final dessa consistindo na restauração de um líder, mestre dopensamento e da ação).

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Mas, de todo modo, sendo bem sucedidos ou não, os grupos nãopodem se esquivar, como já constatamos, dos processos paranóicos queos atravessam constantemente.

Com efeito, o grupo minoritário que, para existir, impôs a seus mem-bros que investissem libidinalmente nele e também uns nos outros, tendea desenvolver relações fortemente erotizadas entre seus membros e a fazeremergir um discurso passional. A situação minoritária obriga os indiví-duos a se sentirem solidários e a se amarem, mas também a se defenderemcontra o exterior e a se entre-devorarem.

Uma tal paixão tem pesadas conseqüências. Os membros do grupopodem indagar se alguns dentre eles jogam bem o jogo do amor, rendem-se ao discurso de amor proferido pelo chefe ou ao discurso de amor co-mum; podem, igualmente, querer estabelecer vínculos privilegiados comoutros membros, para afirmar a primazia de sua posição fálica. Correntesde amor e de ódio percorrem o grupo. O problema não é mais saber o quedevemos fazer juntos, mas quem são os amados e os rejeitados, os discí-pulos eleitos e os indivíduos excluídos, as pessoas conformistas e ostraidores potenciais; é o de saber se nos amamos bastante (se amamosbastante o grupo), se somos suficientemente amados, se nós nos damosmuito ou nem tanto ao grupo, se alguns se aproveitam da situação refre-ando seu amor.

Essas questões não podem ser elucidadas, pois um grupo minoritá-rio, em sua vontade de mudar a ordem na qual intervém, só pode tersucesso em sua tarefa se estiver possuído por uma fantasia de onipotên-cia. Ora, se os indivíduos não se entregam ao jogo ou o revertem a seufavor, o grupo corre o risco do fracasso. Assim, do mesmo modo que estãocondenados à crença, os membros do grupo estão condenados ao amor.Correlativamente, eles estão também condenados à suspeita contínua eaberta. O amor desemboca no ódio, a fantasia de onipotência desembocano sentimento de ser perseguido por inimigos exteriores (pela maioriacompacta) e também por inimigos internos que utilizam o fluxo de amorem função de sua grande glória. A tentação paranóica está pois semprepresente e acompanha o processo libidinal, transformado muitas vezesem processo de erotização. Se o grupo é bem sucedido, isto é, se conse-gue impor os seus ideais ou transformar, em maior ou menor grau, ocampo social, tornar-se majoritário, inscrever seu sonho na realidade,ele não pode mais duvidar de estar com a verdade. Os raros inimigos quelhe restam serão perseguidos tanto mais duramente quanto mais tive-rem se recusado a se submeter à nova lei, a única digna de ser respeitada.E não serão só os inimigos que serão perseguidos, mas também os fracos,

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os indiferentes, os marginais, assim como todos aqueles que dão testemu-nho de outra possível verdade ou de um sentido que não é o sentido dogrupo triunfante, mas outro que está ainda para ser encontrado.

Muitos observadores se espantam, por exemplo, com o fato de umarevolução devorar seus próprios filhos. Com efeito, é o contrário queseria de espantar, pois o triunfo revolucionário deverá ser sustentado,havendo sempre os frouxos e os traidores em potencial (se esses nãoexistirem, serão inventados segundo as necessidades e, além disso, qual-quer um é sempre o frouxo ou o traidor para alguém ou para algumafacção). Quem não se enquadra no discurso de amor comum deve sesubmeter ou desaparecer.

Se, de outro lado, o grupo fracassa, isto é, se ele não provoca impactosocial, se seu ideal parece ridículo e sem interesse para os outros, ele vaiprocurar as causas de seu fracasso. E elas não são difíceis de encontrar:são os inimigos exteriores que fecharam as portas para a vitória e são osinimigos internos que sabotaram os esforços comuns. O grupo é incapazde se interrogar sobre as verdadeiras raízes de seu fracasso. Para ele sóexistem os perseguidores ativos ou potenciais. Ele os acossará interna-mente e agirá ruidosamente no exterior, para dizer que ele ainda subsiste.De fato, esse canto de morte nada mais é que um canto de cisne e sintomade sua decomposição lenta e inevitável.

É preciso, no entanto, deixar claro: A paranóia é constitutiva de todogrupo, mas ela não atua com a mesma intensidade em todos eles. Elarepresenta uma tentação constante, mas não é um resultado inelutável.

Para tratar esse elemento constitutivo e desativar sua estrutura mor-tífera, psicanalistas e psicólogos pregam habitualmente a necessidade deuma análise aprofundada e de uma regulação do grupo, em sessões con-duzidas por um analista interno ou externo.

Eu não quereria desacreditar o interesse de tal trabalho, mas gostariade sublinhar que ele não é uma panacéia, particularmente quando o gru-po é composto por pessoas (psicólogos, psiquiatras, educadores, traba-lhadores sociais) habituadas a se interrogar sobre suas motivações e queacreditam ter uma certa proximidade com seu inconsciente. Com efeito,em um processo de análise:

1- Confia-se na linguagem (como na cura analítica) para esclareceros problemas.

Ora, o organizador do grupo, isto é, o elemento em torno do qual ogrupo se constitui, é a ação (o projeto comum) e não a linguagem.

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Nessas sessões trabalha-se com a hipótese de que a linguagem ea ação são forçosamente complementares e que, assim, a lingua-gem (a análise) pode e deve acompanhar a ação. De fato, issoseria amenizar as funções e o alcance de uma análise. A análisepode dar um sentido mas pode também desarticular. Na própriamedida em que ela interpela os processos de idealização, de cren-ça e de ilusão, ela pode atacar o fundamento mesmo do grupo eabalar as certezas mais enraizadas. Ela pode levar à dissoluçãodo grupo, quando esse perde os motivos para se apegar a umprojeto que não reforça mais o narcisismo individual e coletivo.Além disso, em muitas circunstâncias, serão feitas análises su-perficiais, os problemas serão evocados sem serem tratados a fun-do, as pessoas se entregarão a descargas emocionais. Ficar-se-áperplexo ao constatar que, de maneira recorrente, o grupo levan-tará as mesmas questões durante anos, sem jamais chegar ao me-nor esboço de solução. Deveríamos, no entanto, ter em conta queo grupo não se suicida facilmente e que retira benefícios conside-ráveis do mal que pensa sofrer. Viver na angústia e na violência ése sentir viver, tendo a possibilidade de exprimir seu poder eseus sentimentos, arriscar-se a ser amado. Isso não é sem impor-tância e os grupos freqüentemente preferem viver dolorosamente,às custas do mal que nutrem com gosto, ao invés de tentarem oinferno de uma elucidação radical, que se traduziria em umaerradicação ainda mais radical.

2- A tomada de consciência é tida como um elemento central da regu-lação e da capacidade de mudança do grupo.

Aí também há muita ilusão. Muitos atos e condutas só ganharãosentido muito tempo depois, quando não mais for possível fazer oque quer que seja para evitar suas conseqüências. Outras vezes,não será possível tomar consciência do todo (o sentido permanece-rá para sempre velado), pois a tomada de consciência levaria atamanhos perigos que tudo concorre para impedi-la.

Se, em certos casos, a tomada de consciência se produz, ela podeagir como função de desconhecimento e obscurecer os problemas,em vez de favorecer o seu esclarecimento. FREUD disse isso, hámuito tempo atrás, e o disse muito bem. É importante não nos es-quecermos.

O grupo corre pois o risco de fazer a análise pelo prazer da análise,para adquirir uma competência interpretativa ou para se atribuiruma consciência boa.

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Nada resta então a fazer? Há ainda algo a se fazer, mas é precisonão querer ir muito longe; um grupo deve reconhecer e trabalharsuas clivagens, seus antagonismos, suas relações de poder, suasangústias e, ao mesmo tempo, se dar conta de que tal tarefa é limi-tada, pois aquilo que ele trabalha é a própria razão de sua existên-cia. A elucidação do grupo por ele mesmo é uma exigência que nãopode ser, em caso algum, uma solução. Acreditar nela é ir em dire-ção a novas decepções e ressuscitar a ilusão, lá mesmo onde sehavia pensado vê-la desaparecer.

Notas1 Traduzido de: ENRIQUEZ, Eugène. “Le lien groupal”. Bulletin de Psychologie. Tomo

XXXVI, no 360, p. 631-637, 1983, por José Newton Garcia de Araújo.2 Cf. J. B. PONTALIS. “L’illusion mantenue”. Nouvelle Revue de Psychanalyse, n. 4.3 FREUD podia escrever com orgulho: “A Psicanálise é minha criação. Por dez anos,

fui o único a me ocupar dela e, por dez anos, foi sobre minha cabeça que seabateram as críticas pelas quais os contemporâneos expressaram seu descontenta-mento e seu mau humor em relação à Psicanálise.” (FREUD, S. Ma vie et la psycha-nalyse. Gallimard).

4 MOSCOVICI, S. Psychologie des minorités actives. P.U.F.5 LEFORT, C. Um homme en trop. Seuil.6 Segundo os termos de C. CASTORIADIS.

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As dificuldades relativas às referências de identificação, experimen-tadas por um número cada vez maior de nossos contemporâneos, consti-tuem um fenômeno bastante forte para terem me levado, por ocasião deum colóquio organizado por Yves BAREL, em Grenoble, 1983, a fazeruma exposição intitulada “Mal-estar nas identificações”. Essa exposiçãose encontra na obra coletiva dirigida por BAREL (1985).

Creio não ser o caso de retomar aqui os argumentos desenvolvidosou evocados naquela ocasião, mas simplesmente de assinalar que citei atendência a reencontrar certas “referências duras” entre as condutas de-senvolvidas pelos indivíduos e pelos grupos para sair de uma situação“onde tanto a perda das referências quanto a multiplicação dessas nosfazem penetrar em um universo no qual as potencialidades persecutóriassão inumeráveis” (ENRIQUEZ, 1985).

O texto que proponho aqui tem a finalidade de explicar o que entendopor “referências duras”. Ele não pretende eliminar as outras vias de solu-ção nem designar a solução que ora apresento como a mais freqüente.

Entretanto, se me detive a explicitar tal proposição, é porque me pare-ce que essa tendência, atualmente, não deve, de modo algum, passar des-percebida (ela provoca mais impacto que a tentativa de “reinventar ademocracia”) e porque ela tende a ser reforçada nos próximos anos. Espe-ro, então, que meu discurso seja recebido como suficientemente coerente,convincente e inquietante.

Devo acrescentar, mesmo que essas considerações preliminares pos-sam parecer um pouco longas, que o presente estudo é muito diferente(apesar de não o contradizer) de um primeiro texto meu respondido porJean-Léon BEAUVOIS.

Com efeito, os acontecimentos que se produzem atualmente, tanto noLeste da Europa, quanto nos países do Norte da África e no Oriente-Próximo,

O FANATISMO RELIGIOSO E POLÍTICO1

Eugène Enriquez

Mas nós, na verdade, quem somos nós?(Plotino)

O século XXI será religioso ou ele não existirá.(Malraux)

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trazem argumentos complementares à minha tese e tendem a torná-laainda mais radical do que era em sua primeira versão.

A referência dura se exprime para mim, de maneira privilegiada, norenascimento do (ou, mais exatamente dos) fanatismo religioso e político(cf. igualmente ENRIQUEZ, 1989).

***************

Tratar conjuntamente do fanatismo religioso e político significa quea religião, como o pensavam DURKHEIM e FREUD, está na própria baseda instauração da comunidade (e mais tarde da sociedade) e de seusmodos de gestão política. Não existe corpo social nem orientação norma-tiva desse corpo sem religião (sem culto dos ancestrais, sem totens, semdeuses ou sem Deus único). A religião nos institui como seres heterôni-mos (segundo a expressão de CASTORIADIS), como indivíduos que de-pendem da existência de um Sagrado transcendente e obrigados, sob penade exclusão da comunidade, a lhe render uma homenagem constantepelos dons recebidos, além de nos sentir para sempre em dívida, comrelação a ele. A religião produz então o “ser-junto”, ela nos religa uns aosoutros, ela nos protege da angústia do caos primordial e de uma interro-gação que poderia apontar o aspecto arbitrário de nossa presença nomundo (seja como ser individual, seja como ser coletivo). Pois bem, dizerque a religião é consubstancial a todo corpo social e a toda forma degovernar esse corpo, isso não a obriga, necessariamente, a se apresentarsob a máscara do fanatismo.

Ao contrário, pode-se dizer que, enquanto as sociedades (desde aRevolução Francesa, ou seja, desde a entrada na modernidade) souberamdeixar um espaço ao religioso, sem lhe outorgar, no entanto, um domíniocompleto sobre as consciências e um papel central na organização políti-ca (esse foi o caso tanto nas sociedades arcaicas como nas sociedades doantigo regime, apesar de todas as diferenças possíveis de se observar emseus modos de existência social), o fanatismo religioso – isto é, a crençaexacerbada em um mito, um dogma, um ritual compartilhado que é pre-ciso defender, às custas da própria vida – encontrou pouco sustentopara crescer. No conjunto, as religiões no mundo moderno ocidentaldesempenharam, às vezes com reticência, o papel que lhes estava desti-nado, deixando ao Estado e ao seu aparelho educativo o cuidado decompletar ou de contradizer seus próprios ensinamentos. A César o queera de César, a Deus o que era de Deus. Assim, as grandes religiõesmonoteístas foram, ao longo do tempo, se depurando, elas não coloca-vam mais problemas particulares. As crenças, sustentadas por rituais

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pouco numerosos e pouco restritivos, se resumiam em uma ordem moralgeral bastante branda. Elas continuavam a assegurar um papel de estabiliza-ção das relações sociais, mas foram se laicizando, sem se dar conta disso namaior parte do tempo. O episódio, na França, dos padres operários, que seassumiam cada vez mais como operários e cada vez menos como padres, éum bom exemplo desse desvio tranqüilo que não incomodava a ninguém,salvo ao aparelho da Igreja que começava a se dar conta das conseqüências,a longo prazo, do declínio de uma fé sincera e manifesta, transformada ape-nas em uma religião enfeitada com seus últimos esplendores.

Entretanto, quando as religiões estabelecidas passaram a não ter maisa mesma força de convicção e se tornaram assuntos privados (o homemdotado de razão, tornando-se mestre de si mesmo e de seu destino, aspiran-do assim, como desejava DURKHEIM, a tornar-se um Deus para os outroshomens – homo homini DEUS), quando o reino de um Sagrado transcenden-te foi se acabando, não assistimos, como acreditaram grandes autores (emparticular Max WEBER), ao “desencantamento do mundo”, mas à cria-ção de religiões substitutas. Novos Sagrados vão aparecer: o Dinheiro,como medida de todas as coisas; o Estado como aparelho separado, regu-lando e freqüentemente dominando a Sociedade civil, “introduzindo aunidade na diversidade” (HEGEL); o Trabalho como grande integrador(segundo a ótica de Yves BAREL); o Proletariado como Salvador messiâ-nico da humanidade, tendo por missão engendrar uma sociedade semclasses, uma sociedade da transparência e da reciprocidade; a Sociedadeela mesma se admirando na sua capacidade de se transformar e de desen-volver a ciência e a tecnologia, além de assumir o progresso indefinido doespírito humano (segundo a fórmula de CONDORCET).

Algumas religiões, baseadas mais ou menos nesses diversos Sagra-dos, que alguns autores vão denominar religiões seculares (R. ARON, J.STOETZEL), profanas (MOSCOVICI), laicas (E. ENRIQUEZ), passam a sedesenvolver, tendo como papel levar os indivíduos a idealizarem a socie-dade atual (ou futura) e seus mestres (presentes ou futuros), colocando-osnum lugar de submissão a um imperativo de conduta que, a longo prazo,venha a lhes aliviar “a angústia de pensar” (TOCQUEVILLE) e lhes asse-gure, a qualquer preço, um estado psíquico onde o conflito não aparece.Essas religiões substitutas nada mais são que as ideologias. É necessárioprecisar o significado que dou a esse termo. As ideologias que me interes-sam não são os sistemas mais ou menos formalizados de idéias que bus-cam uma coerência e que orientam a ação dos homens, permitindo-lhes sesituar e dar razão à sua existência e às suas condutas. Todos os homens,em todas as sociedades (modernas) seriam então ideólogos, porque é

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impossível viver sem ser regido, conscientemente ou não, por um conjun-to de idéias nas quais acreditamos, mais ou menos fortemente, e que favo-recem a unidade do eu ou do corpo social. O termo designa então ummodo de funcionamento tão comum da psique individual e coletiva quenão apresenta nenhuma qualidade particular.

Quando falo de religiões substitutas, eu falo de Weltanschauung (deuma concepção de mundo), de ideologias totais (LYPSET, 1963), da ideo-logia de granito (LEFORT, 1976), eu falo então de um conjunto de valoresque têm força de lei, porque ele se designa a si mesmo como expressão deuma verdade científica que não seria posta em dúvida e que fornece aosindivíduos e aos grupos a resposta única e definitiva às questões que avida leva-os a se colocar. A ideologia capitalista-liberal é então uma ide-ologia, na medida em que ela se funda sobre uma representação do ho-mem (homo oeconomicus), racional e calculador dos custos ou vantagensque ele pode esperar de seus comportamentos, um homem agindo em ummundo transformado num imenso mercado (de bens, de serviços, de vo-tos etc.), governado por uma lei fundamental: a lei da oferta e da procura.A ideologia pode, então, (mesmo se, de fato, apóia-se sempre em um siste-ma articulado de crenças) ser discutida cientificamente e se apresentar,pois, não como uma ideologia (quer dizer, como um conjunto de idéias ede valores ao qual também podem ser opostos outras idéias e outros valo-res, de modo que a escolha a ser feita dependa unicamente das preferên-cias individuais ou coletivas), mas como um corpus científico do qual sepretende que só podemos escapar por má fé.

É, pois, plenamente possível dizer o mesmo da ideologia marxista (talcomo ela foi recolocada, após a morte de MARX, por ENGELS e, depois, porLENIN) que recusa levar o nome de ideologia, mas que atribui a si o ajustedefinitivo de leis objetivas da natureza e do social, permitindo compreen-der o funcionamento e a evolução da humanidade. Os sucessores deLENIN levarão tal proposta muito mais longe: um bom comunista deveconhecer as obras de STALIN ou o pequeno livro vermelho de MAO, paraconduzir sua vida cotidiana de maneira justa e científica.

Mesmo quando a ideologia se apresenta sob aspectos menos tota-lizantes, tal como a ideologia republicana, na França, sob a IIIa Repú-blica, ou mesmo quando ela pode admitir certas contradições trazidaspelas instituições específicas que dividem entre si as funções de regu-lação da sociedade, isso não impede que ela tente dar uma boa formaaos indivíduos, a boa forma da obediência aos que detêm o saber, quersejam os pais, os mestres, os chefes de guerra ou os chefes de Estado, saberque é indispensável exportar aos países que ainda vivem na barbárie

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(colonização). As ideologias que eu evoco são, então, ideologias “com-pactas” que, como as religiões, têm por função fundar “uma comuni-dade de crentes”, que produzem uma cultura própria, cheia de calorpara com seus adeptos e cheia de ódio contra os indivíduos livres-pensadores, heréticos ou descrentes.

Essa concepção da ideologia me obriga a retomar a questão religiosa.Eu havia dito acima que religião não significava fanatismo e que as reli-giões, na época moderna, representaram um papel menor na dinâmicasocial. Mas é preciso observar que, quando as religiões se enfraque-cem, as ideologias (que pretendem ser a encarnação da cientificidade)asseguram sua continuidade porque, no cerne mesmo da sociedade, asreligiões tinham uma face muito diferente daquela – boazinha –, que jámencionei.

Uma religião é uma mensagem sobre a transcendência e sobre asRelações íntimas que os seres humanos, reunidos em comunidade, de-vem estabelecer com o Sagrado, sob pena de desaparecerem ou de serempredestinados às piores torturas. Essa mensagem é sempre anunciadapor um indivíduo cercado de discípulos e que forma uma seita. Umareligião, estabelecida e difundida (eu me refiro aqui somente às religiõesnascidas no Oriente-Próximo), constituindo-se, em maior ou menor grau,como uma Igreja com seus templos, indica que a seita, a “minoria ativa”(MOSCOVICI, 1979), conseguiu se desenvolver. Um tal sucesso só torna-se possível se ela souber, por sua força de convicção, por seu caráterabsolutista, pelo sacrifício de seus mártires, pelo ferro e pelo fogo, imporsua intolerante visão de mundo sobre as outras visões, elegendo dogmase rituais violentos que são o sinal de sua força conquistadora, provocan-do a submissão e a admiração de povos inteiros. Um grupo minoritário,desejando continuar minoritário e sendo tolerante com outros grupos,não pode estar na origem de nenhuma religião. Uma religião só existequando “a comunidade de crentes” (e não é por acaso que eu utilizo asmesmas palavras, quando evoco a religião e a ideologia) soube recalcarcertos desejos e certas fantasias, substituindo-os por outros que, sozi-nhos, vão se impor como lei, e foi capaz de se designar os inimigos“ideais” a excluir, a negar, a converter ou a destruir. Toda religião sealimenta da idealização e do ódio contra o outro. É assim que ela podeformar uma cultura, que ela assegura sua identidade, que ela pode li-vrar os homens do ódio inconsciente de si, jacente em todo ser humano,projetando-o nos outros, é assim que ela fornece a seus adeptos o senti-mento de formar um “nós”. Ela então regula essa questão central daalteridade, antes mesmo que seja colocada.

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Uma tal descrição da religião chocará os “crentes” que insistirão, deseu lado, no “sentimento oceânico” (R. ROLLAND) que a mensagem reli-giosa provoca neles, discurso de amor que induz a uma união entre osseres humanos (“amai-vos uns aos outros”) e entre esses e o cosmos. Elesinsistirão na possibilidade de transcendência que a religião oferece aoindivíduo, apto assim a se desembaraçar de seu narcisismo protetor e desuas mesquinharias cotidianas, além de ver a vida sob a forma de umaascese e de uma interrogação permanente. É verdade que os grandes mís-ticos, os eremitas e os santos se mostram a nós como “sábios”, “poetas”,seres ao mesmo tempo humildes e gigantescos, como heróis (no sentidofreudiano do termo), porque eles correram o risco de se desviar da forma-ção coletiva dominante e de fazer do amor de Deus o único amor que valea pena. Eles não vivem sua crença como uma ilusão, mas como a únicavia de abertura do mundo terrestre ao reino de Deus.

Não é meu propósito dizer que esses indivíduos estão errados e queé pouco provável que a crença religiosa seja vivida desse modo. Isso seriadar prova de uma arrogância insuportável. A única tese que eu defendo éque essa maneira de viver a religião acontece com um pequeno número depessoas e que, ao contrário, a multidão só pode viver ou aderir a umareligião (principalmente quando ela está se formando e pretende se esta-belecer duradouramente) quando essa é intolerante e apela ao sacrifício eà destruição. Em outras palavras, as religiões monoteístas (as religiõespoliteístas sabiam fazer composições entre si e trocar seus deuses) sópuderam se impor por sua capacidade de desenvolver sentimentos fa-náticos. É de fato mais belo morrer sem sentir dúvidas do que viver cominterrogações, porque a morte santifica e promete o paraíso, enquantoque a vida sem certezas só permite a infelicidade. A pulsão de morte tementão um imenso campo social à sua disposição: que os impuros desa-pareçam e com eles a impureza que eles espalham. A religião católicanão teria podido se impor sem a caça aos heréticos (basta mencionar amaneira como foram subjugadas a heresia dos albigenses e as práticasda Inquisição), assim como a religião muçulmana não triunfaria sem adestruição do paganismo e sem a guerra santa conquistadora. Se a reli-gião judia pôde não se revestir desse aspecto destruidor (isso dito combastante reservas, já que as informações sobre esses tempos longínquossão raras), é porque os judeus, tendo contraído com Deus uma aliançaprivilegiada que os instituía como povo eleito, não tinham razão algumapara ampliar o número de seus adeptos. (Entretanto, em certos casos –como no Norte da África – a religião judia, apesar de tudo, desenvolveuuma política de conversão).

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Concluindo, embora religião e fanatismo religioso não devam serconfundidos e embora a passagem da religião ao fanatismo não seja ime-diata nem constante, mas somente possível e previsível, se certas condi-ções são preenchidas, eles não podem, entretanto, ser totalmente dis-sociados, pelo menos no que diz respeito às religiões monoteístas, quesão religiões da revelação.

Foi a ruína progressiva das religiões de caráter absolutista que per-mitiu a progressão das ideologias “compactas” e, por conseguinte, ainvenção de novas transcendências com seu cortejo de dogmas e de ícones.(Não existe, na verdade, ideologia sem porta-voz, sem emblemas, sem todauma iconografia – um Marxismo sem retratos de MARX, de ENGELS ou deLENIN é impensável – representando os santos e os heróis).

Ora, nossas sociedades ocidentais contemporâneas, as liberais e as“socialistas”, viram o declínio progressivo tanto das ideologias duras (odesmoronamento atual dos regimes políticos dos países da Europa doLeste nada mais faz que levar ao seu apogeu esse declínio que toma um arde derrocada), quanto de certas ideologias mais leves e menos dogmáti-cas, que admitem certas contradições ou elementos de incoerência, comoa ideologia republicana. Não é o caso aqui de traçar um diagnóstico dessedeclínio (cf. o texto de J. PALMADE). Entretanto, é conveniente fazer algu-mas observações.

1- As sociedades ocidentais continuaram o trabalho começado noséculo XIX e o levaram a um ponto de incandescência: priorida-de total do econômico (“tudo se compra, tudo se vende”, segun-do o axioma de WALRAS), obsessão da modernização que tempor corolário uma alienação e uma exploração mais sutil e tam-bém mais severa, idealização da técnica e da tecnologia quepode dar um senso preestabelecido a todas as condutas huma-nas, substituição das questões por quê? pelas questões como?(ou seja, substituição da racionalidade de fins pela racionalida-de instrumental, segundo a terminologia weberiana), intensifi-cação da produção não somente de objetos úteis, mas de afetosque podem entrar no circuito de troca e de distribuição. (O sexualtorna-se então uma mercadoria como uma outra qualquer –KLOSSOWSKI, 1971).

2- Elas se enriquecem, além disso, de novas características. São so-ciedades:

a- que não são mais organizadas em torno da diferença primordi-al dos sexos e das gerações, levando a uma opacidade nas iden-tificações e na eclosão de um universo onde tudo se mistura,

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onde a indiferenciação reina absoluta. Sociedades sem pais e,assim, sem possibilidade do assassinato simbólico do pai, o quefavoreceria tanto a metaforização quanto o acesso progressivo aum certo grau de autonomia e de reconciliação com o pai, a partirdo momento em que o pai e os filhos passassem pelos caminhosda castração. Restam apenas algumas fantasias de onipotência,de imortalidade, ligadas a certas imagens de mãe arcaica devora-dora, “mãe das cloacas e dos brejos, mãe das estepes e grandeportadora de morte” (DELEUZE, 1967), da qual é necessário, paraos homens e para as mulheres, se desembaraçar. HEGEL escre-via: “As crianças vivem a morte dos pais”. Se não há mais paisou se só existem pais terrificantes, as crianças não se tornarãojamais seres autônomos;

b- sociedades que, por isso mesmo, não propõem mais interdiçõesestruturantes mas apenas interdições repressivas (para quecada um não tente realizar seu desejo de onipotência, não pensee não aja como se tudo fosse possível no imediato) que sãovividas como fruto do mais puro arbitrário – a vontade decoerção – e que acabam parecendo tanto mais irrisórias quan-to mais se multiplicam ao infinito (J. LAPLANCHE, 1967, jáhavia observado isso);

c- sociedades que não mais propõem ideais elevados (salvo ideaissatânicos: destruir o outro, concebê-lo como um inimigo ideal,pensar e querer o apocalipse) e, ao mesmo tempo, realizáveis.(Assim, o capitalismo tinha uma certa legitimidade, enquantocriação e distribuição das riquezas. A partir do momento emque apenas a especulação permite fazer dinheiro sem produçãode mercadoria, sua legitimidade desaparece. Assim também,quando o socialismo real não implica senão privações e oaçambarcamento de magras riquezas pelos potentados nacio-nais ou locais, seu valor se corrói, já que ele compreendia aprivação como uma etapa indispensável à construção de umfuturo radioso). Nesse momento, os valores são intercambiá-veis ou desaparecem, o trabalho perde seu significado. O queresta nada mais é que a necessidade de consumo e de gozoimediato, além do furor de não poder satisfazê-los;

d- sociedades que, no fim das contas, caem num desinvestimentoletal e encorajam os comportamentos perversos (o sucesso danoção de estratégias no mundo dos negócios é um testemunhoevidente disso) e histéricos (ENRIQUEZ, 1989).

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Diante dessa perda de sentido, do desaparecimento de referênciaa toda transcendência, da ausência de um fundamento, em um univer-so laicizado que não se preocupa com a salvação do homem, tragadopela espiral do desenvolvimento e dos excessos da guerra econômica,nutrido por uma atmosfera individualista ou coletivista (sem se preo-cupar com os custos humanos: aumento dos suicídios, da loucura, daexclusão, da miséria, da apatia, da corrupção), os indivíduos nadamais fazem senão tentar se retirar desse mundo instável onde a angús-tia se torna o destino comum.

Com a falência das ideologias e supondo-se que elas ajudaram agerar esse “pesadelo climatizado”, é normal que muitas pessoas e gru-pos tentem reencontrar seu equilíbrio e se assegurarem uma identidadeestável recorrendo àquilo que foi o próprio fundamento de todo corposocial: a religião. Mas as religiões, tendo se enfraquecido no conjunto domundo e, em particular, no Ocidente, não oferecem mais interesse. Oque desejam os deserdados, os “desgarrados”, os excluídos, os esqueci-dos, “os humilhados e ofendidos” (DOSTOIEVSKY) é um sistema quelhes dê um ideal a realizar, uma causa a defender, um projeto a susten-tar. Eles querem se tornar um “Nós”, formar uma cultura, permanecerna certeza e, no limite, se sacrificar. Contra o mundo perverso, só hásalvação na paranóia partilhada. A religião reclamada é a religião ab-solutista, aquela que designa claramente os aliados, os irmãos e os ad-versários, aquela que cria uma identidade coletiva, construindo uma soci-edade que se deixa levar pelo equívoco da Unidade-Identidade. Daí seseguem três conseqüências.

O indivíduo desaparece.

Como explica admiravelmente DEVEREUX (1973): “O ato de for-mular e de assumir uma identidade coletiva maciça e dominante – qual-quer que seja essa identidade – constitui o primeiro passo à renúncia‘definitiva’ da identidade real. Se não somos nada além de um esparta-no, de um capitalista, de um proletário, de um budista, nós estamos bempróximos de não ser nada ou então de não ser de jeito nenhum”. Essacitação dispensa comentário.

O aparecimento do “narcisismo”das pequenas diferenças. (FREUD, 1930)

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FREUD mostrou que era sempre possível “unir uns aos outros, pe-los vínculos do amor” (e nós acrescentaremos: pelos vínculos da fasci-nação, da sedução ou da coerção), uma imensa massa de homens, com aúnica condição de “que alguns outros fiquem de fora para serem alvodos ataques”. É por isso que “grupos étnicos estreitamente aparentadosse repelem reciprocamente: a Alemanha do Sul não pode suportar a Ale-manha do Norte, o inglês fala tudo de ruim do escocês, o espanhol des-preza o português”. Esse “narcisismo das pequenas diferenças” permiteuma “satisfação cômoda do instinto agressivo e é através dela que acoesão da comunidade se torna mais fácil aos seus membros”. Não es-queçamos, além disso, que esse “narcisismo grupal” pode levar à xeno-fobia exacerbada e ao racismo.

O desenvolvimento do fanatismo.

CASTORIADIS (1987) escreve: “Como uma cultura poderia admitirque existem outras que lhe são comparáveis e para as quais, no entanto, oque é um alimento, para ela é uma impureza?”. Quanto mais uma culturaquer se unificar, tanto mais ela se torna intolerante e mais deseja a mortedas outras ou, pelo menos, sua conversão. Ela é impelida pelo ódio e poruma alucinação coletiva que aponta a imagem dos estrangeiros (ou dosdesviantes) como perseguidores todo-poderosos, ou seja, como seres a eli-minar. Os outros tornam-se “piolhos” a destruir. O fanatismo visa, então, acriar um mundo novo, livre do mal. Ele é possuído por uma fantasia deredenção e de ressurreição do social.

Esse desaparecimento do indivíduo em um grande todo que não su-porta a diferença faz ressurgir as condutas religiosas fanáticas, tais comoas descrevi acima. Eu acrescentarei apenas que elas vão assumir a funçãode “dissimular as fraquezas do eu ideal e do ideal do eu, além de permitiratenuar as feridas narcísicas” (M. ENRIQUEZ, 1984); para isso, elas exi-gem a super-identificação à causa, o super-investimento no projeto, o blo-queio ou o desaparecimento progressivo da interioridade; a vontade desalvar o mundo se situa deliberadamente em um imaginário enganoso,anunciador de um mundo novo, liberado finalmente do mal, dos “grandese dos pequenos Satãs”.

É certo que, nos diversos países, as diferentes religiões não se com-portam todas da mesma maneira e não buscam os mesmos objetivos. Écerto também que o fanatismo é apenas uma das respostas possíveis para

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o mal-estar da identificação; ele é a resposta daqueles que têm necessida-de de “referências duras” para viver e que são “inaptos” para reinventara democracia e se confrontar com a sua solidão; é a resposta de indivíduoslevados pela onda da história e não de indivíduos criadores da história.

Uma tal explicação não pode entretanto ser suficiente. Ela poderiafazer crer: 1) que se trata apenas dos problemas de indivíduos ou de grupossociais excluídos e que tentam resolver seus problemas dessa maneira; 2)que a religião tem sempre necessidade de se apresentar de maneira inte-grista, fundamentalista, para unificar os corações e os espíritos. Retome-mos esses dois pontos:

1- Se é mais fácil recrutar fanáticos entre os “esquecidos” que entre oscombatentes e os vencedores de um sistema, é preciso lembrar que,para que o fanatismo se fortaleça, não basta que existam tais indiví-duos (e grupos) em nossa sociedade perversa e histérica, simultane-amente (a histeria sendo uma característica essencial de toda socie-dade “teatral”, onde a mídia desempenha um papel considerável eonde todas as ações devem ser vistas em seu esplendor, o que é a basedo “barroco degenerado” no qual nós vivemos). É preciso, ainda, queessa renovação fanática traga proveito a alguns, em seu objetivo decontrole ou de direção da sociedade ou do mundo.

E nós tocamos, assim, o essencial: a dimensão política. Ou seja, oretorno de um religioso absolutista não é o sinal de uma renovaçãoreligiosa verdadeira, mas, sem dúvida, o sinal de seu enfraqueci-mento. São Estados, regiões ou grupos sociais bem definidos queutilizam a fé para exercer seu poder ou seu terror. O fanatismo reli-gioso é, primeiro e antes de tudo, na hora atual, um instrumento aserviço do fanatismo político. Não foi isso que aconteceu quando seconstituíram as grandes religiões monoteístas. É por essa razão quemeu texto tem esse título. O fanatismo religioso, sozinho, resulta, nomáximo, em pequenas seitas fechadas sobre si mesmas, certas deseu direito e partes do folclore de toda nação.

O fanatismo se aplica aos Estados outrora dominados que aspi-ram, por sua vez, a se tornar dominantes (por exemplo, o Irã),Estados que utilizam o fanatismo para assegurarem o domíniosobre outros países (Iraque, Síria), Regiões de um império queemprega a religião para humilhar e deixar famintas outras Regiõestão submissas quanto elas (por exemplo, o Azerbadjão, em rela-ção à Armênia) ou para tentar chegar à sua independência, gru-pos sociais minoritários e outrora desprezados, que desejam terum dia o domínio sobre os destinos de um Estado do qual eles

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são membros (por exemplo, certos grupos religiosos em Israel),grupos racistas minoritários que esperam um dia tomar o poderem nome de uma raça regenerada (neonazistas, lepenistas, dife-rentes “igrejas” americanas) ou que se iludem na possível con-quista de um poder, do qual eles não saberiam o que fazer, seitasque conseguiram se implantar e têm o desejo de exercer uma in-fluência política, conseguindo-o freqüentemente (Opus Dei, Com-munione e Liberazione, Loja P2, Eglise de Scientologie). O fanatismoreligioso tem então uma relação direta com o problema da toma-da de poder.

2- A religião não se apresenta, forçosamente, em nossos dias, sobuma forma fanática. Nesse caso, ela pode ter como papel:

a- fortalecer a ação de indivíduos e de grupos contra as ideologias(as religiões leigas) às quais eles estão sujeitos e que só lhestrouxeram miséria, destruição cultural, interdição de pensar (Po-lônia, Alemanha do Leste, Irlanda do Norte, Países Bálticos,Armênia – não importa quão diferentes sejam os exemplos), afim de re-instaurar territórios nacionais e de repensar a questãodas nacionalidades que as ideologias marxistas e liberais ten-deram a esquecer ou a tratar de maneira uniforme;

b- manifestar as diferenças irredutíveis de cada comunidade (oindivíduo só existindo em relação à comunidade), coabitandoumas com as outras dentro de uma grande tolerância ou senãode uma grande conivência, antes talvez de desaparecerem umdia num enfrentamento direto (é o caso, na França, das comuni-dades islâmicas, cristãs, judias). Se a aliança persiste, ela per-mitirá aos diversos cleros se apoiarem; se ela se extingue, eladesignará os vencedores e os vencidos;

c- redourar o brasão das religiões tradicionais, que querem fazervaler sua palavra, na regulação dos Estados modernos, nosquais não existe senão um fraco consenso. Basta constatar opapel cada dia mais importante que desempenham as autori-dades religiosas (católica, judia, protestante, muçulmana) navida cotidiana da França. Alguns exemplos heterogêneos – areação fraca e ambivalente de Monsenhor LUSTINGER aoincêndio que arrasou o cinema que projetava o filme ligeira-mente iconoclasta de SCORCESE2 ; o convite a alguns líderesprotestantes, na retomada das negociações na Nova-Caledô-nia; a ação empreendida por certas instituições judias para o

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desenvolvimento das escolas religiosas na França; a interven-ção da Grande Mesquita para tentar resolver o “famoso” pro-blema do uso do véu (tchador) – nos mostram que as Igrejas nãosão mais separadas do Estado, mas que, ao contrário, o Estadoleigo faz apelo, cada vez mais freqüentemente, às suas compe-tências ou se mostra sensível aos seus pontos de vista.

O retorno do religioso se mostra então mais ambíguo do que apa-rentava ser. De fato, o religioso, tomado como regresso à origem culturalou nacional e o religioso fanático são, antes de tudo, um sinal da trans-formação da vida política e dos modos de dominação política, em vez deafirmação da necessidade de transcendência. Talvez seja isso que qua-se sempre vem acontecendo, desde o início dos tempos modernos. Mas,qualquer que seja sua intenção profunda – um mundo onde o reino deDeus (qual Deus?) existiria sobre a Terra ou um mundo onde umanova classe política tomaria o poder, com a ajuda de seu Deus –, oreligioso sempre visa a identificar o indivíduo com seu grupo e inseri-lo totalmente nele (algumas vezes absorvendo-o no potentado que en-carna o poder político e espiritual em sua pessoa, como no exemplo deKHOMEINY); ele visa também a desenvolver ainda mais os processosde idealização, cujo objetivo é constituir “comunidades de denegação”,ao invés de processos de sublimação; ele tenta, finalmente, paralisar aatividade de mentalização, de reflexão e de reflexividade, fazendo desa-parecer ou tornando silenciosa a vida interior com suas emoções, suasdúvidas, seus conflitos (embora proclamando o contrário de tudo isso)e impedindo a criação de sujeitos individuais e coletivos que buscamnão apenas sua autonomia – criadores de história, prontos a afrontar oabsurdo, a falta de sentido, o caos e o abismo, sem recorrer a referênciasseguras –, mas também construir com outros uma ação que possa tersentido para a coletividade.

Os homens aprenderiam, nesse caso, que são eles que criam a histó-ria a cada momento e que é pela tomada de consciência, nascida dessetrabalho árduo, laborioso, sem fim, que surge um processo de desaliena-ção e uma vida democrática.

Eu gostaria, para terminar, de precisar meu objetivo.

1- Se a ameaça do fanatismo religioso e político é real, não é o caso desuperestimá-la. O fanatismo se alimenta dos descaminhos e dacorrupção de nossas sociedades. Se essas são capazes de inventarnovos projetos, a tendência ao superinvestimento religioso e nacio-nal será barrada.

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2- No mundo não existe ninguém que seja não-crente. Todos nós cre-mos em certos valores e é impossível decidir racionalmente que va-lores são preferíveis a outros. Os valores religiosos, na medida emque favorecem uma relação com um sagrado transcendente nãocolocado a serviço de uma vontade política de dominação, devemser levados em consideração, tanto quanto outros tipos de valores.

3- O que me parece crucial é que não se interrompa a reflexão filosóficasobre o homem e sobre as sociedades. Se, em certos casos (eu pensona Teologia da Libertação, na América do Sul), a religião pode levaros grupos sociais a se darem conta da situação de dominação naqual eles vivem, ela lhes permite tomar iniciativas, ter uma outravisão do mundo e conceber Ações coletivas. Ela assume então opapel de desalienação, habitualmente reservado à Filosofia ou àSociologia. O que eu quis enfatizar em meu texto são os aspectosmais negativos do fato religioso, do fato ideológico, do fato nacional.Eu não quis dizer, em nenhum momento, que a religião, a ideologia,a política da cidade ou da nação nada mais são do que perversõesdo espírito, uma vez que elas são, efetivamente, o fundamento mes-mo da instauração de toda vida social. Por outro lado, o que eu quissublinhar – e isso com bastante ênfase – é que, quando o religioso sepõe a serviço do político, quando a ideologia dura impede o livrepensar, quando uma cidade ou uma nação desenvolvem uma cultu-ra na qual elas se fecham e fecham seus membros, então a reflexãodesaparece, a perversão ou a paranóia triunfam, Thanatos ocupatodo o campo espiritual e social. Ora, a tentação totalitária está con-tinuamente presente nos processos religiosos, ideológicos e nacio-nais. Ela lhes é consubstancial. Também o papel de todo intelectuale de todo homem prático é dar caça a esse desejo de homogeneiza-ção e de morte do pensamento, nos fenômenos sociais, nos seusinterlocutores e, naturalmente, antes de tudo, em si mesmo, sobpena de cair, se ele não faz esse trabalho, na armadilha que denun-cia, tão fácil e prazerosamente, no outro.

Notas1 Traduzido de: ENRIQUEZ, Eugène. “Le fanatisme religieux et politique”. Connexions,

n. 55, p. 137-149, 1990-1, por Leila de Melo Franco S. Araújo.2 “A última tentação de Cristo”. (N. T.)

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O fanatismo religioso e político

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Descrever um fato psicossocial – tendo como referência o fato socialtotal de Marcel MAUSS – é compreender como estão imbricados, uns nosoutros, os diferentes níveis de realidade e de experiência de uma institui-ção concreta.

Esse texto trata das instituições – como elas se criam, como elas sedesenvolvem, como elas podem morrer.

Ele se apoia em reflexões suscitadas por um estudo realizado em algu-mas Pequenas e Médias Empresas (PME) situadas na região de Cholet, emplena Vendée.2 Tais reflexões mostram, sobretudo, como uma empresa é oproduto de uma criação coletiva envolvendo não apenas o dirigente que afundou e seus sucessores, mas também sua família e as comunidades lo-cais no seio das quais ela existe e encontra sua razão de ser.

A escolha da região do Cholet, para nela desenvolver esse estudosobres as PMEs, se impôs por ser ela bem conhecida como uma micro-cultura que tem suas raízes na história da Vendée. Caracterizando-se porum notável dinamismo industrial, em domínios tão variados quanto otêxtil e os da madeira, alimentação, vestuário, calçados etc., seus produ-tos, de uma tecnologia freqüentemente muito sofisticada, são exportadospara todo o mundo (iates, por exemplo). O contraste existente entre essedinamismo industrial e comercial, de um lado, e o conservadorismo soci-al e cultural da região, de outro lado, já havia sido notado por váriospesquisadores.

A história das empresas que estudamos a partir do que nos disseramseus dirigentes, por ocasião de entrevistas exaustivas e sucessivas, reve-la claramente o modo como elas nascem e vivem em função do apareci-mento, do exame e de uma resolução relativa de tensões permanentes,vividas pelos dirigentes, assim como revela as Contradições que se ma-nifestam em todos os níveis de funcionamento da empresa. Resumindo:a história revela um trabalho psíquico, individual e coletivo, incessante, que

CONJUNÇÃO, NA EMPRESA, DE UM

PROJETO PESSOAL E FAMILIAR, COM A

HISTÓRIA DE UMA REGIÃO: O PROCESSO DE

CRIAÇÃO INSTITUCIONAL1

André Lévy

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consiste em passar de identificações imaginárias a um “real” mítico, oqual é vivido como o fundamento da empresa, mas permanecendo fiel àsrepresentações das quais ele é a metáfora. Em outras palavras, um traba-lho que consiste em passar de um “real” mítico universal a uma espéciede realidade mais abstrata – a empresa moderna –, feito às custas derupturas e da intervenção de mediações que provocam divisões, diferen-ciações, clivagens.

Uma tal aventura, que envolve todos os grupos ligados ao futuroda empresa, é, entretanto, sobretudo aquela que seus sucessivos diri-gentes vivem e se confunde em grande parte com a história pessoaldesses dirigentes.

Não se trata, para nós, com efeito, de estudar a empresa como obje-to sociológico – tal como poderia ocorrer pela combinação dos discursose dos pontos de vista de todos os seus atores –, mas a empresa comoobjeto psicossocial, isto é, enquanto existindo e tendo sentido para seusdirigentes, que são ao mesmo tempo seu principal tema; ou ainda, comoobjeto no discurso dos dirigentes, convidados a falar a respeito, a partirde suas lembranças, de seus projetos, de suas dúvidas.

Se as entrevistas e a maneira como foram conduzidas respondiamsobretudo a exigências de ordem metodológica definidas em relação anossos objetivos de pesquisa, era, entretanto, indispensável – para queelas tivessem um sentido – que fossem também para os dirigentes umaocasião de refletirem em voz alta, para si próprios, sobre aquilo que aempresa, suas dificuldades, sua história, seu futuro, evocava neles, empresença de interlocutores supostamente neutros e atentos. Ou seja, quetais entrevistas, ainda que solicitadas por nós, respondessem a um autên-tico desejo de rememoração e de melhor compreensão.

Assim, pudemos recolher o depoimento detalhado descrevendoa história de uma dezena de empresas diferentes quanto à dimensão,à antigüidade, ao produto, desde sua origem até o momento atual, etambém fazer um levantamento de questões relativas ao presente eao futuro próximo.

Cada um desses depoimentos cobria o espaço de várias gerações su-cessivas de dirigentes, geralmente pertencentes à mesma família ou a famí-lias aparentadas. Tendo analisado esses depoimentos, caso a caso (empre-sa a empresa), num primeiro momento e, depois, segundo um métodocomparativo, pudemos pôr em evidência certas constantes, em função dasquais os depoimentos estavam estruturados – constantes definindo o pro-cesso de desenvolvimento das empresas, a partir de sua criação.

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Assim, nota-se que, embora todas tenham dependido, na origem,da ação de um indivíduo (o fundador) possuidor de um ofício e de umprojeto, sua realização efetiva e seu desenvolvimento apoiaram-se sobreum conjunto de solidariedades ativas familiares e, também, locais e re-gionais. Todos os casos ilustram perfeitamente a conjunção entre umprojeto e uma competência individual, histórias de famílias (nuclearesou ampliadas, com freqüência até mesmo joint families, quer dizer, famí-lias reunidas por relações de alianças ou de parentesco, conjugadas arelações econômicas) e de estratégias de sobrevivência ou de desenvol-vimento de comunidades locais.

De maneira mais geral, parece-nos ser possível afirmar que as em-presas são fundadas sobre a base de três entidades imaginárias de im-portância variável, cuja combinação constitui o sistema de sustentação,a partir do qual elas podem se desenvolver.

Essas três entidades, que correspondem ao mesmo tempo a realida-des materiais, sociais (ou mesmo econômicas) e a valores (ou a represen-tações simbólicas), podem ser resumidas da seguinte maneira:

- a terra ou a região, quer dizer, aquilo que é ligado aos locais físicos,geográficos;

- a família, quer dizer, aquilo que se relaciona aos vínculos de consan-güinidade e de parentesco por aliança;

- o ofício ou o produto, quer dizer, o que tem relação com o trabalho ecom seu objeto.

É importante sublinhar o fato de que essas três realidades se tradu-zem por expressões faladas, conceitos verbais, cujas diferentes significa-ções e modalidades se desdobram à medida em que evolui a história dasempresas e o discurso dos dirigentes.

A terraA terraA terraA terraA terra

Essa referência é onipresente, quer se exprima pela relação com osolo, com a propriedade do camponês que fornece diretamente as matéri-as primas (fibras, argila, grão etc.) que se trabalha ou, de maneira maisabstrata, com o território (nome das cidades, ruas ou áreas) que define ocampo de atividade onde a empresa está implantada; ou ainda, de manei-ra mais extensa, com a região (no caso, a regiões de Mauges, de Bocage, ouentão o Oeste) que constitui uma unidade geográfica, histórica e socioló-gica, no seio da qual e para a qual a empresa se desenvolve.

Nesse último sentido, a terra ou a região, designa não apenas um lugargeográfico mas também seus habitantes, sua cultura, suas tradições e a

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consciência de compartilhar um passado comum e aquilo que é sentidocomo uma mesma “mentalidade” – caracterizada aqui por valores deajuda mútua, de seriedade e de fidelidade (“palavra é palavra”), inde-pendência (“as pessoas daqui mandam no lugar”) e perseverança (“ir atéo fim com o que começamos”). Desse ponto de vista, a região de Cholet évivida como uma espécie de cidadela cercada de estranhos dos quaisdevemos desconfiar (“entre as pessoas de Cholet há uma certa moralida-de; assim que ultrapassamos a fronteira, vira tudo uma máfia”).

A identificação com a “região” inscreve-se concretamente no funci-onamento da empresa, nas relações e atitudes: assim, as relações co-merciais privilegiam os clientes “fiéis”, em nome de uma certa ética; asrelações com os empregados pressupõem vínculos recíprocos de solidari-edade comunitária que transcendem as relações de poder e as diferençasde status social; a política industrial tende a favorecer o desenvolvimentode uma produção local beneficiando as “pessoas da gema”, contribuin-do para o renome da cidade ou da região, em nome de um patriotismoregional que cria obrigações; o próprio modo de gestão pode também serorientado pelos valores comuns, como traduzem diferentes fórmulascomo: “temos quer ir fundo”; “é preciso revirar a terra com vontadeantes da colheita; não se pode fingir”, “não ficar falando abobrinhas,eis nosso jeito fazendeirão”.

A “região”, “a terra”, no sentido concreto, mas também no metafóri-co, constituem então, simultaneamente, um conjunto de obrigações e derestrições, de dependências múltiplas que limitam as margens de mano-bra e as capacidades de iniciativa e de inovação, bem como uma fonte deriquezas, físicas e morais.

A identificação do dirigente a esse imaginário cultural alimenta comefeito não apenas um sentimento de orgulho (“orgulho de ser dirigentechalotês”), mas também um sentimento de segurança, a certeza de podercontar com uma rede de solidariedades ativas extremamente eficazes, emcaso de dificuldade.

A famíliaA famíliaA famíliaA famíliaA família

Tratando-se, na maior parte dos casos, de empresas familiares, olugar dessa é aí dominante, tanto no imaginário quanto no real.

Antes de ser um projeto pessoal, a empresa é um projeto de família.Essa é aqui entendida como um nome próprio – com freqüência o mesmoque empresa, mas também e sobretudo como a história de gerações suces-sivas cujas relações, atividades e lucros organizam-se em torno dela.

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Ela é, então, designada como “negócio de família”, “sociedade defamília”, “sociedade familiar” ou, ainda, “empresa familiar”. Como sepode notar, se essas diferentes expressões marcam um deslocamento pro-gressivo da “família” do centro para a periferia (a preposição “de” po-dendo ser interpretada como designando o pertencimento ou a origem),elas traduzem a idéia de que a empresa é um lugar “de trabalho em famí-lia” e um bem privado (um patrimônio).

Compreende-se, então, que para o dirigente ela seja concebida comoum “prolongamento de si próprio e de suas raízes”, como “a realizaçãode seus antepassados”, como uma herança da qual ele nada mais é doque um depositário transitório e da qual deverá prestar contas a seuspróprios descendentes.

Afora alguns poucos casos acidentais (ligados a falências ou a con-flitos graves), a transmissão da herança é sempre assegurada em linhadireta, seja pelos homens (os filhos), seja pelas mulheres (as filhas e seusmaridos), sendo um dos dois sexos, geralmente, descartado.

A presença da família e de seu passado se traduz, é certo, nas repre-sentações e valores que dão sentido à empresa e ao papel do dirigente,mas também nos fatos reais.

Assim, na sua origem, a empresa é freqüentemente alojada na “casafamiliar”, onde empregados e patrões podem comer juntos, até o dia emque a extensão das atividades torna necessária a mudança para locaismais apropriados, inclusive para outras aglomerações.

Da mesma maneira, no início, o capital da empresa se confunde como patrimônio familiar (“os bens da família”), até a introdução de umacontabilidade que estabelece uma distinção formal, ainda que apenaspara atender a exigências do fisco, entre os bens e os dividendos pesso-ais, por um lado, e o capital e os salários, de outro. Naturalmente, essadistinção é acompanhada por uma modificação no estatuto jurídico(LTDA, SA, COOP) que estabelece uma distinção entre a posição depatrão e a de acionista e acarreta a instauração de regras, de papéis e deprocedimentos formais, substituindo as regras informais que reprodu-zem as relações intra-familiares.

As estruturas e as relações de poder são, de fato, num primeiro tempo,uma reprodução bem fiel das estruturas da família, os postos-chaves sen-do ocupados por membros dela, de acordo com a posição que ocupam noseu seio (a não ser por incompetência notória ou situação de conflito), asrelações de autoridade, inclusive com empregados, sendo também ima-gem das relações de parentesco, quer dizer, fortemente personalizadas.

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Assim, um conflito com membros do pessoal é facilmente sentido comouma insuportável falta de respeito em relação à pessoa do dirigente eàquilo que ela representa. Nessas condições, os sindicatos independen-tes são mal tolerados, porque são percebidos como estrangeiros introme-tendo-se no que é considerado negócio privado.

A história da empresa é assim, freqüentemente, confundida com ahistória familiar e as etapas de seu desenvolvimento coincidem, a maiorparte das vezes, com os acontecimentos familiares – mortes, casamen-tos, rupturas.

Assim como para a referência à região, a identificação à família é aomesmo tempo uma fonte de força, uma inspiração, um elemento de coesãoe também uma limitação, uma fonte de problemas e de conflitos. Todos osdirigentes têm consciência disso e multiplicam as precauções destinadas areduzir e a prevenir as repercussões sobre a vida da empresa das proble-máticas familiares – rivalidades etc., principalmente por ocasião de mu-danças de direção e na repartição de tarefas e poder. O resultado é que setorna difícil para o dirigente definir perspectivas futuras para a empresaque se distingam das finalidades concebidas em termos de fidelidade como passado e manutenção de vínculos e bens da família.

O ofício, o produtoO ofício, o produtoO ofício, o produtoO ofício, o produtoO ofício, o produto

Em função de sua origem artesanal, numerosas PMEs definem-se emrelação ao ofício de seu fundador. Esse empresta um valor emblemáticoao produto que é a sua razão social.

Um ofício é uma maneira de trabalhar uma matéria – madeira, couroetc. – e de lhe imprimir uma marca pessoal. Está diretamente associado àsmãos do artesão, no seu corpo-a-corpo com uma terra e seus produtos.

Apalpar essa matéria, evocar sua origem terrena ou seu significadocultural e mítico – receita caseira, lenços da região do Cholet, frangos quea gente destrincha de maneira especial etc. –, tudo isso é sempre ocasiãode um prazer intenso, pois esse restitui a ancoragem do homem na natu-reza e a transformação que ele nela provoca.

Mais do que um produto com valor de troca num lugar qualquer oupara cliente qualquer, o ofício exprime o orgulho do trabalho cumprido esua utilidade social para seus próximos, seus vizinhos. Ele exprime tam-bém o reconhecimento da herança recebida, da receita ou do jeitinho defazer, transmitidos de geração em geração.

Produzir e vender (até mesmo exportar) um lenço de Cholet ou umarosca da região de Vendée é tornar conhecido e apreciado um objeto

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impregnado de história e tradições, é se inscrever nelas e não apenas pôrem circulação no mercado uma produção anônima.

No que concerne àquilo que constitui a empresa em sua origem, vê-se então que, para o dirigente, trata-se de um conjunto extremamentecoerente, cujas partes, que remetem cada qual a uma realidade física(terra, sangue ou mãos), encarnada na pessoa do fundador, estão imbri-cadas umas nas outras; essas três bases – ou instituições primárias –,constatou-se, não são entidades independentes; elas são ligadas entresi – a família às comunidades locais e à região, o ofício, transmitido degeração em geração, à terra. Juntos, eles formam então como um blococompacto, no qual a empresa e seus dirigentes estão solidamente anco-rados e cuja solidez reside na potência do imaginário cultural do qual éa expressão manifesta.

Entretanto, nós constatamos também que essa solidez aparentemascara contradições que fragilizam o conjunto: as dependências e asrestrições podem se traduzir em rigidez que ameaça gravemente a empre-sa de esclerose e de imobilismo. O dirigente que percebe bem esses riscosfica dividido entre a necessidade de permanecer fiel a esses objetos deidentificação, que asseguram sua identidade e a base da empresa, e aconvicção de que deve se desembaraçar deles, pelo menos em parte, paragarantir as evoluções indispensáveis.

De fato, a maior parte das empresas estudadas dão testemunho dodinamismo que habitualmente se atribui ao meio industrial da região deCholet. Elas integram de maneira notável as tecnologias mais recentes – ainformática, o marketing etc. –, elas desenvolvem um dinamismo comercialna França e no estrangeiro, elas não hesitam em estabelecer vínculos nu-merosos com os meios financeiros, profissionais, políticos e em utili-zar os serviços de especialistas de todo tipo.

Sua história, tal como aparece no discurso de seus dirigentes, permi-te de maneira precisa compreender: como elas conseguiram efetuar essapassagem do arcaísmo de suas origens àquilo que caracteriza uma em-presa moderna; como elas conseguiram fazer coexistir um passado sem-pre presente e as complexidades da organização socioeconômica atual;como os dirigentes puderam ultrapassar as contradições com as quaiseles se confrontaram.

Esse processo não se realiza sem problemas; ele supõe a adoção deatos concretos, de decisões dolorosas implicando escolhas difíceis que odirigente deve assumir pessoalmente. Consiste, com efeito, não em negar,mas em reduzir a influência desses objetos imaginários, em desligar aqui-lo que estava ligado, em introduzir distâncias e divisões ali onde havia

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uma unidade mítica e em decompô-la e recompô-la a partir de seus ele-mentos liberados e capazes de se unir de uma outra maneira.

O ponto de chegada de tal processo, seu objetivo, é a criação de umainstituição tendo sua organização e suas finalidades auto-referidas. Nostermos de T. PARSONS, consiste em passar de um sistema social a umoutro; quer se trate de papéis ou de expectativas de papéis, de estruturasde necessidades e de motivações, de produções, de valores ou modos eredes relacionais, a evolução pode ser descrita em função dos cinco gru-pos de variáveis definidas por T. PARSONS: do particular ao universal,do pessoal ao impessoal, da afetividade à separação, da proximidade aodistanciamento, do herdado (ou do dado) ao adquirido.

De maneira mais precisa, podemos descrever esse processo desen-volvendo-se em três direções distintas:

a- a industrialização, isto é, a substituição do ofício pelo produto emeios de produção;

b- a passagem do negócio de família à sociedade anônima;

c- o deslocamento, isto é, a transferência física da empresa paraoutros locais.

Esses três movimentos resumem, com efeito, as principais dificulda-des que os sucessivos dirigentes têm a enfrentar, ao longo de toda a histó-ria da empresa; é realizando-os que as tensões anteriormente evocadassão deslocadas ou tratadas de maneira indireta.

Cada um deles está presente nas três instituições primárias quemencionamos no início; mas a evolução que eles traduzem não modificaapenas as significações particulares que cada uma delas tem; ela temtambém por efeito torná-las mais autônomas entre si, à medida que aempresa adquire os atributos de uma identidade própria.

A industrialização: do ofício ao produtoA industrialização: do ofício ao produtoA industrialização: do ofício ao produtoA industrialização: do ofício ao produtoA industrialização: do ofício ao produto

A passagem do artesanato à indústria consiste, essencialmente, numdeslocamento das finalidades da empresa em direção à produção e àvenda de objetos que têm um valor de troca universal, independente dapessoa que os fabricou ou do lugar onde foi produzido.

Isso influencia todos os planos da empresa: racionalização dastécnicas de fabricação, exigindo, principalmente, investimentos emmáquinas e em locais especializados, assim como a aprendizagem ea utilização de técnicas transmissíveis; elaboração de uma organiza-ção e, portanto, de estatutos e tarefas diferenciadas e hierarquizadas,

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traduzindo diferentes níveis de competência, bem como uma administra-ção capaz de a gerenciar.

O próprio dirigente vê seu papel se transformar profundamente, nãosomente porque seu ofício não está mais no centro da empresa, sua princi-pal razão de ser – ele deve, em contrapartida, adquirir as competênciasligadas à gestão –, mas também porque a estrutura de pessoal se transfor-mou, tendo como conseqüência relações de autoridade mais formalizadase mais impessoais, regidas segundo técnicas e métodos importados.

Enfim, as relações mais diversificadas com a clientela são estrutura-das segundo a problemática da oferta e da procura; elas implicam noestabelecimento de uma organização e de uma política comercial orienta-das para um mercado, segundo técnicas menos automáticas e mais agres-sivas, além de requerer especialistas suscetíveis de aplicá-las.

Mesmo quando o dirigente conserva o monopólio de uma ou de ou-tra dessas responsabilidades, ele não pode assumi-las todas e é, então,obrigado a repartir o poder com outros.

Do negócio de família à sociedade anônimaDo negócio de família à sociedade anônimaDo negócio de família à sociedade anônimaDo negócio de família à sociedade anônimaDo negócio de família à sociedade anônima

Um dos primeiros indícios da institucionalização da empresa é, fre-qüentemente, a entrada em cena de um contador, que põe as contas emordem, de acordo com regras precisas que excluem, a partir de então, todaconfusão entre ganhos e bens de família e entre o capital ou os salários.

A implantação de um estatuto jurídico preciso é um coroláriodessa reforma.

Esse fato ilustra perfeitamente a relação paradoxal que existe entrea família e a empresa e confirma a observação de LÉVI-STRAUSS segun-do a qual

a sociedade não pode existir a não ser se opondo à família, aomesmo tempo em que respeita suas obrigações”; ou ainda: “dasfamílias na sociedade, pode-se dizer (...) que elas são ao mesmotempo sua condição e sua negação.

Um outro índice de evolução da empresa diz respeito às transforma-ções que ocorrem na composição do grupo de acionistas, bem como nacomposição do Conselho de Administração. O envolvimento da família é,com efeito, máximo, quando essas instâncias reagrupam apenas mem-bros da família restrita, unida por vínculos de consangüinidade com osancestrais fundadores que ocupam igualmente todos os postos de res-ponsabilidade. Já mencionamos antes os perigos dessa situação que, se

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não forem evitados, podem se traduzir em dificuldades muito grandes,podendo implicar até em falência.

A ampliação do Conselho de Administração e/ou do grupo de acio-nistas, quer a um conjunto de famílias aliadas (joint families), quer sobre-tudo a terceiros não tendo nenhuma ligação familiar – quadros ou repre-sentantes dos empregados (no caso de cooperativas), sócios etc. –,mostra-se assim sempre indispensável.

Aqui também isso se traduz por estruturas e procedimentos formaliza-dos, pela instauração de regras explícitas e, portanto, pela definição depapéis e critérios decisórios, garantindo o distanciamento de pressões afe-tivas de origem familiar e traduzindo, segundo os termos de LÉVI-STRAUSS,“a recusa de reconhecer na família uma realidade exclusiva”.

Progressivamente, o centro de gravidade da empresa encontra-sedeslocado para fora do círculo familiar, transformando as relações depoder e os modos de pensar, a estrutura de pessoal (mais jovens, melhorformados) e a da clientela.

Esse processo não se realiza de uma só vez, mas, freqüentemente, emvárias gerações e sempre por decisões – das quais uma das mais signifi-cativas é o deslocamento concreto da empresa para um lugar apropriado– onde o peso dos modos de vida e dos hábitos de pensar das relaçõesantigas é menos forte, o que permite, principalmente entre os (jovens)dirigentes, separar de maneira mais efetiva sua vida pessoal privada daprofissional.

Esses estão, com efeito, no centro do processo que os afeta mais do quea qualquer outro membro da empresa. Sua legitimidade enquanto dirigen-tes não se baseia mais sobre o direito que seu lugar no seio da família lhesatribui nem na lenta iniciação sob a condução e o olhar de um idoso; comopara qualquer chefe de empresa, ela se baseia em competências que elesadquiriram, geralmente fora da empresa, e que lhes permitem mais facil-mente romper com modos de fazer e de pensar herdados e, portanto, deajudar a empresa a percorrer esse mesmo caminho.

Eles são, por conseguinte, colocados numa situação extremamenteconflitiva. Na medida em que seus conhecimentos e suas convicções osencaminham a posições radicalmente opostas àquelas que os inspiram àfidelidade e ao respeito que devem a seus mais velhos, eles devem encarartensões e mesmos conflitos agudos.

É, pois, muito raro que essas evoluções possam ter lugar durante umasó geração. É mais freqüente que caiba aos sucessores a tarefa de operar asrupturas necessárias, mesmo que essas já tenham sido delineadas há muito

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tempo. É no momento da passagem progressiva do poder que o filho ou ogenro é levado a negociar as mudanças, evitando ao máximo que isso levea rupturas irreversíveis.

O deslocamentoO deslocamentoO deslocamentoO deslocamentoO deslocamento

O deslocamento está carregado de conotações essencialmente ne-gativas, na medida em que ele traduz de maneira mais direta a rupturacom o local de origem, o solo no qual a empresa se situa. E, no entanto,uma estratégia de desenvolvimento e de crescimento implica sempre,necessariamente, uma tomada de distância em relação à terra natal.Trata-se, pois, de um problema nevrálgico para as empresas e para seusdirigentes.

Mesmo tratando-se de uma simples mudança (mas elas não são jamais“simples”) da unidade fabril, ela se traduzirá por obrigações novas face aoutras populações com outros estilos de vida, outras aspirações, outras exi-gências. Se o deslocamento para outra região, ou mesmo para o estrangeiro,é importante para reduzir, por exemplo, o custo de mão-de-obra e encararuma certa concorrência, isso será vivido como algo em detrimento da prefe-rência pelo local e, portanto, como uma espécie de traição.

Mas o deslocamento pode também significar a inserção numa redeindustrial e comercial mais ampla, o estabelecimento de vínculos mais oumenos institucionais com outros parceiros – industriais, bancos etc. – e oquestionamento de vínculos anteriores. Se, além disso, a empresa adotaruma estratégia de exportação, ser-lhe-á necessário adaptar-se a um mer-cado regido por outras normas, outros modos de relação.

Em todos os casos, o deslocamento é conotado por um sentimento deinfidelidade face àquilo que constitui a especificidade da empresa e aidentidade de seus dirigentes.

Para essa questão, encontramos respostas extremamente diversas.Alguns escolhem deliberadamente reivindicar e reforçar suas raízes lo-cais, renunciando a uma expansão possível, mas permitindo a sobrevi-vência da empresa, graças a constantes esforços no plano da inovação:“permanecer pequeno”, manter uma qualidade de vida e de trabalho,para si próprio como para o ambiente é, nesse caso, considerado preferí-vel a uma expansão sem significado.

Outros se orientam para soluções, permitindo administrar as con-tradições, isto é, preservar uma base local, mas evitando que essa setorne uma limitação ou obstáculo à criação de novos vínculos abertos aoutras perspectivas.

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Essas soluções podem, por exemplo, consistir em dividir a empresaem várias unidades relativamente autônomas, algumas das quais poden-do se situar alhures; ou ainda, estabelecer vínculos com outras empresase participar de uma rede industrial, cobrindo um ciclo completo de fabri-cação e distribuição sobre toda uma região (o Oeste, por exemplo); ouainda, desenvolver uma rede de sub-contratantes, situadas em regiõeseconomicamente mais propícias, evitando, no entanto, criar vínculos dedependência com eles.

Os três movimentos que constituem o processo de institucionalizaçãosão, portanto nitidamente diferenciados e interligados, ao mesmo tempo.

São diferentes no sentido de que eles não se implicam mutuamentede maneira total.

São interligados no sentido de que apresentam efeitos, uns sobre osoutros, mais ou menos importantes.

Todas as empresas, no entanto, que manifestam um crescimento sen-sível, traduzem uma participação em pelo menos dois desses três movi-mentos.

Quanto mais eles se ampliam, mais eles se autonomizam, uns emrelação aos outros, e mais a unidade mítica do tríptico terra-ofício-famíliatende a se quebrar, a rachar.

Como conseqüência de decisões, conscientemente tomadas ou im-postas pelas circunstâncias, e de rupturas que essas provocam com olugar, as pessoas ou os hábitos de pensar, emerge assim uma organiza-ção, no sentido pleno do termo, admitindo divisões e separações, onde asrelações são mediatizadas pelos saberes, por regras ou por técnicas.

As relações diretas, face a face, são substituídas por relações secun-dárias, indiretas, que supõem prazos e contatos (redes etc.); as identifica-ções a objetos são substituídas por identificações a símbolos (faturamen-to, taxa de crescimento, produtividade, margem de lucro, mercados, etc);as relações de poder pessoal são substituídas por regras e estatutos.

Um tal processo pode ser, então, assimilado a um trabalho de luto.Esse trabalho deverá ser essencialmente assumido pelo dirigente; é ele,com efeito, quem encarna por mais tempo as três bases sobre as quais aempresa se funda; é SUA família, SUA terra, SEU ofício que dá corpo a ele;é pois, na SUA cabeça que elas se ligam e tomam sentido; e é igualmentenele e por ele que elas podem se desligar.

Seria, entretanto, ilusório acreditar que esse processo de criação ins-titucional possa ser terminado, que a instituição possa se reduzir a essa

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ordem preestabelecida, existindo para e por si mesma. O social nunca éestabelecido de uma vez por todas; ele deve sempre compor com o nívelprimário, do clã, que é o seu fundamento, sua fonte energética, sua anco-ragem biológica.

A instituição é um processo, uma tensão permanente. Se, para in-gressar na linguagem e na ordem simbólica que se abre à história e aofuturo, é necessário desligar-se das identificações a “objetos” imaginaria-mente reais, é impossível, no entanto, desprender-se inteiramente, des-pregar-se, sob pena de perder o contato com o real biológico, de negaraquilo que ééééé, ficando na ilusão de sua existência.

Uma instituição está viva apenas na medida em que essa tensão émantida, apenas se o trabalho de luto está sempre ocorrendo e se a angús-tia que o acompanha está sempre presente.

Essa angústia é mais difícil de ser suportada quando, além de tradu-zir o risco de perder os objetos de identificação primária, traduz tambéma ameaça de destruição do núcleo do real, constitutivo do sujeito, de suaconsistência, de sua unidade.

Notas1 Traduzido de: LÉVY, André. “Conjonction dans l’entreprise d’un projet personnel et

familial, et de l’histoire d’une région: le procès de création institutionnelle”. Paris, 1991.(mi-meogr.), por Júlio M. Mourão. (Publicado também em “Actes du Colloque de l’InventionFreudienne”, Toulouse, 1990, com o título Inconscient, organisation sociale, collectif).

2 Região situada no oeste da França. (N.T.)

Conjunção, na empresa, de um projeto pessoal e familiar,com a história de uma região: o processo de criação institucional

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A psicossociologia em exameA psicossociologia em exameA psicossociologia em exameA psicossociologia em exameA psicossociologia em exameParte II

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Muitos teóricos acreditaram que a era da Psicossociologia chegara aofim. No espaço até então ocupado por ela, surgiram diferentes métodos deintervenção que se mostraram, aparentemente, mais eficazes e mais rápi-dos. Todavia, podemos nos perguntar (e é essa a questão colocada por A.LÉVY, nos seus dois textos) se esses novos métodos não minimizam a pos-sibilidade de mudanças reais e duradouras, uma vez que ignoram a angús-tia inerente a toda transformação e a toda ação de caráter irreversível.

No momento atual (e esse é um dos pontos abordados nos estudos de A.LÉVY e A. NICOLAÏ), as sociedades são afetadas por consideráveis rupturase mudanças, responsáveis por um incontestável mal-estar nas identificaçõese nas identidades. Pode-se mesmo perguntar se a civilização não estariapassando por um processo involutivo (como já o temia FREUD). Essas trans-formações devem, então, ser pensadas e acompanhadas por intervenções depesquisadores, capazes de levar em consideração as dificuldades inerentesa tais situações, a fim de que as sociedades possam, verdadeiramente, enfren-tar suas dificuldades e buscar superá-las, de forma responsável.

Entretanto, quais são os problemas realmente essenciais, na atualida-de? Aos olhos do psicossociólogo, os mais importantes entre eles parecem sero crescimento do individualismo, os “intermináveis adolescentes” citadospor A. NICOLAÏ, o triunfo da racionalidade experimental, com o seu corolá-rio, a busca desenfreada pelo êxito econômico e financeiro e, finalmente, orecrudescimento do “narcisismo das pequenas diferenças” (FREUD), queacarreta as disputas inevitáveis entre nações, etnias, grupos religiosos etc.

É certo que a Psicossociologia não tem poder para tratar dessas ques-tões no âmbito da sociedade global, mas ela pode auxiliar os atores e osautores sociais (segundo a terminologia de A. NICOLAÏ) ou os sujeitos(segundo A. LÉVY) que querem inovar e criar novas modalidades sociais.Ela pode ajudá-los a analisar melhor as estratégias de ação que podemdesenvolver, assim como compreender as conseqüências de suas toma-das de decisão. No momento atual, um trabalho de tal monta é necessário e,sobretudo, possível, pois, como o evidencia Nicolaï, as mudanças essenciais

PSICOSSOCIOLOGIA EM EXAME

Teresa Cristina Carreteiro

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

surgem em níveis locais e em regiões periféricas, e não a nível global e emregiões centrais.

Os sociólogos não se enganaram, quando anunciaram, como o fezTouraine, o “retorno do ator”. No entanto, isso só adquire sentido se pen-sarmos que as modificações devem ser acompanhadas por mudanças nopsiquismo do ator (autor, sujeito), assim como por mudanças no modo dofuncionamento dos grupos (A. LÉVY). Lidar com tais situações tem sido atarefa da Psicossociologia, desde a sua criação, quando afirmava que é navida cotidiana que as transformações ocorrem, na relação e pela relação, eque não se pode dissociar mudança individual e coletiva.

É verdade que a Psicossociologia deve evoluir, interessar-se maispelos movimentos sociais, pelas interações entre sujeitos, por tudo aquiloque poderíamos chamar de forças instituintes. Essa disciplina deverá,também, dar atenção especial à conversação e ao debate. Seguindo essavia, ela estará atenta à exigência de verdade e poderá ajudar os indivíduosa tentarem superar seus medos, conhecendo mesmo um certo prazer nacriação individual e coletiva. Ela poderá, igualmente, ajudá-los a acredi-tarem nas suas próprias palavras, levando-os assim a se tornarem pro-gressivamente mais autônomos.

Nesse sentido, na atual crise pela qual passa o Brasil, a Psicossocio-logia tem algo de positivo a oferecer, podendo auxiliar os vários atores aaprofundarem a reflexão sobre as suas organizações, suas instituições eseus diversos grupos sociais, além de auxiliar na pesquisa de questõesrelativas a como queremos e podemos nos transformar. Mas, para tanto,antes de mais nada, faz-se necessário o reconhecimento do mal-estar queperpassa todos os campos de nossa sociedade, atingindo mesmo as dife-rentes dimensões da cidadania.

Será, portanto, a partir do reconhecimento de nosso lugar de atoressociais (enquanto sujeitos individuais ou coletivos), capazes de contri-buir, seja para a evolução social, seja para a sua involução, que podere-mos reconhecer nossas possibilidades instituintes.

É importante ainda mencionar outra questão, levantada por A. LÉVY:as verdadeiras mudanças, prováveis de ocorrerem na sociedade, não sur-girão de tomadas de decisões formais, ritualizadas, como têm sido fei-tas, com freqüência, na prática social. Ao contrário, elas ocorrerão apartir da elaboração das dificuldades e da criação de novas modalida-des de busca da verdade. Esse processo é longo, pois requer que se ultra-passe o nível da exterioridade, realizando um genuíno trabalho psíqui-co, os diferentes sujeitos devendo analisar sua própria implicação. Sóassim pode-se proceder a um verdadeiro aprimoramento ético, atravésda crítica efetiva e da transformação de nossas práticas sociais.

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O que se passa hoje com a Psicossociologia e com as práticas que elaintroduziu, no início dos anos 60, em tantos setores da vida social? Suainfluência no tratamento dos problemas de mudança individual e coleti-va, no modo de compreender as organizações e as instituições e, ainda,nas condições de uma evolução das pessoas e das práticas organizacio-nais está atualmente em decadência? A Psicossociologia foi suplantada,tornada obsoleta pelas novas doutrinas e metodologias que apareceram apartir daquela época e que se inspiraram tanto nela?

Caso se acredite no que se diz a esse respeito, e observando-se todauma série de sinais, seríamos tentados a pensar que, com efeito, as coisasse passam assim: o número restrito de manifestações, a receptividadereduzida das produções escritas recentes,2 o envelhecimento, nem sem-pre bem sucedido, de equipes e instituições tradicionalmente associadasa ela, as tendências por demais freqüentes a reduzi-la a uma espécie denovo humanismo misturado a um rogerianismo neolewiniano, posto aogosto da moda pelas contribuições da Sociologia das organizações, dasocioterapia e da Escola de Palo Alto, – tudo isso parece indicar, forçosa-mente, que a Psicossociologia não é mais um lugar vivo de criação intelec-tual e de inovação nem está presente em questões dominantes das organi-zações atuais, muito marcadas por transformações profundas naorganização do trabalho e nas relações com ele e por reviravoltas devidasà informática e às novas técnicas de comunicação.

Se me decidi a escrever esse texto, é porque me parece que, malgradoas aparências, as preocupações às quais a Psicossociologia tentou trazerrespostas não perderam em nada sua acuidade e que nada leva a pensarque elas devam um dia desaparecer.

E isso se traduz em um interesse, na acepção forte do termo, presente emmuitos meios, por uma verdade da qual só é possível aproximar-se conside-rando-se a relação com o outro e por meio de uma pesquisa rigorosa que

A PSICOSSOCIOLOGIA: CRISE OU RENOVAÇÃO?1

André Lévy

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

exclui radicalmente toda relação ou desejo de submissão e de dominação, ou,retomando termos de E. ENRIQUEZ,3 por

um trabalho de análise que visa não ao simples questiona-mento, mas que favorece a transformação da ação e suscitanos homens implicados, não apenas a inquietude e a interro-gação, mas a vontade de inovar, de viver de outra forma, deter prazer...

Parece-me igualmente que, a partir de interrogações relativas ao pa-pel da Psicossociologia na sociedade, da renúncia a certas ilusões paraas quais ela criou espaço, do reexame sem complacência de algumas desuas metodologias (dinâmica de grupo e intervenção psicossociológica,por exemplo), ela é hoje o lugar de pesquisas que têm como objeto renovarsuas formas de abordagem e suas bases teóricas, a partir das quais não étão arriscado prever que ela possa tomar um novo impulso.

Mas importa, primeiro, tentar captar as razões e os significados daaparente decadência da Psicossociologia e do sucesso de métodos e técni-cas que parecem tê-la suplantado.

A decadência aparente da PsicossociologiaA decadência aparente da PsicossociologiaA decadência aparente da PsicossociologiaA decadência aparente da PsicossociologiaA decadência aparente da Psicossociologia

Sem pretender realizar um inventário completo das novas metodolo-gias que surgiram, uma após outra, desde o início dos anos 70, pode-se citara análise institucional, os métodos centrados na expressão corporal, as abor-dagens sistêmicas da Escola de Palo Alto – a “comunicação nova” –, a aná-lise organizacional, a análise transacional e, enfim, mais recentemente, asmetodologias inspiradas em novas pesquisas em Psicologia cognitiva.

Essa enumeração, que evidentemente não é exaustiva, reagrupa abor-dagens extremamente diversas e dificilmente comparáveis. Entretanto,elas têm em comum o fato de terem pretendido, em um determinado mo-mento, oferecer respostas globais a questões deixadas em suspenso pelaspráticas psicossociológicas. Embora durante alguns anos, uma após ou-tra, elas tenham podido ser a referência principal, senão a única, para osatores sociais e para muitos práticos, elas foram sendo substituídas mui-to rapidamente nessa função por alguma outra metodologia mais pro-missora. Em outras palavras, como todo fenômeno de moda, elas conhe-ceram também um fenômeno de desgaste rápido.

É certo que a maior parte delas não desapareceu, o que tem comoconseqüência que, em seu conjunto, constituem, para os atores engajadosna ação, uma gama extremamente considerável de meios que eles podemescolher, em função do que lhes parece ser necessário.

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Em si, tudo isso tem uma conseqüência de importância tão grandeque modifica radicalmente a relação do ator com as técnicas: essas pas-sam a ser, então, meios que ele controla, podendo escolher o local e omomento de aplicação ou combiná-los à vontade; isso é totalmente dife-rente da relação que ele deve manter com uma metodologia que, por nãolhe deixar escolha, impõe-lhe regras às quais ele deve se submeter sobpena de torná-la inoperante ou de mudar seu significado.

Podem-se fazer duas observações suplementares que contribuem paraexplicar o sucesso – comercial, pelo menos – desses métodos:

a- eles se apresentam como respostas susceptíveis de fornecerem so-luções eficazes e rápidas a problemas imediatos e delimitados. Emoutras palavras, eles “funcionam” a um custo relativamente redu-zido de tempo e dinheiro; desse ponto de vista, eles se comparam,com vantagens, a outros métodos mais longos, incertos e custosos.Dessa forma, eles estão prontos a se ajustarem a um requisito deresultados e não apenas de procedimentos.

Certamente, fazendo assim, eles apenas retomam as intenções dasprimeiras experiências popularizadas por K. LEWIN e C. ROGERS(resolução de conflitos sociais, auto-realização, emergência de per-sonalidades mais autônomas e congruentes etc.), intenções que,na verdade, deveriam ter sido consideravelmente reduzidas, àmedida que os psicossociólogos tomavam consciência das leis doinconsciente (limites da “autonomia”...) e das intransigências ins-tituídas nas estruturas e relações sociais e à medida que elabora-vam metodologias acentuando a duração e um nível de investi-mento muito mais radical e, ao mesmo tempo, com ambições maislimitadas e incertas.

É praticamente certo que a análise institucional, por exemplo,ganhou grande parte de sua reputação devido à sua capacidadede provocar, em um breve lapso de tempo – da ordem de algunsdias –, efeitos espetaculares em uma instituição. O mesmo ocorrecom a bioenergia e com outros métodos de reeducação sexual.Quanto às terapias preconizadas pela Escola de Palo Alto, noquadro sugestivo do brief therapy center – “centro de terapia breve”,elas consistiam em tratamentos visando a “objetivos concretos eacessíveis”, dentro de um limite de tempo (dez sessões no máxi-mo),4 contrapondo-se a tratamentos longos que perseguiam objeti-vos considerados como “utópicos” (tais como a busca de causas eorigens dos sintomas).

A psicossociologia: crise ou renovação?

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

b- Um segundo traço que nos parece caracterizar bem as novas orien-tações é o interesse muito particular que elas manifestam pelosmecanismos lógicos, “enquadramentos”, “sistemas” (por exem-plo, o sistema de ação concreto de M. CROZIER) que regulamen-tam as relações entre homens e o funcionamento dos grupos edas organizações de maneira quase automática e sem interven-ção humana. Isso ocorre não apenas nas diferentes orientaçõessistêmicas (de Palo Alto a CROZIER) que enfatizam a importân-cia dos jogos e das regras do jogo, mas também nas orientaçõescognitivas. Essa tendência já estava presente, há que se lembrar,na análise institucional que queria reduzir o papel do analista aodos analisadores (“isso” analisa). Embora ocorram desvios,5 nãoé possível daí deduzir que a concepção de mudança tenha se tor-nado puramente instrumental, aparecendo em utensílios, instru-mentos e técnicas susceptíveis de serem utilizadas sem a partici-pação de um sujeito, reduzido, então, a um “ator” ou a um“agente”; mas parece ser verdade que o objetivo das metodologiasassim desenvolvidas é a aquisição de um controle sobre os ho-mens e sobre os processos, tendo como corolário a colocação en-tre parênteses do sujeito enquanto ser de desejo e de projeto.

Tal fascinação pelo que “funciona”, pelos “utensílios” que permi-tem responder rápida e, se possível, automaticamente a problemasdelimitados, pelo instrumento e pela instrumentalização – que,evidentemente, não está muito distante de uma fascinação pelopoder –, deve ser compreendida no contexto de nossa sociedadealtamente tecnológica, dominada por relações mercadológicas eseus valores, colocada sob o signo da urgência (ou do sentimentode urgência) – sociedade que é fonte da angústia diante da au-sência de um ponto de referência estável e central e pelo senti-mento contrário de estar presa num feixe de determinações queescapam a todos.

Tudo o que se apresenta como uma exigência do sujeito, especi-almente a necessidade de tempo, e que, concomitantemente, nãogarante nem assegura nada, tudo isso é, então, condenado a serrejeitado.

Nessa perspectiva, a “crise” ou a decadência relativa da Psicos-sociologia pode ter um caráter relativamente saudável. Abando-nar a outros um território no qual ela não poderia lutar no planoda eficácia, obriga-a a retornar às suas fontes e a se definir commais rigor.

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Se ela parece estar muito ausente do “mercado” é porque mui-tos psicossociólogos renunciaram, progressivamente, a fazer comque a crença em sua capacidade de ser “performático” fosse com-partilhada; isso os levou a aprofundar o significado complexodas demandas que lhes eram endereçadas, seu caráter paradoxale a impossibilidade de reduzi-las, sem risco, a demandas porrespostas e soluções.

O conceito de demanda socialO conceito de demanda socialO conceito de demanda socialO conceito de demanda socialO conceito de demanda social

Com efeito, é a partir de uma reflexão exaustiva sobre a noção de de-manda que a Psicossociologia se construiu. Colocando como premissa aimportância do psicológico no social e, reciprocamente, a articulação ínti-ma entre o individual e o coletivo, ela foi levada à idéia de uma “demandasocial”. A demanda expressa, com efeito, uma perspectiva segundo a qualtodo acontecimento psíquico, toda história singular, é eco de acontecimen-tos sociais, inscritos em uma história coletiva que, reciprocamente, “existe”e se desenvolve apenas se “vivenciada” por pessoas.

Entretanto, a noção de “demanda social” é ainda ambígua e ne-cessita ser esclarecida.

Primeiramente, pode-se observar que o termo demanda comporta sig-nificados que se situam em dois registros diferentes: um de ordem econô-mica, implicando um bem, um objeto, assim como uma relação de troca.Assemelha-se, nesse caso, à noção complementar de oferta – demanda eoferta devem se equilibrar. Nesse sentido, está próxima à noção de enco-menda, isto é, ato pelo qual a demanda (potencial) é feita. Para evitar aambigüidade desse último termo e reservar-lhe apenas o segundo signifi-cado (psicológico), há quem quis diferenciar, então, demanda de enco-menda – LOURAU, especialmente. No que nos diz respeito, tal distinçãonão nos parece desejável pois, mesmo se ela resolve de maneira artificiala ambigüidade do termo demanda, retira-lhe, por isso mesmo, uma gran-de parte de sua riqueza.

Assim, no registro econômico, a demanda é, necessariamente, umademanda de objeto, endereçada a um outro, combinada então a pressõesmais ou menos fortes, mais ou menos explícitas, que podem, no limite,assimilá-la a uma encomenda, no sentido de ordenar ou encomendar,exigindo a submissão daquele a quem ela se dirige.

Se, entre a demanda e a encomenda, podem-se percorrer todos os graus,indo do pedido e da sugestão (que supõem o reconhecimento da liberdadedo outro e sua adesão voluntária) à ordem (que supõe, ao contrário, uma

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

relação de dominação hierárquica), ainda é verdade que o termo de-manda inclui sempre, pelo menos em um segundo plano, uma certa relação depoder e de dominação.

Outra vertente de significado do termo situa-se no registro psicológi-co. Nesse caso, não é uma demanda de objeto, mas a expressão de umdesejo, de uma falta, dirigida a quem se estima seja capaz de supri-la. Nolimite, trata-se de uma demanda de amor.

Se, no primeiro registro, a demanda é facilmente interpretável, explici-tada pelo objeto que designa, no segundo, em contrapartida, sua interpreta-ção é sempre problemática, inclusive e sobretudo por quem a formula. Poressa razão, durante um processo de consulta ou de intervenção, a “análiseda demanda” não poderia ser um preâmbulo, mas seria um processo per-manente que daria sentido a todo o trabalho realizado.

Seja qual for o registro – econômico ou psicológico –, a “demanda” sótem sentido e só existe, na acepção própria do termo, na relação comaquele a quem ela se dirigiu e apenas se foi ouvida por ele. Ela se tornareal por essa e nessa relação. Mas as coisas se passarão de forma inteira-mente diferente caso o destinatário seja reconhecido e se reconheça a sipróprio, como capaz de dar uma resposta adequada (o objeto solicitado)ou caso diga ou seja incapaz de fazê-lo.

Toda demanda se situa ao mesmo tempo no dois registros, o que lhedá riqueza e complexidade. Enquanto é apelo ao outro, seja de reconheci-mento ou de amor, dificilmente é formulada como tal, disfarçando-se,freqüentemente ou sempre, em demanda de outra coisa – conselho, ajuda,solução, objeto material etc; inversamente, toda demanda de objeto revelatambém um apelo indizível a ser decifrado.

Certamente, tudo isso não é específico da Psicossociologia; aplica-sea todas as relações ditas de ajuda, seja em um quadro terapêutico, emum trabalho social ou nas diversas outras relações cotidianas – entrepais e filhos, marido e mulher etc.; a questão da demanda – sua escuta,sua interpretação, seu tratamento – é, principalmente, uma das dificul-dades da problemática da transferência e da contra-transferência nasituação analítica.

Entretanto, o que dá um sentido e uma configuração particular a essaquestão, na Psicossociologia, é que, aí, a demanda é considerada nãocomo individual, mas como social.

É, então, necessário indagar a respeito de seu significado. Ele não éevidente, pois o qualificativo “social” tende, precisamente, a tirar da acep-ção corrente de demanda toda conotação psicológica.

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O conceito de “demanda social” não significaria que grupos e insti-tuições se incorporariam em sujeitos portadores de desejos inconscientes.Ao contrário, refere-se ao fato de que as demandas emergem em situaçõescoletivas, das quais resultam vivências compartilhadas que, eventual-mente, exprimem-se sob formas coletivas (greves, manifestações agressi-vas ou angustiantes etc.), as quais, por sua vez, podem ter efeitos nassituações que as originaram.

Mesmo quando essas expressões coletivas manifestam-se em micro-situações – grupos e organizações particulares –, estão sempre ligadas acondições macrossociológicas que elas expressam, mesmo que seja demaneira difusa.

Como conseqüência, as demandas sociais podem e devem ser anali-sadas e tratadas de maneira igualmente coletiva.

Em outras palavras, o acesso a essas demandas e às situações pro-blemáticas em relação às quais elas adquirem sentido se dá de formaprivilegiada em situações de interação coletiva, nas quais elas podem seravaliadas, mobilizadas, transformadas em atos, compreendidas e inter-pretadas.

É em relação a esses dados que o trabalho do psicossociólogo podeser definido: fazer emergir demandas através de situações preparadascom objetivo não apenas de permitir uma expressão menos difusa delas,mas também de permitir interpretá-las. Porém, há sempre o risco de redu-zi-las ao objeto que elas anteciparam (reivindicação, meios de resolverum conflito etc.) e de levá-las assim para um registro mercadológico; opsicossociólogo está sempre submetido a pressões que visam a colocá-loem uma relação hierárquica (de mando), de dependência ou de submis-são, às quais é difícil resistir, especialmente se ele próprio ocupa umaposição na hierarquia da organização na qual intervém.

Análise da demanda: a ética da PsicossociologiaAnálise da demanda: a ética da PsicossociologiaAnálise da demanda: a ética da PsicossociologiaAnálise da demanda: a ética da PsicossociologiaAnálise da demanda: a ética da Psicossociologia

Fazer emergirem demandas não consiste em adotar uma atitude deescuta passiva simples. De um lado, uma demanda só existe quandoescutada por seu destinatário e, de outro, ela é endereçada apenas àqueleque se pensa esperá-la e que, de uma maneira ou de outra, a solicitou, quisou “demandou”.

Assim, não há nada em comum com a posição de simples espelho,reflexo interpretante. Para que uma demanda seja dirigida a um consul-tor, é necessário que ele tenha se manifestado, testemunhado através deseus escritos, atos e palavras, que sua prática não é aplicação de uma

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

técnica posta ao dispor de atores sociais, que suas teorias não se reduzema um quadro conceitual neutro, mas que traduzem um desejo, uma ética,uma concepção da sociedade e das relações humanas.

Estar disposto a receber demandas sociais com toda sua dimensãointersubjetiva e a reconhecê-las como tais – e não como simples reivindica-ções –, afirmar que elas são, ao mesmo tempo, confessáveis e tratáveis,incitar assim também os solicitantes a reconhecê-las como questão, enig-ma, cujo sentido e destinatário verdadeiro ainda têm que ser decifrados(renunciar, consequentemente, a reduzi-las a problemas específicos sus-ceptíveis de terem uma solução externa), tudo isso expressa bem o que, nafalta de outro termo, parece-nos ser uma ética, uma perspectiva – que, desdeLEWIN, não deveria ser identificada a um projeto de sociedade.

Tal projeto reduziria a Psicossociologia a uma ideologia cujas meta-morfoses certamente não seriam estranhas à “crise” que ela conheceu eque tentamos analisar acima. Trata-se, ao contrário, de fixar um nível derigor mínimo que permita ao psicossociólogo resistir a pressões e superaros riscos nos quais incorre: não através de uma filosofia abstrata, masatravés de princípios regendo procedimentos, princípios que não poderi-am ser transigidos – inclusive, com uma preocupação ecumênica de bomquilate – sob pena de trair o que dá sentido à sua ação.

Evidentemente, não é possível, no espaço desse artigo, desenvolveresses princípios ou os procedimentos que os sustentam. Entretanto, al-guns pontos nos parecem determinantes:

1- Analisar a demanda social implica que se considere sua hetero-geneidade. Esse ponto, que foi particularmente desenvolvido porJean DUBOST, corresponde a uma representação da sociedadecomo composta de uma pluralidade de atores, individuais e cole-tivos, interagindo entre eles, cujas respectivas demandas só ad-quirem sentido umas em relação às outras. Assim, um grupo,uma empresa, um serviço administrativo, uma classe de atoresetc., não podem ser considerados como tendo uma “demanda”analisável em si, independentemente das outras com as quais elase articula. Tal representação exclui, principalmente, toda análi-se em termos de relações bipolares; da mesma forma, ela evita atentação antropomórfica que consiste em atribuir a um grupoatributos de um sujeito individual e sua unidade imaginária.

Desse ponto de vista, a noção de sistema é bastante útil, com acondição, entretanto, de ser interpretada em toda a sua complexi-dade e com todos os seus paradoxos;6 como oportunamente evoca-do por J. DUBOST, BRADFORD antecipava tal perspectiva de

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análise desde os anos 50, propondo os termos “sistema-cliente” e“sistema-interventor”.

2- Por outro lado, é importante que todo ator e, em especial, todo inter-ventor ou consultante que aspira a exercer um papel de análise situesua ação em relação a uma perspectiva de pesquisa e, dessa forma,a um trabalho teórico centrado em objetos de saber. Desse ponto devista, a intervenção junto a um grupo deve ser vista, ao mesmo tem-po, como uma ação e como um modo de desenvolvimento de novosconhecimentos.

Sem dúvida, tal mediação frente ao saber é a principal condiçãoque permite ao ator social munir-se, antecipadamente, (de formarelativa) contra os riscos de reduzir sua relação com o outro a umarelação de poder dual, instrumental, condicionada a uma preocu-pação de eficácia ou de utilidade (reduzindo, então, igualmente, ademanda à sua vertente econômica ou mercadológica).

Evidentemente, tal perspectiva não se restringe à Psicossociologia;aplica-se também à Psicanálise, em especial. A introdução, por K.LEWIN, do conceito de “pesquisa-ação” contribuiu para precisaras formas como ela poderia se manifestar na prática.7 Porém, aperspectiva lewiniana de pesquisa-ação pode ir além, incluindotanto atores quanto interventores e analistas.

Em suma, e sendo breve, trata-se de tentar definir, desde o inícioda ação de intervenção, os objetos de pesquisa comuns aos inter-ventores e aos solicitantes e, em uma relação de colaboração, iden-tificar os dados, conceitualizar as situações das quais emergemas demandas e compreender os processos que governam sua evo-lução.

3- Não importando qual seja o interesse dos preceitos positivistas daciência experimental, eles serão sempre incapazes de proteger opesquisador e, a fortiori, o interventor-pesquisador contra o riscode, sem o perceber, ter sua atividade mais ou menos afetada porsua posição de sujeito e de ator social. A desconexão pregadapelos defensores da ciência positivista – Max WEBER, por exem-plo –, para garantir a independência do pesquisador em relaçãoàs influências de poder e às ideologias, não pode pretender sub-meter os processos de produção teórica apenas aos critérios deracionalidade e objetividade.

Assim, J. FAVRET-SAADA8 deu ênfase a que o fato de falar e fazerfalar nunca é neutro. O pesquisador etnógrafo está necessariamente

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

“preso” pelo seu objeto, nem que seja apenas para legitimar suaprópria posição de sábio em relação às “crenças” de “indígenasatrasados” cujos ritos estuda. Da mesma forma, questionar, inves-tigar, assim como observar, implicam sempre em estar inscritonuma relação de forças.9

O “desprendimento” implicado em um trabalho de pesquisa nãopode, então, ser estabelecido antecipadamente como um princípionormativo; parafraseando J. FAVRET-SAADA, tal princípio ape-nas levaria pesquisadores e atores “a se mirarem no espelho quecada um mostra ao outro”, com tudo o que isso comporta de in-consciente e de cumplicidade consciente.

O “desprendimento” só pode resultar de um movimento duplo:em primeiro lugar, de apreensão – deixar-se prender pelos discur-sos dos outros e participar deles, aceitar sua implicação e a subjeti-vidade dela resultante; em seguida, de “re-apreensão” teórica dassituações observadas, dos discursos sustentados (incluindo o seupróprio) e dos processos realizados – “re-apreensåo” quer dizer,nos termos de J. FAVRET-SAADA, “saber como se foi apreendi-do”, “o que pode ter sido através de seu próprio desejo de saber”.

Entretanto, essas diversas indicações não deveriam ser interpreta-das como normas rígidas; elas expressam antes uma perspectiva,uma orientação, e não condutas estritas às quais o interventor-pesquisador deve se conformar. Embora seu enunciado seja neces-sário, ele o é não tanto para prescrever uma tarefa que, de qualquerjeito, é impossível, mas para levar os que se engajam nela a desco-brirem seus limites.

Perspectivas para o futuroPerspectivas para o futuroPerspectivas para o futuroPerspectivas para o futuroPerspectivas para o futuro

A Psicossociologia ocupa, então, um lugar específico no conjuntodas ciências humanas e esse lugar diz respeito a necessidades durá-veis. É indispensável, embora não suficiente, reafirmar essa posição emanter-se nela. Igualmente, é importante que esse lugar seja interpre-tado em função de evoluções, consideráveis nas últimas décadas, dasociedade e das ciências do homem. A Psicossociologia é a instânciade tal renovação ou ela se limita à reprodução de práticas antigas? Elatem um futuro? Em caso afirmativo, quais são seus pontos fortes? Sempretender responder a essas questões, consagraremos a elas as últi-mas páginas desse texto, tentando identificar, brevemente, algumastendências atuais.

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Uma primeira observação, de ordem geral, impõe-se: qualquer queseja o domínio, é impossível, hoje, falar de orientações da Psicossociolo-gia e de psicossociólogos, sem evocar seus vínculos com outras discipli-nas e outros atores sociais.

A pretensão da Psicossociologia de monopolizar a questão da mu-dança social, mesmo que apenas em uma perspectiva microssociológica,não é mais aceitável. Assim, a influência crescente da Psicanálise tornounecessária, desde os anos 60, uma profunda reavaliação de seus métodose objetivos, dominados principalmente, até então, por perspectivas lewi-nianas, rogerianas e morenianas. Não é mais possível considerar o traba-lho de formação, de análise de grupo, de intervenção ou de consulta semreferência a trabalhos de inspiração psicanalítica.10

Mais recentemente, certas correntes de Sociologia Clínica,11 princi-palmente aquelas orientadas para a análise das instituições e dos movi-mentos sociais, dedicaram-se, com uma perspectiva bem global, a proble-mas de mudança social, contribuindo sobretudo para a compreensão dasdimensões institucionais e culturais.

Por outro lado, embora se possa ser crítico com relação aos desenvol-vimentos recentes que revisamos, talvez rapidamente demais, no iníciodo texto, e se possa dizer que eles freqüentemente conduziram a impas-ses, a retrocessos ou mesmo que violaram objetivos e princípios funda-mentais, é forçoso admitir que não podem ser ignorados e que se devereconhecer que também eles contribuíram para abrir novos campos e for-mas de pensar.

Finalmente, há alguns anos, assiste-se a uma multiplicação de pes-quisas orientadas para a análise de discursos coletivos e para as intera-ções lingüísticas – interlocuções, análise conversacional, etnometodolo-gia;12 embora em sua origem tais trabalhos tenham sido feitos com objetivospuramente descritivos e de pesquisa, orientam-se cada vez mais para oestudo da linguagem como lugar de produção e de transformação de estru-turas e de relações sociais. Mostram, assim, convergências, cada vez maisevidentes, com alguns trabalhos da Psicossociologia e contribuem paraesclarecer, de uma forma diferente, os processos de intervenção e de mu-dança e para fornecer conceitos e métodos novos para analisá-los.

É certo que essas indicações sintéticas mereceriam um desenvolvi-mento bem mais amplo. Em todo caso, elas acentuam a necessidade deuma abordagem pluridisciplinar e a impossibilidade da Psicossociolo-gia renovar-se sem contribuições externas. Mostram também que tais arti-culações não são feitas facilmente e que elas se chocam com diversas

A psicossociologia: crise ou renovação?

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

dificuldades advindas de diferenças epistemológicas, por vezes funda-mentais, e de representações específicas de objeto.

O que é verdadeiro no plano teórico também o é no terreno da prática.O problema da mudança individual, grupal ou institucional não é mono-pólio do psicossociólogo. Desde a colaboração intensa – freqüentementeconflitiva e não de todo desprovida de ambigüidade – que foi estabeleci-da, nos anos 60 e 70, com os psicanalistas e psiquiatras empenhados emreformas da instituição psiquiátrica, muitos outros atores apareceram:formadores, trabalhadores sociais, sindicalistas, responsáveis políticoslocais, arquitetos etc., com os quais novas formas de colaboração devemser inventadas.

Notas1 Traduzido de: LÉVY, André. “La psychosociologie: crise ou renouvau?” Cahiers d’Etude

du CUFCO, 17, p. 9-18, 1990, por Eliana Vianna Soares e Marília Novais da MataMachado.

2 Como exemplos: BARUS, J. Le sujet social. Dunod, 1987; DUBOST, J. L’interventionpsychosociologique. PUF, 1987.

3 ENRIQUEZ, E. “Eloge de la psychosociologie”. “““““Connexions”””””, 42, 1983.4 WATZLAWICK et al. Changements, paradoxes et psychothérapies. Paris: Seuil, 1975.5 BEAUVOIS, J. L. e JOULE, R. Petit traité de manipulation à l’usage des honnêtes gens.

PUG, 1987.6 Em especial, ATLAN, H. Entre le cristal et la fumée. Paris: Seuil, 1979. e BAREL, Y. La

société du vide.7 Cf. DUBOST, J. “Une analyse comparative des pratiques dites de recherche-action”.

Connexions, 43, 1984; RAPOPORT, R.N. “Les trois dilemmes de la recherche-action”.Connexions, 7, 1973.

8 FAVRET-SAADA, J. Les mots, la mort, les sorts. Gallimard, 1977.9 DUBOST, J. e LÉVY, A. “L’analyse sociale”. In: ARDOINO et al. L’intervention insti-

tutionnelle. Payot, 1980; LÉVY, A. “La recherche-action: une autre voie pour les scienceshumaines”. In: Du discours à l’action. L’Harmattan, 1985; LECLERC, G. L’observationde l’homme. Seuil, 1979.

10 Por exemplo: ANZIEU, D. Le groupe et l’inconscient. Dunod, 1984; BION, W. Recher-ches sur les petits groupes. PUF, 1965; JAQUES, E. Intervention et changement dansl’entreprise. Dunod, 1972.

11 TOURAINE, A. La voix et le regard. Seuil, 1978.12 BORZEIX, A. “Ce que parler peut faire”. Sociologie du Travail, 2:87; CHABROL, C. e

CAMUS-MALAVERGNE, O. “Coopération et analyse des conversations”. Connexions,53, 1989; FLAHAULT. La parole intermédiaire. Seuil, 1978; GOFFMAN, E. Façons deparler. Minuit, 1987; TROGNON, A. Situations de groupe et relations langagières. Tesede Doutorado, Paris X, 1981.

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Para quem se interessa pela questão da mudança social, o ano de1984 teria sido rico com a publicação de duas obras sobre esse assunto.2

Mas, poder-se-ia ser surpreendido ao constatar que, em nenhuma dasduas, se faz referência aos trabalhos dos psicossociólogos que, depois deLEWIN, contribuíram de forma decisiva para a compreensão dos pro-cessos de mudança nas organizações, relacionados com o desenvolvi-mento de práticas sociais de intervenção.

Entretanto, de forma mais ou menos clara, essas obras trazem amarca das inflexões que o pensamento sobre a mudança conheceu, des-de há dez ou quinze anos: desapreço às teorias gerais que oferecemmodelos explicativos das mudanças sociais globais e, em contraparti-da, interesse crescente pela análise e mesmo pela descrição de proces-sos concretos de mudança nos grupos e instituições; tendência, tam-bém, a abordar a mudança em suas manifestações cotidianas, mais doque como fenômeno excepcional; retorno a uma problemática do inde-terminismo,3 sobretudo nas Ciências Humanas, em detrimento da pro-blemática da sobredeterminação que havia dominado as pesquisas du-rante muitos anos.4

Essas evoluções, certamente, não podem ser atribuídas apenas aospsicossociólogos; resultam também da desilusão com a capacidade ex-plicativa e preditiva das teorias gerais relativas à mudança, do efeitodas decepções ligadas às evoluções políticas e sociais desde o início dosanos 70, da crise das ideologias e das doutrinas que pregam uma trans-formação radical e revolucionária da sociedade.

A importância que os trabalhos de CROZIER e de TOURAINE ga-nham hoje, no campo que nos interessa, é significativa desse estado decoisas: se o primeiro reduz a mudança ao desenvolvimento de processosde regulação e de negociação permanentes nas organizações, o segundo

A MUDANÇA: ESSE OBSCURO OBJETO DO DESEJO1

André Lévy

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

ressalta as mudanças futuras, preparadas em grupos pertencentes a mo-vimentos sociais virtuais.

Se os psicossociólogos não podem ser considerados como os únicosresponsáveis por essas evoluções, não é menos verdade que eles foram osprimeiros a pressenti-las e a desenvolver suas implicações, talvez por seterem situado no terreno das mudanças em vias de ocorrer, participandodelas diretamente, do interior e não de um ponto de vista exterior, aquémou além, para as constatar, prever, dirigir ou combater.

Nesse terreno, com efeito, a questão que se coloca não é tanto a deexplicar uma mudança já realizada, mas participar do momento e dolugar nos quais ela se efetua e, por isso, compreendê-la como tal.

K. LEWIN, que aparece necessariamente em toda reflexão sobre mu-dança, teve o grande mérito de abordar essa questão diretamente. Assim,fez notar que se tratava não de uma simples passagem de um estado aoutro, mas de um processo que podia ser descrito segundo três fases dis-tintas (descristalização, deslocamento, recristalização).5 Além disso, esta-beleceu que o lugar desse processo não era forçosamente o indivíduo so-zinho, isto é, que a mudança social não resulta sempre da acumulação demudanças individuais, mas que ela poderia se realizar, de súbito, no gru-po (na relação e pela relação, como demonstramos num texto anterior).6

Apesar da extrema dificuldade que existe para se entender um fe-nômeno que se assemelha à criação poética ou à invenção científica eque, por definição, foge à apreensão – pois só se poderia falar dele apóssua ocorrência –, e porque toda observação ou análise que se poderiafazer, necessariamente, iria reificá-lo, parece-nos possível, hoje, forneceralguns elementos de forma a precisar e complementar essas reflexões jáantigas – mesmo que isso só possa ser feito de maneira aproximada esugestiva, necessitando ser aprofundada.

Antes, porém algumas observações prévias:

a- Estabelecer a mudança como processo grupal e não como resultado deuma série de interações entre indivíduos significa que o grupo constituiuma realidade fenomênica e que esse termo não define apenas um ní-vel de análise.

O conceito de interação pela linguagem7 parece-nos, aqui, muitofecundo; ele permite, com efeito, designar como lugar desse pro-cesso a realidade intersubjetiva que constitui o discurso – atos deescrita ou de palavra – e se livrar, definitivamente, de uma leiturapsicológica.

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b- Se o discurso pode ser tomado como o lugar da mudança, nemtodo processo discursivo se identifica, entretanto, a um pro-cesso de mudança.

Isso nos obriga a precisar a que “mudança” nos referimos.

Toda vida é “repetição de ciclos”, “exceto do corpo que se usa”,escrevia Paul VALÉRY.8 Com efeito, a vida se conserva reprodu-zindo-se (termo que não deve ser confundido com a repetição domesmo, que é a morte) – reprodução das espécies, reproduçãodas instituições, reprodução das idéias...

O termo mudança poderia, pois, legitimamente, designar tudo oque está vivo; porém, tal definição é geral demais para ser útil.

Com efeito, o desenrolar de uma existência, seja a de um indivíduoou de um grupo, não se reduz a esse processo evolutivo, lento e ininter-rupto. Ele se traduz, também, por momentos de descontinuidade quemarcam fraturas no destino, reorientações bruscas, mutações, redirecio-namentos, freqüentemente não isentos de violência. Mesmo se posterior-mente esses acontecimentos pareçam ter sido inelutáveis, eles não po-dem ser previamente enunciados. Como já dissemos,9 a mudança, desseponto de vista, é

um acontecimento ou um fato que introduz uma ruptura na vidado sujeito, (...) mudar não é submeter-se inteiramente à lei darepetição (...), é acontecer, é se abrir a uma história, à aventura, aorisco (...) pelo aparecimento e exame de elementos de significa-ção verdadeiramente inéditos (...).

A teoria dos sistemas distingue, assim, a mudança no sistema e amudança do sistema: se essas duas dimensões parecem contraditórias,elas mantêm entre si relações dialéticas e complementares que é precisocompreender. No entanto, é sobre essa segunda significação de mudan-ça, como ruptura, que queremos nos centrar aqui.

A mudança é um trabalhoA mudança é um trabalhoA mudança é um trabalhoA mudança é um trabalhoA mudança é um trabalhodo espírito, do pensamentodo espírito, do pensamentodo espírito, do pensamentodo espírito, do pensamentodo espírito, do pensamento

Antes de ser um acontecimento material – biológico, físico, econô-mico, tecnológico –, a mudança é um acontecimento psíquico. Antes deser um acontecimento objetivo, ela é um acontecimento subjetivo. Comefeito, é o espírito que, como observou Paul VALÉRY, tem “o poder detransformação das representações” e o de “tratar situações insolúveis

A mudança: esse obscuro objeto do desejo

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

por meio da atividade de reflexão, favorecendo o estado de disponibi-lidade de recursos próprios, isto é, a liberdade”.10

O psiquismo (o mental) e sua dinâmica são, então, por excelência, olugar da mudança, da possibilidade de desligamentos e de novas combi-nações. As condições materiais, objetivas, só têm valor de mudança quan-do elas são apropriadas mentalmente, ao nível de suas significações.

Para entender bem essa proposição, é necessário se livrar de todaperspectiva em termos de causalidade. As inovações técnicas podemcertamente ser consideradas como as manifestações mais gritantes demudanças marcantes nas sociedades modernas e como o fator mais de-terminante da subversão dos valores, das instituições, dos modos depensamento. Não estamos interessados na polêmica que opõe os quejulgam que as condutas são determinadas pelas idéias, representaçõesou intenções e os que estimam, ao contrário, que essas últimas consti-tuem racionalizações de condutas instituídas e de situações objetivas.

Nosso propósito vai além: ele consiste em dizer que as mutações,a emergência de instituições e de novas práticas sociais se realizam,antes de tudo, por um trabalho do espírito, o único capaz de desfazerrelações antigas e elaborar novas e que, se o ato é fundador, ele o éapenas se fizer sentido. Por exemplo, a história do desenvolvimentoda informática mostra como suas inovações mais técnicas e suas apli-cações industriais mais espetaculares traduzem, em todos os níveis,um trabalho de pensamento, tanto dos que as concebem quanto dosque as utilizam. Ou, ainda, pode-se não duvidar da eficácia dos novosmétodos de terapia comportamental ou das aplicações da abordagemsistêmica à terapia familiar, mas essas seriam certamente ilusões peri-gosas se supusessem que se pode poupar um trabalho do pensamento.

A decisão: momento, lugar e modelo da mudançaA decisão: momento, lugar e modelo da mudançaA decisão: momento, lugar e modelo da mudançaA decisão: momento, lugar e modelo da mudançaA decisão: momento, lugar e modelo da mudança

Paradoxalmente, os psicossociólogos, depois de LEWIN, interessa-ram-se pouco pelos problemas de decisão, exceto numa perspectiva orga-nizacional ou de teoria dos jogos. A decisão tem sido encarada mais comoum problema de lógica, de organização ou de poder do que como umproblema psicológico. Fazemos, ao contrário, todos os esforços para acen-tuar o fato de que o ato de decidir (uma das principais funções dodirigente, segundo FAYOL) seria inconseqüente se não fosse recoloca-do no processo complexo do qual ele é apenas um dos momentos – seele não fosse preparado por uma longa elaboração e seguido por umtrabalho de apropriação, no qual o psicológico teria todo o seu lugar.

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Mas tanto é absurdo reduzir a decisão ao momento único da esco-lha, negligenciar ou considerar secundário todo o trabalho de análise ede elaboração psicológica que o prepara e o acompanha, quanto é falsoconsiderar negligenciável esse momento “decisivo” – no qual o sujeitoque oscilava entra bruscamente e de maneira irreversível em um futuroimprevisível – ou considerá-lo como sendo de uma outra ordem.

Qualquer que seja o grau de sofisticação dos estudos de probabili-dades, algumas continuam sempre desconhecidas e o momento da deci-são é sempre, necessariamente, um salto para o desconhecido, sem redede proteção nem garantia de espécie alguma.

A noção de processo não pode mascarar o fato de que a decisão marcauma descontinuidade no curso da história: só o fato de “tomá-la” cria, por si,uma situação nova e envolve inteiramente, em suas opções e em seus desejosfundamentais, os que a tomaram e aqueles em relação aos quais ela é tomada.

LEWIN, em sua época, sublinhara a importância crucial do momentoda decisão coletiva que, por si própria, modifica as representações e levaos indivíduos a adotar novas condutas, renunciando, ao mesmo tempo, afundamentá-las no que até então parecia “evidente” (as sensações de re-pulsa, por exemplo), para baseá-las em uma escolha voluntária que seapoia em uma aposta feita coletivamente em uma outra verdade.

Os processos de decisão analisados por LEWIN,11 incluindo os há-bitos de compras das donas de casa de Ohio, podem parecer distantes dadecisão histórica analisada por FREUD da crença em um só Deus todopoderoso, de se dar um pai e de nomeá-lo (Moisés e o Monoteísmo). Emum comentário sobre esse famoso texto de FREUD, o psicanalista W.GRARANOFF salienta o fato de que toda decisão é, inicialmente, a deci-são de “não se apoiar no testemunho dos sentidos” e a de se opor àfantasia de que: “quem não pode chegar a se apoiar no real, só podeocultá-lo. Somente a decisão pode fundá-lo”.12

A decisão seria, então, esse ato arbitrário pelo qual o sujeito se retifica,afastando-se da certeza “baseada no testemunho dos sentidos” (do pro-cesso primário e das fantasias), da continuidade sem hiatos, do feminino,da duração (bergsoniana), para chegar ao processo secundário e criar oreal, a organização social, o tempo, a divisão, “operando uma disjunçãoviolenta, com o risco de sua própria desagregação”.

Por isso, em um trabalho anterior,13 acentuamos o ato arbitrário, o“golpe de força” na origem de toda organização social, a partir do enun-ciado de regras que não se apoiam em nenhuma legitimidade anterior, daordem do real-concreto-sensível.

A mudança: esse obscuro objeto do desejo

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

A decisão: ato de palavraA decisão: ato de palavraA decisão: ato de palavraA decisão: ato de palavraA decisão: ato de palavra

Assim, decisão tem essa significação não apenas porque não se reduza uma resolução íntima, mas porque é um ato público, um ato de palavra.

De acordo com as definições de FLAHAULT ou de TROGNON,14 aenunciação de uma decisão: “eu decido então que...” é um ato “ilocucio-nário explícito”, no sentido de que ele é um ato “que se realiza quando éfalado” – à semelhança de uma declaração de amor ou de um insulto.

O sujeito de tal enunciado, explicitamente designado, é o mesmosujeito da enunciação; esse se exprime aí e se expõe aí (nos dois senti-dos do termo: mostrar-se, arriscar-se) – quer os destinatários estejamimplicados diretamente na decisão, quer sejam, simplesmente, toma-dos como testemunhas.

Toda decisão é, pois, ao mesmo tempo, a enunciação de uma esco-lha e o começo de sua realização: anúncio de um futuro, manifestação davontade de produzir, por seu conteúdo informativo e prescritivo, modifi-cações na realidade, mas também emergência no seu próprio real – a or-dem do discurso – da mudança evocada.

Isso não significa, evidentemente, que o enunciado de uma decisãoseja suficiente para transformar, como que por mágica, as situações ins-titucionais, econômicas ou sociais, nem que a palavra seja onipotente.Mas, simplesmente, que uma decisão necessariamente modifica, apenaspor seu enunciado, os termos nos quais a situação será doravante enca-rada e as condições nas quais ela é susceptível ou não de ser mudada.

Mas, de forma mais importante ainda, isso significa que uma esco-lha, qualquer que ela seja, só é concluída quando tiver sido dita e ouvi-da, dando assim sentido aos atos que a traduzem – sem o que tudo sepassa como se nada tivesse verdadeiramente acontecido.

Um ato, em si mesmo, não pode significar uma mudança, pois elepode sempre ser desmentido, retomado ou reinterpretado; ele não com-promete nem seu autor nem ninguém. É a razão pela qual todas as insti-tuições insistem tanto no reconhecimento explícito de atos realizadospor seus autores – seu testemunho assinado; nas relações pessoais dá-seo mesmo (o que é o amor sem sua declaração?). Uma decisão que nãoexpõe nominalmente seu ator (nos dois sentidos indicados) não é umadecisão no sentido próprio e, assim, não muda nada.

A decisão: ato solitário e coletivoA decisão: ato solitário e coletivoA decisão: ato solitário e coletivoA decisão: ato solitário e coletivoA decisão: ato solitário e coletivo

Como todo ato de palavra, a decisão é, assim, ao mesmo tempoum ato eminentemente individual e um ato coletivo. Se o sujeito que

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decide se compromete sozinho – nenhuma solidariedade pode evitarque se experimente um intenso sentimento de solidão diante de umadecisão importante, como diante da morte –, compromete-se tambémpor conta de outros e diante deles: ele os toma como testemunhas, osdesafia, força-os a se reconhecerem no futuro que ele traça ou a rejei-tá-lo. Aqui, talvez mais do que em qualquer outro momento, ele éinvestido da vontade do grupo diante do que é necessário, inelutá-vel, e da obrigação de assumir sozinho as contradições coletivas, cons-cientes ou inconscientes, e de abandonar o terreno do possível, o jogode hipóteses, do imaginário, para fundar o real.

A indignação manifestada por alguns com relação a PISANI, quepreferiu propor um futuro às comunidades da Nova Caledônia, as cen-suras que lhe foram feitas por fazer a escolha em vez de ficar como árbi-tro neutro e deixar os oponentes escolherem, eles próprios, entre as pos-sibilidades, esconde mal, sob a má fé dos argumentos, o despeitoresultante de uma decisão contrária à dos que protestavam. Porque umadecisão é de qualquer forma inevitável. Fazer crer que ela possa resultarmecanicamente da contabilidade das escolhas individuais é a fraude quetodo poder utiliza para tentar se tornar invisível.

O caráter coletivo de uma decisão é tanto mais manifesto quantomais ela se traduz por uma palavra proclamada por um único ho-mem frente à coletividade, o risco que ele assim corre estando naproporção daqueles aos quais ele convida.

Nesse sentido, a definição usual (segundo FAYOL) do chefe comoaquele que decide contém uma parte da verdade apontada porFREUD, bem antes do livro sobre Moisés, em “Psicologia de Grupo eAnálise do Ego”, a respeito do herói.

Decisão, interpretação e prática de análise socialDecisão, interpretação e prática de análise socialDecisão, interpretação e prática de análise socialDecisão, interpretação e prática de análise socialDecisão, interpretação e prática de análise social

No entanto, as decisões tomadas nas organizações apenas raramen-te têm a significação que lhes demos aqui. É mais comum tratarem-se deatos formais ou simbólicos, rituais ou emblemáticos, vazios de sentido esem conseqüências. Então, em que condições adquirem sua plena signi-ficação e apreendem o real?

A prática da análise social permite esclarecer essa questão? Em que asreflexões precedentes permitem compreender as condições nas quais essaprática é susceptível de contribuir, efetivamente, para um processo de mu-dança, não se reduzindo, como muitas vezes ocorre, a uma atividade lúdicaou de encantamento, formal e, igualmente, sem apreender o real?

A mudança: esse obscuro objeto do desejo

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

Uma certa leitura da Psicanálise, feita pelos psicossociólogos, levoua associar a mudança sobretudo a um trabalho de elaboração e de perla-boração (working-through), processo longo e contínuo – oposto aos atosque afetam diretamente a realidade ou à transmissão de saberes.

Seria importante, certamente, sublinhar que as mudanças sociais eas decisões levam tempo para amadurecerem e serem preparadas, parase imporem como necessárias e para se traduzirem concretamente emcondutas. O trabalho sobre as resistências, a luta interminável contra osefeitos do recalque e o instinto de morte constituem, incontestavelmen-te, uma porta essencial para o que chamamos de trabalho de mudança.E é insistindo nesses aspectos que a prática de análise psicossociológicaconseguiu adquirir sua identidade e se diferenciou das abordagens tec-nológicas, pedagógicas ou manipuladoras da mudança social.

Mas a insistência sobre essa dimensão contribuiu para fazer esquecerque o trabalho de perlaboração só não cai no vazio se for ajudado porinterpretações feitas no momento oportuno, permitindo um salto qualitati-vo e a passagem sem transição de um nível de compreensão a outro.

Certamente, nenhuma interpretação está assegurada ou completa,ela é necessariamente parcial e partidária, implica um risco e um custo,como toda decisão; mas, mais vale uma interpretação equivocada do quenenhuma interpretação.

Assim, um levantamento de dados no contexto de uma intervençãopsicossociológica pode, certamente, ajudar a fazer emergir conteúdos re-calcados ou censurados e provocar trocas e um trabalho de análise sus-ceptíveis de facilitar certas tomadas de decisão. Mas ele pode, igualmen-te, sendo difícil, senão impossível, escapar dessa eventualidade,contribuir para reificar os sistemas de racionalização e de explicaçãoque justificam as condutas. Na medida em que esses sistemas explicati-vos se apresentam habitualmente como uma re-escritura da história daorganização, remontando ao passado e interpretando “fatos” ou even-tos que cada um pode ver ou experimentar, eles têm pretensões a umaobjetividade que mascara interesses e jogos subjacentes à trama e aosefeitos que esses “relatos” buscam produzir.

Esses sistemas, com efeito, possuem as características do relato his-tórico, tais como J. P. FAYE15 as analisou; eles têm a pretensão de “dizera verdade” (“o narrador é aquele que sabe”) e contribuem, ao mesmotempo, ainda que não tenham conhecimento disso, para fazer a história,termo que, como observa FAYE, serve para designar ações reais bemcomo o relato dessas ações.

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Os discursos que podem ser coletados durante essas pesquisas parti-cipam, pois, das condutas às quais elas se referem; mas sua coerência, queas análises de conteúdo tendem a destacar com mais força ainda, contri-bui para reforçar seu caráter dogmático, ideológico, e o desconhecimentodos interesses materiais ou psicológicos que eles promovem e que sãorelativos às posições ocupadas na estrutura por aqueles que os detêm (“Averdade dogmática visa a retirar do escrito seu traço de história”, diz-nosLEGENDRE, “nascendo, então, o texto, subtraído do tempo”.16)

O fato de colocar em evidência essas construções não somente nãofavorece a concretização de mudanças, mas tende a afastá-las, justifican-do, de antemão ou posteriormente e em nome de uma pseudo – ”reali-dade”, práticas contestadas ou abordadas.

Trata-se de um movimento contrário àquele subjacente às condu-tas de decisão, visto que essas, longe de se fundamentarem no “real”,ao contrário, fundamentam o real através de um ato de pensamentoarbitrário.

É aqui que uma concepção por demais rígida, moral e “não-direti-va” da regra de abstinência induziu os psicossociólogos, muitas vezes, apensar que lhes seria suficiente descrever os discursos, contentando-seem esclarecê-los e, sobretudo, que deveriam se abster de tomar o parti-do de uma significação mais que o de outra.

Essa vontade de imparcialidade e de objetividade, que preserva oanalista social da decisão, do risco de uma interpretação verdadeira, ten-de também a fazer acreditar que os diferentes discursos contêm, cada um,uma parte da verdade comum, que eles constituem visões diferentes, mascomplementares, de uma mesma “realidade”; ela tem como efeito fazeresquecer o que constitui, no inconsciente dos sujeitos, essas diferentesvisões e o que elas ocultam, bem como o lugar que ocupam na organiza-ção – e ocultar, mais ainda, os conflitos revelados pelas contradiçõesentre seus discursos.17

O ato de palavra que a pesquisa inaugura se transforma, assim, emum processo de reificação de enunciados fechados, impedindo qualquerpossibilidade de palavra nova e fazendo com que os conflitos, não po-dendo ser traduzidos em decisões, atuem diretamente no real.

Esse contra-exemplo da pesquisa inscrita no contexto de uma inter-venção psicossociológica permitiu-nos apreender, bem claramente, a ne-cessidade de uma atividade interpretativa para que um trabalho de aná-lise se articule a um processo de mudança ao invés de tender a enrijecer

A mudança: esse obscuro objeto do desejo

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

os sistemas de representação e contribuir, reforçando-os, para condutasde evitação dos problemas e de negação das contradições.

Em exemplos desenvolvidos anteriormente,18 estabelecemos, emcompensação, como uma atividade de interpretação pode se articularcom uma atividade de decisão e de mudança, na trama dos discursos enas condutas concretas.

Se pareceu surpreendente colocar “a decisão”, habitualmente asso-ciada a um ato de autoridade, no centro de nossa reflexão sobre mudan-ça e se pareceu arriscado associá-la ao trabalho analítico e interpretati-vo, que exclui, por princípio, todo exercício de poder sobre outrem,esperamos, entretanto, através dessas páginas, ter apreendido melhor,com a própria ajuda dessa contradição aparente, o motivo pelo qual amudança se situa, precisamente, na interface dessas atividades de pen-samento, conjugadas uma à outra.

Juntas, e somente juntas, elas permitem aos homens se protege-rem “da luz brilhante do não questionável e organizar de outro modoo campo das significações”.19 O que a interpretação realiza no espaçoanalítico, a decisão realiza no campo da organização social, sem quejamais, porém, essa realização se traduza em conclusão, em enunciadode uma certeza; elas ficam, uma e outra, sob a dependência dos efeitosque engendram e, especialmente, daqueles que retornam sobre si mes-mos: uma decisão é sempre submetida à prova da realidade, da mes-ma forma que uma interpretação, sempre suspensa na sua possívelverificação, é sempre “fundamentada no amor à verdade, isto é, noreconhecimento da realidade que exclui todo engano ou simulacro”.20

Se a decisão, pelo que ela prescreve ou sugere, abre um novo espa-ço de condutas, a interpretação, pelo que ela enuncia, abre um novoespaço de palavras. Mas, como BATESON mostrou há bastante tempo,21

toda palavra se situa ao mesmo tempo nos dois registros da informaçãoe da sugestão – ato de palavra, análise em ato.

Elas definem o lugar da mudança na medida exata em que, toma-das em um campo de conflito no qual contribuem para deslocar os ter-mos, nunca instituem uma relação de forças.

Contudo, elas parecem facilmente contraditórias; mas isso não se da-ria por que essa contradição permitiria mascarar a realidade paradoxaldas organizações sociais – elas sendo, ao mesmo tempo, projeto de conti-nuidade, de previsão e de unidade, bem como instituição da divisão, daruptura e de limites a todo desejo de onipotência? Do mesmo modo, esse

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Notas1 Traduzindo de: LÉVY, André. “Le changement: cet obscur objet du désir”. Connexions.

45, p. 173-184, 1985, por Maria Lívia do Nascimento e Sílvia C. Josephson.2 BOUDON, R. La place du désordre. Paris: PUF, 1984. MENDRAS, H. e FORSI, M. Le

changement social. Paris: Colin, 1983.3 POPPER, K. L’univers irrésolu, plaidoyer pour l’indéterminisme. Paris: Hermann, 1984.4 ALTHUSSER, L. Pour Marx. Paris: Maspero, 1966; BAUDELOT, C., ESTABLET, R. e

MALEMORT, J. L’école capitaliste em France. Paris: Maspero, 1971.5 LEWIN, K. “Décision de groupe et changement social”. In: LÉVY, André. Textes fonda-

mentaux de psychologie sociale. Paris: Dunod, 1964.6 LÉVY, A. “Le changement comme travail”. Connexions, 7, 1973.7 TROGNON, A. Situations langagières et processus de groupe. Tese de Doutorado de

Estado, 1980.8 VALÉRY, P. Réflexions simples sur le corps. Variété V. Paris: Gallimard, 1945.9 LÉVY, A., ibid.10 VALÉRY, P., ibid.11 LEWIN, K., ibid.12 “A decisão de se restituir o pai, de reinstitui-lo depois de tê-lo descartado, é, como

em Totem e Tabu, o ponto essencial que terá seu fechamento no livro sobre Moisés”.“Isolar o nome do pai é renunciar a se fundamentar no testemunho dos sentidos,é decidir que a paternidade é mais importante que a maternidade, decisão que,em si própria, é um dilaceramento, um distanciamento que se torna o seu próprio(...), é, para FREUD, a aventura da humanidade que cada homem deve refazer,pessoalmente, em seu destino”. GRANOFF, W. Filiations. Paris: Minuit, 1974.

13 LÉVY, A. Sens et crise du sens dans les organisations. Tese de Doutorado de Estado, 1978.14 TROGNON, A., ibid.; FLAHAULT, F. La parole intermédiaire. Paris: Le Seuil, 1978.15 FAYE, J.-P. Théorie du récit. Paris: Hermann, 1972.16 LEGENDRE,P. L’amour du censeur. Paris: Le Seuil, 1974.17 Essa vontade apoia-se também numa concepção relativista e subjetiva da verdade,

excluindo a possibilidade de diferir o verdadeiro do falso. Como demostra FAYE,tal concepção está na origem do pensamento totalitário.

18 LÉVY, A. e DUBOST, J. “L’Analyse social”. In: ARDOINO et al. L’intervention insti-tutionnelle. Paris: Payot, 1980; igualmente, LÉVY, A. Sens et crise du sens dans lesorganisations, tese citada; LÉVY, A. e ENRIQUEZ, E. “Évolution technologique et pers-pectives psychologiques”. Connexions 35, 1982.

19 CASTORIADIS-AULAGNIER, P. “Savoir et certitude”. Topique 13.20 BATESON, G. e RUESCH. Communication. The social matrix of psychiatry. Norton, 1942.21 Ibidem.22 BAREL, Y. Le paradoxe et le système. PUG, 1979; ou, igualmente, LÉVY, A. Sens et

crise du sens dans les organisations, op. cit.

A mudança: esse obscuro objeto do desejo

paradoxo inerente a todo sistema organizado, vivo,22 dura apenas o tem-po em que acontece uma atividade decisória e analítica (ou interpretati-va), seu desaparecimento coincidindo com a instauração de um Estadototalitário e cristalizado.

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O objetivo da maioria dos economistas é o de equiparar o funciona-mento da Economia ao de uma sociedade animal. Isso significaria:

1- Que existe uma perfeita determinação do comportamento dosatores (para os seguidores de PARETO, advinda da realização deum nível ótimo único; para os seguidores de KEYNES, da quedanecessária na tendência ao consumo; para os marxistas, dos pa-péis dos “funcionários do capital”): assim, cada uma dessas cor-rentes teria, à sua disposição, apenas um modelo de comporta-mento possível;

2- Que existe entre esses atores uma perfeita complementaridade de pa-péis e, por conseguinte, de comportamentos que visam ao seu desem-penho;

3- Que daí resulta, necessariamente, um equilíbrio: equilíbrio ótimopara WALRAS, de subemprego para KEYNES, de lucro-zero paraRICARDO. Na melhor das hipóteses, admitir-se-á um crescimen-to equilibrado (SOLOW) ou, na pior delas, um declínio a um es-tado estacionário (RICARDO). Poder-se-ia mesmo admitir que oequilíbrio é raramente atingido mas que, em tal caso, emergemmecanismos de regulação que atuam como fator de reequilibrodo sistema.

São raros os economistas que tratam da mudança por rupturas emais raros ainda os que trabalham do ponto de vista de uma eventualcomplexificação após cada crise profunda do sistema. Somente algunsautores fundadores e algumas correntes ortodoxas ousaram atacar o pro-blema: SMITH, no livro III da Riqueza das Nações (“variações do progres-so da opulência nas diferentes nações”); MARX, em toda a sua obra;Schumpeter (Teoria da evolução econômica e Capitalismo, Socialismo e De-mocracia); PERROUX (A Economia do século XX); os historicistas alemães(que, aliás, jamais chegaram a um acordo sobre a sucessão dos estágios

RUPTURAS, MUTAÇÕES E

COMPLEXIFICAÇÃO EM ECONOMIA1

André Nicolaï

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históricos da evolução econômica); os institucionalistas americanos (deVEBLEN a GALBRAITH, passando por ROSTO, que se recusam a deixarunicamente por conta dos historiadores e sociólogos o tema da mudança).

Existem várias razões para essa situação de carência teórica: inicial-mente, o medo dos economistas de serem percebidos como influenciadospor MARX; em seguida, o alinhamento da principal corrente de pensa-mento (o dos neoclássicos) com a física do século XIX (a do equilíbrio eda reversibilidade); a lição tirada de KEYNES (as interrogações sobre alonga duração só interessam aos subdiplomados e, além disso, “a longoprazo, todos nós estaremos mortos”); o receio de cair no domínio danão-formalização e de que a Economia deixe de ser “a mais dura dasciências moles”; o misoneísmo em relação a descobertas ou hipóteseselaboradas em décadas recentes pelas “ciências duras” (as “catástrofes”dos matemáticos, as estruturas dissipativas ou os atratores estranhos dosfísicos, o não-evolucionismo dos biólogos: assim, por exemplo, foramnecessários cinqüenta anos para a Economia se apropriar do conceito deregulação). Mais fundamental ainda foi a dificuldade (lógica, mas tam-bém afetiva) de se admitir, nas sociedades humanas e, por conseguinte,na esfera das atividades econômicas, que os agentes são simultaneamen-te: a) agidos pela lógica de reprodução-mudança das relações (das estrutu-ras) do sistema, lógica e relação que preexistem aos agentes, impondo-sea eles; b) atores do sistema, uma vez que, por seus comportamentos, elessão o suporte de suas estruturas; c) autores, mesmo que involuntários, dasmudanças que aí se produzem. Daí também as dificuldades em admitir:que a determinação dos comportamentos não é total e que cada agentedispõe de um leque de modelos possíveis; que a complementaridade en-tre esses agentes não é perfeita, o que pode dar lugar ao aparecimento decrises, mas também de estratégias, nas zonas de complementaridade im-perfeita; que as crises, quando profundas, repetidas e duráveis, permitemjustamente rupturas e mudanças. Todas essas hipóteses contradizem, ter-mo a termo, aquelas enunciadas acima sobre a determinação dos agentes,da perfeita complementaridade dos papéis e do equilíbrio.

Do exposto, duas conseqüências podem ser tiradas:

1- A teoria econômica depende sempre, para a renovação de suashipóteses de base, das descobertas ou hipóteses enunciadas pe-las ciências duras. Entretanto, ela precisa de algumas décadaspara poder se aclimatar e tornar familiares essas idéias advin-das de um outro lugar.

2- Quando, por fim, a adoção das hipóteses acontece, prevalece o racio-cínio por analogia: os novos conceitos ou hipóteses são utilizados

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tais quais formulados, eles não são transformados a fim de setornarem aplicáveis a um campo, cujos elementos, isto é, os ato-res, são simultaneamente (cf. supra) agidos, atores e autores doseu sistema, o que não é o caso dos elementos físicos, químicosou biológicos.

***************

Quais são, então, os novos conceitos e hipóteses, oriundos de ou-tras áreas, que poderiam ser transpostos para o campo econômico?

1- Inicialmente, os conceitos de dinâmica dos sistemas e de auto-re-gulação (a homeostase dos biologistas dos anos vinte). Eles se refe-rem a sistemas autônomos, mas abertos ao seu meio ambiente e,por isso, capazes de se auto-regularem, face a “ruídos” provenien-tes do exterior. Mas já aí é preciso assimilar e divulgar a seguintehipótese: no campo econômico (e em geral no campo social), os“ruídos” são cada vez mais endógenos, por serem produzidospelo próprio funcionamento do sistema. O ambiente natural emesmo o corpo natural dos agentes são, literalmente, “desnatu-ralizados” pela extensão do mercado, enquanto que as “dife-rentes sociedades” (outro componente do meio ambiente) desa-parecem de modo acelerado (calculava-se que, em 1900, existiamno globo cerca de 50 000 sociedades diferentes; em 1950, nãorestavam mais que 10 000).

Assim, a partir do século XIX, as crises econômicas foram, inicial-mente, a tradução conjuntural de uma imperfeição repetitiva nacomplementaridade dos papéis dos agentes, constituindo-se, pois,como crises momentâneas de coerência. Em um período de crisessimplesmente conjunturais (as crises do ciclo Juglar), as regulaçõesespontâneas ou voluntaristas reequilibram o sistema, graças aoscomportamentos de adaptação de certos atores. O resultado dissoé um aumento da “variedade” do sistema, isto é, de sua capacida-de de fazer frente a um leque amplo de disfunções.

2- Os conceitos de auto-organização, autopoieses, autocriação, auto-geração etc. colocam outros problemas, visto se referirem a solu-ções eventualmente encontradas (o êxito não é certo) para as cri-ses estruturais e para as crises-ruptura. Nesses períodos,verifica-se não apenas um deslocamento da coerência entre ospapéis, mas também um deslocamento da coesão entre os agen-tes, ou seja, uma recusa em manter a adesão aos “compromissos

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históricos”, exigidos por uma complementaridade necessariamen-te conflitante (pois não igualitária) entre os papéis desempenha-dos (exemplos de compromissos mal sucedidos: a aliança campo-neses-indústria, sob o protecionismo de MÉLINE, na França; ocompromisso fordista empresários-assalariados, sob a égide do Es-tado, durante a inflação-crescimento dos Trinta Anos Gloriosos).

Essas crises-ruptura, ligadas a um esgotamento da variedade pró-pria a esse estágio do sistema, exigem que se leve em conta a “fle-cha do tempo”: a irreversibilidade da “escolha” que será efetuadanas ramificações oferecidos pela bifurcação (ou a “polifurcação”?)onde nos encontramos. É certo que essa escolha é aleatória, logonão previsível, e só poderá ser verdadeiramente explicada a poste-riori. Nesse ínterim, o que sabemos é que esse tipo de crise aumen-ta as zonas de complementaridade imperfeita (as “zonas de incer-teza”, segundo CROZIER) e, por conseguinte, amplia a margemde manobra dos inovadores que, nesse momento, experimentamde modo disperso as várias soluções possíveis para essa crise.

Mas, entre os economistas, encontramos poucas reflexões (na Fran-ça, apenas as de DUPUY e PASSET) sobre o que poderia ser oequivalente econômico das estruturas dissipativas e, em espe-cial, sobre os respectivos papéis do esgotamento da variedadeprópria a esse estágio do sistema, assim como do próprio acasona escolha que será feita entre as possibilidades apresentadas.

A mutação estrutural depende igualmente do “conjunto de inova-ções” que se revelarem dominantes. No entanto, costuma-se esque-cer que tais inovações dependem da presença ou não, na socieda-de ou numa área econômica dada, de inovadores potenciais. Suapresença é vista como consolidada, embora vários exemplos his-tóricos (a estagnação árabe, a partir do século XI até as atuaiscontestações periféricas do império econômico americano) pare-çam mostrar, de um lado, que existem muitas sociedades fecha-das – ou que voltaram a se fechar – e, de outro lado, que a reservade desviantes potencialmente inovadores se constitui ora na pe-riferia do Centro (os N.P.I.,2 por exemplo), ora entre as malhasmuito frouxas ou esgarçadas desse Centro (a economia subterrâ-nea da Lombardia ou a economia “bismarkiana” da Baviera).

Certamente não é falso explicar o ativismo do empresário-inova-dor pela “vontade de poder” (SCHUMPETER) ou pelo tempera-mento sangüíneo (KEYNES), mas isso deixa de lado os fatores

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culturais (MAX WEBER, MORISHIMA) que permitem ou não apresença desses tipos de agentes e sobretudo a aceitação – e, porconseguinte, a difusão ou não – de suas inovações.

Isso significa que é preciso acrescentar às duas primeiras condi-ções para a saída da crise (ampliação das possibilidades e a pre-sença dos inovadores) uma terceira condição: a existência de umimaginário social que dê lugar a essas possibilidades e a esses agen-tes, tornando possível viver em perspectiva (C. CASTORIADIS).

Mesmo se essas teorizações existissem, elas correriam o risco decair na armadilha do evolucionismo ingênuo, ou seja, da lineari-dade (doravante descontínua) do “progresso”. Isso seria esquecero fato já mencionado do desaparecimento de 40.000 sociedades,em cinqüenta anos. E seria esquecer também os milhões de atoresmarginalizados ou mesmo “eutanasiados” pelas mudanças ocor-ridas na complementaridade de papéis. Mas ainda continua fal-tando, nesse quadro, uma teoria do fracasso.

Continua também faltando uma articulação entre os respectivospapéis, nessas mutações estruturais, do mercado e das estratégias(públicas e privadas). Em período de não-crise (ou de crises regu-ladas) o mercado nada mais faz que aperfeiçoar, ao nível dos deta-lhes, a complementaridade dos papéis: trata-se do ajustamento.Em épocas de crises-ruptura, ele se torna o ordálio, julgamento deDeus face à incerteza “não-probabilizável” (KNIGHT). Mas a ra-zão do mais forte deve se inscrever em uma lógica clandestina,inerente ao sistema, da designação, da predestinação do mais forte.Já aludimos à localização na periferia ou nas malhas frouxas darede, assim como aos fatores culturais. Mas ainda permanece in-teiro o problema da coincidência bem sucedida do shake-hand, entrea mão invisível e o punho de ferro.

Há outro problema não estudado, pois “é preciso dar tempo aotempo” (apesar da repetição do fenômeno, desde os Goliardos daIdade Média até os jovens lobos dos N.P.I., passando pela revolu-ção dos costumes de 1968): é o fato de que as rupturas favorecem osconflitos de gerações, aparecendo assim como conflitos “trans-clas-ses”. Talvez a crise de coerência estivesse mascarada por uma per-sistência anacrônica da antiga coesão: a descrença em relação aoantigo compromisso histórico só pode surgir da nova geração, jun-to à qual também se verifica o desaparecimento da adesão. Issoleva talvez à expansão das ocasiões de inovação e à multiplica-ção de experimentações inovadoras.

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Enfim, mesmo que saibamos, desde BRAUDEL, que o Centro sedesloca, não poderemos jamais predizer em que direção ele se desloca.

3- Uma última hipótese a ser ajustada em Economia: o aumento dacomplexidade, após a solução eventual da ruptura. Ela se define(P. GROU, por exemplo) como “um aumento do número de ele-mentos em jogo e um aumento dos vínculos existentes entre eles”.Certamente podemos multiplicar as referências atuais:

- aumento do número dos agentes aí implicados, devido à exten-são atual do mercado e, às vezes, à extensão do capitalismo (osN.P.I.);

- aumento da quantidade de informações emitidas e do númerode conexões entre os agentes implicados;

- conjugação crescente dos mecanismos de regulação (R. BOYER,por exemplo): concorrência, poderes oligopolíticos em escalainternacional, integrações regionais (Mercado Comum Euro-peu etc.), polimorfismo das intervenções do Estado;

- outras referências.

Mas, ao mesmo tempo, podemos constatar:

- fenômenos de simplificação: diminuição do número de socie-dades diferentes; diminuição do número de agentes que têmum poder real de ação; homogeneização da linguagem, da cul-tura; “mercantilização” generalizada do globo e de atividadesque outrora eram não-mercantis (a cultura, o lúdico, o sagradoe, embora ainda não totalmente, a família e a escola);

- fenômenos de regressão a formas mais simples, antes de even-tuais mutações e complexificações bem sucedidas (o equiva-lente da neotínea): o recurso ao mercado-ordálio (como nostempos do capitalismo selvagem), após dessacralização, des-politização, des-sindicalização e mesmo des-identificações;3

- fenômenos de extensão truncada: o mercado se expande masnão necessariamente o capitalismo (o mercado + a acumula-ção + a “destruição criadora” + a relação salarial);

- fenômenos de recuo sobre as características locais e fenômenosde “identificações maciças” (E. ENRIQUEZ): nacionalismos,integrismos, sectarismos (com suas conseqüências sobre ospróprios comportamentos econômicos);

- enfim, fenômenos de “autonomização” e de assimilação lú-dica de alguns subconjuntos econômicos (as “bulas finan-ceiras”, por exemplo).

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No que diz respeito à complexificação, é preciso também questio-nar o antigo problema da relação entre o aumento das quantidades (doselementos, das conexões) e do “salto qualitativo”, tão caro aos marxis-tas de outrora.

***************

Tudo isso tem por objetivo nos lembrar que as analogias, paraserem fecundas, devem inicialmente ser especificadas, a fim de po-derem ser transpostas ao novo campo de aplicação. Podemos sugeriralgumas hipóteses sobre as especificidades próprias aos sistemas so-ciais antropológicos (incluindo a Economia), objetivando marcar suasdiferenças do estudo dos sistemas físicos, mecânicos, informáticos,químicos, biológicos e mesmo etnológicos, dos quais recebemos hi-póteses e conceitos novos.

1- Nos sistemas sociais, contrariamente a todos esses sistemas (porexemplo, as sociedades animais), a complementaridade entre ospapéis e grupos de agentes detentores desses papéis nunca é per-feita. Apesar da necessidade econômica ser reforçada pela coerçãosocial (o controle social e as normas interiorizadas) e mesmo peloprazer oriundo do jogo econômico (político etc.), o leque dos com-portamentos não é, para cada grupo de agentes, completamentefechado. Do mesmo modo, a complementaridade que os une (atra-vés do mercado e dos poderes) é sempre imperfeita e potencial-mente conflituosa. É preciso, pois, além das imposições do merca-do e dos demais poderes, introduzir normas, regras ou convençõespara lhe dar suporte.4 Mas essas regras só têm valor à medida quesão (aproximativamente) respeitadas pela maioria dos agentes: acoesão deve ser o suporte da coerência e supõe a adesão às regrasdo jogo (J. D. REYNAUD). Essa adesão, por seu lado, não se dásomente através do “interesse bem esclarecido”, como afirma o in-dividualismo antropológico. Ela supõe, por um lado, uma interio-rização das normas e uma culpabilização, quando da sua trans-gressão e, por outro lado, identificações laterais (em relação aosemelhante) e verticais (em relação ao superior). Contrariamen-te, uma época de crise-ruptura supõe não somente um desloca-mento da coerência, mas também um deslocamento da coesão: oque acarreta, por um lado, a desculpabilização em relação ao de-sejo de infração e, por outro, um deslocamento das identificaçõeslaterais (o mais distante, ao invés do mais próximo) e verticais(do establishment aos inovadores). E esses, para poderem inovar,

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devem inicialmente figurar no conjunto de desviantes, devendoencontrar, em seguida, as ocasiões de experimentar, de se expan-dir e, por fim, de sentir um prazer lúdico em transgredir as regrasdo jogo e “reposicionar” os antigos atores, muito numerosos e/ou muito obsoletos. O imaginário da destruição pode, então, es-perar desfazer o imaginário da conservação e situar o sistema emum dos troncos da “polifurcação”.

2- Quando há ruptura, há geralmente mudança do número e daqualificação dos atores, sem haver forçosamente o desaparecimen-to do papel que era desempenhado pelos jogadores contestados(os agricultores substituem os camponeses; os profissionais dainformática e da automação substituem os trabalhadores desqua-lificados; os outsiders e os parvenus substituem, pelos golpes dasOPA,5 o pessoal patronal). No total, cria-se um conjunto em quevaria o número de jogadores (os agricultores são menos numero-sos que os camponeses) e da distribuição das cartas (deslocamen-to das formações exigidas e realocação das informações necessá-rias), sem esquecermos ainda as marginalizações, as exclusões eeutanásias – violentas ou suaves – que tal fenômeno implica. Existeentão, em período de crise, um New Deal dos poderes e uma mo-dificação das regras do jogo. Daí resulta a mudança no funciona-mento da complementaridade e, por isso mesmo, a modificaçãodo tipo de conjuntura.

3- Para não cair no modelo do fator explicativo único e que se aplica atudo, seria preciso distinguir, mais nitidamente, entre rupturas e mu-danças no interior de um sistema (as mutações estruturais = as trans-crições necessárias da identidade do sistema: relação salarial, acu-mulação, inovações, modalidades de mercado) e a passagem de umsistema a outro (as mutações sistêmicas: a passagem de escravo aassalariado, por exemplo). No primeiro caso, estaremos lidando comos avatares de um mesmo sistema, enquanto que, no segundo, lida-mos com a passagem de uma lógica de reprodução econômica e so-cial a uma outra lógica. Dada a imprevisibilidade das mutações sis-têmicas, de sua unicidade histórica, dos fatos de regressão (porexemplo, da sedentarização ao nomandismo), é mais prudente dei-xar aos historiadores a explicação retrospectiva dessas mudanças.Por outro lado – apesar de KEYNES –, pelo fato de que a longa dura-ção se introduz e se choca com o cotidiano, os economistas não de-veriam continuar excluindo de seu campo de estudos as transfor-mações de um sistema (o atual) que une o futuro ao presente.

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Notas1 Traduzido de: NICOLAÏ, André. Ruptures, mutations et complexification en économie

(mimeogr.), por Teresa Cristina Carreteiro.2 Nouveaux Pays Industrialisés – Países recém-industrializados (N.T.).3 Cf. “Malaise dans l’identification”. Connexions, n. 55, Paris: ERES, 1990.4 Cf. “L’économie des conventions”. Revue Économique. V. 40, n. 2, março 1989.5 OPA: offre publique d’achat (oferta pública de compra. N.T.).

Poderíamos talvez propor, então, um esquema ideal típico, tal como:

1- As estruturas (as relações de complementaridade e, por conse-guinte, de coerência) + a cultura (os conhecimentos, representa-ções, normas; a aquisição de conhecimentos e de representações, aadesão às normas e, por conseguinte, a coesão) + o comportamentodos atores que fazem funcionar esses papéis e essas normas – ex-plicam a lógica de funcionamento e de reprodução do sistema.

2- Apesar da necessidade e das normas (eventualmente o prazer), acomplementaridade entre os papéis continua imperfeita e podegerar a disfunção (crises conjunturais). A modificação espontâneaou orientada dos comportamentos de certos atores permite regula-ções e reequilíbrios do sistema.

3- Mas a adaptabilidade do sistema, em um determinado estado(sua capacidade de “variedade” e de regulação) encontra limi-tes (existe, por exemplo, “esgotamento da relação salarial for-dista”). A continuação do funcionamento implica, então, umanova transcrição das relações que identificam o sistema e impli-ca, portanto, uma mutação estrutural. Essa só será possível (poiso sucesso não está assegurado) se certos agentes, emergindo dereservatórios clandestinos ou periféricos de desviantes, existi-rem na sociedade considerada e puderem se aproveitar de umabrandamento das imposições da coerência e da coesão, paraexperimentar as inovações, tornando-se então os emissários darenovação do imaginário social.

Rupturas, mutações e complexificação em economia

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A crise das identificações, nos anos 60, precedeu uma crise política, aqual, por sua vez, precedeu uma crise econômica. Atualmente, todas sedeslocaram para o Terceiro Mundo e para os países do Leste. No Ocidente,não se trata mais de crises (isto é, de rupturas) mas sim de mal-estar (isto é,de incertezas). E, se bem que o mal-estar é conseqüência das crises, talvezanuncie o fim delas. Pois essas “perturbações”, quando não destroem asociedade em questão, criam, na imprecisão das referências e também nomal-estar das identificações, condições de “saída da crise”:

l- Introduzindo o “jogo” na coerência instrumental dos papéis e na coe-são (adesões complementares), a crise distende as complementarida-des sociais e suscita falhas e interstícios. Esses se tornam “zonas deincertezas” onde algumas estratégias podem nascer e se desenvolver: aocasião faz o ladrão.

2- A crise enfraquece a capacidade dos poderes vigentes de controlare de orientar o social. Assim, por exemplo, o Estado-Providênciaperde ao mesmo tempo sua eficácia e sua credibilidade, só conser-vando o papel tranqüilizador das figuras de tio (W. BRANDT,MITTERAND, João Paulo II, GORBATCHEV) ou de irmão maisvelho (SOUCHON, MARADONA, ROCCARD, TAPIE e outros).

3- Ela mobiliza atores em potencial, na reserva de desviantes que exis-tem em toda sociedade, e os transforma em autores das mudanças.Do mesmo modo, ela mobiliza em cada “conformista” o lado desvi-ante que persiste nele: há, de algum modo, “desfusão das pulsões”,reorganização das personalidades e reciclagem da ação.

4- Ela confunde a hierarquia das referências culturais (o direito à dife-rença concebido como a dignidade equivalente das culturas) e per-mite, então, a introdução de novas referências.

IDENTIFICAÇÕES EXPERIMENTAIS E INOVAÇÕES SOCIAIS1

André Nicolaï

O malvado é uma criança, porém robusta.(Hobbes)

Tempo é criança brincando, jogando;de criança o reinado.

(Heráclito, Fragmentos, no 52)

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

5- Ela libera, assim, inúmeros imaginários de projetos que se apro-priam, assimilam e transformam, de modos diferentes, os elemen-tos culturais e os meios de ação disponíveis.

6- No final de contas, ela permite uma multiplicação de experimenta-ções sociais, localizadas e transitórias, desses imaginários de projeto.

Esse movimento aciona inicialmente indivíduos ou pequenos gru-pos atípicos, que podem arrastar atrás deles certos “conformistas” queparecem certamente obedecer à regra: muda-se mais facilmente de práti-cas do que de idéias e de idéias do que de personalidade. Mas quando se éobrigado a chegar a esse extremo, pode-se reciclar também a identidade.

Quer se tratem de agentes inovadores ou reciclados, essas recomposi-ções implicam também a experimentação de novas identificações e a explo-ração de transformações suportáveis da identidade. O “mal-estar na identi-ficação” traduz, ao mesmo tempo, angústias de identidade, tentativas dereconstrução, perplexidades face às alternativas e buscas de orientação.

Mas esses agentes inovadores ou reciclados coexistem e estão emrelação com outros que, levados pela incerteza das situações e do futu-ro, ao contrário, recorrem e se agarram a referentes e modelos tradicio-nais (existentes, reativados ou mesmo imaginados). São pois simulta-neamente experimentadas atitudes e estratégias de recuo e deacomodação, por um lado, de assimilação e de inovação, por outro,com todas as posições intermediárias possíveis. O resultado é que, paratodos, não apenas a realidade parece incerta, mas também versátil: essasduas características vão ser percebidas como fonte de vantagens ou deprazeres potenciais por alguns, ou como geradoras de pânico e de aban-dono por outros. Daí os recuos ou as experimentações que implicamque o local substitua o global e o precário o durável.

Os recursos e os recuos: a manuntençãoOs recursos e os recuos: a manuntençãoOs recursos e os recuos: a manuntençãoOs recursos e os recuos: a manuntençãoOs recursos e os recuos: a manuntenção

Essas tentativas de manutenção comportam muitas variantes. Con-sideremos três delas com suas subdivisões: o “narcisismo das pequenasdiferenças”, o individualismo ilusório ou de oportunismo, as “intermi-náveis adolescências” que, aparentemente dizem respeito a faixas etá-rias, a grupos étnicos, a categorias socioprofissionais e, é claro, a tiposde personalidade diferentes.

“O narcisismo das pequenas diferenças”

Ele consiste, diz FREUD, em um movimento de retorno libidinal a “umgrupo cultural mais reduzido” e uma orientação da agressividade para os

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grupos estrangeiros ou excluídos, por uma dupla referência às diferençastradicionais ou consideradas como tal e a uma escala de idealização-rejeição.

a- Os mais clássicos desses recuos dizem respeito às diferençasraciais, religiosas, nacionais, regionais, de classe, profissionais,organizacionais etc. O global deixa de ser área comum de con-frontos ritualizados entre complementares para se tornar a arenade combate entre “tribos”. Por exemplo, as reativações religiosasatuais no Irã, na Polônia ou mesmo no Ocidente podem certa-mente corresponder a ressacralizações visando à sobrevivência:mas elas são também a reativação de um pai ideal e discriminador.E mesmo quando as pequenas diferenças do outro são explora-das e valorizadas, podemos talvez perguntar se essa curiosidadenão mascara um voyeurismo: assim o turismo é talvez a face ilu-minada, nos dois sentidos do termo, do racismo.

O que é mais importante: esse tipo de retorno narcísico leva à subs-tituição do semiótico (véus islâmicos, solidéus – kipas – hebraicos,gorros cristãos etc. e a aparência NAP) pelo simbólico.2 A valoriza-ção dos signos e da agressividade desvaloriza a linguagem, a regrae as sublimações.

b- O recurso de certas organizações a “clichês” traduz também essadepreciação da palavra significante em benefício da voz. E a acen-tuação dessa depreciação segue as mesmas etapas que a necroseda organização que a emite: passa-se da organização ao serviço deum projeto exterior (a palavra para convencer e seduzir), à organi-zação que se toma por objeto de reprodução (o domínio da gíria dogrupo como teste de recrutamento: assim o domínio das gírias uni-versitárias) e, finalmente, à organização que prefere “escolher” suaprópria morte a renunciar aos seus “princípios” e despedir seusmembros fixos obsoletos (os “clichês” combinando com o salário ecom o estatuto de membros fixos). A identificação que não se des-vencilha do partido, da igreja, da empresa etc. é paralela à involu-ção identificatória de seus membros.

c- Esse retorno pode se dar sobre unidades sociais mais fechadas e, éclaro, sobre a cumplicidade e a solidariedade dos companheiros oudo grupo familiar. Assim, talvez estejamos passando do casal asso-ciativo “moderno” ao casulo pós-moderno, invólucro de incubaçãoafetiva de ninfas à espera de seus imagos indecidíveis.3 A família,que é geralmente lugar de violência necessária e legítima, em vistada emancipação para o societário e a individuação, torna-se umacontra-sociedade nos dois sentidos do termo. Fenômeno que ilustra

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bem, às avessas, as afirmações de FREUD sobre a complementari-dade antagônica dos vínculos familiares e dos vínculos sociais.

O retorno pode ir ainda mais longe.

O “novo individualismo” e a mônada com janelas falsas4

Com exceção talvez do autista, não há narcisismo que se satisfaçaunicamente com o olhar interior ou especular. Quer dizer que o narcísico,exatamente como Deus, “tem necessidade dos homens”. E isso, quer optepelo narcisismo de aparências corporais ou por aquele de aparências dosucesso individual.

a- Do primeiro diremos pouca coisa, salvo que ele é a negação darealidade espacial e temporal, pois ele reduz o espaço àquele que osepara de sua imagem e, principalmente, porque ele denega a pas-sagem do tempo e o conseqüente envelhecimento. Mesmo quando seeleva acima do nível elementar das práticas obsedantes do body-building para atingir o brilho cintilante do vestuário ou da lingua-gem, o narcisismo individual, ipso facto, pinta com falsas aparênciasa face pública de sua mônada: o efêmero da moda como garantia desua própria eternidade e da fidelidade do Cavalheiro à Rosa.

b- Mais interessantes, justamente porque mais na moda, são o narci-sismo e o hedonismo do sucesso individual que ocorrem e se mos-tram de duas formas: a consumação insaciável e rápida de objetossimbólicos (uma bulimia vomitória, isto é, a que impede a obesida-de: nós não saímos da expressão corporal); a ascensão profissio-nal provada e marcada pelo ganho pecuniário, sendo aliás esseque permite aquele. O “sempre mais” do período 1945-1974 dos“Trinta Anos Gloriosos” foi transformado pela crise em “sempremais alto”,5 até que alguns craques na bolsa tivessem nivelado atrajetória dos golden boys, de alguns yuppies e dos numerosos pou-padores populares miméticos do esquilo de FOUQUET, revelan-do assim a ilusão da satisfação ilimitada.6

Essa idealização do sucesso pecuniário, especialmente na França,entre 1983 e 1988, é, primeiramente, uma aclimatação cultural tardia daperversidade obsessiva do capitalismo (domínio da natureza e autorida-de sobre os agentes) onde o prazer lúdico envolvido reforça a virtudepuritana e anal que, por sua vez, fortalece as exigências da necessidadeeconômica. Ela é, além disso, uma conseqüência da crise econômica quetransforma o mercado em ordália e desvaloriza o status adquirido. Mas omercado-ordália tem também o mérito de reintroduzir a binaridade (comose sabe, com o dinheiro, a cenoura e o bastão são a mesma coisa) num mun-

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do onde as referências de identidade e de identificação se tornam impreci-sas. O dinheiro, tomado como “medida de todas as coisas” (inclusive doque antes não era mercadoria: o serviço público, o festivo, o prestígio etc.)permite, exatamente como os pequenos narcisismos da diferença religiosaou étnica, uma erotização e uma “tanatização” brutais porque justamentebinárias. Isso é talvez patológico, mas é ao mesmo tempo reconfortante:com a binaridade do jogo do dinheiro, assim como com as regras precisasdos jogos lúdicos, mesmo o perdedor “sabe a que se ater”. Entre a binarida-de e a injunção contraditória, é mais simples escolher a binaridade.

A vantagem da acumulação sobre as formas qualitativas do narci-sismo é dupla: ela permite não apenas transformar – no imaginário – oqualitativo em quantitativo (o “Pompidou dos tostões” cúmplice do po-der, de junho de 68, em substituição ao “Mudar de vida”), mas tambémefetuar (período 1983-1988) sua própria transformação sublimante doquantitativo ao qualitativo (o que ganha mais é o melhor). A diferença naconta bancária é um indicador mais preciso que a multiplicação das dife-renças de vestuário ou de status ou a contabilização fastidiosa de mártiresda fé ou da revolução. Enfim, em prêmio de Schadenfreude, os assassinatospsíquicos (aqui pecuniários) são sempre menos punidos que os assassi-natos físicos (SEARLES).

A monetarização, a mercantilização e a acumulação respondem àsameaças de perda de identidade e permitem uma identificação pelomenos tão abstrata quanto a que se pode fazer à lei e, talvez, maistranqüilizadora, posto que mensurável e mesmo conversível – mesmoque seja só em imaginação – em bens equivalentes. Além disso, essaacumulação pecuniária permite, se ela for realizada, manter ou criaros meios de aumentá-la. A palavra de ordem premonitória de Ray-mond BARRE, “Criem sua própria empresa”, atualizava o “Enrique-çam-se pelo trabalho e pela poupança”, acrescentando a atração lúdi-ca que faltava à fórmula de GUIZOT. “O empresário competitivo” ouo candidato a empresário podem então fantasiar de copular, numaandrogeneidade fecunda, as identificações da concepção materna comas do priapismo paterno. Mas todas essas fantasias econômicas são aomesmo tempo auto-realizadoras pois incitam os agentes a se darem osmeios de realizá-las. Assim, o sucesso dos outsiders permite também e,simultaneamente, uma certa renovação do empresariado e o rejuve-nescimento das figuras identificatórias.

Por enquanto, notemos que o modelo do sucesso individual, caso sepropagasse a todos os agentes, se autodestruiria. Na verdade, o mercado,se não for provido de códigos e rituais duráveis e respeitados, induz não ao

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risco calculável mas à incerteza e, logo, ao insolúvel. Se cada um desem-penhar o papel do “Cavaleiro Livre”, que opta pelo oportunismo e con-ta com o “acaso moral”, cada um será, necessariamente, um cavaleirosolitário. E o “passageiro clandestino” vai se encontrar sem meio de trans-porte. Porque a perversidade obsessiva do dinheiro e do sucesso pecu-niário, esse narcisismo manipulador, tem necessidade que outros res-peitem as regras para que ele possa obter seu ganho e seu prazer doganho. Se os outros também se recusam a entrar nas regras e abolem aculpabilidade de infringi-las, como antecipar-se a eles e manipulá-los?Lembremos que o perverso tem necessidade de regras sociais e do su-cesso dos outros para satisfazer seu narcisismo. No caso de fraquezadelas, ele será levado a construir regras fictícias (por exemplo, a progra-mação dos computadores das Bolsas) que, por sua automaticidade arbi-trária e movimentos miméticos que suscitam, provocam a sanção do cra-que das bolsas ou dos OPA selvagens.7

Isso que vale principalmente para as esferas econômicas pode, en-tretanto, servir de modelo a outras esferas: a moda do kit que permiteindividualizar as diferenças, a partir de elementos de vestuário comuns;os barroquismos arquiteturais diferenciadores do urbanismo “pós-mo-derno” e até mesmo as escolhas narcísicas de objetos afetivos.

A incerteza das regras e das referências tradicionais e, em contra-partida, a nítida binaridade do mercado, a individualização extrema dosnovos modelos, tudo isso torna altamente provável e muito facilmenteexplicável a estratégia do far-niente e o prolongamento de “interminá-veis adolescências” por parte de numerosos jovens.

Intermináveis adolescências. (T. ANATRELLA)

Podemos resumir em poucas frases essa pesquisa: a invenção dainfância e depois da adolescência são fenômenos recentes; passa-serapidamente, na época atual, do adolescente revoltado e membro deum grupinho ao adolescente intimista e que convive numa microsso-ciedade; a adolescência se estende agora de doze a trinta anos; ins-taura-se uma sociedade “adolescêntrica”, na qual os próprios paisentram no modelo irmãos-irmãs; daí resulta, nas três etapas – puber-dade, adolescência e pós-adolescência -, uma crise da progressão dasidentificações e do trabalho do luto que essas etapas da constituiçãoda identidade implicam.

Acrescentaremos apenas algumas observações.

1- É como se a incorporação do aleitamento e os investimentos ini-ciais sobre os pais não fossem transformados em identificações e

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como se essas não fossem constituintes da identidade e, por issomesmo, da diferenciação.

2- Essa fuga do real e de suas oposições naturais (gerações, sexos,prazer, saúde) ou sociais (pais-filhos, trabalho-lazer, sagrado-pro-fano) e suas expressões simbólicas instrumentais (útil-inútil, efi-caz-ineficaz etc.), cognitivas (semelhante-diferente, verdadeiro-fal-so, culto-analfabeto), normativas (bem-mal, bonito-feio etc.) erelacionais (amistoso-hostil etc.), essa fuga é compensada, comoressalta essa obra, pela constituição de identificações e de micro-grupos horizontais, a partir do modelo irmãos-irmãs. É necessárioacrescentar: a substituição da imago confusa do pai pela figura avuncu-lar, em lugar da necessária complementaridade dos status do pai edo tio, ressaltada já há muito tempo por LÉVI-STRAUSS.

3- A inversão da “chantagem afetiva” (das crianças em relação aospais, em vez do inverso habitual) é um bom indício do mal-estar naidentificação que, ainda por cima, remete à forma elementar datentativa de inversão da chantagem: o período anal. Tudo isso éracionalizado nesse paralogismo: agora as crianças são deseja-das; ora, eu não pedi para nascer; logo, se você quer que eu conti-nue a optar por gostar de você, amamente-me e deixe-me brincarcom seu dinheiro. (Em contrapartida, essa inversão institui a famí-lia como um dos lugares privilegiados da experimentação das trans-gressões e das inovações).

4- A apatia, a abulia e a paralisia se tornam os meios de manteruma situação de dependência alimentar, corporal e afetiva, as-sociada a gratificações que a versatilidade das despesas e a im-possibilidade de antecipar os comportamentos fornece. Criam-se e mantêm-se, assim, personalidades “sem genealogia” (M.ENRIQUEZ), isto é, sem assimilação e superação das identifi-cações. E a substituição atual, nos casais, dos amores flutuan-tes de até pouco tempo, por amores que fazem seu ninho, man-tém a incerteza na diferenciação das figuras parentais e nadiferença entre semiótico e simbólico, perpetuando, pois, as con-dições dessas intermináveis adolescências.

5- Se as figuras do tio (tia) e do irmão (irmã) mais velho(a) substi-tuem as imagos parentais do pai ausente ou desvalorizado e damãe ambígua ou “dominadora”, as identificações verticais serãotransitórias (a rápida obsolescência dos ídolos o prova) sem se tor-narem transicionais. Essa fragilidade e essa precariedade das identi-ficações verticais será compensada pela solidez e estabilidade das

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identificações horizontais entre pares amicais, nos quais procura-se mais a semelhança narcísica de solidariedade que o questiona-mento das diferenças entre modelos educativos (J. PIAGET).

O grupo de pares se torna, assim, confirmação da semelhança e dapermanência, em vez de ajudar na superação, por lutos repetidos, dasidentificações parentais. A individuação é, então, adiada sem cessar.

As experimentações: inovações e identificaçõesAs experimentações: inovações e identificaçõesAs experimentações: inovações e identificaçõesAs experimentações: inovações e identificaçõesAs experimentações: inovações e identificações

Narcisismos de pequenas diferenças e intermináveis adolescênciassão retornos ou pausas em posições preexistentes. Mas, paralela e simul-taneamente, experimentam-se outras estratégias que se ligam mais à assi-milação e à inovação e que privilegiam mais os processos que os estados.Mas, como se tratam de experimentações, elas serão múltiplas, parciais,locais, precárias, contraditórias. Por isso, elas terão mais de “remendospróprios do pensamento selvagem” (Cl. LÉVI-STRAUSS) e de improvi-sações astuciosas da Métis que da experiência intelectual antecipante epreparatória para a ação, característica do Logos.

Elas mobilizam atores novos ou reciclados. Elas redistribuem o empre-go dos lugares e do tempo. Elas supõem a experimentação de novas formase de novos objetos de identificação e a exploração de novas constituições etransformações de identidade. Elas provocam mudanças onde não se espe-rava e trabalham, assim, na reconstituição dos vínculos sociais.

Os novos atores

Entre os desviantes que toda sociedade necessariamente com-porta, há os que são atores potenciais das mudanças. Se uma criseabre falhas (na periferia) e interstícios (no centro), esses poderão pôrem andamento estratégias de assimilação-inovação nas zonas de com-plementaridade imperfeita.

Eles serão recrutados não somente nos meios geralmente margina-lizados (um recente major na Escola normal é filho de Harki e as filhasde imigrados norte-africanos se saem melhor na escola que seus irmãos).Mas também nas famílias de classe média que têm uma estratégia deascensão social, ou mesmo nos micromeios do establishment que privi-legiam mais a adaptabilidade que o conformismo. A isso é necessárioacrescentar que o fato de pertencer a uma sociedade só define e abreleques de possibilidades às personalidades e que é o futuro agente, atra-vés de identificações aceitas ou rejeitadas, que vai realizar, na sua bio-grafia, uma dessas trajetórias possíveis.8 Sem esquecer também que cer-tos adultos “estabelecidos” são capazes de reciclagem.

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Esses portadores de mudança assimilaram e ultrapassaram, assim,suas identificações para se construírem uma identidade inovadora eadaptável. A constatação de que, em período de mutação, muitas dastransgressões inovadoras e construtivas são possíveis sem penalidadesexcessivas permite essa construção de personalidades em pessoas nasquais existem traços de perversão. Mas, diferentemente do perversoobsessivo pecuniário de agora mesmo, “não é ainda o ganho como tal,mas a paixão de ganhar que é essencial para ele”.9 Há, pois, aí um com-ponente lúdico que ainda não se tornou obsedante, permitindo a buscada novidade e a colocação em andamento do polimorfismo da “Razãoastuciosa”. Aqueles mesmos que contribuem para o obsoletismo dosideais, dos códigos, das ordens estabelecidas, das organizações, põem-se, por necessidade e por prazer, a criar projetos, regras, poderes e agru-pamentos. Eles se tornam, assim, os autores de “Revoluções minúscu-las”10 que modificam:

O emprego dos lugares, o emprego do tempoO emprego dos lugares, o emprego do tempoO emprego dos lugares, o emprego do tempoO emprego dos lugares, o emprego do tempoO emprego dos lugares, o emprego do tempo

E isso nas diferentes esferas do social

1- No lúdico, inicialmente, pois é aí, por volta de 1968, que as derri-sões e os projetos começaram e, além disso, porque as outras esfe-ras (a empresa com suas brincadeiras de empresa; a universidadecom o disparate prometido na pluridisciplinaridade etc.) tentaramdepois se apropriar da festividade para se tornarem mais atraen-tes. Mas, no domínio próprio do lúdico, constata-se, por exemplo, olugar cada vez mais importante dos esportes e espetáculos esporti-vos de competição como oportunidades de identificação e comoocasião para descarregar agressividade. Da mesma forma, a con-sumação apressada de grupos musicais efêmeros tomou o lugarda fidelidade às vedetes coletivas ou individuais estáveis. Final-mente, um último exemplo: a popularidade e a renovação crescen-te dos jogos de simulações, de papéis e mesmo “de empatia”, au-mentadas ainda mais pela introdução da informática. Todas essasexperimentações tornam o lúdico atual mais próximo da Paidiaespontânea que do Ludus regulamentado (R. CAILLOIS).

2- Em Economia, o hedonismo do sucesso pecuniário e social e as exi-gências da crise puseram em contradição os objetivos de mobilidade-flexibilidade com os de lealdade-identificação. A segmentação do mer-cado de trabalho faz coexistirem a ameaça de desemprego (para osrecalcitrantes que podem ser substituídos) e as várias tentativasde sedução e de indução à fidelidade em relação aos executivos

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considerados excessivamente inconstantes e, ainda por cima, coma informática e a espionagem industrial, excessivamente tenden-tes à sabotagem ou à traição. Mesma oposição, entre os jovens,entre a precariedade dos empreguinhos e a motivação pelas em-presas-juniors11 . E a um nível mais global, coexistência de umaeconomia oficial que, às vezes, perde o fôlego e de uma economiasubterrânea, clandestina ou até mesmo mafiosa que, articulando-se em redes regionais e familiares, chega em certos países a pro-duzir 20% (Itália) a 50% (Marrocos, Colômbia) do PIB.

3- Se, em política, o número de militantes, de aderentes e mesmo, àsvezes, de eleitores continua a baixar, isso não significa indiferença eainda menos rejeição das instituições e dos partidos, como foi o casodepois das crises de 1921 e de 1929. A perda das ideologias não levaà desmobilização total mas, ao contrário, a lutas ativas de tendências,a tentativas de “renovação” e à emergência de outsiders (atualmente osVerdes). Sob a égide de um “consenso fraco” e avuncular, numa apa-rente ausência de gravidade e na adesão de quase todos à “economiasocial de mercado”, tecem-se novas redes entre novos atores e explo-dem, às vezes, arrebatamentos na defesa da Escola (ou de sua laicida-de) ou nas campanhas humanitárias pelo Terceiro ou Quarto Mundo.Assim, “o coração à esquerda, a carteira à direita” e o trocado nocentro restabelecem as referências que pareciam ultrapassadas.

4- A esfera da reprodução física e social dos agentes, apesar dos atrasoshabituais em relação a uma realidade em mutação, é também o lugar deexperimentações simultâneas e sucessivas, embora freqüentemente iná-beis (a sucessão de reformas escolares). A coexistência e a rivalidadedos modelos patriarcal, conjugal, associativo (G. MÉNAHEM) e, ago-ra, que fazem ninhos, assim como a coexistência de referenciais corpo-rais (das belas produzidas às belas sensuais) ou emblemáticos (do he-rói ao anti-herói) já chamam a atenção para a diversidade dos“familiogramas” que aí se poderiam revelar. Mas também, do seio dosadolescentes intermináveis, emergem, de tempos em tempos, líderesestudantis, festivos, políticos (mas não ainda religiosos).

5- Isso não coloca o sagrado livre de qualquer mudança, apesar dapredominância atual de efervescências religiosas. Se a prática domi-nical católica caiu na França abaixo de 10% (cf. Le Monde de 27 deoutubro de 1989) e se a mediação dos prelados ou dos tele-evangelistas e dos Tios (Abbé Pierre) ou Tias (Madre Tereza) dei-xam de lado as organizações e as instituições intermediárias, apa-recem, entretanto, práticas e grupos de oração ou de reflexão que,

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por vezes, chegam a se organizar em redes para sustentar organi-zações não governamentais (e não episcopais) caritativas, educa-tivas e, às vezes, mesmo no Terceiro Mundo, produtivas. Sem fa-lar das seitas, do recurso ao horóscopo, aos advinhos e às loterias.Em todos esses casos, trata-se por certo mais de religiosidade quede religião: até o Estado é abandonado pela Providência, sendo oluto pelo pai que não chegou a ser reverenciado, substituído pelanostalgia persistente do “gigante sagrado”.

Mas essa religiosidade talvez prepare a retomada de movimentosrealmente religiosos (pensamos, é claro, na predição de MALRAUX parao século XXI), se entrementes o Sagrado não tiver se fixado sobre umobjeto profano menos totalitário e obsessivo do que podem ser, às vezes,respectivamente, a política e o dinheiro.

Esse percurso das esferas do social permite pôr em evidência algu-mas características comuns: o resfriamento do global compensado pelamediação de uma figura central avuncular (ou de irmão mais velho); acoexistência de experimentações locais, parciais, múltiplas, precárias e,freqüentemente contraditórias; os tateamentos de veleidade de passa-gem do semiótico ao simbólico; e finalmente: o desaparecimento de cor-pos e organizações intermediárias entre o local e o global.

A passagem ao local marca o recurso “às pequenas unidades sociais”(WINNICOTT desde 1971) e instaura “o tempo das tribos”. No cume, os“ídolos” sem veneração ou com entusiasmos efêmeros; na base, gruposde debate. No meio, apenas algumas instituições estimadas (sem ilusãoexcessiva: a escola) ou sempre fascinantes (as Grandes Escolas) parecemse manter. A prática religiosa dos católicos franceses reduz-se à metadeem trinta anos, porém numerosos são os grupos carismáticos. A CGTperde mais de 55% de seus efetivos entre 1977 e 1987, mas as reivindica-ções dos assalariados se exprimem através de “coordenações” fugazes,porém decididas. Poderíamos também constatar a simultaneidade damundialização do mercado (até nos países do Leste) e a transferênciados poderes econômicos nacionais, quer para firmas multinacionais cadavez mais “apátridas”, quer para a nova região asiática dos “Cinco Ti-gres” e, mais dificilmente, para a CEE. E, no interior de um país, é oEstado que se julga obrigado a incentivar os “núcleos duros” ou a con-servar os golden shares para impedir o esfacelamento ou as pilhagensselvagens e sem sedentarismo.

É que os novos atores não têm nenhum interesse e não obteriam ne-nhum prazer se as zonas de incerteza se reduzem excessivamente, porcodificações precisas ou por organizações invasivas. Em período de

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experimentação é necessário preservar a margem de manobra: assim sen-do, cada um é favorável às regras para os outros e à liberdade para si.Além disso, a secreção de regras precede a transformação de redes emorganizações distintas, porque as primeiras podem ser modificadas maisfacilmente do que as segundas que, uma vez instaladas, não podem serreorganizadas e reorientadas.

Pode-se, pois, prever que as turbulências continuarão a afetar pormuito tempo esses níveis intermediários porque elas são favoráveis àemergência de “minorias ativas” (S. MOSCOVICI) e às suas tentativasde deslocamento dos poderes e de ocupação do espaço.

O deslocamento dos centros e o nomadismo dos atores

Esse é um fenômeno bem esclarecido, no que tange à história docapitalismo, por historiadores como BRAUDEL ou I. WALLERSTEIN:as mutações de desenvolvimento jamais se produzem no país momen-taneamente dominante, mas nas zonas periféricas onde as aquisiçõesinstrumentais e culturais podem ser reordenadas e desenvolvidas sobum novo imaginário, fora do controle exercido pelo Centro. É por issoque as revoluções, mesmo que sejam minúsculas, produzem-se onde nãose espera e constituem, pois, “surpresas”.

Além disso, é necessário que os atores periféricos ou intersticiaistenham traços comuns de personalidade que os predisponham para isso.A flexibilidade-mobilidade atual talvez seja tanto um desejo quanto umaconstatação do que existe, pelo menos em muitos jovens, inclusive jo-vens executivos12. Assim, as pressões econômicas iriam ao encontro dedesejos pessoais. Com a condição, entretanto, que os investimentos lá-beis de objetos desse nomadismo só se concentrem nos meios de ação,os quais estão a serviço de objetivos determinados e realizáveis, como,por exemplo, em certas regiões, antigamente atrasadas, do norte da Itá-lia onde se desenvolvem redes de PME (pequenas e médias empresas),cujo dinamismo se apoia no nacionalismo local. Aí o nomadismo erran-te se transforma em migração periódica orientada.

Essa atração pela mobilidade e pela flexibilidade tem como conse-qüência a necessária aceitação da precariedade eventual dos resultadosda ação, conjugada com a manutenção dos objetivos. Nesse caso, a efeme-ridade das identificações e dos prazeres dos intermináveis adolescentesse transforma em tomada em consideração da existência do tempo, o queé um dos signos importantes da passagem do princípio de prazer ao darealidade. E as impaciências do “tudo imediatamente” cedem o lugar àprocura de atalhos no adiamento da realização do desejo.

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Um outro signo dessas reconstruções dispersas aparece no investimentode cada uma das esferas de atividade (econômica, política etc.) pelas ou-tras. É claro que a contaminação generalizada é própria de uma situação decrise em que o desaparecimento das referências deixa o campo livre parainjunções contraditórias. Mas, numa situação de mal-estar, as referênciassão apenas evanescentes: são imprecisas e inconstantes, mas existem. E essamobilidade pode produzir inovações e novas implicações dos atores.

Assim, a captação do lúdico (jogo de papéis, jogo de empresas...),do político (mudanças de poder) e mesmo do doméstico (a suposta ex-celência de certas “grifes”) pelo econômico é importação de motivaçõespróprias para as outras esferas e, logo, aumento da variedade e da in-tensidade das motivações com objetivos econômicos. E como se sabe,desde bem antes de FREUD (FOURIER já tinha observado), no adultonão é a repetição mas, ao contrário, a mudança de situações e de escolhade objetos que aguça o prazer.

Cada esfera de atividade tem seu campo próprio, mas é tambémuma dimensão de todas as outras (M. GODALIER). Se esses aspectosimportados de outros domínios aumentam, a mudança de cada umadas esferas crescerá paralelamente aos prazeres obtidos, principalmen-te por aqueles agentes que são felizmente tocados por “uma certa anor-malidade” (J. MC DOUGALL).

Todas essas mudanças disseminadas no emprego do tempo, do es-paço, das coisas, das idéias, dos valores, dos prazeres... colocam o pro-blema do papel desempenhado pelas identificações.

O papel das identificaçõesO papel das identificaçõesO papel das identificaçõesO papel das identificaçõesO papel das identificações

Um pouco paradoxalmente, a conformidade e, ainda mais, o con-formismo dos agentes denotam identidades inacabadas; as identifica-ções são, aí, substitutivas (a vida por procuração) e arcobotantes (semcontrafortes, a personalidade arrisca-se a desmoronar). Em contrapar-tida, o tipo ideal seria aquele de um agente individualizado (capaz deser ele mesmo com os outros, diz WININICOTT), cujas identificaçõesseriam, no início, por sua superação, constitutivas da personalidade e,em seguida, unicamente confirmadoras da identidade.

Paralelamente, podemos contrapor, idealmente, as sociedades fun-dadas sobre a relação fusional (Gemeinschaft), cujos agentes perdemsuas identidades quando se encontram em um outro agrupamento, eas sociedades baseadas na troca (com suas diversas variantes fundan-do a Gesellschaft) onde os agentes sublimam os vínculos familiares em

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vínculos societários (TONNIES revisto por FREUD). Mas, entre esses tiposextremos e opostos, situam-se todos os barrocos das sociedades concretas.

O atual mal-estar na identificação não seria proveniente da passa-gem por um barroco (inédito desde o período que precede o rapto dasSabinas): a constituição tateante de um vínculo social por uma “socieda-de de irmãos” sem referentes paternais plausíveis? Poderíamos sugerir aseguinte seqüência:

- os vínculos sociais anteriores (constituídos evidentemente pelaemancipação e superação dos vínculos familiares) se revelam ca-ducos e decepcionantes;

- tentam-se, então, retornos aos vínculos familiares verticais ou aosdos sósias desses, mas constata-se ser isso impossível ou de novodecepcionante;

- experimentam-se, então, tipos de vínculos laterais (de tipo irmãos-irmãs) ou colaterais (de tipo tios-sobrinhos) que propõem identifi-cações menos estruturantes que as precedentes;

- isso explicaria a diversidade das experimentações e também a predo-minância atual da Métis e dos semióticos sobre o simbólico e o Logos;

- a dificuldade está, então, em transformar as identificações laterais,imprecisas e transitórias, em identificações hierárquicas, representadase transicionais.13

Fundamentalmente, é um problema de escrita que obriga a ler o pro-grama e a obedecê-lo, ao mesmo tempo que se escreve. Essa é, sem dúvida,a fonte da atenção atual para as autopoieses e as auto-organizações (VARE-LA, DUPUY, por exemplo). A autocriação da sociedade é recriação de seusagentes. E o que permite essa simultaneidade está talvez indicado no divãou nos hospitais psiquiátricos, por uma dicotomia bem marcada entre osdistúrbios decorrentes da predominância das referências ao ideal do eu so-bre as referências ao censor e os distúrbios estritamente inversos. Se se qui-ser caricaturar: narcisismo atual contra neurose obsessiva de outrora.

Mas há formas de narcisismo bem mais numerosas do que aquelasjá mencionadas aqui. Salientemos uma que poderá ser encontrada comotraço de personalidade nos inovadores de que tratamos: um ideal do eunascido quase sem pai, onde o censor só interviria para condenar osdistanciamentos entre a realização e o eu ideal. Desse modo, é o fracassoque sanciona e não a falta que culpabiliza. Resta ainda ligar o ideal do eua uma esfera de realização (mas, como vimos, as esferas atualmente seinterpenetram) e a uma figura representativa (mas a única figura grati-ficante de identificação de prospeção é a do irmão mais velho, com o

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qual se está, apesar de tudo, em concorrência). Chegando à encruzilha-da, a “estrutura dissipativa” de orientação se tornaria: ser melhor sucedi-do, diferentemente e alhures que o referido irmão mais velho. Daí a mul-tiplicidade, a diversidade e a flutuação das experimentações de saída dacrise social... e das intermináveis adolescências. Mas também o aumentodo prazer obtido na substituição rápida das identificações com as figurasmúltiplas e fugazes do referente fraternal, experimentações e prazer quesó se estabilizam quando se acentua o afastamento e se afirma a diferençaem relação a esse referente. Enquanto isso, o mal-estar subsiste, tanto paraos autores das mudanças, quanto para aqueles que o desemprego, a idadeou a condição de estrangeiro colocam em situação de espectadores ou devítimas: nenhum deles pode antever o resultado.

Algumas conseqüênciasAlgumas conseqüênciasAlgumas conseqüênciasAlgumas conseqüênciasAlgumas conseqüências

1- O tipo de conseqüência mais marcante é o das apropriações: desde1968 há apropriação pelos poderes políticos sucessivos de projetos (mo-dernizar a universidade) e mesmo, às vezes, das utopias (“mudar a vida”,em 1981). Mas também apropriação da tendência lúdica pela empresa epela Bolsa, das motivações de poder pelos agenciadores de OPA, das co-ordenações pelos sindicatos etc. Essas apropriações podem, aliás, permi-tir a certos herdeiros enfeitar o cadáver sob o disfarce da renovação.

2- Mais interessantes são as criações de novas redes e de novas re-gras de jogo. Já mencionamos o desempenho das economias paralelas emesmo mafiosas na Itália, na Colômbia ou alhures. Poder-se-ia tambémtomar o exemplo da organização progressiva dos movimentos ecologis-tas ou o da proliferação das PME (pequenas e médias empresas). Maissurpreendente ainda seria o caso da ligação dos movimentos carismáti-cos com redes nacionais e mesmo internacionais que tendem a escaparda autoridade episcopal e mesmo pontifical.

Há, pois, no fim de contas, reconstituições múltiplas do tecido soci-al: passa-se das ilhas ao arquipélago. Mas essas reconstituições perma-necem parciais e, por isso, podem entrar em conflito, como na tectônicaas placas entram em fricção, em oposição ou em encavalamento: daíalguns tremores da sociedade em torno de véus, de bandeiras, de fetosou de liberdade de viajar. (O que prova, de passagem, que apesar deHEGEL, da maioria dos marxistas, de Daniel BELL e de FUKUYAMA, ofim da história só concerne a cada indivíduo).

Esses conflitos e fricções permitem acertos de contas e seleção dasexperimentações de inovações e de seus atores, outsiders ou reciclados,com a eliminação das organizações, dos indivíduos e da identificações

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obsoletas ou impossíveis. E aquele que sobrevive restabelece as diferen-ças evidentes e banais, por um momento denegadas (entre os sexos, asgerações, os tempos, os espaços, as culturas etc.). Daí o reaparecimento dereferências e de inteligibilidade das ramificações, mesmo se as referênci-as são modificadas e as ramificações deslocadas.

Talvez, como alguns dizem, mesmo essas autopoieses contribuampara aumentar a variedade, ao mesmo tempo agradável e funcional, ea complexidade progressiva do sistema. E a que corresponderia, sob aaparente homogeneização da aparência dos indivíduos, um aumentoda variedade e da complexidade das identidades (e pois das identifi-cações constitutivas e confirmativas)? Adaptabilidade e criatividadedos autores evidenciariam isso, pois se destinam a prepará-los para asmetamorfoses do sistema.

3- Mas sabe-se também que o vínculo social e, portanto, suas re-constituições passam pela invenção da linguagem e pela sublimação ho-rizontal da afetividade (E. ENRIQUEZ, principalmente). Ora, todo mun-do notou “o silêncio dos intelectuais” (os conhecidos) no auge da crise(1981-1983) e mesmo no momento em que a retomada econômica e asmudanças sociais tornavam-se mais patentes. Isso impõe a questão: “Seráque Ulisses falava quando as sereias cantavam?”

Se a estratégia adequada para esse tempo é o polimorfismo obstina-damente orientado, encontramo-nos, necessariamente, sobre as superfí-cies marítimas de águas inquietas onde a linguagem tanto pode se des-monetarizar (IVG, pedidores de emprego, equívocos no lugar das palavrascorretas) como se tornar canto de apelo ao desvario (pensemos na voz dosdiscursos hitlerianos). Os signos (o sol, a estrela polar) são, então, as úni-cas referências ainda fidedignas. Por isso, para retomar uma distinção apro-fundada por Julia KRISTEVA, as experimentações de inovação social sãotambém um bordejar contra o vento para ascender do semiótico ao sim-bólico. O barroco societário atual é, talvez, um momento dessa ascensão,uma escala num porto cosmopolita onde a única língua possível seria umpidgin das palavras, das normas e das formas, esperando a nova fundaçãode uma Focéia em Massalia e a volta do Logos grego.

Quanto às metamorfoses contemporâneas da “transcendência ho-rizontal” em direção às outras que CAMUS projetava, todo mundosabe passar pelas identificações libidinais. Até mesmo os novos em-presários que experimentam todas as formas de sedução para obter deseus especialistas e executivos carreiristas-oportunistas (e mesmo, ama-nhã, de seus “técnicos de superfície”?) a adesão que eles sabem neces-sária à coerência funcional.

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De qualquer modo, nas diferentes esferas do social, do econômicoao sagrado, a receita das identificações complementares novas (e, logo,das coesões) não parece ainda inventada. É por isso que, no mal-estar, osnovos atores hesitam entre a perenização imaginária, no adulto que elesse tornariam, da criança-rei perversa que eles foram e o exercício de umdomínio efetivo que lhes permitiria manobrar realmente os peões no seutempo social. Estaria a saída, então, na formação de ninho familiar, si-multaneamente, centro de denegação da incerteza para uns e refúgio tem-porário contra os riscos de suas inovações, para outros?

Mas, “não conjeturemos à toa sobre as coisas supremas” (HERÁCLITOainda, naturalmente).

Identificações experimentais e inovações sociais

Notas1 Traduzido de: NICOLAÏ, André. “Identifications expérimentales et innovations soci-

ales”. Connexions, 55, 1990-1, p. 61-78, por Eliana de Moura Castro.2 NAP: Neuilly, Auteuil, Passy. Tende a substituir: BC-BG (bon-chic bon-genre). Essa

moda de aparência de NAP reintroduz a diferença de vestuário entre os sexos, assimcomo os signos da diferença pelo dinheiro.

3 “Imago: estado do inseto que chegou ao seu completo desenvolvimento e à capaci-dade de reproduzir”, Petit Larousse, edição de 1963. Já o estado de ninfa faz lembraro que FREUD diz do “bem-estar morno” que provoca a persistência de uma situa-ção desejada inicialmente pela pulsão.

4 Os períodos de estabilidade (inclusive crescimento harmonioso) oficializam a predo-minância do Todo (Holismo) sobre as Partes (os agentes). As épocas de crise ereconstrução valorizam, ao contrário, os atores (Individualismo). Temos assim umaalternância de interpretações. O problema: em época de “destruição criativa”, ondese escondem os “vínculos sociais”?

5 Michel ROCARD acaba de propor o “sempre melhor”: mudança de máscara oumudança de projeto?

6 O esquilo aparecia nas armas do Superintendente, com a divisa: “Onde ele nãosubirá?”. Mais dura foi a queda.

7 “L’économie des conventions”. Revue Economique, 40, 2 de março, 1989. [OPA: OffrePublique d’Achat = oferta pública de compra. N.T.].

8 C. W. MILLS (L’imagination sociologique) propunha para as ciências do homem “ar-ticular história e biografias, sociedade e personalidades”.

9 MARX, “Zur Kritik...” In: M. RUBEL. Oeuvres: Économie. Gallimard, Pléiade. Tomo 1,p. 239. MARX acrescenta: É a superioridade dos yankees sobre os ingleses”. Hoje eleteria, sem dúvida, escrito: “dos japoneses sobre os yankees”.

10 Autrement, n. 29, 1981.

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

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11 Os jovens executivos estão submetidos a duas injunções contraditórias: por umlado, a oposição entre a moral do trabalho e as incitações da sociedade de consumo(D. BELL), por outro lado, a oposição entre a incitação à fidelidade à empresa e a daidealização do sucesso pecuniário individual. Quanto aos jovens empresários: seantes o fundador “não tinha filhos”, agora são os novatos que são levados a nãoprecisarem do pai.

12 Cf. Uma pesquisa de MCS de setembro de 1988: morosidade, mobilidade, oportu-nismo.

13 Uma mudança social, para TARDE, é “uma verdadeira dissociação de pais e filhos[...] uma não-imitação de exemplos paternais”.

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Intervenção psicossociológicaIntervenção psicossociológicaIntervenção psicossociológicaIntervenção psicossociológicaIntervenção psicossociológicaParte III

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É, sem dúvida, instigante a tarefa de tomar o tema da “IntervençãoPsicossociológica” e trazê-lo a público através de textos de alguns deseus principais pensadores. Pelo que eles mesmos nos contam, essa pare-ce ter sido, também, uma das características marcantes de suas própriashistórias: estimular a crítica, lançar um olhar novo sobre o mundo, semvê-lo como algo já dado, realizar práticas nas quais pesquisa e ação nãosão dois pólos que se interligam, mas a construção de ferramentas deruptura com o cotidiano.

Assim, os textos de J. DUBOST (“Notas sobre a origem e a evolução deuma prática de intervenção psicossociológica”, 1980; “A respeito das ori-gens técnicas da intervenção psicossociológica e algumas questões atuais”,1987), de A. LÉVY (“Intervenção como processo”, 1980) e de E. ENRIQUEZ(“A respeito da formação e da intervenção psicossociológicas”, 1976) tra-zem-nos a instituição da intervenção em faces e recortes polêmicos, criandoem nós uma vontade de entrar no debate, contribuir, trazer também nossashistórias e implicações com o “Movimento Institucionalista”.

As décadas de 60/70:As décadas de 60/70:As décadas de 60/70:As décadas de 60/70:As décadas de 60/70:Movimentos sociais e produção teóricaMovimentos sociais e produção teóricaMovimentos sociais e produção teóricaMovimentos sociais e produção teóricaMovimentos sociais e produção teórica

A Europa de pós-guerra defronta-se com experiências que convo-cam um repensar sócio-político, desembocando, nas décadas de 60/70,em uma espécie de “crise das instituições”.

É bem verdade, entretanto, que essa “crise” também eclode em vá-rios países e que, em cada lugar, ela tomará formas próprias.

No Brasil, em fins de 50/início de 60, vivíamos experiências de edu-cação popular que colocavam no centro da cena a instituição da Pedago-gia, instrumentalizada então, na maioria das vezes, a partir da divisãonão-saber x saber. Poderíamos dizer, por exemplo, que o trabalho dePaulo FREIRE e alguns desenvolvidos, mais tarde, pelas Comunidades

INTERVENÇÃO PSICOSSOCIOLÓGICA

Regina D. Benevides de Barros

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

Eclesiais de Base, inserem-se, desde essa época, no que viríamos a deno-minar “Movimento Institucionalista”, pois procuravam construir umateoria-prática desnaturalizadora, crítica das experiências instituídas.

Por aí, fica claro que “Movimento Institucionalista”, quando toma-do em seu sentido amplo, designa a crítica à naturalização das institui-ções, questionamento de seus modos de instrumentalização.

Em meados de 60, o país, convulsionado pelo golpe militar, vive aextirpação de muitas das experiências “alternativas” de organização so-cial e política.

No campo da Psicologia, presenciamos, de um lado, uma entradamaciça de trabalhos com influência da Psicologia Social norte-americana(de caráter adaptacionista) e, por outro, éramos tocados pelo pensamentolatino-americano – em função não só da proximidade geográfica mas,principalmente, por causa da situação política e social de repressão im-pingida tanto ao Brasil, como à Argentina, ao Chile e ao Uruguai.

O mês de maio de 68 francês, analisador histórico do status quo vigente,do conservadorismo universitário, da burocracia partidária, colocou emcheque, de modo generalizado, as experiências que vinham sendo desen-volvidas desde o pós-guerra e que apenas timidamente caminhavam.

Os fins do anos 60/década de 70 serão, então, palco de uma produ-ção expressiva, na interseção dos campos filosófico, político e social. Asinstituições são analisadas, uma certa psicossociologia se faz interven-ção, abandonando seus laços experimental-adaptacionistas.

Vemos, então, chegar também até nós o eco dessas produções, atra-vés do contato com os “institucionalistas” franceses, fossem mais liga-dos à Psicossociologia (M. PAGES, J. DUBOST, A. LÉVY, E. ENRIQUEZ),à Socioanálise (R. LOURAU, G. LAPASSADE, R. HESS, J. ARDOINO)ou, ainda, à recente corrente que então se desenvolvia – a esquizoanálise(F. GUATTARI e G. DELEUZE).

Ainda que marcados por grandes diferenças, havia certos pontosque ligavam os “institucionalistas”: a critica relativa à separação investi-gação-intervenção, o trabalho com grupos e comunidades como disposi-tivos-alvo privilegiados, a recusa a uma psicologização dos conflitos so-ciais e a uma Sociologia abstrata, a análise (no sentido do olhar/escutaque decompõe) como modo básico de funcionamento.

No Brasil, o contato com as correntes francesas institucionalistas se dáem fins dos anos 60/início de 70, de maneira diferenciada e com focos depenetração mais localizados em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.

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Uma história a respeito dos cruzamentos do movimento instituciona-lista com as práticas desenvolvidas no Brasil ainda está por ser feita, mas háalgumas produções importantes que já apontam, de forma mais pontual,para as influências e os efeitos que esses pensamentos aqui exerceram.

O recente trabalho de M. MATA-MACHADO (1992) faz uma histó-ria do que foi e de como está hoje o desenvolvimento da corrente psicos-sociológica em Belo Horizonte.

É marcante, segundo a autora, a influência do pensamento institu-cionalista francês, a partir de 1968, quando se estabelece um convênioentre a UFMG e a Embaixada da França. A entrada se dá, portanto, viaUniversidade e, mais especialmente, através do Curso de Psicologia.

Como ela nos diz: “Em 1968 e 1969, tivemos entre nós, respecti-vamente, os professores Max PAGÈS e André LÉVY. Ambos haviamparticipado, em 1959, da formação da A.R.I.P. (Association pour la Re-cherche et l’Intervention Psycho-sociologiques), que congregou pesqui-sadores práticos (...)”; “(...) sofremos [também a influência] do traba-lho de Georges LAPASSADE, professor que esteve em missão culturalem Belo Horizonte durante três meses em 1972. Junto com René Lou-rau (...), Lapassade (...) havia formulado a teoria da Anáse Institucio-nal, cuja prática foi denominada Socioanálise”. (MATA-MACHADO,1992, p. 2)

O pensamento institucionalista atravessa, segundo M. MATA-MA-CHADO, a história da Psicologia Social no Curso de Psicologia daUFMG. Se no início a orientação era claramente norte-americana, man-tinha, entretanto “uma vertente de articulação entre teoria e prática”MATA-MACHADO, 1992, p. 2).

Em 1967, sob a liderança de Garcia, foi formado o Centro dePsicologia Social Aplicada (CEPSA), voltado à pesquisa e à prá-tica.(...) Atendíamos sobretudo a demandas advindas de mei-os educativos e religiosos (...).

Com PAGES, fomos lançados numa perspectiva rogeriana, coma qual logo rompemos (...). Lévy apresentou-nos, além de seuspróprios escritos, alguns de Enriquez, de Rouchy e, sobretu-do, o texto de Dubost: “Os métodos de intervenção psicossoci-ológica” (...)

Em 1971, iniciou-se o que veio a ser talvez a maior intervençãopsicossociológica da qual o Setor de Psicologia Social, comogrupo, participou: a implantação da Reforma Universitária de1968 em diferentes escolas da UFMG. (MATA-MACHADO,1992, p. 3-4).

Intervenção psicossociológica

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

A chegada de G. LAPASSADE traz influências novas sobre os pro-cessos de intervenção em curso e, a partir de então, por um certo tempo,passou-se “a intervir usando os dispositivos propostos por Lapassade eLourau” (MATA-MACHADO, 1992, p. 4).

Essa perspectiva é, entretanto, segundo a autora, “parcialmente aban-donada, em favor de intervenções com perspectivas mais modestas, menosdesejosas de mudar o mundo (...)” (MATA-MACHADO, 1992, p. 6). Hoje,há alguns projetos em andamento, cujos interlocutores privilegiados sãoA. LÉVY, J. DUBOST e E. ENRIQUEZ.

No Rio de Janeiro, o percurso do pensamento institucionalista tomaoutras formas, ainda que tenha mantido a característica de ter sido difun-dido através do “meio psi”.

Digo isso porque chama a atenção o fato de que, na Europa, o movi-mento institucionalista inclui sociólogos, pedagogos, psiquiatras e psi-cólogos, enquanto que, no Brasil, são primordialmente esses últimos quedesenvolvem tais propostas.

O pensamento pichoniano, trazido pelos psicanalistas argentinos noinício dos anos 70, aliado a algumas críticas às instituições de formação emPsicanálise, fez com que, no Rio de Janeiro, o movimento institucionalistativesse um viés grupalista que, mais tarde, absorveu a influência de algunsteóricos vindos da França (R. LOURAU, G. LAPASSADE, G. MENDEL).

Encontramos, assim, em fins de 70/início de 80, a fundação doIBRAPSI – Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e instituições – queinclui a Análise Institucional como uma das suas áreas de formação. Aomesmo tempo, o tema começa a ser ministrado em disciplinas de algu-mas universidades.

Na década de 80, outros centros de estudos e pesquisas se consti-tuem em torno de propostas institucionalistas: o núcleo Psicanálise eAnálise Institucional (1984) e o Centro de Estudos Sociopsicanalíticos(CESOP, 1986).

É também na década de 80, mas estendendo-se até hoje, que umcerto número de intervenções com esses enfoques ganha destaque. Al-gumas são objeto de publicações: Análise Institucional no Brasil (KA-MIKHAGI e SAIDON, 1987), Grupos e instituições em Análise (RODRI-GUES, LEITÃO e BARROS, 1992).

O que se percebe é que, além dos autores já citados, somou-se ainfluência do pensamento de outros (M. FOUCAULT, R. CASTEL, G.DELEUZE, F. GUATTARI, entre outros), construindo-se práticas singu-lares, atentas às características da realidade brasileira.

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Em São Paulo, sente-se também a influência do pensamento grupa-lista argentino que, em alguns casos, encaminhou-se para a formação decentros de estudos, pesquisas e intervenções, incluindo, mais tarde, ascontribuições da socioanálise.

Especialmente através dos trabalhos de S. ROLNIK, difundiram-seos pensamentos de F. GUATTARI e de G. DELEUZE, desembocando emalgumas traduções e publicações, bem como na entrada, na universida-de – PUC/SP –, de obras desses autores. Atualmente, o Núcleo de Estu-dos da Subjetividade, do Curso de Pós-graduação em Psicologia Clínicada PUC/SP é um dos centros que congregam, em São Paulo, algumaspesquisas realizadas sob essa influência.

Mas, se a difusão inicialmente se deu através do eixo Rio de Janei-ro-Belo Horizonte-São Paulo, hoje, o “pensamento institucionalista”, emsuas várias vertentes, já toma contornos bastante diferenciados, tendoincluído outras influências teórico-práticas, diversificado seus modosde intervenção e expandido por outras áreas do Brasil.

Os textos que se seguem trazem dados históricos mas, sobretu-do, a inquietação dos autores frente aos efeitos da intervenção psi-cossociológica, à instituição de formação e à de pesquisa. Sua leiturae reflexão são um convite irrecusável.

Intervenção psicossociológica

Referências bibliográficas

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GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely. Micropolítica. Cartografias do desejo. Petrópo-lis: Vozes, 1986, 327p.

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MATA-MACHADO, Marília N. Intervenção psicossociológica. Belo Horizonte, 1992,22p. (mimeogr.).

RODRIGUES, Heliana B. C. e BARROS, Regina D. B. História do Movimento Insti-tucionalista. A década de 60: seus efeitos no pensamento, nas intervenções e práticassociais. Rio de Janeiro, 1986. (mimeogr.).

RODRIGUES, Heliana B. C., LEITÃO, M. e BARROS, Regina D. B. (orgs). Grupose instituições em Análise. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992.

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

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Os agentes sociais chamados a realizarem práticas novas de pesquisae de ação podem ter o sentimento de que escolhem e inventam, mais oumenos livremente, os princípios e as modalidades de sua intervenção. Pa-rece-me ser verdade que sua atividade comporta uma dimensão criativa,implicando opções e esforços de imaginação e que, em uma determinadasituação, os indivíduos e as diferentes equipes não se comportam de umaforma idêntica. Mas creio, principalmente, que os traços que caracterizamuma prática concreta de intervenção resultam, em primeiro lugar, de variá-veis como:

a- as condições gerais que engendram, em uma determinada socie-dade e em um determinado momento de sua história, as dificulda-des sentidas por um ator social;

b- as condições particulares desse ator que o levam a esperar umresultado positivo da ajuda de um terceiro;

c- a formação, a natureza do “saber-fazer”, o status e a posiçãosocial, além dos desejos de terceiros, aos quais as demandas e asencomendas são endereçadas e, finalmente, a interação entreessas variáveis.

Por mais banais que sejam, essas hipóteses podem guiar uma refle-xão retrospectiva sobre a evolução de nossa prática e de nossas idéias.Limitamo-nos entretanto, aqui, a algumas observações.

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Reflito sobre as primeiras ações de intervenção às quais estivemosassociados, no período que se seguiu à Liberação (éramos diversos mem-bros fundadores da A.R.I.P.,2 hoje estando quase todos na faixa dos cin-qüenta anos, e tendo conhecido o mesmo meio – o das grandes e médiasempresas industriais ou comerciais – e por intermédio do mesmo tipo de

NOTAS SOBRE A ORIGEM E A EVOLUÇÃO DE UMA

PRÁTICA DE INTERVENÇÃO PSICOSSOCIOLÓGICA1

Jean Dubost

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

organismo: os gabinetes privados de engenheiros consultores organiza-cionais, estabelecidos na capital, freqüentemente com a estrutura jurídicade associações. Muitos dentre nós trabalharam, em períodos diferentes,entre 1945 e 1959, nos mesmos organismos3).

O período imediatamente após-guerra foi dominado, evidentemen-te, pelo problema da reconstrução, da recuperação econômica do país epor esperanças de restruturação política, econômica e social; essas espe-ranças tinham sido tecidas durante os anos de ocupação alemã pelosque tinham pertencido à Resistência; esse período foi igualmente domi-nado por conflitos políticos e decepções que não chegaram a prejudicarum certo consenso nacional, uma vontade geral de reconstrução das for-ças e dos meios de produção.

A intensidade das dificuldades alimentares e de habitação, a passa-gem rápida de um período de desemprego a um mercado de trabalhocaracterizado pelo excesso de empregos, inflação, movimentos reivindi-catórios e formas de repressão mobilizadas diante das greves operáriasnão impediam nem o estabelecimento do primeiro plano de moderniza-ção e de aparelhamento nem o desenvolvimento simultâneo da ideologiaracionalizadora – a organização científica do trabalho – e da ideologiaque levava em conta o “fator humano”, a busca de participação, formasde autoridade mais compatíveis com um ideal democrático. A ajuda pro-posta às empresas para acelerar sua reconstrução, inspirada mais oumenos diretamente pelos Estados Unidos (plano MARSHALL, missõesde produtividade, comissões especializadas de organizações interna-cionais nascidas da ONU etc.), comportava, então, tanto contribuiçõesno plano de métodos contábeis, de gestão, de estruturas de direção, quan-to no domínio da “simplificação” do trabalho nas oficinas e escritórios,do recrutamento de pessoal, da formação em habilitações.

Nesse contexto, à imagem de seu homólogo americano e segundoos exemplos dados pelas forças militares engajadas no conflito mundial,o engenheiro sentia a necessidade de associar “especialistas do fator hu-mano” à sua prática de intervenção.

Na Sorbonne, o ensino de Psicologia e de Sociologia é ainda limitadoa dois certificados de licenciatura em filosofia que quase ignoram a Psica-nálise, o Marxismo, o funcionalismo etc.; mas as “aplicações” precedemlargamente o reconhecimento acadêmico das correntes teóricas: criaçãodos primeiros centros de consultas psicopedagógicas, desenvolvimentode novos métodos de psicoterapia, de reeducação, de investigação psi-cológica (técnicas projetivas) e, simultaneamente, ênfase a métodos es-tatísticos, suas aplicações no domínio da economia, da conjuntura, do

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planejamento, da demografia, da gestão etc. Nossos primeiros anos deprofissionalização são divididos entre as atividades de estudos e aplica-ções psicotécnicas – seleção e orientação –, levantamentos de dados comamostras – opinião pública, estudos de mercado –, pesquisas sobre a“moral” civil – do tipo de experimentação de campo –, monografias so-bre empresas industriais – sobretudo sob a égide da UNESCO –, tentati-vas de reeducação de adolescentes em tratamento etc.

Essa irrupção de atividades e ações inovadoras tem por resultado,especialmente, a aquisição de numerosas habilitações e a descoberta detrabalhos da Psicologia Social norte-americana (LEWIN, MORENO e de-pois ROGERS); em seguida, as obras de G. FRIEDMANN fizeram comque se conhecesse as de E. MAYO de ROETHLISBERGER e de DICKSON.Essas atividades e ações provocavam também o desejo de ultrapassar osestudos pontuais e aplicações de técnicas, desenvolvendo uma aborda-gem mais global, no plano das práticas, guiada pela busca de uma con-cepção mais unitária das Ciências Humanas, na qual FREUD e MARXnão seriam nem excluídos um pelo outro nem apenas superpostos.

Em relação a esse último ponto, lembremos, por exemplo, que os psi-quiatras de orientação marxista que suscitaram, na França, a partir dosanos 40, o movimento que iria ser denominado “institucional”, a partir de1952, separam-se em duas tendências, segundo o esforço que fazem paraintegrar a contribuição freudiana – e as práticas psicossociológicas inspi-radas sobretudo por MORENO – ou denunciá-las como fortalecedoras detecnologias capitalistas de manipulação; se as tentativas de Reich são, nessaépoca, pouco conhecidas na França, o movimento surrealista se encarregalogo (cf. André BRETON, Les Vases communicants) de familiarizar uma parteda intelligentsia com a problemática freudo-marxista, vista particularmen-te como a complementaridade necessária entre a liberação individual e aliberação coletiva; a relação crítica e complexa que G. POLITZER desen-volveu com a Psicanálise dos anos trinta constitui uma referência viva nasdiscussões da época; é o momento também no qual G. PALMADE abordao problema das condições teóricas de uma concepção unitária das ciênci-as do homem através da busca de conceitos transespecíficos no sentido deBACHELARD (essa tese só seria publicada dez anos depois de sua defe-sa, em 1961, pela Dunod); é também a época em que LAGACHE escreveL’Unité de la psychologie etc.

O espaço microcultural no qual uma parte de nós se forma é, então,marcado por esses dois “faróis” (como diz BRETON): MARX e FREUD;o movimento trotskista, onde milito durante esse período, é ele pró-prio dividido entre tendências “defensistas da URSS” – reformistas com

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

relação ao stalinismo – e “derrotistas” – revolucionárias. Entre essasúltimas, o grupo “Socialismo ou Barbárie”, dirigido por C. CASTO-RIADIS4 e Cl. LEFORT, separa-se da IVa Internacional, em 1949, em fun-ção do problema da burocracia operária. Igualmente um outro, no qualse encontra B. Perret; mas o fato de que surrealistas tenham se refugiadonos Estados Unidos, durante a ocupação, enfraqueceu a influência dogrupo dirigido por BRETON. O debate ideológico que domina em gran-de extensão a França é muito marcado pela influência do PCF e peladefesa incondicional da URSS, o que dificulta que esses grupos e os liga-dos mais estreitamente ao anarquismo tenham audiência; mas parece-mecerto que uma parte do projeto psicossociológico foi influenciada, desdesua origem, por essas correntes e idéias fourieristas que as precedem.

Uma missão americana de pesquisa coordenada por PARSONSdedicou-se a estudar o fenômeno do nazismo na Alemanha imedia-tamente após-guerra. Antes de sua volta aos Estados Unidos, aC.E.G.O.S.5 retém, em 1947-1948, um dos colaboradores dessa equi-pe, R. WILLIAMS, sociólogo industrial que conduziu duas interven-ções junto a empresas francesas.

As intervenções de WILLIAMS inovam em matéria de métodos depesquisa (por exemplo, utilizando um tipo de entrevista inspirada emC. ROGERS e a postura não-diretiva) ou formas de conceituação (recor-rendo à linguagem sistêmica), mas elas permanecem muito próximas,na relação que elas estabelecem com o cliente, das práticas de consultaem organização: o essencial da prestação de serviço se refere a um traba-lho de estudo com função de diagnóstico (quais são os pontos fortes e ospontos fracos da firma enquanto organização social?; como esses po-dem ser explicados?) e prognóstico (o que poderia acontecer a médio elongo prazo se não forem tomadas novas medidas?); as consultas nasquais o estudo desemboca são apresentadas de maneira esquemáticaem relatório escrito; servem, com o restante do relatório, de apoio àsreuniões-discussões propostas pelo consultor à Direção, esse procuran-do encorajar aquela a encontrar modalidades operatórias que traduziri-am as orientações de solução preconizadas. Mas o tempo gasto nessasreuniões representa apenas uma pequena parte do tempo total do traba-lho e o sociólogo não tenta obter a divulgação de seu relatório a outrosleitores além dos que a própria direção espontaneamente propõe. Entre-tanto, a idéia de que as ações de pesquisas de campo têm por si mesmasum efeito positivo sobre o estado psicossocial, sobre a “moral” da em-presa, e que esse efeito será reforçado se as decisões tomadas considera-rem suficientemente os elementos expressos pelo pessoal entrevistado,é freqüentemente colocada pelo sociólogo consultor.

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Paralelamente a essas intervenções conduzidas em empresas de ta-manho médio (200 ou 300 pessoas), as que são conduzidas por equipesfrancesas, em empresas maiores, são menos inovadoras no plano dastécnicas de entrevista e de elaboração de resultados; elas tendem mesmoa se restringir a uma “consulta de pessoal” do tipo levantamento de opi-niões sobre um certo número de temas que parecem problemáticos e im-portantes; porém, elas colocam, de início, uma exigência nova: os repre-sentantes de pessoal no Comitê de fábrica (ou uma comissão ad hoc dedelegados sindicais) devem ser ouvidos na escolha de métodos de estu-do, como por exemplo na elaboração do questionário de pesquisa, e elesdevem ter acesso aos resultados, da mesma forma que a direção. As hesi-tações ou conflitos que são expressos nessa ocasião fazem com que asreuniões preparatórias do estudo propriamente dito ou que acompanhamas diferentes etapas (especialmente as de controle do respeito aos princí-pios negociados inicialmente) representem uma parte do orçamento-tem-po e ainda um momento importante do processo de consulta. Ao contrá-rio, as reuniões que se seguem à apresentação dos resultados não sãonumerosas e os agentes do estudo não estão mais presentes; a capacidadeda Direção de escutar as críticas expressas aparece como uma das variá-veis importantes nessa fase.

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Esses primeiros casos (conhecemos pessoalmente oito entre 1946 e1951 ou 1952) aparecem, em última análise, sobretudo como uma aplica-ção de uma técnica de levantamento de dados mais ou menos estrutura-da, junto a pessoal assalariado de uma empresa. À medida que se de-senvolvem certas formas de trabalho com perspectiva de formação –desde os “círculos de aperfeiçoamento” até os primeiros seminários dedirigentes, passando pelas reformulações européias do T.W.I. ou dosmétodos de educação popular do tipo “treinamento mental” –, a idéiade articular a conduta das operações de pesquisa a um trabalho de con-fronto e de reflexão em grupo, apoiando-se nos resultados, parece cadavez mais interessante.

Da mesma forma, uma nova etapa é vencida quando as técnicas depesquisa psicossocial, aplicadas ao estudo de opiniões ou de escalas deatitude, se abrem a uma abordagem mais clínica, facilitada pelo desen-volvimento de registros em fitas magnéticas, que permitem uma transcri-ção exaustiva de entrevistas aprofundadas – primeiro individuais, de-pois eventualmente coletivas –, e pela passagem da simples codificaçãode respostas a questões abertas a uma análise de conteúdo bem maisapurada dos discursos registrados.

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

As mudanças na concepção de intervenção, induzidas pela aquisi-ção de novos saberes práticos, dão mais ênfase ao trabalho de confrontoque acompanha o feedback dos resultados do que à expressão de opiniões,à análise estatística dessas e à elaboração do diagnóstico dos problemas defuncionamento psicossocial, feita pelos encarregados da pesquisa. Por outrolado, técnicas de entrevista e animação de reuniões-discussões, inspiradaspelas práticas de aconselhamento, levam a não se considerar apenas oconteúdo manifesto das opiniões, queixas e reivindicações relativas adados fatuais (condições de trabalho, características da pirâmide hierár-quica e da estrutura de qualificações, modos de remuneração, pirâmidede idade, grupos de mais velhos, absenteísmo, turn-over, higiene, segu-rança etc.), mas levam também ao interesse pelo conteúdo latente, pelossentimentos coletivos, pela maneira como certos acontecimentos da em-presa foram vividos por diferentes categorias do pessoal, cujos conflitos,algumas vezes antigos, ainda marcam representações e atitudes para coma direção, as relações intercategorias e as microculturas da organização.

Enfim, e essa não sendo a conseqüência menos importante, a pas-sagem de instrumentos de pesquisa com perspectiva métrica – corres-pondendo ao método de desempenhos psicotécnicos –, relacionados auma metodologia experimentalista ou diferencialista, para uma orien-tação mais clínica, provocou a transformação da representação dos pa-péis do psicossociólogo.

De perito ou agente ligado aos promotores do estudo – engenheiro-consultor –, ou aos que decidem – Direção Geral, Direção de Pessoal –, opsicossociólogo procura se tornar consultor da organização enquantouma unidade; retomando as palavras usuais do consultor organizacio-nal, que fala sobre seu campo e suas intervenções, e diferenciando-se pormeio do adjetivo psicossociológico, ele estabelece uma ruptura com o papeldo perito e procura destacar sua especificidade. Ele faz da relação deconsulta um problema em si, um objeto de trabalho, e tenta inventar, nointerior desse quadro de atitudes, os papéis que permitiriam asseguraruma função de ajuda à maneira de um catalizador.

Em outros termos, ele se pergunta se os bloqueios, as disfunções, ascrises, as dificuldades que estão na origem da demanda que lhe é endere-çada são devidos a uma recusa mais ou menos consciente (em particularda Direção ou dos quadros elevados) em ver quais são os problemas, suanatureza real, em pesquisar verdadeiramente como se poderia resolvê-los, de pagar o preço por sua solução. Ajudando todas as pessoas, quehabitualmente não têm a possibilidade de falar, a se expressarem,favorecendo de maneira suficientemente progressiva a circulação das

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informações e os confrontos, isto é, criando novas estruturas de comu-nicação e novas formas de trabalhar os problemas, à medida que essessão identificados, o psicossociólogo espera aumentar a capacidade doconjunto de reconhecer a origem de certas dificuldades, de perceber di-reções de solução, de ver com melhor conhecimento de causa quanto seestá decidido a investir e a pagar o preço por um funcionamento melhor,sem nunca ocupar o lugar dos atores implicados, sem dar conselho.

Nessa perspectiva, o psicossociólogo tende a separar seu papel da-quele do engenheiro, do especialista em uma técnica de produção, gestãoou organização. Concebendo-se a si próprio como um agente que facilitaa regulação da firma através de uma ação sobre as comunicações, elerecoloca os aspectos técnicos como dependentes da capacidade de todose não mais de um subconjunto interno ou externo; de fato, ele própriocontribui, sem dúvida, mesmo desejando o contrário, para separar a esfe-ra das atividades da organização da esfera das comunicações sociais edas relações humanas.

Querendo colocar sua relação de consultor em nível global e nãoapenas no plano de uma instância de direção, isto é, considerando aempresa sobretudo como um sistema social unitário, ele exerce uma pres-são que, se aceita, dá efetivamente a palavra a categorias que não a exer-cem na vida cotidiana; ele dá força para que sejam escutadas e considera-das as dimensões sócio-emocionais e os interesses não reconhecidos; elecrê que, permitindo a expressão do reprimido, ajuda as categorias vítimasda repressão; de fato, mais tarde, ele descobrirá ainda que essa expressãoe o trabalho que a acompanha apenas excepcionalmente conduzem amudanças de estrutura e que, mesmo nesse caso, as mais altas instânciasconservam seu poder intacto e que a estrutura da organização, além dosarranjos menores concedidos, acaba totalmente reforçada.

Porém, nos anos cinqüenta e no início dos anos sessenta, estávamossobretudo preocupados em fazer o público reticente reconhecer a impor-tância dos fenômenos afetivos coletivos, em especial dos inconscientes, anecessidade de uma evolução de concepções e de formas de autoridade,os sistemas de comunicação na empresa, os processos de preparação etomada de decisões; a idéia de que a intervenção, inscrevendo-se narelação de consulta – na qual os psicossociólogos intervêm como agen-tes de facilitação e catalizadores de fenômenos de tomada de consciên-cia –, constituía uma situação de descoberta e de aprendizagem, não nosimpedia de nos sentir comprometidos com uma espécie de guerra de cul-turas onde se confrontavam diferentes modelos de organização, que re-cortavam mais ou menos amplamente os conflitos sociais globais.

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Além disso, as formas pelas quais as correntes políticas que falamem nome do Marxismo denunciam toda ação psicossociológica como anti-operária são tão radicais e violentas que não facilitam um verdadeirotrabalho de crítica interna. Tenho a impressão de que, nessa época, acei-tamos considerar que o significado político de nosso trabalho era refor-mista, já que tendia a atrasar o momento de manifestação de um conflitoaberto, mais do que acelerar tal processo; mas pensamos que os proble-mas sobre os quais trabalhamos se colocam também nos regimes nãocapitalistas; que a passagem ao socialismo – para os que são antigosmilitantes decepcionados com a estrutura e o funcionamento das organi-zações operárias, como para os que mantêm um engajamento político ousindical – não implica apenas na abolição da propriedade privada e naplanificação centralizada, mas também em uma transformação culturalprofunda; que essa transformação das relações sociais em direção à ver-dadeira democracia e à liberdade passa também por uma evolução daspessoas, das formas de autoridade, das estruturas organizacionais e quenão é cedo demais para uma reflexão e experiências sobre esse tema,mesmo se as organizações do movimento operário se recusam a tomar ainiciativa no que lhes diz respeito.

Da mesma forma, os limites das ações de intervenção, que algumasvezes demoram a ser identificados e que em outros casos surgem subita-mente, são mais relacionados aos dados locais – e/ou à natureza doregime capitalista – do que ao próprio princípio da tentativa.

Os anos sessentaOs anos sessentaOs anos sessentaOs anos sessentaOs anos sessenta

No momento de criação da A.R.I.P. (1959), sua equipe agrupava es-sencialmente dois grupos de práticos, ambos preocupados em criar umaestrutura de trabalho que permitisse realizar diversos projetos sem aslimitações conhecidas anteriormente. Uma dessas equipes saía do orga-nismo de consulta onde ela trabalhava em ligação estreita com engenhei-ros organizacionais. A outra continuava a realizar, em uma empresa na-cional, atividades de formação psicossocial no nível de dirigentes eintervenções em unidades regionais.

Mas a organização e a animação de estágios do tipo Grupos de Evo-lução, utilizando os métodos derivados do Grupo T de Bethel, do psico-drama analítico etc., não poderiam ter lugar no interior de uma empresanem ser tolerados em um organismo cuja vocação continuava a ser aorganização científica do trabalho.

O caráter clínico do novo grupo, então, era bem mais claramente mar-cado pelas atividades que ele iria desenvolver. No momento da criação, a

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proporção de membros que tinham buscado uma cura analítica pessoalou tinham-na já terminado, era de um terço; dez anos depois, a proporçãoera aproximadamente de nove décimos; a metade já era, ou iria finalmen-te se tornar, terapeutas ou analistas.

A orientação não diretiva, de inspiração rogeriana, dominou os pri-meiros anos de funcionamento, desde 1959 (data do primeiro semináriode longa duração), malgrado a influência já sensível da Psicanálise –incluindo as abordagens britânicas introduzidas desde o primeiro anopela presença de L. HERBERT, antigo membro do Tavistock e primeiro tra-dutor de BION na França –, até 1966 (marcado pela vinda de C. ROGERS àFrança e a descoberta (ou a confirmação) da distância nos separandodesse autor, tanto no plano teórico e ideológico quanto prático).6

No começo dos anos sessenta, uma longa intervenção em uma empre-sa implanta, se podemos dizê-lo, uma estrutura de análise de grupo no seiode um subconjunto da sociedade; o registro de sessões é feito num progra-ma de pesquisas que permanece dividido entre as perspectivas experimen-talista e clínica: a despeito de numerosas reuniões de trabalho que balizamtodo o processo, reunindo às vezes toda a equipe, outras vezes apenas trêspsicossociólogos, atuando diretamente no campo, esse esforço produziráapenas resultados parciais (cf. sobretudo as publicações de Max PAGES ede J.-C. ROUCHY).7 Paralelamente, trabalhos mais próximos de uma orien-tação sócio-pedagógica são conduzidos por outros membros da equipe: que-remos dizer que, nesses, a referência a uma pedagogia ativa e ao lugar ocu-pado pela animação dos grupos, feita dentro de uma perspectiva de estudode problemas, ou mesmo com um ponto de vista adaptativo mais clara-mente afirmado, reduz-se ao trabalho de perlaboração de fenômenos afeti-vos coletivos e, neles, tenta-se trabalhar na articulação do psicossociológico,do sócio-técnico e mesmo do econômico.

A organização e a condução de seminários representa, durante todoesse período, e ainda agora, a metade das atividades da A.R.I.P. Ao mes-mo tempo em que os estágios se diversificam em direção a questões depedagogia, de formação de adultos, de metodologia psicossocial, de socio-logia das organizações, algumas vezes mesmo de introdução à econo-mia, os grupos de evolução tendem a aumentar sua duração e a priorizar,em lugar de fórmulas intensivas concentradas em cinco ou dez dias, acontinuidade no tempo; alguns membros ficam completamente ocupadoscom análises (grupos semanais de psicodrama, grupos abertos de análiseetc.). Os seminários derivados do Grupo T e cada vez mais marcados pelaabordagem psicanalítica tornam-se objeto de discussões sérias e de diver-sas publicações. Essa evolução está ligada também à da clientela desses

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estágios incluindo cada vez mais uma proporção maior de professores,de trabalhadores sociais, de padres e religiosos, de atendentes, de psiqui-atras e de psicoterapeutas.

Ao mesmo tempo, embora o número de intervenções de longa du-ração permaneça sempre reduzido, a demanda se estende a associações,movimentos educativos, institutos religiosos e hospitais psiquiátricos.8

Isso quer dizer que as demandas provenientes de meios industriais dimi-nuem, mesmo quando a freqüência a estágios pelos diretores permanecerelativamente estável. Entretanto, os anos 60 conduzem uma parte daequipe a intervir no estrangeiro, junto a organizações com função econô-mica; é uma intervenção no México, junto a um Centro de Produtividade,em 1961, que inova a metodologia que será a da intervenção em Geigy-França; a integração, na equipe, de estrangeiros francofones (MauriceJEANNET na Suíça, Paul NINANE na Bélgica) está ligada a atividadesem empresas desses países; durante vários anos, diversos membros daA.R.I.P. intervirão na Itália (sobretudo na Fundação Agnelli) e ajudarãona constituição de uma associação de psicossociólogos italianos com osquais a colaboração prossegue.

É sobretudo na França, então, que o trabalho em meio industrialacusa uma redução contínua. É certo que umas tantas razões podemexplicar o fenômeno: as opções tomadas pela equipe (sua orientaçãomais clínica, sua atitude crítica com relação à escola lewiniana e pós-lewiniana: mudança planejada, desenvolvimento organizacional); suaambivalência ou seu ceticismo com relação a demandas susceptíveisde provir desses meios (que se traduzirá depois de 1968 inclusive nodomínio da formação permanente); sua recusa em fazer pesquisas demercado; a participação de um número crescente de membros da equi-pe no ensino universitário ou na pesquisa, o que reduz o potencial deintervenção do grupo etc. Mas creio que é necessário evocar tam-bém, para explicá-lo, o despontar do clima de consenso nacionalque marcou o período de reconstrução após-guerra e, de maneiraainda mais geral, as condições ideológicas próprias da França; aguerra da Algéria, por exemplo, o fato de que certas bases ideológi-cas discerníveis na constituição da própria disciplina psicossocialse articulavam às do movimento estudantil que iria explodir em 1968(assim, a tendência que iria colocar a maioria no seio da U.N.E.F.por volta de 1965, em Paris, denomina-se “psicossociológica”) ouàs de certos meios intelectuais (cf. os últimos anos da revista Socia-lisme ou Barbarie, os números especiais de Arguments sobre a Auto-gestão, Psicossociologia e Política etc.).

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Como tantos outros, vivemos os acontecimentos de maio como uma“intervenção”, simultaneamente política e cultural, de uma audácia espan-tosa, que dava uma direção totalmente imprevista, desproporcional a tudo oque poderíamos ter esperado desde a Liberação, a todos os tipos de temaspresentes de maneira mais ou menos explícita no projeto psicossociológico e,como muitos outros, experimentamos a desilusão de constatar que o que nosparecia ser bem mais que uma revolta cultural, a despeito de sua repercussãono conjunto do país, não desembocou no político, que a “Comuna Estudan-til” (MORIN) ficou sendo uma “revolução antecipada” (CASTORIADIS),um “movimento revolucionário sem revolução” (TOURAINE).

Embora alguns dentre nós víssemos, antes de 68, nas ações de mo-vimentos como a F.O.E.V.E.N., com os quais a A.R.I.P. trabalhava desde1964, uma direção susceptível de provocar, dentro de certo prazo, umaevolução global do sistema educativo, o período que se seguiu a maiomostra, ao contrário, que o reconhecimento desses esforços pelos autoresda nova lei de orientação significava antes uma oposição à mudança,mesmo que modesta, por parte da instituição; enquanto o projeto previa amultiplicação de intervenções em todos os estabelecimentos onde uma pro-porção suficientemente grande de professores já estava comprometida comum trabalho de evolução a nível de sua sala de aula, a tendência foi retomaratividades de formação visando a uma mudança pessoal.

Limites e impedimentos percebidos no confronto com a realidade dasinstituições levam não apenas a renunciar a produzir uma mudança global,através do desenvolvimento de ações locais, mas também a abandonar aesperança de analisar a instituição, por meio de atividades do tipo interven-ção psicossociológica. As instituições não se analisam, como o fazem osindivíduos ou os grupos, ao considerarem suas relações e vida psicológica.

Antes de prosseguir no desenvolvimento desse último ponto,9 evo-quemos ainda alguns aspectos da evolução da equipe desde 1970:

- as atividades de caráter clínico se tornam cada vez mais especiali-zadas, centrando-se na evolução das pessoas, consideradas em seuspapéis sociais e modos de inserção;10

- integração de novos membros trabalhando em disciplinas diferen-tes ou praticando abordagens diferentes;

- elaboração de projetos de pesquisa-ação; por exemplo, no domí-nio do Aperfeiçoamento das Condições de Trabalho; por pesqui-sa-ação entende-se aqui projetos integrando uma dupla perspecti-va (heurística e de mudança) na realização de uma intervenção

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

cuja iniciativa é tomada pelo psicossociólogo e não pelo agente deuma demanda de consulta.

Esse último aspecto leva à questão mais geral, relativa ao modo deimplicação social do psicossociólogo, e permite resumir um aspecto daevolução que me parece importante:

- nos anos que se seguem à Liberação e, sem dúvida, até o começo dosanos 60, o psicossociólogo considera a si mesmo como um ator socialparticipando da vida econômica; ele participa desse clima de consen-so que marca para nós o período após-guerra, mesmo quando se esfor-ça em separar seu papel de cidadão e militante de seu papel profissio-nal, ou quando se sente mais um agente de estudo e pesquisador, oumelhor, “agente de mudança”, como dizem alguns dentre nós reto-mando o termo utilizado por LEWIN e seus alunos, ou “indutor demudança”, quando as referências à pedagogia ativa, a ROGERS oumesmo a certas posições políticas saídas do trotskismo (cf. o grupoSocialismo ou Barbárie) começam a ganhá-lo.

- A partir dos anos 60, seu modo de intervenção refere-se cada vez maisao modelo da relação de consulta saído da psicologia clínica e sobretu-do da prática psicanalítica; progressivamente, tende a se ver como umanalista com funções de elucidação; sob a influência do pensamentopsicanalítico, em especial lacaniano, todo ponto de visto adaptador –ou contestatório – parece-lhe antinômico a uma verdadeira atividadeelucidadora, devendo ser afastado ou suspenso, da mesma forma queo desejo de curar o paciente no tratamento individual (a cura, benefícioa mais).11 Estudando (por três vezes: 1963, 1967, 1972) o trabalho deJAQUES na Glacier Metal, parece-me que, durante os quinze primei-ros anos (de 1948 a 1963), a “socioanálise” ilustra, no campo social,tal opção, afastando-se dela em seguida.12

- Porém, no último período, parece que se pode observar uma volta auma representação mais próxima da do início. O modelo do analistapareceu sempre, no plano das idéias, bem problemático, mesmo quan-do, na prática, ele arriscava ocupar o lugar de ideal do eu.

Como o mostra André LÉVY, noções como transferência e contra-transferência não podem ser transpostas da Psicanálise para a análise so-cial; se há na obra freudiana um paradigma relevante para a sociologiaclínica, ele deve ser buscado em outro nível, exigindo um esforço deabstração não só da situação específica na qual o prático das ciênciassociais se encontra, mas também de seu objeto de trabalho, relativo pri-meiramente à natureza das relações sociais.

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O analista pode esperar, por exemplo, se tornar o objeto privilegia-do dos fenômenos transferenciais de grupos e coletividades, porque ocu-pa, no campo, uma posição de autoridade ou de poder totalmente parti-cular – por exemplo, a posição de médico chefe em um estabelecimentopsiquiátrico – e é evidente que tal lugar induz uma relação social que seencontra primeiro na realidade antes de poder ser situada no espaçoimaginário que reproduziria uma relação vivida em outra parte.

Se ele se encontra em uma posição menos central, por exemplo, comopesquisador ou consultor social, os fenômenos transferenciais não sãomais da alçada da análise, comparáveis à função que têm na situaçãodual – ou grupal – de uma cura.

Simetricamente, considerar sua implicação não se reduz a procu-rar saber quanto a situação lhe diz respeito, tendo em vista sua própriahistória; nem a se considerar parte da ação, pertencente ao campo es-tudado, presente nele; ainda menos a revelar coisas a respeito de sipróprio, habitualmente caladas e cuja expressão pode ser psicologica-mente difícil, cedendo a pressões de que se é objeto, ou satisfazendo opróprio exibicionismo, sob pretexto de dar a reconhecer àqueles juntoaos quais intervém o direito de saber quem lhes fala e de que matériasão feitos os agentes de intervenção.

A consideração da implicação parece-me aqui se situar primeira-mente na análise do sistema de lugares, na referência ao próprio lugarocupado, ou que se tenta ocupar, e, sobretudo, ao que lhe é atribuído e queele recusa ou aceita, com todos os riscos que isso comporta. O trabalho deJeanne FAVRET-SAADA em Bocage13 parece-me representar, a esse res-peito, um esforço exemplar para tentar extrair da Psicanálise um para-digma epistemológico relevante para um trabalho sociológico. A expres-são pesquisa-ação, que ainda me parece pertinente para caracterizar talabordagem, é certamente oposta à acepção lewiniana.

Essa consideração sobre a implicação do prático (ou sobre lugar da-quele que solicita algo no campo onde ele próprio se encontra e sobre asrelações que ele mantém com os outros agentes do sistema; lugar onde seestá, que faz com que se seja chamado e que se responda a tal apelo etc.)conduz-me a propor nesse parágrafo uma última observação.

Toda intervenção psicossociológica, toda pesquisa-ação – quer sejaresposta a uma demanda ou resulte de uma iniciativa do prático – temsempre como origem uma outra intervenção de qualquer natureza – psi-cossocial ou não; nunca é independente, é sempre ligada a uma ação quea precede ou que a engloba, ação que é também uma intervenção que nãopôde atingir suficientemente seus objetivos e cuja existência – e fracasso –

Notas sobre a origem e a evolução de uma prática de intervenção psicossociológica

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tenta-se mais ou menos claramente esconder. Uma boa parte do proble-ma do significado que vai tomar uma intervenção psicossocial está narelação que ela manterá com aquela que a precedeu: é ela intervençãopara (a serviço de), sobre, contra, no sistema de intervenção que a gerou?Caso se despreze essa origem, não se pode, evidentemente, responder aessa questão; mas essa observação sugere uma pista de trabalho a seguirdesde o início. Continuando, ou mesmo depois de terminar, nunca éfácil elucidar completamente a natureza exata da relação; acontece atéque os agentes de intervenção – e os grupos junto aos quais eles inter-vêm – perdem facilmente de vista essa relação, sobretudo quando estãoabsorvidos em seu novo trabalho, ou quando o utilizam para esconderos acontecimentos que provocaram o processo.

Notas1 Traduzindo de: DUBOST, Jean e LÉVY, André. “L’Analyse social”. In: ARDOINO et

al. L’intervention institutionnelle. Paris: Payot, 1980. p. 50-68, por Marília Novais daMata Machado.

2 Association pour la Recherche et l’Intervention Psycho-sociologiques.3 A C.E.G.O.S., que era animada por Jean MILHAUD e Noël POUDEROUX; esse orga-

nismo tinha então relações estreitas com o I.F.O.P. presidido por Jean STOETZEL e,de forma mais livre, com universitários como Georges FRIEDMANN.

4 Cf. a retomada recente desses textos na coleção 10/18 (Nos 751, 806, 825, 857, 1303,1304, 1331, 1332 etc.) e dos de Cl. LEFORT em Eléments d’une critique de la bureaucra-tie. Droz, 1971.

5 Compagnie Générale d’Organisation.6 O distanciamento progressivo com relação à corrente rogeriana provocou, quatro

anos depois, a partida de Max PAGES, secretário geral da associação, desde suacriação, e de A. de PERETTI, seu vice-presidente.

7 Max PAGÈS, “L’intervention psychosociologique dans l’entreprise”. In: Fondation Royau-mont. Le psychosociologue dans la cité. Épi, 1967.

Jean-Claude ROUCHY. “Une intervention psychosociologique”. Connexions, n. 3, 1972.8 Cf. sobre esse último ponto; LÉVY, André. “Une intervention psychosociologique dans

un service d’hôpital psychiatrique”. Sociologie du Travail, 1963, n. 2; Les paradoxes de laliberté dans un hôpital psychiatrique. Paris: Epi, 1969; mais recentemente, “Dire la loi...”,Connexions, n. 17, 1977.

9 Cf. n. 29 de Connexions, jan.-março, 1980, Psychosociologies, no qual são avaliadas astransformações das práticas psicossociológicas nos últimos 10 ou 20 anos (N.T.).

10 Cf. por exemplo o artigo de J.-C. ROUCHY em Connexions, n. 29 (Vers une psycho-sociologie psychanalytique).

11 Cf. J. LACAN. Ecrits (por exemplo, o capítulo “Variantes de la cure-type”, de 1955).12 Cf. meu texto de introdução em Elliott JAQUES, Intervention et changement dans

l’entreprise. Paris: Dunod, 1972.13 Les Mots, la Mort, les Sorts. Gallimard, 1978.

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Se as diferenças entre as diversas correntes da Psicossociologiase afirmaram e se aperfeiçoaram nos últimos anos, como Jean-ClaudeROUCHY2 propõe, permitindo esclarecimentos progressivos, essesainda são muito relativos; o agravamento de diferenças doutrináriasou ideológicas, devido a fatores circunstanciais e à necessidade de secriar uma identidade visível ou uma demarcação, mesmo que artifici-al, freqüentemente ocupa o lugar de uma elucidação das diferençasteóricas ou dos postulados epistemológicos.

Porém, a experiência adquirida tornou os psicossociólogos mais pru-dentes. Tomaram consciência da enorme distância que existe entre a com-plexidade das situações e suas metodologias e teorizações.

Esclarecer sua posição em relação às situações, à maneira de se defi-nir diante dos conflitos de todo tipo, bem ou mal resolvidos, mostrar seuitinerário3 sinuoso e, entretanto, sobredeterminado por uma profundalógica, pela fidelidade a alguns princípios e valores essenciais – em resu-mo, “dar conta de sua prática” – é uma tarefa cada vez mais difícil de serfeita seriamente.

Parafraseando HEGEL, está na moda hoje celebrar a importância do“trabalho do negativo”. Tal afirmação, porém, quando é apenas verbal, temqualquer coisa de suspeita, sobretudo porque permite aos que a enunciamafirmar sua superioridade sobre os que vivem diretamente essa negativida-de, através das contradições de suas condutas profissionais.

No que me diz respeito, há muito tempo, renunciei às ilusões damudança social planejada ou ao otimismo rogeriano com relação aoshomens e aos grupos, à crença em sua positividade fundamental e, alémdisso, descobri como essa mesma crença pode ser suspeita, uma vez sus-tentada pelas pulsões de morte, pelo desprezo e pelo ódio que ela tentaconjurar. Porém, tudo isso não me leva a entregar-me ao prazer da renún-cia doutrinária e da autocondenação.

INTERVENÇÃO COMO PROCESSO1

André Lévy

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

O essencial de minha atividade de interventor está centrado em umtrabalho psicológico, feito paulatinamente com grupos relativamente pe-quenos, nos quais os conflitos e as contradições são trabalhados concre-tamente por cada um, em relações diretas, face a face. Embora com umaposição totalmente diversa da de ROGERS, penso que só é possível rea-lizar um trabalho que valha a pena com grupos e organizações quandose tem um interesse afetivo verdadeiro pelas pessoas que fazem partedeles4 ; penso que uma atitude voluntária e falsamente objetiva, desa-paixonada, científica, pode ser apenas uma máscara para o desprezoprofundo com relação ao outro e representar apenas ações tecnocráticasa serviço de um desejo de poder mais ou menos oculto.

Toda a minha experiência, longe de chegar a um ceticismo, ou mes-mo a um nihilismo, leva-me, ao contrário, a reconhecer, cada vez maisclaramente, o significado da análise (no sentido freudiano) em grupos esociedades humanas.

As práticas de intervenção, diferentemente das ações de formaçãoe de pesquisa, dizem respeito, diretamente, aos grupos de pessoas emseu devir coletivo. As tomadas de consciência, as aquisições de conhe-cimento ou de compreensão resultantes do trabalho analítico que sedesenvolve nesse contexto têm sentido apenas em função de seus efei-tos concretos na história do grupo.

Como evocado por Jean DUBOST nas páginas precedentes,5 as pri-meiras intervenções psicossociológicas conhecidas, na França,6 por esserótulo, visavam a compensar os efeitos objetivantes e idealizantes dapesquisa, instituindo, junto aos grupos envolvidos, um processo de fee-dback dos resultados e acarretando um trabalho de interpretação e resolu-ção coletivas dos problemas evidenciados.

Durante muito tempo e, com freqüência, ainda hoje, a intervençãopsicossociológica foi associada a essa metodologia.

Mas tal metodologia ainda depende em excesso do modelo epistemo-lógico da pesquisa científica, o que lhe dificulta acomodar-se a uma pers-pectiva com caráter analítico e chegar a resultados diferentes da ativida-de decisória; ela é, sem dúvida, mais lúcida ou, no mínimo,diferentemente lúcida, mas ainda assim tem acesso ao real apenas porintermédio de estruturas hierárquicas de poder.

Ela repousa, fundamentalmente, no postulado de que o conheci-mento representa um valor ou um bem e que sua conquista é um ele-mento determinante de uma estratégia de mudança, cuja meta é a trans-parência cada vez maior da organização; reciprocamente, ela desconhece

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não apenas que o acesso ao saber não é um simples problema técnico,mas, sobretudo, que a técnica só tem pertinência e eficácia quando ésusceptível de ser mobilizada em situações e relações concretas; casocontrário, é apenas um simples instrumento ideológico. De toda forma ésurpreendente que, 35 ou 40 anos depois de LEWIN, ainda se tenha quedemonstrar essas ilusões.7

A última intervenção da qual participei, que adotava aproximada-mente esse modelo, data de 1972.8 Fomos obrigados a efetuar um levanta-mento de dados como primeira etapa de nossa intervenção, pois a direçãoda empresa fazia disso uma condição. Mas tomamos uma série de precau-ções para garantir que tal pesquisa não bloqueasse o processo de análisecoletiva ao qual pretendíamos chegar, cuidando, de um lado, que nossorelatório (que seria comunicado a todos) não pudesse ser, de forma alguma,considerado como um diagnóstico e, de outro lado, criando condições paraque um início de confronto entre os membros da organização fosse feitodurante nossa pesquisa e por ocasião de seu relato.

Porém, tais precauções foram vãs: a metodologia de levantamentopressupõe, com efeito, implicitamente, que se considere cada entrevistacomo um objeto isolado; ela implica na reificação de palavras em “da-dos” de informação. O fato de escutar cada pessoa isoladamente, umaúnica vez, supõe que seu pensamento possa ser “apreendido” e resumi-do a um objeto – o objeto-entrevista. A reunião desses diferentes objetosna análise, isto é, a colocação de todas as entrevistas em um mesmo con-junto, supõe, por sua vez, que, em determinado momento, seja possíveluma leitura vertical da expressão coletiva.

Tal metodologia induz, então, à expectativa de uma objetivação e deuma organização dos problemas, permitindo seu tratamento e sua capta-ção ulterior, com vistas a decisões e ações.

Para dar conta das clivagens existentes entre as diferentes manei-ras de se representar a empresa, fomos conduzidos a distinguir diver-sos discursos concorrentes, cada um se referindo ao passado da em-presa para explicar, de uma forma histórica, quase narrativa, osproblemas atuais da empresa.

Cada uma dessas representações era formulada de maneira muitocoerente, apropriada para demonstrar as bases sólidas das soluçõespreconizadas: adaptação dos antigos dirigentes a novos mercados e àsnovas tecnologias; melhor coordenação administrativa, esclarecimentodas funções; reequilibro do poder em favor da produção e mudança deatitude do proprietário, visto como ligado demais ao responsável co-mercial, seu amigo, de quem dependia bastante.

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

Entretanto, a coexistência desses diferentes discursos, cada um es-truturado segundo sua própria racionalidade (econômica ou tecnológi-ca, ideológico-afetiva, organizacional), traduzia também, e sobretudo, aesperança de se chegar a reuni-los em um único discurso e de se resolverassim o que era vivido por todos como uma crise de sentido, uma criseideológica – mais aguda ainda por se desdobrar em uma crise de poder;em outras palavras, a ausência de uma referência única traduzia-se nosentimento de um poder diluído e inapreensível.

A pesquisa havia fortificado essa esperança, particularmente pormeio de nosso relatório oral, que pressupunha a possibilidade (ao menospara nós) de escutar e compreender todos os discursos, um de cada vez, ede passar assim, sem dificuldade, de um a outro, expondo cada um com amesma objetividade.

O que era então uma realidade contraditória e clivada foi transfor-mado em pontos de vista divergentes, no limite, complementares, porémsituados no mesmo plano, repousando sobre pressupostos certamentedivergentes, mas potencialmente articuláveis entre si.

Tais implicações se tornaram muito claras durante a leitura e adiscussão de nosso relatório: a esperança de um discurso único dissol-veu-se logo, à medida que cada discurso, reconstituído graças a nos-sos cuidados, surgiu como a expressão totalitária de um lugar de inte-resses específicos na empresa, impondo uma interpretação única darealidade na qual uma parte do grupo se reconhecia, enquanto que osoutros tinham o sentimento de serem, então, negados (o que se tradu-ziu em movimentos diversos durante a leitura, algumas vezes insu-portável para uma parte do grupo).

A esperança desfeita era também a de uma comunidade no seio daqual as contradições e as oposições se resolveriam por si mesmas.

A perda da esperança acarretou, inevitavelmente, o término definiti-vo da intervenção e a renúncia ao trabalho de grupo previsto (malgradouma preparação inicial já feita para a constituição de grupos).

Uma outra análise de conteúdo dos dados de pesquisa teria semdúvida evitado esse desenlace. Mas teria sido preciso que assumísse-mos pressupostos contrários à nossa posição: teríamos de nos esforçarpara articularmos o discurso comum, como se esperava de nós, e, sobre-tudo, teríamos de apresentar cada discurso como se fosse a expressãoparcial de uma mesma realidade objetiva. Em outras palavras, teria sidopreciso fazer de conta que achávamos que era suficiente, para apreen-der a “realidade”, excluir de cada expressão o que a tornava particular

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(subjetiva demais, excessiva demais) e conservar, em contrapartida,o que poderia completar e “enriquecer” o discurso comum – e tantopior (ou tanto melhor) se certos discursos parecessem mais “objeti-vos” que outros.

Tal é o contrato implícito do levantamento de dados, cujos pressu-postos “científicos” kantianos simplesmente traduzem de outra formaessa crença do senso comum, segundo a qual apreende-se melhor a “rea-lidade” quando se somam diferentes visões que se pode ter dela, a partirde diversos “pontos de vista”.

Mas essa crença implica na possibilidade de apreender diretamente,embora imperfeitamente, o “real”, em discursos que as pessoas expressam,pois o “real suposto” de cada discurso é concebido como uma parcela.

Essa crença conduz, assim, a um princípio de tolerância de pontos devista diferentes, aliada à consciência da relatividade de cada um dos prin-cípios que, sabemos, estão na base de toda sociedade “harmoniosa”.

Mas se aceitamos, constrangidos, o levantamento de dados, não acei-tamos seus pressupostos; desejaríamos, ao contrário, que cada discursofosse reconhecido como expressão real de um vivido, como uma palavradestinada a ser perseguida e retomada, por menos que ela fosse levada asério e que se tentasse compreendê-la. Gostaríamos também de compreen-der como essa palavra poderia testemunhar o lugar ocupado pelos quefalavam e o que lhe permite ser mantida, escutada ou recusada.

Essa experiência possibilitou-nos, então, perceber o quanto a práticada pesquisa, qualquer que seja a maneira como é conduzida, associa-senecessariamente à busca de um sentido, isto é, de uma explicação geral.Mesmo quando as contradições são explicitadas e acentuadas, o fato deserem recuperadas em um discurso único leva a crer na possibilidade deultrapassá-las ou, no mínimo, articulá-las; o levantamento inscreve-senecessariamente no projeto de dar um sentido; é a função das representa-ções, que não se reconhecem como um discurso, mas se apresentam comoum saber sobre – saber ou sentido cuja função principal é a de fundamentar,legitimamente, ações ou decisões (saber para).

Longe de favorecer um processo de análise, a pesquisa contribui,assim, para o recalque: primeiramente, transferindo para o pensamen-to as clivagens e contradições resultantes das divisões intra-organiza-cionais (particularmente da divisão do trabalho); em seguida, levandoa acreditar na reunião imaginária dessas representações divergentes,reduzidas a enunciados fechados, desconectados das condutas e es-tratégias.

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Então, é grande a tentação de abandonar o modelo heurístico dolevantamento e recorrer ao modelo psicanalítico, a fim de aplicá-lo aosgrupos e organizações.

A não ser que se idealize o processo de análise social, essa só pode,com efeito, ser feita em uma experiência de comunicação, no sentido plenodo termo, na qual o imediatismo do risco é sensível, na qual uma respostainstantânea, sob forma falada ou atuada, pode ocorrer, colocando em jogopessoas em sua integridade intelectual, moral ou corpórea.

Os grupos face a face aparecem, então, como lugares privilegiados deanálise: constituem o que forma a espessura do social, a opacidade deuma palavra que não se reduz a um conteúdo e nunca coincide perfeita-mente com os discursos construídos, instituídos, reproduzidos em luga-res separados do lugar e do momento de sua emissão.

Os processos sociais não se reduzem evidentemente ao que pode serapreendido nos grupos face a face; mas, reciprocamente, esses processosnão podem ser compreendidos nem podem evoluir, independentementedas maneiras como se atualizam, se articulam e se transformam.

Só é possível, então, falar de análise social em situações de grupo nasquais os sujeitos podem inserir, na enunciação, enunciados interpretati-vos que fazem sentido para eles.

Crítica da Psicanálise aplicada aos gruposCrítica da Psicanálise aplicada aos gruposCrítica da Psicanálise aplicada aos gruposCrítica da Psicanálise aplicada aos gruposCrítica da Psicanálise aplicada aos grupos

Não me deterei aqui nesse assunto complexo. Porém, se há um resul-tado do qual estou seguro, tendo acumulado experiência de análise degrupo por 15 ou 20 anos, este é o seguinte: se um certo trabalho analíticopode ser feito nos grupos, esse não é o mesmo feito no quadro da curaindividual. O fato de querer transpor as regras e as técnicas da Psicanáli-se para a análise social, de considerar análogos seus quadros e settingsrespectivos, de comparar particularmente as relações de transferência/contratransferência entre um psicanalista e um analisando com as rela-ções que se passam entre um ou mais interventores com um grupo ouorganização, só pode ter um resultado: o recalque da palavra, a negaçãodos conflitos e das clivagens e o desenvolvimento de uma relação norma-tiva e pedagógica falsamente denominada de analítica.

O obstáculo mais sério a uma “Psicanálise de grupo” é a impossibi-lidade para o “analista” de se constituir como um terceiro; embora eleocupe incontestavelmente uma posição especial, nem que seja por estarassociado apenas temporariamente ao grupo e por buscar objetivos dife-rentes, sua posição de exterioridade é apenas relativa.

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Qualquer que seja o discurso que ele mantenha a respeito de suaindependência ou suposta neutralidade, isso é apenas uma petição deprincípios, pois tal afirmativa não se refere a uma diferença irredutível –física, material ou simbólica.

FREUD9 já havia destacado essa dificuldade, apontando que umdos limites da análise social era a necessidade de um poder no qual olugar do analista pudesse se apoiar – poder cujo exercício é contraditó-rio com todo trabalho analítico.

O analista não pode estar em uma situação de exterioridade radicalrelativa ao grupo ou à organização, pois variáveis da mesma naturezacondicionam seu lugar e o dos outros membros, uma vez que, desde oinício, ele se insere no mesmo sistema de alianças, pressões, estratégias,das quais necessariamente é parte.

Podem ocorrer aí fenômenos de deslocamento ou de projeção comrelação ao interventor, mas relações de transferência, no sentido precisodesse termo, não podem ser estabelecidas ou desenvolvidas; essas rela-ções implicariam particularmente, por parte do analista, o respeito à re-gra de abstinência, do não agir, e o desenvolvimento de uma relação entreos dois sujeitos – analista de um lado, grupo do outro.

Se isso é possível nas relações de pessoa a pessoa, corpo a corpo, omesmo não se passa nas relações com um grupo cujas identidade e uni-dade são definidas arbitrariamente, com a participação do analista-inter-ventor, no próprio ato que o institui como analista, em função de uma“demanda”, cuja existência ele postula (ou mesmo contribui para estru-turar). A própria expressão “transferência do grupo” ou “transferênciainstitucional” parece-me um absurdo ou até mesmo um embuste.

Tudo isso aparece claramente nas situações de formação (grupo dediagnóstico, por exemplo), cuja existência depende inteiramente do atofundador (programa) do analista e do seu reconhecimento pelo “grupo”,cuja existência postulada como objeto transferencial (desejante) é neces-sária para instituí-lo como analista.

Não desenvolverei aqui o que já escrevi anteriormente10 e que melevou a concluir que esses grupos não poderiam ser outra coisa senãosituações de aprendizagem disfarçada, “fenômenos” abstratos de “gru-po” em geral, isolados de toda historicidade, caracterizados ainda porserem uma realização do fantasia do animador-genitor.

Nas situações de intervenção, tudo se passaria diferentemente sefosse possível situar os grupos ou as organizações “naturais” definindosuas fronteiras e sua história.

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Tentei demonstrar11 que o próprio fato de alguém se definir e seposicionar como analista leva a postular, no mesmo ato, seu objeto, istoé, o grupo ou equipe como unidade diferenciada, tendo uma existênciae uma história separadas (pelo emprego, por exemplo, de termos comoo “grupo” ou a “demanda”).

O interventor pode, assim, ser tentado a definir um quadro de tra-balho análogo ao de uma situação de formação, por meio de regras ex-plícitas e implícitas, concebidas de maneira a assegurar seu lugar comoanalista de fantasias inconscientes, do “aparelho psíquico grupal”,12 e alegitimar sua interpretação, graças às relações de “transferência” que seestabelecem e se desenvolvem entre o grupo e ele próprio.

Reconstruindo de forma fictícia tal situação, ele encontra claramenteos limites que evidenciei a respeito do grupo de diagnóstico: a psicologi-zação do conflito, sua redução a dimensões interpessoais ou a fenômenosgrupais gerais; ele elimina, por antecipação, tudo aquilo que pode fazer aespecificidade dessa situação e que a sobredetermina no plano organiza-cional e institucional. Essas limitações são ainda agravadas pelo fato deque ele também omite a consideração dos efeitos que a instauração dessasituação pode ter tanto para a organização, fora da situação de análise,quanto para as relações internas.

Mesmo com a ficção do “grupo em análise”, ele continua a atuarcomo uma instância organizacional (uma equipe, um serviço), não uni-ficada, fragmentada, atravessada por clivagens internas e prisioneirade imposições institucionais e econômicas, tendo que tomar decisões eexecutá-las; essas clivagens e divisões são apagadas na representaçãosegundo a qual todos compartilhariam da mesma demanda de análisecoletiva e se situariam de forma idêntica como participantes ou membrosdo mesmo grupo, realizando coletivamente transferências para o mes-mo analista.

Tal crítica da “Psicanálise aplicada” leva-nos a concluir que o inter-ventor tem sempre uma posição de exterioridade relativa; não é o únicopólo transferencial em torno do qual se ordenariam e se desenvolveriamas relações susceptíveis de serem interpretadas.

Um dos objetos de análise pode ser, então, o trabalho sobre as dife-rentes maneiras pelas quais o interventor tende a ser utilizado em estraté-gias, preso em diversas alianças (que ele aliás nunca pode recusar total-mente sob pretexto de uma neutralidade ilusória).

Em uma intervenção efetuada em um hospital-dia,13 mostrei que amodalidade de pagamento de meus honorários, feito diretamente porcada membro da equipe e igualitariamente, traduzia o desejo de tirar

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o processo terapêutico do controle institucional da hierarquia, e o grupode suas restrições externas. Isso permitia assimilar a intervenção a ativi-dades de ergoterapia, essas sendo também pagas pelos doentes e não sub-metidas ao orçamento do hospital; essa modalidade se constituía, assim,numa colocação em ato do desejo, especialmente do médico-chefe, de tor-nar a psicoterapia autônoma e de acentuar a diferença entre essas ativida-des e o trabalho das enfermeiras, que continuaria submetido às regrasadministrativas, como, por exemplo, a presença. Um dos resultados, pa-radoxal, do trabalho de análise, foi então o de evidenciar o caráter ilusóriodesse desejo de autonomia da terapia e a maneira como ele contribuíapara reforçar a divisão do trabalho no seio da equipe no hospital.

Nessa perspectiva, o interventor não está ligado a nenhum grupoem particular, a não ser provisoriamente; à medida em que o trabalhoprogride, a composição do grupo pode evoluir, podendo o interventortrabalhar com outras pessoas e outros grupos, segundo outras modali-dades que não a análise de reuniões (entrevistas, observações, pesquisa-ação etc.), mesmo quando essas evoluções se tornam difíceis ou impro-váveis; as resistências internas na organização tendem, com efeito, acongelar o trabalho de análise em um lugar determinado, a enquadrá-loe a controlá-lo até lhe retirar todo o significado que não coincida com ode uma pedagogia ativa, de uma terapêutica localizada.

É por isso que, quando o interventor, por razões que ele gostariaque fossem metodológicas ou de melhor garantia de sua posição, insti-tui tal quadro, ele entra em conluio com as resistências.

Como avaliar a intervenção psicossociológicaComo avaliar a intervenção psicossociológicaComo avaliar a intervenção psicossociológicaComo avaliar a intervenção psicossociológicaComo avaliar a intervenção psicossociológica

Mesmo sendo possível se defender, nunca se pode ignorar total-mente a questão da avaliação do ato profissional efetuado na interven-ção psicossociológica. Não se pode escapar disso dizendo, como o fa-zem certos psicanalistas, que não se tem de preocupar com os efeitos dotrabalho sobre o devir da organização (“sua cura”) ou com as relaçõesinternas dela, que a emergência dos conflitos latentes, a desmistificaçãode certas crenças, o abandono de tabus, o acesso aos processos psíquicosinconscientes são metas que se justificam por si mesmas.

Se isso é em parte verdadeiro, merece ao menos uma explicação.

Certamente, o próprio fato de se colocar a questão da avaliação situao problema em termos que podem ser contraditórios com a significaçãode uma experiência, o que vale não só para a análise, mas também para ogozo sexual ou estético. Como posicionar tais experiências de acordo com

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

coordenadas de um esquema pragmático ou utilitarista, de acordo comeixos orientados, do menos ao mais, do pior ao melhor, do negativo aopositivo? E como não o fazer?

Assim, a mudança representa para nós, antes de tudo, um aconteci-mento marcado pelo advento, na vida de um sujeito ou de uma comuni-dade, de uma ruptura com um ciclo de repetições e, conseqüentemente, oacesso a uma história, ao desconhecido, ao risco, à incerteza. Em um textoanterior,14 descrevemos essa experiência como “a descoberta de um vazioaí onde se acreditava haver plenitude, um possível onde havia certeza,uma questão onde havia uma afirmação. Graças a esse vazio repentina-mente desvelado, as peças começam a circular, um jogo mais livre se tornapossível... O novo que aparece não é, então, um novo pleno, para o qualseria necessário abrir espaço e ajustar ao que já estava lá. Não é umasoma, uma certeza a mais, mas uma subtração, uma certeza a menos, umapeça retirada de um edifício em equilíbrio”.

Com efeito, a significação de uma intervenção ou de uma análise nãopode ser concebida independentemente do ato de transgressão envolvidoe da crise ideológica e política que atravessa a organização e que a ques-tiona. Essa se encontra então em seu ponto de ruptura ou, no mínimo, emface à eventualidade de uma ruptura, vivida como o fim ou a morte daorganização tal qual era imaginada, ou como o reconhecimento de cliva-gens internas, irredutíveis, inclusive nas pessoas.

Tal concepção da análise social implica também a necessidade derearranjar a idéia que se faz de uma organização, a necessidade dedefini-la com conceitos distintos dos utilizados quando ela é captadado ponto de vista do ator, isto é, com noções e representações úteis àação, orientadas para a resolução de problemas e para metas práticassubentendidas.

Com efeito, toda teoria organizacional é relativa, dependente dasua importância para determinadas situações e metas. Nenhuma dá contade uma “verdade” geral relacionada à natureza da organização em si;organização é apenas um conceito relativo que se refere a finalidadesque variam de acordo com o lugar onde ele foi elaborado e onde elesupostamente é útil. É por isso que se poderiam analisar significaçõescomparadas: a da teoria das organizações que as vê essencialmente comosistemas de estratégias e de alianças; a da organização científica do tra-balho, centrada nos problemas de produção racional; a da burocracia,centrada no sistema de regras etc. A questão é: a quê e a quem cadateoria serve?

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A prática de intervenção psicossociológica produz, também ela, umaelaboração teórica a respeito dos processos organizacionais, tendo suaprópria pertinência.

Assim, explicamos por que15 o fato de assinalar e de interpretar re-presentações e fantasias não apenas é insuficiente para justificar umaintervenção, mas ainda a leva a cair na armadilha do levantamento dedados (para ver ou para saber) ou, o que dá no mesmo, na pedagogiademonstrativa (para fazer saber ou para convencer – postulando que ascondutas podem ser modificadas por meio de representações).

Pareceu-nos, com efeito, que representações podem ser conside-radas como algo diferente de um conjunto ou de um sistema de idéiase de juízos estruturado, ordenado, hierarquizado; essa é bem a formasob a qual elas freqüentemente se apresentam, mas ao preço de umesforço de simplificação e de redução intelectuais. Quando se tentaapreendê-las sob a forma em que efetivamente atuam, somos levadosa percebê-las como séries de discursos entrecruzados, desenvolvendo-se segundo atos referenciais múltiplos – cadeias de significados fre-qüentemente contraditórios, procurando indefinidamente e de manei-ra nunca acabada a busca de um sentido; são discursos que as pessoasenunciam nas situações em que se encontram, com a finalidade de cons-truir referências, dar um sentido ao lugar que elas ocupam e atribuirum sentido às divisões espaciais, temporais, sociológicas sobre as quaisa organização se baseia; são discursos destinados a legitimar, para osoutros e para si próprios, as ações e as divisões.

Entretanto, permanecem divididos os discursos de representação,nos quais está subentendida a busca de significações comuns (graças àsquais a organização poderia ser apreendida como UMA); então, forne-cendo explicações e tornando as divisões e as clivagens organizacionaismais toleráveis, eles reproduzem essas mesmas divisões e contribuempara reforçá-las.

Nessa perspectiva, o processo de análise não pode, então, consistirem assinalar e decodificar as significações existentes, mas em apreendê-las como discursos incompletos, em remetê-las aos lugares de onde sãoenunciadas e às diferentes formas como cada um, de acordo com a posi-ção que ocupa no sistema de divisão do trabalho, tenta explicar, enfrentare ocultar as contradições que vive.

Nesse sentido, a análise não alcança objetivamente um real supos-to, mas ela própria é uma produção de discursos16 que permite abrir ocaminho do grupo a uma história, que permite às pessoas implicadas sedesligarem da fascinação exercida por seus próprios discursos, desde

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que não proponham outro sistema de interpretação superior que, porsua vez, reificaria significados.

Para ilustrar o que precede, citarei o caso de uma intervenção muitobreve, de algumas sessões ao longo de quatro ou cinco meses. Ela tomoua forma de uma consulta junto a um grupo de seis a sete pessoas perten-centes a uma comunidade religiosa, encarregadas de preparar e conduziruma assembléia geral próxima.

Essa Assembléia Geral deveria ocorrer alguns meses mais tarde; elapretendia ser, em especial, a ocasião da eleição do próximo Conselho oudireção da comunidade. A preocupação das pessoas que me procuraramera evitar que, como ocorrera na assembléia anterior, a fuga dos proble-mas se traduzisse em voto de moções muito gerais e imprecisas, destina-das a serem engavetadas. Mas as pessoas sentiam uma grande dificulda-de, dado o mal-estar existente no interior da comunidade.

Assim, como condição para aceitarem sua missão, colocaram a pos-sibilidade de contratarem os serviços de um psicossociólogo.

Embora eu tivesse trabalhado no passado, por diversas vezes, cominteresse e prazer, com pessoas pertencentes a esses meios, não tinhanenhuma afinidade particular com relação a comunidades religiosas;talvez tivesse mesmo o inverso; mas a demanda, endereçada agora a mim,pareceu-me simpática, o problema que eles colocavam parecia-me inte-ressante e eu sentia que poderia trabalhar com eles para resolvê-lo, semme sentir comprometido de qualquer forma que fosse com a comunidadee seus valores. Esclarecemos, aliás muito rapidamente, essa não implica-ção de minha parte com seus problemas ou sua ideologia; isso não ape-nas não os inquietou mas, ao contrário, pareceu-lhes uma garantia pararealizarem o que se haviam proposto. Buscavam essencialmente um “téc-nico”. Depois de uma breve hesitação, aceitei.

Igualmente, chegamos logo a um acordo a respeito do meu papel, quedeveria ser, em sua maior parte, centrado no trabalho do grupo (denomi-nado Comissão da Assembléia Geral) durante todo o período de prepara-ção da Assembléia. A questão de minha participação ou presença duran-te o desenrolar da própria Assembléia foi deixada em aberto; apenasdepois do primeiro dia de trabalho decidi não participar de forma algu-ma, nem para ajudar na sua animação nem como observador ligado àComissão. A razão de minha determinação, tanto quanto pude analisá-la, era o sentimento de que não poderia, nesse lugar eminentemente po-lítico que seria a Assembléia Geral, intervir nas orientações futuras dacomunidade e nos problemas que não me diziam respeito.

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Minha participação se limitou então a alguns encontros de um diaou de metade de um dia com a Comissão, aproximadamente um encontroa cada mês (sempre que ela se reunia em Paris) e, em seguida, atendendoexpressamente à sua demanda, dois encontros no local da AssembléiaGeral, à noite, depois dos debates, a fim de ajudá-los a esclarecer o quehavia se passado durante o dia e de preparar o dia seguinte.

Tudo isso permitiu o posicionamento dos respectivos lugares: omeu, de um lado, em relação à Comissão e, de outro lado, à Comunidadeem seu conjunto e à Assembléia Geral; o lugar deles, em relação à As-sembléia Geral e à Comunidade; e enfim, a Assembléia Geral em relaçãoà Comunidade.

A Assembléia Geral e a ComunidadeA Assembléia Geral e a ComunidadeA Assembléia Geral e a ComunidadeA Assembléia Geral e a ComunidadeA Assembléia Geral e a Comunidade

Essa Assembléia Geral em preparação veio a ser, de fato, uma As-sembléia Geral extraordinária. Ela havia sido decidida no ano preceden-te, no final da assembléia anterior que havia deixado as pessoas insatis-feitas e com o desejo de enfrentar os problemas mais diretamente, emespecial durante a eleição do novo Conselho ou Direção. Para isso, diver-sas sessões haviam sido previstas.

Tratava-se então de um momento que, por diferentes razões (acentu-ação da distância entre gerações, oposições cada vez mais marcadas en-tre as diferentes concepções da Comunidade, vencimento dos prazos paradecisões importantes), era considerado por muitos (ou, pelo menos, pelaComissão) como um ponto de transição, na história da Comunidade, quenão podia ser perdido.

A comissão em relação à Assembléia GeralA comissão em relação à Assembléia GeralA comissão em relação à Assembléia GeralA comissão em relação à Assembléia GeralA comissão em relação à Assembléia Gerale em relação à Comunidade; eu próprioe em relação à Comunidade; eu próprioe em relação à Comunidade; eu próprioe em relação à Comunidade; eu próprioe em relação à Comunidade; eu próprioem relação à Comissão e à Comunidadeem relação à Comissão e à Comunidadeem relação à Comissão e à Comunidadeem relação à Comissão e à Comunidadeem relação à Comissão e à Comunidade

Tendo visto essas diferentes posições respectivas como extremamen-te articuladas umas às outras, parece-me mais interessante examiná-lasconjuntamente do que separá-las uma a uma.

Como já mostrei, decidi depois do primeiro dia de trabalho não par-ticipar de forma alguma nem assistir à Assembléia Geral; isso me parecianecessário para preservar a minha não implicação nos problemas direta-mente políticos da Comunidade e para esclarecer as posições da Comis-são e minha em relação à Assembléia Geral.

Como cheguei lá, se nas primeiras trocas não excluíra a priori uma par-ticipação nos trabalhos da Assembléia Geral, cuja forma seria definida?

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É importante, então, examinar o que se passou durante esse pri-meiro dia:

Nesse momento, o grupo havia se empenhado em uma tarefa con-sistindo em reunir todas as informações de que dispunha sobre os pon-tos de vista e as proposições das diferentes comunidades regionais, ten-do em vista a Assembléia Geral; eles haviam visitado pessoalmente cadauma das comunidades, a fim de levantar suas opiniões. Nessa ocasião,tomei conhecimento, com a ajuda deles, da organização complexa daComunidade: a existência de comunidades descentralizadas na região,as relações entre elas, o tipo de atividades nas quais estavam empenha-das e as diferenças existentes entre elas – inclusive no plano econômico-, a lista dos membros da Comunidade e as diversas posições sociaisentre as quais se distribuíam, os textos definindo seu funcionamento, asregras às quais se submetiam etc.

Nossas relações começaram igualmente a se tornar mais precisas.Eu era calorosamente acolhido, com amizade e com confiança, comoum estranho mas não como um intruso. Embora a expectativa comrelação a mim fosse muito grande – eles estavam bastante prontos aescutar e a levar em conta as minhas observações –, parecia-me quenão havia confusão entre os nossos respectivos papéis. Eles absoluta-mente não procuravam se apoiar em mim, ou mesmo ser influencia-dos na decisão que deveriam tomar e em relação às suas responsabili-dades. O fato de que eu estava lá como um profissional, pertencente auma organização evidentemente leiga (a A.R.I.P.), talvez também meupróprio sobrenome judaico, pareciam garantir a seus olhos (com umacerta ingenuidade, sem dúvida) que eu não buscava nenhum interessepessoal relativo a seus assuntos internos; eu próprio me sentia um es-tranho, sem implicação com o grupo.

Espantei-me, então, ao ver-me reagir rapidamente e com muitavivacidade diante da maneira deles se situarem nessa tarefa. Apoian-do-me no contrato que havíamos feito, que me autorizava a intervirem tudo o que me parecia ir no sentido de evitar problemas e conflitos,intervim bastante brutalmente para criticar as tendências deles a se es-quivarem das dificuldades, a passar sobre elas e a generalizá-las apres-sadamente demais.

Parecia-me, ao mesmo tempo, que essa mesma brutalidade respon-dia a uma demanda inconsciente da parte deles, de sair de um estilo derelações muito corteses, evitando toda aspereza, esquivando-se dos con-flitos e divergências.

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No nível do conteúdo, observei, com bastante veemência, que elesestavam errados ao se considerarem como simples emissários ou porta-vozes das comunidades que cada um havia visitado e ao limitarem seutrabalho a um simples cotejo ou colocação em ordem das informaçõesque haviam recolhido. Declarei-lhes que não poderiam recusar o poderque lhes havia sido confiado de orientar e contribuir para a organizaçãodos debates da próxima Assembléia Geral, para a escolha dos temas queseriam então tratados, para a maneira como os problemas seriam colo-cados etc. O papel que tinham era não apenas técnico, mas também polí-tico: eles não podiam deixar de influenciar nas orientações que seriamdefinidas na Assembléia Geral ou mesmo na eleição. Caçoei da maneiracomo alguns deles justificavam, em nome de valores democráticos, seupapel de porta-vozes puros; demonstrei que, ao contrário, se efetiva-mente o desenrolar da assembléia geral fosse determinado, em últimaanálise, pelas vontades expressas pela “base”, essa expressão estaria for-temente condicionada à maneira como fora buscada e tratada.

Eles aderiram, com relativa facilidade, a meu ponto de vista, semdeixar de observar, entretanto, que eu lhes recusava o papel de “técnicos”que atribuía a mim próprio!

Analisando o trabalho deles como se fosse um levantamento de da-dos e uma pesquisa-ação na Comunidade e em seus problemas e anali-sando a disposição de tratar esses problemas, declarei-lhes:

1- Que esse trabalho exigiria muito tempo e investimento da partedeles e, assim, encontros mais numerosos do que os previstos nocomeço.

2- Que ele exigiria igualmente que trabalhassem o funcionamento deseu próprio grupo; não eram apenas procuradores de votos e opi-niões, mas representavam também, sem dúvida, diferentes ten-dências existentes no seio da Comunidade, tendências que esta-vam encarregados de confrontar e esclarecer. A maneira comoconfrontariam e analisariam ou não suas divergências tinha todaa chance de prefigurar o que se passaria na Assembléia Geral;será que eles pretendiam se limitar a estabelecer um simples ca-tálogo de dados de informação e de questões a tratar ou se empe-nhar em um trabalho de análise da situação a partir desses ele-mentos? Perguntei-lhes em que medida estavam prontos a fazeresses investimentos.

Pareceu-me, então, que eles deveriam, periodicamente, relatar oresultado de seus trabalhos e proposições a um Comitê Permanente e

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que todas as decisões concernentes à Assembléia Geral próxima deveri-am ser submetidas a essa instância.

Eles funcionariam então dentro de limites relativamente estreitos;isso não excluía em nada minhas conclusões relativas ao papel políticodeles mas, ao contrário, tornava-as mais precisas: uma das preocupaçõesdeles era a de preparar seus encontros com o Comitê de maneira a evitarse atolarem em problemas menores ou técnicos.

Essa discussão permitiu-me esclarecer meu próprio papel: o de umconsultor junto a um grupo empenhado em uma pesquisa-ação na comu-nidade da qual emanava; esse grupo encontrava problemas que eram aomesmo tempo teóricos e técnicos (coleta de informações, análise e inter-pretação dos dados coletados) e políticos (como apresentar e traduziressas análises em ações).

Paradoxalmente, a veemência com que me manifestara no sentido deque a Comissão não evitasse sua implicação na tarefa e assumisse maisintegralmente sua missão teve como efeito permitir-me tomar a decisão derecusar uma participação direta na Assembléia Geral (como me haviasido proposto, com alguma hesitação). Isso pareceu-me indispensávelpara diferenciar nossos lugares respectivos de implicação, minha posi-ção com relação à da Comissão e também a da Comissão com relação àAssembléia Geral.

Com efeito, isso permitiu que eu me situasse como consultor para aComissão e apenas para ela (naturalmente, com o conhecimento e o acor-do da Comunidade).

O fato de ficar totalmente sem implicação com a Assembléia Geral eseus problemas políticos e táticos, exceção feita à maneira como eles se apre-sentavam na Comissão, permitia-me manter meu papel junto à Comissãoe permitia à Comissão manter o seu junto à Assembléia Geral e à Comu-nidade (e, eventualmente, à Assembléia Geral preencher sua função juntoà Comunidade).

Caso eu participasse da Assembléia Geral, seria necessariamenteconfundido com a Comissão, colaborando no objetivo supostamentecomum de favorecer a expressão e a elucidação dos debates, o escla-recimento dos problemas e o seu tratamento. Isso apenas provocariaconfusão e a ilusão de que esse objetivo era puramente técnico (umproblema de organização e de relações), sem implicar posições táticase políticas. No limite, isso poderia contribuir para esvaziar a Assem-bléia Geral de todo conteúdo político! (Quanto à eventualidade evoca-da em certo momento, a de que eu participasse da Assembléia Geral

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como observador, sem direito à palavra, ligado à Comissão, essa erauma proposta que ia no mesmo sentido, com o agravante de tornar asituação ainda mais obscura).

Assim, ficou claro que:

a- a Assembléia Geral era o lugar político da Comunidade. Deveriarepresentar um tempo de análise coletiva, mas também de escolhade orientação política.

b- a Comissão era o instrumento dessa vontade política da Comuni-dade e das comunidades regionais; enquanto as comunidades esta-vam implicadas nesse trabalho, a Comissão constituiria o corpo exe-cutivo delas (ela foi aliás, formalmente, o Conselho provisório daComunidade enquanto durou a Assembléia Geral, até a eleição dopróximo Conselho, isto é, durante um vazio de poder).

c- quanto a mim, eu era o meio que a Comissão tinha para realizarsua missão e, sobretudo, para ajudar a tomar consciência de suaresponsabilidade (política) e implicação do grupo e de cada umde seus membros.

Devemos acrescentar que esses diversos esclarecimentos de papéisforam feitos simultaneamente, uns em relação aos outros, não em trocasprévias, mas no calor da discussão, durante o primeiro dia de trabalho,através de minha inesperada implicação afetiva.

Pode-se aqui recolocar e aprofundar a questão evocada anterior-mente, sobre o caráter relativo de exterioridade do interventor enquan-to terceiro.

O termo relativo não deve evidentemente ser compreendido comoequivalente ao adjetivo parcial ou imperfeito (relativamente quente, porexemplo): o interventor não é “um pouco” exterior.17 A análise que pre-cede sobre nossa posição em relação à Comissão mostra bem o que sedeve entender como qualificando uma relação que só adquire sentidoem relação a outras.

Certamente, nossa posição profissional e inserção institucional, nossosobrenome (LÉVY) – e o fato de que não tínhamos nenhum vínculo ins-titucional com a Comunidade nem com qualquer organização semelhante– faziam de nós um interlocutor válido para o que se esperava. Mas issoresultava não de uma diferença de natureza, existente no real, entre nóse os membros da Comissão, mas do efeito de sentido que as qualificações(psicossociólogo, membro da A.R.I.P., judeu) tinham para eles, por meiodas quais eles nos davam uma referência simbólica. (Já assinalamos aingenuidade que consiste em crer, a partir dessas diferenças em status

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e posição social, que não visávamos nenhum interesse – ideológico, porexemplo – em nossa associação com eles e em nossa implicação em seusproblemas).

Esse efeito de sentido, que se traduzia em um contrato implícito re-gendo nossas respectivas relações e tornando possível, em conseqüên-cia, o desenvolvimento de um certo trabalho, não se produz, entretanto,sem que nossa posição social distinta seja associada a outras diferençasno interior da Comunidade – entre os diferentes status sociais, entre ascomunidades regionais, entre a Comissão e o Conselho, entre outros es-calões – e, particularmente, entre o que havia sido a última AssembléiaGeral e o que seria a próxima.

Nesse sentido, nossa alteridade, como terceiro, era “relativa”, semque isso excluísse – antes pelo contrário – o fato de que estivéssemosimplicados em todo um sistema de relações e sem que isso nos diferen-ciasse radicalmente de outros membros da Comunidade.

Não queremos fechar esse exemplo de intervenção sem dizer algu-mas palavras sobre a seqüência do trabalho que pudemos realizar com aComissão, a partir desse primeiro dia, e sobre o que pôde ser produzido.

Na sua maior parte, nosso trabalho centrou-se na maneira pela qualos membros da Comissão liam e escutavam os documentos – cartas, rela-tórios de reuniões, esquemas de análise de problemas a serem submeti-dos à Assembléia Geral, estatísticas – que lhes chegavam (alguns dentreeles haviam mesmo, como membros dessas comunidades regionais, par-ticipado da redação de uma parte desses textos) e sobre a maneira comoformulavam, por sua vez, a partir desses documentos, suas análises dasituação sob forma de textos preparatórios da Assembléia Geral, destina-dos a serem comunicados à Comunidade.

Não é necessário lembrar que esse trabalho tinha representações pré-vias subjacentes: representações de cada membro da Comissão a respeitodo que era a Comunidade e do que ela deveria ser, que se traduziam emdiferentes maneiras de hierarquizar os problemas e de definir as linhasde clivagem ou de oposição (dependentes, por exemplo, da importânciaatribuída às pessoas, às instituições ou às atividades).

Tudo isso, aliado a uma tendência intelectual de globalizar os pro-blemas, de associá-los a opções teóricas ou ideológicas abstratas, tornavamuito difícil uma escuta atenta do conteúdo dos textos, assim como umtrabalho de elaboração de hipóteses interpretativas.

Foi preciso, assim, lutar para tornar o trabalho mais lento, fazercom que se ficasse mais tempo examinando detalhadamente os textos,

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considerando questões particulares, aparentemente menores; ou ainda,interrogar sobre a importância e extensão de certas caracterizações mui-to apressadas, ou de análises feitas em termos de escolhas dicotômicascom base em princípios gerais, ou mesmo, algumas vezes, sobre pala-vras fetiches, carregadas de subentendidos (por exemplo, o “projeto sa-cerdotal” ou o “projeto espiritual”).18

Um exemplo: havíamos observado que o grupo tinha tendência aconsiderar superficialmente, sem dar muita importância, as cartas queexprimiam uma opinião muito pessoal ou muito particular e as opiniõesmencionadas nos relatos como sendo de uma única pessoa (“Um padredisse...”). Fizemos com que se notasse que todas essas expressões ti-nham em comum serem apresentadas como emanando de uma únicapessoa, que elas estavam marcadas por esse signo: “um padre disse”,diferenciando-se assim daquelas que se apresentavam como produtode uma elaboração coletiva; encontrava-se talvez aí o problema do lu-gar das pessoas e da experiência individual na Comunidade, da expres-são individual particularizada em relação à experiência geral; talvezcertos conteúdos não pudessem ser expressos senão sob essa rubrica; oque significava não considerá-los?

O que se elaborava, assim, por meio desse trabalho preparatório e,em seguida, na Assembléia Geral, era uma representação cada vez maiscomplexa e contraditória da Comunidade.

No curso desse processo, a principal dificuldade foi a de situar asverdadeiras clivagens, não em relação a princípios gerais e mutuamenteexclusivos, segundo os quais as definições da Comunidade, suas regrasde vida e suas instituições seriam colocadas em eixos – seja a crença emcertos valores, seja a coabitação em um mesmo lugar, seja o conjunto deatividades –, mas em relação às diferentes posições ocupadas pelas pes-soas e grupos coexistentes na Comunidade – do ponto de vista do di-nheiro, da segurança, da idade...

Isso implicava o abandono da busca de uma definição geral na qualalguns termos-fetiche representariam de maneira fictícia a unidade daComunidade e, em contrapartida, implicava também o reconhecimento eaceitação de discursos múltiplos, refletindo situações particulares dife-rentes, algumas vezes concorrentes e eventualmente incompatíveis.

Essa dificuldade surgiu durante o trabalho com o grupo, antes daAssembléia Geral e no seu decorrer, sob forma de propostas contraditóriaspara se organizar o trabalho da assembléia (por exemplo, a definição dapauta dos diferentes dias, as questões a serem submetidas a voto etc.).

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Pôde-se assim, por exemplo: analisar as diferentes funções possí-veis de um voto, suscitadas por textos formulados de formas diferentes:fazer brutalmente o contraste entre duas opções mutuamente exclusi-vas e igualmente absolutas – com o efeito provável de impedir toda es-colha verdadeira e de criar uma unanimidade factícia sobre um textosuficientemente abstrato para conciliar as contradições (por exemplo, o“serviço concreto do Homem”); fazer uma sondagem, facilitando a es-colha de futuras estratégias; criar uma situação nova, permitindo reve-lar conflitos latentes e facilitando a continuação da discussão.

Para concluir, assinalarei que minha colaboração na Comissão ter-minou, de comum acordo, na véspera do dia em que deveria ocorrer aeleição do próximo conselho, isto é, justamente antes de cessar o vazio depoder assumido pela Comissão cujo compromisso fora o de conduzir otrabalho de análise coletiva.

Intervenção e organizaçãoIntervenção e organizaçãoIntervenção e organizaçãoIntervenção e organizaçãoIntervenção e organização

Essa última observação permite-nos introduzir uma questão final:que relações há entre, de um lado, a intervenção e o processo de análiseque ela instaura e, de outro, o processo organizacional? A análise é anti-organizacional, opõe ao desenvolvimento da organização? Ou, ao con-trário, ela constitui uma terapêutica dessa última, permitindo-lhe aumen-tar sua força, melhorar seu funcionamento, seu rendimento? Ou situa-seem outro plano, a-organizacional?

Bem entendido, tais questões vão de encontro àquelas que tratamossob o ângulo das relações entre o analista e o grupo junto ao qual eleintervém.

Uma primeira abordagem da questão é fornecida pelo conceito depesquisa-ação, quando aplicado a um processo de intervenção, visto en-tão como desenvolvendo-se em dois planos – empírico e acionador, deum lado, reflexivo e crítico, de outro.

Nessa perspectiva, a intervenção não se limita a uma prática de mu-dança cujo único objetivo seria o de favorecer a evolução de uma situaçãoe sua compreensão por atores nela implicados, mas seria também ummeio de produzir um saber específico a respeito das organizações; alémdo sentido que as interpretações e tomadas de consciência podem ter emrelação a situações específicas e a problemas concretos, elas podem con-tribuir para esclarecer os processos organizacionais em geral.

Mas o conceito de pesquisa-ação (se não o tomamos em um sentidoestritamente lewiniano) não corresponde a uma simples relação de dois

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processos: a pesquisa ou produção de conhecimentos de um lado, a açãode outro; ela também não é, como alguns às vezes pretenderam, umaafirmação da identidade desses dois processos; ela implica, antes, que aprópria relação leve a uma redefinição profunda de cada um deles – aomesmo tempo, a outra concepção da ação e a outra concepção de orga-nização do saber.

Com efeito, a perspectiva lewiniana da pesquisa-ação parece-nos li-mitada pelo fato de não realizar essa revolução epistemológica, sendo mar-cada pelas concepções tradicionais do saber e da ação; o fato de relacioná-las é visto essencialmente como o estabelecimento de uma relação dealiança, traduzindo-se pela postulação de uma ausência de contradição ede uma complementaridade entre a lógica da ação e a lógica da pesquisa,uma colocada a serviço da outra, o que é expresso implicitamente em afir-mações como: “quanto mais se sabe a respeito disso, melhor se fica”, “quan-to mais houver saber, mais a ação é eficaz e pertinente”.

Ora, essas afirmações estão longe de serem verificadas; ao contrá-rio, podemos acentuar o fato de que a ação supõe, necessariamente, umadose de desconhecimento, senão de cegueira. Em um trabalho anterior,tivemos a oportunidade de demonstrar, com precisão, como o fato deignorar as contradições no subsistema da pesquisa, isto é, entre o qua-dro experimental de uma estrutura de intervenção e o conjunto do siste-ma organizacional no qual essa estrutura se insere, leva a menosprezara maneira como os saberes assim produzidos dependem de sua impor-tância prática, de normas e de valores próprios às situações nas quaissão elaborados e utilizados.

Assim, a concepção segundo a qual as ações-pesquisas estariam aserviço do conjunto de uma organização pareceu cada vez mais ilusó-ria, à medida que as experiências evidenciavam que os conhecimentosque surgiam, longe de terem um valor geral ou intransitivo, eram sem-pre escolhidos em função de interesses particulares e contingentes; quea inserção dos interventores-pesquisadores em uma organização tra-duzia-se em alianças de poder e, conseqüentemente, em uma modifi-cação das relações de poder, assim como em reforço das representa-ções da organização como um conjunto sem conflito, susceptível deevoluir em direção a uma racionalidade crescente e a uma transparên-cia cada vez maior de seus processos internos (particularmente dosprocessos de tomada de decisão).

A análise dos limites e das contradições da pesquisa-ação lewinianadesemboca assim em uma crítica epistemológica do saber e da ação e desuas relações recíprocas.

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Ao se pensar a realidade e a ação, o saber-objeto é necessariamenteconsiderado dentro de uma perspectiva utilitarista e de controle – ilusãoque é desmentida pela irracionalidade das condutas, pelas restriçõesimpostas por estruturas sociológicas e psicológicas, pela existência deconflitos e contradições irredutíveis.

Mas esse saber-objeto (ou conteúdo do saber) representa apenasa parte mais visível, a mais simbolizável, do plano da experiência edo trabalho designado pelo termo; é a parte que permite trocas e ma-nipulações.

Com efeito, os conteúdos do saber se desenvolvem e adquirem sen-tido na experiência de relação na qual o sujeito está implicado, cujo sig-nificado é apenas parcialmente simbolizável.

Assim, em um processo de escrita, por exemplo, ocorre muito maisdo que a transmissão de conteúdos prévios: o ato de escrever os faz exis-tir e, ao mesmo tempo, os transforma.

O saber, como experiência, implica todo um trabalho sobre si, sobreseu passado, sobre seu presente e sobre suas relações com os outros, como mundo, e tem sentido apenas para o trabalho e no trabalho.19

Por isso, tratando dos processos de pesquisa, já assinalamos queeles não se reduzem a uma coleta (objeto-entrevista mais objeto-entre-vista) de “material” informativo ou de dados a respeito da situação. Osefeitos “secundários” dessas entrevistas podem ser bem mais impor-tantes (em termos de efeitos de sentido) que os resultados informati-vos – efeitos de decisões tomadas durante a organização das entre-vistas, discursos produzidos paralelamente ao levantamento, eminstâncias não controladas pelo investigador e fora de sua presença,efeitos produzidos sobre as pessoas entrevistadas devido à própriasituação de palavra etc.

A pesquisa representa processos de produção de conhecimentos e desua elucidação que têm como efeito não apenas modificar, em uma organi-zação ou em uma sociedade, as linhas de clivagem entre o saber e o não-saber, entre as zonas de saber assumidas e as que não o são, entre suaapropriação ou não por alguns em detrimento de outros, mas também mo-dificar as linhas de clivagem entre o dizível e o indizível, entre os lugares depalavra e os de não-palavra, entre o que pode ou não ser escutado.

Por essa tendência e não por uma afirmação de princípio é que sepode apreender o vínculo entre esse processo e o da organização, nacondição de que essa seja considerada não como um agrupamento (umaempresa, uma escola), mas como um processo, um sistema de ação.

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Tal concepção de organização, que, ao mesmo tempo, está subja-cente e resulta de intervenções psicossociológicas, já foi evocada an-teriormente.

Ela repousa na idéia central de que o desenvolvimento de um pro-cesso organizacional consiste na instauração de uma perspectiva tem-poral nas atividades e relações, instalando-as nas coordenadas de tem-po e espaço. De alguma forma, uma organização funda um campotemporal – um antes e um depois – e divide o espaço material geográfi-co: é suficiente, por exemplo, fixar horas e lugares de reuniões para quenasça um embrião de organização.

O termo requer então as noções de lugar e de tempo, tem subjacen-tes uma afirmação e uma negação: aqui e não lá. Esse golpe de força, sem oqual se formariam apenas vínculos episódicos, e sem o qual nenhumaação consecutiva seria possível, é a condição de toda vida social, de todaconstrução material, espiritual ou mesmo afetiva.

O processo organizacional funda-se, assim, em uma negação do in-consciente, especialmente do desejo de onipotência. As regras e proibi-ções que materializam essa negação instauram um funcionamento regi-do pelo “princípio secundário”; a racionalidade que elas introduzempermite o desenvolvimento de uma atividade criadora e sua inserção nahistória, permite aos homens escapar do ciclo da repetição. Não se trataentão de uma racionalidade mecânica, contabilizável ou informática, quepretenderia circundar o sentido, mas, ao contrário, de uma racionalidadecriadora, que não exclui nem dúvida nem incerteza.

Se a existência de regras e proibições funda uma organização, essa,para perdurar, supõe igualmente o desenvolvimento e a circulação derepresentações. As regras dividem e separam, enquanto que as represen-tações visam a dar um sentido unitário e homogêneo a essas divisões,clivagens e limites; dito de outra forma, visam a introduzir, no nível dopensamento, o desejo de tudo controlar.

O que faz com que uma organização seja uma atividade viva e criado-ra, produtora da história e não de um estado de coisas mortífero, éprecisamente a impossibilidade, para essas representações – esses dis-cursos de representações –, de realizarem sua meta de dar sentido, desuprimir as contradições que as atravessam (já observamos como elasreproduzem e contribuem para reforçar as divisões e as clivagens esão pegas em estratégias e alianças). Daí o hiato persistente entre, deum lado, o desejo de tudo compreender e, de outro, a necessidade dedividir, de separar, de limitar.

Intervenção como processo

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

Paralelamente aos discursos escritos – enunciados de significaçõesfechadas –, uma palavra continua, assim, a se desenvolver; os sujeitospodem então assumir o desejo e a impossibilidade de dar sentido, perse-guir o projeto enfrentando seus limites e esclarecer as relações entre assignificações contraditórias que assim se engendram e se encadeiam aosmitos e às fantasias inconscientes que as ligam a seu passado.

Respondendo a uma demanda de palavra, até então bloqueada ouproibida, a intervenção psicossociológica contribui então para fazer reco-nhecer que nem tudo é organizável, que a organização exprime e realizaapenas uma das dimensões do sujeito; fazendo isso, ela implica umareviravolta de perspectiva: se ela é possível apenas como uma resposta aoque é vivido como crise de sentido, ela se choca assim, em seu primeiroesforço, com o desejo de reencontrar o sentido perdido e, então, de ignoraras implicações dessa inversão. Colocar de novo em circulação as signifi-cações imobilizadas, dar de novo às representações sua posição de dis-curso e fazer com que sujeitos que falam as assumam, já é um ato quecontribui para deslocar os limites e as linhas de clivagem, ou, ao menos,as que dizem respeito ao dizível e ao indizível.

Porém, dar a palavra ou contribuir para a sua manifestação não ésuficiente; é importante, sobretudo, acompanhá-la e ajudá-la a se desen-volver, a despeito dos obstáculos e temores que ela provoca, quando seusefeitos se fazem sentir na vida cotidiana através de acontecimentos im-previstos, da emergência de novos atores ou de decisões que rompem comum certo passado e abrem outras possibilidades.

Dessa forma, a intervenção participa do processo organizacional enão da reificação de uma “Organização”, na qual os lugares ocupadospor cada um teriam como referência uma lei imanente e onde todos osdesejos seriam considerados e explicados:20 “Organização” totalitária,que supõe a história acabada e que é o oposto tanto da organização –processo dinâmico que cria a história –, quanto da análise que a tornapossível, mantendo vivo o passado, ao mesmo tempo em que rompe coma fascinação que ele exerce.

Notas1 Traduzido de: DUBOST, Jean e LÉVY, André. L’Analyse social. In: ARDOINO et al.

L’intervention institutionnelle. Paris: Payot, 1980, p. 69-100, por Marília Novais daMata Machado.

2 “Vers une psychosociologie psychanalytique”. Connexions, 29, I/1980.

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3 Inspirado em G. LAPASSADE, Connexions, 29, I/1980.4 Em termos mais sofisticados, trabalhando com a própria contratransferência.5 Cf. Notas sobre a origem e a evolução de uma prática de intervenção psicossocio-

lógica. Traduzido de: DUBOST, Jean e LÉVY, André. “L’Analyse social”. In: ARDOINOet al. L’intervention institutionnelle. Paris: Payot, 1980. pp. 49-68.

6 Por exemplo: Max PAGES. “Une intervention psychosociologique sur les structures etles communications sociales”. Sociologie du Travail, 196l.

7 Cf. especialmente o capítulo sobre intervenção de M. CROZIER. “L’acteur et le sys-tème”. Paris: Seuil.

8 Descrita e analisada mais detalhadamente em A. LÉVY. “Sens et crise du sens dans lesorganisations”. Thèse d’Etat, 1978, inédita.

9 FREUD, S. Mal-estar na civilização.10 Particularmente em “Analyse et critique du groupe d’évolution” e “ L’analyse dans les

groupes de formation”, Connexions.11 “Dire la loi...”. Connexions, 21.12 Esse conceito, introduzido por R. KAES, postula dois aparelhos psíquicos distintos,

um individual e outro grupal.13 “Dire la loi...”. Connexions, 21.14 “Le changement comme travail”. Connexions, 7.15 “Sens et crise du sens dans les organisations”, op. cit.16 Como toda análise de conteúdo, cf. “L’interprétation de discours”. Connexions.17 Segundo o Petit Robert, esse é o sentido corrente do termo “relativo”, ilustrado pelo

exemplo: ele é de uma honestidade bastante relativa.18 Nesse exemplo, a análise desses dois termos permitiu evidenciar que, quando o

projeto sacerdotal era apresentado como englobando o espiritual e não o inverso,isso implicava a exclusão de um certo número de atividades que eram objeto decontestações.

19 Cf. Les Mots, la Mort, les Sorts de J. FAVRET-SAADA, Gallimard.20 L’amour du censeur, de P. LEGENDRE, Seuil; também “Le pouvoir et la mort”, de E.

ENRIQUEZ, em Topique.

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

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As práticas de formação permanente, assim como os discursos ge-rais sobre seus fundamentos, as interrogações a respeito de seu valor e desuas significações explícitas ou latentes, multiplicaram-se consideravel-mente nos últimos anos. Esse número de revista testemunha bem o fato.Entretanto, uma dúvida me invade. Por que realizar tantas atividades deformação? Por que indagar a respeito da incidência de uma escola ou demétodos de formação, ou, ainda, sobre um possível papel que têm nareprodução das relações sociais? É que esse ativismo formador e seu pos-sível denegrimento ocultam dois problemas fundamentais:

l- O que ocorre de essencial no ato formador, o que nos interpela efascina no seu próprio movimento: a quase certeza de seu fracassoinelutável, toda educação carregando a marca do impossível e dei-xando o gosto amargo do inacabado, a repetição do discurso infi-nito e sempre a ser retomado.

2- E também o que é o próprio sentido desse movimento, de todaatividade de formação, isto é, o procedimento de exclusão do real e,mais precisamente, de intervenção sobre as estruturas e os siste-mas, possibilidade e multiplicidade das comunicações, reinvesti-mento de energias de outra forma e em outro lugar.

Dizendo o mesmo com outras palavras, e mais violentamente, aspráticas de formação, como a maior parte das indagações a respeito daformação, tendem a ocultar não apenas a experiência do vivido da forma-ção, mas também a formação como processo de preclusão da mudançasocial e da transformação das relações sociais.

Por isso, nesse breve artigo, e, sem dúvida, de forma concisa e injusta(mas, por que ser tolerante? Como dizia CLAUDEL: a tolerância, há casaspara ela), tentaremos mostrar que o discurso e as práticas dos formadoresque acreditam nos efeitos benéficos de toda formação, que o discurso dospsicólogos centrado no encontro interindividual e que os discursos dos

DA FORMAÇÃO E DA INTERVENÇÃO

PSICOSSOCIOLÓGICAS1

Eugène Enriquez

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

sociólogos perdidos na crítica das ideologias e das conseqüências da for-mação são não apenas perfeitamente aborrecidos e freqüentemente inú-teis, mas também têm, cada um à sua maneira, o mesmo objetivo: impediros atores sociais reais de se soltarem das malhas nas quais eles se encontrame ser capazes de tentar assumir seu devir, sua vontade e sua imaginação.Gostaríamos também (pois só o discurso crítico assinala sua pertinênciaao discurso criticado) de indicar, situando a prática que buscamos pro-mover, quais são as vias que favorecem a experiência vivida e a recoloca-ção em ato das relações sociais.

Análise dos discursos atuais sobre a formaçãoAnálise dos discursos atuais sobre a formaçãoAnálise dos discursos atuais sobre a formaçãoAnálise dos discursos atuais sobre a formaçãoAnálise dos discursos atuais sobre a formação

Três perspectivas serão consideradas:

l- a dos formadores e educadores;

2- a dos psicólogos;

3- a dos sociólogos críticos.

A perspectiva formadora

Ela se baseia em uma análise exata do mundo atual: as transformaçõestecnológicas, o progresso dos conhecimentos, as mudanças nas discipli-nas e a necessidade de interdisciplinaridade tornam rapidamente obsoletoo saber que cada um dispõe, advindo a necessidade, de um lado, de recicla-gem e, de outro, de uma nova oportunidade oferecida aos que não puderamtirar proveito da escolarização à qual tiveram acesso. Assim, a formaçãopermanente torna-se indispensável. Orienta-se (e não apenas na China,onde toda a sociedade é dirigida por uma vontade educativa) para umasociedade educativa, para um sistema onde, a todo momento, cada umdeverá atualizar seu saber e questioná-lo, a fim de poder seguir as mudan-ças e, ainda mais, para desejá-las e provocá-las. Toda formação, todo cres-cimento no domínio das informações, toda aprendizagem de técnicas teria,então, um efeito positivo para o formado, que estaria mais à vontade paraviver e compreender o mundo técnico e social no qual está. Certamente,alguns métodos de formação são preferíveis a outros. Será preciso empre-ender uma experimentação de diferentes métodos e técnicas, assim comoaperfeiçoar os sistemas de avaliação dos resultados, a fim de se chegar auma formação verdadeiramente pertinente para os objetivos propostos.Trata-se, então, de tempo, de paciência, de investimento pensado. O proble-ma é unicamente operatório, mesmo se a noção de operação implica que seseja obrigado a ter em conta motivações, resistências, temores do formado econdicionamentos sociais.

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Essa visão nos parece radicalmente falsa e acentua a ideologia tecnocráti-ca de direita ou de esquerda (do poder); ela tende a fazer crer que é precisoreforçar o eu consciente voluntário dos indivíduos, armá-lo solidamentepara que ele seja capaz de se comportar de maneira adulta, vendo exa-tamente o que ele pode fazer no mundo tal como ele é. Quantos pres-supostos!

Tentemos demonstrá-los: o real é definido estritamente pelas estru-turas atuais. Ora, o real é o que escapa a toda definição, é o que excedetoda análise, mesmo se toda análise visa a circunscrevê-lo e defini-lo. Oreal não está lá, como uma coisa a ser tomada e a ser controlada; ele serevela na ação, na transformação e ele é, estritamente falando, inesgotá-vel. Todos os teóricos da Sociologia e da História sabem bem, hoje, queas reconstituições são parciais, sempre a serem melhoradas, que as cau-sas determinantes não existem, que os acontecimentos que fizeram ospovos passar de uma epistéme (FOUCAULT) a outra não são apreensí-veis,2 que o sentido descoberto reenvia sempre a um outro sentido pos-sível ou a um não-sentido. Freud sabia que podia interpretar os sonhosde seus pacientes mas que, além de toda interpretação, ele chegaria ne-cessariamente ao ininterpretável, ao umbigo dos sonhos; da mesma for-ma, sabemos agora que há um “umbigo do real” que nunca se deixarádecifrar e que a única esperança de abalá-lo um pouco é fazê-lo falar pormeio de golpes de força. Falar do real é simplesmente submeter-se às es-truturas tais como elas são reveladas no discurso dos donos do poder. Ocomportamento adulto é o comportamento refletido, cartesiano, sem pai-xão, sem sonho nem loucura”,3 referindo-se ao racional e ao controle.Talvez comecemos a nos dar conta (e LAPASSADE já o demonstrou muitobem em seu livro L’entrée dans la vie) que não há comportamento adulto,que o homem está sempre por nascer, que é próprio do desejo ser deslo-cado infinitamente, que a libido é turbulenta; que falar de comporta-mento adulto é nomear simplesmente o comportamento perverso dotécnico e do tecnocrata que crêem na virtude de seu logos e de seusinstrumentos, além de anularem toda diferença e toda dispersão, atra-vés da ordem, da medida, do cálculo, quando não se trata simplesmente deaceitar a superioridade do pensamento ocidental, mestre das leis e da mor-te, sobre qualquer outro pensamento (o da criança, o do louco, o do primiti-vo e, portanto, o do outro, que se torna assim excluído). Quanto à vontadede reforçar o eu consciente voluntário, ela tem por finalidade fazer calar odesejo inconsciente, as brechas repentinas, os blocos erráticos, os “docu-mentos” que buscam seus caminhos e seus objetos e reforçar a ilusão do eusólido (“sou senhor de mim mesmo como do universo”), obtido apenas

Da formação e da intervenção psicossociológicas

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

com a supressão de todo excesso e de toda novidade. Ela visa a reforçaro que denominamos imaginário enganoso (em relação ao imagináriocriador),4 isto é, as imagens engendradas pela complementaridade dospapéis sociais, imagens protetoras, emblemáticas e carregadas com asubmissão de cada um a seu status e a seu papel social. “Que se explodade carne humana e perfumada”. Esse voto de MALLARMÉ não temespaço algum nessa concepção. Ela parece derivar dessa máxima terrí-vel (deformação do pensamento de FREUD): “O eu deve desalojar o id”.Quando houver apenas Eus fortes, a humanidade estará, então, plena-mente livre para encarar as onipotências narcíseas e para o conflito ge-neralizado, cuja única saída é o aniquilamento mútuo.5 Certamente, dehábito, as ações formadoras são sustentadas sub-repticiamente por doisprincípios que não têm o mesmo peso nem o mesmo sentido:

l- Toda ação de reforço do eu controlador é acompanhada por umaaprendizagem da dúvida, do questionamento do saber obtido.

2- A ação de formação visa principalmente à adaptação a um realcotidiano e não tem, por isso, as conseqüências que acabam de serenunciadas.

Como é o funcionamento desses dois princípios?

l- O primeiro é o princípio fundamental de toda Pedagogia e nãotem nenhuma originalidade. Sempre foi dito que era preciso queas cabeças fossem bem feitas e não apenas preenchidas e que erapreciso aprender a dúvida metódica enquanto procedesse à acu-mulação de conhecimentos. E nunca esse programa foi mantido,pois ele não pode sê-lo, se for atravessado pela ideologia do se-nhor. Como viver o desejo do pleno, do que tranqüiliza, do que dápoder sobre o trabalho e outras coisas, a alegria da certeza e, aomesmo tempo, o seu contrário, o confronto com a finitude, a opaci-dade, a ruptura e a falta? Nossa experiência de vinte anos comoformador e de dez anos como professor universitário nos fornece, acada dia, as provas de sua impossibilidade, embora não se possacrer na impossibilidade teórica de casar essa água com esse fogo.Aliás, não se trata aqui de uma simples metáfora. Temos de umlado o conhecimento, como uma água calma, desenvolvendo-seprogressivamente, seguindo etapas pedagógicas rigorosamentedefinidas e afogando – lenta, mas seguramente – tudo o que nãoentra nas normas e na edificação de uma boa cabeça pensante. Deoutro lado, temos a bola de fogo, as variações de temperatura, aenergia que se desprende, a angústia de se perder no turbilhão dequestões. Ora, como diziam os alquimistas, falando dos signos da

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água e do fogo: a água apaga o fogo. Então, pode haver dúvidaapenas se ela estiver no ensino como o verme no fruto e apenas senão houver certeza, mas uma relação angustiada com o saber.Como escreveu Piera CASTORIADIS: “saber exige renúncia àcerteza do sabido; querer a certeza implica na recusa em reconhe-cer que todo saber de um movimento contínuo...” Pensamentomítico e pensamento científico mostram, a despeito de suas dife-renças, o lugar que aí vêm ocupar a nostalgia de uma certeza per-dida e a de um primeiro modelo de atividade psíquica no qualsaber e certeza coincidem. Se o efeito dessa nostalgia parece de-crescer quando se passa de um discurso mítico para o discursocientífico, permanece ainda o fato de que esse último só podeconquistar seu lugar deixando-se atribuir um objetivo semelhan-te ao de seu predecessor: prometer ao sujeito que renuncia à cer-teza do mito e do discurso sagrado um saber que se oferece comouma possível via de acesso a uma certeza futura e sempre diver-sa”.6 Ora, toda formação com objetivo científico acrescenta a dúvi-da às certezas. Conclusão: o que permanece são as certezas, adúvida sendo dissipada como uma eflorescência vaga. Isso é tes-temunhado a cada dia nos discursos dos mestres do saber quepreenchem com suas palavras o vazio de suas vidas ou mesmoutilizam instrumentos que forjaram para dominar os outros. Ostecnocratas, os psiquiatras aliados do poder, os sociólogos conse-lheiros do príncipe não nos desmentirão.

2- Quanto ao segundo princípio, ele exprime o fato de que não estáem questão distribuir o conjunto do saber a todo mundo, mas so-mente o saber útil e rentável para quem o distribui. Se os dirigentessão formados em técnicas de gestão é para que a empresa seja maiscompetitiva; se os operários especializados podem aprender cer-tos ofícios é por que nos faltam profissionais. Se os migrantes apren-dem a língua do país é para que se integrem melhor aos hábitos ecostumes do país que os acolhe e para que se comportem melhorcomo trabalhadores. Essa falsa formação assinala o desprezo queos dirigentes têm por seus subordinados. É como lhes dar miga-lhas de saber que lhes permitirão ser ainda mais submissos ao tra-balho e ao respectivo papel na divisão do trabalho.

Igualmente, se a formação tem como perspectiva fornecer aos for-mandos o meio de ficarem mais seguros de si mesmos em seus postos detrabalho, sem que eles possam se perguntar por que eles e não outrosocupam esse posto ou por que esse posto existe e em que estrutura ele

Da formação e da intervenção psicossociológicas

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ocorre, que relações de poder ele pressupõe, é preciso, então, rejeitartotalmente essa perspectiva como perfeitamente alienante (como “pri-vação de consciência”, como o escreveu TOURAINE7) e como reforça-dora do processo de esquizofrenia social. Acrescentemos que, além do mais,é ela que mais freqüentemente dirige os métodos educativos escolares euniversitários e a maior parte das técnicas dos formadores da indústria.

A perspectiva psicológica (inter-relacional)

Seremos mais breves a respeito dessa perspectiva, não porque elaapresente menos interesse ou porque nos mostremos mais tímidos ao cri-ticá-la, mas porque apresenta, no momento, impacto social menor (esta-mos, aliás, no momento em que ela começa a ter o direito de ser citada).

A perspectiva fundamenta-se na idéia de que a pessoa, alienada nasociedade contemporânea, deve ensaiar novas comunicações com os ou-tros e consigo mesma, estar em situação de tomar consciência de seuscomportamentos e do efeito que eles têm sobre o outro, ter um outromodo de relação com os outros, com seu corpo e com seus desejos.Horizonte grande e enaltecedor, ao qual muitos poderiam se subscre-ver. É talvez por essa razão que, enquanto há vinte anos os estágios dedinâmica de grupo encontravam obstáculos (os participantes tendomedo de se questionarem), esses mesmos estágios, assim como as expe-riências de bio-energética, gestalt-terapia, liberação corporal e sexual, gru-pos de encontro, passaram a ter um sucesso que parece inquietante paraquem “não faz grupo” na hora atual. Um importante dirigente interna-cional não dizia, há alguns anos, em um congresso de chefes de empresa,que era necessário que esses chefes seguissem grupos conduzidos porpsiquiatras para serem capazes de tolerar a ansiedade inerente à direçãodas grandes empresas modernas?

O único inconveniente, mas de peso, é que a pessoa, o homem, nãoexiste. O que existe são indivíduos de uma dada sociedade, vivendo emuma cultura ou em uma subcultura precisa, tendo recebido um certo tipode educação, inseridos em instituições e tendo um certo lugar no processode produção e de reprodução.

O que quer dizer aprender a comunicar? Trata-se de comunicar-secom o patrão, a mulher, o cachorro ou com o estrangeiro que, algumasvezes, não chega a ser considerado nem como um cachorro? Que querdizer reconhecer seu corpo com seus poderes aterrorizadores em estágiosonde o corpo é entregue aos outros como elemento de manipulação? Comoviver a dolorosa confrontação com esse corpo, no qual se inscreve toda

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uma história, que sofre e que ama, que barra o acesso aos outros e que édemanda de amor, contentando-se a brincar com ele como se se tratassede um instrumento controlável? Isso chega ao máximo nas inépcias dossexólogos atuais e de seus miseráveis manuais que tendem a sistemati-zar um saber sobre a sexualidade, como se a relação passional entre doisseres pudesse ser colocada em fórmulas, em técnicas e em posturas. Tem-se que ser tão débil quanto os sexólogos americanos e seus discípulosfranceses (esses sendo ainda mais estúpidos que os primeiros, pois sãoapenas seguidores) para acreditar nisso.

Comunicamo-nos sempre através de um conteúdo, de um dispositivo eenquanto não questionamos esse conteúdo e esse dispositivo, não temosnada a dizer. Certamente o amor-paixão e a ternura estão além das pala-vras. Mas, justamente, eles não se explicam. Como escreve S. LECLAIRE:

Quando, num momento de estado de graça, ocorre-me dizer auma mulher: ‘eu te amo’, alguma coisa explode em mim, renas-ço. Sua beleza desencadeia esse prodígio, feito de uma explosãoque me fascina, de uma luz na qual me banho, que dá a cadaparte de seu corpo, a seu cheiro, à sua voz, à sua pele e às suaspalavras um atrativo que nada pode desmentir.8

Pode-se apenas descrever tal estado, mas não explicá-lo e ainda menosprovocá-lo. Não se aprende o amor, pois ele é o choque de duas verda-des que lutam contra a (e a partir da) morte.

Então, tudo seria mentiras e ilusões nesse tipo de estágio? Res-pondemos tranqüilamente que sim, se ele tem como finalidade apren-der a se comunicar melhor, compreender-se melhor e se ele visa à ple-nitude. Ele é apenas uma das fabulações que o mundo modernoencontrou para mascarar sua frieza e a generalização da separação queele instituiu. Em contrapartida, permite colocar a questão: de que lu-gar eu falo, a quem falo, por que falo dessa maneira, por quem e porque sou falado, que instituições me sustentam, que desejos elas reto-mam ou reprimem?; então, pode-se considerá-lo uma propedêutica auma análise social onde cada um é ao mesmo tempo ator e analista,sujeito e objeto de desejos contraditórios do outro. Entretanto, mesmonesse último caso, subsiste um problema intransponível: o da lingua-gem (palavra ou gesto) em um lugar fechado, durante um tempo de-terminado. Trata-se unicamente de relações faladas e, como tais, sujei-tas a serem apropriadas pelo discurso ideológico e pelo discursopassional imaginário. O que se troca não é o projeto comum ou proje-tos diferentes, complementares ou antagônicos, que podem ser atua-dos, testados no mundo, dos quais podemos experimentar a boa base e

Da formação e da intervenção psicossociológicas

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

a carga afetiva. São palavras (ou gestos) em um lugar específico, defini-do como um lugar no qual se deve comunicar. Os mais belos discursos eos mais paranóicos (ou, pelo menos, os mais narcíseos) podem, então,ser trocados: alguém vai querer transformar o mundo, questionará asinstituições, os tabus, as proibições, definirá a maneira como trabalhar(fora de lá) para a mudança social. Outro deixará se levar por suas emo-ções, chorará (o próprio ROGERS, e ele é um bom juiz, não se definiacomo o psicólogo do olho úmido?), declarará sua paixão por uma esta-giária, estará pronto a largar mulher e filhos, vai querer se fazer amarpor todos, tomar o lugar do líder, fazer triunfarem suas fantasias, tomaro grupo em seus desejos. Eles podem fazê-lo: nada os obriga somar o atoà palavra, o fazer ao dizer, o tempo ao momento. Eles, ao mesmo tempo,arriscam tudo e nada arriscam. Uma vez de volta às suas instituições,esses discursos, essas paixões desaparecerão ou serão sublimados. Fica-rá apenas a lembrança de um momento único, onde tudo era diferente,onde a graça valia o peso: da impossibilidade de sair do local do semi-nário (mesmo quando o que se passava fora tornava-se objeto de análi-se), da necessidade de que essa experiência se passasse num prazo rela-tivamente breve (entre uma e duas semanas), ou, no caso de práticasaberrantes (tendo por objetivo quebrar as resistências), como os week-ends e as maratonas, do aumento do grau de irrealidade da situação,favorecendo os processos regressivos, as manifestações sem seqüências,as transferências maciças, as fantasias invasoras, os choros e os gritos dealegria. O lento trabalho do negativo, única fonte de mudança, nãopode ser feito. As pessoas são entregues diretamente umas às outras e,assim, não se entregam, no medo e tremor, a não ser que queiram oupossam. Mas o psicólogo está lá para as acossar, para fazê-las sair desuas tocas, a fim de viverem sentimentos intensos, para que entrem emuma relação de transferência. Ei-lo, super-ativo, certificando-se de quenada lhe escapa, analisando com toda a sua força, mostrando assimsua potência, seu rigor, seu “saber-fazer”. E talvez, de tempos em tem-pos, de todo esse bricabraque rápido e mal-controlado, surgirá umapalavra verdadeira que será dita verdadeiramente a alguém, surgiráum acontecimento que é um advento de alguma coisa, entrará em jogoum sentimento “autêntico”, irromperá um lapso, um ato-falho, um sin-toma que engendrará o desconhecido que os participantes arrebatarãopara trabalhá-lo profundamente. Mas, na maior parte do tempo, essaexplosão, esse irromper não ocorrerá, não porá nada em movimento,pois as palavras trocadas, embora plenas, terão sido apenas o delíriobreve de pessoas que não poderão nem quererão se reencontrar de-pois. Como fazer com que essa experiência possa ser verdadeiramente

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uma abertura para novos comportamentos e a irrupção do imagináriomotor? Essa questão será retomada mais tarde.

O discurso dos sociólogos críticos

Aqui temos que lidar com um outro tipo de discurso, que não sepretende voluntarista e criativo como a dos formadores, ou atento evivido como o dos psicólogos, mas científico, evidenciando o conjuntode significações das condutas sociais. Esse discurso se pretende totali-zador e sistemático. Quanto a seu conteúdo, ele é chocante e desespe-rante. Toda formação (qualquer que seja seu programa, seus métodos, aexperiência que nela se faz) é apenas uma máquina para reproduzir asdesigualdades sociais, para expressá-las ou mesmo provocá-las. Afi-nal, toda educação serve apenas para veicular a ideologia dominante,divulgá-la nas massas dominadas e, assim, é o veículo privilegiado dadominação social.

Não é nossa intenção buscar desmentir essa conclusão, que se apoiaem uma massa de trabalhos notáveis e que permitiu colocar em perspec-tiva e questionar duramente o conjunto de métodos educativos. A mensa-gem dada, em sua aridez, parece-nos aliás exata e corresponde a nossaprópria experiência.

Mas, então? Vemos que o que é dito é, simultaneamente, exato e peri-férico (não tocando no essencial). Por que periférico? Uma comparaçãopermite situar nosso pensamento. Muitos autores (inclusive nós) mostra-ram a influência da instituição analítica na prática da Psicanálise, o papeldo analista como a última e a mais forte personagem médica, aquele quedita a norma (M. FOUCAULT), o sentido social do desenvolvimento daPsicanálise e alguns de seus aspectos repressivos (CASTEL, DELEUZE eGUATTARI). Sem dúvida, em muitos aspectos, eles têm razão (mesmosse considerarmos os excessos de seus discursos). O único senão é que,como muito bem o diz J.-B. PONTALIS, “A Psicanálise é o que se passa emPsicanálise”, é essa troca de palavra, é esse turbilhão do amor e da morte,é o encontro indefinidamente repetido do desejo e da lei, da falta e dogozo que se passam no espaço onde dois seres se encontram.

Igualmente, na formação, o que é essencial é o que se passa no cam-po formador, é a capacidade inventiva dos participantes, é a sua desco-berta de si próprios e do mundo que os rodeia, é a tomada de consciên-cia de sua determinação e de sua vontade de fazer. Além disso, falemossério: se a educação fosse apenas transmissão da ideologia dominante,como os sociólogos – criados pelo sistema educativo – seriam capazes

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de criticar essa ideologia dominante? Se eles haviam interiorizado plena-mente essa ideologia, a partir de que poderiam questioná-la? Além domais, se a ideologia dominante tem necessidade de se exprimir é que,justamente, ela não chega a ser totalmente dominante; se ela o fosse, nãoteria mais necessidade de existir e de ter seus arautos e seus porta-vozes.

Encontramos aqui o que sustenta o discurso dos sociólogos e o quelhe falta: o que o sustenta é a crença em um mundo unificado, homogêneo,explicável por um único tipo de lei, crença da qual decorre a tendênciaque eles têm a simplificar seus enunciados; o que lhes falta é considerar oque se passa no concreto cotidiano, isto é, os movimentos sociais emergen-tes, a transformação das relações sociais,9 as palavras inovadoras e asações sociais, em uma palavra, a vida.

É por isso que o discurso dos sociólogos provoca ao mesmo tempoesse duplo sentimento de exatidão e de aborrecimento mortal, de consta-tação aguda e de desmobilização geral. Seus enunciados são tão gerais,tão sistemáticos, que só nos resta, depois de tê-los escutado, cruzar osbraços ou desejar mudar o conjunto do sistema, o que tem como conse-qüência deixar-nos estupefatos diante do tamanho da tarefa.

Os impactos reais e os limitesOs impactos reais e os limitesOs impactos reais e os limitesOs impactos reais e os limitesOs impactos reais e os limitesda formação psicossociológicada formação psicossociológicada formação psicossociológicada formação psicossociológicada formação psicossociológica

Agora é o momento de deixar de lado nossa perspectiva crítica, mes-mo se, nas Questões propostas, tenha sido possível ler, em filigrana,quais eram os princípios que guiavam nossa ação. Para que não restenenhuma ambigüidade relativa à nossa intenção, exporemos uma sériede proposições que nos permitirão mostrar o que a formação não podefazer e, ao mesmo tempo, o que não se pode esperar dela, o que ela escon-de em seu próprio movimento.

É preciso abandonar definitivamente o termo formação

Trata-se de uma experiência, de um processo, de um trabalho demudança, não de uma formação (a rigor, pode-se falar de de-formação ede trans-formação).

O objetivo não é o de formar indivíduos para serem ou fazeremalguma coisa. É o de permitir que pessoas situadas sexualmente, pro-fissionalmente e socialmente se mexam, isto é, que elas possam pen-sar de forma diferente a respeito de Questões novas, com outros tiposde relação com o outro e tendo um acesso menos temeroso a seusdesejos e interditos.

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O dispositivo (integrando o papel do psicossociólogo)deve ser coerente com esse projeto

Quer se trate de favorecer o movimento, as correntes de informa-ção, a criação de negentropia (isto é, de uma nova ordem vivendo a par-tir da desordem), o retorno do recalcado social ou uma experiência demudança, o lugar do psicossociólogo deve ser um lugar vazio. Ele nãoestá lá como alguém que possui o saber (e que o distribuirá), ele não estálá para apontar as inibições e os bloqueios, para provocar as pessoas adizerem ou a falarem, ele não é o portador do sucesso da experiência.Ele está lá simplesmente como uma referência, instituído como o porta-dor da lei sobre a qual os desejos se escoram, um terceiro garantindo ovínculo social e questionando a relação dual; ele é a testemunha de queo dito será escutado e não será esquecido.

Ele está lá sem desejo e sem compreensão particular, ele não querque as pessoas se tornem isso ou aquilo ou cheguem a um objetivoespecífico predeterminado. Ausente, mas, através dessa ausência, pro-vocando a vontade de respirar, uma movimentação de energias. Quan-do ele intervém, ele o faz de forma diferente e de outro lugar que nãoo esperado, ele está sempre deslocado em relação ao que se está a pon-to de viver. Mesmo quando faz uma exposição (e por que, aliás, eledeveria se calar?), o que ele exprime não é resposta às Questões que ogrupo se coloca, mas uma problemática, um encadeamento de Ques-tões, um jogo de luz sobre certos pontos que, assim, fazem surgirformas da sombra; ele oferece não um saber, mas sua relação com osaber, suas falhas, suas interrogações e também suas paixões, seusentusiasmos. Ele está lá vivendo, ele próprio preso à desordem e àprocura de uma ordem, indicando, por isso mesmo, que também eleé possuído pela palavra e pelo desejo, que ele não pode portanto sersituado num lugar determinado, que ele está sempre deslocado (comoo próprio desejo), resvalando, e que ele não é alfinetável nem tentaráalfinetar ninguém ou atribuir lugar a um outro. Por meio dessa au-sência-presença, dessa desordem-ordem, desse lugar desocupado efugidio, ele acompanha o movimento das pessoas no grupo, suas idase vindas, suas descobertas e suas resistências.

As instituições fazem parte do campo de análise

Os participantes que estão presentes existem, na situação, em suasdiferentes dimensões: culturais, políticas, organizacionais. São homense mulheres que têm papéis sociais (membro de um quadro de pessoal,

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enfermeiras, formadores etc.), vivem em organizações específicas, ten-do um passado, projetos sociais, tomando certos caminhos e não ou-tros. Não são pessoas ou seres desencarnados; por isso é essencial quese trabalhe suas relações concretas com as respectivas vidas e com osoutros, com as instituições que lhes falam e que eles fazem falar. Porisso o trabalho do grupo será centrado, não nas relações aqui e agoraentre indivíduos sem passado e sem futuro, mas naquilo que as rela-ções vividas nessa situação exprimem, refletem ou transformam nasrelações vividas em outro lugar, na medida mesmo em que esse outrolugar está presente no grupo (é bem por causa desse outro lugar queeles vieram viver essa experiência). No caso contrário, as diferençassão apagadas, os conflitos não têm mais espessura social, a relaçãocom o saber é suspensa no vazio, as escutas recíprocas são apenasfruto das simpatias e das antipatias espontâneas. Ora, tal funciona-mento é profundamente mistificador. Um exemplo, entre cem, per-mitirá precisar esse ponto: em um estágio com os responsáveis hierár-quicos de uma empresa, um dos membros do grupo era particularmenteescutado, praticamente nunca era contradito e, quando se pôs a evo-car seus problemas afetivos, o resto do grupo o seguiu em bloco. Umoutro participante manifestava, com relação a esse personagem, umaatitude de deferência e de sedução, além de estar sempre pronto aantecipar seus desejos e a satisfazer suas mínimas vontades. Comointerpretar tal situação, caso não se saiba que o homem respeitadoera um dos grandes dirigentes industriais do país, que sua palavra esuas decisões “valiam ouro”, caso não se saiba que esse homem se-dutor acabava de perder o seu emprego em um escalão superior eesperava fazer boa figura para conseguir um emprego ou para estabe-lecer uma relação com uma pessoa poderosa que lhe permitisse reen-contrar trabalho, o mais rápida e seguramente possível? Pode-se já ima-ginar o que um especialista de relações humanas, pedindo que aspessoas do grupo se dirijam umas às outras informalmente, usando osnomes próprios sem os títulos e posição social, teria podido fazer comointerpretação em termos de liderança espontânea, de relação de iden-tificação ou de submissão homossexual!

Essa perspectiva parece-nos mais importante ainda porque, não hámuito tempo, os participantes hesitavam em falar a respeito de si própri-os, de suas relações afetivas, de seus corpos e, hoje, a resistência se deslocou.Os participantes desejam falar de si próprios e de seus problemas, paranão falar de sua situação econômica, de seu lugar no processo de produ-ção e na estrutura de dominação social.

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Tal trabalho deve reintroduzir a dimensão temporal

Quanto mais o estágio for curto, intensivo, de breve duração, me-nos tal processo pode ocorrer. O estágio “bloqueado” por um períodocurto favorece fenômenos irreais, a imersão na vida aqui e agora, o focoem relações afetivas imediatas, o desenvolvimento de fantasias de oni-potência e a manutenção de máscaras sociais. Para que os participantespossam estar verdadeiramente lá é indispensável que os estágios sejamdistribuídos no tempo e que um trabalho de maturação possa ocorrernos intervalos (que são os momentos da vida cotidiana) nos quais osparticipantes se reencontrem consigo mesmos e com as estruturas nasquais vivem. É por isso que somos partidários de estágios longos, de 15a 40 dias (distribuídos em seis meses, um ou dois anos), nos quais cadasessão é continuamente reinvestida pelo que as pessoas viveram, reali-zaram, construíram ou destruíram em seu meio real.

Esse trabalho de mudança não passa mais por umlugar fechado privilegiado nem pela simples palavra

Esse princípio resulta necessariamente do anterior. O lugar fechado,lugar de análise, é aberto sobre o mundo exterior ou, mais exatamente, omundo exterior (o do cotidiano) está presente no estágio. Em cada sessão,os participantes falam do que fizeram, experimentaram, sentiram em seuambiente de trabalho ou em seu meio social. Não estão lá como purapresença, mas como portadores de suas angústias, de suas tentativas, deseus sucessos. Os membros do grupo trabalham sobre esse material, ima-ginam soluções, fazem propostas, experimentam comportamentos quetentarão prolongar. As palavras trocadas nesse lugar definido engendra-rão outras palavras, fecundarão novas atitudes, os desejos emergentes ereconhecidos poderão fazer surgir novos desejos, outras palavras soci-ais, outros atos sociais, da mesma forma que as condutas vividas no lugarhabitual “trabalharão” as condutas surgidas no estágio e poderão provo-car novas rupturas no indivíduo, novas faltas sobre as quais se articularãooutras demandas. A partir do momento em que o desejo circula, em que aspalavras se transformam em ações e em que as ações são analisadas, reto-madas, aprofundadas, confrontadas, não há mais dicotomia entre ato epalavra, conduta e gesto, ação real e ideologia, o imaginário que aí estátorna-se imaginário motor, imaginário instituinte.

O processo de mudança é descentralizado

Enquanto toda formação visa ao reforço do eu consciente e toda pers-pectiva estritamente psicológica tem como finalidade a plenitude afetiva, a

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comunhão, a compreensão autêntica ou o reencontro de um “Eu e Você”,o processo de mudança que tentamos descrever visa à dissolução da perso-nalidade organizada, a colocação em movimento de forças de descons-trução e de reconstrução, o aparecimento da desordem no organismo esta-bilizado. Trata-se, então, de uma situação na qual todas as relações(consigo mesmo, com o outro, com o saber) são descentradas, a fim deque a energia livre, a loucura e o sonho possam ter, de novo, direito deatuarem. Toda formação e toda educação visam a recalcar certas pul-sões, a precluir certos registros (da paixão, do excesso, do gozo). Aqui, oque é excluído tenta (freqüentemente com muitas dificuldades e resis-tências) se manifestar, falar, ter efeitos. Daí os momentos tão diferentesna vida da sessão. Momentos de mutismo e de temor, discursos ideoló-gicos desenfreados, períodos de análise refletida, momentos de embota-mento, de necessidade de alimento, irrupções vulcânicas, expressão grá-fica etc..., a periodicidade desses momentos, sua cronologia e suaimportância não podendo absolutamente serem previstas. E é a própriaausência de previsão que faz com que o grupo tenha uma história, vivapaixões, se interrogue sobre si mesmo, possa, talvez, ver surgir em seuseio outras linguagens ou mesmo um além da linguagem.

Não está, naturalmente, em questão visar à dissolução pela dissolu-ção. O que está em jogo é que sabemos que a ordem se constitui a partir dadesordem, que o amor inexiste sem a experiência da morte, que a lei e odesejo reciprocamente se fundamentam. É em direção a essa experiênciaoriginária que tentamos avançar, todos juntos, mas cada um tendo umarelação específica com os outros e consigo mesmo.

Não nos enganemos entretanto. Essa experiência da heterogeneida-de, do saber alegre, do fogo e mesmo do caos, nesse processo que, porenquanto, somos ainda obrigados a chamar de formação psicossociológi-ca, reencontra muitos obstáculos ou, algumas vezes, impossibilidadestotais. Enumeremos rapidamente algumas dentre elas, evidentes para to-dos os que têm alguma experiência nesse domínio. Resistência vinda deindivíduos em formação, que poderão manifestar um “medo da liberda-de”, uma angústia diante do desconhecido, um temor do esfacelamento eda dissolução definitiva e que solicitarão, ao contrário, ser protegidos, tercaminhos balizados, sair com certezas e instrumentos de ação comprova-dos. Eles dirão também que não querem a vacilação da neurose, mesmo seela pode se tornar criativa, mas que a perversão (a manipulação das técni-cas) lhes assenta melhor. Resistência igualmente das instituições e orga-nizações que delegaram participantes às sessões e que querem vê-los re-tornar mais bem adaptados, mais dinâmicos, depois de terem liquidado

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seus problemas e, sobretudo, não tendo a intenção de transformar a ins-tituição na qual vivem. O que é demandado é a formação de melhoresadministradores (melhores formadores, empregados ou assistentes sociais)e não o nascimento de atores sociais que tenham projetos sociais e este-jam prontos a neles investir. Naturalmente, resistência também da parteda instituição de formação e do psicossociólogo, que arriscam ser colo-cados dolorosamente em questão, pela experiência de viver uma via-gem na qual eles também podem descobrir não a terra incognita, mas aconfusão, a dificuldade intransponível, a utopia e a inquietante finitude.E eis que o psicossociólogo que queria se lançar ousadamente em umanova experiência, se transformará em um simples prestador de serviços,um contabilista escrupuloso do progresso ou das dificuldades de seugrupo. Enfim, há ainda o maior obstáculo: o fato de que essa “formação”é dirigida a indivíduos e não a grupos reais existindo em organizaçõesespecíficas. E que, mesmo se os participantes podem, entre as sessões,quando retornam às suas organizações, tentar experimentar novas con-dutas, provocar mudanças, eles reencontram a inércia das estruturas, se-não a violência simbólica da organização, o espanto e o desprezo de seuscolegas. Essa experiência da margem, que deveria transformar o que está nocentro, torna-se uma experiência de marginalização e de exclusão progressi-vas. É por isso que não é possível tentar ultrapassar esse obstáculo, senãoabandonando progressivamente todo projeto formador (mesmo se ele seassemelha ao que descrevemos) e optando, deliberadamente, por formasmais ativas de trabalho no interior do social. É a isso que a intervençãopsicossociológica tenta responder.

Intervenção psicossociológica, seuIntervenção psicossociológica, seuIntervenção psicossociológica, seuIntervenção psicossociológica, seuIntervenção psicossociológica, seumodo de existência, seu possível devirmodo de existência, seu possível devirmodo de existência, seu possível devirmodo de existência, seu possível devirmodo de existência, seu possível devir

Não está em questão aqui, naturalmente, tentar descrever os di-versos aspectos da intervenção, as numerosas escolas, suas metodolo-gias e seus objetivos freqüentemente contraditórios, mas simplesmen-te precisar os contornos das razões de ser, para nós, da intervenção, oque ela busca induzir, o que ela não poderá jamais realizar. Procedere-mos como nos parágrafos que trataram da formação, avançando umasérie de proposições.

Na intervenção, o psicossociólogo encontra grupos reais

Para que um processo de mudança possa ser inaugurado, é necessá-rio que ele seja evocado, vivido e experimentado por grupos que têm certaszonas de liberdade e de responsabilidade. Trata-se, então, de trabalhar

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com grupos reais, isto é, grupos que têm um certo lugar na estrutura daorganização, no processo de trabalho, na hierarquia interna, que têmproblemas concretos (de decisões, de melhoria de condições de trabalho,de definições de tarefas etc.) e que desejam resolvê-los. A intervenção,então, numa primeira análise, permite às pessoas falarem de sua vidacotidiana, de seus sofrimentos e de suas esperanças e de se assumirem,a fim de explorarem as vias que favorecerão a resolução de seus proble-mas. O que está presente não é, como na formação, uma situação irreal,mas, ao contrário, toda a violência do cotidiano que, além do mais, im-pede de ver e de sentir outra coisa.

A palavra é tomada progressivamentepelos novos atores sociais

No próprio processo de intervenção é importante que todos possamse expressar. Não por razões morais, mas porque sabemos que toda orga-nização recalca não apenas certos desejos, um certo modo de linguageme de relações com os outros, mas, antes de tudo, recusa a alguns o própriodireito de falar. Tudo se passa como se essas pessoas não existissem ou,mais exatamente, existissem como executantes da máquina, como submis-sos, não como atores sociais tendo alguma coisa a dizer sobre o andamen-to da organização (assim, durante muito tempo, os estudantes não tive-ram nada a dizer sobre o funcionamento da universidade e os operáriosespecializados sobre o andamento da fábrica e de seu trabalho). Essarecusa, consciente ou inconsciente, é vivida como uma forte restrição (umarepressão) e induz fenômenos de resistência implícita (barulho, desor-dem nas salas, absenteísmo, desperdício, atraso e sabotagem da produ-ção nas fábricas). A palavra reprimida, para se expressar, só pode fazê-lode formas selvagens que remetem à impossibilidade para essas pessoas dese sentirem como tendo uma palavra e um desejo que podem ser reconhe-cidos e ouvidos. É por isso que a intervenção não pode se contentar emfavorecer a reflexão, a discussão entre os que têm o direito reconhecidosobre o controle da linguagem (o que apenas manteria a segregação socialna organização), mas ela deve facilitar a expressão dos excluídos e susci-tar o nascimento de novos grupos sociais que provocam, assim, uma certafissura no organograma da organização.

A palavra se desloca em direção a novos campose a novos objetos sociais

No começo, os participantes estão aprisionados em seu vivido ime-diato, nas estruturas tais quais são dadas e que representam para eles

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praticamente a natureza das coisas. Sua imaginação é pobre e eles secontentam com imagens estereotipadas. Numa pesquisa efetuada pelaC.F.D.T. nota-se que vários trabalhadores criticam o autoritarismo doschefes e pedem bons chefes que considerem suas qualidades de sereshumanos e que possam igualmente respeitar a si mesmos. Nenhum co-loca em questão a distinção chefes-trabalhadores, pensamento-execu-ção. Essa distinção instituída está perfeitamente interiorizada. Colocá-laem causa seria um salto mental, afetivo e político que os trabalhadoresseriam incapazes de dar pois nada os preparou, progressivamente, paraimaginarem algo que para eles é da ordem do inimaginável e do impos-sível. É por isso que o trabalho com os grupos deveria ter como objetivonão apenas que os grupos tratem finalmente dos problemas que lhesdizem respeito diretamente, mas que possam também (e talvez maistarde) evocar tudo aquilo que habitualmente não lhes diz respeito. Trata-se aqui de dar uma olhada naquilo que não pode ser visto (por essaspessoas), de falar sobre aquilo que não se deve dizer. É imiscuindo-senos assuntos dos outros que cada um poderá descobrir que o que está emjogo lhe diz também respeito. Mas, para que o olhar se desloque, paraque possa interrogar o oculto, ele é obrigado a se tornar um outro olharlançado por uma outra pessoa. Isso quer dizer que as pessoas terão apren-dido a sonhar, a deixar seus desejos serem expressos, a aceitar sua partede loucura, a não se deixarem aprisionar pelas representações habituais.Para que um trabalhador se interrogue a respeito da distinção patrão-empregado, talvez seja preciso que ele se interrogue sobre a distinçãohomem-mulher, pai-filho ou ele-outros, ou que possa pensar de fora dafábrica, examinar os vínculos entre a fábrica e o sistema econômico. Nãose trata de sonhar por sonhar, mas de poder reintroduzir essa parte desonho ativo, transformador do mundo, que faz surgir um real além doreal percebido, um real rasgando os véus da realidade tal como ela ésempre mostrada pelos guardiães do poder.

O imaginário e o simbólico

A experiência a ser promovida é bem a do imaginário motor, doimaginário instituinte das relações novas entre si e as coisas, entre si e ooutro, transcrevendo os desejos na ordem organizacional e aí introduzin-do rupturas, “ruídos”. O que resulta, então, é a subversão da ordem sim-bólica reinante que se exprime pelo organograma, pelas relações codifica-das, relações de poder e separações instituídas. É a busca de uma novaordem simbólica que só pode existir na medida em que ocorrem atos novos,na medida em que as relações se desestruturam e se restruturam de outra

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forma, onde a lei, em lugar de ser transcendente aos seres e encarnadaem um único, é o que permite a troca e a reciprocidade, ou, então, é leiretomada, transformada e garantida por cada um. Assim, a mudançaem um estabelecimento educativo para as crianças especiais passa poruma quebra das relações codificadas entre o diretor, os psiquiatras, ospsicólogos, os educadores chefes e especialistas, pessoal de cozinha e delimpeza, além das crianças. Essas relações não podem mais ser escritasna ordem em que acabam de ser enunciadas e que é bem a ordem hierár-quica. As posições, ao se deslocarem, fazem da criança também um edu-cador, levam o pessoal a também intervir na gestão do estabelecimento,o diretor se torna pedagogo e é questionado em sua função de direção.Esses deslocamentos não desembocam na confusão, mas em uma maiorfluidez, numa decodificação das relações, numa análise em ato da orga-nização, na evidenciação de que tudo está sujeito a questionamento eque, dessa ruidosa confusão, pode sair a surpresa, o inesperado, isto é,uma nova forma de educação, outras formas de relação e outros modosde estruturação. O que significa que o imaginário faz surgir uma capaci-dade maior de análise do conjunto dos participantes, cada um se tor-nando, à sua maneira, ator e analista social. O que significa, igualmente,que o surgimento do imaginário, sem análise, promete apenas, a médioprazo, decepção, angústia sem freio e desejo por parte de todos de retor-nar um dia à ordem antiga.

Os modos de pensamento e a linguagem são questionados

Para que o imaginário abra seu caminho e para que a análise possatomar corpo, é necessário que os modos de pensamento, a linguagemutilizada e as problemáticas que eles instauram possam ser desviados,subvertidos ou, no mínimo, interrogados. Já foi mostrado acima que osonho poderia ter lugar nos grupos. Isso quer dizer que o modo de pensa-mento lógico, com seus argumentos e suas demonstrações, sua cronolo-gia e suas articulações, deve se encontrar e se confrontar com um modo depensamento associativo, imaginativo, analógico, metafórico, no qual ascoisas e seus contrários possam ser considerados, no qual as relações deequivalência (mesmo absurdas à primeira vista) possam ser colocadas.Pois o modo de pensamento lógico é o modo de pensamento do senhor. Eledistingue, ele classifica, ele exclui e, dessa maneira, enquadra e fecha aspessoas nessa moldura que ele lhes prepara. Certamente o pensamentodito racional é também aquele do controle das coisas e da natureza. Massabemos muito bem com que facilidade pode-se passar do controle e daadministração das coisas à dominação dos homens. Aliás, a própria idéia

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de controle da natureza, visão de um combate a empreender e de umadversário a submeter, já não indica que as relações de cumplicidade, deintimidade, de calor e de dádiva que o homem pode manter com a natu-reza deixam lugar para tendências predadoras? Certamente também opensamento racional permite a comunicação universal e o desenvolvi-mento científico e técnico. Mas aí também sabemos que, na realidade,ele é apenas o apanágio de alguns e que o discurso científico é também odiscurso que exclui de seu campo a experiência diária, a invenção popu-lar, as “estórias de comadres”, isto é, o repertório de saberes práticos ede imaginação de culturas inteiras. Naturalmente, não nos propomosfazer pouco caso do pensamento lógico. Buscamos, antes, reintroduzir apoiesis (criação)10 nas formas de fazer e na teoria, o homo demens no homosapiens.11 Queremos dizer que a verdade, para ser expressa ou reencon-trada, pede que cada um pense e viva na contracorrente. FREUD procla-ma em bom som essa idéia quando escreve (na “Interpretação dos So-nhos”): “O autor da interpretação dos sonhos ousou tomar o partidodos antigos e da superstição popular diante do ostracismo da ciênciapositiva”. Essa perspectiva não o impedirá, pelo contrário, de fazer, comoele próprio o diz, da Psicanálise uma arte de construção, utilizando suasqualidades de erudito e sua exigência de rigor. Se as pessoas deixamunicamente seus desejos e inconsciente falarem, submetem-se ao princí-pio do prazer, recusam o princípio da realidade e tornam-se incapazesde pensar o limite. Mas, inversamente, se elas querem se definir apenasem relação à realidade, falarão, então, apenas daquilo que os que mode-lam e mostram a realidade querem deixá-las falar. Não se trata apenasdo modo de pensamento, mas também da linguagem utilizada. As pes-soas se submetem, nas organizações, à língua (a parte social da lingua-gem) dominante. Assim, muitos trabalhadores dizem que não possuemo vocabulário que lhes permite se expressarem e numerosos chefes deempresa utilizam tal situação para propor como “palavra de ordem”uma formação com base na expressão escrita e oral que visa a conseguirque cada um fale e escreva como se deve falar e escrever. Ora, a língua,sob certos aspectos, é como o dinheiro, um elemento de mascaramentodo sistema social. MARX mostrou como o dinheiro mascara a naturezado sistema capitalista, isto é, o sistema de exploração e de apropriaçãoda mais-valia do trabalho. A língua, por sua vez, dissimula, atrás da ima-gem de falar bem, do bom estilo, da ortografia necessária, o roubo dalíngua espontânea, da criatividade diária dos grupos sociais. Quando,na França, a língua se torna sofisticada com MALHERBE e a academia,rejeita-se definitivamente uma linguagem viva, colorida, divertida, vin-da das tripas que RABELAIS elevou à quintessência, isto é, a verdadeira

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linguagem popular. Por isso, a partir do Século XVII, a literatura estaráreservada aos salões e às suas cabalas miseráveis, não tendo mais ne-nhum elo com as esperanças, os sonhos e os sofrimentos da gente miú-da. A mesma coisa ocorre hoje. Há uma língua dominante, a dos tecno-cratas, que são os que podem traduzir, em boa linguagem, precisa ecifrada, argumentada, as idéias e opiniões dos que não sabem falar (ou,mais exatamente, dos que não sabem falar como se deve falar em umasociedade tecnocrática). Eis que chegou o tempo dos tradutores, dos por-ta-vozes e também dos especialistas que protegem seu saber (ou o seusimulacro de saber) sob a alta tecnicidade das palavras que utilizam.Mas os tradutores traem, os porta-vozes mascaram e os especialistasreduzem. É indispensável que essa língua do poder possa ser recoloca-da em seu lugar: não o da necessidade e da natureza das coisas, mas oda dominação que ela instaura.

Aliás, todo mundo, confusamente, se dá conta disso. Quando se vê amaneira como os jovens se exprimem, quando se escutam as palavras queeles utilizam, as frases que inventam, pode-se constatar que eles se prote-gem, dessa forma, do mundo adulto (e o atacam). Se os mendigos têm suagíria é porque toda língua é constitutiva de um grupo social e é uma membra-na que o protege contra os outros. Se, então, os guardiães do poder têm umalíngua é bem para se constituírem em classe dirigente, para se protegeremdos outros atores sociais, para culpabilizá-los por não saberem se exprimir,para obrigá-los, fazendo-os aprender a falar, a pensar como eles e para sur-girem como os únicos e bons tradutores de suas vontades e de suas espe-ranças. É também por essa razão que todos os movimentos de contestaçãocultural reivindicam, antes de mais nada, reencontrar sua língua, fazê-laviver, experimentar o seu calor. É também por essa razão que cada vez queé possível explicar as coisas na modalidade da linguagem habitual o saberdos especialistas se cinde12 . É por isso que atacar a língua dominante,inventar um falar, reencontrar a língua perdida, mudar o sentido das pala-vras eqüivale a colocar a nu a problemática de dominação-submissão queé constitutiva do falar dominante.

A instância política (o poder) está no campo da intervenção

Essa longa passagem por modos de pensamento e pela língua nospermite caminhar agora mais rapidamente e chegar ao próprio centroda questão: o poder instituído. Isso quer dizer que toda intervenção éuma questão de poder. Não apenas de autoridade, de modalidade decomando, mas de poder: da lei, de seus mandamentos, da tecnologiaque ela utiliza e que a faz existir. Veja-se bem a dificuldade, pois o

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solicitador de uma intervenção, quem quer que seja (dono de empresa,membros do comitê de empresa, diretor de hospital ou auxiliares deenfermagem), nunca solicita que o poder que ele representa seja questi-onado, mas, ao contrário, quer que ele seja reforçado. A intervenção, amenos que ela seja simplesmente uma ação de apoio estratégico de al-guns contra outros, terá necessariamente de questionar qualquer formade poder. Na própria medida em que leva as pessoas e grupos a se inter-rogarem, a se informarem, a se comunicarem em suas diferenças e con-flitos reais, nunca é resposta a um problema (responder é controlar, osenhor das respostas é simplesmente o senhor), mas sim questionamen-to infinito, interminável. Ela destrói as certezas e introduz o novo e odescontínuo. Porque ela não pode estar a serviço de um poder nem deum sistema de poder, sendo inauguração de uma palavra nova, choca-se violentamente com as estruturas, os hábitos, as resistências. FREUDdizia em “Os chistes e sua relação com o inconsciente”: “Penso que re-sistências emocionais fundamentais obstam o caminho da aceitação doinconsciente, fundadas no fato de que não se quer conhecer o próprioinconsciente, sendo, então, o plano mais conveniente a negação comple-ta de tal possibilidade.” É possível deslocar essa frase de FREUD e dizerque ninguém quer conhecer todo o poder de que dispõe, nem renunciara seu poder. Então, quando estão no campo de análise não apenas asrelações, as comunicações interpessoais e intergrupais, os estilos de au-toridade, mas também quando o poder está em jogo, a intervenção pára,agradece-se ao interventor, pois foi através dele que o escândalo ocor-reu. Entretanto, se uma demanda lhe foi feita, foi porque os solicitadoresexperimentavam dificuldades e aceitavam, dentro de certos limites, co-locar-se em questão. Mas, justamente, o interventor ultrapassou o limite.De qualquer maneira, introduzindo uma falha nos poderes constituídos,permitindo a novos atores se expressarem em novos campos, com umaoutra linguagem, ele lhes permitiu, assim, (mesmo se sua ação está alémdo poder) experimentar seu próprio poder, sua vontade instituinte e, en-tão, favoreceu o conflito assumido às custas do consenso que mascaravaos antagonismos. Assim, ele cheira a enxofre e deve ser sancionado.

Interesse e limites da intervenção psicossociológica

Resta apenas, então, o fracasso inelutável ou só a possibilidade deum trabalho superficial, que não atrapalha ninguém e que permite aointerventor facilitar algumas tomadas de consciência de problemas peri-féricos, permitindo-lhe ter uma consciência tranqüila e assegurando-lheum ganho substancial e uma posição social invejável? Achamos que essa

Da formação e da intervenção psicossociológicas

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

alternativa não tem nenhum sentido, que, se ela se coloca, é em refe-rência a uma vontade instauradora de poder por parte do interven-tor, que só poderá viver, então, em meio a oscilações constantes ebruscas entre a onipotência e a impotência, colocando-se como umshaman ou um mártir, pólo de identificação ou bode expiatório. Oque ele é: simplesmente o avalista de uma possível análise, das fun-ções elucidativas, de uma tentativa de desvelamento de relações so-ciais, daquilo que está “ocupado por uma mentira” (LACAN). O queele traz: a possibilidade para o outro de ter acesso à sua própria pala-vra, à sua linguagem e de tentar traduzi-las em ações significativas,de se dar orientações normativas e inaugurar outros modos de relacio-namento. Ele não é nem o revolucionário nem o reformista. Não sabepelos outros, não os conduz em direção a nenhum resultado. Ele ape-nas lhes entreabre caminhos que eles desejam buscar. Também não sepode dizer que ele fracassou, quando se viu excluído por ter permitidoque a questão do poder fosse colocada (para todos e por todos). Pois,não lhe cabe questionar os poderes; é aos atores sociais reais, aos gru-pos sociais existentes ou emergentes que cabe promover (nos outrose em si mesmos), através de ações, os movimentos sociais, a tomadada palavra e outros modos de relações sociais. Ele não realiza nenhu-ma mudança, mas favorece o desejo de mudança. Ele não transformaas estruturas, mas permite ao outro querer modificar as estruturas deacordo com sua vontade. Ele não analisa sozinho, mas cuida que asfunções de análise existam e se exerçam no grupo. O que ele sabe bem,em contrapartida, é que, sendo alguém que incomoda, procedendo pordeslocamentos e rodeios, seu trabalho só pode ser lento, encontrar re-sistências vivas e não satisfazer a ninguém. Não deve esperar triunfonem sacrifício: sabe apenas que um movimento começou a existir,energias começaram a circular, palavras a serem ditas, dispersões ase operarem, eus a se abalarem. Quanto ao valor e à importância des-se movimento, ele terá uma idéia somente muito mais tarde, se hou-ver uma germinação ao invés de um fechamento.

Porém, esses resultados (que podem ser estimados como muito fra-cos) só podem ser considerados se forem acompanhados por certas carac-terísticas das situações em que ocorrem:

1- Quanto mais o interventor for chamado por grupos compostos porvoluntários, sem muita hierarquização interna e sem opacidadesdevidas a problemas de status social e de sucesso econômico, maispoderá efetuar um trabalho de análise que será completado e apro-fundado por esses grupos.

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2- Quanto mais intervier em meio aberto (e não em organizaçõesmais ou menos fechadas): grupos de responsáveis por diferentesempresas, professores de diferentes estabelecimentos da educa-ção nacional, agricultores tendo interesses em comum, mais serápossível que sua ação de elucidação seja prolongada por inter-venções de pessoas colocadas estrategicamente em diferentespontos do poder.

3- Quanto mais seu trabalho tiver efeitos de treinamento e for mul-tiplicado em diferentes grupos e organizações por aqueles comquem ele colaborou, mais nos aproximamos de um processo cu-mulativo, provocando mudanças notáveis nas relações e na pró-pria textura das relações de poder.

4- Em contraposição, quanto mais ele intervier em organizaçõesfortemente estruturadas e hierarquizadas, onde cada um devedefender sua identidade social e seu sucesso econômico, maisele arriscará ser atado pelos desejos contraditórios dos partici-pantes, mais sua ação será limitada a certos grupos, mais seutrabalho será suspeito e provocador de resistências. Isso não sig-nifica que ele não deva intervir em tal contexto, mas que eledeve saber, desde o início, que rearranjos mínimos favorecidospor ele provocarão contra-ações, questionamento do seu valor eda pertinência de suas ações. Suspeito por todos, manipulado(mais ou menos) pelos diferentes grupos, traidor em potencial,sua posição nada tem de confortável. Pode, então, inclinar-se àrigidez ou, ao contrário, a conluios que retirarão toda a eficáciade sua atividade ou que farão dele outro agente do poder localou da contestação instituída.

Anteriormente, havíamos dito que era preciso não ter grandes ilu-sões a respeito da formação psicossociológica tal qual tentamos descre-ver; podemos ter ainda as mesmas dúvidas quanto ao desenvolvimentodas intervenções. As maiores dificuldades parecem ser (indo das menosimportantes às mais essenciais):

1- A falta de formação dos interventores. Se existe um número bas-tante grande de psicossociólogos capazes de conduzir grupos debase e de sensibilização, os psicossociólogos dedicados à práti-ca da intervenção são menos numerosos. Sabem pouco a res-peito dos grupos e das organizações e têm desejos de mudan-ça que não sabem como operacionalizar. Entretanto, há da partede alguns deles um certo desejo de aumentar sua capacidadeprofissional. A prova são as numerosas demandas de formação

Da formação e da intervenção psicossociológicas

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e intervenção endereçadas aos organismos e aos indivíduos quetêm prática nesse domínio.

2- Mais grave parece ser a “vontade de revolução” e o delírio me-galomaníaco de alguns interventores que pensam transformar asestruturas e destruir as instituições através de sua implicação vi-gorosa na intervenção que conduzem. Aparentemente, eles se pre-param para uma vocação de mártir, pois tornam-se insuportá-veis para todos os grupos com os quais colaboram.

3- Enfim, o que nos parece mais importante, é a fraqueza (e a diminui-ção constante) das demandas de intervenção. A razão é evidente: apartir do momento em que os grupos e as organizações se dão contade que a intervenção não permitirá uma restruturação, uma redistri-buição mais aceitável da autoridade, comunicações melhores e, so-bretudo, um maior controle consciente, efetuado por eus fortes, ademanda acaba. Quem quer conhecer a dúvida, a questão e a an-gústia da finitude? Mesmo os que a pregam para os outros, não adesejam com freqüência para si mesmos, mas o que lhes interessa éo aumento de sua própria zona de poder ou a cegueira a respeito dosentido de sua ação. Quanto aos grupos que tentam viver de outramaneira, com outras relações, que assim buscam empreender atossignificativos, já estão tão ansiosos por trilharem uma nova via, quejá nem se permitem mais o autoquestionamento. Isso é compreensí-vel, mesmo se nos ocorre perguntar se eles não se preparam algu-mas desilusões.

Como escutar ainda uma palavra que cochicha, que busca a si própriae que não promete amanhãs que cantam, em uma sociedade tecnocrática,onde estão os mestres da ciência e os instrumentos de gestão, justamente aolado dos liberadores de todo tipo (do corpo, da mulher, do desejo da aliena-ção etc.) que têm todas as mensagens a levar aos outros e que se apresentamcomo mercadores da felicidade, tendo uma única palavra permitida que é apalavra técnica (técnica de fabricação como técnica do corpo) ou produtiva(produção de bens ou produção desejante), onde as ideologias prontas cru-zam-se sem se influenciarem, em um soberbo isolamento psicótico, quandonão se misturam em um magma sem nome? FREUD dizia: “O eu é apenasum palhaço de circo que, por seus gestos, busca persuadir a assistênciade que todas as mudanças que se produzem no picadeiro são efeitos desua vontade e de suas ordens13” Os palhaços se tornaram legiões e ocu-pam a frente da cena. Deixemos que se esgotem em seus jogos perver-sos. Um dia, eles desabarão. E o lento trabalho do negativo (o único queé portador da vida e da verdade) poderá, então, ser retomado.

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Notas1 Traduzido de: ENRIQUEZ, Eugène. “De la formation et de l’intervention psychosocio-

logiques”. Connexions, 17, p. 137-159, 1976, por Marília Novais da Mata Machado.2 A qual acontecimento ou a qual lei obedecem essas mutações que, repentinamente,

fazem com que as coisas não sejam mais percebidas, descritas, enunciadas, caracte-rizadas, classificadas e sabidas da mesma maneira? Para uma arqueologia do saber,essa abertura profunda na superfície das continuidades, mesmo que ela deva seranalisada minuciosamente, não pode ser “explicada” nem reduzida a uma únicapalavra. Ela é um acontecimento radical que se estende por toda a superfície visíveldo saber, cujos signos, abalos e efeitos podem ser seguidos passo a passo. M.FOUCAULT. Les mots et les choses. Gallimard.

3 Na primeira meditação, DESCARTES baseia a descoberta do “verdadeiro” na exclu-são necessária da loucura, do sonho e do gênio maligno.

4 ENRIQUEZ, E. “Imaginaire social, refoulemente et répression dans les organizations”.Connexions, no 3, 1972 (Imaginário social, recalcamento e repressão em organiza-ções. Tempo Brasileiro 36/37: 53-94, 1974).

5 Segundo J.-M. DOMENACH: “Para não ser destruído, o Eu tudo destrói.” Le sauva-ge et l’ordinateur. Le Seuil, “Points”.

6 CASTORIADIS-AULAGNIER, Piera. “A propos de la réalité: Savoir ou certitude”.Topique, n. 13, Epi, 1974.

7 TOURAINE, A. Pour la Sociologie. Points, Le Seuil.8 LECLAIRE, Serge. On tue un enfant. Seuil, 1975 (Mata-se uma criança. Rio de Janeiro:

Zahar, 1977).9 Essa falta fundamenta a perspectiva dos sociólogos que pensam em termos de

sistemas e de modos de produção: quando os sociólogos (como TOURAINE) pen-sam o socius em termos de relações sociais, não caem nesse erro, pois o centro de seupensamento é a ação social e não as normas sociais.

10 “Razão do encaminhamento do não ser ao ser” diz PLATÃO, cf. CASTORIADIS,C. L’institution imaginaire de la société. Le Seuil (A instituição imaginária da socieda-de, Paz e Terra).

11 Cf. MORIN. E. Le paradigme perdu. La nature humaine. Le Seuil.12 Em Lip, os trabalhadores acreditavam que não poderiam compreender nada de

contabilidade e de problemas de gestão de empresa. Quando esses elementos lhesforam explicados de forma direta e clara, eles disseram: “mas era apenas isso!”.

13 FREUD. Cinco lições de Psicanálise.

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Os problemas humanos criados pelo uso das máquinas e pelo de-senvolvimento das sociedades industriais são respondidos por atoresque se defrontam diretamente com esses problemas, bem como pelosresponsáveis políticos – no nível de sistemas de ação institucionais – e,também, pela intelligentzia que produz os discursos legitimadores e quearma ora a classe dirigente, ora seus adversários. As Ciências Sociaisemergem, primeiramente, como força de pesquisa e estudos e, em se-guida, contribuem mais diretamente para a formação de agentes espe-cíficos de intervenção.

Para intervir, o patronato, seus quadros de direção, seus gerentes eseus organizadores, bem como o movimento operário, suas organiza-ções e seus militantes jamais esperaram os agentes formados pelas Ciên-cias Sociais; porém, o surgimento dessas foi acompanhado por práti-cas sociais novas que, há mais de meio século, continuam a buscar suaverdadeira face. Ligado a elementos teóricos e ideológicos, um modelode papel diferente daquele exercido pelo professor, pelo especialista, peloformador, pelo mediador, pelo advogado, pelo sectário ou pelo militan-te tende a se afirmar, contribuindo para inventar e analisar os modos defuncionamento coletivo e as relações sociais.

Antes mesmo que os empregos de psicólogo e sociólogo do traba-lho ou das organizações tenham sido realmente reconhecidos (eles sãoainda um pouco objeto de críticas e de apreensões, na França, em todocaso), o nível político tentou intervir, através da legislação do trabalho,dentro de uma perspectiva que mantém alguma relação com os processose os princípios propostos pelos psicossociólogos (cf. Leis AUROUX). Pa-ralelamente, o contexto de crise e de guerra econômica tendeu a “psi-cossociologizar”, se é possível falar assim, as estratégias dos adminis-tradores (cf. rejeição ao taylorismo, círculos de qualidade, grupos deprogresso, projetos de empresa etc.).

AS ORIGENS TÉCNICAS DA INTERVENÇÃO

PSICOSSOCIOLÓGICA E ALGUMAS QUESTÕES ATUAIS1

Jean Dubost

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

Do ponto de vista dos práticos, não se sabe muito bem se se trata deuma convergência que os psicossociólogos devem considerar como umavanço de suas teses ou tratar como uma oportunidade conjunturalou, ainda, como uma “reciclagem”, uma nova forma de resistência oude defesa, induzindo a uma regressão de seu projeto. Independente-mente do fato de que as duas hipóteses não são forçosamente exclusi-vas, a situação atual aumenta o mercado de consulta. Por razões eco-nômicas evidentes, muitas empresas de serviços tentam aí penetrar,sem escrúpulos excessivos, sejam de ordem teórica, metodológica ouideológica, e chegam mesmo a rejeitar, em nome do pragmatismo ou daeficácia, qualquer referência científica.

Há quarenta anos atrás, especialmente através de Elliott JAQUES, oTavistok Institute of Human Relations já colocava claramente a distinçãoentre as abordagens “tecnocrática” (intervenção sobre) e “colaboradora”(intervenção com). Essa oposição e a opção resultante apoiavam-se parcial-mente nos trabalhos de LEWIN, MORENO, ROETHLISBERGER e seuspredecessores; correspondem a uma teoria da organização que é com-partilhada tanto pelos experimentalistas quanto pelos clínicos, tanto pelosbehavioristas quanto pelas correntes da fenomenologia e da Psicanálise,tanto pelos promotores da mudança voluntária (planned change) quantopelos pesquisadores da Sociologia Industrial norte-americana: nessa con-cepção, as perspectivas democráticas e a eficácia organizacional são ob-jetivos transitivos, não antagônicos. Retomando, por exemplo, os ter-mos de KATZ e KAHN, é em nome da produtividade industrial que épreciso lutar contra o modelo “ditatorial” dentro da empresa.

Embora tal tese, em seguida, tenha sido matizada pela considera-ção de fenômenos de ordem econômica e pelos do inconsciente, da cul-tura e da história, assistiu-se a um desvio, nos Estados Unidos, no níveldas práticas de intervenção. Considerando-se garantidos pelo conjuntode trabalhos de laboratório realizados em um subconjunto restrito deempresas, os partidários da planned change e da action research partirampara a conquista de um mercado, adotando uma perspectiva de aplica-ção, propondo uma forma de serviços apresentada explicitamente comouma tecnologia social.

De fato, no início, geralmente toda prática nova de intervenção, emum espaço no qual surgiram problemas humanos, aparece como aplica-ção de conhecimentos e de um “saber-fazer” criados em outro lugar emais ou menos arranjados para a circunstância. Porém, enquanto algu-mas correntes de consulta parecem se satisfazer com essa perspectiva deaplicação ou de transferência, outras tentaram continuamente se desligar

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dela, não apenas para criar elementos teóricos e de “saber-fazer” maisespecíficos, a partir de uma base socioclínica que lhe é própria (manten-do, em conseqüência, a referência à noção de pesquisa ação), mas tam-bém para manter as metas que a constituem como práxis, recusando aredução a uma forma de atuação puramente instrumental.

Reencontram-se aqui, aparentemente, as duas abordagens distin-guidas por JAQUES; na primeira, a referência à idéia da democraciatorna-se o modelo de funcionamento, teoria normativa da organização,dispositivos técnicos; a segunda guia a maneira de estruturar o processode intervenção, deixando aberta a questão de um modelo de funciona-mento, recusando-se a estabelecer normas ou evitando fazê-lo, conside-rando a teoria sempre inacabada, sempre a ser construída e esclarecidaa cada nova intervenção.

Haveria, então, para os adeptos da abordagem colaboradora, maisdo que uma aporia na maneira pela qual se apresenta o desenvolvimentoorganizacional, contradição que seria compartilhada, justamente, com aconcepção tecnocrática. Porém, na prática, se o desvio assinalado pelamudança de rótulo (de “planned change” para “DO”2), na maior parte dasvezes, corresponde a um abandono de uma perspectiva de pesquisa pe-los consultores que querem promover, em grande escala, a expansão desuas atividades e a uma tendência a autonomizar o “cultural” (isto é, aabandonar a concepção sociotécnica), não é certo que, sob a proteção deuma terminologia tranqüilizadora para os clientes potenciais, esses con-sultores, na condução de suas intervenções, não estejam mais próximosdo que admitem das perspectivas iniciais da planned change. Paralela-mente, está claro que não é suficiente estar resolutamente engajado aolado da abordagem colaboradora, manter uma ligação forte entre os pon-tos de vista psicológico e sociológico e entre pesquisa e ação para escaparao risco, continuamente presente, de ser instrumentalizado por um atoràs custas de um outro.

Embora, na prática, não possamos, então, identificar sempre o DO àabordagem tecnocrática, ainda assim a distinção que evocamos parece-nos sempre bastante pertinente para esclarecer a oferta dos práticos e ascondições de possibilidade de uma intervenção que se recusa a ser redu-zida a engenharia.

Efetivamente, a conjuntura econômica e a ideologia atual, evocadaacima, abrem de novo, na França, o mercado da consulta e da intervençãoem meio industrial, ao mesmo tempo em que as demandas são, na maiorparte das vezes, de ordem instrumental:

As origens técnicas da intervenção psicossociológica e algumas questões atuais

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

- “O senhor, que tem a reputação de saber formar, venha ensinar anossos dirigentes como mobilizar o pessoal para os objetivos denosso projeto de empresa”;

- “Vocês, especialistas em comunicação, venham fazer um estudodo tipo ‘retrato’, a fim de sensibilizar os agentes para seus papéiscomerciais e para as relações entre os serviços”;

- “Vocês, com experiência em círculos de qualidade, venham nosajudar a implantá-los em nossas fábricas”...

Assim, é tentador, para quem escuta uma encomenda desse tipo,aceitar o papel de prestador de serviço, sem um convite a refletir sobre apertinência da operação decidida, sobre as relações entre essa solução eos problemas e dificuldades vividas pela unidade etc. Está claro que aoferta de “tecnologias sociais” parece corresponder a uma demanda.Ela mantém a ilusão de que uma técnica de intervenção de um agenteexterno poderá resolver as contradições da realidade, sem outros cus-tos, para quem a encomenda, que o dos honorários e o do tempo conce-dido, além de um apoio superficial da hierarquia à realização da ope-ração; isto é, sem que o processo mude as posições respectivas dosatores, a divisão do poder, a distribuição dos esforços e dos ganhos emdiferentes domínios. Essa crença mágica dos responsáveis no poderda técnica relativa a problemas humanos (no próprio momento emque a literatura empresarial demanda o reconhecimento das dimen-sões irracionais do comportamento dos assalariados) pode, eviden-temente, ser interpretada como função de defesa do empresário pou-co desejoso de pagar por sua própria implicação; não é respondendo àsua encomenda que se facilitará o estabelecimento de condições quepermitam analisar tal processo. Embora o fato de encorajar a ilusãopossa parecer, ao mesmo tempo, bem mais rentável a curto prazo econfortável para o psiquismo do consultor (pois uma posição de pres-tador de serviço permite economizar a análise da demanda, simplifi-cando a vida e tranqüilizando todo mundo – ou quase todo mundo –,ao menos no início...), não podemos acreditar que o fato de aderir aospartidários de operações de mobilização psico-ideológica seja, a longoprazo, uma boa estratégia: pode-se prever que elas se revelarão incapa-zes de operar as mudanças esperadas e que serão também recusadas edenunciadas pelos atores envolvidos, como ações de doutrinação.

Assim, parece-nos ser especialmente importante que o psicossoció-logo continue presente no mercado de consulta em meio industrial e, deuma maneira mais geral, nas organizações que desenvolvem esforçosde melhoramento de seu funcionamento coletivo; ao mesmo tempo, que

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mantenha, tão firmemente quanto possível, o que nos parece constituiras condições não mistificadoras da intervenção e, principalmente:

- o fato de considerar as teorias utilizadas como sempre inacabadas,sempre infiltradas por elementos ideológicos, jamais apropriadas afundar uma Autoridade;

- o fato de manter explicitamente a referência às ciências do ho-mem e da sociedade, isto é, entre outras coisas, considerar quetoda intervenção deve ser habitada por um projeto de pesquisacujos objetos são, em primeiro lugar, o próprio processo de con-sulta, o sistema no qual a demanda emerge e a categoria de fenô-menos sobre a qual o trabalho é feito;

- o fato de manter a interrogação sobre o sentido de nossas práticas,sobre as funções sociais que elas garantem, sobre as condições quefavorecem sua emergência, seu desenvolvimento ou seu abandono.

Pensamos conhecer bem as dificuldades frente às quais se debate asustentação de tais exigências; é o preço que os consultores têm a pagarpor tentarem escapar à única lógica da relação mercantil e de seus efeitosperversos, à influência das correntes ideológicas que sofremos, da mesmaforma que nossos parceiros, a fim de conservar as perspectivas de exis-tência e de progresso a médio e a longo prazo.

Dito isso, a sustentação de uma práxis de intervenção local, associan-do ao processo todos os atores envolvidos e opondo-se à perspectiva tecno-lógica de produção de instrumentos de doutrinação e de mobilizaçãopsico-ideológica, não deve levar a negligenciar os aspectos técnicos e oexame de nossa própria relação com eles.

Em primeiro lugar, abordemos o problema a partir da noção de mé-todo. Refletindo a respeito dos termos de base de toda intervenção, nãomantive esse substantivo, mas reagrupei sob a noção de processo osatos do agente, o trabalho resultante de seus encontros com os atores,seus efeitos sobre o sistema, os fatores que geraram o problema e ademanda de consulta, as representações que os interventores e os ato-res se fazem das qualidades desse trabalho, as regras e princípios queeles se impõem, a fim de que essas qualidades existam. Evidentemen-te, minha abordagem conceitual não ignora a noção de método e sabereconhecer o lugar que diferentes correntes e autores lhe concedem;mas, quando aplicada à minha própria prática, ela tem em conta, especial-mente, o fato de que a palavra método designa o caminho pelo qual sepassa e que esse nunca é totalmente conhecido antes de ser alcançado (emesmo depois). Creio ser útil e necessário interrogar-se, freqüentemente,

As origens técnicas da intervenção psicossociológica e algumas questões atuais

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

sobre o caminho a seguir, sobre a maneira como se afastou do previsto,esclarecer todos os fatores acessíveis que podem explicar esses afasta-mentos; porém, firmemente, creio também na necessidade de deixaraberta a questão do método no momento em que uma demanda começaa surgir, de não responder cedo demais com uma proposição saída de ummodelo prévio que se tentaria padronizar – ou de uma gama de modelosentre os quais seria necessário escolher. A questão do método parece-mefazer parte do trabalho de colaboração, deve ser o objeto de uma pesquisaem comum que comporte também momentos de negociação.

O que se revelou como um “bom método” – a partir da opinião dediferentes atores envolvidos –, numa dada situação concreta, pode, al-gumas vezes, ser transposto sem grandes mudanças a uma outra, maspode, também, não poder sê-lo, por razões que só aparecerão quando jáse estiver a caminho. Assim, tendo a não apresentar um método defini-do de maneira unilateral, mas, de preferência, a examinar princípios,regras, perspectivas, hipóteses, representações iniciais que trazem em siopções metodológicas que se esclarecem à medida que se caminha atra-vés de um trabalho de análise e reflexão, abordando concomitantemen-te o sistema, os atores envolvidos, sua participação no trabalho, o objeto(O que se quer fazer? O que se quer mudar? Por quê?), os fatores gera-dores do problema. Ao mesmo tempo, de forma alguma proíbo-me decontribuir para a estruturação metodológica e técnica do processo, mastomo iniciativas e faço propostas; além disso, a partir de um determina-do momento, tento fixar as modalidades de trabalho e um quadro técni-co com os quais tanto participantes quanto consultores se empenharãodurante uma duração determinada.

Reconheço que minha atitude comporta uma certa suspeita a res-peito de tudo o que diz respeito a técnicas, como também uma posiçãocrítica a respeito daqueles que têm tendência a autonomizar ou a privi-legiar esse aspecto, fazendo dele um objeto fetiche ou atribuindo-lhe,em excesso, dimensões ideológicas. Ao mesmo tempo, acredito ser ingê-nuo pensar que todo trabalho induzido por uma intervenção não se apoiaem técnicas, que pode ser feito fora de um universo técnico, que meucomportamento não é orientado por meus recursos técnicos, meus co-nhecimentos e habilitações, adquiridos durante minha formação e mi-nhas experiências anteriores. Caso um apelo seja feito a mim, isso se dá,justamente, porque se atribuem a mim competências em um domínioque, justamente, parece importante aos solicitadores, dada a naturezados problemas que eles se colocam e desejam tratar.

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Por outro lado, compreendo bem a opção por estabilizar um dis-positivo técnico, tolerando apenas uma gama restrita de variações, naesperança de constituir um corpus de observações socioclínicas homo-gêneo, para tratá-lo, a seguir, dentro de uma perspectiva comparada ediferencial. Na medida em que se considera a intervenção como umaestratégia de pesquisa que permite o acesso a fenômenos inacessíveis pormétodos convencionais, a técnica de estruturação do processo se tornaum dispositivo de inserção – o que G. PALMADE chama de dispositivo“modelador” dos fenômenos estudados. É nessa perspectiva que é preci-so, então, considerar os aspectos técnicos da intervenção sociológica deTOURAINE ou da sociopsicanálise de MENDEL.

Porém, para o prático que pretende permanecer disponível a de-mandas muito diversas e para o que, conservando sempre uma pers-pectiva de pesquisa, considera que o dispositivo tem que ser inven-tado e construído a cada vez, constituindo, em si mesmo, um objetode trabalho, tal vantagem deve ser abandonada. O modo de estrutu-ração do processo pode se tornar, então, não apenas objeto de traba-lho para os participantes, mas objeto de pesquisas diferenciadas paraos interventores.

Poderíamos, então, tentar, por exemplo, tornar mais inteligível, nadeterminação das técnicas, a influência respectiva de variáveis como anatureza do local (intra ou transorganizacional), as propriedades dosistema (grau de centralização, tolerância à diferenciação, formas deautoridade, tamanho, ecologia etc.), a natureza dos objetos, as funçõesexternas almejadas pelos atores, os recursos da equipe de consultoresescolhidos, suas orientações teóricas, os fenômenos de moda, os custosetc. Evocaremos, rapidamente, no final desse artigo, a questão de sa-ber em que medida as práticas se diferenciam, em função do campo noqual elas aparecem.

Independentemente da relação que cada corrente de intervençãotem com a questão técnica e com o objetivo de esboçar uma via de refle-xão a respeito das escolhas que são feitas pelos práticos e/ou seus co-mandatários, tentarei responder à questão: quais são as origens nas quaisos práticos de intervenção psicossociológica se nutrem?

Parece-me que é possível distinguir três categorias de origens: osmétodos de pesquisa das Ciências Sociais; os que foram constituídos pe-las atividades da formação e da psicoterapia; as práticas sociais de inter-venção e de ação já existentes nos diferentes campos de nossa cultura.Cada uma comporta pressupostos, princípios estratégicos, uma lógicaprópria e apresenta propriedades diferentes.

As origens técnicas da intervenção psicossociológica e algumas questões atuais

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

Os métodos de pesquisa dasOs métodos de pesquisa dasOs métodos de pesquisa dasOs métodos de pesquisa dasOs métodos de pesquisa dasCiências Sociais como origens técnicasCiências Sociais como origens técnicasCiências Sociais como origens técnicasCiências Sociais como origens técnicasCiências Sociais como origens técnicas

A noção de experimentação: se consideramos as primeiras pesquisasde J. B. GODIN, certos ensaios de TAYLOR e os trabalhos de E. MAYOcomo predecessores da intervenção psicossociológica, pode-se dizer quea idéia de experimentação de campo constituiu, bem cedo, uma origemtécnica importante. Em seguida, ela alimentou uma parte dos trabalhosda escola lewiniana (cf. COCH e FRENCH); algumas vezes, ela apareceainda em intervenções do tipo pesquisa-ação (cf. os social experiments nocampo urbano ou em certas empresas) e, de maneira bem menos acen-tuada, nas de TOURAINE.

Não é de se espantar que a abordagem colaboradora acarrete umaopção por uma orientação clínica; isso se passa sobretudo porque, de-pois de LEWIN, seus discípulos americanos utilizaram muito pouco astécnicas experimentais.

Quanto às estratégias de pesquisa, a propensão dos práticos de in-tervenção, parece-me, é a de situá-las mais aquém e além de uma démar-che teórico-experimental do que no nível de operações visando à admi-nistração de provas. Entretanto, a partir do momento em que os práticosintegram à sua ação uma dimensão de pesquisa, mesmo que apenas paraconhecer melhor as propriedades de suas técnicas, eles podem ser leva-dos a planejar uma parte de sua démarche com uma perspectiva que per-mite uma exploração experimental ou diferencial de seus resultados.

Em um outro pólo dos métodos de pesquisa, a observação participante,tal qual utilizada por certos sociólogos e etnólogos, representa uma ori-gem técnica que foi utilizada não apenas em meio aberto, mas tambémnos campos da saúde e social ou mesmo em meio industrial. É espanto-so ver quantos psicossociólogos estiveram interessados, por exemplo,na maneira como J. FAVRET-SAADA retomou e transformou essa abor-dagem no campo da etnologia, a partir da prática psicanalítica.

Entre esses dois pólos, estão as técnicas de pesquisa de campo que, emespecial, forneceram um ponto de partida para as práticas de interven-ção: estudos qualitativos e/ou quantitativos de amostras ou por meiode recenseamento, combinados ou não a estudos monográficos e histó-ricos, utilizando a análise de documentos disponíveis ou de instrumen-tos mais especializados como os testes sociométricos. Algumas vezes, osutensílios de registro (do gravador ao vídeo) foram largamente utiliza-dos e, em algumas práticas, permanecem sendo uma condição técnicaou um auxílio importante para o trabalho de análise, de devolução aosparticipantes e de interação dos atores.

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A estratégia geral de intervenção que fundamenta o recurso a essastécnicas de pesquisa e estudo repousa na idéia de que faltam aos atoresinformações objetivas, que os consultores têm meios de aumentar o nívelde conhecimento do sistema e dos atores a respeito deles próprios, produ-zindo dados válidos, e que a comunicação dos resultados os ajudará afazer o recuo necessário, a caracterizar melhor as situações, a identificaros problemas, a isolar os objetivos, a escolher as variáveis de ação, a com-preender os fenômenos que entravam o progresso em direção às metas, asrazões dos bloqueios, a atuação dos conflitos, a natureza das resistências,a origem das disfunções, o significado das condutas etc.

Vistos como capazes de realizar as pesquisas necessárias para in-formar sobre o estado de funcionamento vivido como insatisfatório, osinterventores são convidados ora a fazer um diagnóstico (combinadoou não a recomendações), ora a produzir uma análise descritiva ou umconjunto de observações e esclarecimentos, permitindo aos atores ela-borarem por si mesmos um diagnóstico e se empenharem em um traba-lho de análise e interpretação. Em todos os casos, quer os resultados seapoiem em uma perspectiva demonstrativa ou sejam apresentados ape-nas como sendo a percepção de um agente exterior, considera-se racio-nal separar (ou alternar) as fases de estudos e as fases de ação. Os con-sultores podem ser convidados a colaborar apenas nas primeiras (o quetende a mantê-los, de fato, no papel de especialistas, de prestadores depesquisa e de estudo) ou a acompanhar o processo até que os efeitosdesejados sejam atingidos. Igualmente, em todos os casos, as respostasàs questões de saber quem terá acesso às informações resultantes dapesquisa, quem participará do trabalho de exploração dos resultados,quem conduzirá esse trabalho, quem escolherá as opções, quem reteráas soluções etc. determinarão o caráter da intervenção (mais ainda doque o modo de divisão do trabalho entre consultores e atores, nas pró-prias operações das fases de estudo).

Pode-se observar que, na França, como em outros lugares, é sobre-tudo dessa origem técnica que brotaram as primeiras intervenções-con-sultas conduzidas depois da guerra; ainda hoje, freqüentemente, é des-sa maneira que elas se estruturam, no começo; por exemplo, é comum,atualmente, que, pela encomenda de um estudo “Retrato”, os responsá-veis por um estabelecimento industrial demandem a um serviço exteriorajuda para a instituição do “projeto de empresa”. Em um campo bemdiferente, o de intervenções em coletividades camponesas de países doTerceiro Mundo, a obra de G. Le BOTERF (1981) mostra a importânciadessa origem técnica. Entretanto, há muito tempo, os limites desse modo

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de estruturação técnica do processo foram percebidos (LÉVY, 1980). Po-der-se-ia dizer que a célebre experiência de Hawthorne já apontava al-guns deles. A respeito dos riscos nos quais se incorre e pensando, sobre-tudo, no caso de intervenções-consultas intra-organizacionais,apresentaremos rapidamente três observações:

- O trabalho é conduzido por uma equipe externa, sem associaçãosuficiente com os atores envolvidos: os pesquisadores ou responsáveispelo estudo trabalham fenômenos ou discursos coletados junto a indi-víduos ou pequenos grupos; constróem, do exterior, um retrato even-tualmente objetivo e fiel; malgrado seus esforços para se expressaremde forma suficientemente prudente e pouco agressiva (ou para admi-nistrarem uma demonstração convincente), os resultados afastam-semuito das representações que habitavam o campo de consciência dosatores para poderem ser aceitáveis; os participantes têm a impressãode que se lhes despeja um relatório que tem valor de avaliação. Sociólo-gos como CROZIER e SAINSAULIEU evocam, freqüentemente com es-panto, a violência das reações que eles provocam quando apresentamseus resultados: rejeição, cólera, denegação, depressão etc. Se muitas in-tervenções, nas quais a fase de estudo fora concebida como um ponto departida, são interrompidas, de fato, com a apresentação dos resultados,muito freqüentemente é porque o relatório funcionou como uma opera-ção de interpretação selvagem. Não se sabe mais o que fazer, a não seresquecê-lo, enterrá-lo; depois de um certo tempo no qual ninguém ousatomar iniciativa relativa ao projeto inicial, caso se decida reiniciá-lo, es-colhe-se, então, por exemplo, iniciar uma ação de formação desligadada etapa inicial e com uma outra equipe de consultores.

- Há um risco ligado à análise insuficiente da demanda e das ilusõesa ela relacionadas; por exemplo, a idéia de mandar realizar um le-vantamento de dados do conjunto do pessoal pode se dar devido auma esperança, de caráter mágico, de que a explicitação de sentimen-tos e de posições antagônicas, o trabalho de recenseamento, o inven-tário, a descrição minuciosa permitirão fazer emergir uma palavraunificadora, restaurando a coesão, conseguindo uma solução de sín-tese ou, ao menos, um conjunto de compromissos aceitáveis por to-dos e permitindo, em especial, fazer economia de um trabalho verda-deiro de expressão cara a cara, de confronto e de evolução dasdiferentes partes envolvidas. O texto de André LÉVY, já citado, de-senvolve muito claramente esse aspecto.

- A preocupação legítima em obter uma informação bastante completa,significativa e “representativa” inspira uma lógica para a elaboração

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do projeto – particularmente, quando se quer a associação de to-dos os parceiros envolvidos –, o que provoca aumento dos temasde estudo, da diversidade e tamanho da amostra (em grandes uni-dades); chega-se, então, a uma solução que exige uma equipe e, so-bretudo, adiamentos de realizações importantes, o que aumenta orisco de decalagem entre a fase de pesquisa e o momento em que sedeveria investir no trabalho de exploração dos resultados.

Entre as formas de reduzir esses riscos e quando, durante o traba-lho de análise da demanda, se sente um interesse suficientementegrande de conceber o trabalho de estudo ou de pesquisa como umamediação oportuna e necessária, pode-se tentar:

- fracionar a investigação (por tema, por categoria de ator etc.) e alter-nar fases curtas de levantamento de dados ou de pesquisa, corres-pondentes a atuações mais modestas, com o trabalho sobre os re-sultados; em outras palavras, preferir as opções que procedem pormeio de pequenas etapas sucessivas;

- associar todos os parceiros envolvidos, na medida em que isso forcompatível com suas possibilidades efetivas de participação; essameta de associação máxima leva também a alargar o leque detécnicas, transformando-as para que se adaptem à perspectivada intervenção;

- preferir, às relações elaboradas e conceituadas demais, as devolu-ções que estão próximas da expressão espontânea, dando o temponecessário ao trabalho de reconhecimento e de apropriação; assim,a atividade interpretante é conduzida aonde as interações estãofavorecidas, ela resulta de um esforço coletivo que permite a contra-dição, o debate, a perlaboração; como o próprio relatório, essa ativi-dade interpretante submete-se às regras da interpretação clínica.Quaisquer que sejam as técnicas de pesquisa utilizadas, os inter-ventores não devem se deixar levar pela lógica própria ao campocientífico do qual elas saíram, mas repensar essa lógica (por exem-plo, os critérios de cientificidade: validade, pertinência, reproduti-vidade) em função dos princípios específicos da relação de consul-ta, que dependem mais da segunda origem técnica da intervençãoque propomos distinguir.

De meu lado, e apesar das reservas expressas, não opto por uma po-sição radicalmente hostil aos recursos dessa primeira origem; eles me pa-recem, algumas vezes, inevitáveis e lembro-me de casos nos quais elesofereceram um começo muito positivo (ou apoios muito preciosos duranteo percurso) para um trabalho de colaboração de longa duração; parece-me,

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porém, sempre útil interrogar-nos sobre o seu grau de relevância, sobrea possibilidade de contorná-los, comparar as vantagens e as desvanta-gens das técnicas oriundas dessa primeira origem com as das duas ou-tras e ter em mente a ingenuidade do postulado implícito nelas, quepode ser assim simplificado: “É suficiente estabelecer certas verdades ecomunicá-las às pessoas, a fim de que elas mudem”.

As técnicas originárias das práticasAs técnicas originárias das práticasAs técnicas originárias das práticasAs técnicas originárias das práticasAs técnicas originárias das práticasde formação e de psicoterapiade formação e de psicoterapiade formação e de psicoterapiade formação e de psicoterapiade formação e de psicoterapia

Toda vez que uma nova fórmula de formação, de aperfeiçoamen-to e, algumas vezes, de ensino provocou o sentimento de que se tinhadescoberto uma pedagogia fecunda no plano dos indivíduos, pôde-seestar tentado a fazê-la sair da escola ou do centro onde nasceu paraaplicá-la diretamente aos grupos naturais. Passar-se-ia, assim, de umaperspectiva de formação, cujos efeitos de mudança social resultariamda transferência das aquisições do estudante a respeito do seu lugarde trabalho ou de vida, a uma perspectiva de intervenção, na qual, aomesmo tempo que os indivíduos que os compõem, os grupos, as or-ganizações e as “instituições” supostamente se aperfeiçoariam, evo-luiriam, adquiririam novas propriedades.

De uma maneira geral, todas as técnicas de desenvolvimento orga-nizacional (DO) originam-se do campo da formação e, com muita fre-qüência, apresentam-se como a aplicação simples, em um plano concre-to, de uma fórmula aperfeiçoada em um centro especializado ouoriginária de experimentos de laboratório de Psicologia Social ou de Pe-dagogia. A escola lewiniana escolheu essa via com o NTL – National Trai-ning Laboratories (a palavra laboratory designando bem a idéia de experi-mentar, numa escala pequena, métodos de mudança susceptíveis deserem aplicados, em seguida, em diferentes lugares da sociedade). Umadas concepções iniciais do Tavistock caminhava no mesmo sentido (cf. oartigo de E. JAQUES, de 1948, traduzido para o no 3 de Connexions, 1972).

Considerando a importância dada à referência psicanalítica nessaorientação e a dupla formação dos membros fundadores do Instituto Ta-vistock, esse último exemplo encoraja-nos a reagrupar, nessa segundacategoria de origens técnicas, as práticas de formação, de consulta psico-lógica (counselling) e de psicoterapia. Logo, porém, é necessário lembrarque, na Glacier Metal Company, a equipe de JAQUES não parou de trans-formar essa base técnica para chegar ao que ele denominou, a partir de1964, social analysis, ao mesmo tempo em que outros membros do mes-mo grupo (RICE, TRIST, BRIDGER e outros) elaboravam as bases da

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abordagem sociotécnica, das quais surgiram numerosas pesquisas-açãoe, especialmente, o movimento de democracia industrial.

Pode-se fazer o paralelo com a evolução de uma associação comoa ARIP: sua primeira intervenção psicossociológica de duração longa, naempresa Geigy, consistia em transpor, para o seio da cúpula, os métodosdo grupo de base experimentado nos anos precedentes (J. C. ROUCHY,1972); as intervenções que se seguiram, tanto em meio industrial quantono campo social e da saúde, não pararam, em seguida, de se diversifica-rem em função da natureza das demandas, das estruturas de organiza-ção, das orientações específicas a cada um dos membros da Associação.Mas se, na França e em países estrangeiros, nos quais a ARIP interveio, talgrupo nunca foi tentado pela idéia de estabilizar um ou mais dispositivostécnicos do tipo DO, as práticas de formação e de psicoterapia constituí-ram sempre a origem dominante de sua prática, ao mesmo tempo em quese reforçava, no plano teórico, a importância da referência à Psicanálise.

Certos autores franceses que se nutrem das mesmas origens teóri-cas não seguiram, tecnicamente, essa evolução; G. MENDEL e sua equi-pe, por exemplo, conceberam diretamente, com uma perspectiva de in-tervenção intra-organizacional, um dispositivo de análise admitindopoucas variações e buscando sempre se distinguir – sem chegar a fazê-lo, em nossa opinião – de qualquer intenção educativa (cf. Sociopsycha-nalyse, no 1 a 10, Payot); D. ANZIEU transpôs, com uma perspectiva detratamento da organização hospitalar, sua prática de psicodrama analíti-co, inscrevendo-se, ao mesmo tempo, em uma estrutura técnica inspiradapela noção de aparelho psíquico grupal (R. KAES), o que representaria,no plano organizacional, um equivalente simbólico da segunda tópica freu-diana. A. LÉVY e, a fortiori, J. C. ROUCHY e E. ENRIQUEZ consideram,ao contrário, o processo de elaboração do dispositivo (sua instalação e asreiterações eventuais durante o percurso) como um objeto de trabalhointegrado ao processo de colaboração com os solicitadores.

Evidentemente, nem todos os métodos de intervenção que tecnica-mente se equipam com as práticas de formação psicossociais têm as mes-mas referências teóricas e, se quiséssemos ser menos esquemáticos, seriaevidentemente necessário diferenciá-los em função das orientações peda-gógicas e das teorias de aprendizagem às quais eles se referem: técnicasde condicionamento, de reforço ou de treinamento em métodos ativos, empedagogia do projeto, em pedagogia institucional, passando pelos estu-dos de caso, jogos de simulação, utilização da autóptica, grupos de aná-lise de prática profissional. Um critério de diferenciação importante daspráticas de intervenção-consulta e de suas técnicas pode ser encontrado

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nos conceitos elaborados por G. PALMADE no campo da formação edas reuniões: funções externas das atividades empenhadas, funçõesinternas asseguradas ou não pelos consultores no campo da produção,da facilitação e, em especial, da regulação (hetero – ou auto –, de acom-panhamento ou dinâmica).

Como para as intervenções que se equipam tecnicamente com osmétodos das Ciências Sociais, as que se nutrem da formação surgiram,freqüentemente, sob pressão de demandas dirigidas a interventores. Comefeito, as atividades de formação representam um precedente que permiteconhecer consultores potenciais. Além disso, os aspectos econômico-prá-ticos nem sempre estão ausentes de uma demanda orientada para práti-cos da formação, na medida em que instituir, entre os próprios serviços deuma organização, estágios existentes fora dela, para os quais já se inscre-veram individualmente N agentes, é mais rápido, mais racional e menoscaro. Enfim, a palavra de ordem, desde há algum tempo, é a descentrali-zação; é necessário providenciar a formação do responsável local, espe-rando-se que se aumentará assim, ao mesmo tempo, sua eficácia e seugrau de adaptação às expectativas da unidade ou do serviço em pauta.

Evidentemente, é falsa a idéia de que uma fórmula de formação psi-cossocial – concebida e experimentada pelos indivíduos que não se co-nhecem e dos quais se espera que transfiram suas aprendizagens para assuas respectivas unidades – conserva as mesmas propriedades quando édirigida a um grupo natural; embora ninguém pense seriamente em con-servá-la, ela continua subjacente a muitas demandas desse tipo. Não sequer dizer com isso que esse deslocamento a torna, forçosamente, irrele-vante, mas que ela produz outros resultados além dos esperados no inte-rior de sua localização inicial.

De uma maneira geral, o princípio estratégico subentendido durante aoferta e demanda de tais intervenções postula que já se conheça a soluçãodo problema vivido pelo sistema envolvido (diferentemente dos casos evo-cados anteriormente); aplicando o método ao qual nos referimos à totalida-de ou a uma proporção significativa de agentes, no espaço organizacional,pensa-se atingir a massa crítica que permitirá alcançar, localmente, a mu-dança social desejada. Na lógica do modelo médico que funciona de manei-ra subjacente, os responsáveis pela unidade fizeram seu diagnóstico e pres-creveram o tratamento que delegam a interventores externos. Em relaçãoàs situações descritas a respeito da primeira origem técnica, o risco, então, éque se engane sobre a causa das dificuldades, sobre a pertinência do remé-dio ou sobre os dois e que não se tenha, durante um tempo que pode serapreciável, os meios de verificar a validade das hipóteses.

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Deixando de lado a qualidade das intuições dos que tomam as de-cisões, tal risco, evidentemente, é função do tipo de formação da qual seesperam efeitos: quanto mais os programas são estruturados e estrutu-rantes, menos o trabalho empenhado autorizará as derivações necessáriasa um novo enunciado do problema inicial e a uma maneira mais adequa-da de se perceberem as dimensões reais. Esse risco pode ser reduzidoapenas se, de um lado e de outro, houver disposição para investir em umtrabalho satisfatório de análise da demanda. Ainda assim, os consulto-res, por demais impacientes em preencher seus carnês de solicitações, emassegurar “suas tarefas”, inclinados demais a satisfazer imediatamenteo cliente ou dependentes demais da autoridade que esse representa, dei-xar-se-ão cair na armadilha da prestação de serviço. Paralelamente, ossolicitadores, seguros demais dos próprios diagnósticos ou temendo muitovê-los questionados e temerosos em embarcar num processo psicologica-mente mais custoso para eles, arriscam encomendar uma ação incapazde obter os efeitos de mudança esperados.

Um meio técnico (que, aliás, já foi institucionalizado há mais de vinteanos em um grande serviço público) para tentar reduzir esse risco consisteem não assumir uma intervenção sociopedagógica sem proceder, primeiro,a uma pesquisa prévia junto aos atores envolvidos e aos outros estratoshierárquicos do estabelecimento considerado. Esse recurso às técnicas doprimeiro grupo não tem somente por função alargar a composição doagente do diagnóstico prévio, transformar as pessoas envolvidas em ato-res de sua própria formação, descobrir, entre os dirigentes, os voluntáriospara se associarem na preparação de decisões, na elaboração dos progra-mas, na construção pedagógica da ação e na condução dos estágios esessões etc.; ele oferece aos interventores uma fonte de mediações para, deuma maneira progressiva, desenvolver a análise da demanda dos res-ponsáveis, confrontá-la à dos outros atores, manter essa dimensão pre-sente durante todo o processo.

Tal dispositivo técnico é insuficiente; ele pode não resolver as dificul-dades que o consultor escolhido pode encontrar para assumir esse papel.A competência de um interventor, do qual se espera a responsabilidade, acondução e a animação das atividades de formação psicossocial em umdado lugar – ou apenas a formação dos formadores internos – não se reduz,então, ao desempenho eficaz da prática de formador; além disso, não ésuficiente substituir o adjetivo “psicossocial” por “sócio-profissional” parareduzir suas dificuldades; na própria perspectiva da engenharia (ou nametáfora médica), ele deverá poder substituir o tipo de formação deman-dada por outras, dispor de uma teoria das condições nas quais uma dada

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ação é susceptível de provocar efeitos sobre o sistema – e que tipos deefeitos –, negociar os procedimentos técnicos que permitirão produziras informações que faltam, incorporar um cuidado permanente deacompanhamento e avaliação etc. Porém, é interessante observar que,mesmo na abundante literatura produzida pelo caso Glacier, nunca seevoca o recurso a atividades de formação (a não ser a partir do décimoquinto ano de intervenção-consulta, para comunicar aos responsáveis deoutras empresas o que se aprendeu no trabalho socioanalítico); a práticapermanente de intervenção socioanalítica desemboca em uma teoria daburocracia, numa crítica aos limites do staff and line, em problemas deremuneração etc. e não em técnicas de ação formadora de diretores, deagentes de comando ou de pessoal de execução. Ela compartilha, com acorrente sociotécnica e a maioria dos sociólogos da organização, a convic-ção de que as condutas das pessoas, as estruturas da organização e a cul-tura da empresa são interdependentes, que as características das tecnolo-gias de produção e o modo de funcionamento coletivo também o são eque uma formação não associada a mudanças, afetando a estrutura e asinstituições internas, é incapaz de obter uma verdadeira evolução.

Essa última observação leva-nos a examinar a terceira categoria deorigens técnicas.

As práticas sociais de intervenção jáAs práticas sociais de intervenção jáAs práticas sociais de intervenção jáAs práticas sociais de intervenção jáAs práticas sociais de intervenção jápresentes na sociedadepresentes na sociedadepresentes na sociedadepresentes na sociedadepresentes na sociedade

O fato de intervir – de vir entre (uma pessoa, um grupo, um sistema eseu problema; dois atores ou diversas instâncias em interação...) –, emresposta ou não a um apelo, é fenômeno tão geral nas sociedades huma-nas e na sua história que é passível de desencorajar uma abordagemteórica. Entretanto, talvez seja interessante descobrir em que campos su-cessivos esse fenômeno foi progressivamente institucionalizado, a servi-ço de que funções materiais ou simbólicas ele se desenvolveu e inventa-riar os diferentes papéis correspondentes a ele em um dada cultura.

Sem poder preparar aqui tal reflexão, pode-se simplesmente obser-var que o crescimento e a diferenciação funcional e os processos de divi-são do trabalho, o desenvolvimento técnico e científico, a extensão perma-nente da escala de mudanças são alguns dos fatores próprios a acentuarsua importância. Por exemplo, as estruturas internas das organizações secomplexificam, criando sempre mais serviços encarregados de intervirjunto ao pessoal de operação, e os fenômenos de consulta e de interven-ção psicossociológicas não são mais os últimos, em data, a emergir comopráticas e como papéis diferenciados.

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Em suas primeiras manifestações, esses já tomavam emprestado doambiente cultural os elementos susceptíveis de equipá-los tecnicamen-te; assim, J. L. MORENO não se nutriu apenas das duas primeiras ori-gens, enriquecendo-as, mas também aproveitou as técnicas da arte dra-mática para inventar sucessivamente o axiodrama, o sociodrama, opsicodrama e os jogos de papel e de jornalismo (reportagem, acompa-nhamento permanente e pesquisas aprofundadas a respeito dos aconte-cimentos) quando, por exemplo, em Nova Iorque, no fim dos anos 20,durante os motins do Harlem, intervinha em fenômenos de preconcei-tos raciais e de violência urbana.

Freqüentemente ligados à ação das igrejas, os “organizadores de co-munidades”, como o sociólogo S. ALINSKY, retomaram, em sua práticade intervenção junto a populações migrantes desprivilegiadas, as técni-cas de ação direta dos sindicatos americanos, não sem as enriquecer tam-bém com novas formas de contestação e de pressão. Mais recentemente,correntes tão diferentes quanto a advocacy planning e a análise institucio-nal nutriram-se de fontes desse tipo. Com uma perspectiva de pesquisade lutas sociais e culturais atuais, a metodologia de intervenção desenvol-vida por A. TOURAINE recorre também, sistematicamente, a práticas dedebate, de defesa ou de negociação. No campo das empresas de produ-ção, as pesquisas-ação originárias da corrente sociotécnica e as interven-ções do movimento da democracia industrial tomam emprestado, reno-vando-as, as técnicas dos organizadores do trabalho e mesmo as dosgerentes. Em países como o Canadá, os psicossociólogos, freqüentemen-te, são chamados, nos conflitos entre direção e sindicatos, como mediado-res – um papel que a cultura francesa tem dificuldade em desempenhar.

Então, seria absurdo e falso nos limitarmos às duas primeiras ori-gens técnicas de intervenção; existem, evidentemente, fluxos de trocasrecíprocas entre os aspectos mais familiares da vida cotidiana – que con-tinuam a constituir o ambiente cultural no qual as práticas psicológicas esociológicas se desenvolvem – e as duas origens. Essas trocas podem nãoapenas contribuir para enriquecer e diversificar os elementos técnicostirados das duas primeiras origens, mas, eventualmente, vir a substituí-las completamente, adquirindo uma nova especificidade através da ma-neira como são utilizadas e integradas na práxis. Mesmo a história daintervenção de E. JAQUES na Glacier Metal Company permitiria observarcomo as técnicas iniciais, progressivamente, aproximaram-se dos modosde intervenção “naturais” dos atores, inscrevendo-se mais diretamenteem suas práticas espontâneas, ao mesmo tempo em que essas evoluíampor meio de experiências socioanalíticas.

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Se fosse oportuno, poder-se-ia ilustrar também como as práticassociais parecem evoluir sob a influência das técnicas e métodos da Psi-cossociologia, como por exemplo no campo da imprensa escrita, audiovi-sual, da magistratura, da polícia, das relações pastorais, das lutas militan-tes etc. A variedade e a heterogeneidade dos elementos que reagrupamosnessa terceira categoria são grandes demais, tornando fácil arriscar co-mentários um pouco gerais. Entretanto, talvez possamos propor duasobservações antes de evocar rapidamente um exemplo concreto.

Da mesma forma que, para a primeira origem, a idéia estratégicarepousa na capacidade pressuposta dos atores de aproveitarem as infor-mações mais objetivas a respeito de seu próprio funcionamento coletivo e,para a segunda, pode-se mudar esse funcionamento apenas por meio deaquisições e evoluções das pessoas, para a terceira, o pressuposto pode-ria ser o de que os atores já possuem um conhecimento e um potencialsuficientes de transformação e que lhes faltam, apenas, as oportunida-des, os dispositivos de encontro ou as garantias de mudança.

Um risco das orientações que tendem a privilegiar essa terceira ori-gem técnica seria, então, o de não repensar suficientemente os emprésti-mos influenciados pelas precedentes, e renunciar, em conseqüência, atoda especificidade, deixando de lado os requisitos que permitem estabe-lecer e manter as condições de análise.

Embora não ilustre especialmente esse risco, o exemplo seguinte podecontribuir para que sejamos compreendidos; tratam-se de intervençõesdesenvolvidas em um espaço industrial de tamanho grande, dirigidas àprevenção de acidentes de trabalho.

No começo, a luta contra os acidentes está a cargo de um serviçocentral de técnicos encarregados a um só tempo de produzir a regulamen-tação interna, de coletar e tratar o conjunto de informações relativas aosacidentes, de estudar as instalações da fábrica, os dispositivos de prote-ção, o material e os utensílios do ponto de vista dos riscos, de assegurar apublicidade dos resultados dos estudos, de coordenar uma rede de espe-cialistas funcionais da prevenção, de organizar as ações de inspeção, deformação, de propaganda, de sensibilização (por exemplo, instalação de“monitores de segurança” escolhidos pela hierarquia, difusão das esta-tísticas de acidentes, concurso de segurança) etc. Pode-se dizer que esseserviço central cria um conjunto imponente de instituições de segurança,tanto no plano material quanto no legal, e que, de alguma forma, ele acu-mula um papel legislativo interno (fixar as leis, as prescrições) e funcio-nal (no campo técnico, educativo, social), sem que ele próprio tenha au-toridade no que diz respeito a sanções. Parece-nos que, de fato, há uma

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coerência com uma concepção burocrática – no sentido de WEBER – deuma organização fortemente centralizada.

Embora essas realizações permitam registrar progressos incontes-táveis, certas unidades sentem que o nível obtido é ainda insuficienteem relação ao alcançado, por exemplo, em outros países; a abordagemescolhida não teria chegado a considerar todas as dimensões psicosso-ciais do problema. O apelo dirigido por algumas unidades a consultoresexternos ao serviço central ou a agentes de serviços de formação podeser traduzido, então, por uma intervenção psicossociológica, combinan-do as técnicas derivadas das duas primeiras origens aqui distinguidas,ou por uma intervenção apenas formadora. Elas procedem geralmente– exceto nas fases de levantamento de dados e de observação – descen-do a linha hierárquica e trabalhando em especial junto ao escalão mé-dio, algumas vezes desenvolvendo, concomitantemente, o aperfeiçoa-mento dos estratos mais baixos dos agentes de comando. Os confrontosentre atores (por exemplo, no interior de um estrato ou entre comandose escalões, ou comandos e direção) não são feitos diretamente, mas me-diados por dispositivos de estudos ou por situações de formação; evita-se, geralmente, colocar cara a cara um grupo natural e seu escalão dire-to. Poder-se-ia dizer que a condução do processo é prudente, progressivae que ela se passa em um lapso de tempo que se mede em anos. No casoda intervenção psicossociológica, ela é acompanhada por mudanças queafetam certos aspectos das estruturas das instituições locais e não ape-nas as atitudes e comportamentos de atores.

Uma abordagem mais recente, que abandona os dispositivos de estu-do e de formação, é passível de ilustrar o recurso à terceira origem; eviden-temente, fundamenta-se também, no começo, na iniciativa de um responsá-vel local decidido a desenvolver um esforço particular em matéria deprevenção, com a colaboração de consultores externos à sua unidade. De-pois de uma fase de informação-consulta dos atores envolvidos (comitê dehigiene, de segurança e de condições de trabalho, gerentes, contramestres,pessoal de execução), cujo acordo é considerado como uma condição depossibilidade, a base trabalhadora foi convidada a cooptar voluntários paraparticipar de um grupo de trabalho. Uma vez estabelecida a composição, ogrupo ou os grupos dispõem de uma seqüência de duas jornadas paraanalisar a situação, produzir os diagnósticos, propor as medidas. Nofim desses dois dias, eles apresentam coletivamente o resultado de seutrabalho ao escalão direto. Mais precisamente e sempre com a animaçãodos consultores, eles defendem seus relatórios diante de seus contrames-tres. De acordo com os resultados, planeja-se uma ou diversas seqüências

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

suplementares ou passa-se diretamente à etapa seguinte que consisteem apresentar ao responsável local e a seus gerentes o relatório a respei-to do qual o grupo inicial e o comando entraram em acordo. Um dospontos importantes desse processo é o de saber se os executantes volun-tários e cooptados por seus colegas se empenharão ou não em um papelde “conselheiro segurança” no interior de suas respectivas equipes esegundo quais princípios esse papel será estruturado. A última negocia-ção consiste, então, em saber em que medida e em que pontos as mu-danças demandadas pela execução e seu comando serão adotadas peloresponsável local e se os membros do grupo ou dos grupos de executo-res confirmarão sua participação e segundo que modalidades.

Em relação ao processo das intervenções precedentes, esse explicitaas ações e organiza as situações de confrontos de maneira bem mais direta;estende-se numa duração que se mede em meses. Como no caso anterior,permite evocar aspectos que ultrapassam largamente as questões de segu-rança num sentido estrito e leva a considerar os acidentes (ou os compor-tamentos de risco) como resultante de um grande número de variáveis(ou, como na teoria dos equilíbrios quase estacionários de LEWIN, demúltiplas forças antagônicas). Porém, o choque de pontos de vista podeser mais brutal, a intensidade emocional mais forte, os mecanismos dedefesa que protegem habitualmente cada categoria de ator mais pronta-mente atacados e reconstruídos por ocasião dos sucessivos encontros.

Tal dispositivo relaciona-se com o de grupos de expressão diretados assalariados, instituídos pela lei Auroux. Três aspectos o distinguem:ele é demandado expressamente por um escalão da linha hierárquica enão imposto por ela; ele não reúne todos os agentes da unidade envolvi-da, mas um subconjunto (da ordem de um quarto a um décimo) com-posto, em teoria, segundo o duplo princípio do voluntariado individuale da cooptação por pares; todas as etapas que balizam a criação de umnovo papel (do tipo “conselheiro-segurança”) são animadas por umaequipe de interventores externos à unidade. O primeiro ponto (a inicia-tiva de um escalão ou de uma direção decididos a se empenharem emum diálogo verdadeiro) e o último ponto são, para nós, decisivos. Se asituação mobiliza práticas sociais muito familiares aos assalariados e,em especial, aos delegados do pessoal e aos militantes sindicais, a pre-sença ativa de um terceiro nos parece indispensável. Ela permite, entreoutras coisas, ultrapassar conseqüências e retroceder no momento emque uma assimetria muito grande, ligada às diferenças de status e/ou depoder, produz uma frustração muito forte no ator, a ponto dele renunciar,demitir-se ou deixar o outro – ou os outros – conservar sua vantagem; tal

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fenômeno pode-se produzir não apenas no interior de um dos estratosenvolvidos, mas também em encontros do mesmo estrato. Por isso, evi-dentemente, é necessário que os interventores sejam percebidos comosuficientemente independentes de cada parte, sensíveis às causas pelasquais os atores lutam, capazes de empatia e de domínio intelectual dosproblemas, a fim de fornecerem enunciados que não são gerais e abstra-tos demais nem tão “pé no chão” ou neutros, além de serem percebidoscomo tendo condições de guardar uma distância ótima e resistir às pres-sões que podem ocorrer. Em outros termos, é preciso que se lhes reco-nheça bastante autoridade para serem escutados e ouvidos por todos,que se experimente bastante confiança em suas capacidades de catalisa-rem um progresso que poderá ser aproveitado por cada parte. Essa di-mensão de positividade corresponde a um dos limites da neutralidadeevocada: a presença do interventor só é possível se, bem cedo, cada atorenvolvido e ele próprio percebem a existência de metas suficientementecompartilháveis e a virtualidade de uma mudança eqüitativa.

Tais requisitos, evidentemente, não são específicos de situações queretiram seus elementos técnicos da terceira origem, mas têm, sem dúvida,aqui, uma importância acentuada. Está claro também que, mesmo seessas qualidades requeridas podem e devem se desenvolver atravésda experiência de práticas relacionadas à segunda origem (da condu-ção dos grupos de estudo de problema aos grupos de evolução), senãoà primeira, e, mesmo se a orientação evocada não persegue meta for-madora nem meta de estudo (os resultados obtidos nesses dois domí-nios sendo considerados como benefícios secundários), elas não de-pendem apenas da técnica.

Enfim, caso se considere tais intervenções mais “sociológicas” doque “psicossociais”, na medida em que elas tentam ter um acesso maisdireto às relações sociais, está, entretanto, claro que elas ainda se situamno campo microssociológico. Escolher, para guiar a análise, ancorar, porexemplo, o referencial teórico na Sociologia da ação de TOURAINE nãoimpede que uma abordagem intervencionista atravesse necessariamen-te os fenômenos relacionais da Psicologia. O objeto “relações sociais” étomado em uma fantasmática organizacional das relações interpessoaise dos fenômenos de grupo como o minério em sua ganga; tal metáfora,aliás, mal consegue considerar o grau de intricação e interdependênciadas dinâmicas grupal e social.

O fato de que a realidade dos sistemas de ação concretos e das con-dutas sociais seja, em todos os níveis, tecido com fios múltiplos, semprepluridimensional, não deve de forma alguma levar a renunciar ao projeto

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de análise (de decomposição em seus elementos) que caracteriza todadémarche de conhecimento; mas, enquanto dispositivo de inserção, ne-nhuma estrutura técnica de intervenção pode constituir uma peneiraperfeita, permitindo isolar, filtrar com segurança um objeto teórico; elecontribui mais ou menos ativamente para lhe dar forma, sem chegar alhe dar um molde, retomando a distinção de PALMADE (1977). Assim,o interventor é um clínico, quer esteja empenhado, enquanto pesquisa-dor, em uma intervenção-consulta com perspectiva demonstrativa, queratribua prioridade aos problemas de ação e de existência, privilegiandoprocessos decisórios ou elucidações de sentido; a Sociologia que optapor tal abordagem não pode mais excluir a Psicologia Social nem igno-rar a vida psicológica dos grupos nos quais penetra; ela só pode ser elamesma ao preço de uma integração suficiente das abordagens da Psi-cossociologia, até o ponto em que a distinção entre intervenções psicos-sociológica e sociológica não mais seja fácil de ser feita. Com efeito, nãoé suficiente dizer que é a escolha do referencial teórico, a natureza dosdispositivos técnicos e os modos de intervenção que podem, por si só,fundamentar tal distinção, caso se esteja inscrito em uma relação de con-sulta; as escolhas iniciais arriscam, em cada momento, ser atropeladaspelos acontecimentos presentes no processo e é apenas no desfecho quese pode concluir de que vertente disciplinar os objetos que foram traba-lhados realmente dependem.

Tal situação pode desencorajar um pesquisador; a mim, ela me leva,antes, a resistir à tentação de considerar as práticas de intervenção psi-cossociológicas como passíveis de adquirir, com o tempo, uma posição dedisciplina científica organizada em torno de um objeto específico e exclu-sivo. Nem ciência nem tecnologia, elas seriam, no entanto, capazes decontribuir em processos de pesquisa, particularizando-se por um traba-lho técnico que lhe é próprio, elas dizem respeito a uma práxis distintadaquelas do educador, do terapeuta, do gerente ou do político.

O caráter algumas vezes espetacular de seus efeitos (não é raro ver afreqüência dos acidentes de trabalho em uma unidade ser reduzida a umquarto, depois de dez ou vinte dias de intervenção, distribuídos por unspoucos meses) não deve permitir que se esqueça seu lado efêmero (dois,três ou quatro anos no mesmo exemplo acima evocado). Não é fácil, parao pessoal de um estabelecimento, estabilizar uma mudança desse tipo (defato, uma evolução das relações que caraterizam seus modos de funcio-namento), malgrado os fluxos que renovam sua composição e os outrosfenômenos internos ou externos que o afetam; enquanto não se tentaatingir as estruturas intrapsíquicas individuais nem as estruturas globais

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do espaço social considerado, a invenção de instituições locais (por exem-plo, a criação de “conselheiros segurança”) é o único meio, para os ato-res, de tentarem inscrever seu esforço na história da unidade; isso tempouca importância diante de um novo chefe determinado a orientar seusesforços em uma direção inteiramente diferente.

Porém, malgrado sua fragilidade no tempo, tal resultado não se re-duz a uma estatística de acidentes, por mais importante que ela seja paraas pessoas envolvidas. Por outro lado, se a inovação local exprime e reúnenovidades aspiradas, de maneira mais ou menos difusa, por certos seto-res da sociedade, e se surgem conjunturas favoráveis, tais acontecimentospodem inspirar outros e, assim, adquirir um sentido menos restrito.

Enquanto atores sociais, é da responsabilidade dos psicossociólo-gos que optam por uma estratégia de “forçar entrada” afirmar, semsubterfúgios, sua identidade social e a natureza de seu projeto, vigiar amaneira como a sociedade institucionaliza sua atividade, lutar por esta-belecer e manter as condições de possibilidade de seu papel (por exem-plo, as que asseguram a qualidade da formação inicial dos práticos, oaperfeiçoamento permanente que pode garantir um nível de competên-cia aceitável, o reconhecimento de uma posição suficientemente indepen-dente para estar em condições de contribuir concretamente para explorar,analisar e experimentar as vias de democratização etc.). A inserção nauniversidade, a colaboração ativa com os laboratórios de pesquisa, assimcomo a manutenção de uma vida associativa que não seja só de funçãocorporativista são, para mim, importantes sob esse ponto de vista.

Anunciamos, no começo desse artigo, um ponto que vamos agoraabordar rapidamente: o de saber em que medida as práticas de inter-venção se diferenciam, em função do campo social em que aparecem. Senos restringirmos ao caso da perspectiva “colaboradora” – que corres-ponde ao que denominamos intervenção-consulta – e se entendermospor campos os domínios de atividade como a indústria, a administra-ção, o comércio, os setores de saúde, social e educativo ou os campos deestudo como o meio rural, os espaços urbanos, os movimentos sociaisou culturais etc., seria natural levantar tal hipótese. Entretanto, pode-seobservar que, diante de cada um dos campos que acabamos de enume-rar, podem-se encontrar, na literatura especializada, exemplos que to-mam emprestados elementos técnicos a cada uma das três origens quedistinguimos nesse texto; o mesmo se passa, se relacionamos os campose os tipos de intervenção-consulta que distinguimos (decisória, analíti-ca, demonstrativa) ou ainda se examinamos essa classificação em fun-ção das origens técnicas.

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Já observamos que, se tentamos elaborar uma taxionomia das prá-ticas de pesquisa-ação no interior de um determinado setor (no caso, oespaço urbano), pode-se aplicá-la a outros campos, sem operar modifi-cações importantes e sem que ela perca sua pertinência.

Os critérios que me parecem mais eficazes para evidenciar as espe-cificidades seriam antes:

- o lugar dos agentes que instituem o projeto no sistema em questão(status social, autoridade, poder, posição central ou periférica etc.);

- o caráter do lugar: espaço intra-organizacional ou trans-organiza-cional;

- a natureza dos objetos (as categorias de fenômenos) a respeito dosquais tenta-se produzir uma certa forma de conhecimento e obtermudanças, o grau de nossa capacidade de indentificá-los, concei-tualizá-los e a maneira como os apreendemos teoricamente;

- as opções epistemológicas e as perspectivas ideológicas dos pes-quisadores e de seus parceiros (suas relações com os modelos do-minantes em sua região e em sua subcultura);

- a relação pesquisador-ator (relação mercantilista, de dependênciahierárquica, de colaboração profissional, voluntária ou militanteetc.), a estruturação dos papéis recíprocos, a divisão do trabalho.

Não quero ir tão longe a ponto de dizer que uma análise comparati-va, lidando com uma amostra bastante numerosa de casos, não chegariaa evidenciar as diferenças significativas de acordo com os campos. Porexemplo, os resultados quantitativos estabelecidos por C. MARTIN emuma pesquisa recente, a partir de um corpus de uma centena de interven-ções no campo social (1986) e, ainda, as conclusões às quais J.-C. ROUCHYchegou, evocando, nesse número, sua própria experiência no campo dasaúde, não coincidiriam, necessariamente, com o que se observaria emoutros lugares. Porém, pensamos que a raridade relativa do fenômenodeixa-o ainda fragilmente institucionalizado e que isso favorece, até umdeterminado ponto, a variância devida às condutas pessoais do consul-tor e de seus parceiros.

Notas1 Traduzido de DUBOST, Jean. “Sur les sources techniques de l’intervention psychosocio-

logique et quelques questions actuelles”. Connexions. 49, p. 7-28, 1987-l, por MaríliaNovais da Mata Machado.

2 DO – Desenvolvimento Organizacional (N.T.).

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Bibliografia

DUBOST, J. L’intervention psychosociologique. Paris: PUF, 1987.

LE BOTERF, G. L’enquête participation en question. Théories et pratiques de l’éducationpermanente. Paris: LFEEP, 1981.

LÉVY, A. In: L’intervention institutionnelle. Paris: Payot, 1980.

MARTIN, C. Les recherches-actions sociales. La Documentation française, 1986.

PALMADE, G. Interdisciplinarité et idéologies. Paris: Anthropos, 1977.

ROUCHY, J.-C. “Une intervention psychosociologique”. Connexions, 3, 1972.

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PSICOSSOCIOLOGIA

PS

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IA-análise

socialeintervenção

-AndréLévy,André

Nicolaï,EugèneEnriquez,Jean

Dubost

André LévyAndré Nicolaï

Eugène EnriquezJean Dubost

análise social e intervenção

Este livro é de interesse paraos estudiosos das Ciências Hu-manas e Sociais em geral, tantopara os que se dedicam à refle-xão teórica, quanto para os quepraticam a Psicologia, a Sociolo-gia, a Economia, a Psicanálise, aEducação, o Direito, a Adminis-tração e a Política. Nele, psicólo-gos, sociólogos e um economis-ta interrogam suas áreas especí-ficas e, sobretudo, a "transdisci-plina" que os congrega, a Psicos-sociologia.

É apresentado, no livro, o es-boço de uma teoria original dosocius, da organização e do fun-cionamento social, feita a partirda análise social. Essa construçãoteórica foi inspirada e se funda-mentou em práticas sociais rea-lizadas em situações concretas,reais: a "intervenção psicossocio-lógica", dispositivo de consulta epesquisa, cuja história é aqui re-vista e avaliada. A reflexão foifortemente influenciada pela Psi-canálise, mas também pelo pen-samento filosófico que apontapara as representações imaginá-rias do social e, recentemente,pela sociologia da ação. Comoconseqüência, aproximou-se doconhecimento da natureza dovínculo que congrega os indiví-duos, de um saber a respeitodas mudanças e rupturas da di-nâmica social e da descobertado processo de criação institucio-nal; teoria e prática foram estrei-tamente unidas; mitos, ideologias,

sagrados e certezas, relações depoder e de autoridade foramanalisados.

Os autores, organizadores ecolaboradoras estão ligados porum acordo de cooperação fran-co-brasileiro. Os franceses –Jean Dubost, Eugène Enriquez,André Lévy e André Nicolaï –são nomes consagrados em seupaís. Seus textos foram selecio-nados, apresentados e comen-tados por psicossociólogos bra-sileiros – Marília Novais da MataMachado, Sonia Roedel, JoséNewton Garcia de Araújo, Elia-na de Moura Castro, TeresaCristina Carreteiro e Regina D.B. de Barros.

Marília Novais da MataMachado é doutora emPsicologia Social epesquisadora do LAPIP-FUNREI/FAPEMIG.

Eliana de Moura Castroé doutora em Psicanálise eprofessora aposentada daUFMG.

José Newton Garciade Araújo é doutor emPsicologia Social e Clínicae professor da PUC Minas.

Sonia Roedel é mestreem Psicologia Social eprofessora da UFMG.

“Quais são os problemas realmente essenciais, na atu-

alidade? Aos olhos do psicossociólogo, os mais impor-

tantes entre eles parecem ser o crescimento do indivi-

dualismo, os ‘intemináveis adolescentes’, o triunfo da

racionalidade experimental, a busca desenfreada pelo

êxito econômico e financeiro e, finalmente, o recru-

descimento do ‘narcisismo das pequenas diferenças’

que acarreta as disputas inevitáveis entre as nações, et-

nias, grupos religiosos etc. É certo que a Psicossociolo-

gia não tem poder para tratar dessas questões no âm-

bito da sociedade global, mas ela pode auxiliar os ato-

res e os autores sociais ou os sujeitos que querem ino-

var e criar novas modalidades sociais”.

Marília Novais da Mata Machado - Eliana de Moura CastroJosé Newton Garcia de Araújo - Sonia Roedel (orgs.)

www.autenticaeditora.com.br0800 2831322

9 7 8 8 5 7 5 2 6 0 2 2 7

ISBN 978-85-7526-022-7