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QUANDO AS QUESTÕES DE GÊNERO, RAÇA E MASCULINIDADES
INTERROGAM AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
Vivemos em um momento histórico de questionamento ao projeto da modernidade e de
mudanças no contexto sociopolítico-cultural e epistemológico. Esta fase contemporânea
tem sido caracterizada por uma explosão de identidades políticas centradas na ascensão
do feminismo, nas identidades gays, lésbicas e negras, na migração de antigas colônias
dos países pobres para os países ricos, tudo isso causando grande impacto nas
sociabilidades em geral. Nas escolas, as identidades de gênero, raça, sexualidades e
masculinidades, com seus lugares e funções tradicionalmente adjudicadas, vêm sendo
interpeladas, problematizadas e, em certo ponto, desestabilizadas por outras formas de
vivê-las. Assim, neste painel, defendemos a necessidade de se tematizar as diferenças e
identidades nos discursos e nas práticas pedagógicas. No primeiro texto destacam-se as
práticas pedagógicas de dois professores: uma de educação física e outro de artes que
buscam discutir e problematizar as questões de gênero e raça em suas práticas. No
segundo texto procura-se problematizar e desessencializar as masculinidades
vivenciadas por jovens adolescentes no contexto escolar. Para tal, o autor utilizou a
narrativa de três jovens estudantes da rede pública. Por fim, aborda-se a formação de
professores e seu olhar para as diferenças de gênero e sexualidade objetivando refletir
acerca das estratégias pedagógicas referentes à categoria gênero da disciplina Educação
Física e ludicidade de uma universidade federal situada na cidade do Rio de Janeiro.
Nos três trabalhos destacamos práticas pedagógicas que buscam
desconstruir/problematizar verdades essencializadas e valorizar novas possibilidades de
sociabilidades. Assim, a proposta central é contribuir para o reconhecimento e
valorização das diferenças de gênero, raça, masculinidades e ao mesmo tempo para a
melhoria da qualidade da educação e do ensino nas redes públicas.
Palavras-Chave: Gênero, Raça, Masculinidades.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
12042ISSN 2177-336X
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A FORMAÇÃO DE DOCENTES DE EDUCAÇÃO FÍSICA E SEU OLHAR
ACERCA DAS QUESTÕES DE GÊNERO
Rita de Cassia Silva
UNISUAM e Secretaria Municipal de Educação do RJ
Os cursos formadores de professores/as de Educação Física devem acompanhar as
transformações ocorridas em nossa sociedade para contemplar questões ligadas à
diferença cultural, no intuito de fornecer aos/às futuros/as docentes pistas para se
trabalhar com as múltiplas identidades presentes em nossa sociedade e em nossas
escolas, com estudantes oriundos/as de diferentes classes sociais, de diferentes
comunidades populares, com características étnico-raciais diferenciadas, que
apresentem um olhar distinto acerca das questões de gênero, que façam parte de
diferentes orientações religiosas, que são por vezes transferidos/as de outros estados e
cidades, que estão inseridos/as em famílias com formação diferente do que
consideramos em geral “normal” ou “heterossexual”, ou seja, que apresentem distintas
formas de pensar e enfrentar o mundo, diferentes formas de agir e de dialogar. Sendo
assim, o presente estudo tem como objetivo refletir acerca das estratégias pedagógicas
referentes à categoria “gênero” da disciplina “Educação Física e ludicidade”, integrante
do curso de formação de professores/as de Educação Física, de uma universidade
federal situada na cidade do Rio de Janeiro. Para tanto foram observadas as aulas desta
disciplina durante dois períodos letivos. Também foi realizada a análise da ementa e
programa da mesma. Estudantes e professora foram ouvidos através de entrevistas
realizadas na instituição de ensino. Uma nova Educação Física parece surgir, mesmo
através de tentativas isoladas de docentes. O olhar para o “outro” começa adentrar a
formação destes educadores/as. Contudo, muito ainda deve ser discutido. As questões
de gênero ainda precisam ser evidenciadas no sentido de se realizar a desconstrução de
ideários engessados ao longo da história da construção deste campo. A disciplina
analisada fornece caminhos possíveis para a re(construção) de uma nova Educação
Física, mas uma longa jornada ainda precisa ser trilhada.
Palavras-chave: Formação de professores/as, Educação Física, Gênero.
Introdução
“Hoje é um dia muito feliz, é o primeiro dia de aula de Maria no ano letivo de
2016. Maria está muito contente, pois irá reencontrar antigas amizades e quem sabe
conhecer novas pessoas. Ao adentrar a escola Maria, que está no 6º ano do Ensino
Fundamental, recebe o horário de aulas do dia de hoje: dois tempos de matemática, um
tempo de música e dois tempos de Educação Física. O olhar de Maria se modifica e
sugere certa preocupação. Algumas indagações surgem: será que a partir de agora
poderei participar do Futebol juntamente com os meninos? As aulas serão mistas? As
atividades levarão em conta as minhas necessidades? E se eu não souber jogar?”.
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O trecho acima trata-se de uma pequena provocação, contudo, pode caracterizar
o que vem ocorrendo em muitas aulas de Educação Física escolar. Estudantes são
excluídos/as por habilidades físicas e por gênero, alguns/mas docentes não conseguem
lidar com as diferenças que atravessam os muros da escola e adentram as quadras, se
inserindo nas práticas hegemônicas historicamente construídas no campo da Educação
Física.
Para Neira (2007), a prática pedagógica do campo da Educação Física tem
apresentado um grande vínculo com interpretações instrumentais do movimento
humano, o que caracterizaria seu ensino pela transmissão e reprodução de padrões
preestabelecidos, retirados de elementos culturais específicos (esportes), o que
desencadeia a rejeição pelas diferenças técnicas dos/as alunos/as ou ainda, o
desenvolvimento de habilidades motoras (educação do movimento) e perspectivas
(educação pelo movimento) voltadas para o desempenho, para o mérito e para o lazer
funcional.
Cabe salientar que diversas tendências pedagógicas marcam a história da
Educação Física brasileira e influenciam, até os dias de hoje, a prática docente deste/a
educador/a. As tendências higienista, militarista e competitivista fazem parte do
cotidiano de atuação do campo da Educação Física, com suas práticas disciplinadoras,
exclusivistas e elitistas. Porém, não podemos ignorar que o público recebido na escola
brasileira, principalmente na escola pública, advém, em sua maioria, de classes
populares, é pertencente a várias comunidades e portador das mais diversas bagagens
culturais. Estas bagagens, muitas vezes, não contemplam experiências de vitória e
sucesso, no que diz respeito à prática de esportes e por que não dizer, nos diversos
campos da vida social.
De acordo com Souza (2007), a Educação Física compromete-se de maneira
dominante com uma prática eminentemente competitivista, ou seja, princípios
relacionados ao “selecionar” e ao “vencer” são disseminados sem qualquer reflexão e
naturalizados de forma a tornar a prática da Educação Física como sendo fortemente
discriminatória.
A escola parece contribuir para a exclusão dos/as estudantes a partir da categoria
gênero e reforça a generificação das atividades e esportes preconizados pela Educação
Física. Louro (2013) afirma que
A despeito de todas as oscilações, contradições e fragilidades que
marcam esse investimento cultural, a sociedade busca,
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intencionalmente, através de múltiplas estratégias e táticas, “fixar”
uma identidade masculina ou feminina “normal” e duradoura. Esse
intento articula, então, as identidades de gênero “normais” a um único
modelo de identidade sexual: a identidade heterossexual. Nesse
processo, a escola tem uma tarefa bastante importante e difícil. Ela
precisa se equilibrar sobre um fio muito tênue: de um lado, incentivar
a sexualidade “normal” e, de outro, simultaneamente, contê-la
(LOURO, 2013, p.25).
A autora adiciona:
A competição, no entanto, que é frequentemente enfatizada na
formação masculina parece dificultar que meninos e jovens “se
abram” com seus colegas, expondo suas dificuldades e fraquezas. Para
um garoto (mais do que para uma garota), tornar-se um adulto bem-
sucedido implica vencer, ser o melhor ou, pelo menos, ser “muito
bom” em alguma área. O caminho mais óbvio, para muitos, é o
esporte (no caso brasileiro, o futebol), usualmente também agregado
como um interesse masculino “obrigatório” (LOURO, 2013, p.22).
A partir destas premissas, nossa “Maria” estaria subvertendo uma lógica imposta
pela sociedade, uma vez que é menina e supostamente gostaria de participar dos jogos
de futebol.
Concordo com Daolio (2004) ao afirmar que a Educação Física pode e deve
ampliar seus horizontes, abandonando de vez a premissa de investigar o movimento
humano, o corpo físico ou o esporte na sua dimensão exclusivamente técnica, para
tornar-se um campo de atuação que considere o ser humano como ator cultural e social.
Mas como preparar os/as futuros/as docentes para uma prática pedagógica mais
igualitária?
A formação inicial parece não contribuir para a resposta a este questionamento.
De acordo com Tardif (2012), a mesma vem sendo marcada pelo predomínio dos
saberes disciplinares, saberes estes produzidos sem nenhuma ligação com a ação
profissional. O autor adiciona ainda que educadores/as e pesquisadores/as apresentam-
se como dois grupos cada vez mais distintos, destinados simultaneamente a tarefas
especializadas de transmissão e de produção dos saberes sem nenhuma relação entre si.
No sistema escolar esta separação já se encontra bem caracterizada uma vez que o saber
dos/as professores/as parece residir unicamente na competência técnica e pedagógica
para transmitir saberes elaborados por outros grupos.
A partir da problemática apresentada, proponho que os cursos formadores de
professores/as de Educação Física também devam acompanhar as transformações
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ocorridas em nossa sociedade e possam contemplar questões ligadas à diferença
cultural, no intuito de fornecer aos/às futuros/as docentes pistas para se trabalhar com as
múltiplas identidades presentes em nossa sociedade e em nossas escolas, com
estudantes oriundos/as de diferentes classes sociais, de diferentes comunidades
populares, com características étnico-raciais diferenciadas, que apresentem um olhar
distinto acerca das questões de gênero, que façam parte de diferentes orientações
religiosas, que são por vezes transferidos/as de outros estados e cidades, que estão
inseridos/as em famílias com formação diferente do que consideramos em geral
“normal” ou “heterossexual”, ou seja, que apresentem distintas formas de pensar e
enfrentar o mundo, diferentes formas de agir e de dialogar.
Sendo assim, o presente estudo tem como objetivo refletir acerca das estratégias
pedagógicas referentes à categoria “gênero” da disciplina “Educação Física e
ludicidade”, integrante do curso de formação de professores/as de Educação Física, de
uma universidade federal situada na cidade do Rio de Janeiro. Para tanto foram
observadas as aulas desta disciplina durante dois períodos letivos. Também foi realizada
a análise da ementa e programa da mesma. Estudantes e professora foram ouvidos
através de entrevistas realizadas na instituição de ensino.
Educação Física e Ludicidade: o olhar sobre os gêneros
Disciplina oferecida preferencialmente aos/às estudantes de terceiro período de
licenciatura e quarto período de bacharelado, Educação Física e Ludicidade contava
com a participação de alunos/as de bacharelado e licenciatura de diversos períodos.
Suas aulas ocorriam, na maioria das vezes por conta do seu caráter prático, em um dos
ginásios da instituição e suas aulas teóricas eram ministradas em diferentes salas de
aula, não tendo local fixo. A disciplina apresenta em seu programa uma carga horária de
sessenta horas, sendo trinta horas de aulas práticas e trinta horas de aulas teóricas.
Em geral as aulas práticas ocorriam da seguinte forma: a professora sugeria uma
atividade ou um jogo prático. Após a sua realização os/as alunos/as eram questionados
acerca da atividade: suas impressões, pontos positivos e pontos negativos. Logo após, o
jogo/atividade era novamente realizado/a, seguindo as alterações sugeridas pelos/as
discentes. Em todas as aulas práticas a grande preocupação da docente era fomentar
discussões acerca de atividades e jogos que pudessem ser realizados por todos e todas,
principalmente no que diz respeito à pessoa com deficiência, às questões de gênero e à
habilidade motora.
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Outro aspecto observado nas aulas práticas se refere à conduta dos/as alunos/as
frente às atividades sugeridas. Para a concretização do seu ideal de realização de aulas
para todos/as, a professora apresentava inúmeras possibilidades, incluindo os jogos
cooperativos. De acordo com Soler (2006), pensar em jogos cooperativos vai ao
encontro da valorização do jogar “com o outro” e não “contra o outro”, por meio de
atividades de cooperação, potencializando a autoestima e a relação social. Procura
auxiliar na proposta da inclusão das diferenças, pois permite a participação de todos/as,
independente do seu nível de habilidade motora.
Os jogos cooperativos em geral, não eram muito bem aceitos pelos/as estudantes.
As alunas, exclusivamente, reclamavam com frequência das atividades realizadas em
grupo, pois sinalizavam que os “meninos” se utilizavam de uma força física exagerada
no intuito de “vencer a qualquer custo”.
Ainda no que diz respeito à realização de jogos cooperativos, em alguns casos,
os/as estudantes subvertiam a atividade no sentido de torná-la competitiva. Os jogos
cooperativos têm como características principais o realizar as atividades por prazer, o
jogar com o/a outro/a e não contra o/a outro/a. Os jogos nesta perspectiva não têm fim,
ou seja, não há vencedores e ganhadores para se considerar o término da atividade, o
grupo que decide quando ela deve ser finalizada. Mesmo assim, por diversas vezes,
os/as alunos e alunas traçavam estratégias para vencer os jogos sugeridos, não
compreendendo assim a proposta das atividades.
A competição é apresentada ainda como um aspecto fortemente presente no curso
de Educação Física analisado. Alguns/mas alunos/as questionam a proposta da
professora de trabalhar com jogos mais inclusivos e menos competitivos.
Um estudante fala da condição dos indivíduos de uma forma fixa, engessada.
“Quem é habilidoso é habilidoso, quem não é, não é” (Willian).
Estas questões são problematizadas a todo tempo pela professora e este foi o
cenário que atravessava as aulas práticas; a desconstrução do que está posto, a recriação
de atividades, a discussão de novas práticas que possibilitassem a participação de todos
e todas.
“Se acreditarmos nisso, se só pensarmos assim, realmente não vamos conseguir
nada”, nós pensamos em aulas em que todos podem participar?” (Professora Adriana).
“A Educação Física é o espaço do sucesso! Bem, deveria ser, pra todos”
(Professora Adriana).
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Não podemos negar que a construção da identidade profissional do campo da
Educação Física é fortemente influenciada pela visão biologicista e competitivista e sua
intervenção médica e militar. Até os dias de hoje vemos o esporte como conteúdo
fortemente ministrado nas aulas e de uma maneira excludente. As aulas observadas não
negaram o esporte como conteúdo a ser trabalhado pelo campo da Educação Física, mas
apresentaram uma proposta de releitura e recriação dos diferentes esportes, proposta
esta que avança no sentido de que os mesmos possam ser praticados por todos/as
efetivamente, de maneira igualitária.
A releitura de esporte oficiais e jogos populares era a premissa das aulas práticas e
embora a mesma tivesse o intuito de fomentar a discussão acerca da inclusão de
todos/as nas aulas de Educação Física, nem sempre este objetivo era atingido. Em uma
das aulas a proposta foi a realização de jogos de queimado diferenciados. Foi
apresentado um tipo de queimado onde o/a participante que é “queimado” não vai para a
área que fica atrás do outro time (o limbo), mas continua no jogo no sentido de
continuar participando ativamente. Inicialmente alguns/mas alunos/as reclamam da
atividade dizendo que a mesma estava “sem graça”. Algumas alterações foram
sugeridas pela professora no intuito de tornar a atividade mais interessante e os/as
futuros/as professores/as sinalizaram que a mesma mantinha a exclusão.
“Achei o jogo mais excludente, cada um lutava pra voltar e não se importava em
passar a bola pro mais fraco” (Caio).
Embora o curso de licenciatura seja considerado como o curso de formação
inicial de professores/as, concordo com Tardif (2012) quando o mesmo salienta que
antes mesmo de começarem a atuar como docentes, os/as futuros/as professores/as
vivem nas salas de aulas e nas escolas, seu futuro local de trabalho. Desta forma, esta
prévia imersão no futuro local de trabalho se caracteriza como formadora, pois a partir
dela as crenças, representações e certezas sobre a prática do ofício de professor/a são
adquiridas. Antes mesmo do início da sua atuação profissional, o/a professor/a já sabe,
de muitas formas, o que vem a ser o ensino, por conta de toda sua história escolar
anterior. Tardif (2012) adiciona ainda que o saber herdado da experiência escolar
anterior é muito forte, persiste através do tempo e a formação universitária não
consegue transformá-lo e nem tão pouco abalá-lo.
A partir deste olhar concebido por Tardif (2012), tenho como hipótese que o
caráter competitivo amplamente preconizado pela Educação Física escolar tenha feito
parte da trajetória escolar dos/as futuros/as professores/as de Educação Física. Sendo
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assim, os/as professores/as em formação apresentam em seu imaginário a competição
como a maneira convencional, e por que não dizer, a única forma de se trabalhar com os
conteúdos específicos do campo da Educação Física, uma vez que o viés competitivo
sempre esteve presente nestas aulas.
Em geral, a grande resistência e até dificuldade em compreender e participar de
jogos cooperativos e com caráter inclusivo é representada, em sua maioria, pelos alunos
do gênero masculino da turma. Uma das estudantes, fala do seu incômodo nas
atividades, e adverte quanto ao objetivo do curso de licenciatura.
“Eu sai desse jogo, muito violento, eu não posso me machucar. Os meninos dessa
turma acham que vêm pra faculdade pra jogar, eu não, eu vim aqui pra aprender a dar
aula” (Andréa).
As questões sobre a temática gênero não só eclodem a todo tempo nas aulas
práticas, como também são provocadas pela docente, no sentido de fomentar as
discussões. A partir desta premissa, diversas atividades foram propostas no sentido de
diminuir a supremacia masculina nas aulas de Educação Física, sempre favorecendo a
reflexão e discussões do tema.
Em uma das aulas, foi sugerido um jogo de futebol diferente: a atividade seria
desenvolvida em dupla, ou seja, em duplas mistas, os/as estudantes deveriam estar de
mãos dadas e o jogo de futebol se desenvolveria de forma convencional, com o objetivo
de fazer gols. Algumas alunas pareciam ser arrastadas pelos meninos que corriam
velozmente objetivando ganhar o jogo. Após o término da atividade, no momento da
discussão, algumas alunas comentaram sobre a velocidade excessiva utilizada pelos
alunos. Uma aluna questionou a realização da atividade, colocando em pauta a
existência de atividades específicas para os diferentes gêneros.
“Mas também né? Geralmente os meninos têm mais habilidade com os pés”
(Rosana).
Pareceu-me que todos/as concordavam com a fala da aluna uma vez que nenhum
comentário foi feito acerca da mesma. Todavia, algumas alunas disseram se sentir
felizes, pois nunca tinham feito um gol em um jogo de futebol. Para um grupo reduzido
de alunas, a atividade gerou efeito satisfatório.
Em uma das aulas alguns jogos populares foram apresentados à turma através de
um circuito com diversas estações: cordas, taco, elástico (pular), petecas, bambolês,
raquetes e bolas de tênis, bolas de gude, mini-cones e amarelinha. Mais uma vez as
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questões de gênero se apresentaram e na verdade, conforme sinaliza a professora
posteriormente, a atividade tinha esta discussão como objetivo.
Os alunos do gênero masculino tentavam inicialmente, no momento da troca de
atividade do circuito, não realizar as atividades consideradas por eles, “brincadeiras de
meninas”, ou seja, burlavam as regras do circuito e não participavam de atividades
como peteca, amarelinha e elástico. Alguns verbalizavam suas opiniões.
“Peteca é brincadeira de menina professora!” (Willian).
“Mas elástico é uma brincadeira de meninas!” (Pablo).
Após a intervenção da professora, que sinalizou que a definição de “brincadeiras
de meninos e brincadeiras de meninas” vem a ser uma construção social e cultural,
todos e todas participaram de todas as atividades do circuito, sendo que alguns alunos
ainda generificaram algumas atividades, como é o caso do elástico, onde os alunos
criaram competições onde verificavam quem realizava o salto mais alto e mais veloz.
Conforme sinaliza Silva (2012), a escola e principalmente a Educação Física,
através de seus conteúdos, como a ginástica e o esporte, atuam como agentes
generificadores das práticas escolares uma vez que, de acordo com o autor, as
influências dos métodos ginásticos, como o sueco e o alemão, na Educação Física
brasileira, preconizavam diferentes exercícios para homens e mulheres. Já o esporte
reforça a ideia de uma Educação Física voltada para o mundo masculino e
heterossexual, onde qualidades como virilidade, força e agilidade são ligadas ao
universo masculino, mantendo uma distância segura do universo feminino.
Ora, se nas competições esportivas de alto nível as categorias são divididas por
gênero, por que não dividir alunos e alunas nas aulas de Educação Física, se essas
preconizam o esporte como conteúdo principal? Esta parece ser a proposta
transformadora hoje em voga para a Educação Física escolar: refletir sobre a
apropriação de diversos temas como conteúdos a serem ministrados nas aulas,
conteúdos como as danças, lutas, ginásticas e até mesmo os jogos populares, excluindo
e até mesmo demonizando a aplicação do conteúdo esporte nas aulas. Porém, ao
observar as aulas observadas, me parece que a discussão necessita ganhar outros
contornos, uma vez que mesmo na aplicação de um conteúdo outro (os jogos
populares),os alunos do gênero masculino, generificam as atividades consideradas por
eles, femininas.
Altmann e Sousa (1999) incrementam a discussão quando consideram que
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Não se pode concluir que as meninas são excluídas de jogos apenas
por questões de gênero, pois o critério de exclusão não é exatamente o
fato de elas serem mulheres, mas por serem consideradas mais fracas e
menos habilidosas que seus colegas ou mesmo de outras colegas.
Ademais, meninas não são as únicas excluídas, pois os meninos mais
novos e os considerados fracos ou maus jogadores frequentam bancos
de reserva durante aulas e recreios, e em quadra recebem a bola com
menor frequência até mesmo do que algumas meninas (ALTMANN &
SOUSA, 1999, p.56).
As aulas teóricas eram apresentadas com a leitura de textos e apresentação de
filmes e animações. Todas, porém, tinham como temática as discussões acerca das
identidades de gênero.
Ao assistirem o vídeo For The Birds, da Pixar, os/as discentes foram
convidados/as pela professora, a exporem suas impressões sobre o filme. A temática
central do mesmo são episódios de exclusão por conta da diferença.
Dois alunos defendem que as brincadeiras que enfatizam as diferenças e os
apelidos não podem ser sempre consideradas como bullying e acreditam que a
interferência do adulto nestas questões faria com que as crianças perdessem a
autonomia.
“Chamar o gordinho de gordinho é uma brincadeira saudável, a gente não tem
que ficar interferindo em tudo, senão a criança perde a autonomia” (Ezequiel).
Uma aluna defende que nestes casos, a interferência do adulto, do/a professor/a é
primordial, pois o bullying causa sofrimento à pessoa discriminada.
“Eu sempre fui vítima de apelidos, de brincadeiras porque eu era baixinha e eu
sofria muito, o professor tem que intervir sim!” (Mariana).
A professora direciona a discussão alertando que qualquer brincadeira que
enfatize as diferenças pode se tornar um sofrimento para quem está sendo discriminado
e que se faz necessário estar atento/a a toda atitude que hierarquize os indivíduos.
Pude observar que em geral, os estudantes do gênero masculino encaram a
aplicação de apelidos a partir de características físicas e habilidades como “algo
normal”, “uma simples brincadeira”, “uma brincadeira saudável” enquanto as
estudantes indicam sua preocupação com estas práticas, sinalizando que já foram
vítimas de tais atitudes e que as mesmas provocaram efeitos negativos.
O episódio sugere que os alunos que consideram as atitudes discriminatórias
“brincadeiras saudáveis” não enxergam o preconceito implícito nas mesmas. A
discriminação tem muitas nuances e normalmente se apresenta de forma disfarçada,
velada. As relações entre “nós” e os “outros” estão carregadas de ambiguidade.
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Acabamos incluindo no “nós” todos os grupos e indivíduos que apresentam hábitos de
vida, valores, estilos, visões de mundo semelhantes aos nossos. Incluímos nos “outros”
os que se confrontam com a nossa maneira de nos situar no mundo, por características
diferentes (CANDAU, 2005).
É importante salientar que as discussões sobre gênero são fomentadas pela
professora, a partir da sua iniciativa, numa espécie de movimento solitário, uma vez que
nem a ementa e nem o programa oficiais da disciplina apresentam esta temática como
conteúdo ou como tema norteador para o desenvolvimento das aulas.
As discussões estão apenas começando...
As questões discutidas na disciplina são confrontadas com o viés esportivistas e
biologizante que historicamente atravessa e embasa essa formação (OLIVEIRA &
DAOLIO, 2011). Os discursos que permeiam as relações que se estabelecem nas
práticas pedagógicas se apresentam de forma dialógica, favorecendo uma interação
igualitária, onde discentes são vistos/as como atores do processo pedagógico e não
apenas como receptores/as de informações e conteúdos. Estes aspectos observados vão
ao encontro do estudo de Lüdord (2009) quando a mesma salienta que a Educação
Física talvez esteja trilhando novos caminhos ao abordar assuntos na sua formação com
base em perspectivas históricas e socioculturais.
Reflito, a partir do contato com a disciplina, sobre o esforço em desconstruir a
visão do/a professor/a de Educação Física que visualize seus/as educandos/as apenas
como corpos que necessitem ser (con)formados e treinados para a excelência das
práticas esportivas e para a execução de gestos esportivos, baseados nos modelos de
corpo e de execução física de atletas de alto nível.
Para Barbosa-Rinaldi (2008) repensar a formação de professores/a de Educação
Física é urgente. Faz-se necessária a reflexão e efetivação de uma formação profissional
capaz de fazer com que os/as futuros/a educadores/as compreendam a complexidade da
realidade social e sejam capazes de atuar como transformadores/as, co-criadores/as e
não como reprodutores/as de saberes. Para que isso aconteça, segundo a autora, faz-se
necessária a superação do modelo de racionalidade técnica ainda presente na educação,
rumo a uma nova epistemologia da prática docente.
Uma nova Educação Física parece surgir, mesmo através de tentativas isoladas de
docentes. O olhar para o “outro” começa adentrar a formação destes educadores/as.
Contudo, muito ainda deve ser discutido. As questões de gênero ainda precisam ser
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evidenciadas no sentido de se realizar a desconstrução de ideários engessados ao longo
da história da construção deste campo. A disciplina analisada fornece caminhos
possíveis para a re(construção) de uma nova Educação Física, mas uma longa jornada
ainda precisa ser trilhada.
Referências
ALTMANN, H.; SOUSA, E.S. Meninos e meninas: expectativas corporais e
implicações na educação física escolar. Cadernos Cedes. Campinas-SP, ano XIX, n.
48, p. 52-68, 1999.
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epistemologia da prática docente. Movimento. Porto Alegre-RS, v.14, n. 03, p.185-207,
2008.
CANDAU, V.M. Sociedade multicultural e educação: tensões e desafios. In: CANDAU,
V.M. Cultura(s) e educação: entre o crítico e o pós-crítico. Rio de Janeiro: DP&A,
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DAOLIO, J. Educação Física e o conceito de cultura. Campinas: Autores Associados,
2004. 77 p.
LOURO, G.L. O corpo educado. 3.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. 174p.
LÜDORF, S.M.A. Editorial. Arquivos em movimento, Rio de Janeiro-RJ, v.1, n.1, p.5,
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NEIRA, M.G. Ensino de Educação Física. São Paulo: Thomson Learning. 2007. 210
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OLIVEIRA, R.D.; DAOLIO, J. Educação Intercultural e Educação Física escolar:
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SOUZA, M.S. Didática da Educação Física escolar e o processo lógico de apreensão do
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TARDIF, M. Saberes Docentes e Formação Profissional. 14. Ed. Petrópolis: Vozes,
2012, 325p.
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SIGNIFICAÇÕES DAS MASCULINIDADES NO COTIDIANO ESCOLAR:
PERFORMANCES E DESCONSTRUÇÕES
Leandro Teofilo de Brito
Colégio Pedro II - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
RESUMO
Discursos heteronormativos, muitas vezes, buscam direcionar os/as jovens a enquadrar-
se em modelos identitários, hierarquizados e fixos, que reproduzem as noções mais
tradicionais e conservadoras de ser homem e ser mulher, entretanto parte das juventudes
contemporâneas desconstroem tais normatizações, apresentando variadas
performatizações de masculinidades e feminilidades, fazendo tal fato ser visível nos
cotidianos escolares, atravessando assim questões importantes na Didática
contemporânea. Pautando-me nos estudos sobre masculinidades de Raewyn Connell,
nas noções de desconstrução de Jacques Derrida e performatividade de gênero em
Judith Butler, discuto, neste trabalho, como os chamados jovens mais jovens (des)
construíam e performatizavam suas masculinidades no cotidiano escolar de uma escola
pública situada no estado do Rio de Janeiro. A metodologia de pesquisa queer, com
preceitos de inspiração etnográfica, tendo como referência os estudos de Katherine
Browne, Catherine Nash e Cristina Reis, me auxiliou na desconstrução e
desestabilização de concepções fixas sobre corpos e sujeitos no campo empírico, a partir
de um modo de fazer pesquisa em que o/a pesquisador/a se utiliza de um pensamento
queer, ou seja, de um olhar desnaturalizado frente às identificações de gênero e
sexualidade. A partir desta visão, constatou-se que performatizações de masculinidades
se fizeram presentes entre os jovens mais jovens no contexto da pesquisa, denotando
ressignificações e rupturas nos processos de identificação de gênero, que se mostraram
mais livres e menos hierarquizados frente às normas e regulações impostas sobre os
sentidos atribuídos ao masculino. A Didática, neste contexto, precisa estar atenta a
significações que emergem nas questões de gênero e sexualidade nos cotidianos
escolares, tornando as temáticas alvo também de seus olhares.
Palavras-chave: masculinidades, performatividade, cotidiano escolar.
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SIGNIFICAÇÕES DAS MASCULINIDADES NO COTIDIANO ESCOLAR:
PERFORMANCES E DESCONSTRUÇÕES
Leandro Teofilo de Brito
Colégio Pedro II – Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Introdução
As culturas juvenis contemporâneas têm trazido novas delimitações em questões
relacionadas à sociabilidade, aspectos culturais, socioeconômicos, assim como nas
discussões sobre gênero e sexualidade tão presentes na condição relacional de jovens,
como na sociedade em um todo. Discursos heteronormativos, muitas vezes, direcionam
os/as jovens a enquadrar-se em modelos identitários, hierarquizados e fixos, que
reproduzem as noções mais tradicionais e conservadoras de ser homem e ser mulher.
Por outro lado, parte das juventudes contestam tais normatizações, apresentando
variadas expressões de masculinidades e feminilidades, denotando então desconstruções
nestas questões e, consequentemente, performatizações de gênero, que se fazem visíveis
nos cotidianos escolares, atravessando questões também de preocupação da Didática
contemporânea.
A noção de gênero em que este trabalho se apoia, está pautada nos estudos da
filósofa Judith Butler. Como efeito de instituições, discursos e práticas, que determinam
nossos modos de ser masculino e/ou feminino, o gênero, para Butler (2010), é
performativo e se dá através da repetição estilizada de atos corporais, gestos e
movimentos particulares, cujo seu efeito é criado e imposto pelas estruturas reguladoras
rígidas, que são coerentes com normas instituídas e com o poder do discurso.
Entretanto, Butler (2014) também afirma que o gênero pode ser o viés pelo qual as
noções de masculino e feminino podem ser desconstruídas e desnaturalizadas,
questionando o binarismo que esgotou o campo semântico do termo. Referir-se à
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“confusão de gênero”, “mistura de gêneros”, “transgêneros” ou “cross-gêneros” sugere
que o gênero se move além do binarismo naturalizado (idem).
Dialogando com esta perspectiva teórica, a noção de desconstrução, cunhada
pelo filósofo Jacques Derrida, também coaduna com os objetivos propostos neste
estudo. A desconstrução, pela leitura de Haddock-Lobo (2008), se dá pelo deslocamento
das oposições para além da dicotomia metafísica dualista, ao mesmo tempo se
respeitando e se desordenando a ordem interna de um objeto, de um texto, por exemplo,
havendo certa transgressão e promovendo um movimento interno no pensamento.
Nas palavras de Derrida (1991):
A desconstrução não pode limitar-se ou passar imediatamente para
uma neutralização: deve, através de um gesto duplo, uma dupla
ciência, uma dupla escrita, praticar uma reviravolta da oposição
clássica e um deslocamento geral do sistema. É só nesta condição que
a desconstrução terá os meios de intervir no campo das oposições que
critica e que é também um campo de forças não-discursivas (p.372).
Jacques Derrida, neste contexto, aposta na desestabilização de binarismos
linguísticos como homem/mulher, masculino/feminino, heterossexual/homossexual,
dentre outros, buscando não só a fragmentação, para desconstruir suas formas desviadas
e negadas, mas também para mostrar que cada polo é plural e múltiplo, carregando
vestígios e dependendo do outro para adquirir sentido (LOURO, 2008).
Trago novamente Haddock-Lobo (2008), interpretando a noção de
desconstrução em Jacques Derrida, ao colocar que:
Enquanto se permanecer preso a um discurso classificatório, seja nos
discursos machistas dos heterossexuais masculinos ou nos discursos
libertários das feministas ou dos homossexuais, ainda assim se estará
insistindo em divisões dualistas, tais como a metafísica tradicional
sempre impôs. Sob este prisma, o feminino não é a mulher, mas sim a
possibilidade de se lidar com a ausência da verdade fálica, masculina,
certa... É a possibilidade do desconhecido e do novo e, por isso, a
chance de pensarmos para além de qualquer classificação sexual, seja
hetero, homo, trans, metro ou mesmo pansexual (p.20).
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Com base nas noções enunciadas, esta pesquisa se pauta nos estudos sobre
masculinidades, oriundos do campo do gênero e sexualidade. Tais discussões
adentraram a produção acadêmica brasileira em meados da década de 1990, quando
pesquisadores e pesquisadoras de diversas instituições do país, a partir das críticas e dos
aportes teóricos dos estudos feministas da época, reconheceram que os sujeitos
masculinos também faziam parte das discussões sobre gênero, consequentemente,
tornando-os também uma categoria empírica e de análise nas pesquisas da área
(CECHETTO, 2004). Estes estudos buscavam reconhecer a existência de
masculinidades plurais, contestando modelos essencialistas associados ao masculino,
assim como também buscavam colocar em discussão os homens como vítimas das
opressões e desigualdades no contexto das relações de poder entre os gêneros
(OLIVEIRA, 2004).
Com grande destaque na década de 1980, surgindo nos países anglo-saxões, os
men’s studies tiveram grande contribuição no desenvolvimento teórico da produção
acadêmica brasileira, dedicando-se à investigação das construções socioculturais da
masculinidade, cujos pesquisadores eram em grande parte homens vinculados
explicitamente aos movimentos feministas (CECCHETTO, 2004). Dentre estes estudos,
a noção de masculinidade hegemônica, apresentada por Raewyn Connell, foi e é uma
das principais vertentes teóricas das quais as pesquisas acadêmicas brasileiras se
apropriaram e se apropriam nas investigações sobre homens e masculinidades, nas
diferentes áreas do saber, como a Sociologia, Antropologia, Educação, Saúde, etc. A
masculinidade hegemônica refere-se à dinâmica na qual a estrutura hierárquica das
relações de gênero é permeada por um modelo de masculinidade normativo, tendo ao
seu redor outros modelos de masculinidades considerados subalternos e inferiores, em
conjunto com as feminilidades, apresentando como justificativa para tal hierarquização
o patriarcado e as relações de poder (CONNELL, 2003).
De todo modo, questiono se esta estrutura hierárquica de masculinidades ainda é
um modelo predominante no contexto social ou se novas configurações, pautadas na
desconstrução da masculinidade hegemônica, já se fazem presentes de forma
significativa em diferentes instâncias da nossa sociedade, como a escola. A partir destas
afirmações, tendo como base o recorte de uma Dissertação de Mestradoi, busquei
compreender como os chamados jovens mais jovens (des) construíam e
performatizavam suas masculinidades no cotidiano escolar.
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Leite (2015) nomeia como jovens mais jovens aqueles/as que frequentam as
salas dos anos finais do ensino fundamental, considerados/as também como aqueles/as
mais próximos/as da condição de criança do que, por exemplo, do/da jovem que
frequenta o ensino médio. Para a autora há uma invisibilização de sujeitos com este
recorte etário nas pesquisas sobre juventudes, ou mesmo uma alternância de
identificações atribuídas como sinônimos a adolescente, jovem, jovem mais jovem,
adolescente jovem e jovem adolescente. Para esta pesquisa, me detenho no termo jovem
mais jovem para designar estes estudantes, problematizando além da identificação etária
os sentidos atribuídos ao gênero masculino.
Desta forma, com base na metodologia de pesquisa queer (BROWNE; NASH,
2010; REIS, 2014), apresento dados construídos no espaço de uma escola pública
carioca, durante o primeiro semestre do ano de 2012, cujos sujeitos são meninos jovens
mais jovens com a faixa de idade entre 11 e 13 anos. A teoria queer é uma corrente
composta por um campo de saberes, reconhecida, dentre outras esferas, na pesquisa
acadêmica para pensar a ambiguidade, a multiplicidade e a fluidez das identidades
sexuais e de gênero, assim como novas formas de pensar a cultura, o conhecimento, o
poder e a educação (LOURO, 2008).
Browne & Nash (2010) afirmam que o queer busca desconstruir a pesquisa
convencional, levando em conta o deslocamento das identidades, pois, neste contexto, a
pesquisa social se debruçará em contextos anti-identitários pautada em uma
epistemologia de desestabilização. Neste sentido, a metodologia queer busca, além de
desconstruir e desestabilizar concepções fixas sobre corpos e sujeitos no campo
empírico, se utilizar de um modo de fazer pesquisa em que o/a pesquisador/a se utiliza
de um pensamento queer, também para questionar e subverter normatizações nos
processos de pesquisa, combinando métodos e procedimentos.
De acordo com Reis (2014):
Esse tipo de análise focada nas posições de sujeito permite-nos utilizar
a teoria e metodologia queer para pesquisar não apenas aqueles/as
considerados/as e que se consideram queer, ou seja, pessoas que
escapam ou ficam nas fronteiras das dicotomias homem/mulher,
heterossexual/homossexual, masculino/feminino, mas ter como
sujeitos da pesquisa quaisquer pessoas. O que buscamos, afinal, são os
significados expressos por meio dos atos corporais, de fala e como
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esses atos divulgam posições de sujeito com as quais cada um/a
poderá ou não se identificar (p.254).
Com base em preceitos de inspiração etnográfica (ANDRÉ, 2014), através de
observações participantes e entrevistas informais, me pautei no pensamento e na análise
queer para adentrar o cotidiano escolar e investigar performatizações de masculinidades
dos chamados jovens mais jovens.
Os jovens mais jovens e as masculinidades
Apresento os dados construídos no campo de pesquisas, retiradas de um caderno
de campo utilizado nas observações participantes e através de falas de estudantes,
registradas por meio de entrevistas informais durante o processo de pesquisa. Os nomes
apresentados aqui serão fictícios, preservando o anonimato dos sujeitos participantes da
pesquisa. Performances de masculinidades são citadas em uma aula observada,
conforme apresento abaixo:
Em aula de português, na qual foi apresentada um texto sobre direitos
humanos, levantou-se a questão do trabalho infantil. Alguns meninos
disseram à professora, em tom de deboche, que eram explorados em
casa pela mãe, pois faziam trabalhos domésticos como arrumar a
casa e lavar louça. Outros meninos na turma também falaram que
trabalhavam em casa auxiliando a mães nas tarefas domésticas.
Questionei o aluno Talmo, que estava ao meu lado, sobre o que ele
achava dos trabalhos domésticos feitos por um homem, e ele me disse
que também ajuda a mãe em casa, mas que os homens fazem para
“dar uma força” às mulheres, e que para ele este não era serviço de
homem. Claudio, outro aluno que estava próximo, ao ouvir nossa
conversa fala: “todo homem deve fazer trabalho doméstico, porque
pode acontecer da esposa trabalhar e ele não, como acontece na
minha casa, onde minha mãe trabalha fora e meu pai não”. Talmo se
mostra surpreso e ri (Diário de campo em 05/03/2012).
Este excerto mostra como desconstruções do masculino já se mostram presentes
nos diferentes espaços da nossa sociedade, exemplificando a questão do trabalho
doméstico, expostas pelos alunos na aula. Embora alguns estudantes, através de seus
discursos, não reconheçam que este tipo de trabalho possa ser feito também pelos
homens, o aluno Claudio expõe o caso que vivencia em sua casa, no qual o trabalho
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doméstico é realizado pelo pai. Connell (2000) afirma que não há um padrão de
masculinidade que se encontra em todos os lugares, por este motivo falamos sobre
masculinidades, no plural, havendo assim o que chama de relação dinâmica de gênero,
pois nunca se está diante de processos de identificação homogêneos, sendo estes sempre
fluídos e, algumas vezes, contraditórios. Os discursos dos jovens meninos, sempre
performativos, ao mesmo tempo em que buscam fixar um sentido para o masculino,
acabam sendo ressignificados a partir do exposto por Claudio, que apresenta, como
exemplo do seu pai, uma performance de masculinidade desconstruída das normas e dos
padrões instituídos tradicionalmente.
Durante o período da pesquisa de campo, pude constatar um modismo que se fez
presente na escola, referente ao uso de pulseiras coloridas que constavam nomes de
sentimentos como amor, paz, amizade, etc. entre jovens meninos e meninas. As
pulseiras eram até mais usadas pelos alunos quando em comparação com as alunas.
Tanto eles como elas usavam e trocavam pulseiras entre si, embora houvesse
divergências em suas ideias sobre o uso masculino de pulseiras:
Pulseira é coisa feminina, eu não entendo isso deles usarem (Aluna
1).
Pulseira colorida não é coisa de homem, mas eles usam, inclusive na
cor rosa (Aluna 2).
Pulseira é tanto masculina, como feminina, não tem problema, é
unissex (Aluno 1).
A maioria das meninas gosta de rosa e eu às vezes falo que gosto de
verde, porque senão todo mundo fica me zoando (Aluno 2).
Não têm problema em usar pulseiras na cor rosa, todo mundo usa, é
moda (Aluno 3).
Discutindo os discursos apresentados, as meninas se contrapunham ao uso das
pulseiras pelos jovens meninos, justificando como algo estritamente feminino. Já os
meninos defendiam que o uso de pulseiras não iria intervir em suas performances de
masculinidades, possivelmente pautada em uma masculinidade heterossexual, embora,
de certa forma, desconstruída, como as pulseiras de várias cores, inclusive na cor rosa.
Entretanto, a utilização de pulseiras na cor rosa também foi justificada com a expressão
“é moda”, constatada pela fala de um dos meninos, buscando um tipo de desculpa para a
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transgressão. O discurso da masculinidade hegemônica ainda se faz presente de forma a
intimidar as diferentes manifestações de masculinidades em nossa sociedade, seja na
justificativa citada pelo aluno ao modismo, seja quando se analisa os discursos das
alunas, não admitindo o uso de pulseiras pelos meninos, e no jovem garoto que gosta do
rosa, mas que diz ser obrigado a falar que gosta do verde.
Para Butler (2014):
Assim, um discurso restritivo sobre gênero que insista no binarismo
homem e mulher como a maneira exclusiva de entender o campo do
gênero atua no sentido de efetuar uma operação reguladora de poder
que naturaliza a instância hegemônica e exclui a possibilidade de
pensar sua disrupção (p.254).
O uso das pulseiras pelos jovens meninos pode também ser designado como um
marcador de masculinidade, ou como Paechter (2009), baseada Judith Butler, chama de
repertório compartilhado. Para a autora: “[...] o repertório compartilhado consiste em
modos de encenação do eu, tais como estilos de andar, de falar, de se vestir e de se
comportar, comum aos membros de um grupo” (p.33), ou seja, performances de gênero
que são compartilhadas em grupos específicos. Nas minhas observações, constatei que
praticamente todos os meninos envolvidos na pesquisa se utilizavam das pulseiras e
estas poderiam ser consideradas como uma marca performativa de masculinidade no
espaço escolar.
De acordo com Derrida (1991):
[...] o performativo não tem seu referente (mas aqui essa palavra sem
dúvida não convém e constitui o interesse da descoberta) fora de si ou,
em todo caso, antes e perante si. Não descreve algo que existe fora da
linguagem e antes dela. Produz ou transforma uma situação, opera [...]
(p.363).
No primeiro dia de observação na escola (Diário de campo em 02/03/2012) me
chamou a atenção a vaidade dos alunos Jonathan e Eduardo. Negro, com o cabelo em
corte moicano, com a crista alisada e pintada de loiro, Jonathan também usava as
variadas e coloridas pulseiras, expressando um modelo de masculinidade que estava
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pautado, tanto na vaidade, como no modismo de rapazes jovens. Jonathan me conta em
quem se inspirou no corte de cabelo e que alguns meninos da sala – brancos e negros -
também passaram a cortar o cabelo no estilo moicano depois dele:
Esse corte de cabelo é uma imitação do Leo Moura, que joga no
Flamengo [...]. Vários meninos aqui da sala também cortam
moicano, me imitando [...]. Tem uns que só não tem coragem de
pintar de loiro e passar alisante como eu passo, mas agora também
cortam igual ao meu... alguns também não precisam de alisante,
porque já tem o cabelo liso (Jonathan).
Jonathan construía suas performances de masculinidades pautadas nos ídolos do
futebol e da música, associado ao modelo tão enfatizado pela mídia: o metrossexual.
Anderson (2005) afirma que o metrossexual é a designação de um homem heterossexual
que se permite agir de maneiras culturalmente atribuídas aos gays, como aquele que não
dispensa roupas e apetrechos de marcas, dando uma grande ênfase à vaidade na (des)
construção de sua masculinidade. Embora esta designação de Anderson (idem) esteja
atribuída a certo essencialismo, este é um modelo muito presente na construção de
masculinidades juvenis.
A masculinidade performativa de Jonathan, um jovem negro, pautada na
vaidade, e que serve de modelo para os outros jovens mais jovens da turma, brancos e
negros, pode ser analisada à luz do que Connell (2003) designou como masculinidade
marginalizada, aquela que é associada aos grupos minoritários, expressas nas relações
de classe e raça. Segundo a autora alguns grupos de negros não são marginalizados,
devido à autorização da masculinidade hegemônica ao pertencimento no grupo
dominante, levando-se em consideração alguma ação que os enquadre na esfera desse
modelo de masculinidade. Desta forma, o modelo de masculinidade marginalizada passa
a manter uma relação de cumplicidade com o modelo hegemônico, embora este não seja
um benefício que se estenderá a todos os homens negros, que continuam em uma
situação de marginalidade social, conforme exemplo apresentado pela pesquisadora:
A marginalização sempre é relativa à forma de autoridade da
masculinidade hegemônica como grupo dominante. Assim, nos
Estados Unidos, os atletas negros podem ser exemplos da
masculinidade hegemônica. No entanto, a fama e a riqueza individuais
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destas estrelas não têm nenhuma consequência profunda que se
traduza em maior autoridade social para os negros (CONNELL, 2003,
p.122, tradução minha).
A partir desta afirmação de Connell (idem), aponto que Jonathan, embora seja
um modelo para que os meninos da turma o imitem no corte de cabelo, apresentando
uma performance de gênero desejada tanto por alunos negros como por alunos brancos,
encontrava-se dentro dos preceitos da masculinidade marginalizada no cotidiano escolar
pesquisado, pois conforme sua fala:
Já me chamaram de “macaco loiro “numa briga, mas eu nem ligo,
porque foi depois do meu corte de cabelo e da pintura, que todo
mundo começou a me imitar. [...] Isso é do xingamento mesmo que
quem é negro passa, ninguém aceita um cara preto pintar o cabelo de
loiro, acham feio (Jonathan)
Jonathan, nesta fala apresentada, naturaliza o racismo que vive no espaço da
escola, afirmando que ser chamado de “macaco” faz parte dos xingamentos que todo
negro vive, embora também reconheça que seu corte de cabelo trouxe possibilidades
desconstrutoras no cotidiano escolar, pois outros jovens meninos passaram a imitá-lo no
corte. Dentro de um contexto de supremacia branca, que ainda é imposto na nossa
sociedade, as masculinidades negras também desempenham papeis simbólicos para a
construção do gênero nos brancos, como afirma Connell (ibid.). Essa (des) construção
está também permeada por deslocamentos de sentidos, como se pôde constatar.
Bastante vaidoso também, Eduardo era branco, havia clareado o cabelo e
utilizava também o corte moicano como Jonathan, e, assim como o amigo, não
dispensava o uso das pulseiras. O jovem era considerado um dos mais populares da sala,
sendo bastante assediado pelas meninas da turma e de outras turmas da escola. Em
algumas observações, Eduardo fazia questão de se sentar próximo das meninas que o
bajulavam, ou, em outras palavras, nutriam uma “paixão” – algumas secretas, outras não
- por ele (Diário de campo em 23/03/2012 e 25/05/2012). Segundo o aluno, o assédio
era bom, mas ao mesmo tempo ele se sentia mal frente aos outros jovens meninos, que
não eram tão assediados como ele:
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Eu sou amigo de todos, mas às vezes parece que eles têm inveja de
mim, porque nunca vi nenhuma menina gostar deles... isso às vezes é
ruim na amizade. Eu também queria que eles tivessem meninas que
gostassem deles, quisessem namoro, comentassem deles... mas não
tem” (Aluno Eduardo)
A valorização das amizades entre sujeitos masculinos, pode também ser vista
como um marcador de um tipo de performance de masculinidade, conforme a fala de
Eduardo expressou. De qualquer forma, cabe destacar que, muitas vezes, a amizade
entre homens não possui o mesmo grau de intimidade e aproximação com a qual as
amizades femininas caracterizam-se, e mesmo que para eles a lealdade faça parte de um
modelo de socialização imposto, os obstáculos culturais ainda repreendem uma maior
intimidade nas relações masculinas. Este é um modelo performativo normatizador ainda
muito apropriado pelos homens, mas também passível de desnaturalização, pois como
coloca Butler (2014) considerar apenas uma definição de gênero normativa é delimitar
suas possibilidades de desconstrução. Derrida (1991) complementa: “A desconstrução
não consiste em passar de um conceito para outro, mas em modificar e em deslocar uma
ordem conceitual assim como a ordem não conceitual à qual se articula” (p.372). Cabe,
por fim, destacar, que a vaidade de Jonathan e de Eduardo era bem aceita dentro da
escola, não havendo qualquer “interrogação” em relação a certa identificação
heterossexual dos dois jovens meninos.
Considerações finais
Os jovens mais jovens, sujeitos desta pesquisa, mostraram como a desconstrução
de masculinidades estão presentes em alguma medida na nossa sociedade,
exemplificadas nos relatos de um cotidiano escolar. Performatizações de masculinidades
se fizeram presentes no dia-a-dia escolar destes jovens meninos, denotando
ressignificações e rupturas, apresentando processos de identificação mais livres e menos
hierarquizados frente às normas e regulações impostas nos sentidos fixos de ser
“homem”.
Um olhar queerizado no cotidiano escolar, proposto por este estudo, permite que
se visualizem possibilidades reais de mudanças nas configurações de gênero,
performatizadas pela juventude contemporânea, e que permitem acreditar que as
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multiplicidades dos processos identitários, de fato, já estão sendo apropriados pelos
sujeitos masculinos dentro de um recorte etário. Novos sentidos do masculino emergem
em diferentes contextos socioculturais de nossa sociedade, como a escola, e, deste modo
a Didática na contemporaneidade precisa atentar para as significações que emergem nas
questões de gênero e sexualidade, tornando as temáticas também alvo de seus olhares.
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GÊNERO E RAÇA: SUBSÍDIOS TEÓRICOS PARA A PRÁTICA
PEDAGÓGICA
Paulo Melgaço da Silva Junior
Doutor em educação pela UFRJ - Professor da rede pública municipal de Duque
de Caxias
Ana Paula da Silva Santos
Doutoranda em Educação pela PUC/Rio – Professora da rede pública municipal
de Duque de Caxias
Nos dias de hoje, pensar em educação escolar nos remete a pensar na questão da função
social da escola na contemporaneidade: a construção de identidades abertas à
diversidade cultural, o combate à discriminação dos grupos culturais marginalizados na
sociedade, a valorização da cultura destes mesmos grupos e o desafio a preconceitos e
estereótipos limitadores de uma educação mais igualitária e menos excludente. Neste
sentido, a questão da diferença torna-se o grande desafio a enfrentar por parte dos
professores no espaço escolar. Dentro deste contexto, este estudo aborda alguns modos
pelos quais alunos/as de duas escolas da periferia do Rio de Janeiro e de Duque de
Caxias/RJ constroem suas identidades culturais de raça e gênero e, ainda, como estas
são vivenciadas no ambiente escolar. A pesquisa realizada na escola pública do
município do RJ, contou com a participação de uma turma de 5º ano do ensino
fundamental nas aulas de Educação Física. Na segunda escola, localizada em um bairro
da periferia da cidade da Baixada Fluminense - Duque de Caxias – a pesquisa foi
realizada nas aulas de Artes em uma turma de 6º ano do ensino fundamental.
Destacamos que trabalhar com periferias urbanas abre possibilidades de conhecer como
determinados discursos e conceitos que circulam nos grandes centros são apropriados e
reinventados. A proposta das aulas foi investigar e problematizar os conceitos
apresentados por alunos e alunas diante de questões relativas a gênero e raça. O trabalho
evidenciou a importância de se colocar a diferença em questão, de problematizar os
conceitos essencializados que circulam nas salas de aula e de se refletir sobre os
processos de racialização, sexualização e generificação.
Palavras-chave: Escola, Gênero, Raça
Introdução
Este estudo aborda alguns modos pelos quais alunos/as de duas escolas da
periferia do Rio de Janeiro e de Duque de Caxias/RJ constroem suas identidades
culturais, de raça e gênero e como estas são vivenciadas no ambiente escolar. O trabalho
é resultado das discussões entre as pesquisas de doutoradoii e de mestrado
iii que
investigaram como as questões de gênero e raça atravessam as práticas pedagógicas
nestas comunidades escolares em específico. Destacamos que trabalhar com periferias
urbanas abre possibilidades de conhecer como determinados discursos e conceitos que
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circulam nos grandes centros são apropriados e reinventados. As relações de vizinhança
persistem muito mais do que em bairros de classe média ou alta. As necessidades
básicas, os espaços de sociabilidade, fazem com que sejam redesenhadas novas formas
de perceber o mundo social (SILVA JUNIOR e MOREIRA, 2010).
Neste sentido, o estudo de gênero, segundo Moita Lopes (2006), pode ser
considerado como uma das categorias cruciais para entender as mudanças sociais e
culturais da vida contemporânea. Ao mesmo tempo, Butler (2003) afirma que entender
gênero no contexto global pode levar ao combate de falsas formas de universalismos.
Em paralelo, de acordo com Barnard (2004) a raça é uma abstração, uma
fantasia móvel que não tem nada a ver com o determinismo biológico. Nas palavras do
autor, o corpo é feitichizado. A lógica de mercado constrói o homem negro e a mulher
negra como sensuais, bons de cama, sempre prontos a realizar desejos. Pelas palavras de
Wilchins (2004), aprendemos a ser de determinada raça e a agir como tal.
Para Barnard (2004), as questões de raça, sexualidades, gênero e classe social
devem ser vistas como interseccionadas, ou seja, não podem ser dissociadas, uma vez
que se deve olhar para o sujeito social como um todo e não apenas por um ângulo de
suas subjetividades.
Reflexões sobre escola e culturas
Nos dias de hoje, pensar em educação escolar nos remete a pensar na questão da
função social da escola na contemporaneidade: a construção de identidades abertas à
diversidade cultural, o combate à discriminação dos grupos culturais marginalizados na
sociedade, a valorização da cultura destes mesmos grupos e o desafio a preconceitos e
estereótipos limitadores de uma educação mais igualitária e menos excludente. Neste
sentido, a questão da diferença torna-se o grande desafio a enfrentar por parte dos
professores no espaço escolar.
Candau (2008), nos convida a pensar que não há educação que não esteja imersa
nos processos culturais do contexto em que se situa. A referida autora afirma que existe
uma relação intrínseca entre educação e cultura e ainda “[...] não é possível conceber
uma experiência pedagógica „desculturizada‟, isto é, desvinculada totalmente das
questões culturais da sociedade” (CANDAU, 2008, p. 13).
Segundo a referida autora, as diferenças socioculturais permeiam nosso
cotidiano e são componentes centrais nas relações, embora sejam marcadas muitas
vezes por tensões e conflitos em virtude das desigualdades de poder que as atravessam e
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que são responsáveis por hierarquizações, preconceitos, discriminações e
subalternizações em relação a determinados grupos sociais.
Nesta perspectiva, a escola acaba por reproduzir as estruturas de poder, bem
como os privilégios de um sexo sobre o outro, tal como ocorre em nossa sociedade.
Adota-se, assim, o modelo binário de gênero e sexualidade homem/ mulher,
defendendo-se expectativas de papéis sociais e sexuais naturalizados de gênero e de raça
nos quais o homem deve ser bruto e a mulher delicada e comportada. Ou, pensando a
partir da raça negra, espera-se que o menino seja bruto, sexualizado e com habilidades
para o esporte, e a menina escandalosa, barraqueira e altamente sexualizada.
Um olhar atento ao cotidiano escolar pode evidenciar diversas relações que
acentuam a multiplicidade de diferenças e que provocam uma série de tensões nas
práticas pedagógicas e nas relações sociais. Reconhecemos, neste sentido, que a
educação intercultural pode se tornar uma importante ferramenta para lidar com estas
tensões, especialmente no desafio de se promover a articulação ente igualdade e
diferença no contexto escolar (CANDAU, 2014).
Educação intercultural: em busca de novos caminhos
No intuito de buscar novas possibilidades para a caminhada rumo a educação
intercultural é necessário refletirmos sobre as tensões e os princípios que permeiam esta
perspectiva. Candau (2014), identifica como uma problemática o fato da expressão
educação intercultural apresentar uma polissemia. Sendo assim, situa a perspectiva
intercultural no campo do multiculturalismo, onde classifica em três grandes
abordagens: o multiculturalismo assimilacionista, o multiculturalismo diferencialista ou
monocultura plural e o multiculturalismo interativo ou interculturalidade.
Primeiramente a abordagem assimilacionista, no sentido descritivo, refere-se ao
fato do multiculturalismo ser uma característica das sociedades atuais, imersa na
pluralidade de ideias, comportamentos, modos de ser, agir e estar no mundo e na
diversidade cultural de etnia, raça, gênero, classe social, dentre outros marcadores
identitários. No sentido prescritivo, a ideia é o favorecimento que todos sejam inseridos
à cultura hegemônica.
Quanto ao multiculturalismo diferencialista, Candau (2014) afirma que esta
abordagem parte do princípio que quando se enfatiza a assimilação, se acaba por negar
ou silenciar a diferença. Logo, propõe a ênfase no reconhecimento da diferença e a
garantia de espaços para que estas possam se expressar. Segundo a referida autora, estas
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duas abordagens são as mais comuns em nossa sociedade, convivendo de maneira tensa
e conflitiva e ocasionando polêmicas sobre a problemática multicultural.
A terceira abordagem destacada por Candau (2014), a qual nos posicionamos
para fundamentar o presente estudo, é o multiculturalismo interativo ou
interculturalidade. Tal perspectiva supõe a inter-relação entre os diferentes grupos
culturais, rompe com a visão essencialista da construção das culturas e identidades
culturais e afirma que a sociedade atual é marcada por intensos processos de
hibridização cultural que definem as identidades como abertas e em permanente
construção.
Outra autora que também aborda o conceito de interculturalidade é Walsh
(2009a). A mesma se apoia em Tubino (2005) para esclarecer a diferença entre
interculturalidade funcional e interculturalidade crítica. Enquanto a primeira se traduz
em políticas que buscam promover o diálogo e a tolerância sem tocar nas causas da
assimetria social e cultural, a segunda vai propor uma crítica cultural no sentido de
visibilizar as causas do não diálogo e questionar o modelo social vigente.
Em relação a interculturalidade crítica, a autora destaca que tal perspectiva busca
alternativas para a globalização neoliberal e a racionalidade ocidental e, também, para a
luta pela transformação social e condições de poder, ser e saber bem diferentes das
percebidas atualmente. É, na visão da referida autora, um processo dirigido à construção
de modos “outros” de poder, ser e saber. Desta forma, torna-se indispensável derrubar
as barreiras da colonialidade que determinam padrões e inferiorizam sujeitos
contribuindo, assim, para a reconstrução da escola enquanto espaço de valorização dos
diferentes conhecimentos e culturas.
Práticas pedagógicas interculturais: um caminho a construir
Alguns/mas autores/as reconhecem que a perspectiva intercultural da educação
exige transformações urgentes na escola (CANDAU, 2014; FLEURI, 2000).
Para Fleuri (2000), a perspectiva intercultural da educação implica em mudanças
profundas na prática educativa, não só pela necessidade de oferecer oportunidades
significativas a todos e todas, respeitando pontos de vista e pensamentos, mas pela
necessidade de desenvolver processos educativos, metodologias e instrumentos
pedagógicos que possam dar conta da complexidade das relações entre os indivíduos e
diferentes grupos culturais. O autor destacado também aposta na necessidade de se
reinventar o papel e o processo de formação dos educadores.
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Nesse sentido, Candau (2014) afirma que a condição primordial para a
transformação é a mudança de ótica, ou seja, uma reconstrução dos sentidos e
significados que atravessam a escola e as práticas educativas. A autora citada ressalta a
polissemia presente nos discursos dos professores em relação aos termos igualdade e
diferença, onde o primeiro termo refere-se a um “processo de uniformização,
homogeneização e padronização orientado à afirmação de uma cultura comum a que
todos e todas têm direito a ter acesso” (CANDAU, 2014, p. 29).
Esse processo se dá desde ao uso do uniforme até ao tipo de avaliação, que são
idênticos para os (as) estudantes, o que contribui para o apagamento e silenciamento de
determinadas identidades. Em relação ao termo diferença, Candau (2014) destaca que
nos discursos dos professores, é frequentemente associado a um problema a ser
resolvido, a deficiência, ao déficit cultural e a desigualdade:
Diferentes são aqueles que apresentam baixo rendimento, são
oriundos de comunidades de risco, de famílias com condições de vida
de grande vulnerabilidade, que têm comportamentos que apresentam
níveis diversos de violência e incivilidade, os/as que possuem
características identitárias que são associadas à ”anormalidade” e/ou a
um considerado baixo “capital cultural”. Enfim, os diferentes são um
problema que a escola e os educadores/as têm de enfrentar e esta
situação vem se agravando e não sabemos como lidar com ela.
Somente em poucos depoimentos, a diferença é articulada a
identidades plurais que enriquem os processos pedagógicos e devem
ser reconhecidas e valorizadas (CANDAU, 2014, p. 30)
Corroboramos com a autora citada quando afirma que somente poderemos
mobilizar processos de construção de práticas interculturais quando fomos capazes de
não reduzir igualdade à padronização, mas ao reconhecimento da dignidade de cada um
e, também, quando não encararmos a diferença como um problema a resolver, mas
como riqueza pedagógica.
Experiências pedagógicas: quando a Educação Física e a Arte discutem gênero e
raça
Trabalhar a partir do regime heteronormativo e da igualdade racial garante o
funcionamento tranquilo e seguro da escola e acaba por apagar as diferenças, não as
colocando em questão. Porém, como professor e professora do ensino fundamental
optamos por problematizar estas questões juntos aos alunos e alunas.
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Destacamos que os trabalhos apresentados nesta pesquisa foram trabalhados em
duas escolas. Na escola do município do RJ, situada na zona oeste da cidade, foi
selecionada para a pesquisa uma turma do 5º ano do ensino fundamental. Na segunda
escola, localizada em um bairro da periferia da cidade da Baixada Fluminense - Duque
de Caxias – a pesquisa foi realizada em uma turma de 6º ano do ensino fundamental.
EF e gênero: uma análise a partir das vozes dos estudantesiv
A pesquisa realizada na escola pública do município do RJ, contou com a
participação de alunos e alunas de uma turma de 5º ano onde foram percebidas, a partir
de observações, nas aulas de Educação Física, de situações de divisão entre os meninos
e as meninas de forma naturalizada, onde os primeiros apresentavam uma atitude de
domínio aos espaços e materiais utilizados na aula (bolas, cordas, etc). As meninas
apesar de demonstrarem resistência à situação descrita, não conseguiam revertê-la
imediatamente, sendo necessária à nossa intervenção, no sentido de tornar o espaço
igual para todos (as). Tais constatações iniciais serviram de fundamento para iniciarmos
o presente estudo tendo como objeto de análise as relações de gênero nas aulas de
Educação Física.
O encontro ocorreu no início do ano letivo com os/as estudantes sentados
dispostos em círculo no pátio da escola. As respostas foram anotadas em um diário de
campo bem como as reações da turma no momento dos questionamentos.
Ao serem questionados sobre o tema gênero e os preconceitos e discriminações
inerentes a essa temática, percebemos uma nítida separação entre meninos e meninas
em relação às brincadeiras e jogos vivenciados na rua e na aula de Educação Física o
que culminava, segundo os relatos, na exclusão do outro gênero: “na rua, as meninas
brincam de pique-bandeira, aí quando eu apareço e peço pra brincar, as meninas me
chamam de boiola” relatou João. Nessa direção, Pedro acrescentou: “na Educação
Física, as meninas não deixam a gente jogar queimado” e ainda, argumentou Carlos:
“teve uma vez que os meninos ficaram chamando a gente de „viadinho‟ só porque a
gente tava brincando com as meninas”. Nessa discussão, Maria ressaltou a sua posição:
“a gente quer jogar futebol e os meninos não deixam e quando eles querem jogar
queimado a gente deixa”.
Sobre este aspecto, Louro (2003) afirma que se em outras áreas escolares as
diferenças de gênero aparecem de forma implícita, é na Educação Física que esse
processo se torna mais explícito e evidente. Segundo a autora, mesmo que em várias
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escolas os/as professores/as venham atuando em regime de coeducaçãov, a Educação
Física parece ser a área onde a resistência ao trabalho integrado persiste e se renova.
O discurso biológico, ainda muito presente na disciplina, reproduz a ideia de que
as mulheres são, fisicamente, menos capazes do que os homens o que resulta na
diferenciação de maneiras de ser e viver segundo os papéis determinados socialmente
para cada sexo. Percebemos nas falas dos/das alunos/as uma diferenciação na forma
como vivenciam as brincadeiras e jogos na rua e nas aulas de Educação Física e a
consequente exclusão do sexo oposto.
Em relação à participação ou não nas atividades propostas nas aulas de
Educação Física e os possíveis preconceitos sofridos por meninos e meninas durante a
vivencia destas práticas, percebemos um processo de exclusão desenvolvido por conta
dos estereótipos de gênero. Para Melissa, a situação não se mostrava fácil: “Já deixei de
jogar futebol por ser menina porque os meninos ficam me zoando”, já Maria destaca um
ponto para ela traumático: “Já fiquei com medo de jogar queimado porque os meninos
falaram que iam me estourar porque eu era menina e não ia aguentar”.
É importante ressaltar que o medo e a submissão não se apresentaram
exclusivamente nas meninas. No relato de Carlos percebemos a não participação em
atividades consideradas “femininas” como uma proteção contra a discriminação:
“Deixei de jogar queimado com as meninas porque os meninos ficavam me chamando
de „boiolinha‟ e já deixei de dançar porque todo mundo falava que era „coisa de mulher”
Neste caso, podemos perceber que as falas dos/das estudantes explicitam que
havia um controle de atividades consideradas próprias de meninos e outras atividades
consideradas próprias de meninas causando a exclusão do sexo oposto. Qualquer um
que tentasse romper com esta “norma” era considerado como desviante ou julgado em
sua sexualidade. Os estudos de Louro (2003) compartilham com as nossas ideias
quando mencionam que:
A Educação Física parece ser, também, um palco privilegiado para
manifestações de preocupação com relação à sexualidade das crianças.
Ainda que tal preocupação esteja em todas as áreas escolares, talvez
ela se torne particularmente explícita numa área que está,
constantemente, voltada para o domínio do corpo (LOURO, 2003,
p.74).
Ainda neste contexto, percebemos a construção de formas de ser masculino e ser
feminino se caracterizando por emoções, sentimentos, gestos e formas de agir segundo
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um padrão pré-determinado baseado nas diferenças entre os sexos. Desta forma,
meninos devem agir com coragem, bravura e força, enquanto as meninas devem agir
com fragilidade, timidez e delicadeza. Este controle do corpo acaba por ser considerado
uma norma que vai determinar como meninos e meninas devem se “comportar” na
sociedade.
Deste modo, percebemos que os/as estudantes pesquisados apresentaram
resistência ao trabalho integrado na aula de Educação Física, principalmente por parte
dos meninos que mostraram insatisfeitos com o tema. Encontramos na maior parte das
falas, estereótipos de gênero causadores de desigualdades e diferenciações de
comportamento, linguagem e vivências corporais que impedem que o trabalho integrado
nas aulas de Educação Física transcorra de forma justa e igualitária.
Artes, gênero e raça: uma experiência
Esta atividade aconteceu no primeiro dia de aula. Propusemos que os/as
alunos/as construíssem seus autorretratos, na tentativa de substituir a tradicional
apresentação que acontece a cada início de ano, quando professor/a e alunos/as se
apresentam, dizem seus nomes e falam de seus sonhos e objetivos. A atividade
planejada objetivava conhecer a turma e sondar caminhos para integrar as propostas de
discussão sobre sexualidades, gênero, masculinidades e raça com a disciplina. Para tal,
primeiramente apresentamos a vida e os autorretratos de diversos artistas, tais como
Picasso, Van Gogh e Frida Kahlo, entre outros. Explicamos a diferença entre retrato e
autorretrato, pedindo então que cada um confeccionasse o seu autorretrato.
Apesar da relutância inicial de alguns/mas alunos/as que diziam não saber
desenhar, a turma aceitou de maneira tranquila participar da atividade proposta. É
importante destacar que a opção pelo trabalho de artistas da corrente moderna em muito
facilitou essa aceitação, uma vez que eles não privilegiam a forma no processo de
construção de suas obras. Nesse dia estavam presentes na sala de aula 14 alunos e 10
alunas. O marcador visível da identidade coletiva desta turma era a cor da pele – a raça
negra. Dos/as 24 alunos/as presentes, 18 eram negros/as. Contudo, pensando no
conceito de identidades como múltiplas, em processo, híbridas e marcadas por relações
de poder, a identidade negra não pode ser vista de maneira essencializada, o que faz
pensar que nesta sala de aula há uma grande pluralidade cultural.
Ao permitirmos que sentassem livremente, alguns/mas estudantes foram para o
chão, outros permaneceram em suas próprias carteiras. Além disso, colocamos à
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disposição alguns espelhos, lembrando que, caso alguém quisesse ver algum detalhe do
próprio rosto, poderia usá-lo. No entanto, “apenas umas 4 meninas pegaram o espelho,
mas estavam mais interessadas em ver como estavam do que utilizar os espelhos para a
produção do autorretrato”vi
.
Na aula seguinte, posicionamos a turma em círculo para que pudessem
apresentar seus autorretratos. Nesse dia, 9 de fevereiro, estavam em sala 13 meninos e
10 meninas. Combinamos que cada um falaria de si, e que a opinião emitida seria
pessoal. A principal característica do autorretrato é a representação da maneira como a
pessoa se vê. Durante as apresentações algumas questões despertaram a nossa atenção:
em uma sala onde a maioria era negra, nenhuma das 10 meninas presentes se apresentou
como tal. Este fato específico revela como os processos sociais acabam por se desdobrar
na produção de diferenças e distinções. E estas diferenças terminam por subalternizar o
outro, como ressalta Walsh (2009b) e ao mostrar as matrizes da colonialidade no
processo de construção identitária da raça negra, sobretudo a da mulher negra que foi
construída a partir da negação e da inferiorização.
Para reforçar esse pensamento, reproduzimos a fala de algumas alunas cujo
marcador identitário “cor da pele” era muito claro como negro. A primeira se
apresentou: “Sou morena escura, bonita e vaidosa... (uma pequena pausa para avaliar a
reação da turma), mas as pessoas me acham feia, eu sei que sou bonita” (Jorgiene, 13
anos). Vale destacar que o comentário – eu sei que sou bonita – estava diretamente
relacionado à fala inicial do professor, ou seja, à importância de cada um mostrar como
se vê, e da turma respeitar a opinião do/a colega; tanto que a aluna fez uma pequena
pausa depois de dizer que era bonita. Por sua vez, os risinhos e respirações da turma
revelaram que não concordavam com as palavras dela.
Outra aluna disse: “Sou morena, gosto muito de desenhar, sou vaidosa, sou
amiga e meu nome é Kezia” (13 anos). A mesma fala se repetiu com a aluna Monique
(13 anos): “Tenho cabelo castanho, sou morena, olhos pretos, tenho orelhas grandes,
meu cabelo é encaracolado, fiz 12 anos na sexta-feira”; com Dalila (16 anos): “Meu
cabelo está com reflexo, minha boca é pequena, meus olhos são pretos, meu cabelo é
ondulado, meu nariz é mais ou menos”; com Kamila (12 anos): “A cor do meu cabelo é
castanho escuro, meus olhos são castanhos bem escuros, cabelo liso e minha cor morena
escura”; com Joyce (13 anos): “Eu me vejo com lindos olhos, lindo cabelo e linda
boca”; e com Iara (13 anos): “Eu me acho muito bonita e estudiosa. Muitas vezes os
garotos me zoa mas eu me gosto porque me olho no espelho e me acho bonita”.
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A turma não se incomodou com o fato de nenhuma menina se posicionar como
negra. Pelo que pudemos perceber ao longo das aulas, este marcador identitário, no caso
das meninas, trazia marcas de inferiorização em relação às demais, seja desde a
preocupação com os cabelos, passando pelos padrões de beleza e de comportamento, até
o processo de escolha dos parceiros. No conjunto de falas destacadas ecoam, mais uma
vez, as matrizes da colonialidade e da força da lógica do colonizador; ou seja, a
colonialidade do ser (WALSH, 2009b) mostra como a identidade da mulher negra foi
construída, de forma hierarquizada, em uma classificação social e subalternizada. E
como, infelizmente, este processo é um dos mais dolorosos, causando grande
sofrimento para algumas pessoas. Existem diversos aspectos sociais e culturais que
marcam os processos de inferiorização e rejeição da raça negra.
Assim, ao se apresentarem como morenas, ao reforçarem que se acham bonitas
apesar de os outros não acharem, ou ao destacarem o cabelo encaracolado, conclui-se
que essas meninas estão fugindo de suas próprias marcas identitárias.
Ao mesmo tempo, tais falas indicam como deve ser trabalhado o caráter híbrido
das identidades, conforme preconizado pelo multiculturalismo em suas vertentes crítica
e interativa (CANDAU 2008). Com isso, problematizando a visão essencialista e
reconhecendo que as identidades não são puras, visto que carregam marcas que se
mesclam a partir de relações de poder, deixamos para as próximas seções as discussões
sobre cabelo de forma mais ampla. Limitamos aqui a apenas registrar como o cabelo
representa uma forte questão identitária para a mulher negra.
Já entre os meninos a situação foi diferente, pois não tiveram problema de se
afirmarem como negros. Acredito que estavam publicamente apresentando os ritos e
provas que os constituiriam como pertencentes ao grupo de homens negros. Desse
modo, entre os mais velhos alguns se apresentaram como “negão”. O aluno Wanderson
(15 anos) declarou: “sou negão, magro, alto”, e em seguida exibiu o autorretrato pelo
qual enfatizava a cor negra. O desenho deste aluno chamou atenção não pela forma em
si, mas principalmente pela utilização da cor. Ele fez questão de destacar que era negro,
usando lápis e canetinha preta e reforçando que aquela cor tinha alguns significados. O
mesmo aconteceu com o aluno Isaac (14 anos), que afirmou “Sou negro, tenho orelha
grande e tenho nariz pontudo”; Durante a apresentação daquele dia, seis alunos se
apresentaram dessa forma; em comum entre eles havia o fato de serem os mais velhos,
com idades entre 14 e 15 anos.
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As questões interrogam nossa prática pedagógica: para não concluir
Ao refletirmos sobre as escolas investigadas podemos perceber a existência de
certas normas e padrões que cercam tanto as questões relacionadas à raça quanto às
questões ligadas à gênero e sexualidade. A presença de um princípio heterossexual,
branco e masculino parece se evidenciar em diversos momentos de contato com os/as
estudantes, regendo comportamentos e discursos.
Na primeira escola, compreendemos que os temas ligados ao corpo se constroem
como verdadeiros dilemas no que se refere a questão do movimento. Constatamos na
realidade pesquisada que um dos espaços de maior possibilidade de conflito em relação
a questão de gênero é na aula de Educação Física.
A necessidade do domínio e do controle do corpo associado a explícita
demonstração de gestos e movimentos presentes nas aulas podem contribuir para uma
certa vigilância sobre o que é adequado para as meninas e para os meninos. Neste
sentido, identificamos uma nítida diferenciação de manifestações corporais que os/as
estudantes classificam como sendo masculinas e femininas a partir de padrões culturais
construídos com base nas diferenças biológicas que, por conseguinte, acabam
representando a exclusão do outro.
Na segunda escola destacada percebemos como as questões raciais marcam o
processo de construção das identidades reforçando sentidos de masculinidades e
feminilidades que passam a circular no universo cultural dos/das estudantes acentuando
mecanismos de superioridade e inferioridade. Neste caso, para as meninas, ser negra
pode colocá-las em uma posição de subalternidade em relação as outras. Podemos
observar aqui a mesma negação de sua raça, evitando o termo negra. Já para os meninos
ser negro representa uma questão orgulho, pois, remete a força, ao vigor sexual.
Dentro desse contexto, defendemos que todos os momentos de conflitos
ocasionados pelo reconhecimento da diferença podem e devem instigar as práticas
pedagógicas. É importante sensibilizarmos nossos/as estudantes para a urgência do
respeito ao outro e para o questionamento dos fatores que têm contribuído para a
construção e reforço de preconceitos e discriminações.
Assim, evidenciamos neste trabalho a importância de se colocar a diferença em
questão, de problematizar os conceitos essencializados que circulam nas salas de aula e
de se refletir sobre os processos de racialização, sexualização e generificação.
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Federal do Rio de Janeiro (PPGE-UFRJ). ii Paulo Melgaço da Silva Junior estudou as questões de raça, gênero, sexualidades e masculinidades no
contexto escolar. iii
Ana Paula da Silva Santos estudou as questões de gênero no contexto escolar
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iv Ressaltamos a utilização de nomes fictícios para representar os/as alunos/as participantes do presente
estudo.
v Coeducação, segundo Auad (2006) refere-se uma política propositiva e implementadora de modos de
pensar e transformar as relações de gênero na escola.
vi Notas do diário de campo, 6 de fevereiro de 2012
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