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J.L. AUSTIN QUANDO DIZER , E FAZER PALAVRAS E AÇÃO Trad ução e apresent ão à edição brasilei ra: Pro f. DANI LO MARCONDES DE SOUZA FILHO A936q Austin, John Langshaw Quando dizer é faze r. / John Langshaw Austin; Tr ad. de Danilo Marcondes de Souza Filho . / Porto Alegre: Artes di cas: 1990. 136p. CDU:800.1 fndices para o catálogo sistemático: Filosofia da linguagem 800. 1 Ficha catalográfica elaborada pela Bibl. Carla P. de M. Pires CRB 10/753 r ... ::DICAS PORTO ALEGRE/1990

Quando Dizer é Fazer [John L. Austin]

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AUSTIN, John Langshow. Quando Dizer é Fazer. Tradução de Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. 136 p.

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  • J.L. AUSTIN

    QUANDO DIZER ,

    E FAZER PALAVRAS E AO

    Traduo e apresentao edio brasilei ra:

    Prof. DANILO MARCONDES DE SOUZA FILHO

    A936q Austin, John Langshaw Quando dizer faze r. / John Langshaw Austin; Trad. de Danilo

    Marcondes de Souza Filho. / Porto Alegre: Artes Mdicas: 1990. 136p.

    CDU:800.1

    fndices para o catlogo sistemtico: Filosofia da linguagem 800. 1 Ficha catalogrfica elaborada pela Bibl. Carla P. de M. Pires CRB 10/753

    ~~TE5 r...::DICAS PORTO ALEGRE/1990

  • J.L. AUSTIN

    QUANDO DIZER ,

    E FAZER PALAVRAS E AO

    Traduo e apresentao edio brasilei ra:

    Prof. DANILO MARCONDES DE SOUZA FILHO

    A936q Austin, John Langshaw Quando dizer fazer. / John Langshaw Austin; Trad. de Danilo

    Marcondes de Souza Fi lho. / Porto Alegre: Artes Mdicas: 1990. 136p.

    CDU:800.1

    rndices para o catlogo sistemtico: ;;ilosofia da linguagem 800.1 Ficha catalogrfica elaborada pela Bibl. Carla P. de M. Pires CRB 10/753

    .~lE5In :DICAS PORTO ALEGRE/1990

  • Publicado originalmente em ingls sob o trtulo

    HOW TO DO THINGS WITH WORDS

    ~ Copyright 1962, 1975 by the President and

    Fellows of Harvard College.

    Capa: Mrio Rhnelt

    Superviso editorial:

    l1R1rEXiO -rua 13 de maio. 468 - 101.(0504)222 .6223 - caxias do sul rs

    Reservados todos os direitos de publicao EDITORA ARTES MDICAS SUL LTDA. Av. Jernimo de Ornelas, 670 - Fones: 30.3444 e 30.2378 90040 - Porto Alegre, RS, Brasil

    LOJA-CENTRO Rua General Vitorino, 277 - Fone: 25.8143 90020 - Porto Alegre - RS , Brasil

    IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL

    Sumrio

    Apresentao ... .. . . . . ... ........ .. .. .. .. . ... .. . 7

    Prefcio . .. . ..... .. ... .. ..... .. . .... . .. ...... . . 18

    Conferncias:

    I Perfonnativos e Constatativos .. . ..... .. .. .. ......... 2 1

    11 Condies para Perfonnativos Felizes . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

    III Infelicidades: Desacertos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38

    IV Infelicidades: Maus usos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47

    V Clitrios Possveis de Perfonnativos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . S7

    VI Performativos Explcitos ...... ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66

    VII Verbos Perfonnativos Explcitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

    VIII Atos Locucionrios, Ilocucionrios e Perlocucionrios . . . . . . 8

    IX Distino entre Atos Ilocucionrios e Perlocucion rios . . . . . 95

    X "Ao dizer ... " versus "Por dizer ... " .. . . . . . . . . . . . . . . . .. 10

    XI Declaraes, Performativos e Fora Ilocucionria .... ... " I I 1

    XII Classes de Fora Ilocucionria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12 1

    Apndice ....... . . .. .. . .. . ....... .... .......... 133

  • Apresentao

    A FILOSOFIA DA LINGUAGEM DE J. L. AUSTIN

    Danilo Marcondes de Souza Filho

    Esta apresentao no pretende ser uma sntese do pensamento fJlos6fico de Austin em geral, ou mesmo das idias desenvolvidas na presente obra em particular, j que seria impossvel superar, em rigor e conciso, a apresentao do pr6prio autor. Meu objetivo , antes, situar a teoria dos atos de fala dentro da chamada "virada lingstica", caracterstica de grande parte da atividade fJlosfica de nosso sculo, bem como traar o percurso desta teoria, desde sua gnese - em sua motivao fJlosfica inicial, explicitando os elementos fundamentais do mtodo proposto e empregado por Austin - at as teses por ele defendidas na presente obra.

    O projeto fJlosfico da teoria dos atos de fala, tal como foi inicialmente proposto por Austin, insere-se na tradio britnica da fJlosofia analtica, inaugurada por G. E. Moore, B. Russell e L. Wittgenstein nas primeiras dcadas de nosso sculo. Nesse momento, a fJlosofia analtica surge como uma dupla reao s correntes de pensamento fJlosfico ento dominantes na GrBretanha ao fmal do sculo passado: o idealismo absoluto de F. H. Bradley e T. H. Green e o empirismo, influenciado sobretudo por J. S. Mil!. Bradley e Green, dentre outros, sustentavam no s a identificao da realidade com a totalidade, mas tambm a necessidade de a conscincia reconhecer-se como parte do Absoluto. J o empirismo psicologista e subjetivista reduzia a realidade experincia psicolgica do sujeito emprico. A fJlosofia analtica, em seus primrdios, com Moore e Russell, vai partir de uma concepo realista, mantendo que a principal tarefa da fIlosofia realizar um processo de clari-

    Quando dizer fazer 7

  • ficao ou elucidao dos elementos centrais de nossa experincia. Esto "Iucidao se d no atravs de um mtodo especulativo ou introspectivo, mas mediante a anlise da fonna lgica das sentenas em que nosso conhecimento, crenas e opinies sobre o real se expressam e nossa experincia se articula.

    A questo central da investigao filosfica passa a ser ento: como pode uma sentena ter significado? A problemtica da conscincia d, assim, lugar problemtica da linguagem, e o conceito de representao, ponto central da tradio anterior, substitudo pelo conceito de significado.

    Podemos, portanto, considerar que dentro da corrente analtica, que ento se inaugura, a tarefa filosfica se desdobra nas duas seguintes atividades: por um lado, analisar a sentena, buscando estabelecer sua fonna lgica e seus elementos constitutivos; por outro, reinvestigar os problemas filosficos tradicionais em teoria do conhecimento, teoria da percepo, tica, etc. , atravs da anlise lingstica dos conceitos centrais destas reas e do uso dos mesmos na linguagem ordinria. Tal anlise visa obter um esclarecimento do sentido destes conceitos, estabelecendo novas distines, explicitando articu laes at ento no reconhecidas, elucidando obscuridades, etc. Ambas' as prticas encontram-se em Russell e Moore, os iniciadores da filosofia analtica na tradio britnica.

    A primeira tarefa a que acima nos referimos d origem ao que se pode chamar, em um sentido estrito, de filosofia da linguagem: uma teoria filos -!\ fica sobre a natureza e estrutura da linguagem, examinando noes como tenno e proposio, sentido e referncia, nomes prprios e predicativos, verdade, etc., que viro a ser os conceitos-chave desta teoria da linguagem.

    A segunda tarefa da filosofia ser desenvolvida pela corrente conhecida por vezes como filosofia da linguagem ordinria, filosofia lingstica ou, ainda, Escola de Oxford. Austin pode ser considerado um dos principais representantes desta tendncia. Muitos de seus mais importantes trabalhos como A Pleafor Excuses, Other Minds, Three Ways of SpiLling Tnk e Sense and Sensibilia se caracterizam por suas discusses, de grande sutileza e penetrao, de certos problemas centrais da tradio ftlosfica, como responsabilidade e ao, percepo e conhecimento, etc. Todas estas discusses so desenvolvidas atravs do mtodo que acima denominamos anlise filosfica da linguagem ordinria, que Austin julgava ser capaz de clarificar e desmistificar estes problemas tradicionais, situando-os em um plano menos abstrato, genrico e fonnal e, por conseguinte, tomando possvel uma anlise e com-

    K J . l.. AI/stin

    prcensi\o destes pr.oblemas sem recurso u I)lcssupustos IIlcluJ CSlcOS lrudiclo nais que, inevitavelmente, gerariam n.ov.os probJemos e n.ovas discusscs.

    Para ilustrar o mtodo de anlise austinno bastaria aqui reconstruirmo sua elucidao de um problema dos mais importantes da tica, a questo da responsabilidade que decorre de uma ao. Esta anlise encontra-se no qu talvez seu trabalho mais elaborado no gnero, A Pleafor Excuses. Pelo procedimento que Austin estabelece, em lugar de partir de noes abstratas oriundas de uma teoria tica ou de conceitos muito amplos como responsabilidade, ao , vontade, etc. , toma como ponto de partida a anlise de advrbios como "voluntariamente", "deliberadamente" , "acidentalmente", " inadvertidamente" e outros congneres, exatamente por serem, enquanto advrbios, palavras que qualificam ou determinam o tenno "ao" . E a razo de assim proceder radica-se no fato de as condies de possibilidade de emprego destes tennos revelarem as circunstncias que permitem ao falante uslos para justificar, desculpar ou eximir-se da responsabilidade de seu ato.

    Neste tipo de anlise encontramos o genne de uma de suas concepes mais originais, desenvolvida no presente livro, segundo a qual. "minha palavra meu penhor" , o que faz com que se considere o ato de fala, a interao comunicativa propriamente dita, como tendo um carter contratual ou de compromisso entre partes.

    Nesta sua anlise, Austin recorre a uma srie de exemplos tirados no s da prtica cotidiana do uso lingstico, como tambm de processos criminais em que algum foi ou no responsabilizado por uma ao, e ainda de situaes imaginrias e fictcias. O mtodo de Austin revela, pelo recurso a exemplos, seu interesse pelas regras de uso da linguagem, pelo que se pode ou no dizer, enfim pela "gramtica" . A finalidade da anlise no , est claro, emprica. O recurso a exemplos, reais ou imaginrios, apenas uma fonna de tomar a reflexo mais concreta, mais precisa, mais prxima de nossa experincia de falantes, apoiando-se no carter intersubjetivo da linguagem e assim fazendo com que suas concluses tenham a ver mais diretamente com nosso universo de discurso e nossa prtica cotidiana.

    Assim, todo problema filosfico fica sistematicamente restrito a um "campo semntico" bem delimitado, no contexto do qual o uso de certas expresses deve ser examinado, levando-se em conta quando, como, por que e por quem determinadas expresses podem ser usadas e outras no. Em ftmo deste procedimento elaboram-se distines ou aproximaes e estabelecem-se as caractersticas bsicas de possibilidade de seu uso, que fornecem os elementos para a determinao do significado e conseqentemente para o esclarecimento ou elucidao dos tennos. Este esclarecimento, contudo,

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  • sempre deve ser considerado provisrio. No h solues definitivas em filosofia, uma vez que as mesmas questes sempre podem ser retomadas e reexarrunadas sob novos ngulos, seja pelo estabelecimento de novas relaes, seja pela considerao de outros aspectos do uso at ento no examinados.

    Neste mtodo de anlise, a necessidade de se levar em conta o contexto de uso das expresses e os elementos constitutivos deste contexto indica claramente que a linguagem no deve ser considerada em abstrato, em sua estrutura formal apenas, mas sempre em relao a uma situao em que faz sentido o uso de tal expresso. Desta forma superam-se as barreiras entre linguagem e mundo, entre o sistema de signos sintaticamente ordenados e a realidade externa a ser representada. Segundo Austin,

    quando examinamos o que se deve dizer e quando se deve faz-lo, que palavras devemos usar em determinadas situaes, no estamos examinando simplesmente palavras (ou seus "significados" ou seja l o que isto for) mas sobretudo a realidade sobre a qual falamos ao usar estas palavras - usamos uma conscincia mais aguada das palavras para aguar nossa percepo ( ... ) dos fenmenos.

    Philosophical Papers, p. 182

    Podemos afirmar, ento, que quando analisamos a linguagem nossa finalidade no apenas analisar a linguagem enquanto tal, mas investigar o contexto social e cultural no qual usada, as prticas sociais, os paradigmas e valores, a "racionalidade", enfim, desta comunidade, elementos estes dos quais a linguagem indissocivel. A linguagem uma prtica social concreta e como tal deve ser analisada. No h mais uma separao radical entre "linguagem" e "mundo" , porque o que consideramos a "realidade" constitudo exatamente pela linguagem que adquirimos e empregamos.

    Duas so as conseqncias bsicas desta nova viso proposta por Austino Surge um novo paradigma terico que considera a linguagem como ao, como forma de atuao sobre o real, e portanto de constituio do real, e no meramente de representao ou correspondncia com a realidade. Em decorrncia, d-se a passagem para um segundo plano do conceito de verdade, conceito central da semntica clssica, j que corresponde precisamente garantia de adequao entre linguagem e realidade, em seu aspecto tanto lgico como epistemolgico. A verdade substituda agora pelo conceito de eficcia do ato, de sua "felicidade", de suas condies de sucesso, e tambm pela dimenso moral do compromisso assumido na interao comunicativa, sempre enfatizado por Austin.

    J. L. Austin

    ponto central da concepo de Austin c ~UH principal contribulu fllosofia da oguagem parece-me ser a idia de que a linguagem deve ser tratada essencialmente como uma forma de ao e no de representao da realidade. O significado de uma sentena no pode ser estabelecido arav da anlise de seus elementos constituintes, da contribuio do sentido da referncia das partes ao todo da sentena, como quer a tradio insp.irada em Frege, Russell e Moore, mas, ao contrrio, so as condies de uso da sentena que determinam seu significado. Na verdade, o conceito mesmo d significado se dissolve, dando lugar a uma concepo de linguagem como um complexo que envolve elementos do contexto, convenes de uso e intenes dos falantes. As condies de realizao do ato de fala apresentadas por Austin na I Conferncia da presente obra explicitam exatamente estas caractersticas: a investigao fJ.losfica da linguagem deve realizar-se com base no em uma teoria do significado, mas em uma teoria da ao.

    Como se v, as primeiras contribuies de Austin fJ.losofia se encontram na linha da assim chamada fJ.losofia da linguagem ordinria, cuja proposta muito mais metodolgica do que doutrinria ou sistemtica. Trata-s ..., como foi dito , de realizar uma reflexo sobre os problemas tradicionais da fJ.losofia mediante uma anlise conceitual, similar, sob certo ponto de vista, ao mtodo socrtico, s que interpretando o conceito como expresso lingstica e no como entidade mental ou objeto lgico, e procurando elucid-la - isto , estabelecer sua defrnio ou significado - a partir das condies de uso desta expresso. No se encontra, entretanto, nestes primeiros trabalhos, uma preocupao em fundamentar teoricamente estas "anlises conceituais", nem em elabor-las mais sistematicamente, j que prprio ao mtodo o carter provisrio e relativo da elucidao obtida.

    Este tipo de anlise, contudo, levou Austin a refletir sobre a prpria natureza da linguagem, objeto da anlise fJ.losfica. Partimos ento de uma preocupao com O significado de determinados termos e expresses lingsticas e passamos a investigar como a linguagem tem significado. Tanto do ponto de vista da anlise da linguagem ordinria, quanto do ponto de vista de uma teoria sobre a linguagem, a viso de Austin sempre orientada pela considerao da linguagem a partir de seu uso, ou seja, da linguagem como forma de ao. Uma das principais conseqncias desta nova concepo de linguagem consiste no fato de a anlise da sentena dar lugar anljse do ato de fala, do uso da linguagem em um determinado contexto, com uma determinada finalidade e de acordo com certas normas e convenes. O que se analisa agora no mais a estrutura da sentena com seus elementos constitutivos, isto , o nome e o predicado, ou o sentido e a referncia, mas

    Quando dizer fazer 10 11

  • as condies sob as quais o uso de detenninadas expresses ling(sticas produzem certos efeitos e conseqncias em uma dada situao.

    J em 1946, em sua conferncia Outras Mentes, Austin criticava o que considerava a "falcia descritiva" , cometida por certos fIlsofos. Sentenas do tipo "Eu sei que .. . ", devido sua forma declarativa, parecem ser descries de fatos. O fIlsofo , em sua anlise, ento levado a buscar os fatos e situaes que tomam tais sentenas verdadeiras. Passa a trat-las, assim, como descries de um ato mental do falante, que seria a cognio, pertencendo mesma categoria da crena e da certeza, porm superior a estas. Austin v nisso a causa da confuso e do equvoco que caracterizariam a "falcia descritiva" . Prope, ao contrrio, que se considere a expresso "Eu sei que ... " do mesmo modo que "Eu prometo ... " . Seriam expresses usadas no para descrever ou relatar algo, mas parafazer algo, para realizar um ato. Por isso ele as chama de expresses peiformativas, aquelas que, ao serem usadas em detenninadas sentenas, constituem "proferimentos performativos". Os proferimentos performativos, exatamente por serem atos realizados, no esto sujeitos verdade ou falsidade, mas a "condies de felicidade", que explicam seu sucesso ou insucesso. Portanto, a anlise destas sentenas no pode ser feita adequadamente atravs da Semntica Clssica, que se baseia na determinao das condies de verdade da sentena, mas, sim, atravs de um novo tipo de anlise que Austin comea a desenvolver ento e que culminar na teoria dos atos de fala.

    Os primeiros trabalhos que comeam a tematizar mais teoricamente a questo da natureza da linguagem e do significado so How to Talk (19534), Peiformative Utterances (1956) e a conferncia apresentada no Colquio de Royaumont em 1958, Peiformatif-Constatif.

    Austin apresenta a as linhas gerais desta teoria que j vinha desenvolvendo, segundo ele prprio, desde o incio da dcada de 40 e que ser fmalmente elaborada em uma srie de cursos intitulados Words and Deeds, ministrados na Universidade de Oxford no incio da dcada de 50 e posteriormente em universidades americanas, e que constituem a substncia de How to do things with words (cf. o "Prefcio" a esta obra). Trata-se precisamente de uma teoria sobre a natureza da linguagem enquanto uma forma de realizar atos: os atos de fala. Aqui no s se formula uma srie de conceitos tericos como peiformativo, fora ilocucionria, etc., como tambm se procura estabelecer e classificar os diferentes tipos de atos de fala, buscando sua sistematizao e assim propondo uma nova concepo de linguagem, seja quanto a sua estrutura, seja quanto a seu funcionamento.

    Esta preocupao com uma redefmio de linguagem e com a maneira de consider-Ia decorre explicitamente da idia de que a elucidao ftlosfi

    .J. L. Austin

    ca de certos termos e expresses depende de um lIludclo te6rico de l ingulI gem que fornea os critrios para realizar esta anlise e a elucidao pretendida. No se trata, portanto, de uma ruptura com a proposta anterior de elucidao mediante a anlise lingstica, agora substituda por um interesse meramente terico sobre a linguagem. Pelo contrrio, trata-se da busca d uma forma mais eficaz e rigorosa de se realizar esta anlise e esta elucidao, que agora passa a se fundamentar em uma teoria sobre a linguagem. Conseqentemente, o objeto ltimo continua sendo a aplicao destes conceitos tericos sobre a linguagem elucidao das questes surgidas no campo concreto da experincia e da atividade humanas, como afirma explicitamente a concluso de Quando dizer fazer. Palavras e ao.

    Como de costume, no me sobrou o tempo suficiente para mostrar qual o interesse de tudo isto que acabo de dizer. Darei, porm, um exemplo. De h muito, os fIlsofos tm demonstrado interesse pela palavra "bom" e, recentemente, se interessaram pelo modo como a usamos e pelos fms para que a empregamos. J se sugeriu, por exemplo, que a usemos para expressar aprovao, para recomendar ou ainda para qualificar. Mas nunca chegaremos a uma idia clara sobre a palavra "bom" e sobre para que a usamos at que tenhamos, de forma satisfatria, levantado a relao completa dos atos ilocucionrios dos quais recomendar, qualificar, etc. seriam espcimes isolados; at que saibamos quantos destes atos existem e de que forma se inter-relacionam. Isto seria um exemplo de aplicao possvel de uma teoria geral do tipo que acabamos de considerar; sem dvida haveria muitas outras. Intencionalmente deixei de fora da teoria geral problemas ftlosficos - alguns dos quais to complexos que chegam a merecer sua celebridade. Isto no significa que no tenha conscincia da existncia desses problemas. claro que tudo isto um tanto cansativo e rido para se ouvir e assimilar; mas no tanto quanto o foi conceber e redigir a teoria. Mas seu verdadeiro interesse comea quando passamos a aplic-la ftlosofia.

    Austin, 1975, pp. 163-4

    Quando dizer fazer. Palavras e ao , portanto, uma obra inovadora e que abre novas perspectivas em ftlosofia da linguagem para novas investigaes pelo estabelecimento de elementos tericos que desenvolvidos, muitas vezes criticamente, por autores como P. F. Strawson, H. P. Grice e, principalmente, J. R. Searle, deram origem teoria dos atos de fala. Suas impli-

    Quando dizer fazer 12 13

  • caoes, repercussO e interesse percorrem, como anteviu Austin, todos os domnios da fllosofia, bem como de reas afins, como a lingstica, a psicologia, a antropologia, etc.

    O texto de Austin apresenta ao tradutor duas dificuldades bsicas, raramente encontradas ao mesmo tempo em um mesmo texto. Em primeiro lugar, trata-se de um texto em linguagem coloquial, idiomtico e fluente, exatamente na medida em que derivado de conferncias proferidas por Austin na Universidade de Harvard. Fica assim bvio seu propsito de servir mais exposio oral do que leitura. Por outro lado, por se tratar de uma obra original e polmica, o texto contm um conjunto de termos tcnicos, conceitos tericos e mesmo neologismos, cunhados pelo autor, de importncia fundamental para os objetivos a que se prope, mas de difcil adaptao para nosso idioma. No desejo com estas ressalvas eximir-me da responsabilidade pelas eventuais falhas que todo tradutor inevitavelmente comete, mas apenas indicar as dificuldades inerentes ao texto, para que o leitor as tenha em mente durante sua leitura. Finalmente, procurei sempre, na medida do possvel, conservar os traos caractersticos do estilo coloquial de Austin, adaptando para o portugus, quando isto se impunha, seus exemplos e as expresses idiomticas utilizadas. Quanto aos termos tcnicos introduzidos por Austin e aos conceitos tericos de que lana mo, procurei torn-los mais claros ao leitor que se inicia atravs de notas explicativas, para fazer com que o texto seja mais acessvel.

    Por fim, no poderia deixar de agradecer ao Prof. Paulo Alcoforado, da UFRJ , as inmeras sugestes feitas a este trabalho de traduo, alm do muito que me ensinou sobre a difcil arte de traduzir.

    BffiLIOGRAFIA DE J. L. AUSTIN

    Philosophical Papers, organizado por G. J. Warnock e J. O Urmson, Oxford, Claredon Press, 3!! ed. ampliada em 1979.

    ontm os seguintes trabalhos: "Agathon and Eudainwnia in the Ethics of Aristotle" . Escrito na dcada de

    30, tambm publicado em J. M. E. Moravcsik Corg.) Aristotle, Londres, Macmillan, 1968, pp. 261-296.

    .. Are there A Priori Concepts?", inicialmente publicado em Proceedings qf the Aristotelian Society, XII, 1939, pp. 83-105.

    "The Meaning of a Word", trabalho apresentado em 1940 ao Moral Sciences Club de Cambridge e a Jowett Society de Oxford.

    14 _______ _________________________________ J.L.Austin

    "Other Minds", inicialmente publicado em I'rcx'('cdif/gs of the Aristotelicu Society, sup. voI. XX, 1946, pp. 148-187. 'rraduzido para o portugus por Marcelo Guimares Da Silva Lima e publicado no vol. LU da col. Os pensadores, S. Paulo, Abril , 1975, I! ed.

    "Truth" , publicado inicialmente em Proceedings of the Aristotelian Society, sup. vol. XXIV, 1950, pp. 111-128.

    "Unfair to Facts" , trabalho apresentado em 1954 na Philosophical Society de Oxford.

    "How to Talk - Some Simple Ways" , inicialmente publicado em Proceedings of the Aristotelian Society, LIII, 1953-4, pp. 227-246.

    "Performative Uterrances" , trabalho apresentado em 1956 em programa radiofnico da BBC.

    "A Plea for Excuses" , publicado inicialmente em Proceedings of the Aristotelian Society, LVII, 1956-7, pp. 1-30.

    "Ifs and Cans", publicado inicialmente em Proceedings of the British Academy, XLII, 1956, pp. 109-132.

    "Pretending" , publicado inicialmente em Proceedings of the Aristotelian Society, sup. vol. XXXII, 1958, pp. 261-278.

    "1hree Ways of Spilling lnk" , conferncia em 1958 na American Society of Political and Legal Philosophy. Tambm publicado em The Philosophical Review, 75, 1966, pp. 427-440.

    "The Line and the Cave in Plato's Republic", reconstrudo a partir de notas por J. O. Urmson, includo na 3!! ed.

    Sense and Sensibilia, ed. por G. J. Warnock, Oxford, Clarendon Press, 1962 .

    . How to do Things with Word5, ed. por J. o. Urmson, Oxford, Clarendon Press, 1962. 2!! ed. preparada por J. O. Urmson e M. S. Sbis, Oxford, Clarendon Press, 1975.

    The Foundations of Arithmetic, Oxford, Blackwell, 1953. Traduo para o ingls da obra de G. Frege: Die Grundlagen der Arithmetik, 1884.

    "Critical Notice on J. Lukasiewicz's Aristotle's Syllogistic: From the Standpoint of Modem Formal Logic" , Mind, 61, 1952, pp. 395-404.

    "Report on Analysis Problem n2 1: What sort of "if' is the "if' of " I can if I choose"?, Analysis, 12, 1952, pp. 125-126.

    "Report on Analysis Problem n2 12: "AlI Swams are white or b1ack". Does this Refer to Swans on Canals on Mars?" , Analysis, 18, 1958, pp . 97-99.

    "Performatif-Constatif ', trabalho apresentado em 1958 no Colquio de Royaumont. Publicado em La Philosophie Analytique, Paris, Cahiers de Royaumont, Minuit, 1963, pp. 271-304.

    Quando dizer fazer 15

  • BlBUOGRAFIA SOBRE AUSTlN E A TEORIA OOS ATOS DE FALA*

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    Sduction en deux Langues, Paris, Seuil, 1980. FURBERG, M. Saying and Meaning: A Main Theme inJ. L. Austin's Philo

    sophy, 2!! ed. Oxford, Blackwell, 1971. GRAHAM, K. J . L. Austin: A Critique of Ordinary Language Philosophy,

    Hassocks, Sussex, The Harvester Press, 1977. HOLDCROFT, D. Words and Deeds: Problems in the Theory of Speech

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    1977. MARCONDES DE SOUZA P-, D. Language and Action: A Reassessment

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    cipalmente os artigos de J. O. Urmson, "J. L. Austin" , pp . 232-238; S. Hampshire, "J. L. Austin" , pp. 239-247; J. O. Urmson e G. J. Warnock, "J. L. Austin" , pp. 248-249; e S. Cavell, "Austin at Criticism" pp. 250260.

    SEARLE, J. R. Speech Acts, Cambridge Univ. Press, 1969.

    NOTA BIOGRFICA

    John Langshaw Austin nasceu em 1911 em Lancaster, Inglaterra, e faleceu em 1960. Era casado e teve dois casais de fIlhos. Estudou Letras Clssicas no BalHol College da Universidade de Oxford, onde sofreu a influncia do filsofo H. A. Prichard. Tomou-se fellow do AlI Souls College da Uni

    .. Trata-se apenas de uma relao de algumas das principais obras sobre Austin e a Teoria dos Atos de Fala. A bibliografia nesta rea imensa, sobretudo no que diz respeito a artigos em peridicos especializadoo; remetemos o leitor hs referncias bibliogrficas encontradas nas proprias obras relacionadas acima.

    J. L. Austin

    versidadc de Oxford, em 1933, e em 1935 do Magdulcn College. A pw-tir dl' 1952 ocupou a ctedra "White" de Filosofia Moral nessa universidade. Ou rante a Segunda Guerra Mundial fez parte do Servio de Wonnacs do Exrcito Britnico, chegando ao posto de tenente-coronel e recebendo vrias condecoraes. Em 1955 apresentou as Conferncias William James na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, que deram origem prescnt obra, e entre 1958 e 1959 apresentou uma srie de conferncias na Universidade da Califrnia, em Berkeley, posteriormente publicadas como Sense al1d Sensibilia.

    Austin exerceu grande influncia em Oxford em seu tempo, sendo famosos os seminrios infonnais que realizava na universidade com alguns de seus colegas, quando utilizavam o mtodo de anlise lingstica na discusso de problemas fIlosficos. Este grupo inclua, dentre outros, P. F. Strawson, H. P . Grice, S. Hampshire, J. O. Urmson, G. J. Warnock, dando origem chamada Escola de OJford, embora a rigor no se possa dizer que constitussem uma "escola" filosfica.

    Quando dizer fazer 16 17

  • Prefcio 1 a e 2a edies inglesas

    Prefcio 1~ edio inglesa

    As conferncias que formam este livro foram apresentadas por Austin na Universidade de Harvard, em 1955, como parte da srie de "Conferncias William James". Em uma breve nota, Austin diz que as idias que servem de pano de fundo a estas conferncias "se originaram em 1939. Vali-me delas no artigo 'Outras Mentes' publicado nos Proceedings of the Aristotelian 50ciety, Supplementary volume XX (1946), pp. 173 e segs., e pouco depois fiz emergir um pouco mais deste iceberg diante de diversas associaes filosficas ... ". Durante LlS anos de 1952 a 1954, os cursos de Austin em Oxford versaram sobre o tema "Palavras e Aes", utilizando-se ele de notas reelaboradas a cada ano e que cobrem aproximadamente o mesmo campo que as "Conferncias William J ames" . Para tais conferncias, Austin preparou novas notas, embora incorporando aqui e ali partes das anteriores. Elas constituem, portanto, as notas mais recentes de Austin sobre esses temas, embora tenha continuado a dar cursos em Oxford sobre "Palavras e Aes" com base nas mesmas notas, fazendo apenas algumas pequenas correes e acrscimos.

    No presente volume reproduzimos as ltimas notas de Austin, com um mnimo de alteraes e to fielmente quanto possvel. Se Austin, ele prprio, as houvesse publicado, sem dvida lhes teria dado uma forma mais apropriada. Certamente teria reduzido as recapitulaes com que inicia a 2~ Conferncia e que se repetem nas demais. igualmente certo que em sua apresentao oral Austin desenvolvia o texto encontrado em suas notas. Porm, a

    J. L. Austin

    mruorla dos leitores preferir contar com um verso heI do que se sabe qu Austin escreveu, do que com uma verso do que ele suposttuncnte teria escrito caso tivesse preparado suas notas para publicao. ou ainda do que pensamos que teria dito durante as conferncias. Pequenas imperfeies da fonna e do estilo, bem como inconsistncias do vocabulrio devem ser desculpadas e so o preo que devemos pagar por t-las publicadas.

    Mas as conferncias aqui publicadas no reproduzem exatamente as notas escritas por Austin. A razo a seguinte. Se bem que em sua maior parte, principalmente no comeo das conferncias, as notas sejam bastante completas e redigidas em pargrafos inteiros, com pequenas omisses de artigos e outras partculas gramaticais; freqentemente, ao [mal das conferncias, tornam-se cada vez mais fragmentadas, sendo que os acrscimos mar~ gem so abreviados. Nessas partes as notas foram interpretadas e complementadas recorrendo-se s notas de 1952-1954, acima mencionadas. Podemos ainda compar-las com apontamentos tomados na Inglaterra e nos Estados Unidos por aqueles que assistiam exposio oral, levando ainda em conta a conferncia na BBC, entitulada "Proferimentos Performativos" , e uma gravao da conferncia "Performativos" apresentada em Gotemburgo, em outubro de 1959. No apndice inclullos indicaes mais completas dessas fontes auxiliares. Pode ter ocorrido que neste processo de interpretao tenha aparecido no texto uma frase que Austin talvez no aprovasse; porm, pouco provvel que em qualquer parte o pensamento de Austin, em suas linhas bsicas, tenha sido distorcido.

    Agradeo a todos que me ajudaram atravs do acesso a seus apontamentos e aos que me cederan1 a gravao. Meu especial agradecimento a G. J. Warnock, que examinou todo o texto cuidadosamente e evitou que eu cometesse inmeros erros. Graas a essa colaborao o leitor dispe de um texto bem mais aperfeioado.

    1. O. Urmson

    Prefcio 2~ edio inglesa

    A Ora. Marina Sbis examinou todas as notas preparadas por Austin para estas conferncias, comparando-as com o texto impresso da 1~ edio e assinalando os pontos que lhe pareceram merecer reviso. Os editores examinaram, ento, conjuntamente as notas de Austin relativas a todos estes pontos, aps o que decidiram corrigir e aperfeioar o texto j impresso em diversas passagens. Consideram que o novo texto mais claro, mais com-

    Quando dizer fazer 18 19

  • pleto e, ao mesmo tempo, mais fiel ao que se encontra nas notas de Austin, incluram no apndice uma transcrio literal de um certo nmero de acrscimos feitos por Austin margem ou nas entrelinhas de suas notas, cujo entido no foi considerado suficientemente claro para que sua incorporao ao texto pudesse auxiliar a leitura ou interessar o leitor.

    Marina Sbis J. O. Urmson

    o J. L. Ausrin

    ] J Conferncia Performativos e constatativos

    o que tenho a dizer no difcil, nem polmico, O nico mrito que gostaria de reivindicar para esta exposio o fato de ser verdadeira pelo menos em parte. O fenmeno a ser discutido bastante difundido e bvio, e no pode ter passado despercebido pelo menos em algumas instncias. Entretanto, ainda no encontrei quem a ele tivesse se dedicado especificamente.

    Por mais tempo que o necessrio, os fIlsofos acreditaram que o papel de uma declarao* era to-somente o de " descrever" um estado de coisas, ou declarar um fato, o que deveria fazer de modo verdadeiro ou falso. Os gramticos, na realidade, indicaram com freqncia que nem todas as sentenas so (usadas para fazer) declaraesl , h tradicionalmente, alm das declaraes (dos gramticos), perguntas e exclamaes, e sentenas que expressam ordens, desejos ou concesses. Os filsofos sem dvida no preten

    "Traduzimos statement por " declarao" sentence oor "sentena", e utterance por "proferimento" . 1\ sentena entendida aqui como uma unidade lingfstica, possuindo uma estrutura gramatical e dOlllda de significado, tomada em abstrato. A declara o seria ento o uso da sentena para afirmar ou uegar algo, podendo ser falsa ou verdadeira. O proferimento a emisso concreta e particular de lIllIa sentena, em um momento determinado, por um falante determinado. Assim, a sentena da lnuo portuguesa, "A cosa vermelha" pode ser usada para afirmar uma caracterfstica (ser vermelha)

    de um objeto (a rosa) , o que pode ser verdadeiro ou falso, quando proferida por algum em um contexto determinado. Estas distines so objeto de inmeras controvrsias em Filosofia da Lingua,em, havendo extensa literatura a respeito. As definies que adotamos correspondem ao emprego IlO por Austin. (N. do T.)

    1 Nilo correto realmente Jizer que uma sentena seja uma declarao; na realidade ela usada para flUOr uma declarao, e u declarao em si uma "construo 16gic,'l" tirada da feitura das declaraos.

    Qunndo dizer 6 fOJ.cr 21

  • deram negar tais coisas, apesar de seu uso um tanto vago de "sentena" como equivalente "declarao". Tampouco se duvida que tanto os filsofos quanto os gramticos sempre perceberam no ser fcil distinguir at uma pergunta, ou ordem, etc. de uma declarao, utilizando-se os poucos e incipientes critrios gramaticais disponveis como a ordem das palavras, modos verbais, etc.; mas, talvez, no tenha sido dada, com freqncia, a ateno devida s dificuldades que esse fato obviamente apresenta. Pennanece a dvida sobre como decidir qual a pergunta, qual a ordem, qual a declarao. Quais so os limites e as defmies de cada uma?

    Recentemente, porm, muitas das sentenas que antigamente teriam sido aceitas indiscutivelmente como "declaraes", tanto por fIlsofos quanto por gramticos, foram examinadas com um novo rigor. Este exame surgiu, ao menos em filosofia, de fonna um tanto indireta. De incio apareceu, nem sempre fonnulada sem deplorvel dogmatismo, a concepo segundo a qual toda declarao (factual) deveria ser "verificvel", o que levou concepo de que muitas "declaraes" so apenas o que se poderia chamar de pseudodeclaraes. Em um primeiro momento e de fonna mais bvia, mostrou-se que muitas "declaraes", como Kant* primeiro sustentou de maneira sistemtica, eram estritamente sem sentido, apesar de sua fonna claramente gramatical; e a contnua descoberta de novos tipos de sentenas sem sentido resultou, a grosso modo, em um bem, por mais assistemtica que fosse sua classificao e misteriosa sua explicao. Contudo, at mesmo ns, os filsofos, estabelecemos certos limites para a quantidade de sentenas sem sentido que estamos dispostos a admitir. Com isto, passou-se a perguntar, em um segundo estgio, se muitas das aparentes pseudodeclaraes seriam realmente "declaraes" . Passou-se geralmente a considerar que muitos proferimentos que parecem declaraes no tm, ou tm apenas em parte, o propsito de registrar ou transmitir infonnao direta acerca dos fatos. Por exemplo, as "proposies ticas" talvez tenham propsito, no todo ou em parte, de manifestar emoo ou prescrever comportamento, ou influenci-lo de modo especiaL Aqui tambm Kant deve ser considerado como um dos pioneiros. Ns, muitas vezes, tambm usamos proferimentos cujas fonnas ultrapassam pelo menos os limites da gramtica tradicional. J se reconhece que muitas palavras que causam notria perplexidade quando inseridas em declaraes aparentemente descritivas no se destinam a indicar algum aspecto adicional particularmente extraordinrio da realidade relatada, mas so usadas para in

    "Truto-se de uma re ferncia distino feita por Kant, na Critica da razo pura, entre os jufzos da o l~ lIcjo, que representllm conhecimento, e os jufzos da metaffsica especulativa, que seriam meras pfotcn8c.1 n conhecimento sem do fato virem a se constituir legilimamente em cincia. (N. do T.)

    J. (Jo Austln

    dicar (e no para relatar) as circunstncias em que a declarao foi feita, as restries s quais est sujeita ou a maneira como deve ser)recebida, ou coisas desse teor. Deixar de levar em conta tais possibilidades, como era comum antigamente, denomina-se falcia "descritiva" , embora talvez este no seja o nome adequado, j que o termo "descritiva" por si mesmo especfico. Nem todas as declaraes verdadeiras ou falsas so descries, razo pela qual prefIro usar a palavra "constatativa". Seguindo esta linha de pensamento, tem-se demonstrado atualmente de maneira minuciosa, ou pelo menos tem-se procurado parecer provvel, que muitas perplexidades filosflCas tradicionais surgiram de um erro - o erro de aceitar como declaraes factuais diretas proferimentos que ou so sem sentido (de maneiras interessantes embora no gramaticais) ou ento foram feitos com propsito bem diferentes.

    O que quer que pensemos sobre todas essas concepes e sugestes, ou por mais que julguemos deplorvel a confuso inicial em que mergulharam a doutrina e o mtodo ftlosfico, no cabe dvida de que esto produzindo uma revoluo em ftlosofia. Se algum quiser consider-la a maior e mais saudvel das revolues da histria da ftlosofia, no ser, se pensarmos bem nisso, um exagero. No de surpreender que o incio tenha sido fragmentrio, com parti pris e com motivos extrnsecos, j que isso comum s revolues.

    DELIMITAO PRELIMINAR DO PERFORMATIV02

    o tipo de pro ferimento que vamos aqui considerar no consiste obviamente em um caso de falta de sentido, embora o seu uso inadequado possa gerar, como veremos, variedades muito especiais de "falta de sentido" (rwnsense). Trata-se sobretudo de um tipo de nosso segundo grupo - as expresses que se disfaram. Esse tipo, porm, no se disfara sempre necessariamente como declarao factual, descritiva ou constatativa. Mas o que pode parecer estranho que isto ocorre exatamente quando assume a sua forma mais explcita. Creio que os gramticos ainda no perceberam tal "disfarce" e os filsofos s muito incidentalmente3. Ser conveni~nte , portanto, estudar esse tipo de declarao, inicialmente sob esta fonna enganosa, para explicilar suas caractersticas, contrastando-as com as declaraes factuais que elas im.itam. 2 Tudo quanto for dito nestas sees provis6rio e sujeito reformulao luz das sees posteriores.

    ~rn de esperar-se que os juristas, mais que ningum, se apercebessem do verdadeiro estado de coi Talvez al guns agoro j se apercebom. Contudo, tendem a sucumbir sua pr6pria fico temerosa que uma dcclarufto "de di reito" 6 umo declnrollo de fato.

    r 23 2

  • Como primeiros exemplos vamos tomar alguns proferimentos que no podem ser enquadrados em nenhuma das categorias gramaticais reconhecidas, exceto a de "declarao" ; tampouco constituem casos de falta de sentido, nem encerram aqueles indcios verbais de perigo que os filsofos j detectaram ou pensam haver detectado (palavras curiosas como "bom" e "todo", auxiliares suspeitos como " deve" (ought) ou " pode" (can) , e construes dbias como as hipotticas) . Todos tero, como natural, verbos usuais na primeira pessoa do singular do presente do indicativo da voz ativa4 . Podem-se encontrar proferimentos que satisfaam estas condies e

    A. que nada "descrevam" nem "relatem", nem constatem, e nem sejam "verdadeiros ou falsos";

    B. cujo proferimento da sentena , no todo ou em parte, a realizao de uma ao, que no seria normalmente descrita consistindo em dizer algo.

    Isto est longe de ser to paradoxal quanto possa parecer ou quanto eu possa ter feito parecer. Na realidade, os exemplos que daremos a seguir sero decepcionantes.

    Exemplos:

    (a) "Aceito (scilicet), esta mulher como minha legtima esposa" - do modo que proferido no decurso de uma cerimnia de casamentos.

    (b) "Batizo este navio com o nome de Rainha Elizabeth" - quando proferido ao quebrar-se a garrafa contra o casco do navio.

    (c) "Lego a meu irmo este relgio" - tal como ocorre em um testamento.

    (d) "Aposto cem cruzados como vai chover amanh."

    Estes exemplos deixam claro que proferir uma dessas sentenas (nas circunstncias apropriadas, evidentemente) no descrever o ato que estaria praticando ao dizer o que disse6 , nem declarar que o estou praticando: faz-lo. N~nhum dos pro ferimentos citados verdadeiro ou falso; considero

    4 Isto deliberado, todos so performativos "explfcitos" , e do tipo "prepotente", que mais adiante chamaremos "exercitivo". (Cf. Xli Conferncia, N. do T.) 5 Austin percebeu que a expresso" Aceito" (I do) no usada na cerimnia de casamento tarde de

    l11u is pura corrigir es te erro. Deixamos o erro permanecer no texto por consider- lo filosoficame nte

    Irrelevante. (Nota de J. O. Urmson, editor).

    O MuJto monos qualquer coisa que eu j tenha feito ou venha a fazer.

    24 _______________________________________ / Austil/

    isto to bvio que sequer pretendo justificar. De fato, no necessrio justificar, assim como no necessrio justificar que " Poxa!" no nem verdadeiro nem falso. Pode ser que estes proferirnentos "sirvam para infonnar", mas isso muito diferente. Batizar um navio dizer (nas circunstncias apropriadas) as palavras "Batizo, etc.". Quando digo, diante do juiz ou no altar, etc., "Aceito" , no estou relatando um casamento, estou me casando.

    Que nome daramos a uma sentena ou a um proferimento deste tipo?? Proponho denomin-la sentena perfonnativa ou proferimento performativo, ou, de forma abreviada, " um performativo". O tenno " perfonnativo" ser usado em uma variedade de formas e construes cognatas, assim como se d com o termo "imperativo".8 Evidentemente que este nome derivado do verbo ingls to perform, verbo correlato do substantivo "ao" , e indica C),ue ao se emitir o proferimento est - se realizando uma ao, no sendo, co~se-qentemente, considerado um mero equivalente a dizer algo. /

    Muitos outros termos podem ser sugeridos, cada um cobrindo uma ou outra classe mais ou menos ampla de performativos. Por exemplo, muitos performativos so "contratuais" ("Aposto"), ou "declaratrios" ("Declaro guerra"). Mas nenhum termo de uso corrente que eu conhea suficiente para cobrir todos os casos. O termo tcnico que mais se aproxima do que necessitamos seria talvez "operativo" , na acepo em que usado pelos advogados ingleses ao se referirem quelas clusulas de um instrumento legal que servem para efetuar a transao (isto , a transmisso de propriedade, ou o que quer que seja) que constitui sua principal fmalidade, ao passo que o resto do documento simplesmente "relata" as circunstncias em que se deve efetuar a transao.9 Mas "operativo" tem outros significados, e hoje at mesmo usado para significar quase a mesma coisa que "eficaz" . Preferi assim um neologismo ao qual no atribuiremos to prontamente algum significado preconcebido, embora sua etimologia no seja irrelevante*.

    7 As "sentenas" formam uma classe de "proferimentos" , classe esta que deve ser definida, em minha opinio, gramaticalmente, embora duvide que j haja uma definio sati sfatria. Os proferimentos perfo rmativos se contrastam primordialmente com os proferimentos constatativos. Emitir um proferimento constatativo (isto , proferi -lo com uma referncia histrica) fazer uma declarao. Emitir um proferimento performativo , por exemplo, fazer uma aposta. Vide mais adiante em "ilocues'" . 8 Anteriormente usei "performatrio" . Mas deve-se proferir "performativo" por ser mais curto,

    menos fe io, mas fcil de usar e mais trad icional em sua formao.

    9 Devo esta observao ao Professor H L A. Hart.

    *Consideramos o termo "performativo" preferfvel ao seu equivalente mais prximo em portugus

    que seria " reltlizativo" , correspondente idia de ao. Como o ternlO j se acha consagrado na lite

    r!ltum especializada e como se trata de termo tcnico e neologismo cunhado por Austin, optamos por

    monter O origina l, adapumdo-o para o portugus. (N. do T.)

    ando dizer 6 fltzer ______________________ 25

  • ~_ ..

    PODE O DIZER REALIZAR O ATO?

    Cabe perguntar, ento, se podemos fazer afmnaes como:

    "Casar-se dizer umas tantas palavras", ou "Apostar simplesmente dizer algo"?

    Tal doutrina poderia, a princpio, parecer estranha e at mesmo impertinente, mas com as precaues necessrias pode deixar de causar estranheza.

    Uma primeira objeo pondervel ou importante seria a seguinte: possvel realizar-se um ato do tipo a que acima nos referimos sem proferir uma nica palavra, seja escrita, seja oral, mediante outros meios? Por exemplo, em algumas culturas, um casamento pode ser efetuado por coabitao, ou posso apostar valendo-me de uma mquina automtica colocando uma moeda em sua ranhura. Assim, deveramos transformar as proposies acima e afIrmar que "dizer determinadas palavras casar-se" , ou "casar-se, em alguns casos, simplesmente dizer algumas palavras" , ou "apenas dizer determinada coisa apostar".

    Mas a verdadeira razo por que tais observaes parecem perigosas se encontra provavelmente em um outro fato bvio, ao qual teremos que nos referir mais tarde com maiores detalhes. Trata-se do seguinte: geralmente o proferimento de certas palavras uma das ocorrncias, seno a principal ocorrncia, na realizao de um ato (seja de apostar ou qualquer outro) , cuja realizao tambm o alvo do proferirnento, mas este est longe de ser, ainda que excepcionalmente o seja, a nica coisa necessria para a realizao do ato. Genericamente falando, sempre necessrio que as circunstncias em que as palavras forem proferidas sejam, de algum modo, apropriadas; freqentemente necessrio que o prprio falante, ou outras pessoas, tambm realize determinadas aes de certo tipo, quer sejam aes "fsicas" ou " mentais", ou mesmo o proferimento de algumas palavras adicionais. Assim, para eu batizar um navio essencial que eu seja a pessoa escolhida para faz-Ia; no casamento (cristo) essencial para me casar que eu no seja casado com algum que ainda vive, que so e de quem no me divorciei, e assim por diante; para que uma aposta se concretize, geralmente necessrio que a oferta tenha sido aceita pelo interlocutor (que deve fazer algo, como dizer "Feito") e uma doao no se realiza caso diga "Dou-lhe isto" , mas no faa a entrega do objeto.

    ------------_______________J. L. Austin

    At aqui, tudo bem. Uma ao pode ser realizada sem a utilizao do proferimento performativo, mas as circunstncias, incluindo outras aes. sempre tm que ser apropriadas. Mas podemos, ao fazer uma objeo, ter em mente algo totalmente diferente e desta vez bastante equivocado, especialmente quando pensamos em alguns dos performativos mais solenes, tais como "Prometo ... " . Por certo que estas palavras tm de ser ditas "com seriedade" e de modo a serem levadas "a srio". Embora um tanto vago, isto bem verdade de modo geral , e tambm um importante lugar comum em toda discusso que envolva um proferimento. No devo estar, digamos, pilheriando ou escrevendo um poema. Mas temos a tendncia a pensar que a seriedade das palavras advm de seu proferimento como (um mero) sinal externo e visvel, seja por convenincia ou outro motivo, seja para [ms de informao, de um ato interior e espiritual. Disto falta pouco para que acreditemos ou que admitamos sem o perceber que, para muitos propsitos, o proferimento exteriorizado a descrio verdadeira ou fa lsa da ocorrncia de um ato interno. A expresso clssica desta idia encontra-se no Hiplit, (1.612)* , onde Hiplito diz,

    , I ,

  • menle um prorerianento
  • do inexato) como wn ato de dizer certas palavras, e no como a realizao de um ato distinto, interior e espiritual, de que tais palavras so meros sinais externos e audveis. Que isso seja assim, dificilmente pode ser provado, no entanto me atrevo a afIrmar que se trata de um fato.

    Segundo estou informado, no direito processual norte-americano o relato do que se disse vale como prova, caso o que tenha sido dito seja um proferimento do tipo que chamamos de performativo, porque este considerado um relato com fora legal, no pelo que foi dito, o que resultaria em um testemunho de segunda mo - no admissvel como prova - mas por ter sido algo realizado, uma ao. Isto coincide perfeitamente com nossa intuio inicial a respeito dos pro ferimentos performativos.

    At aqui sentimos apenas ruir, sob nossos ps, a slida base de um preconceito. Mas como devemos agir daqui em diante como filsofos? Uma coisa poderamos fazer, naturalmente. Poderamos comear tudo de novo, ou ento caminhar lentamente atravs de etapas lgicas. Mas tudo isso levaria . tempo. Primeiro, vamos concentrar nossa ateno em um detalhe j mencionado de passagem - a questo das "circunstncias adequadas". Apostar no , como j assinalei, simplesmente proferir as palavras " Aposto... etc.". Com efeito, algum poderia dizer tais palavras e mesmo assim poderamos discordar de que tivesse de fato conseguido apostar. Para comprovar o que acabo de dizer basta, digamos, propor a nossa aposta aps o trmino da corrida de cavalos. Alm do proferimento das palavras chamadas performativas, muitas outras coisas em geral tm que ocorrer de modo adequado para podermos dizer que realizamos, com xito, a nossa ao. Quais so essas coisas esperamos descobrir pela observao e classificao dos tipos de casos em que algo sai errado e nos quais o ato - isto , casar, apostar, fazer um legado, batizar, etc. - redunda, pelo menos em parte, em fracassar. Em tais casos no devemos dizer de modo geral que o proferimento seja falso, mas malogrado. Por 'esta razo chamamos a doutrina das coisas que podem ser ou resultar malogradas, por ocasio de tal proferimento, de doutrina das infelicidades.

    Tentemos enunciar esquematicamente, sem reivindicar para tal esquema qualquer carter defmitivo, pelo menos algumas das coisas necessrias para o funcionamento, feliz ou sem tropeos, de um pro ferimento performativo altamente desenvolvido e explcito, o nico, alis, que nos preocupa aqui. A seguir daremos exemplos de infelicidades e de suas conseqncias. Receio, e espero, naturalmente, que estas condies necessrias paream bvias.

    30 _J. L. Austin

    (A, I xistir um procedimento convc!/lciollullllcnl , l lll apresente um deterrmnudo efeito convencional c qu incluo o prorerimento de certas palavras, por certas pessoas, e mceltas circunstncias; c alm disso, qu

    (A.2) as pessoas e circunstncias particulares, em cada caso, devem ser adequadas ao procedimento espec ffico invocado.

    (8. 1) O procedimento tem de ser executado, por todos os participantes, de modo correto e

    (8.2) completo . (1' . 1) Nos casos em que, como ocorre com freqncia, o procedimento

    visa s pessoas com seus pensamentos e sentimentos, ou visa li instaurao de uma conduta correspondente por parte de alguns dos participantes, ento aquele que participa do procedimento, c o invoca deve de fato ter tais pensamentos ou sentimentos, e os participantes devem ter a inteno de se conduzirem de maneira adequada,! e, alm disso,

    (r .2) devem realmente conduzir-se dessa maneira subseqentemente.

    Ora, se transgredirmos uma dessas seis regras, nosso proferime nto performativo ser, de uma forma ou de outra, malogrado. Mas claro que h diferenas considerveis entre as diversas " maneiras" de ser malogrado - maneiras que, esperamos, estejam assinaladas pelas letras e nmeros selecionados para cada item.

    A primeira grande distino reside na opinio entre o conjunto das quatro regras A e B e as duas regras r . Da o uso de letras latinas em oposio letra grega. Se violamos uma das regras de tipo A ou B - isto , se proferimos a frmula incorretamente, ou se as pessoas no esto em posio de realizar o ato seja porque, por exemplo, j so casadas, seja porque fo i o comissrio e no o capito do navio quem realizou o casamento, ento o ato em questo (o casamento) no se realiza com xito, no se efetua, no se concretiza. Nos dois casos, ao contrrio, o ato concretizado, embora realiz- lo em tais circunstncias , digamos, quando, por exemplo, somos insinceros, seja um desrespeito ao procedimento. Isto se passa quando digo " prometo" sem ter a inteno de cumprir o prometido, prometi mas ... Precisamos de nomes para nos referirmos a esta distino geral, por isso chamaremos desacertos os atos malogrados do tipo A. I-B .2, em que no se consegue levar a cabo o ato para cuja realizao, ou em cuja realizao, indispensvel a

    1 Scrd explicado depois por que o fato de se ter estes pensamentos, sentimentos e intenOes MO csUl lnclufdo dentre as OUlrJS "c ircunst.!\ncias" jd cons ideradas em (A).

    QUW1do dizer fazer 31

  • fonna verbal correspondente. Por outro lado, chamaremos de abusos aqueles atos malogrados (de tipo r) em que a ao concretizada (obviamente no se devem enfatizar as conotaes usuais destes termos) .

    Quando o proferimento for um desacerto, o procedimento invocado esvaziado de sua autoridade e assim nosso ato (casar, etc.) nulo ou sem efeito. Em tais casos dizemos que nosso ato foi to-somente intencionado ou, ainda, que foi uma mera tentativa; ou usamos expresses como: " foi uma forma de unio" em oposio a "casamos". Por outro lado, nos casos de tipo r dizemos que o ato malogrado foi "professado" ou "vazio", em vez de dizer que foi " pretendido" ou " nulo". Dizemos que no foi levado a cabo ou que no foi consumado, em vez de cham-lo de nulo ou sem efeito. Mas apresso-me a acrescentar que tais distines no so rgidas e fixas e , mais particularmente, que termos como "pretendido" e "professado" no resistiro a um exame mais rigoroso. Duas palavras finais acerca dos atos nulos ou sem efeito. O fato de um ato ser nulo ou sem efeito no quer significar que nada tenha sido feito ; pelo contrrio, muitas coisas podem ter sido feitas. Atravs deles podemos ter cometido um ato de bigamia, sem termos realizado o ato pretendido, a saber, casar. Isto porque, a despeito do nome, o bgamo no se casa duas vezes. (Em resumo, a lgebra do casamento booleana*.) Alm disso, sem efeito, aqui, no significa o mesmo que " sem conseqncias, resultados ou efeitos".

    A seguir devemos tentar esclarecer, no que diz respeito aos desacertos, a distino geral entre os tipos A e B. Nos dois casos classificados como A existe uma m invocao de um procedimento, seja porque no h, de modo geral, um procedimento, seja porque o procedimento em questo no consegue efetivar-se de maneira satisfatria. Da as infelicidades do tipo A poderem ser chamadas de "ms invocaes" . Dentre elas podemos arrazoadamente batizar o segundo tipo (isto , A.2) - em que existe um procedimento, mas que no foi aplicado como se pretendia - de "m aplicao" . Infelizmente, porm, no consegui encontrar um bom nome para o primeiro tipo (isto , A.I ). Em contraste com A, o procedimento nos casos B correto e vlido, mas a execuo do ritual, por ter sido prejudicada, gera conseqncias mais ou menos desastrosas. Assim, os casos B, em oposio aos casos A, sero chamados "ms execues", em oposio a "mas invocaes". O ato pretendido fica prejudicado por uma falha ou tropeo na conduo da cerimnia. A classe B.I a dasfalhas, e a classe B.2 a dos tropeos.

    '" Isto , apenas dois valores: verdadeiro ou falso. Referncia ao sistema algbrico formulado em meados do sc. XI X pelo 16gico e matemtio ingls George Boole. (N. do T .)

    J. L. Austin

    Assim, temos o seguinte esquc lll ll :~' In rcll vld ,ldcs

    1\13 I'

    I Desacertos I\husos

    Atos pretendidos mas nulos A tos pro fessados mas vazios / \ I \ 1\ ti r.1 r ')

    Ms invoca~es Ms eXeL'lleJ)CS Insinceridades ,)

    ato rejeitado ato prejudicado I \ / \

    A.l A.2 B.I H,2

    'I Ms falhas Tropeos

    aplicaes

    No me surpreende que haja dvidas acerca de A.l e r .2, mas vamos adiar sua considerao para mais tarde .

    Antes de entrar em detalhes, desejo fazer algumas observaes gerais sobre as infelicidades. Podemos indagar:

    (1) A que variedade de "ato" se apl ica a noo de infelicidade? (2) At que ponto est completa a classificao das infelicidades aci

    ma? (3) Os vrios tipos de infelicidade se excluem mutuamente?

    Analisemos estas indagaes seguindo a ordem acima.

    2 Austin dc vcz em quando usa outros nomes para as diferentes infelicidades. Por serem de in teresse aJlluns so registrados aq ui . A. I no-atuao, A.2 m atuao; B. fracassos, B.I ms execues, O. no-execues, r . desrespeitos, r .1 dissimulaes, r .2 no realizaes, deslealdades, infraOes, indisciplinas, rupturas, (N. de ./.0. Unnsoll). '" Austin joga com o prefixo ingls lI1is, indicativo de erro, falha ou falta. ao formular a mo.lorlo destes conceitos. Assim temos: lI1is.fire (desacerto), misillvocatioll (m invocao), miSe,ICCltlolI (m6 execuo) e mi.sllpplicatiorl m aplicao). Entretanto, como o pr6prio Austi n IlSsi nalu, estes termos MO devem ser tomados em seu sentido literal, mas de acordo com n de fi nifio dada no tex to. (N. d, 7'.) .

    Quando dizer 6 fazer _ "" 32

  • (l) Qual o alcance da infelicidade?

    Em primeiro lugar, embora isto possa nos ter estimulado (ou deixado de estimular) em relao a certos atos que so, no todo ou em parte, "atos de proferir palavras" , parece evidente que a infelicidade um mal herdado por todos os atos cujo carter geral ser ritual ou cerimonial, ou seja, por todos os atos convencionais. No se trata de que todos os rituais ou todos os proferimentos performativos sejam passveis de todas as formas de infelicidade. Isto bvio, quanto mais no seja pelo simples fato de que muitos atos convencionais, tais como apostas e legados de propriedade, podem ser realizados por meios no-verbais. Os mesmos tipos de regras tm de ser observados em todos estes procedimentos convencionais, basta omitir a referncia especial ao pro ferimento verbal em nosso caso A. Isto pelo menos bvio.

    Mas importa tambm chamar a ateno para os inmeros "atos" que dizem respeito ao jurista, seja por serem performativos ou por inclurem proferimentos de performativos, seja por serem ou inclurem a realizao de algum procedimento convencional. Neste contexto pode-se ver que, de um modo ou de outro, os autores de jurisprudncia constantemente demonstraram perceber os diversos tipos de infelicidade, e por vezes at mesmo as peculiaridades do proferimento performativo. Apenas a obsesso generalizada de que os pro ferimentos legais e os proferimentos usados em, digamos, "atos legais" , tenham que ser de algum modo declaraes verdadeiras ou falsas impediram os juristas de perceber esta questo com mais clareza do que ns. Por isto no ousaria afirmar que nenhum jurista o tenha feito. Para ns, contudo, de importncia mais primordial perceber que, pela mesma razo, um grande nmero de atos que se incluem no campo da tica no so, em ltima anlise, como os filsofos se apressam em afmnar, meros movimentos f1sicos: . Muitssimos deles tm o carter geral, no todo ou em parte, de atos convencionais ou rituais e assim esto, entre outras coisas, expostos infelicidade.

    Por ltimo, podemos perguntar - e aqui sou forado a pr minhas cartas na mesa - se a noo de infelicidade se aplica a pro ferimentos que sejam declaraes. At aqui mostramos a infelicidade como um trao caracterstico

    " i\uslin critica aqui uma tradio positivista e cientificista que reduz a ao humana a suas caracterlsticas de movimento f(sico apenas, podendo assim ser explicada atravs de leis causais no sentido natural. Chama a ateno para a necessidade de levar em conta os aspectos intencionais e convencionuis na interpretao da ao humana. Contemporaneamente, na tradio analtica, a Filosofia da i\llo tem retomado estas discusses que servem de pano de fundo para o conceito de ao envolvido na Teoria dos Atos de Fala. Vejam-se, p.ex., dentre outros: A.1. Goldman (1970) A Theory ofHuman Actioll. Ncw Jersey; Prentice-Hall, D. Davidson (1980) Essays on Actions and Events, Oxford Univ. Press; A. White (org.) (1968) The Phi/osophy ofAction, Oxford Univ. Press. (N. do T.).

    J. L. Austin

    do proferimcnto performativo, que foi "deOnldo" (/lO assim podemos dizer) basicamente em oposio "declarao" j tida como supostamente conlv'-cida. A esta altura, importa, porm, salientar que uma das coisas que os tll sofos fazem ultimamente examinar com ateno especi~ certo tipo de sentenas declarativas que, embora no exatamente fal sas nem contradit6rias, parecem, contudo, absurdas - por exemplo, afmnaes que se referem ti algo que no existe, como: "O atual rei da Frana careca".* Poderamos ser levados a aproximar isto da inteno de doar algo que no possumos. No h uma pressuposio de existncia em ambos os casos? No se trata de uma declarao que se refere a algo que no existe, e que no propriamente falsa, mas nula? E quanto mais consideramos uma declarao, no como uma sentena ou proposio, mas como um ato de fala (a partir do qual os demais so construes lgicas), tanto mais estamos considerando a coisa toda como um ato. Ou, ainda, h semelhanas bvias entre uma mentira e uma promessa falsa. Teremos que voltar a este assunto mais tarde3.

    (2) Nossa segunda pergunta foi: at que ponto completa esta classificao?

    (I) A primeira coisa a ter presente a seguinte: se ao proferir nossos performativos estamos de modo efetivo e em sentido inequvoco "realizando aes" , ento estes performativos enquanto aes estaro sujeitos s mesmas deficincias que afetam as aes em geral. Mas tais deficincias so distintas - ou distinguveis - do que chamamos de infelicidade. Quero com isto dizer que as aes em geral, no todas, so passveis, por exemplo, de serem executadas com dificuldade, ou por acidente, ou devido a este ou quele tipo de engano, ou, mesmo, sem inteno. Em muitos desses casos no cabe dizer simplesmente que tal ato foi realizado ou, mesmo, que algum o praticou. No estou aqui no mbito da doutrina geral, pois em muitos destes casos podemos mesmo dizer que o ato foi nulo (ou tomado nulo pela coao ou ainda por influncia indevida) e assim por diante. Ora, suponho que uma doutrina eral de nvel superior possa incluir em um nico corpo doutrinrio tanto O

    ~Trutll-se de exemplo famoso, anaJisado por Bertrand Russell em seu artigo "On Denotillg" (1905), li propsito da questo da aparente falta de sentido de sentenas que, como esta, no possuem umO rerorencia atual. Estn discusso retomada posteriormente por P. F. Strawson, em seu artigo, tamb6m oldssleo, "On Refening" (1950), que um comentrio e uma crftiea ao de Russell. Ambos os artigos nconlmm-se troduzidos para o portugutls e publicados pela ed. Abril, S. Paulo, no coleo "Os (lcnsudores", nos volumes relativos nos respectivos autores. (N. do T.).

    ./lIfro. pp. 47 e S8.

    _____________ 35unndo dizer razer 34

  • que chamamos infelicidade quanto estes aspectos "infelizes" da realizao de aes - isto , atos que contm um proferimento perfonnativo. Mas por nuo incluir em nossa anlise esse tipo de infelicidades, importa lembrar que tais elementos podem imiscuir-se em quaisquer dos casos que estamos discutindo, o que, alis, com freqncia acontece. Elementos deste tipo poderiam ser normalmente rotulados de "circunstncias atenuantes" ou ainda de " fatores redutores ou anulatrios da responsabilidade do agente", e assim por diante.

    (lI) Em segundo lugar, os performativos enquanto proferimentos herdam tambm outros tipos de males que infectam todo e qualquer proferimento. Estes, porm, embora possam ser enquadrados em uma regra mais geral, foram, no momento, deliberadamente excludos. O que quero dizer o seguinte: um proferimento performativo ser, digamos, sempre vazio ou nulo de uma maneira peculiar, se dito por um ator no palco, ou se introduzido em um poema, ou falado em um solilqUIO, etc. De modo similar, isto vale para todo e qualquer pro ferimento , pois trata-se de uma mudana de rumo em circunstncias especiais. Compreensivelmente a linguagem, em tais circunstncias, no lavada ou usada a srio, mas de forma parasitria em relao a seu uso normal, forma esta que se inclui na doutrina do estiolamento da linguagem*. Tudo isso fica excludo de nossas consideraes. Nossos proferimentos performativos, felizes ou no, devem ser entendidos como ocorrendo em circunstncias ordinrias.

    (III) Pelo menos por ora, o objetivo de excluir esta espcie de considerao que me levou a no apresentar um tipo de "infelicidade" - j que realmente pode ser assim chamado - que se deriva do "mal-entendido" . Obviamente necessrio que para haver prometido eu tenha normalmente que:

    (A) ter sido ouvido por algum, talvez a pessoa a quem prometi; (B) ter sido entendido por esta pessoa como tendo prometido.

    Se uma outra destas condies no for satisfeita, aparecero dvidas quanto ao fato de eu ter realmente prometido, e pode-se considerar que o ato foi meramente um intento, ou que foi nulo. Precaues especiais so tomadas em Direito para evitar essas e outras infelicidades, por exemplo, na apresentao de ordens ou nodificaes legais. Esta importante considerao ter que ser tratada em particular mais tarde em outro contexto.

    *0 termo "estiolamento" significa literalmente perda de cor e vitalidade, de tinhamento , enfraquecimento, e aplicado por Austin para caracterizar o "enfraquecimento" que um ato de fala sofre ao ser utilizado em um contexto no- literal, de "faz-de-conta", com o teatro, a fico, etc. (N. do T.).

    36 ____ _________ J. L. Austin

    (3) Os cosos de infelicidado acima {ulolados cxlucmsc mutuamente', A resposta 6bvia.

    (a) No, no sentido em que podemos nos enganar de duas maneiras a mesmo temp, ao prometer insinceramente a um asno dar-lhe uma cenoura.

    (b) No, sobretudo no sentido em que as formas de errar "se sobrl pem" e "se confundem" e a deciso entre elas acaba por ser "arbitrria" .

    Suponhamos, por exemplo, que haja um navio nas docas de um estaleiro. Aproximo-me e, quebrando a garrafa presa proa, proclamo: "Batizo '8te navio com o nome de "Senhor Stalin" e para completar solto as amarras. A dificuldade, porm, est no fato de no ter sido eu a pessoa escolhida para batiz-lo (quer o nome "Senhor Stalin" fosse ou no o escolhido; talve de certa forma seria at pior se o fosse). Todos concordamos que:

    (1) o navio no foi batizado por este at04; (2) foi um terrvel vexame.

    Pode-se dizer que "fingir" ter batizado o navio, que meu ato foi "nulo" ou "sem efeito", por no ser eu a pessoa indicada ou no ter a "capacidade" 'de realiz-lo. Por outro lado, poder-se-ia tambm dizer que em casos onde sequer h pretenso capacidade ou direito a ela tampouco existem procedimentos convencionais aceitos. Tratam-se de farsas, como casar-se com um macaco. Poderamos dizer tambm que parte do procedimento a pessoa vir a ser designada para praticar o ato. Quando o santo batizou os pingins, poderamos nos perguntar se seu ato foi nulo por que o procedimento de batismo no se aplica a pingins, ou por que no h procedimento aceito de batizar qualquer ser que no seja humano? Estas questes, em meu ntender, no tm importncia terica, embora seja de interesse investig-las e, na prtica, conveniente estar familiarizado, como os juristas, com a terminologia apta a lidar com elas.

    4 OOlizru uma criana seria ainda mais di fl"cil. Podemos ter o nome errado e o sacerdote errado, isto 6, ohlll6m capacitado a batizar bebs, mas no escol hido para batizar aquele beb em particular.

    uando dizer fozer 37

  • 3

    111 Conferncia Infelicidades: desacertos

    Na primeira conferncia caracterizamos, de modo preliminar,o proferimento performativo como aquela expresso lingstica que no consiste, ou no consiste, apenas, em dizer algo, mas em fazer algo, no sendo um relato, verdadeiro ou falso, sobre alguma coisa. Na segunda, chamamos a ateno para o fato de que, embora no seja sempre verdadeiro ou falso, o proferimento est sempre sujeito crtica, podendo ser infeliz, e assim sendo apresentamos uma lista de seis desses tipos de infelicidades. Dentre estas, quatro eram de tal ordem que tomavam o pro ferimento um desacerto, e o ato intencionado nulo e vo, e, como tal, sem surtir qualquer efeito, enquanto que as demais, ao contrrio, faziam do ato pretendido um mero abuso de procedimento. Assim, armamo-nos, ao que parece, com dois novos e brilhantes conceitos com os quais podemos romper o bero da Realidade, ou, qui, da Confuso. Duas novas chaves em nossas mos e, ao mesmo tempo, dois novos patins em nossos ps. Em filosofia, estarmos previamente armados deveria significar estarmos prevenidos. Depois, estendi-me um pouco mais na discusso de algumas questes gerais acerca do conceito de infelicidade e em seu lugar propus um novo mapa para a rea. Sustentei (1) que a noo de infelicidade aplicava-se a todos os atos cerimoniais e no apenas aos atos verbais, e que estes so mais freqentes do que se cr; admiti (ll) que a lista no era completa, e que existem outras dimenses do que se pode razoavelmente chamar de "infelicidades" que afetam de modo geral a realizao de atos cerimoniais e de proferimentos em geral, dimenses que so certamente

    J. L. Austin

    (llJ) quc di rcrcn tc:i IIllclicluadt.:1l pOUCIll combUlI1I se ou sobrepor-sc, tornando-se uma questo mais ou menos opcional a 11111neira de classificar um dctenninado exemplo particular.

    A seguir, cabe tomar alguns exemplos de infel icidades ou de infruocs de nossas seis regras. Primeiro, quero lembrar-lhes a regra A.I, aftmltlntl que deve haver um procedimento convencional aceito que tenha um detcrl1li nado efeito convencional, tal procedimento incluindo o proferimento de c~r. tas palavras por certas pessoas em certas circunstncias, e a regra A.2, complementar da primeira, estabelecendo que as pessoas e as circunstncias especficas tm de ser, em um determinado caso, adequadas para a invocaco do procedimento especfico referido.

    A.l Deve existir um procedimento convencionalmente aceito que p duz um efeito convencional, tal procedimento devendo incluir o profcrimento de determinadas palavras, por detenninadas pessoas e em detenninadas circunstncias.

    A segunda parte do enunciado acima destina-se simplesmente a restringir a regra a casos que envolvem proferimentos, no sendo, em prindp.io, importante.

    Nossa formulao desta regra contm as palavras "existir" e "aceito", mas poderamos com razo perguntar no s se "existir" pode ter algum sentido que no seja o de "ser aceito" , como tambm se "estar (em geral) em uso" no deveria ser prefervel a essas duas palavras. Se assim for, no mais deveramos dizer "(I) existir, (lI) ser aceito". Por fora de tal obje examinemos esta questo no que diz respeito palavra "aceito".

    Se algum emite um pro ferimento performativo, e se o pro ferimento classificado como um desacerto pelo fato de o procedimento invocado n6 ter sido aceito, trata-se presumivelmente no do falante , mas de uma pessoa que no o aceita (pelo menos na medida em que o falante fala a srio) . O que poderamos tomar como exemplo? Consideremos "Peo divrc io", dito p um marido sua esposa, ambos cristos e no muulmanos, em um paIS cristo. Neste caso poderia ser dito "no obstante ter pedido o divrcio, 01 no conseguiu divorciar-se dela; admitimos neste pas apenas um outro procedimento verbal ou no-verbal", ou, at mesmo, " no admitimos neste pas nenhum procedimento para efetivar um divrcio, o casamento indissolvel". Isto pode chegar ao ponto de se rejeitar todo um c6digo de procedimento - por exemplo o cdigo de honra que inclui o duelo. Assim. um d('

  • mo" que equivalente a "eu o desafio", e ns poderamos simplesmente ignor-lo. Esta situao geral explorada na infeliz est6ria de Dom Quixote.

    Fica evidente que o caso comparativamente simples se nunca admitinnos um procedimento "desse" tipo; isto , um procedimento para se reali.ar tal tipo de coisa, ou um procedimento especfico para se realizar algo em particular. Mas igualmente possvel so os casos em que aceitamos, dependendo das circunstncias e das pessoas, o procedimento, mas no o aceitaramos em outras circunstncias, ou com outras pessoas. Podemos aqui freqentemente hesitar (como no exemplo dado acima) se uma infelicidade deveria ser enquadrada na classe A.I ou na classe A.2 (ou mesmo na B.I ou 8.2). Por exemplo, em uma reunio social, ao escolher um parceiro para um jogo, digo "Escolho Jorge", e Jorge retruca, "No vou jogar". Pode-se perguntar, Jorge foi efetivamente escolhido? Sem dvida a situao infeliz. Podemos dizer que Jorge no foi escolhido seja por inexistir a conveno segundo a qual se pode escolher uma pessoa que no vai jogar, seja porque na presente circunstncia Jorge um objeto inadequado para o procedimento de escolha. Uma outra situao crtica seria a seguinte: em uma ilha deserta algum pode dizer-me "V apanhar lenha" e eu respondo, "No recebo ordens suas" , ou, ainda, "Voc no tem o direito de me dar ordens" , ou " No aceito ordens suas quando voc est tentando 'afirmar sua autoridade ' (que posso aceitar ou no) em uma ilha deserta" . O caso contrrio se daria se voc fosse o capito do navio, tendo ento autoridade.

    Por outro lado, poderamos dizer, considerando um caso do tipo A.2 (m aplicao): o procedimento - isto , o proferimento de determinadas palavras, etc. - era correto e foi aceito, embora estivessem erradas as circunstncias de invocao e as pessoas que o invocaram. " Eu escolho" , no exemplo acima, s6 funciona se o objeto do verbo for "um jogador" , e uma ordem S funciona se o sujeito do verbo for "uma autoridade".

    Poderamos ainda dizer, levando o caso para a regra B.2 (e talvez devssemos reduzir a esta o exemplo anterior): o procedimento no foi completamente executado por ser necessrio que o objeto do verbo "eu ordeno que" estabelea, mediante um procedimento prvio, tcito ou explcito, que a pessoa que vai dar a ordem tenha autoridade; por exemplo, dizendo: "Prometo fazer o que voc me ordenar". Esta , naturalmente, uma das incertezas genricas, subjacentes ao debate, em teoria poltica, sobre se existe ou no, e se deveria ou no existir um contrato social.

    Em princpio, pouco importa, ao que parece, como decidimos esses casos particulares, embora possamos preferir, aceitando fatos ou introduzindo definies, uma soluo a outra. Importa, porm, esclarecer:

    ./. L. Al/stin

    (I) A respeito de B.2, por mais que m;rCIi~'cnlClllOS dctcnnillllt;OCH 110 procedimento, sempre ser possvel que algum o rejeite //lI totaLidode.

    (2) Para um procedimento ser aceito pressupe-se aJgo mais do que () fato de ser considerado efetiva e genericamente usado, at mesmo pelas pessoas envolvidas; devendo pennanecer em princfpio aberta a poss ibilidade d qualquer pessoa vir a rejeitar qualquer procedimento, ou cdigo de procedimento - mesmo aquele que fora por ela anteriormente aceito - como acontece, por exemplo, com o cdigo de honra. Quem o fizer estar, naturalmente, sujeito a sanes. Algum poderia se recusar a jogar com ela, ou dizer que no se trata de uma pessoa honrada. Mas, acima de tudo, no podemos reduzir as consideraes acima a meras circunstncias factuais, pois estaramos sujeitos velha objeo de termos derivado um "dever" de um "ser" '- pois -ser aceito no uma circunstncia, em sentido estrito. No caso de muitos procedimentos, por exemplo, tomar parte em jogos , por mais adequadas que sejam as circunstncias eu posso ainda no estar jogando. Alm do mais, deveramos considerar que, em ltima anlise, duvidoso que "ser aceito" possa ser reduzido a "usualmente empregado" . Esta porm uma questo mais complexa.

    Em segundo lugar, cabe perguntar o que se quer dizer com a sugesto de que um procedimento pode sequer existir, o que diferente da questo de se um procedimento aceito e por que o grupo aceito ou no l .

    (I) H o caso de procedimentos que "no mais existem", no sentido de terem sido outrora aceitos, j no mais o so em geral ou mesmo por algum, como no caso do duelo.

    (11) H tambm o caso de procedimentos recentemente inaugurados. Por vezes estes podem "dar certo" - tal como no caso do rugby, com o jogador que primeiro pegou a bola com as mos e saiu correndo. Dar certo essencial, a despeito da terminologia suspeita. Consideremos um caso plausvel: dizer "voc foi covarde" pode ser uma reprimenda ou um insulto, e posso tornar explcito meu ato dizendo "eu o repreendo" , mas no posso fazer o mesmo em relao ao insulto dizendo "eu o insulto" ; as razes disso no nos importa aqui2.

    1 Se objetamos a que se diga que h dvida sobre se o procedimento "existe", como bem podemos objetar, pois a palavra nos d arrepios que esto na moda e que so em geral indubitavelmente legfti 1I10S, poderfamos dizer tjue a dvida sobretudo quanto natureza, ou defin i~o, ou compreenso do procedimento que existe c e aceito. 2 Muitos desses procedimentos e f6rmulas plausfveis seriam desvantajosos se reconhecidos. Por exemplo, talvez no devssemos permitir a f6rmula "Prometo que vou aoi t-lo". Mas foi-me dito que no auge da 6poca dos due los entre estudantes da Alemanha era costume que os memhros de um clube marchassem diante dos membros de um outro clube rival, todos em fila, dizendo depois cnda

    Quando di'.er fuer 40 41

  • o que realmente importa que uma variedade es~cial de no-atua03 pode ocorrer se algum realmente diz "eu o insulto' . Pois embora insultar seja um procedimento convencional, e primordialmente verbal, de tal modo que de certa fonna no podemos deixar de entender o procedimento que algum tenciona invocar quando diz "eu o insulto", contudo somos obrigados a " no-atuar" com ele, no apenas porque a conveno no aceita, mas porque sentimos vagamente a presena de um impedimento, cuja natureza pode no ser muito clara, contra a aceitao do procedimento em geral.

    Muito mais comuns so, entretanto, os casos que no se tem certeza sobre o alcance do procedimento, isto , sobre que casos o procedimento cobre ou que variedades poderia vir a cobrir. inerente natureza de qualquer procedimento que os limites de sua aplicabilidade, e de sua definio "precisa", permaneam vagos. Sempre ocorreram casos marginais ou difceis em que nada pode servir na histria prvia de um procedimento convencional, para se decidir conclusivamente se este procedimento est ou no sendo corretamente aplicado em um caso determinado. Posso batizar um co, se o admitimos como racional? Ou isto seria um caso de no-atuao? Em Direito, inmeras so as decises difceis como esta, em que mais ou menos arbitrrio decidir se (A.I) a conveno no existe ou (A.2) se as circunstncias no so adequadas para a aplicao de uma conveno que sem dvida existe. Assim, acabamos por seguir, de uma maneira ou de outra, o "precedente" que estabelecemos. Os juristas preferem geralmente a segunda alternativa, que implica em aplicar a lei e no em cri-la.

    H ainda um outro tipo de caso, capaz de ser classificado de muitas maneiras, e que merece uma meno especial.

    Todos os proferimentos performativos at agora abordados foram instncias altamente desenvolvidas do tipo que mais tarde chamaremos de performativos expltcitos, em oposio aos performativos meramente implfcitos. Em outros termos, todos eles incluem ou tm incio com palavras altamente significativas e inambguas como "aposto", "prometo", "do", palavras corretamente usadas para designar o ato que, ao fazer tal proferimento, estou realizando. Por exemplo, apostar, prometer, doar, etc. Mas to bvio quanto importante que possamos ocasionalmente usar o proferimento "V" para fazer praticamente o mesmo que fazemos com o proferimento "Ordeno-lhe que v". E diramos sem hesitar ao descrever subseqentemente o que

    um a seu Oponente escolhido, medida que passava e de maneira muito polida, "Beleidigung" . o que ~ i gnjfica "Eu o insulto".

    3 "No-atuao" foi durante algum tempo a denominao dada por Austin categoria A.I de infelicidades. Ele veio a rejeit-la mais tarde, porm a esta altura o termo ainda aparece em suas anotaes. (NotadeJ.O. Urmson)

    J. L. Austin

    guem fez, que em ambos 014 casos ele II()!I ()IJcnuu que r:'liCmo~. Isso I de, entretanto, ser de fato incerto, o, no que concenlO ao simples proferimento, sempre pennanece incerto quando usamos uma frmula to ine}C.pH~ cita quanto o mero imperativo "v", se o falante est dando uma ordem (ou pretendendo dar uma ordem) ou se est simplesmente aconselhando, incentivando, ou qualquer coisa do tipo. Assim, "H um touro no campo", pode ser ou no uma advertncia de perigo, pois posso estar simplesmente descrevendo uma cena. Do mesmo modo, "Estarei l" pode ser ou no uma promessa. Em todos estes casos temos performativos primitivos em contraste com performativos explcitos; mas pode no haver absolutamente nada nas circunstncias dadas que nos possibilite decidir se o proferimento ou no performativo. De qualquer forma, em dada situao sempre possvel consider-lo uma coisa ou outra. Mesmo que fosse uma frmula perforrnativa, o procedimento em questo pode no ter sido invocado de forma suficientemente explcita. Talvez eu no o tenha tornado como uma ordem ou me sentisse obrigado a tom-lo como uma ordem. A pessoa a quem disse "Estarei l" no tomou meu proferimento como uma promessa, isto , nas circunstncias especficas no aceitou o procedimento, com o argumento de que o ritual foi executado de maneira incompleta por mim.

    Poderamos assimilar isso a um desempenho defeituoso ou incompleto (B.I ou B.2) se no fosse na realidade completo, embora no sem ambigidade. (No Direito, claro, este performativo no explcito seria normalmente classificado como B.I ou B.2. regra que a falta de explicao - por exemplo um legado feito de modo inexplcito - resulta em realizao incorreta ou incompleta; na vida cotidiana porm, no h semelhante rigidez.) Poderamos tambm assimilar isso a um mal-entendido (que ainda no estamos considerando), mas de tipo especial, dizendo respeito fora do proferimento, e no a seu significado. No se trata aqui de que a audincia no tenha entendido, mas de que no tinha que entender - por exemplo no tinha que tom-lo como uma ordem.

    Poderamos at mesmo assimilar isso a A.2, sob a alegao de que o procedimento no foi projetado para ser usado a menos que resulte claro como esteja sendo usado, pois, caso contrrio, seria absolutamente vo. Pod~ ramos afmnar que s deve ser usado em circunstncias que tornem totalmente claro e sem ambigidade em que acepo est sendo usado. Mas isto seria recomendar a perfeio.

    A.2 As pessoas e circunstncias particulares em um caso detenninado tm de ser adequadas invocao do procedimento especfico invocado

    Quando dizer fazer 42 43

  • Passemos agora s violaes de A.2, ao tipo de infelicidade que chamamos de ms aplicaes. Os exemplos aqui so inmeros. "Eu o nomeio" , etito quando a pessoa j foi nomeada, ou quando foi nomeada outra pessoa, ou quando eu no tenho o poder de nome-Ia, ou quando o nomeado um cavalo. "Sim", quando se tem um grau de parentesco com a noiva que impede o casamento, ou diante de um capito de navio que no est no mar. "Eu lhe dou ... ", quando o objeto no meu, ou quando uma parte de meu corpo e dele no pode ser separado. Temos vrios termos especiais para usar em diferentes tipos de casos: "ultra vires" , "incapacidade", "objeto ou pessoa inadequado ou inapropriado" , "sem direito" e assim por diante.

    A linha divisria entre "pessoas inadequadas" e "circunstncias inadequadas" no necessariamente rgida e inflexvel. De fato, o termo "circunstncias" pode ser tomado em tal extenso que acabe por abranger "a natureza" de todas as pessoas participantes. Mas devemos distinguir os casos em que a inadequao de pessoas, objetos, nomes, etc. uma questo de "incapacidade", dos casos mais simples em que o objeto ou o "agente" da espcie ou do tipo errado. Esta , por sua vez, uma distino imperfeita e alusiva, mas importante - por exemplo, no Direito. Assim, h que se distinguir os casos em que um clrigo batiza a criana errada com o nome correto ou batiza uma criana com o nome de "Alberto" ao invs de "Alfredo", do caso em que se diz "Eu batizo esta criana com o nome de 2704", ou "Eu prometo arrebentar a sua cara", ou ainda em que se nomeia um cavalo cnsul. Os trs ltimos casos envolvem algo cujo defeito se encontra na espcie ou no tipo, enquanto que nos demais casos a inadequao apenas uma questo de incapacidade.

    Algumas sobreposies de A.2 com A.l e B.l j foram mencionadas. Estamos inclinados a cham-las de ms invocaes (A.l), mais quando a pessoa enquanto tal for inadequada, do que indevidamente autorizada; isto , quando nenhuma nomeao ou qualquer procedimento anterior regularizam sua situao. Por outro lado, se tomamos literalmente o caso da nomeao (isto , posio em contraste com status) poderemos classificar a infelicidade como um procedimento erroneamente executado e no como um procedimento mal-aplicado. Por exemplo, se votamos em um candidato antes que ele tenha sido indicado por seu partido. O problema aqui consiste em determinar at que ponto devemos remontar prpria noo de "procedimento".

    A seguir, cabe discutir exemplos de B U anteriormente examinados) a que chamamos de ms execues.

    B.l O procedimento deve ser executado corretamente por todos os participantes.

    J. L. Austin

    Aqui se encontram os casos das rnlhus. Estas consistem no uso de, por exemplo, frmulas erradas. Aqui o procedimento adequado s pessoas c s circunstncias, mas executado incorretamente. Os exemplos mals claros d falhas se encontram no mbito do Direito. Na vida cotidiana nem sempre so to claros, j que neste se admitem concesses. O uso de frmulas inexpUcitas pode ser colocado nesta classe. Nesta classe tambm entra o uso de frmulas vagas e referncias imprecisas - por exemplo, se digo "minha casa" quando tenho duas, ou ento se digo"Aposto que a corrida no se realizar hoje" , quando mais de uma corrida esto marcadas.

    Trata-se de uma questo distinta seja do mal-entendido, seja da compreenso lenta por parte da audincia. Neste caso h uma falha no ritual, no importando como a audincia o tenha considerado. Algo que causa particu lar dificuldade determinar se necessrio o consensus ad idem quando dois lados estiverem envolvidos. essencial no caso assegurar-se de que houve uma compreenso correta, alm de tudo mais? Trata-se obviamente de um tpico que cai sob as regras de tipo B e no sob as regras de tipo.

    B.2 O procedimento deve ser executado de forma completa por todos os participantes.

    Aqui encontramos casos de tropeo. Tentamos executar o procedimento, mas o ato abortivo. Por exemplo, toda tentativa de apostar atravs da expresso "Aposto seis cruzados" ser abortiva, a menos que o parceiro diga "Aceito", ou palavras equivalentes. Mesmo dizendo "Sim", toda tentativa de casar-se abortiva caso a noiva diga "No", toda tentativa de duelar ser abortiva, mesmo dizendo "Eu o desafio", se os padrinhos no forem enviados para marcar hora e lugar. A tentativa de inaugurar, mesmo com toda a cerimnia, uma biblioteca ser abortiva se eu disser " Inauguro esta biblioteca" , mas a chave venha a se quebrar na fechadura; assim tambm o batismo de um barco ser abortivo caso se soltem as amarras antes de dizer "Lano ao mar este navio" . Nestes casos, como nos da vida cotidiana, admite-se uma certa flexibilidade no procedimento, pois, de outro modo, nenhuma atividade universitria jamais poderia ser executada.

    Evidentemente, por vezes surgem dvidas sobre se algo mais necessrio ou no. Assim, necessrio, para que eu presenteie, que meu interlocutor aceite o presente que lhe dou? Por certo, nas negociaes formais o aceite exigido, mas ser assim na vida cotidiana? Dvida semelhante surge quando um compromisso assumido sem o assentimento da pessoa a quem cabe assurnJ-Io. A questo aqui a seguinte: at que ponto os atos podem ser

    Quando dizer 6 razer 44 45

  • unilaterais? Da mesma fonoa surge a questo sobre at que ponto pode um mo ser considerado terminado, ou o que levar em conta para consider-lo complet04.

    Em relao s qu